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Terry Brooks

A VIAGEM

LIVRO DOIS

ANTRAX,A CRIATURA

TraduçãoFábio Fernandes

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Copyright © 2001 by Terry Brooks

Título original: The Voyage of the Jerle Shannara, book two: Antrax Capa: Raul Fernandes com ilustrações de Steve Stone Editoração eletrônica: Imagem Virtual Editoração Ltda. 2005 Impresso no BrasilPrinted in Brazil

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Brooks, Terry, 1944-

Antrax, a criatura / Terry Brooks; tradução Fábio Fernandes. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.350p. (A viagem; v. 2)

Tradução de: The Voyage of the Jerle Shannara, book two: AntraxSeqüência de: Ilase, a bruxaContinua com: Morgawr, o bruxoISBN 85-286-1060-8 1. Druidas e druidismo - Ficção. 2. Ficção americana. I. Fernandes, Fábio. II. Título. III. Série.

Todos os direitos reservados pela:EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.Rua Argentina, 171 - lº andar- São Cristóvão20921-380 - Rio de Janeiro – RJTel: (0XX21) 2585-2070 Fax: (0XX21) 2585-2087

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PARA JOHN SAUL E MIKE SACK

Por quinze anos de insights fulminantes, humor negro econselhos valiosos.

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1

Grianne Ohmsford tinha seis anos no dia em que perdeu sua infância. Era pequena

para sua idade, não tinha uma força física incomum nem uma extraordinária experiênciade vida, e portanto não estava particularmente bem preparada para crescer tão rápido.Vivera a vida inteira nas fronteiras orientais das Planícies Rabb, uma criança protegidaem um lar protegido, a mais velha dos dois filhos de Araden e Biornlief Ohmsford, ele umescriba e professor, ela uma dona-de-casa. Pessoas entravam e saíam de sua casa comose fosse uma hospedaria: alunos de seu pai, clientes aproveitando o benefício de suashabilidades, viajantes de todas as Quatro Terras. Mas ela própria nunca estivera em lugaralgum além dali e apenas começava a compreender o quanto desconhecia do mundo,quando o pouco que conhecia lhe foi tomado.

Embora a sua aparência não fosse notável, e, a princípio, nada a seu respeitosugerisse que ela poderia sobreviver a qualquer tipo de trauma, a verdade era que elaera forte e hábil de maneiras inesperadas. Uma parte disso transparecia em seussurpreendentes olhos azuis, que podiam fulminar com sua objetividade e penetrar nofundo da alma de uma pessoa. Estranhos que cometiam o erro de encará-los desviavamrapidamente o olhar. Ela não falava com esses homens e mulheres nem parecia ganharalgo com tais encontros. De qualquer maneira, costumava deixar naqueles estranhos asensação de lhes ter tirado alguma coisa. Vagando pela casa e pelo quintal, os longoscabelos negros soltos, uma menina abandonada que parecia não ter o que fazer nempara onde ir, ela, sentada sozinha num canto enquanto os adultos conversavam,reclamava seu próprio espaço e o mantinha inviolável.

Também era cabeça-dura, uma criança teimosa e intratável que, quando decidiaalguma coisa, se recusava a mudar de idéia. Por algum tempo, seus pais conseguiramlidar com isso em virtude de seu relacionamento e das costumeiras ameaças e seduções,mas por fim perceberam que eram incapazes de influenciá-la. Era como se elaencontrasse sua identidade ao assumir uma posição sobre as coisas, fincando o pé nelasem desafio e aceitando o que viesse pela frente como conseqüência. Freqüentementerecebia uma severa reprimenda e o castigo de ficar em seu quarto, mas na maioria dasvezes simplesmente recebia a negação de algo que achassem que a beneficiaria. Fossequal fosse o caso, ela não parecia se importar com as conseqüências e tendia a ficar maisincomodada quando eles se rendiam aos seus desejos.

Mas no coração de tudo estava a sua herança, que se manifestava de um modo quenão era visto há gerações. Desde cedo ela soube que não era igual a seus pais, a seusamigos ou a qualquer pessoa que conhecesse. Ela era um retorno aos tempos dosmembros mais famosos de sua família: Brin, Jair, Par e Coll Ohmsford, dos quais eradescendente direta. Seus pais lhe haviam explicado isso muito cedo, logo depois que seu

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talento se revelou. Ela nascera com a magia da canção do desejo, um poder latente quevinha à tona na linhagem da família Ohmsford apenas uma vez a cada quatro ou cincogerações. Deseje alguma coisa, cante por essa coisa e ela acontece. Tudo era possível. Acanção do desejo nunca se manifestara em um Ohmsford durante a vida dos pais deGrianne e por isso nenhum dos dois tivera qualquer experiência direta com a maneirapela qual ela funcionava. Mas eles conheciam as histórias que lhes haviam sido contadasrepetidas vezes por seus próprios pais, as histórias da magia herdada desde os temposda grande rainha Wren, outra de seus ancestrais. Portanto, eles sabiam o suficiente parareconhecer o significado do que ocorrera quando Grianne curvou os caules das flores eafastou um cão raivoso simplesmente cantando.

O uso que fazia da canção do desejo era rudimentar e indisciplinado no início e elanão compreendia que era um poder especial. Na sua cabeça infantil, parecia normal quetodo mundo possuísse aquilo. Seus pais se esforçaram para ajudá-la a perceber o valorcontido em tal poder, a controlá-lo e a aprender a esconder esse segredo dos outros.Grianne era uma menina inteligente e rapidamente compreendeu o que significava teralgo que outras pessoas pudessem cobiçar ou temer. Quanto a isso, ela ouvia os pais,mas não prestava muita atenção aos seus avisos sobre o modo de usar esse poder e osfins aos quais ele deveria servir. Ela sabia o suficiente para mostrar a eles o queesperavam dela e ocultar deles o que não esperavam.

Por isso, no dia em que perdeu sua infância ela já tinha resolvido qual uso fazer damagia. Construíra defesas para as exigências desse poder e subterfúgios com os quaiscontornar as recusas da parte de seus pais em deixarem que ela levasse o experimentoda magia até os seus limites. Fechada na armadura de uma determinação intensa e umainsistência teimosa, ela construíra uma fortaleza dentro da qual, com uma sensação deimpunidade, exibia a canção do desejo. Seu mundo de criança já era mais complexo eperturbador do que o de muitos adultos, e ela estava aprendendo a importância dejamais dizer tudo o que tivesse a ver com quem e o que ela era. Foi o seu dom da magiae sua compreensão de como funcionava que a salvaram.

Ao mesmo tempo, e sem que ela tivesse culpa alguma, foi isso o que condenou seuspais e seu irmão mais novo.

Ela sabia que havia algo de errado com seu mundo de criança algumas semanasantes daquele último dia. Isso se manifestara em pequenos aspectos, coisas que seuspais e outras pessoas não conseguiram detectar de imediato. Havia coisas estranhas noar: cheiros, gostos e sons que murmuravam uma presença oculta e emoções sombrias.Ela percebia vislumbres de sombras nas vibrações de sua voz que lhe retornavam quandoutilizava a magia de sua canção. Sentia mudanças no calor e no frio que só apareciamquando ameaçada. Antes ela sempre conseguira captar a origem disso, dessa vez não.Por uma ou duas vezes, sentiu a proximidade de formas envoltas em mantos negros,talvez os mutantes que descobrira em diversas ocasiões anteriores, sempre ocultos e forade seu alcance, mas que estavam ali mesmo assim.

Não dissera nada sobre essas coisas a seus pais porque não tinha provas concretas,apenas uma suspeita sobre a qual sustentar suas reclamações. Apesar disso, mantinhavigilância cerrada. Sua casa ficava às margens de um bosque de bordos e dali era

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possível ver as verdes Planícies Rabb até o sopé dos Dentes do Dragão. Embora nadapudesse se aproximar pelo oeste sem ser visto de uma longa distância, florestas e colinasbloqueavam os outros três quadrantes. Ela os vasculhava de tempos em tempos,precaução tomada para lhe transmitir uma sensação de segurança. Mas o que quer queestivesse observando era cuidadoso e ela jamais descobriu o que era. Escondia-se dela,evitava-a, afastava-se quando ela se aproximava e sempre retornava. Podia sentir seusolhos sobre ela enquanto o procurava. Era inteligente e habilidoso; estava acostumado aficar escondido quando outros ameaçavam descobri-lo.

Ela deveria ter sentido medo, mas não fora criada para o medo e não tinha motivopara apreciar seus usos. Para ela, o medo era um aborrecimento que procurava eliminare ao qual não dava atenção. Finalmente, perguntou a seu pai se havia alguém quedesejasse feri-la, ou a ele, sua mãe ou seu irmão, mas ele apenas sorriu e disse que nãotinham nada que alguém desejasse e que desse motivos para isso. Disse isso de formacalma e segura, um professor legando conhecimento a um aluno, e ela não acreditou queele pudesse estar errado.

Quando as figuras de mantos pretos finalmente chegaram, fizeram-no logo antes doamanhecer, quando a luz era tão suave e fraca que mal tocava as bordas das sombras.Elas mataram o cão, o velho Bark, quando ele saiu para dar uma olhada, um ato quedemonstrava de forma inconfundível a natureza maligna da intenção deles. A essa alturaela estava acordada, alertada por alguma voz interior ligada à sua magia, percorrendo,ligeira e nas pontas dos pés, os aposentos de sua casa, procurando o perigo que jáestava à porta. Sua família estava sozinha naquela manhã, todos os viajantes já tinhamido e vindo ou ainda estavam a caminho, e não havia ninguém para ajudá-los a sedefenderem em face do perigo.

Grianne não hesitou ao avistar as formas sombrias que passaram deslizando pelasjanelas. Sentia a presença do perigo por toda parte, um círculo de lâminas de ferro sefechando com um objetivo inexorável. Gritou por seu pai e voltou correndo a seu quarto,onde seu irmão estava dormindo. Agarrou-o sem dizer palavra, abraçando-o com força.Macio e quente, ele tinha acabado de completar dois anos de idade. Ela o tirou do quartoe desceu para a adega escavada dentro da terra, onde eram guardados os gênerosperecíveis. Acima, os pais procuravam cobrir sua fuga. Ouviu subitamente o som de vidroquebrando e de madeira arrebentando, e pôde ouvir os gritos e as maldições raivosas deseu pai. Ele era um homem corajoso; ficaria e lutaria. Mas não seria o bastante; isso elajá sentia. Soltou uma trava e puxou a seção de prateleiras que ocultava a entrada dominúsculo abrigo para tempestades que eles jamais haviam utilizado. Colocou seu irmãoadormecido sobre uma cama de palha que havia lá dentro. Ficou olhando para ele por uminstante: seu rostinho pequeno e suas mãozinhas fechadas, sua forma adormecida. Ouviuos gritos e maldições lá em cima se transformarem em gritos de dor e angústia, epercebeu as lágrimas que inundavam os próprios olhos.

Uma fumaça preta se infiltrava entre as tábuas do chão quando ela saiu de mansinhodo abrigo e fechou a entrada atrás de si. Ouviu o crepitar das chamas consumindo amadeira. Com seus pais mortos, os intrusos iriam em seu encalço, mas ela seria maisrápida e mais esperta do que esperavam. Fugiria deles, e quando estivesse a uma

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distância segura lá fora, na luz clara da aurora, correria os quase dez quilômetros até acasa mais próxima e voltaria com ajuda para seu irmão.

Ouviu as formas de mantos pretos procurando por ela quando saiu correndo,atravessando uma pequena passagem até a porta da adega que levava direto para fora.Ali, a porta estava oculta por arbustos e quase nunca era utilizada; não era provável quepensassem em encontrá-la ali. Se o fizessem, lamentariam muito. Ela já sabia o tipo deestrago que a canção do desejo podia provocar. Era uma criança, mas não era indefesa.Tentou parar de chorar e trincou os dentes. Isso eles descobririam um dia. Descobririamisso quando ela os machucasse da mesma maneira que a estavam machucando.

Então ela saiu para a luz brilhante do dia, agachando-se atrás dos arbustos. Nuvensnegras de fumaça rodopiavam ao seu redor e ela sentiu o calor do fogo que lambia asparedes de sua casa. Tudo lhe estava sendo tomado, ela pensou em desespero. Tudo oque importava.

Um movimento súbito ao seu lado atraiu-lhe a atenção. Quando se virou para ver oque era, uma mão enrolada em um pano fedorento cobriu seu rosto e a enviou em quedalivre para a escuridão.

Quando acordou, estava amarrada, amordaçada e com os olhos vendados, não sabiadizer onde estava, quem a mantinha prisioneira ou sequer se era dia ou noite. Estavasendo levada sobre um ombro maciço como se fosse um saco de trigo, mas seus captoresnada falavam. Havia mais de um; ela podia ouvir-lhes os passos pesados e seguros.Podia ouvir-lhes a respiração. Pensou em sua casa e em seus pais. Pensou no irmão. Aslágrimas retornaram e ela começou a soluçar. Fracassara com todos eles.

Ela foi carregada por um longo tempo, depois deitada sobre o chão e deixadasozinha. Contorceu-se em um esforço para se libertar, mas as cordas estavam amarradascom muita força. Tinha fome e sede, e um frio desespero começou a tomar conta dela.Só podia haver um motivo pelo qual ela fora capturada, um motivo que a tornavanecessária, ao contrário de seus pais e seu irmão. Sua canção do desejo. Ela estava vivae eles estavam mortos por causa de sua herança. Era ela quem tinha a magia. Ela eraespecial. Tão especial que sua família fora morta para que ela pudesse ser seqüestrada.Tão especial que fizera com que tudo o que amava e com o que se importava lhe fossetomado.

Pouco depois, percebeu uma comoção, súbita e inesperada, cheia de novos sons debatalha e gritos furiosos. Pareciam estar vindo de todas as partes ao seu redor. Então elafoi arrancada do chão e levada dali, deixando os sons para trás. Aqueles que acarregavam agora a aninhavam enquanto corriam, segurando-a com cuidado, como separa acalmar seu medo e desespero. Ela se enroscou nos braços de seu salvador,encolhendo-se como se tivesse sido ferida, tamanha a sua necessidade.

Quando estavam sozinhos em um lugar silencioso, as amarras, a mordaça e a vendaforam retiradas. Ela se sentou e viu à sua frente um homem grande envolto em mantosnegros, um homem que não era inteiramente humano, o rosto coberto de escamas epintas como o de uma cobra, os dedos terminando em garras e os olhos como fendas

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sem pálpebras. Perdeu o fôlego e encolheu-se, mas ele não se mexeu em resposta aesse gesto.

— Agora você está salva, pequenina — ele murmurou. — Salva daqueles quequeriam feri-la, do Tio Negro e de sua espécie.

Ela não sabia de quem ele estava falando. Olhou ao redor com cautela. Estavamagachados em uma floresta, as árvores formando rígidas sentinelas por todos os lados,seus galhos demarcando o centro de um oceano de luz do sol que salpicava o chão dafloresta como ouro em pó. Não havia mais ninguém por perto e nada do que ela estavavendo lhe parecia familiar.

— Não há motivo para ter medo de mim — disse o outro. — Está com medo daminha aparência?

Ela assentiu desconfiada, tentando engolir apesar da secura na garganta.Ele lhe entregou uma bolsa de água, e ela bebeu, agradecida.— Não tenha medo. Sou de raça mestiça, humano e mwellret, pequenina. Pareço

assustador, mas sou seu amigo. Eu fui aquele que salvou você dos outros. Do Tio Negro ede seus mutantes.

Era a segunda vez que ele mencionava o Tio Negro.— Quem é ele? — ela perguntou. — Foi ele quem nos machucou?— Ele é um druida. Walker é seu nome. Foi ele quem atacou sua casa e matou seus

pais e seu irmão. — Os olhos de réptil a encararam. — Pense bem. Você vai se lembrarde ter visto o rosto dele.

Para sua surpresa, ela se lembrava. Ela o via com clareza. Vislumbrou seu rostoquando passara por uma das janelas na luz minguada da aurora, pele escura e barbapreta, olhos tão penetrantes que faziam você se sentir nua, testa escura vincada porlinhas de expressão. Ela o viu, soube que era seu inimigo e sentiu uma fúria de tamanhaintensidade que achou que poderia queimar de dentro para fora.

Então começou a chorar, pensando nos pais e no irmão, em sua casa e seu mundoperdido. O homem à sua frente puxou-a gentilmente para seus braços e a abraçou.

— Você não pode voltar — disse a ela. — Eles estarão procurando por você. Jamaisdesistirão enquanto acharem que está viva.

A cabeça dela, apoiada em seu ombro, assentiu.— Eu os odeio — disse ela com um gemido fino e agudo.— Sim, eu sei — sussurrou ele. — Você está certa em odiá-los. — Sua voz rouca e

gutural ficou mais dura. — Mas me escute, pequenina. Eu sou o Morgawr. Sou seu pai esua mãe agora. Sou sua família. Vou ajudá-la a achar um meio de se vingar por tudo oque tomaram de você. Vou lhe ensinar a se defender de tudo o que possa feri-la.Ensinarei você a ser forte.

Levantou-a como se ela não pesasse nada e levou-a ainda mais para o interior dafloresta, onde um pássaro gigante os esperava. Ele chamou o pássaro de shrike e elavoou em suas costas com o Morgawr para outra parte das Quatro Terras, uma parteescura, solitária e vazia de sons e de vida. Ele cuidou dela como prometera, treinou-a emmente e corpo e a manteve segura. Contou a ela mais sobre o druida Walker, de seusesquemas e de sua fome de poder, do objetivo que ele possuía há muito de dominar

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todas as raças em todas as terras.Mostrou-lhe imagens do druida e de seus servos de mantos negros e manteve em

seu peito de criança a raiva quente e viva.— Nunca esqueça o que ele roubou de você — ele repetia. — Nunca esqueça o que

ele, por sua traição, deve a você.Depois de algum tempo, ele começou a ensiná-la a utilizar a canção do desejo como

uma arma contra a qual ninguém poderia se defender — não quando ela a tivessedominado e aprendido a controlá-la, e quando fizesse dela uma parte tão grande de siprópria que seu uso pareceria uma segunda natureza. Ele ensinou que até mesmo umaligeira variação de volume ou de tom podia transformar saúde em doença e vida emmorte. Um druida tinha esse tipo de poder, ele disse. Especialmente o druida Walker. Eladeveria aprender a ser páreo para ele. Deveria aprender a usar sua magia para superar adele.

Com o passar do tempo ela parou de pensar em seus pais e em seu irmão, poissabia que eles estavam mortos e para sempre perdidos; não eram mais do que ossosenterrados no solo, uma parte do passado perdida para sempre, de uma infânciaapagada em um único dia. Entregou-se à sua nova vida e a seu mentor, seu professor eamigo. O Morgawr foi tudo isso durante sua adolescência, tudo isso e muito mais. Foi elequem a moldou em pensamento e lhe orientou a vida. Foi ele a inspiração para osobjetivos de sua magia e o guardião de seus sonhos em compensar os males que elasofrerá.

Ele a chamava de sua pequena bruxa Ilse, e ela assumiu o nome como seu próprio.Enterrou o nome original com seu passado e jamais voltou a usá-lo.

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2

Suas lembranças do passado, já desvanecidas e em farrapos, voltaram em uma

fração de segundo quando ela, em uma floresta a mil e quinhentos quilômetros de seu larperdido, confrontou-se com o rapaz que afirmava ser seu irmão.

— Grianne, sou Bek — ele insistiu. — Você não se lembra de mim?Ela se lembrava de tudo, claro, embora não mais com tanta nitidez e precisão, não

mais com tanta dor. Ela se lembrava, mas se recusava a crer que suas lembrançaspudessem ser revividas com uma clareza tão dolorosa depois de tantos anos. Durantetodo aquele tempo, nunca mais ouvira seu nome ser pronunciado, ela própria não odissera, praticamente não pensara mais nele. Ela era a bruxa Ilse, e esse nome definiaquem e o que ela era, e não o outro nome. O outro era para quando ela tivesseconseguido sua vingança sobre o druida, para quando tivesse obtido reconhecimento epoder suficientes, de modo que, da próxima vez em que fosse pronunciado, jamais seriaesquecido.

Mas ali estava aquele espirro de garoto, pronunciando-o agora, ousando sugerir quetinha o direito de fazê-lo. Ela o encarou sem acreditar, com uma imensa fúria. Será queele poderia realmente ser seu irmão? Poderia ser Bek, vivo apesar do que ela acreditarapor tanto tempo? Seria possível isso? Tentou dar sentido à idéia, encontrar uma maneirade abordá-la, formar palavras para dizer em resposta. Mas tudo o que pensava fazer oudizer estava confuso e incoerente, recusava-se a ser organizado de alguma maneira útil.Tudo se paralisou como se estivesse acorrentado e trancado, deixando-a tão frustradacom sua incapacidade de agir que teve de se esforçar muito para não gritar.

— Não! — ela gritou finalmente. Uma única palavra, dita como uma maldiçãopronunciada contra demônios, escapou de seus lábios quando nada mais se atrevia afazer.

— Grianne — disse ele, agora com mais suavidade.Ela viu os cabelos castanho-escuros desgrenhados e os impressionantes olhos azuis,

tão parecidos com os dela, que lhe eram tão familiares. Ele tinha o mesmo aspecto e amesma constituição física dela. E tinha também alguma coisa a mais, algo que ela aindanão sabia definir, mas que estava ali, inconfundivelmente. Ele poderia mesmo ser Bek.

Mas como? Como poderia ser Bek?— Bek está morto — ela sibilou, enrijecendo o corpo esguio dentro dos mantos

negros.No chão, ao lado, uma pequena trouxa de roupa e de sombras, Ryer Ord Star estava

de joelhos, a cabeça baixa coberta pelos véus de seus longos cabelos prateados, mãosfechadas sobre o colo. Não havia se movido desde que a bruxa Ilse aparecera naquelanoite, não levantara a cabeça um milímetro nem dissera uma palavra sequer. No silêncio

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e na escuridão, parecia uma estátua esculpida em pedra e colocada ali por seu criadorpara avisar aos viajantes que ali era um lugar de descanso.

Os olhos da bruxa Ilse passaram sobre ela por uma fração de segundo e voltaram ase fixar no garoto.

— Diga alguma coisa! — ela sibilou novamente. — Diga-me por que eu deveriaacreditar em você!

— Eu fui salvo por um mutante chamado Truls Rohk — ele respondeu por fim,encarando-a com firmeza. — Fui levado até o druida Walker, que por sua vez me levou àspessoas que me criaram como filho. Mas eu sou Bek.

— Você não tem como saber nada disso! Você tinha apenas dois anos quando eu oescondi naquele porão! — Ela se corrigiu: — Quando escondi meu irmão. Mas meu irmãoestá morto, e você é um mentiroso!

— A maior parte disso me foi contada — ele admitiu. — Não me lembro de como fuisalvo. Mas olhe para mim, Grianne. Olhe para nós! Não há como deixar de reconhecer asemelhança, o quanto somos parecidos. Temos os mesmos olhos e a mesma cor. Somosirmãos! Você não sente isso?

Ela deu um passo adiante.— Por que um mutante salvaria você se foram os mutantes que mataram meus pais

e me levaram prisioneira? Por que o druida salvaria você se ele queria me aprisionar?O rapaz balançava a cabeça devagar, deliberadamente, os olhos azuis intensos, o

rosto jovem determinado.— Não, Grianne, não foram os mutantes nem o druida que mataram nossos pais e

levaram você embora. Eles nunca foram seus inimigos. Você ainda não está vendo averdade? Pense, Grianne.

— Eu vi o rosto dele! — ela gritou furiosa. — Eu o vi por uma janela, de relance,passando na luz da aurora, logo antes do ataque, antes que eu...

Ela parou de falar, imaginando súbita e inesperadamente se poderia ter sidoenganada. Será que ela havia visto o druida, como o Morgawr havia insistido quandopediu que ela pensasse bem, tão certo de que era isso o que ela veria? Como ele poderiasaber o que ela teria visto? Pensar no que significaria caso ela tivesse enganado a simesma era atordoante. Afastou violentamente esse pensamento, mas ele se enroscouem um canto de sua memória como uma serpente, ainda ao alcance de um bote.

— Nós somos Ohmsford, Grianne — o rapaz continuou a falar suavemente. — MasWalker também é. Temos a mesma herança. Ele vem da mesma linhagem que nós. Ele éum de nós. Não tem motivo para nos fazer mal.

— Não um motivo que você conheça, ao que parece! — Ela deu uma gargalhadaatrevida. — O que você sabe de intenções malignas, rapazinho? O que a vida mostrou avocê que lhe dá o direito de supor que sua opinião sobre essas coisas é melhor do que aminha?

— Nada. — Por um momento ele não tinha palavras, mas seu rosto transmitia anecessidade que tinha de encontrá-las. — Eu não vivi sua vida, sei disso. Mas não souingênuo para não imaginar como deve ter sido.

A paciência dela diminuiu mais um pouco.

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— Acho que você acredita no que está me dizendo — disse ela friamente. — Achoque você foi ensinado cuidadosamente a acreditar nisso. Mas você é um tolo e umfantoche de homens inteligentes. Druidas e mutantes abrem seu caminho no mundoenganando os outros. Devem ter procurado muito até encontrar você, um garoto que separece muito a como Bek seria se tivesse a sua idade. Devem ter ficado muito felizescom a boa sorte que tiveram.

— Então como é que eu sei o nome dele? — foi a resposta rápida do garoto. — Se eunão sou seu irmão, como é que eu tenho o nome dele? Foi o nome que recebi, o nomeque eu sempre tive!

— Ou pelo menos é nisso que você acredita. Um druida pode fazer você abraçarmentiras com pouco mais do que um pensamento, até mesmo mentiras sobre vocêmesmo. — Ela balançou a cabeça em reprovação. — Você foi tristemente enganado paraacreditar nisso, para achar que é um menino que, na verdade, está morto. Eu deviadestruí-lo aqui e agora, mas talvez o druida esteja esperando que eu faça exatamenteisso, talvez seja isso o que ele quer que eu faça. Talvez pense que de algum modo irá meprejudicar se eu matar um garoto que parece tanto com meu irmão. Diga-me onde odruida está e eu o pouparei.

O rapaz olhou para ela horrorizado.— É você quem está sendo enganada, Grianne. Tanto que dirá qualquer coisa a si

mesma para ocultar a verdade.— Onde está o druida? — ela rugiu, o rosto se contorcendo de raiva. — Diga-me

agora!Ele respirou fundo, endireitando-se.— Eu vim de muito longe para este encontro. Longe demais para ser intimidado e

desistir do que eu sei que é a verdade. Sou seu irmão. Sou Bek. Grianne...— Não me chame assim! — ela gritou. Seus mantos cinzentos tremularam em seu

corpo e ela levantou os braços em fúria, quase como se quisesse esmagar suas palavras,enterrá-las junto com seu passado. Sentiu sua raiva aumentar, seu controle sobre simesma indo embora, escorregando como peças de metal lubrificadas, e o poder puro desua voz assumiu um tom que poderia facilmente cortar em pedaços qualquer coisa ouqualquer pessoa contra a qual fosse direcionado. — Nunca mais diga meu nome!

Ele permaneceu onde estava.— E que nome devo dizer? Bruxa Ilse? Deveria chamar você como seus inimigos a

chamam? Deveria tratá-la como eles a tratam, como uma criatura de magia negra eintenções malignas, como alguém de quem nunca vou estar perto, cuidar ou ver tornar-seminha irmã novamente?

Ele parecia ganhar forças a cada nova palavra, e subitamente ela o viu como sendomais perigoso do que acreditava.

— Tome cuidado, garoto.— É você quem precisa tomar cuidado! — ele retrucou. — Em quem e no que

acredita! Com tudo o que você abraçou desde o momento em que foi levada de nossacasa. Com as mentiras com as quais você se cobriu!

Apontou para ela subitamente.

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— Somos parecidos em mais aspectos do que você pensa. Nem tudo o que nos liga évisível a olho nu. Grianne Ohmsford tem sua magia, seu direito de nascimento, que agoraé a ferramenta da bruxa Ilse. Mas eu também tenho essa magia! Está ouvindo a magiaem minha voz? Você ouve, não ouve? Não tenho tanta prática quanto você e acabei dedescobri-la, mas é outro elo em nossas vidas, Grianne, outra parte da herança quecompartilhamos...

Ela sentiu a voz dele assumir um tom semelhante ao seu próprio, um toque ácidoque a fez estremecer e levantar suas defesas instantaneamente.

— ...assim como compartilhamos os mesmos pais, o mesmo destino, a mesmaviagem de descoberta, provocada por uma busca pelo tesouro oculto nas ruínas queestão dentro deste continente...

Ela começou a fazer com a voz um zumbido baixo e vibrante, um som suave que semisturava com a noite, fraco e sibilante, folhas farfalhando na brisa, insetos cricrilando ezumbindo, pássaros voejando como sombras rápidas, a respiração das coisas vivas. Suadecisão foi tomada em um instante, rápida e implacável; ele era perigoso demais paraque o deixasse viver, fosse ele quem ou o que fosse. Perigoso demais para que ela oignorasse como pensara em fazer. Afinal, ele tinha algo de mágico, uma magia que nãoera muito diferente da sua. Foi isso o que ela sentira a respeito dele inicialmente, semser capaz de definir, oculta a princípio, mas presente agora no som de sua voz, umsussurro de possibilidades.

Acabe com ele, ela avisou a si mesma.Acabe com ele agora!Então alguma coisa tremeluziu ao seu lado, desviando sua atenção do garoto. Ela

atacou a coisa sem pensar, a magia escapando-lhe em um jato de lascas de ferro epontas afiadas que rasgaram o ar e atingiram seu alvo pretendido sem esforço e semparar. Mas o brilho havia mudado de lugar. A bruxa Ilse tornou a atacá-lo; sua voz umaarma de tamanho poder que estilhaçou o silêncio, fustigou as folhas das árvores ao redorcomo se elas fossem atingidas por um violento vendaval, e deixou sem voz e com olhosarregalados o garoto que estava falando.

No instante seguinte, ele desapareceu. Tudo aconteceu de modo tão rápido einesperado que acabou antes que a bruxa Ilse pudesse agir para detê-lo. Ela ficouolhando para o espaço vazio no qual ele estivera, vendo o brilho assumir uma formanova, tornando-se uma série de movimentos quase irreconhecíveis que atravessaram anoite como sombras de forma vagamente humana caçando uma à outra. Ela os atacou desurpresa, mas estava muito lenta e seu ataque muito mal direcionado para pegar maisdo que o ar.

Ela girou para um lado e para outro, procurando o que conseguira enganá-la tãocompletamente. Fosse o que fosse, já havia ido embora e levara o garoto consigo. Seuprimeiro impulso foi sair em perseguição. Mas os primeiros impulsos raramente sãosábios e ela não cedeu a este. Vasculhou a clareira vazia e em seguida a floresta que acercava, procurando com os seus sentidos algum vestígio daquele que resgatara ogaroto. Só levou um instante para descobrir sua identidade. Um mutante. Percebera quejá havia sentido sua presença antes: na Black Moclips, após a noite da colisão com a

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Jerle Shannara. Era a mesma criatura, sem dúvida. Ele devia ter entrado a bordo durantea confusão para espioná-la e depois permanecido oculta pelo restante da viagem. Issonão teria sido fácil, dada a intensidade de seu controle sobre os aposentos da nave e atripulação. Aquele mutante em particular era habilidoso e experiente, veterano deesforços desse tipo, e não tinha o menor medo dela.

Uma nova raiva cresceu dentro dela. Ele devia tê-la acompanhado da nave até aclareira, revelando-se quando acreditara que o garoto estava em perigo. Será que eleconhecia o garoto? Ou o druida? Será que servia a um dos dois ou a ambos? Elaacreditava que sim. Do contrário, por que se envolveria naquilo tudo? Seria protetor dogaroto? Talvez. Se fosse, confirmaria o que ela acreditara desde o começo, desde omomento em que o garoto tentara enganá-la, fazendo-a pensar que poderia ser Bek. Odruida planejara um esquema elaborado para minar sua confiança na missão e noMorgawr, sabotar o relacionamento entre os dois e deixá-la vulnerável para que pudesseencontrar uma maneira de destruí-la antes que ela o destruísse.

Ela apertou as mãos até os nós dos dedos ficarem brancos. Devia ter matado ogaroto na hora, no momento em que ele dissera seu nome! Devia ter usado a canção dodesejo para queimá-lo vivo, esperando que ele implorasse por socorro, que admitissesuas mentiras! Jamais deveria ter escutado nada do que ele dissera!

Mas agora que havia escutado não conseguia abandonar a sensação de que nãodeveria ignorar tudo aquilo tão depressa.

Remoeu o assunto com cuidado, examinando-o sob uma nova luz. A semelhançaentre os dois poderia ser explicada, claro. Um garoto que se parecesse com ela poderiaser facilmente encontrado. Nem seria assim tão difícil para Walker fazer o garoto acharque era Bek, até mesmo achar que sempre se chamara Bek. Tapeá-lo e fazê-lo acreditarque era seu irmão e que haveria de resgatá-la era algo que estava certamente dentrodas capacidades do druida. Era razoável acreditar que ele fora trazido na viagemunicamente com o propósito de, por algum meio, em algum lugar, encontrá-la edesempenhar seu papel.

Mas...Ergueu o rosto pálido e luminoso e seus olhos azuis encararam a noite. Ali, no fim,

quando ele perdera a paciência com ela, quando a desafiara como ninguém mais teriaousado, nem mesmo o Morgawr, alguma coisa nele a lembrara de si mesma. Umaconvicção, uma certeza registrada em suas palavras e em sua postura, na fixidez e naintensidade de seu olhar. Mas, mais do que isso, ela havia sentido algo de inesperado efamiliar em seu tom de voz, algo que não poderia confundir-se com nada além do querealmente era. Ele lhe dissera, mas no calor do momento ela não acreditara nele,pensando apenas que a estava ameaçando, que poderia lhe provocar danos de formainesperada e que ela deveria proteger-se. Mas estava ali assim mesmo.

Ele tinha a magia da canção do desejo, a sua magia, o seu poder duplicado.Quem, a não ser seu irmão ou outro Ohmsford, possuiria esse poder?A contradição do que parecia ser verdade e do que parecia ser mentira a frustrava e

confundia. Ela queria dispensar o garoto sem mais considerações, mas não conseguira.Havia nele o suficiente de magia real para fazer com que ela se perguntasse quanto a

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sua verdadeira identidade, mesmo que não acreditasse que fosse Bek. O druida podiafazer muitas coisas ao criar uma ferramenta para enganá-la, mas não podia criar magiaem outra pessoa, e particularmente não uma magia daquele tipo.

Então, quem era o garoto e qual era sua verdade?Ela sabia o que deveria fazer, fora para isso que percorrera todo aquele caminho.

Achar o tesouro que se ocultava em Castledown e tomar posse dele. Encontrar o druida edestruí-lo. Voltar à segurança da Black Moclips e navegar de volta para casa o maisrápido possível, livrando-se dessa viagem e seus perigos.

Mas o garoto a intrigava e perturbava, tanto que, sem compreender por quê, elaestava repensando completamente seus planos. Apesar do que sabia a respeito doengano dele, intencional ou não, não queria abrir mão de resolver aquele mistério, aindaque o tanto que já descobrira pudesse provocar um grande impacto sobre si mesma. Nãode maneira a alterar sua vida, claro, quanto a isso ela já havia se decidido, mas de modomais sutil, e ainda assim importante.

Seria muito difícil descobrir a verdade a seu respeito, assim que ela se dispusesse aisso? Quanto tempo isso levaria?

O Morgawr não aprovaria, mas ele aprovava poucas coisas que ela fazia naquelesdias. O relacionamento que tinha com seu mentor já se estava deteriorando havia algumtempo. Não mais compartilhavam o vínculo mestre/aluna que um dia tiveram. Ela era tãomestra agora quanto ele e desdenhava das restrições que ele constantemente procuravalhe impor. Ela não se esquecera de que era sua devedora, não era ingrata por tudo o queele ensinara ao longo dos anos. Mas não gostava de sua insistência em colocá-la em seulugar, sempre como sua subordinada, sua súdita, uma encarregada que deveria agirconforme ele ditasse. Ele era velho, e talvez por ser velho não podia mais mudar tãofacilmente quanto os jovens. A autopreservação era o que importava para ele. Mas elanão aspirava a viver mil anos. Não considerava a quase imortalidade um benefício a serprocurado. Daí a necessidade de levar as coisas a cabo, em vez de ficar sentadaplanejando, aguardando e bolando esquemas, como ele estava tão acostumado a fazer.

Não, ele não aprovaria, e nesse caso ela estaria errada se não levasse isso emconta. Procurar o rapaz para solucionar o mistério dele e satisfazer a própria curiosidadeera mera auto-indulgência. Hesitou por um momento, depois deixou a hesitação de lado.A decisão era sua, era sua escolha se ela perdesse um tempo que a ela pertencia. Ogaroto tinha algo de que ela precisava, concordasse o Morgawr ou não. De qualquermaneira, ele não estava ali para aconselhá-la. Cree Bega supostamente falaria por ele,mas a opinião do mwellret significava praticamente nada para ela.

Mas ela teria de agir rápido. O ret não estava muito atrás dela, aproximando-se commais outros vinte. Sua aproximação só fora retardada porque, desejando ir adiante por simesma para dar a primeira olhada no que os aguardava, ela lhe ordenara que esperasse.Talvez, acrescentou, para se certificar de que ele não interferiria em nada que eladecidisse fazer com o que encontrasse. Talvez só para mantê-lo na linha, onde era o seulugar.

Ela se encaminhou até Ryer Ord Star e curvou-se, tentando determinar se a videnteestava saindo do transe. Mas a garota não se mexia, sentada em silêncio, imóvel na

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noite, cabeça baixa na sombra, olhos fechados. Sua respiração era constante e tranqüila:parecia que sua saúde não estava em perigo. Mas o que estaria fazendo? Para ondedentro de si mesma ela havia ido?

A bruxa Ilse ajoelhou-se na frente da garota. Não tinha tempo para esperar que avidente concluísse suas meditações. Precisava das respostas dela. Colocou os dedos nastêmporas da outra, assim como fizera com o náufrago cujas revelações haviam iniciadotoda aquela coisa, e começou a sondar. O esforço requerido era pequeno. A mente deRyer Ord Star abriu-se para ela como uma flor perante o sol nascente, suas memóriascaindo em cascata, como pétalas. Sem olhar para a maioria delas sequer de relance, abruxa Ilse foi direto para as mais recentes, as que revelariam o destino do druida.

Revelações vinham à tona como os mortos do oceano, nuas e cruas. Ela viu umabatalha dentro de ruínas que pertenciam ao Antigo Mundo, uma batalha na qual o druidae sua companhia eram atacados por todos os lados por linhas de fogo vermelho quequeimavam e cauterizavam. Paredes se moviam, levantando-se e abaixando-se sobrepisos de metal liso. Rastejadores apareciam do nada, monstros de metal com pernasarticuladas e garras que cortavam e rasgavam. Homens lutavam e morriam em umturbilhão de fumaça grossa e labaredas de fogo. Visto pelos olhos de Ryer Ord Star,filtrado por suas emoções, tudo era caótico e mergulhado em medo e desespero.

No meio da loucura, o druida avançou por linhas de ataque e mudanças de terreno,seu progresso firme e deliberado auxiliado por sua magia e reforçado por sua coragem edeterminação. Podiam dizer o que quisessem, mas o druida nunca fora um covarde.Avançara lutando até o coração das ruínas, gritando em vão para que os outros de suacompanhia recuassem, fugissem, tentando mantê-los vivos. Por fim, chegou à porta deuma torre negra, forçou a entrada e desapareceu em seu interior.

Ryer Ord Star gritou e começou a ir atrás dele, mas o fogo a atingiu, jogando-a deencontro a uma parede. Seus pensamentos sobre o druida se desvaneceram e então tudoficou escuro.

A bruxa Ilse retirou os dedos das têmporas da vidente e sentou-se sobre oscalcanhares, perplexa. Interessante. A comunicação viera sem palavras de qualquerespécie e sem resistência. Seria esta a natureza dos empatas, que eles não conseguiamdestruir nem esconder? Descobriu-se imaginando a perseguição do druida pela garota,galvanizada pelo desaparecimento deste último dentro da torre. Por que ela se arriscariatanto? A garota fora instruída a ficar perto do druida em todos os momentos, a se tornarindispensável para ele, a ganhar sua confiança e sua atenção. Obviamente era o que elahavia feito. Mas havia algo mais entre eles, algo que ia além da tarefa que ela receberacomo espiã da bruxa Ilse?

Não havia como saber. Não sem prejudicar a garota, e a bruxa Ilse ainda não estavapreparada para chegar a esse ponto. Tinha o que desejava por ora: um quadro claro doque acontecera àqueles da companhia da Jerle Shannara que seguiram para o interior dailha com o druida. Mas ela não sabia ao certo o destino do druida. Talvez ele estivessemorto. Talvez estivesse preso debaixo das ruínas. De qualquer modo, ele nãorepresentava nenhum perigo para ela. Sem uma aeronave para transportá-lo e com amaior parte de sua companhia, morta ou aprisionada, pouco mal ele poderia fazer.

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Então ela tinha tempo para o garoto. Tempo suficiente para não precisar maispensar no outro assunto.

Não mais do que alguns minutos haviam se passado até que Cree Bega e suacompanhia de mwellrets apareceram por entre a penumbra, corpos pesados andandodesconfiados pela floresta escura, olhos verticais brilhando quando a avistaram. Criaturasrepulsivas!, pensou ela, mas manteve o rosto sem expressão. Levantou-se para recebê-los e esperou em pé até que eles se aproximassem.

— Messtra — sibilou o líder deles, designado como seu protetor, curvando-seobsequioso. — Achou os pequeninoss?

— Decidi deixar isso para você, Cree Bega. Para você e seus companheiros.Aconteceu uma batalha nas ruínas adiante, e aqueles da companhia do druida que nãoestiverem mortos estão dispersos. Encontre-os e faça deles prisioneiros. Isto inclui odruida, caso você o encontre e descubra que ele está indefeso o suficiente para serender.

— Messtra, eu acho que...— Mas tome cuidado, pois ele é mais do que páreo para todos vocês juntos. — Ela

ignorou sua tentativa de falar. — Deixe-o comigo se descobrir que ele é capaz de sedefender. Não entre nas ruínas; elas estão bem protegidas. Não se exponha nem a seushomens ao perigo que elas oferecem. Mantenha vigilância cerrada sobre ambas asaeronaves e não as pousem sob nenhuma circunstância.

Agora ele a observava atentamente, percebendo que ela já afastara do pensamentotudo o que o instruía a fazer.

— Surgiu uma coisa que preciso investigar. — Ela sustentou o olhar reptiliano delecom um olhar firme e calmo. — Estarei fora por algum tempo, e enquanto estiver foravocê se encarregará. Não me decepcione!

Por um momento não houve resposta e ela pensou que ele não havia entendido.— Fui clara?— Para onde minha messtra vai? — ele perguntou suavemente. — Nosssa misssão é

aqui...— Nossa missão é onde eu disser que é, Cree Bega.Algo no olhar frio do mwellret tornou-se subitamente perigoso.— Sseu messtre não aprovaria esste dessvio...Dois passos rápidos colocaram-na bem na frente dele.— Meu mestre? — Houve um silêncio desconfortável enquanto ela esperava a

resposta. Ele ficou olhando para ela em silêncio. — Não tenho mestre, ret — murmurouela. — Você tem um mestre, não eu, e de qualquer maneira ele não está aqui. Eu souaquela a quem você deve obedecer. Eu sou sua mestra. Algo mais que eu deva explicar?

O mwellret não disse nada, mas ela não se importava com o que via em seus olhos.Deu-lhe um momento a mais, então repetiu em voz baixa:

— Algo mais?Ele balançou a cabeça.— Como dessejar, messtra. Os pequeninoss sserão nosssoss prissioneiross quando

retornar, prometo. Mass e o tessouro?

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— Nós o teremos muito em breve. — Olhou para longe, na direção de Castledown.Seria mesmo? Seria assim tão fácil? Ela achou que seu conhecimento da situação lhedava uma vantagem sobre o druida, mas não podia se dar ao luxo de subestimar oinimigo que protegia Castledown. Se ele podia derrotar o druida tão facilmente, eramuito mais forte do que ela esperava. — Deixe a questão de recuperar o tesouro comigo.

Dispensou-o praticamente sem olhar para ele, e então se lembrou de Ryer Ord Star,ainda ajoelhada e encolhida num canto, ainda perdida em algum outro lugar e tempo.

— Não machuque a garota — disse a Cree Bega, dando-lhe um olhar rápido e durode advertência. — Ela tem sido meus olhos e ouvidos a bordo da aeronave do druidanesta viagem. Ela sabe muita coisa que ainda não me contou. Quero que fique segurapara meu retorno, para que eu descubra o que ela oculta.

O mwellret fez que sim, lançando um olhar de dúvida para a vidente.— Esssa aí já parece morta.— Ela dorme. Está em alguma espécie de transe. Ainda não tive tempo de descobrir

o que há de errado com ela. — Dispensou o ret. — Faça o que estou mandando. Nãodemorarei.

Deixou a clareira sem olhar para trás. Cree Bega e os outros fariam o que elaordenara. Teriam medo de fazer qualquer outra coisa. Mas ela foi lembrada novamentede que estava cada vez mais difícil controlá-los. Estaria melhor sem eles assim quetivesse o tesouro nas mãos. Dali a mais algum tempo, ela se livraria deles de uma vezpor todas.

A leste, o céu começava a clarear levemente com a chegada da aurora. A noite jádescia a oeste, tinta preta escorrendo silenciosamente por entre as árvores. Um novo diatraria novas revelações. Sobre o rapaz, talvez. Sobre por que ele pensava o que pensava.Sobre como sua magia encontrara seu caminho até ele, e por que essa magia era tãoparecida com a dela. Um sorriso de expectativa iluminou seu rosto pálido. Ela teria dedescobrir as respostas. Sentiu um êxtase de expectativa.

Hesitação e dúvidas eram para os outros, ela pensou, para aqueles que jamaisencontrariam seu próprio caminho no mundo e jamais fariam algo que importasse desuas vidas.

Captando traços leves do mutante que ainda estavam no ar noturno que sumia, elacomeçou a caçada.

Os olhos brilhantes cheios de malícia, Cree Bega observou-a sem dizer palavra até elasumir de sua vista. Agachado dentro de seu manto e cercado por aqueles quecomandava, imaginou como seria doce quando lhe fosse permitido finalmente pôr fimàquela garotinha insuportável. Que ele a odiava mais do que ninguém era óbvio; jamaissentira nada por ela a não ser ódio. Desprezava-a tanto quanto ela o desprezava, e nadaque precisassem fazer juntos em serviço para o Morgawr jamais mudaria isso.

Mas o Morgawr, embora afirmasse ser o mentor e amigo da garota, era maismwellret do que humano. Sua ligação para com o povo de Cree Bega era antiga e tinhalaços de sangue. Unira-se à garota porque ela era uma novidade e porque vira nela uma

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utilidade no esquema geral das coisas. Mas seu coração e alma eram de mwellret.A garota, claro, acreditava que eram iguais, párias que se uniram em sua luta por

reconhecimento e poder sobre seus opressores. O Morgawr deixava que ela acreditassenisso porque isso se adequava a seus propósitos. Mas não eram iguais de nenhumamaneira que importasse e a pequena bruxa Ilse era muito menos habilidosa em seu usoda magia do que acreditava. Era um aborrecimento desajeitado e posudo, uma praticanteinepta, tola e ridícula de uma arte que fora dominada pelos mwellrets e sua espécie háséculos, antes que os druidas sequer pensassem em assumir a magia élfica como suaespada e escudo. Os mwellrets jamais seriam subjugados pelos humanos, jamais setornariam seus inferiores, e aquela garota era apenas outro bocado iludido, esperandopara ser arrancado da cadeia alimentar deles.

Sentiu os olhos de seus companheiros sobre ele, esperando suas ordens, seuspróprios pensamentos tão escuros e vingativos quanto os dele. Eles também esperavampor uma chance com a bruxa Ilse. Cree Bega daria a ela a satisfação de achar que eleestava subjugado e obediente por ora. Isso ele prometera ao Morgawr. Obedeceria àsordens dela e aceitaria seus desejos porque não havia motivo para fazer diferente.

Mas estava vindo uma mudança nos ventos, e quando chegasse marcaria o fim dabruxa Ilse.

Virou-se para os outros, vendo-os agrupados bem perto dele, visões sombriasansiosas dentro de mantos de sombra. Aguardavam suas ordens, ansiosos para fazeralguma coisa. Ele os comandaria. Os membros da companhia da Jerle Shannara estavamsoltos em algum lugar mais adiante, entre as árvores, esperando para serem recolhidos,mortos ou aprisionados. Era hora de satisfazê-los.

Grunhindo suavemente, disse a seus homens que começassem com Ryer Ord Star edepois prosseguissem.

Mas, quando se voltaram para cuidar da vidente, ela havia desaparecido.

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3

Braços de ferro apertaram Bek Ohmsford de encontro a um corpo cujo cheiro era

ligeiramente fétido e viscoso, uma mistura de terra e produtos químicos. O corpo semovia com a velocidade do pensamento, deslizando por entre árvores e arbustos,arrancando camadas de si mesmo como se fossem peles, sombras que pendiam escurase vazias no ar e em seguida se desvaneciam completamente. Algumas explodiram emfragmentos de noite quando a magia da bruxa Ilse os atingiu, mas Bek e seu salvadorsempre estavam a uma pele de distância.

Então ultrapassaram a clareira e adentraram a proteção das árvores, ainda correndomuito, mas agora envoltos em sombras e telas feitas de arbustos e galhos. Foi nessemomento que, subitamente apavorado pelo desconhecido, por algo poderoso emisterioso o bastante para desafiar a magia da bruxa Ilse, Bek começou a lutar.

— Fique quieto, garoto! — sibilou Truls Rohk, apertando-o com força com os braçospoderosos como que para avisá-lo, sem reduzir o passo.

Correram por muito tempo, Bek encolhido nos braços do outro, até que a clareira e abruxa ficaram bem para trás. Então pararam e o mutante se ajoelhou e soltou o garoto,deixando-o rolar para a terra todo embolado, para ali se desenrolar e se endireitarnovamente. Bek ouvia Truls Rohk respirando com dificuldade, exausto, curvado dentro domanto que o ocultava enquanto esperava recobrar sua força. Bek ficou de quatro, asterminações nervosas formigando com vida nova à medida que o sangue voltava acircular por seus membros cheios de cãibras. Estavam em um lugar onde as árvores e avegetação eram tão densas que a luz da lua e das estrelas não penetrava, onde tudoestava envolto no mais profundo silêncio.

— Manter você vivo está se tornando um trabalho de tempo integral — o mutanteresmungou irritado.

Bek pensou em sua oportunidade perdida de convencer a bruxa Ilse de quem eleera.

— Ninguém pediu que você interferisse! Eu estava muito perto de convencê-la! Euestava quase...

— Você estava quase sendo morto — disse o outro com uma gargalhada breve eseca. — Não estava sequer prestando atenção suficiente no efeito que provocava sobreela, tão envolvido que estava na certeza e na justiça de seu argumento. Ah! Convencê-la? Será que você não sentiu o que estava acontecendo? Ela estava pronta para usar suamagia em você!

— Não é verdade! — Bek ficou furioso de repente. Levantou-se desafiador. — Vocênão tem como saber!

Agora o mutante gargalhava de verdade, soltando um uivo baixo e firme que lutava

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muito para reprimir.— Não posso rir tão alto quanto eu gostaria, garoto. Aqui não. Não ainda tão perto.

— Levantou-se, confrontando o garoto. — Me escute. Seus argumentos eram bons. Eramjustos e verdadeiros. Mas ela não estava pronta para eles. Acho até que ela queriaacreditar em parte. Poderia até ter acreditado em tudo isso em outras circunstâncias, etalvez venha a acreditar depois de pensar nisso algum tempo. Mas ainda não estavapronta para isso ali e àquela hora. Especialmente não no fim, quando você deixou suaprópria magia escapar de você de novo. Não foi sua culpa, eu sei, ainda estáaprendendo. Mas precisa ter consciência de suas limitações.

Bek arregalou os olhos.— Eu estava usando a canção do desejo?— Não de forma consciente, mas escapava de você enquanto tentava falar com ela a

respeito. — Truls Rohk fez uma pausa. — Quando ela percebeu essa presença, sentiu-seameaçada. Achou que você a atacaria. Ou apenas decidiu que era muita coisa para lidare que deveria acabar com você.

Truls Rohk virou-se e andou alguns passos, olhando para o caminho por ondevieram.

— Por enquanto tudo quieto. Mas acho que ainda não acabou. — Voltou-se para ele.— Você a surpreendeu, garoto, e isso é perigoso com alguém tão poderoso. Você deu aela muita coisa de uma vez, muita coisa que não queria ouvir, que provocaria um impactosobre ela de um jeito que não poderia digerir tão rápido. — Ele grunhiu. — Imagino quenão pudesse evitar isso. Ela apareceu e o encontrou. O que é que você poderia fazer?

Bek ficou em silêncio diante dele, meditando. Truls Rohk tinha razão. Ele ficara tãoenvolvido em convencer Grianne de que era seu irmão que quase não prestara atençãoao que ela fazia. Era possível que ela não tivesse acreditado nele, talvez nem mesmopudesse acreditar: a revelação fora brusca e surpreendente demais. Só porque eleacreditava não significava que ela fosse acreditar. Ela vivera muito mais tempo com amentira do que ele com a verdade. Tinha menos chances de ser convencida tãofacilmente.

— Sente-se, garoto — disse Truls Rohk, chegando mais perto dele. — É hora de maisalgumas revelações. Você estava errado ao achar que ia bem ao convencer sua irmã. Etambém está errado sobre ninguém ter me pedido para interferir em sua vida.

Bek olhou para ele.— Walker?— O que eu lhe disse antes, em Mephitic, era verdade. Fui eu quem o tirou das

cinzas da casa de seus pais. Ciente de que sua família estava em perigo, eu estavamontando guarda a pedido do druida. Os mwellrets do Morgawr, um tipo de mutantes,rondavam sua casa em Jentsen Close. Você vivia não muito longe das Wolfsktaag, alinum canto do lago do Arco-Íris, no meio de uma comunidade de casas isoladas ocupadasem grande parte por fazendeiros. Vocês eram vulneráveis e Walker buscava uma maneirade mantê-los seguros.

Ele balançou a cabeça dentro de seu capuz, o rosto coberto por camadas desombras.

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— Eu o alertei para que agisse rápido, mas ele foi lento demais. Ou talvez tivessetentado e seu pai não o escutou. Não conversavam muito e não eram amigos íntimos.Seu pai era um estudioso e não acreditava em violência. Em sua cabeça, os druidasrepresentavam a violência. Mas a violência não quer saber se você acredita nela ou não.Ela procura por você independentemente disso. Procurou por sua família logo antes doamanhecer em um dia em que eu estava ausente. Mwellrets, ali sob ordens do Morgawr,mataram seus pais e queimaram a casa até o chão, fazendo parecer que era obra degnomos salteadores. Eles pensaram que você havia morrido no incêndio, sem perceberque Grianne o escondera na adega fria. Estavam com pressa, já a haviam apanhado, poisera ela que o Morgawr mais queria, e não procuraram com tanto cuidado quanto euquando cheguei mais tarde. Achei você no porão, escondido cuidadosamente, chorando,faminto, com frio, e apavorado. Tirei você das cinzas e entreguei-o a Walker.

Bek desviou o olhar dele, pensando a respeito.— Por que ele não me contou nada disso antes de me enviar para você com

Quentin?O outro deu uma gargalhada.— Por que é que ele nunca conta nada para nenhum de nós? Ele me contou que um

garoto e seu primo estavam vindo, que eu deveria procurar por eles e testá-los para verse tinham mérito e coração. — Truls Rohk balançou a cabeça. — Ele deixou que eupercebesse sozinho que era você o garoto que eu havia salvo há tantos anos. Deixou queeu sozinho determinasse o que fazer. Está entendendo?

Bek balançou a cabeça, sem estar totalmente certo de que entendia.— Ele lhe falou que me pedisse para vir com você nessa viagem. Deu-lhe uma

mensagem para entregar, que eu poderia interpretar de qualquer maneira que quisesse.Percebi que ele não havia contado a você o que pedia para mim. Isso ficou muito claro.Ele queria que eu fosse seu protetor, que o defendesse quando houvesse ameaça deperigo. Mas eu também deveria monitorar o progresso do desenvolvimento de sua magia.Ele sabia que ela começaria a emergir, e quando isso acontecesse você teria de saber averdade sobre quem realmente era. Mas ele não queria apressar as coisas; queria mantê-lo no escuro o máximo de tempo possível, para que você não se confundisse com aenormidade disso tudo. Mas eu sabia que quanto mais rápido você descobrisse que tinhao uso da magia, mais rápido encontraria um jeito de aprender. Eu e o druida temosabordagens diferentes e imagino que ele não tenha ficado nem um pouco contente com oque fiz para você em Mephitic.

— Ele ficou furioso — Bek hesitou. — Mas fico feliz por você ter se arriscado comigo.Por ter mostrado o que eu podia fazer. Por ter me dado uma chance de provar meu valor.

O mutante assentiu, os olhos brilhando de leve nas sombras.— Você nos salvou naquelas ruínas. Tem coração e força de corpo e mente, garoto:

ferramentas de que você precisa para lidar com o poder da canção do desejo. Mas suashabilidades ainda são imaturas e inexperientes. Você precisa de tempo e experiênciaantes de ser páreo para sua irmã.

Bek estudou-o por um momento no silêncio que se seguiu.— Diga-me a verdade. Você não está me enganando sobre nada disso, está? Porque

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já fui enganado mais de uma vez nesta jornada.O outro grunhiu.— Pelo druida. Por mim, não.— Grianne é realmente minha irmã, não é? A bruxa Ilse é minha irmã? Preciso ouvir

você dizer isso.Os olhos brilhantes tremeluziram intensos e aguçados dentro do capuz, tudo o que

era visível do rosto do outro.— Ela é sua irmã. Por que eu lhe contaria alguma mentira? Pensa que sou uma

ferramenta do druida, como a bruxa acha que você é?Bek balançou a cabeça.— Eu tinha de perguntar.O mutante grunhiu, não inteiramente satisfeito.— Não faça essas perguntas novamente. Não para mim. — Cruzou os braços dentro

do manto. — Agora chega. O que aconteceu com os outros que desembarcaram comvocê? Não tive chance de procurar por eles. Entrei na aeronave da bruxa durante acolisão em Mephitic achando que seria mais útil lá e aprenderia algo que nos ajudasse aobter alguma vantagem. Mas ela quase me encontrou, e fui forçado a me ocultar comcuidado, esperando uma chance de escapar. Ela saiu sozinha em busca de Walker e, porisso, a segui. Ela me levou até aquela clareira e até você. Mas não até Walker. O queaconteceu com ele?

Rapidamente, Bek contou sobre os eventos desastrosos do último dia, a tentativa depenetrar nas ruínas, as armadilhas encontradas à espera deles, o extermínio dacompanhia e a dispersão de seus membros com Ryer Ord Star e a elfa rastreadora Tamis.Ele havia fugido para a clareira onde a bruxa Ilse o encontrara. Dos destinos de Quentin,Panax, Ahren Elessedil e Ard Patrinell ele não tinha certeza. Tamis partira em buscadeles, mas não retornara. Walker desaparecera dentro da torre negra que dominava ocentro das ruínas e dela não saíra.

— Vamos precisar de ajuda para procurá-los — disse Bek. — Especialmente se abruxa Ilse e os mwellrets também estiverem à procura.

Truls Rohk balançou o corpo levemente e deu um ruidoso suspiro.— Vamos ter dificuldades para achar qualquer um deles. Esta história está cheia de

más notícias. Sua irmã usou a magia para imobilizar a tripulação da Jerle Shannara. Elaabordou a nave e fez a todos prisioneiros. Trancou-os no porão da nave e controla ambasas embarcações. A Black Moclips está ancorada na baía, onde você desembarcou. A JerleShannara está rio abaixo, mais perto dos portões de gelo. Nenhuma das duas pode nosajudar.

Bek sentiu como se o chão tivesse fugido sob seus pés. Apesar de tudo o que lhesfora tomado, pelo menos eles tinham a Jerle Shannara para fugir. Agora até mesmoaquele refúgio estava perdido. Estavam presos em Ice Henge. Não poderiam sequer dizeraos cavaleiros alados onde estavam.

Pensou subitamente em Rue Meridian e sentiu uma pontada súbita de terror, muitomais aguda do que ele teria esperado. Respirou fundo para se acalmar.

— Os rovers estão bem? — perguntou, tentando parecer tranqüilo.

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O mutante deu de ombros.— Ninguém foi ferido na abordagem. Não sei o que aconteceu desde então, mas

provavelmente nada.— Sombras! Nós perdemos tudo, Truls. Você, eu e talvez mais um ou dois somos

tudo o que restou, vivos e livres. — Ouviu um quê de desespero se infiltrar em sua voz etentou bloqueá-lo. — Precisamos fazer alguma coisa. Pelo menos voltar e enfrentarGrianne, achar um modo de convencê-la de que ela é uma Ohmsford, fazer com que elaveja que foi...

— Devagar, garoto — disse Truls Rohk. — Vamos respirar fundo e pensar direito. Nãohá como voltar para enfrentar a bruxa Ilse agora, ainda não. O que já aconteceu aindaestá muito vivo na mente dela. Precisamos de um jeito de atingi-la além do que você játentou. Algo que ela não possa dispensar tão facilmente quanto suas palavras.

Olhou pensativo por sobre o ombro de Bek. O rapaz acompanhou o olhar dele e viu ocabo da espada de Shannara, que ainda estava amarrada às suas costas. Na empolgaçãodo encontro com sua irmã, esquecera que a carregava.

Tornou a olhar para o mutante.— Quer dizer que eu deveria usá-la?— Quero dizer que deveria achar um modo de usá-la. — A voz do outro era irônica.

— Não é tão fácil assim, acho. Sua irmã não vai simplesmente ficar ali parada e deixarque você use a magia nela. Mas, se puder encontrar um jeito de pegá-la desprevenida,talvez surpreendê-la, ela poderá não ter escolha. Goste ou não, talvez tenha de encarar averdade das coisas. É a melhor chance que temos de convencê-la.

Bek balançou a cabeça em dúvida.— Ela jamais nos dará a chance. Jamais.Truls Rohk não disse nada, esperando.— Ela lutará conosco! — Bek esticou a mão para tocar o cabo da espada de

Shannara, e então deixou a mão cair indefesa. — Além disso, não sei se vou conseguirfazer a espada funcionar contra ela.

— Contra ela, não — o mutante alertou baixinho. — Para ela.Bek assentiu devagar.— Para ela. Para nós dois.— Eu não descartaria nossas chances assim tão rápido — continuou Truls Rohk. —

Perdemos a nave e a tripulação, mas não sabemos quanto a Panax, aquele montanhês eos outros. E eu não consideraria o druida acabado mesmo que o visse sob sete palmos deterra; ele tem mais vidas do que um gato. Não entraria na torre sem um plano para sairdela. Eu o conheço, garoto. Eu o conheço há muito tempo. Ele pensa em tudo. Não mesurpreenderia caso já esteja livre e procurando por nós.

Bek pareceu duvidar, mas assentiu mesmo assim.— E o que faremos agora? Para onde iremos?Truls Rohk levantou-se, o manto caindo sobre seus ombros largos, cobrindo-o do

chão até o alto, fazendo-o parecer um espectro, mesmo na luz cada vez mais clara doamanhecer.

— Preciso voltar atrás o bastante para garantir que a bruxa ou seus rets não nos

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estão seguindo. Espere aqui o meu retorno. Não saia deste ponto. — Fez uma pausa. — Amenos que esteja em perigo. Nesse caso, esconda-se da melhor forma que puder. Amenos que seja necessário, não use sua magia. Você ainda não está pronto, não semmim.

Lançou um olhar impiedoso de alerta para o garoto, e então virou-se e desapareceuno meio das árvores.

Bek recostou-se em um velho castanheiro e ficou observando o céu a leste clarear com achegada da aurora. As trevas davam passagem à luz do amanhecer, e, por sua vez, a luzdo amanhecer para a manhã, o céu mudando de cor em intervalos por entre as árvores.Estas eram invisíveis na escuridão e só agora podiam ser vistas com clareza. Bek ficousentado ali, pensando em onde estava, na jornada que o levara até ali e naquelemomento, as mudanças pelas quais passara. Lembrou-se de ter pensado, na noite emque Walker aparecera pela primeira vez nas Highlands meses antes e pedira que viessenaquela viagem, que, se ele fosse com o druida, nada em sua vida jamais seria omesmo. Ele não havia imaginado como aquelas palavras estavam certas.

Fechou os olhos por um instante e tentou imaginar como as coisas estariam lá emLeah, nas Highlands, em sua casa. Não conseguiu. Estava tudo tão longe e tãodistanciado do presente, que era pouco mais do que uma lembrança que se desvaneciacom um passado que parecia perdido em outra vida.

Desistiu das Highlands e tentou, em vez disso, imaginar como seria ter Grianne comoirmã. Não só de nome, mas de verdade. Fazê-la aceitar que isso era verdade. Fazer comque ela o chamasse de Bek. Ele também fracassara nesse esforço. Como a bruxa Ilse,Grianne tirara vidas e destruíra sonhos. Fizera coisas que ele nunca seria capaz deaceitar, não importa o quanto ela fora enganada ou o quanto estivesse arrependida. Avida dela estava envolvida em enganos e truques, em uma busca mal direcionada porvingança, em isolamento e amargura. Ela não poderia simplesmente apagar o passado ecomeçar tudo de novo. Não poderia se tornar alguém diferente na mesma hora só porqueele queria que isso acontecesse. Era pedir uma espécie de final de conto de fadas que hámuito deixara de ser possível. O que quer que ele esperasse dela, provavelmente erademais. O melhor a esperar seria que ela percebesse logo a verdade.

Compôs o retrato dela em sua mente, em pé diante dele envolta em seus mantoscinzentos, austera e imperiosa. Não poderia imaginá-la feliz. Será que algum dia, desdeque fora raptada, ela dera uma risada? Será que algum dia ela havia sorrido?

Mas ele ainda precisava encontrar um jeito de trazê-la de volta a si mesma, a umaparte da garota que ela fora quinze anos antes, a uma pequena parte do mundo que elahavia abandonado e desdenhado como se fora para criaturas menores. Ele tinha deajudá-la, mesmo que ajudando ele causasse mais dor a ela.

Como ele conseguiria lidar com isso, quando o próximo encontro dos doisprovavelmente resultaria nos melhores esforços dela para matá-lo?

Queria que Quentin estivesse com ele — Quentin, com sua abordagem sensata edireta, sempre capaz de ver com clareza o caminho certo a seguir, a melhor coisa a fazer.

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Será que Quentin havia sobrevivido à batalha nas ruínas de Castledown? Seus olhos seencheram de lágrimas ao pensar na possibilidade de seu primo estar morto. Até mesmopensar numa coisa dessas parecia uma traição. Não conseguia imaginar a vida sem seuprimo — seu confidente, seu melhor amigo. Quentin havia ficado tão ansioso para seguirnaquela viagem, tão ansioso para ver outra parte do mundo e aprender algo de novo navida. E se isso lhe tivesse custado a própria vida?

Frustrado, Bek cruzou as mãos e ficou olhando para as árvores, para a luz do sol quese acentuava, o novo dia, e sua determinação transformou-se em certeza. Deviaencontrar Quentin. Talvez antes de encontrar Walker, porque a verdade era que Quentinera o mais importante dos dois. Se ficassem perdidos naquela terra estranha, se suasaeronaves estivessem perdidas e seus companheiros mortos, pelo menos teriam um aooutro para enfrentar o pior. Encarar o que havia adiante, por pior que fosse, qualqueroutra maneira era inconcebível para ele.

Cuidem um do outro, Coran Leah lhes havia pedido. Eles se haviam prometido hámuito tempo, em Arborlon, quando ainda havia uma chance de recuar.

Bek suspirou cansado. Pelo menos tinha Truls Rohk para ajudá-lo. Por mais estranhoe assustador que fosse o mutante, ele demonstrara ser um amigo. Por mais conflituosaque sua vida tivesse sido, ele era talvez o mais capaz e indispensável da equipe do navio.Havia algo de reconfortante nisso e Bek, ansioso, abraçou esse pensamento.

Porque não tinha mais nada para abraçar, admitiu. Porque às vezes você aceitaconforto onde o encontra.

Truls Rohk não demorou muito. A luz ainda não havia eliminado os vestígios da noitequando ele apareceu por entre as árvores, sua forma coberta agachada, seusmovimentos rápidos e furtivos.

— Levante-se — sibilou com dureza, puxando o garoto para cima. — Sua irmã estáem nosso rastro e se aproximando depressa.

Bek tentou esconder o medo dos olhos e da garganta, tentou respirar novamente aoolhar na direção da qual viera o mutante. Então começaram a correr por entre as árvorese desapareceram.

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4

A bruxa Ilse estava talvez a uns cem metros dentro da floresta e bem distante de

Cree Bega e dos outros mwellrets quando parou para ajustar suas roupas. Pegou umpedaço de corda trançada, jogou-o sobre os ombros, cruzando-o pelo corpo e passandopelas pernas. Prendeu os mantos onde estavam frouxos para poder se movimentar maisfacilmente pela vegetação densa adiante. Os mantos que havia escolhido eram leves,porém fortes, e não rasgariam com facilidade. Antecipando uma subida árdua até asruínas de Castledown, ela trocara as sandálias que normalmente usava por botas até otornozelo, com solas resistentes e flexíveis. Pensara nas roupas e nos calçados para umacoisa inteiramente diferente, mas sua capacidade de previsão estava compensando. Elajá havia caçado antes, embora uma caça diferente, e compreendia a importância de estarpreparada.

Sua mente se desviou por um momento para aqueles dias que ela havia enterradotão completamente até que o garoto a confrontara. Como Grianne Ohmsford, ela haviapassado um tempo nas florestas e colinas perto de sua casa, aprendendo a usar a magiada canção do desejo. Um dos exercícios que fazia regularmente era uma espécie derastreamento. Usando a magia, ela detectava a passagem de um animal e em seguida oseguia até seu esconderijo. Descobrira que sua canção podia colorir o calor do corpo e osmovimentos o suficiente para mostrar-lhe o progresso do animal se a trilha não fossemuito antiga. Não conseguia ler impressões ou sinais à maneira dos rastreadores, mas acapacidade de traçar o calor e o movimento funcionava muito bem. Ela ficou muito boanisso mesmo antes de ser raptada.

Pensou mais uma vez no garoto. Ele a perturbara mais do que ela queria admitir. Oscabelos e os olhos combinavam com os de Bek. Até mesmo algo em seus movimentos eexpressões faciais era familiar. E aquele vestígio de magia que surgira bem no fim dascoisas — aquilo era a canção do desejo. Ninguém deveria ter todas essas três coisas, anão ser Bek. Quais eram as chances? Quanto tempo o druida teve de procurar atéencontrar uma combinação dessas? Mas ela estava se esquecendo de que ele podia criartudo, menos a magia, colocando-a como se tivesse sempre estado lá, criando aquele queescolhera para tapeá-la.

Bek jamais havia demonstrado o uso da canção do desejo antes que ela oescondesse naquela manhã do passado. Ele sempre fora um bebê normal. Ela não tinhacomo saber se algum dia ele faria uso da magia. Ou se o fazia agora.

Balançou a cabeça para afastar seu desconforto e seus pensamentos e parou paraajustar os mantos uma última vez. Olhou a pele pálida de seus pulsos e tornozelos ondeestava exposta à luz, praticamente intocada pelo sol, tão branca que parecia iridescentena mistura de sombras da floresta e da aurora dourada. Tocou a si mesma como se

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quisesse ter certeza de que era real, porque às vezes não se sentia desse modo e, sim,como se tivesse sido criada a partir de sonhos e desejos e nada a seu respeito fossesólido e verdadeiro.

Rangeu os dentes. Era aquele garoto que a fazia pensar assim. Se o encontrasse, ospensamentos desapareceriam de uma vez por todas.

Partiu mais uma vez, deixando o capuz no lugar, o rosto em trevas, oculto de olhosinquiridores. Com os mantos amarrados, avançou por entre as árvores com facilidade,zumbindo suavemente para revelar a trilha do mutante e do garoto, encontrando apresença remanescente deles a cada curva. A passagem do garoto e do mutante era tãoclara como se estivesse marcada por tinta nas cascas das árvores. Ela avançava a umritmo constante, acostumada a caminhadas, a jornadas a pé e não só a cavalgar seusshrikes, endurecida há muito tempo por saber que não sobreviveria de outro modo. OMorgawr ficaria contente em deixá-la continuar sendo apenas uma garota, menosameaçadora, mais maleável, mas ela havia determinado desde cedo que jamais sepermitiria ser vulnerável novamente. Mais cedo ou mais tarde, seria ameaçada poralguma coisa ou alguém endurecidos por anos de vida selvagem, e estaria pronta paraisso. Tampouco queria que a considerassem apenas uma garota ou mesmo uma mulher,de algum modo reduzida em estatura por seu sexo e não levada em consideração comcautela.

Não, pensou amarga, jamais pensariam nela dessa maneira. O Morgawr a treinarano uso de sua magia, mas ela treinara a si mesma na arte da sobrevivência. Quando elesaía, o que ocorria com freqüência, ela se testava de formas que ele não sabia, saindosozinha, em terreno perigoso, às vezes muito além do Caminho Selvagem. Vivia como umanimal, rastreando como eles, procurando alimento, caçando e sempre aprendendo o queeles sabiam. Como ela tinha o uso da canção do desejo, podia falar a linguagem deles eganhar sua aceitação. Fazia com que achassem que era um deles. Isso exigiaconcentração e esforço, e um único deslize podia levar ao desastre. Era poderosa, masera necessário apenas um instante de desatenção para deixar um predador derrubar suasdefesas. Gatos do pântano e kodens podiam derrubar você antes que pudesse imaginar oque havia acontecido. Bestas feras eram mais rápidas ainda.

Não havia avançado muito quando detectou uma segunda presença, que sesobrepunha à primeira. Reduziu a velocidade, subitamente cautelosa, lendo as imagens,os traços de calor e de movimento, temerosa de uma armadilha. Mas após algunsinstantes percebeu o que havia descoberto. O mutante voltara sobre sua trilha para verse alguém os estava seguindo, e então retraçou seus passos até onde deixara o garoto.Era provável que ele a tivesse visto. Tinha de supor isso. Já sabia que ele era experiente,habilidoso e fora sábio o bastante para não imaginar que, depois de ter resgatado ogaroto, estaria livre dela. Voltara para verificar, e em seguida seguiria para avisar seuprotegido.

Ela partiu em perseguição, ansiosa para eliminar a distância entre eles. Se ele haviachegado perto o bastante para detectá-la, não estaria agora tão longe. As imagensreveladas por sua magia eram fortes e inconfundíveis. Ele sequer se incomodara emocultar sua trilha. Estava correndo, fugindo, talvez apavorado com ela, percebendo como

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era pouca a distância que os separava. Isso a fez sorrir. Era o que ela queria. Pessoasapavoradas, em pânico, cometiam erros. O mutante não era assim em circunstânciasnormais, mas as condições haviam mudado.

Descendo ravinas e atravessando cumes de morros cheios de árvores e obstruídospor arbustos, ela abriu seu caminho, correndo um pouco mais nas áreas abertas, tãopróxima que sentiu poder farejá-los. No meio da manhã o sol já estava alto no céu claroe sem nuvens e se movia na direção do meio-dia. Ela respirava o calor e o frescor dafloresta, uma película de transpiração cobrindo seu rosto e suas mãos, descendo por seusbraços e pernas dentro das roupas. Sentiu uma selvageria invadindo-a, familiar e bem-vinda. Era assim que ela se sentia às vezes quando estava em uma caçada, essasensação de ser feroz e indomada, perigosa. Queria pôr de lado suas roupas humanas ecaçar como os animais faziam. Desejava sentir gosto de sangue fresco.

Em uma clareira ampla cercada de mato crescido, imagens do garoto reapareceram,juntando-se com o mutante. Sentiu a empolgação percorrer seu corpo, estimulando-amais uma vez. As imagens lhe diziam que agora eles estavam correndo, apressando-separa fugir dela. O garoto saberia que ela estava chegando. Ele estaria se perguntando oque poderia fazer para se salvar se ela o pegasse. Mentiria, claro. Contaria sua históriade novo. Mas já sabia que seria inútil tentar enganá-la uma segunda vez. Sabia o que elafaria com ele.

Talvez só mais algumas centenas de metros. Não muito mais do que isso, e ela ospegaria. Eles estavam bem à frente.

Mas, de repente, quando ela entrou em uma campina repleta de flores selvagensamarelas e azuis que ondulavam como a superfície do mar ao vento, a trilha que elaacompanhou com tanta ansiedade desapareceu. Por um momento ela não conseguiuacreditar. Continuou seguindo sem crer, atravessando a campina até o outro lado,tentando entender o que acontecera. Então parou. As imagens ainda estavam lá, aindatão fáceis de discernir como antes, brilhantes e claras. Mas estavam por toda parte, portoda a campina, por entre todas as árvores distantes, milhares delas, vislumbres de calore luz. Era como se o mutante e o garoto estivessem em todos os lugares e partindo emtodas as direções ao mesmo tempo.

Naturalmente, isso não era possível.Não era real.Ela respirou fundo para se acalmar; então, soltou o ar devagar. Enfiou a mão dentro

do capuz para afastar do rosto um cacho dos grossos cabelos escuros e olhou de umaponta da campina até outra, lançando sua presença dentro das sombras e abaixo dasárvores distantes, procurando. Não havia ninguém ali. O garoto e seu protetor estavamem outro lugar, em segurança e mais distantes dela a cada segundo que passava.

Sem querer, ela sorriu. Acreditara que eles haviam entrado em pânico, mas omutante e o garoto eram mais espertos do que ela pensara. Percebendo que ela osrastrearia usando sua magia, eles retaliaram utilizando a deles próprios. Ou, de modomais preciso, se ela estava lendo as coisas corretamente, o garoto havia usado a magiadele. Ele a havia usado para lançar as imagens de ambos por toda parte, para dispersá-las em todas as direções. Ela podia separá-las, encontrar o conjunto correto para ver que

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caminho a dupla seguira, mas isso levaria tempo. Eles fariam isso novamente, maisadiante, e a cada vez que ela fosse forçada a resolver um dos enigmas, perderia terreno.

Eles esperavam, naturalmente, que ela não tivesse as habilidades de um rastreadore não pudesse segui-los através de leitura de impressões e sinais se prejudicassem suamagia. Eles tinham razão. Sua magia era tudo o que ela tinha, e teria de ser o bastante.

Sentou-se de pernas cruzadas, recostada em um carvalho, olhando para a campina,pensando. Não havia necessidade de pressa. Ela os pegaria, é claro. Nada do que elestentassem seria o suficiente para afastá-la da trilha por muito tempo. O mais importanteera não agir com precipitação. Levou um tempo para pensar aonde isso tudo estavalevando. O garoto e seu protetor estavam correndo, mas para quê? Aquela era uma terraestranha e eles não sabiam nada de sua geografia ou de seus habitantes. Àquela altura omutante teria contado ao garoto que a aeronave estava sob o controle dela e fora doalcance deles. Os membros da expedição de terra liderados por Walker estavamdispersos ou mortos e o druida havia desaparecido. Na melhor das hipóteses, fugiroferecia apenas uma solução temporária para o problema que tinham. Como pretendiamfazer uso disso? Para onde tentariam ir e com que finalidade? Certamente eles nãoestavam correndo às cegas e na direção de nada. O mutante era muito inteligente paraisso.

Levantou-se devagar, decidida. Respostas para perguntas como essas teriam deesperar. Não fazia qualquer diferença para onde eles iriam ou por quê, se nãoconseguisse encontrá-los, e ela pretendia encontrá-los agora. Se sua magia não aajudasse de um jeito, teria de ajudá-la de outro.

Em pé às margens da campina, levou as mãos em concha à boca e deu um gritolongo e baixo, frio e assustador, que se espalhou pela distância e morreu. Deu esse gritotrês vezes, ficou em pé esperando um pouco, e depois deu três outros.

O tempo passava, a campina e a floresta que a cercava estavam em silêncio, a nãoser pelo canto dos pássaros e o farfalhar de folhas ao vento. A bruxa Ilse ficou ondeestava, escutando e observando tudo ao mesmo tempo.

Então alguma coisa saiu dentre as árvores e foi até a grama do outro lado dacampina, fazendo com que as flores se ondulassem e se abrissem. A bruxa Ilse esperoupacientemente enquanto a criatura submersa abria caminho em sua direção, invisível porbaixo da coberta ondulante de flores selvagens, quase tocando a terra.

Quando estava a uns dez metros de distância, tarde demais para escapar, a criaturalevantou ligeiramente o focinho estreito do meio do mar brilhante, testando o vento,procurando a fonte do chamado que a havia invocado. O lobo não era de nenhuma raçareconhecível, era maior do que aqueles com os quais ela estava familiarizada, masserviria. Era um pária, um renegado — isso ela podia sentir a seu respeito —, não faziaparte de nenhuma matilha, solitário por opção e por natureza, sua face era uma máscarade pêlos pretos grisalhos e traços penetrantes, seu corpo cinzento e cheio de cicatrizes,magro e musculoso. Predador feroz, o lobo possuía instintos e habilidades derastreamento inigualáveis, que atenderiam bem às suas necessidades, assim que osajustes necessários fossem feitos.

O lobo percebeu que fora apanhado em uma armadilha, incapaz de se livrar da

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magia de sua voz atraente, das correntes que ela já havia enrolado ao seu redorenquanto zumbia e cantava suavemente. Mas não ficou tão atordoado pelo que estavaacontecendo para não tentar escapar. Eriçou-se e resfolegou, lutando contra astentativas da bruxa Ilse de exercer o controle, seu ódio era revelado nos olhos furiosos eno focinho curvado. Ela o deixou ter seu momento de fúria e em seguida começou atrabalhar nele sem descanso. Pouco a pouco, venceu a resistência do lobo, dominando-lhe a vontade, conquistando-lhe o coração e a mente, fazendo de seu corpo epensamentos os dela própria.

Então começou a lhe dar uma nova forma. Era uma criatura perigosa, mas eladecidiu que precisava ser ainda mais perigosa; o mutante seria mais do que um páreopara um lobo comum, não importava o quanto fosse feroz, e ela queria virar o jogo.Queria um caull, uma fera de carne e ossos reformulados, uma criatura de magiamoldada por sua mão e que lhe obedecesse exclusivamente. Usando a magia da cançãodo desejo, fez com que ele evoluísse de maneira muito específica, concentrando aatenção em seus instintos predadores, habilidades de rastreamento e resistência.Aumentar sua inteligência era uma tarefa difícil demais, muito complexa mesmo para ela.Mas a forma podia ser alterada para se adequar às suas necessidades, e ela não fugiu doque era exigido, mesmo quando a fera gritou como se fosse uma criança.

Mais tarde, a criatura ficou ali deitada, ofegante e febril sobre a terra salpicada desol, as flores selvagens feitas em pedaços por três ou quatro metros em todas asdireções, o chão revolvido, a grama borrifada de sangue. Ela examinou o caull, e entãofez com que dormisse para se acalmar e curar seu corpo remodelado. Seus olhosamarelos se fecharam, sua respiração diminuiu e ficou mais profunda em resposta àmudança na canção. Em segundos, estava dormindo.

O esforço a havia deixado exausta e ela sentou para descansar. A manhã viroutarde. Cochilou à luz do sol, enrolada dentro do manto e usando o capuz, uma pequenafigura escura às margens do pedaço violentado de terra e da fera adormecida. O tempopassou e ela sonhou com um garotinho bem pequeno, de cabelos pretos e olhos azuisimpressionantes, olhando-a através de uma escuridão que se fechava enquanto elatrancava uma porta oculta entre os dois para sempre.

Acordou defronte ao caull, alertada pelo roçar das pernas do animal enquanto eleacordava de seu próprio sono. Já começando a entoar sua canção do desejo, ela selevantou e esperou que os olhos dele se abrissem. Quando sua cabeça se ergueu, ela lheordenou que se levantasse. Ele o fez, cambaleando, grande e ameaçador no brilho do solpoente. Tinha duas vezes seu tamanho original, com um pescoço mais grosso e ombrosenormes, o corpo reformulado para lutar e correr. A cabeça era uma extensão ampla eachatada de osso, no formato de uma cunha, que ia das orelhas pontudas até o focinho.Arfava com a boca entreaberta, revelando uma fileira dupla de dentes afiados comonavalhas, feitos para rasgar e cortar. As pernas haviam encurtado para lhe fornecer umapostura de pés abertos em leque, e os dedos pequenos de suas patas haviam aumentadoe se espalhado para terminar em garras em forma de gancho. Pêlos cinzentos recobriamseu corpo, menos pêlo do que pele, um abrigo duro que nem mesmo espinhos poderiamarranhar. Ele se virava para um lado e para outro, como se ansioso para testar sua força

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recém-descoberta, e em seus olhos enlouquecidos brilhava um inconfundível desejo desangue.

Ela o observou com cuidado, satisfeita com sua obra, certa de que, com esta criaturapara ajudá-la, ela seria mais do que páreo para as espertezas do mutante e de seujovem cúmplice. Aprendera a criar caulls ao praticar sua magia com o Morgawr. Mashavia descoberto a forma deste por si mesma. Há centenas de anos, existira outro igual,um monstro saído de Faerie chamado Jachyra, que caçara e matara um druida. Ela nãoprecisava do original. Uma aproximação seria o bastante para atender a suasnecessidades.

— Incansável — ela sibilou para o caull. Ele girou a cabeça pesada e achatada nadireção dela, atento. — É isso o que você será para mim em sua busca por aqueles quecaço. Impossível de deter.

As mandíbulas se abriram no que teria sido um sorriso, se a fera fosse capaz decompreender o que era um sorriso. Era o bastante para satisfazer a bruxa Ilse. Se elaconseguisse o que desejava, sorriria por ambos.

Bek seguiu Truls Rohk até uma campina cheia de flores selvagens azuis e amarelas. Jácomeçava a se cansar do ritmo do mutante; o suor cobria seu rosto e encharcava suatúnica. O sol estava alto no céu de meio-dia e o ar quente. Truls Rohk encaminhou-se apassos largos até o centro da campina e parou, olhando para trás.

— Longe o bastante — disse ele, o rosto destruído não mais do que uma sombradentro do capuz, mal podendo ser visto mesmo na luz brilhante do meio-dia. Olhou paratrás, na direção de onde vieram. — Não podemos fugir dela para sempre. Mais cedo oumais tarde ela irá nos alcançar. Precisamos fazer outra coisa.

Exausto, Bek soltou o ar dos pulmões e tornou a respirar fundo, engolindo a securade sua garganta.

— Talvez ela desista se continuarmos seguindo em frente.— Improvável. Pense bem. Ela pôs de lado a caçada pelo druida, seu inimigo mortal,

para ir em sua busca. Colocou tudo de lado, todo o seu propósito em vir nesta viagem,por sua causa. Você acha que não a atingiu com suas palavras e argumentos, mas achoque talvez sim. Pelo menos o bastante para fazer com que ela ficasse intrigada.

— Não senti isso naquele momento. — disse Bek balançando a cabeça.Truls Rohk não parecia sequer respirar com dificuldade, o corpo parado e composto

dentro de seu manto, nem um pequeno movimento, nem uma perturbação.— Ela está nos rastreando com sua magia, lendo nossa passagem. Eu vi o jeito como

ela caminhava, cabeça para cima, olhos para a frente. Não estava estudando sinais ouprocurando marcas. — Ficou ali por um instante, olhando ao longe em todas as direções,percebendo o traçado da terra. — Precisamos desviá-la, garoto. Agora, antes que issofique pior, antes que ela esteja tão perto que nada possa atrasá-la.

Encarou o garoto, os ombros largos ameaçadores.— Está na hora de assumir algumas responsabilidades. Sua magia contra a dela:

esta pode ser a resposta. Sua magia não tem muito poder nem sutileza, mas tem

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utilidades mesmo assim. Ouça-me. A bruxa Ilse provavelmente está lendo o calor donosso corpo, nossos movimentos de um lugar para outro. Veja se pode fazer o mesmo.Observe-me com atenção. Quando eu desaparecer, rastreie-me. Use sua voz, assim comofez em Mephitic.

Em um instante, ele desapareceu bem na frente de Bek, sumindo como se fossevapor. O garoto invocou sua magia e a lançou ao redor, desesperado, procurando. Nadaaconteceu.

O mutante reapareceu bem onde havia estado um momento antes. Bek se assustoucom a rapidez do movimento, e então balançou a cabeça, zangado.

— Não funcionou! — A frustração coloriu suas palavras. — Não consigo fazer nada!Truls Rohk aproximou-se, grande e ameaçador.— Que pena para nós se você não conseguir, não é? Tente mais uma vez. Lance sua

magia como se estivesse atirando uma rede! Finja que está cobrindo imagens comtecido. Você não está procurando por mim: é pela minha sombra. Faça isso!

Sumiu de novo, e de novo Bek invocou a magia e a lançou. Desta vez obteve maissucesso. Capturou pedaços de Truls Rohk se movendo da esquerda para a direita evoltando, presenças fantasmagóricas que ficavam penduradas no ar do meio-dia.

— Melhor. — O mutante estava de volta à sua frente outra vez. — Mais uma vez,mas segure firme uma ponta da magia que está liberando. E então puxe-a, garotopescador.

Nessa tentativa, ele capturou todos os movimentos de Truls Rohk, uma série depassagens claramente definidas, movendo-se ao seu redor e voltando. Como espíritosque saíssem de cadáveres, elas jaziam suspensas no ar, uma atrás da outra, cada qual semovendo lentamente para alcançar a seguinte, como se fossem corredores cujavelocidade fosse diminuída por areia movediça e pelo cansaço.

Trabalharam nisso repetidamente, e então o mutante mudou sua aparência para separecer com o garoto; subitamente Bek estava procurando suas próprias imagens, vendoa si mesmo replicado várias vezes ao longo da campina. Para a frente e para trás, paraaqui e acolá, de uma ponta a outra e entre as árvores, Truls Rohk lançou sua própriaimagem e a do garoto até que a campina ficou cheia de suas sombras e a trilhaimpossivelmente confusa.

— Deixe-a tentar desemaranhar isso — grunhiu Truls Rohk enquanto levava o garotopor entre as imagens deslizantes em ziguezague, dirigindo-se para uma cordilheira aleste. — Vamos fazer isso de novo um pouco mais adiante, em algum lugar perto daágua.

Continuaram correndo, não tão rápida e furiosamente quanto antes, o mutantemarcando um passo mais razoável, que o garoto era capaz de acompanhar com maisfacilidade. Não conversaram, mas se concentraram em seu esforço para colocar omáximo de distância possível entre eles e sua perseguidora e em conservar suas forças.Por mais duas vezes pararam para produzir um conjunto confuso de imagens, uma trilhaemaranhada, atravessando um riacho fundo em um momento, voltando duas vezes emângulos retos, escolhendo um terreno difícil e pedregoso para sua passagem.

A noite estava quase caindo quando finalmente pararam para descansar e comer, a

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luz rapidamente morrendo a oeste, a floresta já envolta em sombras extensas. Ospássaros noturnos surgiam no crepúsculo que crescia, formas de asas negras contra océu. Bek os viu voarem para longe e desejou ter as asas deles. Não levara consigo nemcomida nem água, mas Truls Rohk trouxera ambas as coisas, roubadas da Black Moclipsao partir, o mutante preparado como sempre.

— Embora eu achasse que as coisas não chegariam a este ponto — ele admitiuamargo, entregando sua bolsa de água para o garoto beber.

Bek estava exausto. Não fraquejara, mas seus músculos estavam esgotados e ocorpo doía. Estava acostumado a viagens difíceis e longas caminhadas, mas não a correrpor tanto tempo. A vida a bordo da Jerle Shannara o havia ajudado a se preparar, masmesmo assim sua resistência tinha limites e nem de longe se comparava à de Truls Rohk.

— Será que ela vai desistir agora? — ele perguntou esperançoso, devolvendo a bolsade água e mastigando faminto a carne seca que o outro lhe dera. — Será que vai perdero interesse em nós e se voltar para Walker?

O mutante riu baixinho, envolto em seus mantos e capuz, a expressão do rosto e ospensamentos ocultos.

— Acho que não. Ela não é assim. Ela não desiste. Encontrará outra maneira de nosrastrear. Ela continuará vindo.

Bek suspirou resignado.— Terei de enfrentá-la novamente mais cedo ou mais tarde. Não há como evitar. —

A espada de Shannara estava ao seu lado e ele a olhou. Suas expectativas em usá-lacontra a sua irmã pareciam tolas e desesperadas.

— Talvez. Mas temos outros problemas para resolver primeiro. Não podemossimplesmente continuar correndo sem outro objetivo além de fugir da bruxa. Mesmo queconsigamos despistá-la ou ela desista, aonde isso nos leva? A algum lugar no meio de umterritório estranho sem uma aeronave nem amigos, sem armas nem suprimentosadequados, e sem um plano decente, é aí que iremos parar. Não é tão bom assim.

— Precisamos voltar para apanhar Quentin e os outros — Bek respondeuimediatamente, convencido de que essa era a opção correta. — Precisamos ajudá-los sepudermos. Precisamos encontrar Walker.

Parecia tão óbvio e tão lógico que as palavras saíram de sua boca antes de perceberque estava ignorando obstáculos que tornavam sua reação quase ridícula. Mesmo comsua magia e a habilidade e experiência do mutante, eles eram apenas dois homens: umhomem e um garoto, ele corrigiu melancólico. Não tinham idéia de onde estavam seusamigos. Não tinham meios de procurá-los além de seus próprios pés, um meio detransporte dificilmente adequado ao tipo de busca necessário. Seus inimigos osultrapassavam em uma proporção talvez de cinqüenta por um, e isso sem contar o quequer que vivesse no subterrâneo de Castledown.

Truls Rohk não disse nada. Ficou sentado, olhando para o garoto de dentro dassombras de seu capuz.

Bek pigarreou.— Tudo bem. Não podemos fazer isso sozinhos. Precisamos de ajuda.O mutante assentiu.

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— Você está aprendendo, garoto. Que espécie de ajuda?— Alguém para equilibrar as coisas quando voltarmos para enfrentar a bruxa Ilse, os

mwellrets e quem mais estiver esperando.— Isso, mas também alguém que conheça um caminho para passar pelas coisas que

protegem as ruínas e o tesouro que Walker veio encontrar. — Truls Rohk soltou umarisada amarga. — Não pense nem por um momento que o druida, se ainda estiver vivo,irá desistir do tesouro.

Bek pensou em tudo o que os integrantes da Jerle Shannara haviam suportado atéagora, do que fora prometido e do que fora deixado de lado. Pensou no quanto Walkerestava arriscando para fazer a jornada, tanto em termos de vida quanto de reputação.Truls Rohk tinha razão. O druida preferiria morrer a fracassar, devido ao que estava emjogo. Mesmo com o pouco que conhecia de Walker, era certo que o fracasso na obtençãodo apoio dos elfos para um conselho de druidas em Paranor seria o seu fim. Era tudo peloqual ele havia trabalhado, tudo o que lhe importava agora. Passara sua vida como umdruida procurando esse apoio. Bek sabia isso por causa de suas conversas. Sabia isso doque havia ouvido de Ahren Elessedil. Walker havia amarrado seu destino a esta viagem,à recuperação das pedras élficas e à descoberta do tesouro no mapa do náufrago.

E tudo isso não estava ligado, por sua vez, ao fato de o druida ir com ele, Bek, etambém com os outros? Todos os seus destinos não estavam inextricavelmente ligados?

— Durma por uma hora; depois partiremos novamente. — Truls Rohk sentou-se comas mãos entrelaçadas à frente do corpo, o pêlo animal nas costas brilhando fraco, comofios de prata. — Vou ficar de guarda.

Bek assentiu sem dizer palavra. Uma hora era melhor do que nada. Aproveitou ummomento para olhar o caminho pelo qual haviam vindo, onde estava a bruxa Ilse, ondeseus amigos e companheiros estavam, em algum lugar na escuridão.

Sejam fortes, rezou por todos. Rezou até mesmo por Grianne.

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5

A dezenas de quilômetros de distância, no fundo das montanhas geladas, que

protegiam a costa da península, cercada pelas muralhas de milhares de metros dagarganta que transportava o gelo derretido até a Divisa Azul, a Jerle Shannara vagavaem sua grandeza solitária. Sem leme, sem timoneiro, as velas em farrapos, ela navegavaao sabor dos ventos que a levavam desfiladeiro abaixo, movendo-se como se atraída nadireção dos pilares de gelo que bloqueavam o caminho para fora. Acima, nuvens rolavam,confundindo-se com a neblina que saía do gelo e a espuma do quebrar das ondas contraas pedras, finos lençóis de gaze dispostos em camadas contra pálidos fragmentos de luzdo sol. Shrikes voavam em círculos e passavam mergulhando pelos cordames, seus olhospenetrantes como brocas brilhando de expectativa, cada passagem levando-os maisperto dos mortos que jaziam espalhados pelo convés da aeronave. Ecos de seus gritos edo quebrar das ondas se misturavam e reverberavam pelos desfiladeiros em umcontraponto macabro.

Adiante, ficando maiores a cada virada da aeronave, os pilares aguardavam. Dentesgigantes batiam uns contra os outros e se afastavam, abrindo e fechando sobre a fendaatravés da qual a nave deveria passar, famintos, devoradores, como se ansiosos paraapanhar o que lhes havia escapado antes, como se precisassem sentir a madeira e ometal da Jerle Shannara reduzidos a lascas e destroços e sua tripulação reduzida a ossose carne.

Machucada e zonza, quase inconsciente, Rue Meridian pendia de uma corda a quasequinze metros abaixo da proa da nave. Pendia da corda com o que restava de suasforças, cansada demais para fazer qualquer outra coisa. O braço esquerdo estava cobertode sangue, que corria formando rios por seu flanco, e ela não sentia mais a perna direita.O vento uivava em seus ouvidos e lhe congelava a pele. Seus cabelos estavam cobertosde gelo e suas roupas estavam duras. Tudo o que a levara até aquele momento era umanévoa de memórias fragmentadas e emoções confusas. Lembrava-se de sua luta com omwellret, ambos feridos, caindo no chão do convés da aeronave, e então deslizandoinexoravelmente na direção da amurada de madeira, cada vez mais depressa e incapazesde parar. Ela se lembrava de ambos batendo na amurada, já quebrada por uma travaque havia caído, primeiro o mwellret, pegando o grosso do impacto. A amurada haviacedido como se fosse feita de palitos e ambos passaram por ela emaranhados um nooutro.

Aquilo devia ter sido o seu fim. Estavam a trezentos metros de altura, talvez mais,sem nada entre eles e as rochas e corredeiras abaixo a não ser o ar. Ela se libertarainstintivamente do mwellret com um chute, e então tentara se agarrar em algo. Por puroacaso, agarrara aquele pedaço de corda, aquela tábua de salvação. A interrupção de sua

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rápida descida quase lhe deslocara os braços e arrancou pele de suas mãos quando elaescorregou pela extensão da corda até bater em um nó que a deteve. Girando ao sabordo vento, ela se agarrou na corda, atordoada e aliviada, vendo a forma escura de seuantagonista cair no éter.

Mas então o choque e o frio lhe atingiram e ela percebeu que não conseguia semover de onde estava, pregada contra a linha do horizonte como um inseto em papel,congelada em sua tábua de salvação enquanto lutava para permanecer consciente. Nãoparava de pensar que no fim acabaria encontrando forças para tornar a se mover, parafazer algum esforço de subir de volta a bordo, e que alguém, para sua segurança, apuxaria para o convés. Sua mente, próxima da inconsciência, entrava e saía de várioscenários, sempre incapaz de fazer mais do que atiçá-la com possibilidades.

Mas não estava assim tão zonza para não perceber o perigo em que se encontrava eo pouco tempo que tinha para lidar com ele. A Jerle Shannara estava vagando cada vezmais perto dos pilares de gelo e, quando chegasse a eles, estaria acabada. Ninguém abordo da nave iria ajudá-la. Os que estavam no convés estavam todos mortos, entre elesFurl Hawken. Os que estavam abaixo estavam trancados em depósitos e nãoconseguiriam se libertar, ou já o teriam feito. Seu irmão, Redden Alt Mer. O construtornaval, Spanner Frew. Seus amigos, os rovers de sua terra natal. Aprisionados e indefesos,estavam à mercê dos elementos, e o fim deles era certo.

Ninguém iria ajudá-la.Ninguém iria ajudá-los.A menos que ela fizesse alguma coisa agora.Com o que pareceu um esforço sobre-humano, ela soltou uma mão congelada da

corda e estendeu-a para segurar em um novo ponto. O esforço enviou espasmos terríveisde dor por todo o corpo e tirou-a da letargia com um choque. Ignorando o frio e adormência, conseguiu subir um pouco, soltou a outra mão e segurou a corda mais acima.Sentiu mais sangue descer por dentro de suas roupas congeladas, onde seu corpo aindamantinha um pouco de calor. Estava morrendo congelada, percebeu, pendurada alinaquela corda, sendo atingida pelo vento que soprava das geleiras. Forçou-se a subirmais um pouco até uma nova posição, uma mão atrás da outra, a cada pedaço de cordaque atravessava, uma provação excruciante. Suas pálpebras estavam cobertas de gelo.Havia geleiras por toda parte, cobrindo as montanhas e os penhascos, espalhando-se aolonge por entre a névoa e as nuvens. Rajadas de neve sopravam sobre ela, e, porbrechas naquelas brancas e espessas cortinas, ela divisou os pilares adiante, leviatãsmovendo-se lentamente contra aquela brancura, com reflexos de luz despontando de suasuperfície azulada. Ruídos que pareciam tosses trovejantes e gritos esmagadoresmarcavam o avanço, a colisão e o recuo deles, e ela sentia a pressão de seu peso nacabeça.

Continue!Subiu mais um pouco, ainda varada de dor e fadiga, ainda sem nenhuma esperança

e distante da amurada quebrada que precisava alcançar. O desespero tomou conta dela.Jamais chegaria lá a tempo. Será que ela fizera realmente algum progresso? Será quesequer havia se movido? Sentia tanta dor e estava tão indefesa e arrasada que uma

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parte dela queria simplesmente desistir, se soltar, cair e acabar com tudo de uma vez.Seria tão fácil! Ela não sentiria nada. A dor e o frio acabariam; o desespero teria um fim.Um momento de relaxamento de suas mãos cansadas era o suficiente.

Covarde!Soltou a palavra ao vento em um uivo. O que ela estava pensando!? Ela era uma

rover, e acima de tudo os rovers sabiam como suportar qualquer coisa. Resistência exigiasacrifício, mas dava a vida em troca. Resistência era sempre a escolha mais difícil, mastransmitia a medida mais verdadeira de um coração. Ela não desistiria, disse a si mesma.Não desistiria!

Continue viva! Continue se movendo!Enfiou o queixo no peito e colocou uma mão atrás da outra, a segunda depois da

primeira, erguendo-se centímetro a centímetro, metro a metro, recusando-se a desistir.Seu corpo gritou em protesto, e era como se o vento e o frio subitamente aumentassemseus esforços para reduzir-lhe a velocidade. Fios congelados de seus cabelos compridoschicoteavam-lhe o rosto. Ela invocava toda fonte de inspiração em que pudesse pensarpara se forçar a prosseguir. Seu irmão e os outros rovers, aprisionados dentro da nave,dependiam dela. Walker, perdido em terra com os outros da equipe de desembarque,incluindo seu jovem amigo Bek. Furl Hawken, que morrera tentando salvá-la. A bruxa Ilsee seus mwellrets, que jamais pagariam pelo que haviam feito se ela não encontrasseuma maneira de sobreviver e fazê-los pagar.

Sombras!Ela chorava copiosamente, as lágrimas congelando na pele do rosto, e não conseguia

ver através delas o bastante para saber o quanto já havia subido. Seu maxilar estavaapertado com tanta força que os dentes doíam, os músculos das costas estavam cheiosde nós e cãibras com a tensão da subida. Sabia que não agüentaria muito mais. Nãoduraria muito mais tempo. Uma mão atrás da outra, puxar e agarrar a corda com asegunda mão, tornar a puxar e agarrar a corda com a primeira e assim por diante.

Ela gritou de dor quando o vento a jogou de encontro ao casco da aeronave, e quasesoltou a corda ao se afastar da madeira dura. Então percebeu o que isso significava, oquanto havia progredido, e abriu os olhos, levantando a cabeça. A abertura na amuradaquebrada estava bem acima dela. Redobrou os esforços, subindo nos últimos metros decorda até a borda do convés, agarrando com força a balaustrada ainda sólida e pulandopara o convés em segurança.

No convés escorregadio devido à chuva e ao gelo, ela deitou por um momento,olhando o vasto toldo celeste de névoa branca e de nuvens, exausta, mas tambémtriunfante. Sua mente disparava. Não havia tempo para descansar. Não havia tempo aperder. Virou para o lado e olhou por entre os corpos e os destroços, por entre as velasem farrapos e travas quebradas até a escotilha de popa. Não conseguia se levantar, eentão se arrastou por todo o caminho, lutando para permanecer consciente. A escotilhaestava aberta e ela deslizou pela abertura, perdeu o equilíbrio e desabou escada abaixo.Ficou toda embolada no final, tão dormente que não conseguia perceber se tinhafraturado algum osso, ainda ouvindo o rugido do vento e o quebrar das ondas nosouvidos.

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Levante-se!Levantou-se devagar, apoiando-se na parede do corredor, a perna ferida latejando

de dor, o sangue encharcando novamente suas roupas. O quanto ela havia perdido? Ocorredor estava vazio e escuro, mas achou que ouvia gritos. Tentou gritar de volta, massua voz soava oca e fraca, perdida no rugido do vento. Cambaleando ao longo docorredor e sempre se apoiando, tentava descobrir onde estavam as vozes. Achou terouvido o seu nome duas vezes, mas não tinha certeza. Havia sangue em sua garganta aessa altura, quente e espesso, e ela o engoliu para manter as passagens respiratóriasabertas. A cabeça estava leve e tudo rodava.

Com uma guinada súbita da aeronave, ela caiu com força, antes de chegar aosdepósitos, escorregando de uma parede e batendo na outra com tanta força que perdeuo ar dos pulmões e simplesmente desabou. Ficou ali deitada tentando respirar, por pouconão perdendo a consciência, o mundo ao seu redor girando cada vez mais rápido. Tentouse endireitar e descobriu que não conseguia. Não tinha mais forças, nada mais para dar.Era o seu fim. Era o fim de todos.

Fechou os olhos para não sentir a dor e a fadiga, buscando em sua mente os rostosdos que estavam aprisionados a poucos metros de distância. Achou aqueles rostos, etambém o de Hawk, tão familiares para ela quanto o seu próprio. Ouviu aquelas vozesdizendo seu nome, claras e aconchegantes, em outros lugares, em tempos melhores.Percebeu que sorria.

A Jerle Shannara deu mais uma guinada, apanhada por uma violenta rajada devento, e ela pensou consigo mesma: Não estou pronta para morrer.

De algum modo ela conseguiu se levantar. Jamais soube ao certo como conseguiu,quanto tempo levou, que mecanismo empregou, que força de vontade invocou. Mas,quebrada e chorando, coberta de sangue por toda parte, levantou-se e se arrastou pelosúltimos metros ao longo do corredor até a porta do primeiro depósito. Puxou várias vezesa tranca, ouvindo as vozes gritando para ela do lado de dentro, mas a tranca não cedia.Gritando de raiva e frustração, deu socos na porta, e então percebeu que não era atranca que a mantinha fechada, era a trava.

Lutando para respirar, jogou a trava para trás com o restante de suas forças, puxoua tranca, escancarou a porta pesada e caiu na escuridão.

Quando tornou a despertar, a primeira coisa que viu foi seu irmão.— Ainda estamos vivos? — ela perguntou, a voz fraca, a garganta seca de sede. —

Não parece.Ele deu um sorriso melancólico.— Acho que para você não. Mas sim, ainda estamos vivos, ainda que por pouco. Será

mais fácil para todos nós se da próxima vez que você vier em nosso resgate puder fazerisso com um pouco mais de entusiasmo.

Ela tentou rir e não conseguiu.— Vou tentar me lembrar disso.Redden Alt Mer se levantou para pegar uma bolsa d’agua, derramou uma medida em

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um copo e levantou a cabeça dela apenas o bastante para que bebesse. Deu-lhe águaem pequenos goles, deixando que levasse o tempo que precisasse. Sua mão grande emsua cabeça e em seu pescoço tinha um toque gentil e reconfortante.

Quando ela terminou, ele tornou a deitá-la e sentou-se novamente à sua cabeceira.— Foi por um triz. Eles nos trancaram em duas salas, todos menos você e Hawk.

Com as travas bloqueando as portas, não conseguimos nos soltar. Tentamos de tudopara derrubar a trava, para abri-la através da fenda na porta, tentamos até quebrar aporta. Podíamos ouvir a tempestade e percebemos que a coisa estava ruim; dava parasentir a nave à deriva. No começo os mwellrets estavam nos vigiando; entãodesapareceram. Não conseguíamos entender o que acontecia.

Ela fechou os olhos, lembrando. Hawk, usando sua adaga para abrir a fechadura daporta deles, um depósito na proa que não tinha trava. A batalha deles com o mwellret nocorredor. A subida rápida pelas escadas e a chegada ao convés onde outros seteaguardavam, junto com dois membros da tripulação da federação. A aeronave empedaços, sem controle, girando desenfreadamente em poder dos ventos do desfiladeiroenquanto navegava na direção dos pilares de gelo. A luta com seus captores. FurlHawken dando sua própria vida para salvar a dela. Sua própria queda e como conseguiraevitar, por pouco, a morte. A longa subida de volta.

— Depois que você nos libertou, corremos para o convés e vimos o que haviaacontecido com a nave e como estávamos perto do Squirm. — Ele balançou a juba decabelos ruivos, apertando os lábios. — A essa altura, estávamos bem em cima dela. Acabine do piloto estava esmagada, o sistema de navegação destruído, as bainhas de luzem farrapos, os cordames voando para todo lado, travas quebradas, e até mesmo unsdois tubos de fragmentação travados. Mas você devia ter visto Spanner e os outros. Elescobriram todos aqueles conveses em segundos, abrindo os tubos, amarrando novamenteos atratores radianos, fazendo funcionar cordames e restos de velas em quantidadesuficiente para nos dar pelo menos um pouco de controle. Você sabe como estava lá emcima, tudo sacudindo e jogando, o vento forte o bastante para jogar você do convés senão tomasse cuidado, ou talvez até mesmo tomando cuidado.

Ela assentiu, tornando a abrir os olhos para encontrar os dele.— Eu sei.— Como se a tempestade ou o perigo não importassem, dois homens subiram nos

mastros. Kelson Riat por pouco não teve a cabeça arrancada por uma trave solta eJahnon Pakabbon ficou com o braço esquerdo todo lanhado por uma estaca. Masninguém desistiu da nave. Nós a colocamos para funcionar em minutos. Liberei oscontroles, mas as linhas estavam esmagadas, e, por isso, tivemos de fazer tudomanualmente. Utilizamos a energia armazenada nos tubos de fragmentação paraendireitar a nave e direcioná-la para longe dos pilares de gelo, fazendo com que elavoltasse pelo caminho por onde viera. O vento lutou contra nós durante todo o caminho,soprando das geleiras e subindo a garganta, tentando nos derrotar. Mas esta é uma boanave, Ruivinha. A Jerle Shannara é a melhor. Abriu caminho lutando contra o vento emanteve o curso até encontrarmos algum espaço de calmaria para avançar.

Balançou-se em sua cadeira, rindo como um garoto.

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— Até mesmo Spanner Frew estava cuspindo e uivando, desafiando aquele vento,em pé no timão para manter o leme firme, mesmo sem os controles funcionando. O velhoBarba Negra lutou pela nave como o resto de nós. Para ele, ela é uma criança que elealimentou e cuidou como se fosse a própria filha, não ia perdê-la, ia?

Ela sorriu com o irmão, cuja animação era contagiosa; as dores que sentia iamaliviando aos poucos. Olhou para si mesma, e enfiada em um dos catres abaixo doconvés, nos aposentos do curandeiro, pensou. Uma luz brilhava pela única janela doaposento, clara e animada. Ela tentou mover braços e pernas, mas seu corpo parecia nãoquerer responder.

— Estou inteira? — ela perguntou, subitamente preocupada.— A não ser por alguns cortes feios e umas escoriações profundas. — Ele ergueu

uma sobrancelha para ela. — Você deve ter tido uma batalha terrível lá em cima,Ruivinha. Você e Hawk.

Ela tentou fazer as mãos e os pés se moverem, sem nada responder. Por fim, sentiuum formigamento nas extremidades, que começou a se espalhar junto com a dor quesubia e descia por seu corpo em espasmos súbitos. Deixou-se relaxar e olhou para seuirmão.

— Hawk morreu por mim. Você provavelmente já havia adivinhado isso. Eu nãoconseguiria sem ele. Nenhum de nós conseguiria. Não consigo acreditar que ele morreu.

Seu irmão assentiu.— Nem eu. Ele esteve conosco sempre. Nunca achei que fôssemos perdê-lo algum

dia. — Suspirou. — Importa-se de me dizer o que aconteceu? Pode nos ajudar um poucose fizer isso.

Ela conduziu a narrativa no ritmo que lhe foi possível, fazendo uma pausa para beberum pouco de água fresca que o irmão lhe trouxera, explicando o que ocorrera até omomento em que libertou Hawk do depósito de popa, sem negligenciar um únicodetalhe, forçando-se a se lembrar de tudo o que acontecera. Foi preciso um esforçoconsiderável só para contar isso, e, quando terminou, estava exausta.

Redden Alt Mer não disse nada no começo, simplesmente assentiu, e então selevantou e caminhou até a janela na cabine para olhar para fora. Ela chorou um poucoquando ele virou de costas, nada de lágrimas, nada de soluços audíveis, mas pequenossoluços e espasmos do peito que ele não reparou, ou pelo menos ela podia fingir que elenão havia reparado.

Quando ele voltou a olhar para ela, estava novamente composta.— Ele era tudo o que um rover deveria ser — seu irmão disse baixinho. — Não ajuda

muito neste momento; porém, mais tarde, quando for importante, acho queencontraremos alguma parte dele dentro de nós, mantendo-nos fortes, dizendo-nos comoser tão bons quanto ele foi.

Então ela adormeceu, quase antes que ele se desse conta, e seu sono foi profundo esem sonhos. Quando acordou, o aposento estava escuro, exceto por uma única vela emsua cabeceira, e a luz do sol que antes brilhara pela janela da cabine havia desaparecido.Agora ela se sentia mais forte, embora as dores que a estavam incomodando antesfossem mais pronunciadas. Ela conseguiu levantar o corpo sobre um dos cotovelos e

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beber um pouco da água que estava no copo sobre a mesa ao seu lado. A Jerle Shannaranavegava em ventos calmos e constantes, o movimento de sua passagem era poucoperceptível. Estava tudo quieto a bordo da nave, o som das vozes e dos movimentos doshomens ausente. Deve ser noite, e a maioria deles deve estar dormindo. Onde estavameles? O quanto haviam avançado desde que ela dormira? Não tinha como saber enquantoficasse na cama.

Forçou as pernas a saírem debaixo dos cobertores e tentou levantar, mas seusesforços falharam e ela derrubou o copo de água quando segurou a mesa para se apoiarantes de tornar a cair sobre a cama. O barulho do copo ecoou alto, e instantes mais tardeo Ruivão apareceu, sem camisa e, obviamente, acordado de seu sono.

— Alguns de nós estão tentando descansar, irmã Rue — ele resmungou, ajudando-aa voltar para baixo das cobertas. — De qualquer modo, o que pensa que está fazendo?Ainda precisará de um ou dois dias para sair andando por aí, e talvez até mais do queisso.

Ela assentiu.— Estou mais fraca do que pensava.— Você perdeu muito sangue, se é que entendo alguma coisa de ferimentos. Não vai

querer substituí-lo todo de uma vez. Nem ficar curada da noite para o dia. Então vamosser razoáveis sobre o que você pode e não pode fazer por enquanto.

— Preciso de um banho. Estou cheirando muito mal.Ele sorriu, sentando-se em um tamborete de três pernas.— Quanto ao banho, posso ajudá-la. Mas ninguém tentaria isso enquanto você

estivesse inconsciente, é preciso que eu diga. Nem mesmo Spanner Frew. Eles sabemque você não gosta de ser tocada.

Ela pressionou os lábios.— Eles não sabem nada a meu respeito. Apenas acham que sabem. — As palavras

eram afiadas e amargas. Ela forçou a raiva súbita a desaparecer. — Volte para a cama.Desculpe tê-lo acordado.

Ele deu de ombros, os cabelos vermelhos brilhando à luz da vela, soltos edespenteados, caindo sobre o rosto forte.

— Bom, agora já estou acordado, portanto talvez fique por aqui para conversar umpouco com você. O banho pode esperar até de manhã, não pode? Não estou com muitavontade de arrastar uma banheira e trazer água para cá no escuro.

Rue deu um sorriso fraco.— Pode esperar. — Ela lamentou sua raiva; fora mal direcionada e inadequada. Seu

irmão estava apenas tentando ajudar. — Estou me sentindo melhor esta noite.— Você parece mesmo melhor. Todos estavam preocupados.— Por quanto tempo fiquei nesta cama?— Dois dias.Ela ficou surpresa.— Tudo isso? Nem senti. — Soltou o ar dos pulmões de uma só vez. — Onde

estamos agora? Já estamos perto de onde deixamos os outros? Voltamos para eles, nãovoltamos? Precisamos alertá-los sobre a bruxa Ilse.

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Ele sorriu.— Você está melhor mesmo. Pronta para se levantar e lutar em outra batalha, não

está? — Balançou a cabeça, e então subitamente ficou sério. — Ouça com atenção,Ruivinha. As coisas não são tão simples. Não estamos indo na direção da ilha paraencontrar o grupo do druida. Estamos indo na direção da costa e dos cavaleiros alados.Estamos fazendo apenas o que nos mandaram.

Ele deve ter visto a fúria que explodiu nos olhos dela.— Não diga nada de que vá se arrepender depois. Não fiz esta opção por achá-la a

melhor. Eu a fiz porque era a única a fazer sentido. Acha que não quero ajustar contascom a bruxa? Acha que não quero atacar aqueles mwellrets da mesma forma que elesnos atacaram? Não gosto de deixar nenhum deles correndo solto por aí, não mais do quevocê. Não gosto nem por um minuto de abandonar Walker e os outros. Mas a JerleShannara está em frangalhos. Podemos substituir as bainhas de luz e os atratoresradianos, consertar os tubos de fragmentação e reajustar os cristais-diapasão para seadequarem às nossas necessidades. Conseguiremos velejar com talvez três quartos dopoder e da eficiência. Mas perdemos travas e danificamos dois mastros. Estamosarrasados. Não podemos participar de nenhuma batalha, especialmente contra a BlackMoclips. Não podemos sequer fugir dela, caso ela nos aviste. Ir para terra agora seriaestupidez. Não seríamos de muita utilidade para ninguém se fôssemos derrubados do céuou capturados pela segunda vez, seríamos?

O brilho de fúria não havia sumido dos olhos dela.— Então nós vamos abandoná-los? — ela disparou de volta.— Nós já os estávamos abandonando quando o druida ordenou que saíssemos

daquela baía. Walker conhecia os riscos quando nos mandou para fora. Seconseguíssemos passar pelo canal antes que a Black Moclips tivesse nos encontrado, elaainda teria continuado a velejar rio acima até a baía. Walker sabia disso. Ele não estavapensando que isso seria impossível.

Ela balançou a cabeça, teimosa.— Mas nós somos a tábua de salvação deles! Eles não podem sobreviver sem nós! E

se alguma coisa der errado?— Não seja tão apressada para supor o que eles podem ou não fazer sem nós.

Alguma coisa já deu errado, só que deu errado conosco. E nós sobrevivemos, nãosobrevivemos? Dê-lhes um pouco de crédito.

Ficaram olhando um para o outro em silêncio por um momento, olhos ferozes eintensos. Rue recuou primeiro.

— Eles não são rovers — ela ressaltou baixinho.Seu irmão sorriu sem querer.— Tem razão. Mas eles também têm suas vantagens e uma boa chance de se

defenderem até que possamos alcançá-los. O que pretendo fazer sem dúvida, Ruivinha,se você tiver um pouco de fé em mim. — Inclinou-se para a frente, descansando oscotovelos nos joelhos. — Estamos a caminho da costa para fazer reparos e tratar dosferimentos. Se quisermos ser mais inteligentes e velozes do que a bruxa Ilse e seusmwellrets e talvez participar de uma batalha com a Black Moclips, precisamos estar em

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nossa melhor forma. Talvez isso nem seja necessário, se tivermos sorte, mas nãopodemos confiar na sorte para sair desta bagunça. Devemos ser capazes de mapearnosso caminho de entrada e de saída novamente, como o druida queria. Devemos sercapazes de fazer contato com os cavaleiros alados também. Enquanto a nave forconsertada e você estiver se recuperando, eu voarei de volta com Hunter Predd para daruma olhada no que aconteceu com nossos amigos e ajudá-los se puder.

Rue Meridian sorriu.— Este sim é o Ruivão que conheço. Nada de ficar sentado esperando. Mas vamos

ver quem vai voltar e quem vai ficar para trás para se curar.Ele balançou a cabeça.— Às vezes acho que você tem tanto bom senso quanto um piolho. Você é

indestrutível? Estava quase morta em um minuto e está inteira no minuto seguinte? Vairesgatar aqueles infelizes que precisam tanto de você? Sombras! Estou espantado quetenha vivido tanto tempo. Bem, depois falamos sobre isso.

Levantou-se.— Por ora, chega de conversa. Vou para a cama descansar mais algumas horas antes

de amanhecer e do trabalho. Talvez você também deva tirar algumas horas de sono.Deixe o passado para trás e o futuro à frente, no lugar que lhes é devido, e viva opresente conosco. — Acenou para ela ao dar-lhe as costas. — Durma bem, Ruivinha.

Saiu sem olhar para trás, fechando a porta devagar. Ela olhou na direção dele porum longo tempo, pensando que, apesar de todos os seus defeitos, não havia ninguémmelhor do que seu irmão. O que quer que houvesse adiante, preferia enfrentar com eleao seu lado do que com qualquer outra pessoa. Redden Alt Mer tinha sorte, era o quediziam. E estavam certos, mas ele tinha algo mais. Tinha um coração. Sempreencontrava uma saída e não abria mão de que era a única. Era o rover que havia dentrodele. Era isso que definia quem ele era.

Passou mais alguns minutos pensando nos que estavam presos na ilha, em Walker eno resto deles, ainda preocupada com o que lhes aconteceria sem poder recorrer aosrovers. O Ruivão podia dizer o que quisesse, mas ela não gostava da idéia de abandoná-los até chegarem à costa e encontrarem os cavaleiros alados. Eles eram um grupo duro eexperiente, menos Bek e a vidente, e um ou dois outros que eram mais talentosos doque experientes, mas até mesmo os elfos caçadores estavam correndo muito risco porestarem a pé e afastados da aeronave. Especialmente com a bruxa Ilse e seus mwellretsatrás deles.

Então pensou em Hawk uma última vez. Alguém vai pagar pelo que aconteceu comvocê, ela prometeu silenciosamente. Um dia, em breve, essa conta será ajustada.

Ela estava chorando novamente, quase sem se dar conta.— Adeus, Hawk — ela murmurou para a escuridão.E então dormiu.

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6

Quando Panax agarrou seu ombro em sinal de alerta, Quentin Leah agachou-se e

ficou paralisado, os olhos vasculhando a penumbra próxima a si. Sentiu a respiraçãopesada do anão na sua orelha.

— Logo ali. — As palavras eram um sibilar suave no silêncio. — Ao lado daqueleedifício, nos escombros.

Quentin apertou a espada de Leah, mas soltou-a rapidamente. Não, não invoque amagia! Você só atrairá a atenção deles se fizer isso! Seu coração começou a disparar. Aoseu redor tudo estava quieto, nenhum som, nenhum movimento, como se a cidade eseus habitantes mortíferos estivessem esperando junto com ele. Sujeira, suor e sanguemanchavam-lhe o rosto e as roupas, o corpo doía de exaustão. Tinha cortes eescoriações em quase todo o corpo, os do flanco esquerdo estendiam-se até as costelas.Ao seu lado, agachados em uma fileira de arbustos que haviam crescido por entre placasquebradas de pedra, Kian e Wye observavam junto com ele, esperando seu sinal. Agoraele era o líder. Era sua última e melhor esperança. Sem ele estariam todos mortos.Mortos, como tantos outros.

Quentin vasculhou o lugar no qual Panax avistara movimento, mas não viu nada.Não importava; ficou onde estava e continuou procurando. Se o anão dissera que haviaalgo ali, então havia. Não chegaram até aquele ponto duvidando uns dos outros, echegar até aquele ponto não era nada menos do que um milagre.

Nada acontecera do jeito que deveria acontecer, desde o momento em que haviamentrado naquela praça com seu piso de metal liso e suas seções de parede irregulares.Era uma estranha formação para começar, diferente de tudo que o montanhês já vira, echeirava a encrenca. Mas Quentin havia assumido sua posição na ala esquerda da equipede busca, juntamente com Panax e os elfos caçadores Kian, Wye e Rusten, e ficouolhando enquanto Walker, desacompanhado, abria caminho cautelosamente à sua frente.Do outro lado, quase invisível, Ard Patrinell estava agachado junto com Ahren Elessedil, ocurandeiro Joad Rish e mais três elfos caçadores. Mal conseguia divisar seus vultos,pouco mais do que sombras se agarrando às muralhas que protegiam os prédios. Entreeles, e bem atrás do druida, Bek e a vidente Ryer Ord Star aguardavam com mais trêselfos caçadores. Como um quadro, estavam destacados na luz que morria, estátuas semmovimento congeladas em seus lugares pelo tempo e pelo destino.

Quentin havia apurado cuidadosamente os ouvidos, atento para o som deproblemas, pois, neste lugar, algo que parecesse ser armadilha de fato era. Já haviapuxado a espada, segurando-a em uma das mãos e mantendo a lâmina deitada sobre oquadrado de metal onde estava agachado; o cabo trabalhado não era nem um poucoconfortável na palma da mão suada. Saia daí! Ele continuava gritando as palavras no

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silêncio de sua mente, como se pensasse poder, de algum modo, fazer com que issoacontecesse. Saia daí agora!

Então os primeiros fios de fogo foram disparados na direção do druida. Quentin ficouem pé no mesmo instante, pulando num impulso e correndo para a frente. Rusten foi comele, os dois correndo em auxílio a Walker, ligeiros, dispostos e audazes, ignorando osgritos de Panax para que voltassem. Ambos deviam estar mortos. Mas Quentin tropeçou,caiu de cara no chão de metal, e a queda salvou sua vida. Rusten, à sua frente e aindacorrendo na direção do druida, foi apanhado em um fogo cruzado de fios mortíferos ecortado em pedaços enquanto ainda estava em pé, gritando ao morrer.

Avançando, passando pelos fios de fogo envolto em um manto negro, Walker gritavapara que eles ficassem atrás, para que ficassem além das ruínas. Seguindo a ordem dodruida, Quentin se afastou voltando pelo caminho pelo qual viera, sendo perseguido pelofogo, que passou tão perto a ponto de queimar-lhe as roupas. Captou um vislumbre dosoutros, Bek no grupo central, os elfos na ala direita, todos se dispersando e buscandoabrigo, defendendo-se do que quer que pudesse acontecer em seguida. Ryer Ord Stardisparou do lado de Bek, sua forma magra correndo na direção das ruínas atrás deWalker. Efêmera e sombria, ela passava como um fantasma por entre as paredes queestavam se movendo em várias direções, correndo sem pensar direto para o coração dolabirinto. Ele a viu tropeçar e cair, atingida por um dos fios mortíferos, e então perdeutudo de vista, a não ser o que estava acontecendo bem à sua frente.

— Rastejadores! — gritou Panax.Quentin levantou-se e deu combate ao primeiro dos inimigos que, muito próximo a

ele, parecia ter surgido do nada. Num relance, vislumbrou outros inimigos que ocercavam. Eram de diferentes formas, tamanhos e composições de metal, um amálgamaformado pelo que pareciam ser pedaços soltos e peças estranhas conectados, formandoalgo que não parecia inteiramente real. Lâminas e poderosos cortadores brilhavam nasextremidades de extensões de metal. Olhos de metal protuberantes giravam. Avançavamagachados, como se fossem grandes insetos com carapaças metálicas que tivessemrecebido vida e sido enviados para caçar.

Destruiu o primeiro tão rápido que virou ferro-velho antes de Quentin perceber o quehavia feito. Todas aquelas longas horas de treinamento com os elfos caçadores opouparam da hesitação que lhe teria custado a vida. Reagiu sem pensar, atacando com aespada de Leah o rastejador mais próximo, a magia assumindo vida instantaneamente,reagindo à sua necessidade. A lâmina de metal escuro brilhou com um fogo próprio,chamas azuis subindo e descendo pelas bordas da arma enquanto ele fazia de seuantagonista uma ruína metálica. Sem reduzir o ritmo, pulou sobre os destroços do inimigoderrotado para enfrentar o próximo, lutando para alcançar seus companheiros, queestavam acuados de encontro a uma parede próxima, lutando com suas armas comunspara manter um grupo de rastejadores afastado. Esmagou o segundo rastejador, emseguida foi atingido no flanco por algo que não viu e foi jogado para o alto. Fiosvermelhos o perseguiram, queimando lentamente um caminho no chão de metal,deixando sulcos profundos que soltavam vapor e fumaça. Girou o corpo para afastar-sedeles mais uma vez, levantou-se e com um uivo de determinação lançou-se de volta ao

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combate.Lutou pelo que pareceu um longo tempo, mas provavelmente não passou de alguns

minutos. O tempo parou, e o mundo ao seu redor, com tudo o que lhe oferecera epoderia oferecer novamente em sua jovem vida, desapareceu. Rastejadores vinham emsua direção de toda parte, de todas as formas, tamanhos e aspectos. Ele parecia ser umímã para os inimigos, atraindo-os como os mortos atraem as moscas. Convergiam detodos os lugares. Deram as costas para Panax e os elfos caçadores para alcançá-lo. Eleestava cheio de cortes e escoriações devido às tentativas dos rastejadores de derrubá-lo— não necessariamente para matá-lo, mas como se o único objetivo fosse capturá-lo.Ocorreu-lhe então pela primeira vez que era da magia que eles estavam atrás.

Àquela altura, a magia já o percorria por inteiro. Ela veio à tona com o primeirogolpe de espada, o fogo azul subindo e descendo a superfície da lâmina. Mas logotambém estava dentro dele. Ela o fundiu com a espada e fez deles um só, deixando queo metal lhe penetrasse a carne e os ossos, percorresse sua corrente sangüínea eretornasse, tudo calor e energia. A magia queimava de forma cativante e sedutora,preenchendo-o de poder e uma terrível sede por aquelas sensações. Em pouco tempo,ele gostou da sensação como nunca gostara de nada mais em sua vida. Ela o fizera crerque ele podia fazer qualquer coisa. Ele não tinha medo, não tinha hesitação. Eraindestrutível. Era imortal.

A fumaça cobria o campo de batalha, ofuscando tudo. Ele ouvia os gritos de seuscompanheiros, mas não podia vê-los. Walker havia desaparecido por completo, como sea terra o tivesse engolido. Vozes desencarnadas gritavam na escuridão. Todos estavamisolados, cercados por fios de fogo e rastejadores, apanhados em uma armadilha da qualnenhum deles parecia ser capaz de escapar. Ele não se importava. A magia flutuavadentro dele e o sustentava. Ele se envolveu em seu manto e, incontrolável, lutou comfúria cada vez maior.

Finalmente, Panax gritou para ele que precisavam se afastar da praça. O anãoprecisou gritar várias vezes para que ele ouvisse, e, mesmo assim, Quentin relutou em seafastar da batalha. Lentamente, começaram a se afastar pelo caminho que já haviampercorrido. Rastejadores procuraram impedir sua fuga, fazendo-os darem meia-volta acada oportunidade, perseguindo-os como lobos famintos, rastejando em suas estruturasde metal e pernas aracnóides, máquinas estranhas e bizarras. A caçada ia de um edifícioa outro, de um corredor ao corredor seguinte, até que Quentin perdeu a noção de ondeestava. Seus braços estavam cansando, pesados de tanto balançar a espada, e a magianão vinha mais tão fácil. Os elfos e Panax demonstravam nos rostos a amargura e ocansaço da batalha. O tempo e a vantagem numérica dos outros lhes devoravam aresistência.

Então, sem aviso, os rastejadores recuaram, os fios de fogo desapareceram e omontanhês e seus três companheiros foram deixados em um turbilhão vazio de fumaça esilêncio. Armas erguidas à frente como talismãs, os homens caçados recuaram por entrea névoa, afastando-se de seus perseguidores, observando tudo ao mesmo tempo. Acidade arruinada se tornara semelhante a um vasto cemitério, um túmulo imensodespido de vida a não ser por eles mesmos.

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E as coisas estavam assim neste momento, com Quentin e os outros três avançandodevagar, sem ter certeza de onde haviam chegado ou para onde estavam indo. Por umaou duas vezes ouviram movimentos súbitos e apressados das sombras, coisas correndorápidas demais para serem vistas com clareza. A noite já dava lugar à aurora, e a luz dosol subia lentamente por entre a neblina que cobria a cidade. Procuraram sinais de seusamigos, sinais familiares, qualquer coisa que lhes dissesse onde estavam. Mas tudoparecia a mesma coisa, e a aparência das coisas jamais mudava.

Agora, agachado em outra parte da cidade em ruínas, Quentin se descobriu quasedesejando ter alguma coisa contra a qual lutar novamente, algo real para combater. Atensão mantida para observar e esperar rastejadores invisíveis e fios de fogo quedesapareciam o estava cansando. Vestígios da magia ainda fervilhavam dentro dele, masuma mistura de medo e de dúvida havia substituído seu desejo por ela. Ele não gostavado que a magia o fizera executar, como se ele fosse uma máquina de lutar, tanto quantoaqueles rastejadores. Não gostou de como ela o havia dominado tão completamente,tanto que até mesmo pensar se tornava difícil. Só havia resposta e reação, necessidade esatisfação. Ele havia se perdido nessa magia, havia se tornado outra coisa.

Sem olhar para Panax, murmurou:— Não confio mais nos meus sentidos. Estou exausto.Sentiu, mais do que viu, o anão assentir.— Precisamos de algum descanso. Mas aqui não. Vamos embora.Quentin não se moveu. Estava pensando em Bek, em algum lugar lá fora na neblina

e nos escombros, na melhor das hipóteses perdido, na pior das hipóteses, morto. Nãosuportava pensar em como havia fracassado com seu primo, deixando-o para trás semdesejar ou ter a intenção, abandonando-o tanto quanto Walker parecia tê-losabandonado. Piscou os olhos para afastar o cansaço e balançou a cabeça. Jamais deveriater deixado Bek, nem mesmo depois que Walker os havia separado. Jamais deveria teracreditado que Bek ficaria bem sem ele.

— Vamos embora, montanhês — Panax tornou a grunhir.Levantaram-se e começaram a avançar, afastando-se do lugar onde o anão havia

visto movimento, contornando o prédio e os escombros, escolhendo uma ampla avenidaque passava por entre uma série do que pareciam armazéns baixos com partes deparedes e tetos desabados. Os pensamentos de Quentin eram melancólicos. Quem iriaproteger Bek se ele não o fizesse? Com Walker desaparecido, quem mais havia?Certamente não Ryer Ord Star e talvez nem mesmo os elfos caçadores. Não contra coisascomo os fios de fogo e os rastejadores. Bek era sua responsabilidade; eles eramresponsabilidade um do outro. De que valia uma promessa de cuidar de alguém se vocêsequer sabia onde essa pessoa estava?

Procurou olhar por entre a penumbra enquanto caminhava, vendo outros lugares,lembrando-se de tempos melhores. Ele havia percorrido um longo caminho desde asHighlands para que tudo terminasse daquele jeito. Estava tão certo do que deveriamfazer, ele e Bek. Viver uma aventura da qual se lembrariam pelo resto de suas vidas: erapor isso que deviam ir, ele discutira aquela noite com Walker. Esse argumento agoraparecia vazio e tolo.

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— Espere — Panax sibilou de repente, fazendo com que ele parasse bruscamente.Ele olhou para o anão, que estava tentando escutar ao seu redor mais uma vez. Ao

seu lado, Kian e Wye tentavam olhar a penumbra. Quentin achava que talvez estivessemuito cansado para ouvir, que mesmo que houvesse algo para ouvir, ele não seria capazde saber.

Então ele também ouviu. Mas não vinha da frente deles. Vinha de trás.Virou-se rapidamente e viu, surpreso, uma figura magra aparecer por entre a neblina

e os escombros.— Para onde estão indo?Tamis perguntou com uma expressão genuína de confusão ao se aproximar deles.

Tirou a faixa de couro que prendia para trás seus cabelos castanhos e curtos, e balançoua cabeça, cansada. — Isto é tudo o que sobrou de vocês?

Eles cumprimentaram a rastreadora com sorrisos cansados de alívio, abaixando asarmas e cercando-a. Kian e Wye estenderam os dedos para tocar rapidamente os dela, asaudação-padrão dos elfos caçadores. Ela acenou com a cabeça para Panax e então seusolhos cinzentos pousaram sobre Quentin.

— Acabei de vir de onde Bek está. Ele está esperando lá atrás, a uns trêsquilômetros.

— Bek? — repetiu Quentin, uma onda de alívio percorrendo seu corpo. — Ele estábem?

Havia sangue nas roupas dela e arranhões em sua pele macia e cansada. As roupasestavam molhadas e rasgadas. Ela não parecia assim tão diferente dele, Quentinpercebeu.

— Ele está bem. Melhor do que eu ou você, eu diria. Deixei-o em uma clareira nosarredores das ruínas, tomando conta da vidente enquanto eu vinha procurar por vocês.Somos tudo o que restou de nosso grupo.

— Perdemos Rusten — disse Kian baixinho.Ela assentiu.— E os outros? E Ard Patrinell?O elfo caçador balançou a cabeça.— Não sabemos dizer. Muita fumaça e confusão. Todos desapareceram depois que a

luta começou. — Ele assentiu para Quentin. — O montanhês nos salvou. Se não otivéssemos e essa espada, estaríamos acabados.

Tamis lançou um olhar irônico para Quentin.— Isso deve ser de família. Escutem, vocês estão indo na direção errada. Estão indo

para o interior em vez de voltar para a baía.— Estávamos apenas correndo — admitiu Quentin. Olhou confuso para a rastreadora.

— O que você quer dizer com “deve ser de família”? O que é que está dizendo?— Que o jovem Bek também nos salvou. Se não fosse por ele, não teríamos

escapado. Ele esmagou os rastejadores como se fossem de papel. Nunca vi nadaparecido.

Quentin olhou para ela.— Bek? Bek fez isso?

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Ela o estudou com cuidado.— Ele não lhe contou? Ou será que ele havia acabado de descobrir aquilo também?

Ele não parecia muito seguro sobre o que estava fazendo, isso eu lhe garanto. Mas teraquele tipo de poder e não saber nada a seu respeito... Bem, talvez seja assim mesmo.De qualquer maneira, foi isso o que aconteceu.

Ela relatou os detalhes de sua fuga, de como haviam escapado por entre as ruínas,os três elfos caçadores, Ryer Ord Star e Bek, até que os rastejadores os haviam cercado.Os outros dois elfos haviam morrido rapidamente, mas ela e a vidente foram salvasquando Bek usou sua voz para invocar a magia.

— Foi assustador — ela admitiu. Olhou fixo nos olhos de Quentin. — Ele começou acantar, um som estranho, mas que arrebentou os rastejadores, como um vento ou umaarma que cortasse através deles. Em um minuto eles estavam ali, nos matando, e nooutro eram ferro-velho. — Ela assentiu solene. — Bek nos salvou. E você não estáentendendo nada do que estou falando, está?

Quentin estava pensando: Bek possui magia? Como pode ser isso? Balançou acabeça.

— Nada.Descobriu-se pensando subitamente na origem de Bek. Bek era filho de um primo,

mas que primo? Ou será que ele era realmente parente deles? Coran Leah sempre foradiscreto quanto ao passado de Bek, mas ele era assim mesmo com informaçõesparticulares, e Quentin jamais forçara o assunto. Mas se Bek realmente possuía o uso damagia...

Mas Bek?De repente Quentin percebeu por que Walker quisera que Bek fosse com eles. Não

era por Bek ser primo de Quentin. Era porque possuía uma magia tão poderosa quanto ada espada de Leah. Bek era tão necessário para a expedição quanto Walker. Talvez maisainda. Jamais questionou por um momento que Walker não soubesse a respeito. O quequestionou foi quanto o druida sabia que ainda estava guardando para si.

— Precisamos prosseguir — aconselhou Tamis, trazendo-o de volta de seuspensamentos. — Não gosto de deixar Bek e a vidente sozinhos. Mesmo com sua magiapara protegê-lo, ele ainda não é experiente o bastante para saber contra o que sedefender.

Começaram a voltar por entre as ruínas, Tamis liderando. Quando Panax perguntouque espécie de problema haviam encontrado no caminho, ela disse que suspeitava quehouvesse rastejadores escondidos por todas as ruínas, mas eles só se mostravam emreação a determinadas coisas. Talvez fosse um sinal de algum tipo. Talvez fosse apenasquando os intrusos entrassem em áreas restritas. Ou talvez alguém ou alguma coisa osestivesse orientando. Mas não vira um deles sequer no caminho de volta.

O anão grunhiu e disse que não havia mais muitos danos que eles pudessem fazer.Walker desaparecera e a expedição estava em farrapos. Era um milagre que qualquer umdeles ainda estivesse vivo.

Mas Quentin não ouvia nada disso. Ainda estava pensando em Bek. Seu primo erainesperadamente um enigma, uma pessoa inteiramente diferente do que havia parecido.

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Quentin não tinha motivo para não acreditar no que Tamis estava dizendo. Mas o queisso significava? Se Bek tinha o uso da magia, particularmente uma magia que era tantoparte dele quanto sua voz, de onde ela viera? Devia estar em sua linhagem e, portanto,era parte de sua herança. Então, quem era sua família verdadeira? Não alguns primosdistantes de Leah, isso ele sabia. Não havia nenhum Leah que tivesse o uso daquele tipode magia, nunca houvera. Não, Bek era filho de outra pessoa. Mas de alguém que odruida conhecera. De alguém que seu pai também conhecera, pois senão Bek não teriasido levado para Coran ainda bebê.

Alguém...De repente lembrou-se de todas aquelas histórias que Bek gostava tanto de contar:

sobre os druidas e a história das raças. Os Leah eram parte dessa história, mas tambémhavia outra família que fazia parte dela. Seu nome era Ohmsford. Eles já haviam sidoíntimos dos Leah, não muito tempo atrás. Até mesmo a grande rainha dos elfos, WrenElessedil, seria aparentada dessa família, segundo os rumores. Mas não havia umOhmsford em Leah ou no Vale das Sombras ou em qualquer parte do mundo hácinqüenta anos. Não houve sequer uma menção a eles.

Mas os Ohmsford tinham magia no sangue. Ela havia surgido em dois irmãos quehaviam se juntado a Walker para lutar contra os sombrios há mais de um século. Agoraele se lembrava da história, em fragmentos apenas. Supunha-se que os irmãos tinhammagia nas vozes, exatamente como Bek. E se a família não tivesse morrido afinal decontas? E se Bek fosse um deles? Se houvesse Ohmsford vivos em qualquer lugar domundo, certamente Walker saberia. Teria feito questão de saber. Isso explicaria por queele fora tão determinado em trazer Bek.

Quentin sentiu uma suspeita estranha percorrer seu corpo. Talvez Walker estivesseatrás era de Bek o tempo todo e tivesse usado Quentin como isca para convencer ogaroto a vir.

Será que seu primo era Bek Ohmsford? Era isso que ele realmente era?O montanhês piscou para afastar o cansaço e a confusão. Não confiava em seu

raciocínio agora. Podia estar completamente fora do caminho nessa questão. Estavaapenas especulando. Estava apenas tentando fazer com que as peças se encaixassemquando não tinha sequer uma imagem clara com a qual trabalhar. Será que qualquercoisa que ele havia imaginado podia ser confiável?

Truls Rohk os havia alertado em seu primeiro encontro que não podiam confiar emum druida. Eram jogadores, ele lhes dissera. Fora quase a primeira palavra que saíra desua boca, uma clara indicação do que sentia sobre o uso que o druida podia estarfazendo deles. Jogos. Eles podiam ser peças em um tabuleiro. Era possível, foi forçado aadmitir.

Voltaram pela cidade enquanto o sol se elevava em um céu sem nuvens e o restanteda noite sumia. O ar estava pesado e parado dentro dos prédios arruinados e o calor sedesprendia da pedra e do metal em ondas. Nada se movia no silêncio. Os rastejadoreshaviam sumido mais uma vez, quase como se nunca tivessem estado lá. Tamis deu umagrande volta ao redor da praça onde havia encontrado os monstros, e logo depois domeio da manhã alcançaram a margem da floresta que beirava a cidade.

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Ela parou ali, apurando o ouvido.— Acho que ouvi alguma coisa — disse ela depois de um momento, seus olhos

cinzentos vasculhando tudo. A mão magra fez um movimento circular. — Mas não consigodizer de onde vem. Parecia uma voz.

Penetraram na floresta e começaram a abrir caminho por entre as árvores. Pássarospassavam voando por eles, pedacinhos de som e movimento em faixas brilhantes de luzdo sol, não mais ocultos. A neblina que antes cobrira as ruínas como um manto havia sedissipado e as bordas dos prédios brilhavam agudas quando desapareciam de vista.Dentro da floresta havia apenas as árvores e os arbustos, uma espessa muralhaocultando tudo ao redor, verde e macia em uma mistura de sombras e de luzes. Oscheiros familiares e bem-vindos reviveram o ânimo de Quentin e o ajudaram a pôr ocansaço de lado. Pelo menos Bek estava bem. Fosse qual fosse a história por trás de suamagia e de sua família, eles resolveriam isso tudo assim que estivessem juntosnovamente.

Haviam caminhado uma boa distância além das ruínas quando Tamis virou-se paraeles.

— A clareira fica logo adiante. Fiquem quietos.Aproximaram-se dela com cautela. Estavam na sua margem quando a rastreadora

subitamente apertou o passo, correu para dentro do espaço aberto e parou.A clareira estava vazia.— Eles se foram — ela murmurou sem acreditar.Ordenando que os outros ficassem onde estavam, rastejou devagar pelo perímetro

da clareira, às vezes ficando de quatro para ler os sinais. Quentin permaneceu paralisadoonde estava, frustrado e com raiva. Onde estava Bek? Isso era culpa da rastreadora. Elanão devia ter deixado Bek sozinho, não importava a razão ou o que ela achava que Bekpodia fazer com sua magia ou outra coisa qualquer. Mas forçou a raiva a desaparecer,percebendo rapidamente que ela estava fora de lugar. Tamis havia feito o que eramelhor e não havia por que chamar a sua atenção.

Finalmente ela voltou para eles, o rosto sombrio, mas os olhos cinzentos tranqüilos.— Não sei dizer o que aconteceu com certeza — ela anunciou. — Existem rastros por

todo lugar, e os últimos obscureceram os anteriores. Estes pertencem a mwellrets. Houveuma espécie de luta, mas parece que ninguém foi ferido, porque não há vestígios desangue.

Quentin soltou o ar com força.— Então onde estão Bek e Ryer Ord Star? O que aconteceu com eles?Tamis balançou a cabeça.— Disse a Bek que se escondesse caso alguém viesse. Deixei que ele tomasse a

decisão, mas ele sabia ficar de guarda. Acho que provavelmente ele fez conforme oinstruí e, quando viu os mwellrets, fugiu daqui. Você o conhece melhor do que eu. Issoparece algo que ele faria?

O montanhês assentiu.— Ele tem anos de experiência em caçadas nas Highlands. Sabe como se esconder

quando necessário. Acho que ele não seria apanhado desprevenido.

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— Tudo bem — disse ela. — Então, eis aqui o resto da história. Os mwellretspassaram algum tempo aqui fazendo alguma coisa e depois prosseguiram na direção dacidade, e não de volta pelo caminho pelo qual vieram. Se tivessem levado Bek e avidente como prisioneiros, provavelmente os teriam mandado para a aeronave sobvigilância. Não há nenhum rastro levando naquela direção. Alguém pode ter partido nadireção da qual viemos, do interior, mas não tenho certeza. Os sinais são muito fracos edifíceis de ler. De qualquer maneira, os sinais dos mwellrets são claros. Eles nãocontinuam no mesmo caminho; há uma mudança de direção. Da forma como váriosconjuntos de pegadas começam e retornam, e em seguida todos se movem juntos, embando, eu diria que estavam rastreando alguém.

— Bek — disse Quentin na hora.— Ou a garota — Panax sugeriu baixinho.— Ele não deixaria — disse Quentin. — Não Bek. Ele a teria levado consigo. O que

poderia explicar por que os mwellrets podiam rastreá-lo. Sem ela não sei seconseguiriam. Bek é bom em esconder seus rastros.

Tamis assentiu, o olhar firme e pensativo.— Acho que devemos ir atrás deles. O que diz, montanhês?— Vamos atrás deles — disse ele na hora.Ela olhou para Panax. O anão deu de ombros.— Não faz sentido ir em outra direção. A Jerle Shannara partiu para a costa. Quem

quer que tenha sobrado está lá naquelas ruínas. Não quero deixá-los para os rets e paraa bruxa.

Quentin havia se esquecido da bruxa Ilse. Se havia mwellret em terra, era porque aBlack Moclips havia encontrado seu caminho por entre os pilares de gelo e entrado nabaía. Isto significava que a bruxa Ilse estava bem perto. Subitamente percebeu comoseria perigoso voltar para as ruínas. Estavam cansados e haviam lutado e corrido porhoras. Não levariam muito tempo para cometer um erro, e não precisaria ser um erromuito grande para acabar com eles.

Mas ele não ia deixar Bek. Já havia tomado sua decisão a respeito.Kian e Wye estavam falando com Tamis. Queriam voltar para as ruínas. Queriam

uma chance de encontrar Ard Patrinell e os outros. Sabiam que seria perigoso, masconcordavam com ela. Se alguém ainda estivesse vivo ali, queriam dar a ajuda quepudessem.

Enquanto os elfos conferenciavam, Panax se aproximou de Quentin e ficou ao seulado.

— Espero que esteja em condições de nos salvar novamente — disse ele. — Porqueprovavelmente você vai precisar.

Ele sorriu forçado ao dizer isso, mas não havia humor em sua voz.

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7

Ahren Elessedil estava agachado no canto mais escuro de um armazém abandonado

muito além do perímetro da armadilha mortal da qual escapara e tentou pensar no quedeveria fazer. O armazém era um abrigo cavernoso com buracos em três de suas quatroparedes. Tinha um teto que estava em sua maior parte intacto, portas enferrujadas queiam até o alto em dois dos lados e que haviam sido abertas sobre rodízios, muito maisescombros do que espaço. Já estava ali havia muito tempo, tão apertado contra asparedes que começara a se sentir parte delas. Estava ali tempo suficiente paramemorizar cada passagem, planejar cada contingência e repensar cada detalhe dolorosodo que o havia levado até aquele ponto. Lá fora o sol estava alto e lançava sua luz sobrea cidade destruída em um amplo leque que caçava as sombras da noite de volta para afloresta que a cercava. Os sons de morte e dos moribundos há muito haviamdesaparecido, os gritos de guerra, o clangor de armas contra metal e os gemidosdesesperados de vidas humanas que agonizavam. Tentou ver e ouvir qualquer sinal dealgum deles, mas só havia silêncio.

Já era hora de ele sair dali, de se levantar e andar para longe — correr se fossepreciso — enquanto havia chance. Tinha de fazer alguma coisa além de se esconderamedrontado em um canto e reviver na mente as lembranças horríveis do que passara.

Mas não conseguia se mover. Não conseguia fazer nada a não ser tentar desaparecerdentro do metal e da pedra.

Dizer que ele estava apavorado seria uma redundância grosseira. Estava de umamaneira que jamais achara ser possível, quase catatônico. Seu pavor o envergonhava aponto de não mais se reconhecer na imagem que sempre traçara de si, de quem ou oque era. Estava, provavelmente, longe de toda a redenção.

Fechou os olhos para afastar o que estava sentindo e pensou mais uma vez no quehavia acontecido, procurando uma pista que o ajudasse a entender melhor. Viu seusamigos e companheiros se espalharem pelo labirinto de paredes e partições daquelapraça aparentemente vazia: seu grupo à direita, o de Quentin Leah à esquerda e o deBek no centro. Os elfos caçadores protegiam todos e não parecia haver razão para pensarque não conseguiriam superar o que quer que pudesse confrontá-los. Mais adiante,Walker penetrava cada vez mais no interior do labirinto. O sol poente lançava sombraspara todo lugar, mas não havia movimento e som que sugerissem perigo. Não havia umapista sequer do que estava para acontecer.

Então os fios de fogo apareceram, tentando cortar o druida primeiro, e depoisaqueles que tentaram alcançá-lo direcionando os disparos, em seguida, àqueles que nãohaviam avançado. Como Ard Patrinell, Joad Rish e os três elfos caçadores que osacompanhavam, Ahren se abaixou atrás de uma parede para não ser queimado. A praça

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ficou cheia de fumaça misturada com a neblina, escurecendo tudo em instantes. Ele ouviuos gritos do grupo de Quentin, o inesperado clangor e lixar de peças metálicas e os gritosque vinham do outro lado. Agachado atrás de sua parede, cheio de horror e pânico,percebeu rapidamente como as coisas haviam ficado ruins.

Quando os rastejadores apareceram atrás dele, ele já estava pronto para disparar.Não conseguiu explicar o que havia acontecido, apenas que a coragem e a determinaçãoque o haviam preenchido e sustentado antes haviam se escoado em uma fração desegundo. Os rastejadores pareciam se materializar do nada, feras de metal assomandoimensas por entre a neblina. Pinças afiadas como navalhas brotavam protuberantes doscorpos metálicos, dando-lhe uma clara indicação do destino que o aguardava. Resolveuficar onde estava, talvez mais por incapacidade de se mover do que por outra coisa, suaespada levantada defensivamente, ainda que fosse um gesto fútil. Os rastejadoresatacaram rápido, ele recuou para fugir, até chegar à parede, em um canto. Para seuespanto, passaram direto por ele, escolhendo outros adversários, caindo sobre seuscompanheiros. Um elfo caçador — não soube dizer qual — caiu quase na hora, o corpoinerte e ensangüentado. Ard Patrinell pulou para a linha de frente dos defensores,afastando os rastejadores sozinho, um guerreiro respondendo a uma necessidade, umapequena muralha contra uma onda de ataque. Por um momento ele suportou a carga,mas depois os rastejadores o cercaram e ele desapareceu.

Então Ahren deixou seu esconderijo, desesperado para encontrar seu amigo ementor, esquecendo por um instante o medo, colocando o pânico delado. Um dos fios defogo encontrou Joad Rish ajoelhado perto do primeiro elfo que havia caído, tentandoarrastá-lo a um lugar seguro. Joad Rish estava olhando para cima quando isso aconteceu,olhando para Ahren, como se procurasse sua ajuda. O fio de fogo o apanhou no rosto esua cabeça explodiu em uma chuva vermelha. Por um instante ele permaneceu ondeestava, ajoelhado ao lado do elfo caçador caído, as mãos ainda segurando os braços dooutro, voltado na direção de Ahren. Por fim, lentamente, de forma quase lânguida,desabou sobre o chão de metal.

Foi o bastante. Ahren perdeu o controle sobre si mesmo. Gritou, recuou, jogou fora aespada e correu. Não parou para pensar no que estava fazendo e nem sequer para ondeestava indo. Sabia que precisava escapar o mais rápido que pudesse e para o mais longepossível. A imagem sem cabeça de Joad Rish estava bem na sua frente, queimada no aresfumaçado, gravada a fogo em seus olhos e em sua mente. Não conseguia fazê-ladesaparecer, não conseguia evitar sua presença, não conseguia fazer nada a não serfugir dela, ainda que fugir não adiantasse. Esqueceu os outros da companhia. Esqueceu oque o havia levado até aquele matadouro. Esqueceu seu treinamento e suas promessaspara si mesmo de ficar ao lado dos outros. Esqueceu tudo que algum dia significara algopara ele.

Não tinha idéia de por quanto tempo havia corrido nem de como encontrara ocaminho até o armazém vazio. Ainda ouviu os gritos dos outros por muito tempo depoisdisso, mesmo estando ali. Ouviu os sons da batalha e o leve som de lixa das pernasmetálicas dos rastejadores ao se afastarem. Sentiu o cheiro da fumaça de metalqueimado e o fedor de carne tostada. Curvado em uma bola, com o rosto enterrado no

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peito entre os joelhos, ele chorou.Depois de algum tempo, recuperou a presença de espírito o suficiente para se

perguntar se algum dos rastejadores o havia seguido. Forçou-se a erguer a cabeça,enxugar as lágrimas e olhar ao redor. Estava sozinho. Manteve uma vigilância cuidadosadepois disso, ainda espremido no mesmo canto, ainda enrolado em uma bola de braços epernas, assombrado pela imagem de Joad Rish em seus últimos momentos.

Não deixe isso acontecer comigo, ele não parava de repetir em sua mente, como seassim pudesse de algum modo salvar-se.

Mas agora ele sabia que precisava fazer mais do que ficar encolhido em seu canto eesperar nunca ser encontrado. Precisava tentar sair dali. Já se passara tempo suficiente eele pensou que poderia ter uma chance. O ataque terminara há muito tempo. Nãohouvera mais som nem movimento em lugar algum em todo aquele tempo. A fumaçahavia diminuído, e o sol, nascido. O dia estava límpido e claro do lado de fora, e ele eracapaz de ver qualquer coisa que o ameaçasse. Levaria várias horas para sair da cidade emais tempo ainda para retraçar seus passos até a baía onde poderia aguardar o retornoda Jerle Shannara. Achava que podia conseguir.

Melhor dizendo, sabia que deveria.Foi necessário um longo tempo, mas ele finalmente conseguiu se desenrolar e se

levantar. Ficou imóvel nas sombras de seu canto e vasculhou o armazém de ponta aponta à procura de sinais de vida. Quando percebeu, satisfeito, que era seguro fazer isso,dirigiu-se para a abertura mais próxima, um grande buraco na parede oeste que ofereciaa rota mais direta para sair da cidade. Estava com muita sede, ligeiramente zonzo e suasmãos tremiam. Para se acalmar, estendeu a mão para segurar a pedra fênix, lembrando-se subitamente de que ela estava ali, pendurada ao seu pescoço. Não sabia sefuncionaria caso ele fosse ameaçado, mas ficou mais tranqüilo ao saber que tinha algo aque poderia recorrer, mesmo que não tivesse certeza quanto a sua utilidade.

Perguntou-se, melancolicamente, o que havia acontecido a Bek. Seu amigo Bek, quetanto fizera para incentivá-lo e apoiá-lo em sua viagem desde Arborlon. Estaria mortojunto com todos os outros? Será que algum deles ainda estava vivo? Sabia que deveriavoltar e descobrir. Também sabia que não conseguiria.

Bravo príncipe dos elfos! Admoestou a si mesmo com fúria e tristeza. Seu irmãotinha razão a seu respeito!

Alcançou a abertura e saiu para a luz do dia. As ruínas se estendiam em todas asdireções tornado tudo indiferenciado, tudo completamente vazio. Esperou um momentopara ver se alguém apareceria, se havia algo a ser ouvido. Mas a cidade parecia vazia esem vida, uma mistura de pedra, metal, arbustos e ervas daninhas. Nem mesmo umpássaro voava no céu azul sem nuvens.

Começou a andar, no começo lentamente, quase tropeçando, tentando não fazernenhum ruído, ainda à beira do pânico, lutando para se controlar. Não tinha armas, a nãoser uma faca longa enfiada na cintura e a pedra fênix. Se o atacassem, sua única defesaverdadeira seria correr. Saber que isso era tudo em que ele poderia confiar não era muitoreconfortante, mas não podia fazer nada a respeito. Queria ter sua espada de volta,queria não tê-la jogado fora ao fugir. Mas também queria muitas outras coisas que não

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podiam acontecer. O instinto fazia com que ele se movesse quando sua consciênciamurmurava que ele não merecia sequer estar vivo.

Caminhara apenas alguns passos quando as lágrimas voltaram a encher seus olhos.Como ficara orgulhoso de si ao ser escolhido para seguir com a expedição. Como estiveracerto de que ela lhe daria a chance de que precisava para provar sua coragem. Umpríncipe do reino, destinado talvez a ser um rei: tudo isso ficaria muito claro na jornada.Até mesmo Ard Patrinell havia acreditado nisso e o ensinara a crer nisso enquanto lhemostrava como sobreviver àqueles que não acreditavam. Mas o que fizera por seu amigoe mentor quando o outro mais precisara? Fugira como um covarde, fugira tomado pelopânico e pelo desespero, abandonara os amigos, seus princípios e todas as suasesperanças pelo que poderia acontecer.

Você é desprezível!Continuou andando, enxugando as lágrimas dos olhos, engolindo os soluços,

pensando que agora deveria ter coragem e ganhar um pouco que fosse de amor-próprio.Estava vivo quando outros não estavam e deveria fazer algo com esse presente. Nãosabia como faria isso ou por que isso era importante após tudo o que acontecera, massabia que deveria pelo menos tentar.

O sol incidia direto sobre ele, e logo estava suando largamente. Ficou piscando muitodevido à claridade do dia e passou para a sombra, aproximando-se de paredes protetoraspara conseguir um pouco mais de frescor. Achava que estava seguindo na direção certa,mas não tinha certeza. Não via nada que parecesse familiar — ou talvez pensasse assimporque tudo parecia igual. Pelo menos não havia rastejadores por perto. No rastro de suapassagem, nada se moveu.

Então, súbita e inesperadamente, avistou alguma coisa se mover. Captou apenas umvislumbre, um relance de movimento que, em seguida, desapareceu. Recuou para assombras e ficou imóvel, esperando para ver se avistaria aquilo novamente. E avistou,segundos depois, outro vislumbre, mas o suficiente para lhe dizer mais. Era humano,magro e envolto em um manto, deslizando ao longo das paredes como ele próprio estavafazendo, um pouco ao lado de onde ele se encontrava. Ficou pensando no que fazer. Seuimpulso era de fugir ou se esconder, qualquer coisa para evitar um encontro. Mas entãopercebeu que poderia ser um membro da companhia, alguém tão perdido quanto ele eprocurando uma maneira de sair do pesadelo que ambos compartilhavam. Deixou a outrapessoa chegar mais perto, tentando reconhecer quem era, quase sem respirar, casoestivesse cometendo um erro.

Então a outra pessoa passou por um raio de luz do sol e ele viu seu rosto comclareza.

— Ryer Ord Star! — chamou-a, mantendo a voz baixa e contida, ainda preocupadocom as coisas que poderiam lhe estar caçando.

Ela se virou em sua direção instantaneamente, hesitou, viu-o em pé nas sombras efoi até ele. Ficou surpreso ao ver como ela estava calma, seu rosto composto e seusolhos violeta tranqüilos. Ela sempre havia parecido um tanto etérea, mas então elaparecia também estranhamente distante... como se estivesse vendo algo além dele, umoutro lugar, como se em sua mente ela já estivesse lá.

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Ela segurou a mão de Ahren e prendeu-a entre as suas.— Príncipe dos elfos, você está vivo — ela murmurou. Havia um verdadeiro alívio em

sua voz e ele ficou envergonhado em saber que ela pensava melhor a seu respeito doque ele merecia. — Não deveria estar aqui sozinho — ela continuou preocupada,apertando sua mão com força. — É muito perigoso. Onde estão os outros?

Ele respirou rápido para se conter.— Mortos, eu acho. Não tenho certeza.Ela olhou ao redor rapidamente, os longos cabelos prateados tremeluzindo em ondas

brilhantes.— Existem mwellrets naquela direção, uma grande companhia deles. — Apontou

para a direção de onde viera. — Acho que eles podem estar me seguindo.— Mwellrets? — ele repetiu confuso.— Da Black Moclips. Eles vieram até aqui para nos caçar, todos os que sobreviveram.

A bruxa Ilse veio com eles, mas ela se foi agora. Ela nos encontrou em uma clareira ondea rastreadora dos elfos nos deixou...

— Quer dizer Tamis? — ele interrompeu animado. — Tamis está com vocês?— Estava, mas saiu para buscar ajuda. Bek também estava comigo, mas quando a

bruxa Ilse nos encontrou, houve um confronto entre eles. Não sei ao certo o queaconteceu, mas Bek desapareceu e ela foi atrás. Na confusão eu fugi, mas os mwellretsjá sentiram minha falta a esta altura e devem estar me procurando. Foi o que a bruxaIlse mandou que fizessem: encontrar-nos e, se ainda vivos, fazer de nós prisioneiros,levando-nos para a Black Moclips até que ela volte.

Ahren ficou olhando para ela. Aceitando que a bruxa Ilse de algum modo tivesseconseguido passar pelo Squirm e descido o canal até a enseada, que história era essa deum confronto com Bek? Por que ela o estaria caçando?

— Psst! — ela sinalizou em alerta, apertando sua mão mais uma vez. — Precisamosir agora! Rápido! Eles estão chegando!

Ela o puxou de seu esconderijo, de volta pelo caminho pelo qual acabara de vir, e elepuxou de volta com força.

— Não, espere, não vou voltar para lá!— Você precisa! Eles estão vasculhando todas as ruínas! Vão encontrá-lo!— Mas não posso! — exclamou em desespero. — Não posso!Ela parou de puxar sua mão e soltou-a.— Faça o que quiser, príncipe dos elfos. Mas se ficar aqui eles o matarão. Esconder-

se não irá ajudar. Mwellrets podem sentir sua presença melhor do que a maioria dascriaturas, e eles o encontrarão. — Ela se aproximou dele. Seus olhos violeta eram firmese perscrutadores. — Venha comigo.

Ele não tinha certeza do que o fizera decidir segui-la, mas assim o fez, abandonouseu abrigo e correu seguindo-a. Tornou a olhar para trás diversas vezes, sem nada ver,mas seus instintos lhe disseram que ela dizia a verdade.

— E quanto a Bek? — perguntou depois de alguns instantes, mantendo a voz baixa ea cabeça abaixada na direção dela enquanto deslizavam por entre as ruínas. — Ele estábem? Você disse que a bruxa Ilse o está rastreando, que ela foi atrás dele por conta

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própria?A vidente assentiu.— Bek não foi ferido. Sua magia e coragem o protegem. Talvez ela ache difícil

superar ambas as coisas.— A magia dele? Que magia? — O elfo apressou o passo para acompanhá-la. —

Espere um minuto. Está dizendo que ela o está rastreando porque ele possui algum tipode magia?

Ryer Ord Star agarrou seu braço e puxou-o para perto.— Ela é irmã dele, príncipe dos elfos. — Ela viu o choque nos olhos dele e apertou

seu braço ainda mais. — Walker contou isso para Bek logo antes de chegarmos, mas Bekguardou isso para si. Quando ela apareceu na clareira, ele lhe contou quem era. A bruxaIlse não acreditou nele. Não pode acreditar. Esse foi o motivo do confronto entre ambos.Agora ela o caça porque não pode tirar essa verdade da cabeça, mesmo que não aceite.Ela acha que, se puder confrontá-lo mais uma vez, ele admitirá que lhe mentiu. Ou talvezela perceba que existe algo de verdadeiro no que ele disse. Agora ande mais depressa!

Avançaram mais rápido, voltando por entre os prédios e os escombros, de volta paraa armadilha da qual tiveram sorte de escapar uma vez e por onde iriam se aventurarnovamente. A mente de Ahren Elessedil rodopiava com as revelações sobre Bek, masseus pensamentos estavam todos bagunçados e confusos pelo seu medo. Ele sabia que,voltando, estava atraindo o destino de uma maneira que lamentaria. Não achava de fatoque poderia sobreviver a outro encontro com os rastejadores, independentemente do queRyer Ord Star acreditava. Mas não podia deixar aquela garota tão frágil voltar sozinha.Deixando-a para trás ele carregaria consigo a lembrança de que fracassara com ela assimcomo fracassara com Ard Patrinell e seus elfos caçadores. Continuou pensando que podiaencontrar um jeito de fazer com que ela reconsiderasse, mudasse de idéia e desse meia-volta. Mas ela era teimosa e determinada; naquele momento, pelo menos, ele teria defazer o que ela queria.

Levaram muito menos tempo do que ele havia esperado para chegar à praça da qualhaviam rugido horas antes. Estava silenciosa e vazia na luz brilhante do meio-dia, seulabirinto de paredes no mesmo lugar, as folhas de metal cozinhando no calor. Não havianinguém em parte alguma. Não havia sinais de que uma batalha havia acontecido,nenhum corpo ou traço de sangue, nenhuma marca dos fios de fogo ou pedaço de metalde um dos rastejadores. Era como se nada tivesse acontecido.

— Como pode ser isso? — ele murmurou para ela chocado.Ela balançou a cabeça devagar, ambos olhando para o espaço limpo e vazio.— Não sei.Ele olhou para trás. Não havia sinal dos mwellrets.— O que fazemos agora? — perguntou.Ela olhou para ele por um momento e pegou sua mão mais uma vez.— Venha comigo. Não fale, não faça nada, a não ser o que eu fizer. Não corra, seja o

que for que aconteça.Ainda o segurando firme pela mão, ela levantou os ombros magros e entrou no

labirinto.

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O choque dele foi completo, e talvez por isso ele a seguiu sem protesto. Lutandocontra um surto de medo e horror que sufocava sua garganta, olhando para a esquerda epara a direita à procura de rastejadores, a pele toda arrepiada enquanto esperava que osfios de fogo o queimassem. Ela penetrou apenas alguns metros dentro do quadradomortal antes de se virar para contornar suas bordas, andando cuidadosamente sobre ochão de metal, ficando longe das sombras e bem na luz do sol. Moveram-se como sefossem um só, sem fazer ruído, nenhum movimento desnecessário, sem falar, quase nãorespirando. Ahren achava que já era um cadáver, mas em um ato de fé que osurpreendeu completamente, entregou-se à vidente.

O que o surpreendeu ainda mais foi que nada aconteceu. Caminharam desde operímetro do labirinto até percorrerem um quarto da distância de seu interior, quaseparalelos à parede norte da torre negra que dominava o seu centro. Ao chegarem lá, avidente o levou até o lado de fora novamente, para um esconderijo na sombra, formadopelo que restava das paredes e do telhado de um prédio desmoronado próximo da praça.Sobre uma pilha de escombros perto de uma fenda estreita em uma parede viam apaisagem pela qual haviam passado. Então se agacharam e esperaram.

— Por que não fomos atacados? — ele perguntou num sussurro, ainda cauteloso,chegando mais perto da moça magra, seus lábios roçando nos cabelos dela.

— Porque aquilo que protege a torre ataca quando percebe uma ameaça à suasegurança. — Seus olhos violeta brilharam quando ela se virou para olhar para ele. —Walker era uma ameaça, por isso foi atacado primeiro e nós depois. Se tivéssemoscontornado a praça e a torre, teríamos ficado a salvo.

Ele a encarou.— Como você sabe disso?Ela virou o rosto pálido e juvenil para o outro lado.— Eu sonhei — respondeu baixinho. — Em uma visão, em minha busca por Walker.Ele não disse nada por um longo tempo, remoendo as palavras dela enquanto

observava as ruínas em busca de sinais de movimento. Onde estavam os mwellrets? Porque não haviam aparecido?

— Acha que Tamis encontrou algum dos outros? — perguntou por fim. — Você viu oque aconteceu com eles depois que fomos atacados? E quanto ao grupo de QuentinLeah?

Ela balançou a cabeça sem dizer palavra. Seus olhos permaneciam direcionados paralonge dele, na direção da cidade. Ele a estudou com cuidado.

— Estão todos mortos, não estão? Você também sonhou com isso.— Walker Boh não — ela disse baixinho.Antes que ele pudesse pressioná-la mais, avistou os mwellrets movendo-se por entre

as ruínas, formas escuras esgueirando-se ao longo de paredes e por entre espaçosvazios, pouco mais do que uma extensão das sombras às quais eles se agarravam. RyerOrd Star segurou de novo seu braço e pressionou seu corpo contra o dele em sinal dealerta, ou talvez para reconfortá-lo. Ele ficou quieto, sua compostura anterior recuperada,pelo menos em parte, por ter sobrevivido ao ataque e pelo retorno. Não se sentia nemum pouco invencível, mas também não se sentia mais tão vulnerável. Em uma

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caminhada vertiginosa com a vidente, atravessando novamente o labirinto para voltar aoesconderijo, algo em Ahren, aos poucos, se restituía. Antes, durante o ataque que mataraseus amigos, ele havia pensado que qualquer tipo de sobrevivência era, na melhor dashipóteses, temporária e imerecida. Agora, acreditava que poderia estar vivo por algummotivo, algo que poderia fazer.

Ryer Ord Star aproximou-se dele, seus rostos quase se tocando.— Não se preocupe — ela murmurou, como se para mantê-lo calmo. — Eles não nos

encontrarão.Os mwellrets serpenteavam por entre a cidade em número cada vez maior. Mais de

vinte, aparecendo e desaparecendo como espectros, formas cobertas por mantosfundindo-se com as sombras enquanto avançavam. Quando alcançaram o labirinto,ignorando seus perigos, não reduziram o passo. Usando as paredes como proteção, damesma forma que os membros da companhia de Walker haviam feito, entraram napraça. Alguns sozinhos, outros em duplas, agachados e sem rosto dentro de seus mantose capuzes, corpos reptilianos avançando cautelosos. Penetraram cada vez mais paradentro do labirinto e nada acontecia.

Ahren olhou rapidamente para Ryer Ord Star, a testa franzida de preocupação. Comohaviam conseguido entrar até aquele ponto? O olhar da vidente, calmo e imperturbado,permaneceu fixo no labirinto e nos mwellrets. Seus dedos apertaram o braço do príncipedos elfos.

Subitamente o labirinto explodiu em um festival de fios de fogo, linhas vermelhasmortais cruzando tudo ao mesmo tempo, apanhando os mwellrets em uma teia dedestruição. Uma estranha mistura de sibilos e gritos elevou-se das criaturas aprisionadasenquanto procuravam fugir dos fios de fogo e fracassavam. Um punhado deles foi feitoem fatias nos primeiros segundos, os mantos pegando fogo enquanto eles se viravamnum esforço inútil de fuga, corpos queimando, sendo cauterizados, caindo aos montessem vida. Os homens e mulheres da Jerle Shannara tinham ido em socorro a Walker, masos mwellrets simplesmente abandonaram seus companheiros atingidos, fugindo de voltapelo labirinto, mantos negros em movimentos súbitos. Foram embora tão rápido que emsegundos desapareceram, como se engolidos pela cidade. Ahren e Ryer Ord Starpermaneceram onde estavam, imóveis, os olhos vasculhando as ruínas em todas asdireções. Talvez meia dúzia dos mwellrets estivessem mortos abaixo deles, suas formasescuras visíveis dentro do labirinto de paredes. Daqueles que haviam fugido não haviasinal. Os fios de fogo haviam cessado seu rastro mortal, deixando trilhas de fumaça quesurgiam de sulcos cortados na superfície de metal das paredes e do chão. Osrastejadores não haviam aparecido.

Ryer Ord Star soltou o pulso de Ahren.— Eles não voltarão tão cedo — disse ela suavemente.Ele assentiu concordando. Não depois disso, de fato não voltariam. Esperariam agora

que a bruxa Ilse retornasse.— E o que fazemos agora? — ele perguntou.Ela se levantou sem olhar para ele, voltando os olhos na direção da torre negra no

centro do labirinto.

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— Vamos começar a procurar por Walker.

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8

Ahren Elessedil encarou Ryer Ord Star com grande incredulidade. Que loucura ela

estava falando? Procurar por Walker? Ela havia dito aquilo como se fosse a sugestão maisóbvia e racional do mundo. Mas Ahren achava que não era nenhuma das duas coisas. Eachava que ela havia perdido a cabeça.

— O que é que você está dizendo? — foi tudo o que conseguiu dizer.As palavras saíram em uma espécie de sibilar ameaçador e ela se voltou para

encará-lo na hora.— Preciso encontrá-lo, príncipe dos elfos — disse ela, sua própria voz

enlouquecedoramente calma e confiante. — Era para onde eu estava indo quando vocême encontrou.

— Mas você não sabe onde ele está! — Ahren exclamou apavorado. — Você nãosabe sequer onde procurá-lo!

Ela tornou a se ajoelhar, olhando para ele, os olhos violeta perfurando-o com umainconfundível determinação e certeza. Ela parecia tão jovem, tão impossivelmentevulnerável, que a idéia de ela realizar uma tarefa tão perigosa parecia ao mesmo temporidícula e tola.

— Você pode não ter visto o que aconteceu a ele durante o ataque — ela começoubaixinho. — Mas eu vi. Corri para as ruínas atrás dele, sabendo que estava em perigo,não só por causa dos rastejadores e dos fios de fogo. As visões alertaram-me sobre esselugar e eu compreendi o que ameaçava Walker melhor do que qualquer um de vocês. Fuiatingida por um dos fios e impedida de alcançá-lo, mas vi o que aconteceu. Eleprosseguiu sozinho, passando por fios de fogo e rastejadores, pela fumaça e por toda aconfusão. Alcançou a torre no centro do labirinto, encontrou uma porta e desapareceudentro dela. Não tornou a sair. Ainda está lá dentro, em algum lugar.

Ahren sentiu sua exasperação ficar cada vez maior.— Talvez. Talvez você tenha visto tudo o que diz. Talvez Walker esteja dentro dessa

torre. Mas como vamos chegar até ele? Fios de fogo e rastejadores atacam qualquer umque tentar chegar perto. Não há como passar por aquelas coisas! Você viu o queaconteceu conosco e também com os mwellrets! Além disso, mesmo que vocêconseguisse percorrer todo o caminho até aquela torre, como vai entrar? Você não temos poderes de um druida. Não me diga que a porta simplesmente irá se abrir para você. Ese abrisse, também não seria bom, seria? Por que é que você está pensando em fazeralgo tão... tão ridículo?

Ele estava quase gritando, e sua respiração estava entrecortada quando parou defalar e sentou-se sobre os calcanhares.

— Você não pode fazer isso! — Uma onda de medo percorreu-lhe o corpo quando ele

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a imaginou tentando. — Eu não vou ajudar — terminou apressado.Ela lhe deu um olhar tão paciente e compreensivo que ele quis sacudi-la. Ela não

ouvira uma palavra do que ele havia dito, ou se ouvira, não prestara a menor atenção.Mas então ela o surpreendeu dizendo:— Tudo o que você diz é verdade, Ahren Elessedil.Ele a encarou, sem saber o que dizer.— Então você vai desistir dessa idéia, não vai? Venha comigo em vez disso, vamos

voltar para a costa. Podemos esperar a Jerle Shannara lá. Podemos nos esconder até elaretornar. Talvez possamos encontrar Tamis novamente, talvez um ou dois que possamter escapado. Não podem estar todos mortos, podem? E Bek? Ele não irá tentar encontraro caminho de volta para aquela clareira?

Ela jogou os cabelos compridos para trás e cruzou as mãos sobre o colo, enfiando-asentre as pernas como uma garotinha. Seus olhos violeta não tinham fundo, estavamrepletos de dor enquanto ela os fixava sobre Ahren. Subitamente, ele teve certeza deque, embora ela não fosse mais velha do que ele, sua experiência com as vicissitudes davida era muito maior do que a dele.

— Deixe-me contar a você uma coisa sobre mim e Walker — disse ela baixinho. —Uma coisa que eu não disse a ninguém. Quando partimos da Ilha Shatterstone e eleestava doente com o veneno, sentei-me com ele em sua cabine. Bek também estava lá.Joad Rish estava fazendo tudo o que sabia para ajudar Walker, mas nada estavafuncionando. Após vários dias, ficou claro para todos nós que Walker estava morrendo. Oveneno havia penetrado muito fundo e estava repleto da magia daquele lugar e doespírito que o protegia. A própria magia de Walker não podia lhe dar proteção suficientecontra o que estava acontecendo. Ele não podia curar a si mesmo sem ajuda.

Ela sorriu.— Então, utilizei minhas próprias habilidades para curá-lo. Sou uma vidente, mas

também sou uma empata. Meus poderes empáticos me permitem absorver a dor dosoutros para que eles possam melhor se curar. É um esforço que suga e debilita, mas eusabia que não havia outra escolha. Saiba disto, príncipe dos elfos. Eu teria morrido porele com prazer. Ele é especial para mim de uma maneira da qual você nada sabe e eunão quero discutir. O que importa é que, ao curá-lo, formei um vínculo com seusubconsciente. Acho que isso foi intencional da parte dele, mas não tenho certeza. Uni-me a ele através do elo criado pela minha disposição de dar algo de minha vida parasalvar a dele. Isso acontece ocasionalmente com empatas, embora normalmente sedesvaneça depois que a cura termina. Não foi o que aconteceu. Isso continuou. E aindacontinua.

Ele a estudou atentamente no silêncio que se seguiu.— Está dizendo que Walker está se comunicando com você? Que pode ouvi-lo falar?— De certa forma, sim. Não exatamente palavras. E mais uma presença que vai e

vem, e sugere coisas. Ele está na minha mente, sussurrando para mim que está vivo ebem. Posso sentir isso. Posso senti-lo tentando me alcançar. É o vínculo quecompartilhamos, ele e eu, forjado a partir de uma mistura de nossas vidas, de nossamagia, da experiência compartilhada quando ele estava morrendo e eu o salvei.

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Fez uma pausa.— Lembra-se de quando ele foi aprisionado em Shatterstone e Bek nos avisou que

precisava de ajuda? Walker o chamou porque Bek compartilha a magia dele, e ele podealcançar Bek quando for necessário. Uma ferramenta do druida. Mas eu o ouvi também.Walker não me chamou, mas eu também ouvi sua voz em minha mente. Porque estamosligados, príncipe dos elfos. Agora eu ouço sua voz, só que desta vez ela é para mim epara mais ninguém. Ele fala para mim através de imagens, fragmentos do que estávivenciando. Ele está em apuros, aprisionado no subterrâneo, embaixo das ruínas,embaixo da torre. Ele está no fundo, em um labirinto de catacumbas que fica abaixodessas cidades. Castledown não é aqui em cima, príncipe dos elfos. Ela fica lá embaixo.

— Então o tesouro e o que quer que o proteja...— Também estão lá, um deles escondido, o outro a tudo vigiando, controlando o que

acontece na superfície assim como no subterrâneo. Walker me diz isto por suas imagens,em meus sonhos e visões, mas também em meu subconsciente. Não me conta tudo, nãoacha seguro fazê-lo. Mas me diz o que pode, o que deve. Ele está em apuros, se agarra amim como poderia se agarrar em um mastro quebrado num navio naufragado. Estáperdido e à deriva, e eu sou sua tábua de salvação para que possa voltar.

Ela esperou sua resposta. Ele não tinha nenhuma a dar. Não tinha certeza seacreditava nisso tudo ou não. Ela poderia estar confusa, desorientada ou delirante peloseventos da tarde anterior. Parecia lúcida e segura, mas nem sempre era possível dizerqual o estado de espírito de uma pessoa com base apenas na sua aparência e nas suaspalavras.

— Ele está pedindo que você vá até ele? — disse finalmente.Subitamente ela pareceu confusa, como se a pergunta tivesse apresentado um novo

dilema.— Não — ela respondeu depois de um momento. — Ele se agarra a mim sem revelar

que estou aqui. É um contato que não pede nada de mim. — Seus olhos se encheram delágrimas, que desceram por seu rosto. — Mas eu irei até ele assim mesmo. E irei porquedevo. Não há mais ninguém, ninguém restou a não ser eu. E você, se vier comigo.

Ele não faria uma coisa daquelas, pensou Ahren, certo de que era suicídio voltar parao labirinto sob quaisquer circunstâncias. Estava apavorado com essa possibilidade e cheiode medo por suas lembranças daquele encontro. Não podia evitar. Ainda estava lutandopara aceitar seu fracasso na luta, o fato de ter abandonado seus amigos, e a vergonhaque sentia como resultado de ambas as coisas. Mas até mesmo seu desejo crescente dese redimir não era o bastante para fazer com que ele voltasse para dentro daquelelabirinto. O melhor que poderia fazer para Ryer Ord Star era convencê-la de que estavacometendo um erro.

— Como irá chegar até aquela torre? — ele perguntou, procurando uma forma dealcançá-la.

Ela balançou a cabeça.— Não sei.— Se você entrar, como irá encontrar Walker? Se ele não está invocando você, se

não a está chamando, como irá rastreá-lo?

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— Não sei.— Toda esta cidade, as ruínas e todo o resto, é tudo feito de pedra e de metal. Não

há rastros a seguir. Olhe para o tamanho dela. Mesmo que ela seja apenas metade distono subterrâneo, serão necessárias semanas, talvez até meses, para vasculhar tudo.Como irá saber onde procurar?

Ela estava triste, mas seus lábios se fecharam teimosos.— Não tenho nenhuma resposta para isso, príncipe dos elfos. Só sei que tenho de

tentar. Preciso ir até ele.Ele se sentiu indefeso em face da determinação cega que ela tinha de ir adiante, de

fazer o que havia definido em sua mente, não importando obstáculos e complicações.Sentia como se estivesse destruindo-lhe as esperanças sem convencê-la a desistir, demodo que, no fim das contas, ela iria mesmo assim, mas ele teria lhe arrancado oespírito.

Ahren tornou a sentar sobre os escombros e ficou olhando a cidade em ruínas. Ela seestendia até o horizonte na luz do sol, vasta e quebrada, sua história perdida há muito nopassado sem a civilização que a ocupara. Ela era uma relíquia do Antigo Mundo, aqueletempo anterior às Grandes Guerras em que a ciência governava e todas as raças eramuma. Ficou imaginando se alguém que vivera ali poderia ter previsto aquele fim para ascoisas. Ficou imaginando se tentariam fazer algo para impedir aquilo.

— Talvez pudéssemos encontrar alguns dos outros para nos ajudar — ele dissefinalmente, sentindo-se condenado e aprisionado, mas incapaz de abandoná-la.

Ela balançou a cabeça.— Não, Ahren. Só você e eu.Era a primeira vez que ela usava seu nome e ele ficou surpreso com a profundidade

do sentimento que isso despertou nele. Era como se ela soubesse o jeito certo de dizê-lo— como se, dizendo isso, ela estivesse criando entre os dois o mesmo tipo de vínculopelo qual estava unida a Walker.

Isso o atraiu para ela e ao mesmo tempo o encheu de medo.— Não posso ir com você — disse ele rápido, balançando a cabeça para dar ênfase

porque sabia que sua voz estava trêmula.Ela não respondeu, simplesmente ficou ali olhando para ele. Ele não conseguia

encará-la, mantinha os olhos direcionados para a cidade, para os quilômetros deescombros e detritos, para aquele espelho da devastação que estava sentindo dentro desi.

— Meu irmão sabia o que estava fazendo ao me enviar nesta viagem — disse elepara a paisagem vazia, ao mesmo tempo tentando fazer com que a garotacompreendesse. — Ele sabia que eu era fraco, não forte o bastante para sobreviver...

— Seu irmão estava errado — ela logo o interrompeu.Ele se virou e olhou para ela, surpreso com a veemência em sua voz.— Meu irmão...— Seu irmão estava errado — ela repetiu. — Quanto a esta viagem. Quanto a

Walker. Mas especialmente quanto a você.Ele respirou fundo e soltou o ar devagar, sentindo uma mudança em seu

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pensamento que era impossível de reconciliar com o bom senso, mas igualmenteimpossível de ignorar. Será que ele podia fazer o que ela estava lhe pedindo? Será queele poderia encontrar a resolução que parecia vir tão fácil para ela? Era uma loucura queele não conseguia ignorar. Algo em Ahren estava reagindo à necessidade da vidente efazia com que ele desconsiderasse todas as outras coisas.

Mesmo assim, que diferença ele poderia fazer?— Acho que não posso proteger você, Ryer Ord Star — murmurou.Então um som distante chamou-lhe a atenção, um som tão pequeno e insignificante

que era quase inaudível. Ficou paralisado por um momento, com medo do que pudesseser. A vidente o observava, esperando. Finalmente ele se levantou para dar uma olhadanas ruínas. Ela estava ao seu lado, bem perto dele.

O som viera do labirinto. Dezenas de minúsculas criaturas metálicas deslizavam erodavam por entre seu intricado sistema de paredes, nenhuma delas com mais do queuns cinqüenta centímetros de altura. Havia vários tipos delas, cada qual claramenteconstruída para desempenhar uma tarefa específica. Algumas levaram os corpos dosmwellrets mortos, agarrando-os com pinças nas extremidades dos braços curtos, e osarrastando pelo chão de metal polido, onde os jogaram através de alçapões que seabriram e fecharam rapidamente. Outras utilizaram um mecanismo de tocha ligado aosseus corpos para reparar os sulcos abertos pelos fios de fogo na superfície metálica dolabirinto. E outras varriam, poliam e até limpavam todos os traços da batalha,restaurando o labirinto como se jamais algo tivesse acontecido ali.

Levaram menos de uma hora para finalizar o trabalho, correndo como ratos em umagaiola, a luz do sol brilhando em suas carapaças metálicas, os sons de cliques, rodas ezumbidos pouco audíveis na quietude que os cercava. Quando terminaram, entraram emfilas e desapareceram por rampas que se abriram para deixá-las entrar da mesmamaneira que os alçapões engoliram os mwellrets. Desapareceram em segundos.

Ahren olhou para Ryer Ord Star. Uma onda de alívio o invadiu. Sentiu uma vertigem.— Varredores — disse ele, fazendo um gesto na direção das máquinas minúsculas, a

palavra surgindo em sua mente na mesma hora, fazendo com que ele sorrisse semquerer.

Ela não retribuiu o sorriso. Em vez disso, apontou para alguma coisa logo atrás dele.Seu coração deu um salto quando ele acompanhou o olhar dela e descobriu um dosrecém-batizados varredores parado a menos de um metro de distância.

O varredor não estava fazendo nada. Estava apenas sentado, um corpo cilíndricoachatado sobre um conjunto de vários roletes. Sua cabeça redonda parecia a metadesuperior de uma bola metálica repousando sobre um conjunto de molas grossas. Sondasfinas e curtas despontavam da cabeça em vários lugares e direções e um par de botõesgrandes saía de seu corpo em lados opostos, cada qual do tamanho de um punho.

Ahren não tinha idéia de como ele havia chegado tão perto sem que eles oouvissem. Nem sequer queria pensar a respeito. O que importava era o que ele estavafazendo ali. Não parecia ter nenhuma arma, mas Ahren não iria dispensar essapossibilidade.

Nem Ryer Ord Star nem ele disseram nada por um momento. Ficaram olhando o

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varredor e esperaram que fizesse algo. O varredor, se é que era capaz de fazer isso,retribuía o olhar deles.

Então, de repente, uma fenda se abriu em sua cabeça e um raio de luz disparou,congelando uma imagem no ar a cerca de vinte centímetros de distância deles. Aimagem não era muito grande, mas era muito clara. Era de Walker.

Ryer Ord Star sufocou um grito e Ahren agarrou os braços dela para impedir que elacaísse.

A imagem desapareceu um instante depois. Uma segunda imagem apareceu emseguida, mostrando o druida correndo por uma série de túneis iluminados por lâmpadasestranhas, sem chamas, deslizando de um foco de luz para o seguinte, seu rosto tenso ecansado. De vez em quando ele parava para olhar para trás ou tentar ver algo adiante napenumbra, apurando os ouvidos e os olhos. Seus mantos negros estavam rasgados emolhados e seu rosto sombrio estava sujo de suor, sujeira e talvez sangue. Estava sendocaçado, e a tensão de correr e ficar se escondendo tornava-se evidente.

A imagem desapareceu. Ryer chorava baixinho, como se o impacto das imagenstivesse desmoronado alguma muralha de força que ela ainda tivesse e tudo o querestasse agora fosse desespero.

Ahren segurou-a.— Pare com isso! — ele sibilou com raiva. — Não sabemos se isto está realmente

acontecendo! Não temos idéia do que significa!Outra imagem apareceu, então outra e mais outra, todas de rastejadores movendo-

se pelos mesmos túneis, caçando alguma coisa. Garras e lâminas brilhavam quando elespassavam pela luz. Alguns deles eram imensos. Outros balançavam de forma ansiosa eantecipatória. Todas tinham peças encaixadas de forma estranha, o que lhes dava umaspecto bárbaro e sem acabamento.

As imagens desapareceram. Ahren decidiu que isto era o bastante.— O que é que você quer!? — ele gritou para o varredor, sem sequer parar para

pensar se aquilo conseguia entendê-lo.Aparentemente sim. Outra imagem apareceu, o elfo e a vidente acompanhando o

varredor pela mesma série de túneis, vasculhando a penumbra. Uma segunda imagemapareceu, Walker, olhando para trás, parando, levantando o braço como se em sinal dereconhecimento, chamando. E então todos estavam reunidos em uma terceira imagem, oalívio estampado em seus rostos, mãos estendidas em saudação, Ryer Ord Star fundindo-se a Walker em um abraço forte.

A vidente estava quase histérica.— Ele quer que nós o sigamos! — gritou. — Quer nos levar até Walker. Ahren,

precisamos ir! Você viu! Ele precisa de nós! — Ela estava tremendo, esquecendo qualquertentativa de ficar calma.

Não tão convencido quanto ela, Ahren se libertou com um safanão.— Não seja tão apressada, Ryer. — Ele usou seu primeiro nome para fazer com que

ela ouvisse, o que funcionou. Ela ficou parada, os olhos grudados nele. — Não sabemosse alguma dessas coisas é verdadeira. Não sabemos se essas imagens são reais. E seisso for um truque? Enfim, de onde veio este varredor?

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— Não há truque, é real; eu posso sentir. Aquele realmente é Walker, e ele está láembaixo, naqueles túneis, e precisa de nossa ajuda!

Ahren tentava imaginar que espécie de ajuda eles seriam capazes de fornecer aodruida. Estava se perguntando como é que acompanhar o varredor para aqueles túneis —supondo-se que conseguissem fazer isso — resultaria no final feliz que lhes foramostrado. Se Walker, com toda a sua magia, não conseguira se libertar dos rastejadores,que diferença eles fariam indo atrás dele?

Olhou para o pequeno varredor.— Como foi que você nos encontrou?Uma nova imagem apareceu. O varredor estava limpando as bordas do labirinto,

logo abaixo do esconderijo deles. Estava observando tudo através de alguma espécie delente. Alguma coisa o distraiu e ele saiu do labirinto, penetrando nas ruínas, subindodevagar por entre os escombros até ficar logo atrás deles.

A imagem se desvaneceu.— Ele deve ter nos ouvido — murmurou a vidente, lançando um olhar rápido e

esperançoso a Ahren.Ele não via como. Tinham tomado cuidado para não fazer qualquer ruído. Talvez

aquilo tivesse sentido a presença deles. Mas por que os outros varredores também nãoos haviam sentido?

— Não estou gostando disso — disse.— Ahren! — ela implorou, sua voz triste e dilacerada.Ele deu um suspiro exasperado, sentindo-se aprisionado pela necessidade e pelas

tentativas dela. Ela estava tão desesperada para chegar até Walker, para fazer algumacoisa para ajudá-lo, que estava abandonando qualquer tentativa de exercitar a cautelaou o bom senso. Por outro lado, ele estava tão desesperado em se afastar daquele lugarque se recusava a dar qualquer consideração à credibilidade do varredor.

— Por que está tentando nos ajudar? — perguntou para a maquininha. — Quediferença faz para você o que nós fizermos?

O varredor devia esperar por essa pergunta; uma imagem apareceu imediatamenteno mesmo lugar das outras. Ela mostrava o varredor executando suas tarefas no labirintoe nos túneis subterrâneos. Em seguida apareceu o segundo conjunto de imagens,mostrando o varredor sendo chutado, socado e derrubado de quase todas as maneirasconcebíveis por algo grande, escuro e apavorante que estava sempre envolto em sombraou além do alcance da visão. A todo instante o varredor era apanhado e jogado deencontro a uma parede. Vezes sem conta ele foi jogado de lado e tinha de serendireitado por outros varredores que vinham em seu auxílio. Não parecia haver razãopara os ataques. Pareciam aleatórios e sem sentido, resultado de uma raiva e umafrustração mal direcionadas ou sem motivo. Amassado e quebrado, o pequeno varredorteria de ser consertado por seus companheiros antes de voltar às suas tarefas.

As imagens desapareceram. O varredor tornou a ficar imóvel. Ahren tentou conciliarsuas dúvidas. Um varredor maltratado? Surrado tão completamente e por tanto tempoque faria qualquer coisa para pôr um fim nisso? Isso significava, claro, que o varredor eracapaz de sentir emoções e reagir a um tratamento que o perturbasse. Como regra geral,

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máquinas não sentiam nada, nem mesmo os rastejadores. Eles eram máquinas, o quepor definição significava que não eram humanos.

Mas essas máquinas também poderiam ser tão velhas quanto a cidade e o que querque vivesse nelas. Não era impossível imaginar que antes de as Grandes Guerrasdestruírem a antiga civilização os humanos tivessem desenvolvido máquinas quepudessem pensar e sentir.

— Ele está pedindo nossa ajuda — Ryer Ord Star ressaltou, quebrando o silêncio.Jogou para trás seus cabelos prateados compridos, frustrada. — Em troca, ele nosajudará a encontrar Walker. Não está entendendo?

Não inteiramente, pensou Ahren.— Que espécie de ajuda ele espera que nós possamos lhe dar?Uma imagem surgiu na abertura da cabeça metálica do varredor. Walker, Ahren e

Ryer Ord Star estavam saindo das ruínas com um varredor a tiracolo.— Você quer que o levemos conosco quando formos embora? — perguntou sem

acreditar.A imagem se repetiu mais duas vezes, insistente e inconfundível. Então uma nova

imagem apareceu, a Jerle Shannara subindo aos céus, todas as bainhas de luz esticadas,os atratores radianos ondulando cheios de energia. Na popa da aeronave estava opequeno varredor, olhando para a terra que deixava para trás.

— Isto é ridículo — Ahren resmungou quase para si mesmo. — É uma máquina!— Uma máquina senciente — corrigiu Ryer Ord Star. — Sofisticada e capaz de sentir.

Ahren, ela quer o que todos nós queremos. Ela quer ser livre.O jovem elfo sentou-se devagar sobre a pilha de escombros e apoiou o queixo nas

mãos.— Ainda não estou achando isso bom — disse ele, os olhos observando o varredor.

— Se fizermos o que ela deseja e descermos, ficaremos isolados de tudo. Se isso for umaarmadilha, não teremos nenhuma chance de escapar. Não sei. Ainda acho quedeveríamos encontrar os outros primeiro.

Ela se ajoelhou à sua frente e colocou as mãos sobre as dele, as pontas de seusdedos tocando-lhe o rosto.

— Príncipe dos elfos, me escute. Por que isso seria uma armadilha? Se o que querque protege Castledown nos quisesse, já não poderia ter-nos apanhado a essa altura? Seeste varredor quisesse nos trair, já não estaríamos cercados por rastejadores? Quediferença faria para essa coisa se ela quisesse nos levar para o subterrâneo? Por que elase daria a tanto trabalho para conseguir tão pouco?

Ele tinha de admitir que não sabia. Ela tinha razão; não fazia muito sentido. Mastampouco fazia sentido uma série de coisas que haviam acontecido naquela viagem, eele não iria descartar tão rápido a maneira como seus instintos continuavam a alertá-lo.Alguma coisa o estava incomodando. Talvez fosse apenas o seu medo de acabar comoJoad Rish e os outros. Talvez fosse sua memória indelével da carnificina, dos gritos e dasmortes. Estava tudo ainda vivido demais para permitir que ele pensasse de modoobjetivo.

— Não há tempo para procurar mais ninguém — ela insistiu. — Pode não haver

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ninguém lá fora para encontrar!Esse era seu maior medo, é claro. O de que não houvesse mais ninguém vivo e que

eles fossem tudo o que restava.Ela estava pressionando as mãos sobre as dele, cobrindo-as. Ele levantou o queixo

de seu apoio, mas ela não o soltava.— Ahren — ela sussurrou. — Venha comigo. Por favor.Ela também tinha medo. Ele podia sentir isso em seu toque e ouvir isso em sua voz.

Ela não era menos vulnerável do que ele. Podia ver o futuro, e talvez tivesse visto coisasque ele não tinha visto, coisas que a apavoravam ainda mais do que aquilo que passara.Mas ela iria porque sentia algo tão forte por Walker que não poderia abandoná-lo, nãoimportava o que acontecesse. Ele tinha inveja dessa força que ela possuía. Eclipsava asua própria e o deixava novamente com vergonha. Ela iria, quer ele fosse ou não. E o queele faria então? Voltaria para a baía, se esconderia dos mwellrets e esperaria que a JerleShannara voltasse? Voaria novamente para casa e viveria o resto da vida com o quehavia feito?

Preferia estar morto se fizesse isso.— Tudo bem — ele disse baixinho, pegando as mãos dela, segurando-as como se

fossem passarinhos. Curvou-se para ela para lhe dar forças, sua voz firme.— Vamos tentar.

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9

Quentin Leah agachou-se no ensombreado esconderijo de um prédio em ruínas.

Logo abaixo, dentro do labirinto, os mwellrets haviam se aventurado corajosamentepouco antes e, neste instante, fugiam de forma bem menos ordeira. Panax e Tamis ocercavam pelos flancos, imóveis enquanto olhavam através de rachaduras nas paredes.Os elfos caçadores Kian e Wye estavam ajoelhados mais para o lado. Os mwellretspassaram correndo por eles sem vê-los e sem se preocupar com eles. Olhavam rápidopara trás, para ver o que os poderia estar seguindo, e mais nada. Alguns dos retsestavam ensangüentados, os mantos rasgados e manchados, seus movimentosirregulares. Não tinham se dado bem lá atrás, certamente não melhor do que Quentin eseus companheiros, e estavam loucos para fugir para bem longe dali.

— Quantos você contou? — Tamis sussurrou para ele.Ele balançou a cabeça.— Uns quinze, talvez.— Isso quer dizer que cinco ou seis não conseguiram sair — ela disse isso com um

tom neutro, olhos mirando adiante, observando os mwellrets se esgueirarem por entre asruínas. — Parece que eles não conseguiram alcançar a vidente.

A menos que ela estivesse morta, claro. Quentin guardava esse pensamento para si.Tamis não estava dizendo nada a respeito de Bek, mas isso podia ser porque ela aindanão estava certa da direção que ele havia tomado. Ela descobrira facilmente a trilha deRyer Ord Star, mesmo com aquela manada de mwellrets atropelando tudo, mas nemsinal de seu primo. Quentin se sentia frustrado e cada vez mais desesperado. O tempoestava lhes escapando por entre os dedos e não estavam fazendo nenhum progresso.Antes, ele tinha esperanças razoáveis de que fossem encontrar Bek ou Ryer Ord Starseguindo os rets. Agora, parecia que não encontrariam mais ninguém. Os últimosmwellrets passaram por eles, correndo por entre a luz brilhante do meio-dia,desaparecendo por onde haviam vindo. Tamis não se moveu, nem Quentin ou os outros.Ficaram onde estavam, paralisados, observando e escutando. Depois do que pareceu umtempo muito longo, Tamis virou-se para encará-los, a forma pequena e atarracadadecidida e os olhos cinzentos calmos.

— Vou dar uma escapulida para olhar rapidamente ao redor, tentar descobrir o queaconteceu. Esperem-me aqui.

Ela já ia embora quando Quentin disse:— Vou com você.Ela se virou na hora.— Sem ofensa, montanhês, mas vou ficar melhor sozinha. Deixe isso comigo.Passou por uma fenda na parede e desapareceu. Procuraram por ela nas ruínas, mas

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ela havia sumido. Quentin olhou para Panax, e depois para os elfos, seu incômodoclaramente visível.

Kian deu de ombros.— Não é nada pessoal, montanhês. Ela é assim com todo mundo. Sem exceções.Quentin estava pensando que ela assumira a liderança de seu pequeno grupo, uma

posição que ele ocupara até que ela aparecesse. Ele não era do tipo que se perturbavacom problemas de ego, mas não conseguia deixar de se sentir um pouco irritado com osmodos bruscos de Tamis. Afinal, ele era competente em rastreamento. Não era nenhumnovato que a colocasse em risco se fosse junto.

Wye esticou as pernas. Ex-membro da guarda real, ele servira na casa de AllardonElessedil antes de seguir naquela viagem.

— Ela queria servir na guarda real, mas Ard Patrinell achou que seria desperdiçadaali. Queria que ela fosse uma rastreadora. Tinha o dom para isso, era quase melhor doque qualquer um.

— Mas ela não gostou da interferência dele — acrescentou Kian, bocejando, o rostoescuro, emaciado e cansado. — Levou um tempo para perdoá-lo.

Wye concordou.— Postos na guarda real são muito cobiçados, a competição é muito grande. As

mulheres nunca foram totalmente aceitas como iguais; os homens são preferidos comoos protetores do rei. E da rainha. Isto era verdade até mesmo com Wren Elessedil. Ahistória e a prática comum ditam o que acontece, mais do que o preconceito e ofavoritismo. Mulheres não servem na guarda real. Por outro lado, mulheres dominam asunidades de rastreamento dos elfos caçadores.

Wye assentiu.— Seus instintos são melhores do que os nossos. Não há como negar isso. Elas

parecem mais capazes de separar as coisas e fazer as escolhas que você tem que fazerquando está rastreando. Talvez tenham aprendido a afinar melhor seus instintos paracompensar a falta de força física.

Quentin não sabia e não ligava. Admirava Tamis por sua abordagem direta dascoisas. Não conseguia encontrar motivo para que ela não fosse aceita como membro daguarda real. Mas teria preferido que ela mostrasse um pouco mais de confiança nele. Seucomportamento não sugeria que ela pensava, por um minuto sequer, que terianecessidade dele ou de qualquer um que fosse em seu auxílio. Aqueles olhos cinzentosfirmes e a voz tranqüila, tudo isso era feito de ferro. Tamis salvaria a si mesma se issofosse necessário.

Panax sentou-se de pernas cruzadas em um canto da sala, um bloco de madeira emuma das mãos, sua faca de esculpir na outra. Trabalhou devagar e cuidadosamente nosilêncio, aparas de madeira curvando-se e caindo na pedra, cabelos emaranhados nacabeça curvada, concentrada na sua tarefa.

— Lamenta ter vindo nesta jornada, montanhês? — perguntou sem levantar acabeça.

Deixando os elfos caçadores manterem vigilância, Quentin sentou-se ao seu lado.— Não. — Pensou por um momento. — Queria não ter sido tão ansioso para pedir

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que Bek viesse comigo. Não vou me perdoar se alguma coisa acontecer com ele.Panax soltou um grunhido.— Eu não me preocuparia com Bek se fosse você. Você ouviu Tamis. Acho que ele

está melhor do que nós. Aquele garoto tem alguma coisa. É mais do que a magia queTamis o viu usar. Walker o marcou para alguma coisa especial. Foi por isso que eleenviou vocês dois para Truls Rohk: por isso Truls foi persuadido a vir conosco. Eletambém viu isso. Ele o reconheceu. Também não teria esquecido. É melhor ter isso emmente. O mutante está lá fora em algum lugar, montanhês: guarde o que digo. Não voudizer que posso sentir isso. Seria bobagem. Mas eu o conheço, e ele está lá. Talvez comBek.

Quentin considerou essa possibilidade. O fato de que ninguém havia visto Truls Rohk— pelo menos ninguém que ele soubesse — não queria dizer que ele não estivesse lá. Épossível que estivesse protegendo Bek. Isso fazia perfeito sentido se Walker o tivesselevado junto para manter Bek seguro. Pensou mais uma vez no passado misterioso deseu primo e seu uso recém-descoberto da magia que jamais soubera ter. Talvez Bekrealmente estivesse melhor do que o resto deles.

— E quanto a você, Panax? — ele perguntou ao anão.A faca de esculpir continuava a se mover em toques suaves e sem esforço.— E quanto a mim o quê?— Lamenta ter vindo?O anão deu uma risada.— Se eu lamentasse, teria de lamentar a maior parte da minha vida! — balançou a

cabeça, achando graça. — Tenho vivido assim, montanhês, pulando de um contratempopara outro, de uma expedição para outra, por mais tempo de que posso me lembrar. Pormais que eu fique naquelas montanhas vivendo sozinho a maior parte do tempo, estiveem mais lugares e arrisquei minha vida mais vezes do que me importo pensar. — Deu deombros. — Bem, o negócio é esse. De qualquer modo, se você vive sua vida nasWolfsktaag, está vivendo em risco o tempo todo.

— Então Walker sabia o que estava fazendo quando nos enviou para encontrá-lo? Elesabia que você também viria.

— Eu diria que sim. — Os olhos escuros do anão se levantaram um momento, eentão tornaram a se concentrar em seu trabalho. — Ele queria tanto Truls quanto a mim.E a mesma coisa com você e Bek. Ele gosta de companheiros, amigos e pessoas que seconhecem um ao outro há muito tempo e confiam no julgamento um do outro. Ele sabeque tipo de riscos se assume em uma viagem como a que fizemos. Estranhos se unem,mas não com rapidez e intensidade suficientes para se tornar uma regra. Amigos efamília são melhores em viagens longas. Além do mais, se ele pode ter dois possuidoresde magia pelo preço de um, por que não fazê-lo?

Quentin ajustou novamente a bandana ao redor dos cabelos compridos.— Sempre pensando adiante, do jeito que os druidas fazem.O anão grunhiu.— Bem mais adiante do que você, eu e a maioria dos outros conseguiríamos. Por

isso acho que ele ainda está vivo. — Parou de esculpir e olhou para cima. — Por isso acho

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que mais cedo ou mais tarde iremos encontrá-lo.Quentin não tinha tanta certeza, mas guardou isso também para si. Sua atitude com

relação às coisas em geral era menos positiva do que quando haviam iniciado a jornada.Bek ficaria surpreso com a mudança que lhe ocorrera.

Menos de dez minutos depois, Tamis reapareceu. Eles não a viram até ela estarquase em cima deles, e não tentava esconder sua chegada. Atravessou os escombros eentrou no abrigo, o rosto molhado de suor, os cabelos negros curtos embaraçados e asroupas amarrotadas. Quentin viu pela expressão em seu rosto que nem tudo estava bem.

— Segui os mwellrets quase todo o caminho de volta pelas ruínas — ela disse rápido,limpando o rosto com a manga da túnica e se agachando em frente a eles. Respiravacom dificuldade. — Apanhei um deles. Estava ferido e mancando atrás do resto, por issoaproveitei a chance. Derrubei-o, encostei uma faca em sua garganta e lhe perguntei oque havia acontecido. Foi exatamente o que havíamos imaginado, a mesma coisa queaconteceu conosco. Ele me disse que estavam rastreando a vidente, mas não aencontraram.

— E quanto a Bek? — Quentin perguntou na hora.Ela balançou a cabeça.— Não sabem nada sobre ele. Quando chegaram àquela clareira, somente a vidente

e a bruxa Ilse estavam lá. A bruxa disse que nos caçassem e nos fizessem prisioneiros, eem seguida partiu para caçar alguém ou algo por conta própria. — Fez uma pausa. —Pode ter sido Bek.

O montanhês franziu a testa.— Por que ela perderia tempo caçando Bek? Isso não faz sentido.— Faz se ela sabe da magia dele — Panax ressaltou.Quentin balançou a cabeça, teimoso.— Ela está atrás do tesouro de Castledown. Talvez o mwellret tivesse mentido para

você.— Acho que não — replicou Tamis. — Bek estava lá quando parti para encontrar

vocês e desapareceu quando os mwellrets chegaram. Alguma coisa aconteceu a elenesse meio-tempo, e provavelmente envolveu a bruxa Ilse. Se conseguirmos achar avidente, poderemos descobrir a verdade. Ela deve ter visto algo.

Panax guardou a madeira e a faca de esculpir.— Ela pode ter morrido no labirinto, junto com os rets.Tamis dispensou a sugestão.— Por que ela voltaria para o labirinto sabendo o que sabe sobre seus perigos? Além

disso, o ret que interroguei disse que não a encontraram, nem viva nem morta. —Levantou-se. — Chega por ora. Temos de sair daqui. Eles irão procurar por nós.

— Você não matou o ret? — Kian perguntou irritado.Tamis virou-se para ele com raiva.— Ele estava desarmado e indefeso — disparou. — Preciso de motivos melhores do

que esses para matar um homem. Derrubei-o para que desmaiasse e fui embora. Quandoele acordar, estaremos bem longe. Agora vamos!

— Vamos para onde? — Quentin quis saber, levantando-se, limpando das calças a

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terra e a poeira dos escombros. — Fazer o quê?Ela deu de ombros.— Pensamos nisso depois. Por ora, vamos nos afastar para não ficarmos olhando

para trás o tempo todo. Mas ficaremos aqui nas ruínas. Elas são grandes o bastante parapodermos nos esconder e não sermos fáceis de rastrear. Podemos continuar procurandoPatrinell e os outros.

Ela começou a se afastar e eles a seguiram sem mais argumentos, sabendo que elatinha razão, que tinham de encontrar um novo esconderijo, mais longe do labirinto, maisao fundo da cidade. Os mwellrets certamente os caçariam, e eram excelentesrastreadores, confiavam em seus sentidos altamente desenvolvidos, em sua capacidadede mudança de formas e em seus ancestrais répteis. De qualquer maneira, era tolicesupor que ficarem parados ajudaria em alguma coisa. Seguindo atrás de Tamis, omontanhês, o anão e os elfos caçadores tomaram cuidado para disfarçar seus rastros,para caminhar sobre as placas duras de metal e de pedra onde as pegadas nãoapareceriam. Por diversas vezes Tamis voltou para obscurecer qualquer sinal de suapassagem, utilizando suas habilidades especiais para esconder-lhes a trilha.

No alto, o sol havia passado do meio-dia, encaminhando-se para a tarde, deslizandoentre o azul sem nuvens rumo ao cair da noite. Dentro das ruínas, o calor propagado porsua passagem se desprendia da pedra e do metal em ondas tremeluzentes. Quentin abriuos botões de sua túnica e enrolou as mangas. A espada de Leah, amarrada às suascostas, estava pesada e desajeitada. A magia com a qual ela o havia infundido havia sedesvanecido, voltado para o buraco negro do qual viera, deixando-o sem nada, mastambém deixando-o livre. Ficou imaginando se conseguiria lidar melhor com ela dapróxima vez que fosse necessária. Afinal, haveria uma próxima vez. Mal podia esperarpor isso.

Depois que haviam se afastado um pouco, ele apertou o passo para ficar ao lado deTamis.

— Por que estamos indo nessa direção e não voltando para a baía onde aportamos?E quanto a Bek?

Ela olhou para ele, apertando os lábios em uma linha fina.— Duas coisas. Precisamos descobrir para onde Bek foi antes de podermos ir atrás

dele, e não queremos que os mwellrets saibam qual a nossa intenção.Ele concordou.— Precisamos que eles acreditem que estamos fazendo alguma coisa inteiramente

diferente, talvez fugindo, correndo para dentro da ilha. — Ele fez uma pausa. — Mas elesnão irão esperar que tentemos voltar para a Jerle Shannara?

— Torço para que eles esperem que façamos exatamente isso.Foi a maneira como ela disse isso que atraiu sua atenção.— Como assim?Tamis virou-se para Quentin, fazendo com que ele parasse na hora. O rosto dela

estava duro e contido. Os outros chegaram mais perto.— O mwellret me contou mais uma coisa — disse ela —, algo que não contei a vocês

ainda. De qualquer modo, achei que podia esperar, já que não há nada que possamos

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fazer a respeito. Mas talvez não possa esperar. Perdemos a nave. A bruxa Ilse encontrouuma maneira de passar entre os pilares de gelo e surpreendeu-a no canal. Utilizou suamagia para colocar os rovers para dormir e os fez a todos prisioneiros. Deixou soldadosda federação e mwellrets em seu comando. — Balançou a cabeça. — Estamos por contaprópria.

Todos olharam para ela atordoados. Estavam pensando a mesma coisa. Estavamperdidos em uma terra estranha, e qualquer esperança de serem resgatados por ReddenAlt Mer e seus rovers ou de voltar para a Jerle Shannara havia desaparecido.

Quentin ia começar a dizer alguma coisa, mas ela o interrompeu:— Não, montanhês, o ret não estava mentindo. Certifiquei-me disso. Ele foi bem

incisivo. A Jerle Shannara está sob o controle da bruxa Ilse. A nave não voltará para nosbuscar.

— Precisamos pegá-la de volta! — ele respondeu na hora, explodindo sem querer.— Não deve ser muito difícil — observou Panax, erguendo uma sobrancelha. — Só

precisamos de asas para voarmos até lá. Ou talvez ela nos faça o favor de descer atéonde possamos alcançá-la.

— Por ora, o que precisamos fazer é andar — disse Tamis, dispensando o assunto etornando a virar para a frente. — Vamos embora.

Caminharam durante a maior parte da tarde, vendo o sol descer a oeste até não sermais do que um brilho suave ao longo do horizonte. A essa altura eles já haviam chegadoao outro lado da cidade e podiam ver as árvores da floresta próxima por entre fendas nosprédios caídos. Suas sombras se arrastavam atrás deles em manchas longas e escuras,deslizando sobre os escombros como óleo. O calor havia se dissipado e o ar, esfriado.Não viram sinais dos mwellrets a tarde toda. Tampouco viram qualquer sinal de outrossobreviventes de sua própria companhia. A não ser por eles mesmos, a cidade pareciamorta. Adiante, as árvores formavam uma muralha escura sobre a qual o sol se punhajogando seu halo prateado.

Tamis pediu que parassem, olhando ao redor, demorando o quanto quis.— Acho que não devemos tentar passar de novo pela cidade à noite disse ela. — É

provável que haja outras armadilhas. Também podem haver sentinelas. Melhor esperaraté de manhã, quando poderemos ver alguma coisa.

Quentin, assim como os outros, havia se acostumado à idéia de que estavamsozinhos e isolados de resgate ou de fuga, e o que quer que escolhessem fazer seriamelhor que o fizessem com isso em mente. Erros custariam muito caro agora, talvezfossem fatais. Se os mwellrets tentassem rastreá-los no escuro, que o fizessem. Comalguma sorte, a cidade e seus horrores os engoliriam.

— Vamos acampar na floresta? — perguntou Panax.Tamis assentiu.— Da melhor maneira que pudermos. Nada de fogueira, somente comida fria e um

de nós vigiando a noite toda. Já vimos o que há na cidade, mas não o que há nestafloresta.

Um pensamento reconfortante, devaneou Quentin, seguindo-a por entre as árvoresaté ela encontrar uma clareira adequada. A essa altura o sol havia se posto e as

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primeiras estrelas estavam aparecendo. As mesmas estrelas já estariam aparecendo emsua casa, tão distante que ele quase não conseguia imaginá-la. Seus pais já estariam nacama e talvez dormindo sob elas. Ficou imaginando se Coran e Liria estariam pensandonele agora, assim como pensava neles. Ficou imaginando se algum dia voltaria a vê-los.

Tinham um pouco de comida e de água, mas não tinham onde dormir. Quase tudohavia se perdido na fuga do labirinto ou sido deixado para trás às margens das ruínas.Comeram o que tinham, beberam o conteúdo de uma bolsa com cerveja que Panaxcarregava e dormiram vestidos, usando como travesseiros o que conseguiram encontrar.Tamis ficou de vigia primeiro. Quentin dormiu tão rápido que mal havia encostado acabeça sobre o braço antes de pegar no sono.

Ele sonhou, mas seus sonhos eram fragmentos confusos e misturados. Eles odeixavam abalado e às vezes frenético, mas não tinham sentido e foram esquecidosquase imediatamente. A cada vez, após acordar sobressaltado, voltava a dormir numinstante. Negra e silenciosa, a noite o envolvia e o levava para longe.

Foi Kian quem o despertou, agarrando seu ombro com força, levantando-o quandoele acordou.

— Você sonhou a noite toda, montanhês — sussurrou o elfo caçador. — Até que vocêpoderia ficar de guarda e deixar descansar quem pode.

A vigia dele foi a última e ele já podia sentir a mudança no tempo. As estrelas deramuma volta inteira no firmamento e a escuridão estava perdendo seu domínio. Quentinficou sentado olhando a clareira até onde o sol começaria a nascer, esperando que a luzmudasse. Ao seu redor, seus companheiros dormiam, suas formas escuras imóveis, ossons de sua respiração lentos e entrecortados no silêncio.

Em determinado instante, alguma coisa voou por entre os galhos das árvores sobresua cabeça, um movimento veloz e apressado que desapareceu quase tão rápido quantosurgira. Um pássaro de alguma espécie, deduziu, e deixou o coração se acalmarnovamente. Um pouco mais tarde, sentindo-se desconfortável, levantou-se e olhou paraas ruínas da cidade, vasculhando a escuridão. Não viu nem ouviu nada. Talvez nadahouvesse para ver ou ouvir. Apenas eles mesmos. Talvez em um mundo de rastejadorese fios de fogo, de mwellrets e da bruxa Ilse eles fossem tudo o que havia restado dahumanidade.

Mas quando a aurora surgiu como um fino fio de prata ao longo do horizonteoriental, caçando as sombras da floresta apenas o bastante para dar identidade asombras e formas, ele viu que estava errado. Havia um homem à sua frente do outrolado da clareira, vagamente definido pela luz, imóvel na penumbra. No começo, Quentinachou que estava vendo algo que na verdade não estava ali, que a luz estava brincandocom seus olhos. Por que alguém estaria ali em pé na escuridão? Mas quando a luz aguçoua imagem e deu clareza às suas feições, ele descobriu que não estava enganado. Ohomem era alto e magro, usava uma túnica sem mangas, calças que terminavam nosjoelhos, sandálias amarradas nos tornozelos e braceletes de couro nos punhos. Levava oque parecia ser uma lança, mas não; era um pedaço fino de madeira de dois metros decomprimento com outro, muito mais curto, amarrado no centro.

Quentin esperou até ter certeza absoluta do que estava vendo; então, estendeu a

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mão para Tamis, que dormia bem ao seu lado, e tocou seu braço.Ela acordou no mesmo instante, sentando-se e olhando para ele. Ele apontou para a

figura. Um segundo mais tarde, ela estava em pé ao seu lado, inteiramente alerta.— Há quanto tempo ele está ali? — murmurou ela.— Não sei. Ele já estava ali antes que fosse claro o bastante para vê-lo.— Ele fez alguma coisa?Quentin balançou a cabeça.— Nada além de ficar em pé ali, nos observando.Tamis ficou em silêncio. Sentou-se com Quentin, estudando o homem, esperando

para ver o que aconteceria. Na luz do novo dia, seu rosto pequeno assumiu um brilhodiferente; ela parecia mais jovem e bonita, ligeiramente exótica com suas feições élficas.Quentin percebeu que a estava estudando tanto quanto ao estranho. Gostava da maneiracalma e tranqüila com a qual ela lidava com as coisas, o jeito como nunca ficava confusa,o fato de que ela jamais reagia de forma exagerada. Em outro tempo e lugar, em outrascircunstâncias, ele teria reagido a essa atração; mas achava que não podia permitir queisso acontecesse ali.

O sol atingiu o horizonte e enviou fragmentos de luz brilhante atrás da noite quedesaparecia. Na trilha de sua passagem, as feições do estranho foram reveladas porcompleto. Sua pele tinha um tom avermelhado, quase de cobre. Brilhava levemente,como se estivesse coberta de óleo. Seus cabelos, ainda mais vermelhos, mas de um tommais claro, eram espessos e caíam em cachos sobre seu crânio, curtos e soltos. Mesmoseus olhos, agora visíveis no amanhecer, tinham uma cor que lembrava canela.

Ele continuou a encará-los, como uma estátua esculpida em pedra. Pela primeiravez, Quentin viu o que parecia ser uma pequena lança enfiada em seu cinto de couro àssuas costas, com uma das extremidades saliente.

— O que ele está levando na mão? — ele sussurrou para Tamis.Ela balançou a cabeça.— Acho que é uma zarabatana, mas nunca vi uma desse tamanho. Está vendo a

peça amarrada no meio? Deve ser o suporte para os dardos. — Tornou a ficar emsilêncio, e então disse: — Não podemos esperar assim mais tempo. Precisamos saber oque ele quer. Fique aqui enquanto acordo os outros.

Ela se levantou e foi de Panax até os elfos caçadores, acordando cada um com umtoque, curvando-se para falar de perto com eles e pedir cautela, para dizer que nãoreagissem. Um por um, eles se sentaram e olharam para onde o estranho estavaobservando-os.

Tamis voltou para Quentin e curvou-se perto dele.— Isso pode ser complicado. Ele não deve estar sozinho. Deve haver outros nas

árvores. Ele não iria se expor tão completamente se não houvesse alguém lhe dandocobertura. Está se oferecendo como isca para ver o que fazemos. Não vamos lhe darmotivos para achar que queremos mal a ele.

Ela se levantou e foi devagar até onde ele estava. Mantinha as mãos do lado docorpo e as armas embainhadas. Quentin a ouviu saudá-lo na língua dos elfos, e emseguida, quando ele não respondeu, em diversas variantes. Nenhuma delas funcionou.

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Ela tentou diversos idiomas do Sul. Nada ainda. Ela falou pedaços de meia dúzia dedialetos dos troll, todos sem resultado.

Então, subitamente, o estranho disse algo. Quando falou, sua boca se abriu pararevelar que até mesmo seus dentes estavam tingidos de cobre em vez de brancos. Suafala era rouca e gutural, e Quentin não conseguia entender nada. Tamis também pareciaperplexa.

— Esperem um minuto — Panax levantou-se subitamente e foi até eles. — Acho queele está falando na língua dos anões, um dialeto muito antigo, uma espécie de híbrido.Deixe-me tentar.

Ele falou com o estranho, devagar, experimentando algumas palavras, esperando aresposta, então tentando novamente. O estranho o escutou e por fim respondeu. Foramde um lado para outro assim por diversos minutos, até que Panax se voltou para seuscompanheiros:

— Estou entendendo alguma coisa, mas não tudo. Venham e fiquem perto de mim.Acho que está tudo bem.

Continuou falando com o estranho, Tamis bem ao seu lado, e Quentin, Kian e Wyese juntaram a eles.

— Ele diz que é um rindge. Seu povo vive em aldeias aos pés daquelas montanhasatrás. São nativos desta área, estão aqui há séculos. São caçadores e ele faz parte de umgrupo de caça que deu de cara conosco durante a noite. — Olhou para Tamis. — E vocêtinha razão. Ele não está só. Há outros rindges com ele. Não sei quantos, mas aposto queestão todos ao nosso redor.

— Pergunte a ele se viu alguém além de nós — sugeriu Tamis.Panax falou algumas palavras e ouviu a resposta do outro.— Ele diz que não viu ninguém. Quer saber o que estamos fazendo aqui.Houve outra troca de palavras. Panax contou ao rindge que eles tinham vindo

procurar um tesouro nas ruínas da cidade. O rindge ficou animado, pontuando suaspalavras com gestos e grunhidos. Disse que não havia tesouro algum, a cidade era muitoperigosa, feras de metal iriam caçá-los e o fogo queimaria seus olhos. A cidade tinhaolhos em todo lugar, nada entrava ou saía sem ser visto, a não ser os rindges, quesabiam como se esconder.

Quentin e Tamis trocaram um rápido olhar.— Como os rindges se escondem dos rastejadores? — ela perguntou a Panax.O anão repetiu a pergunta e ouviu com atenção a resposta. Confuso, fez com que o

rindge repetisse. Enquanto falavam, outros rindges apareceram por entre as árvores,apenas rostos na luz pálida, e depois também corpos, materializando-se um atrás dooutro, cercando a pequena companhia. Quentin olhou desconfortável ao seu redor.Estavam em grande desvantagem numérica e sem qualquer chance de fuga. Ele resistiu ànecessidade de levar a mão até a espada; confiar em armas para ajuda seria tolice.

Panax deu um pigarro.— Ele diz que os rindges são parte da terra e sabem como desaparecer dentro dela.

Nada pode encontrá-los se eles mantiverem uma vigilância cuidadosa, mesmo àsmargens da cidade. Ele diz que eles nunca vão até as ruínas. Quer saber por que fizemos

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isso.Tamis deu uma risadinha.— Boa pergunta. Pergunte a ele o que é que eles estão caçando.O rindge, alto e magro, ouviu e assentiu devagar enquanto Panax falava. Então deu

uma resposta comprida. O anão esperou até que ele tivesse terminado e olhou para trás.— Não sei se compreendi bem tudo. Talvez eu tenha entendido errado. Quase

espero que sim. Ele diz que estão caçando rastejadores, montando armadilhas para eles.Aparentemente as armadilhas são para desencorajar os rastejadores de caçá-los. Ele dizque os rastejadores caçam os rindges à procura de partes de corpos, que usam pedaçosdos rindges a fim de criar uma coisa chamada “wronks”. Os wronks se parecem com elese conosco, são feitos de metal e também de partes humanas. Não consigo entender issomuito bem. Os rindges têm muito medo deles, o que quer que eles sejam. Este aqui estádizendo que, pegando pedaços de você, os wronks roubam sua alma e você nunca morrede verdade.

Tamis franziu a testa.— O que isso quer dizer?Panax balançou a cabeça. Tornou a falar com o rindge, e então olhou para a

rastreadora, dando de ombros.— Não consigo entender.— Pergunte a ele quem controla os wronks, os rastejadores e o fogo — disse ela.— Pergunte a ele quem vive sob a cidade — acrescentou Quentin.Panax virou-se novamente para o rindge e repetiu as perguntas no estranho e ríspido

dialeto dos anões. O rindge o escutou com atenção. Ao redor deles, os outros rindgeschegaram mais perto, trocando olhares apressados. O ar estava carregado de medo e deraiva e o montanhês podia sentir a tensão no ar.

Quando o anão terminou, o rindge com o qual estivera falando endireitou o corpo,olhou na direção das ruínas e disse uma única palavra.

— Antrax.

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10

No fundo das entranhas de Castledown, bem abaixo das ruínas da cidade, Antrax

descia pelas linhas e cabos que lhe davam passagem por entre seu reino. Viajando emalgum lugar entre as velocidades da luz e do som, mais rápido do que o olho podiaacompanhar, se conseguisse tentar fazer isso, ele disparava ao longo de corredores epassagens, de câmara para câmara, cavalgando os fios de metal que o ligavam ao reinoque governava. Era uma presença que não tinha substância nem forma e podia estarvirtualmente em todos os lugares ao mesmo tempo ou em nenhum lugar. Ele era a maiorrealização de seus criadores em um tempo e em um mundo há muito morto, mastranscendeu até mesmo àquilo para se tornar o que era.

A arma perfeita.O protetor definitivo.Construído quase três mil anos antes, em um tempo em que a inteligência artificial

era comum e máquinas pensantes proliferavam, mesmo então ele era avançado para suaespécie, um protótipo criado no calor dos eventos que culminaram nas Grandes Guerras.As escaramuças já haviam começado e seus criadores suspeitavam para onde as coisasiriam levar quando o planejaram. Eram arquivistas e visionários, pessoas cujo interesseprincipal era preservar para o futuro o que poderia de outra forma se perder. Mentesmenores dominavam o pensamento daqueles tempos; elas manipulavam as regras dopoder e da política para insuflar na população uma mistura de raiva e frustração que umdia acabaria consumindo a todos. Para amenizar a loucura que estava tomando contadeles, os criadores determinaram que aqueles que destruíssem o que não admitiamtambém não deveriam ter permissão de desfazer o progresso da civilização. Antrax sabiadisso porque, quando foi construído, o conhecimento havia sido programado nele. Eranecessário que ele soubesse a razão por trás de sua existência, porque de outra formacomo poderia compreender a importância do que fora criado para fazer?

Foram necessários anos para construir Antrax. Sua construção foi conseguida a umgrande custo de vidas e de recursos. Poucos daqueles que começaram o projeto viverampara vê-lo terminado. Antrax tinha noção de tempo e sabia que havia ganho vida a partirde pequenos incrementos. Um pouco de conhecimento aqui, um pouco de raciocínio ali, eele se expandiu até estar abrigado em mais de um lugar e poder viajar pelas catacumbasda cidade como um espectro. Na superfície, a cidade camuflava sua presença e seupropósito. Apenas algumas pessoas sabiam que ele estava ali, funcionando. Apenasessas poucas pessoas sabiam o que ele fora criado para fazer. As Grandes Guerrasestavam consumindo o mundo dos criadores em uma onda cada vez maior de destruiçãoe ruína, e a humanidade estava sendo alterada para sempre. Muita coisa seria perdidacomo resultado disso — irreparavelmente perdida. Mas não o que estava abrigado dentro

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daquelas câmaras, não aquilo que Antrax fora criado para preservar e que lhe foraconfiado. Isso seria protegido. Isso iria durar.

No fim, os criadores simplesmente sumiram. Antrax jamais soube o que aconteceucom eles. Eles lhe deram vida, um lugar para morar, um domínio para vigiar e umadiretriz para seguir. Eles o colocaram em seu curso, então desapareceram.

Todos menos um.Este retornou uma última vez. Estava sozinho e sua aparição não era esperada.

Quando tudo havia sido finalizado e Antrax estava funcionando conforme o planejado, osreceptores de entrada de dados haviam sido fechados. Nenhuma instrução adicional eranecessária. Então o último criador apareceu e tornou a abrir os receptores.Cumprimentou Antrax. Podiam falar um com o outro através dos teclados e das telas detoque. Podiam se comunicar como iguais. Ele disse a Antrax que o pior havia acontecido.Tudo estava perdido. Um mundo fora destruído e a civilização estava em ruínas. Séculosde progresso haviam sido dizimados. Arte, cultura, conhecimento e compreensão haviamdesaparecido. Os criadores, a não ser ele mesmo, haviam sido destruídos. Talvezninguém mais estivesse vivo no mundo inteiro. Talvez todos estivessem mortos.

Antrax não respondeu. Não havia sido construído para compreender a emoçãohumana; não podia senti-la nas palavras do criador que falava com ele. Mas uma novadiretriz lhe foi dada e Antrax fora programado para obedecer a diretrizes. A diretrizentrou em seus bancos de memória através do teclado e se tornou parte de suaconsciência. O comando era claro. Aquelas câmaras, o complexo e tudo o que estava alidentro foram dados para que Antrax protegesse. Eles não deveriam ser comprometidos.Não deveriam ser perdidos. Não bastava que Antrax os vigiasse e os mantivesse a salvopara quando os criadores retornassem. Antrax também deveria protegê-los; deveriacombater e destruir qualquer coisa que os ameaçasse. Os meios para fazer isso jáestavam no lugar, armas e defesas, instaladas em segredo pelo último criador, que sabiamelhor do que seus colegas o que aqueles tempos exigiam. Antrax deveria coletarinformações em seus bancos de memória da mesma maneira que coletava energia dascélulas de alimentação, o conhecimento de como aquelas defesas e armas funcionavam.Ele deveria adaptar aquele conhecimento para obedecer a sua diretriz; deveriatranscender o que fosse necessário para sobreviver. Se fossem necessárias defesas ouarmas, Antrax deveria utilizá-las. Se elas não fossem suficientes e outras fossemnecessárias, Antrax deveria construí-las. Se alguém tentasse recuperar as câmaras semdigitar o código adequado, a invasão deveria ser detida — mesmo que fosse ao custo devidas.

O aviso final era uma violação direta de qualquer programação anterior, mas ocomando era superior e absoluto. Fazer mal aos humanos era permissível. Matar erapermitido. Antrax tinha o controle de seu próprio destino. Ninguém deveria ameaçar suaexistência ou interferir em seu objetivo e funcionamento. Ninguém deveria entrar em seudomínio sem o conhecimento do código. Essa era a nova diretriz. Assim, Antrax forareprogramado nos estertores finais do apocalipse, quando o último dos criadoresdesapareceu.

Por muito tempo depois disso, ele ficou sozinho. Ninguém veio tentar encontrá-lo.

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Ninguém sequer se aventurou a se aproximar dele. Nas ruínas da cidade, nada se movia.Nem humanos, nem animais, insetos ou pássaros. O ar era enevoado e denso devido aosescombros e nada vivia dentro de sua penumbra. Antrax mantinha vigilância sobre ascatacumbas que o haviam mandado guardar. Ele as protegia com cuidado, descendoveloz por suas linhas de comunicação, através de suas miríades de salas e câmaras,dentro de seus bancos de memória e células de alimentação, por todo o seu reino.Sempre vigiando. Por um tempo muito longo, não precisou fazer isso; não havia nada láfora para vigiar. Nada a não ser devastação.

Às vezes se perguntava por que estava guardando as câmaras subterrâneas. Jáhaviam lhe dito o que estava guardado ali, mas não compreendia por que aquilo tinhatanta importância para os criadores. Uma parte disso sim. Uma parte disso era óbvia.Mas, em sua maior parte, era um enigma. Antrax havia sido programado para resolver osenigmas que o confrontavam, e por isso buscou uma solução para aquele. Consultou seusbancos de memória em busca de ajuda e não achou nenhuma. Seus bancos de memóriaeram vastos, mas as informações armazenadas ali nem sempre eram úteis. Palavraspodiam ser vagas e confusas, especialmente quando não tinham um contexto dentro doqual colocá-las. Matemática e engenharia forneciam os conceitos mais familiares e úteis,pois Antrax fora construído e programado a partir dessas disciplinas. Mas outras palavraseram apenas seqüências de símbolos que não significavam nada para ele. Figuras edesenhos o confundiam. Vastas quantidades de informações que recebera pareciam semsentido, tanto que, à medida que seu conhecimento e senso de auto-suficiência cresciam,ele começou até mesmo a questionar as opções de programação dos criadores.

Mas a diretriz era imutável. Tudo o que estava abrigado dentro das catacumbas eraprecioso. Nenhuma parte disso devia ser perturbada. Nenhuma parte poderia ser perdida.Tudo deveria ser guardado para quando os criadores viessem solicitar.

Mas quando esse tempo chegaria? Antrax tinha uma vaga memória de um projetopor algum tempo, mas a diretriz do último criador havia borrado e finalmente apagado asespecificações. Parecia não haver regras sobre quando as catacumbas deveriam serabertas novamente. E nem sequer para quem. As catacumbas que ele protegia deveriamser deixadas invioladas, deveriam ser protegidas e preservadas, deveriam ser mantidasocultas e seguras.

Para sempre.Quando a primeira das criaturas de quatro patas apareceu vagando nas ruínas, anos

depois que o último de seus criadores havia desaparecido, Antrax estava pronto. Elehavia vasculhado seus bancos de memória para obter os detalhes das defesas e armasque lhe haviam sido dadas e as utilizou. Lasers cortaram sem esforço muitos dosintrusos. Sentinelas de metal e unidades de combate caçaram o restante. As criaturas dequatro patas não constituíam um desafio, mas deram a Antrax uma chance de testar suahabilidade para cumprir a diretriz.

Posteriormente, humanos também tentaram se aventurar dentro das ruínas, paraexplorar as câmaras demolidas e as passagens em ruínas, e começaram até mesmo aachar o caminho para o subterrâneo. Nenhum deles tinha o código. Antrax destruiu atodos. Mas outros voltavam de tempos em tempos, alguns deles se tornando

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reconhecíveis por seu aspecto ou persistentes em seus esforços. Como formigas, elescavaram túneis, pequenos aborrecimentos que se recusavam a ser caçados por poucotempo. Nem mesmo os lasers e as sondas conseguiam desencorajá-los. Antrax começoua explorar outras soluções. Encontrou possibilidades interessantes em seus bancos dememória e fez experiências com elas. Os wronks provaram ser os mais bem-sucedidos.Alguma coisa em revisitar os mortos era especialmente assustador para os humanos.

Eles lhe deram um nome: Antrax. Pegaram esse nome de sua própria linguagem.Antrax não tinha idéia do que significava. Nem queria saber. O que importava era quesoubessem que ele estava ali. Isso era o bastante para realizar o que era necessário. Oshumanos começaram a evitar as ruínas. Não passavam mais tempo buscando entradaspara as catacumbas.

Mas Antrax começara a gostar de seus wronks, adaptou-os para servir a outrasnecessidades. Ele continuou a colher os humanos para as partes que os wronksprecisavam. Continuou a fazer experiências. Os humanos não eram mais intrusos, erampresas.

Foi a falha na primeira célula de alimentação que fez com que Antrax explorasse omundo maior. Havia três dessas células, vastos capacitores que coletavam energia do sole alimentavam os receptores para que Antrax pudesse funcionar. Elas haviam sidocriadas para durar para sempre, desde que existissem sol e luz. Mas tudo tinha uma vidafinita, até mesmo componentes construídos para durar para sempre, especialmentequando esses componentes trabalhavam além do normal. Antrax havia evoluído comoguardião das catacumbas. Seu compromisso com a sua diretriz havia se multiplicado, eseu apetite, crescido, e precisava de mais combustível do que fora antecipado por seuscriadores. Suas células eram drenadas de energia mais rápido do que o sol podiareabastecê-las. Talvez fosse a tensão de manter os lasers, as sondas e os wronks. Talveza eficiência das células tivesse sido muito superestimada, para começo de conversa. Emqualquer caso, Antrax estava perdendo energia.

Decidiu que deveria encontrar outra fonte de energia.Agiu rápido. Enviou suas sondas em busca de uma fonte dessas, bem distante no

mundo, além do que Antrax conhecia. As sondas não haviam sido feitas para voltar,apenas para enviar as informações que adquirissem. Fizeram conforme o programado, eembora a maioria dos lugares não tivesse vida humana nem as fontes de energia de queAntrax precisava, um desses lugares mostrou promessas. Ficava do outro lado do mar, aleste, uma terra na qual os humanos haviam sobrevivido às Grandes Guerras. Acivilização deles era rudimentar, mas havia possibilidades a serem exploradas. O AntigoMundo havia mudado e a humanidade, evoluído. Das ciências do passado quase não sevia nada. Em lugar disso, havia um novo tipo de ciência. Elementos dessa ciência eramcapazes de gerar uma energia bem maior do que aquela que sustentava Antrax. Oselementos podiam ser encontrados em armas e talismãs carregados pelos descendentesde seus criadores. Mas a genética e o treinamento haviam implantado em alguns desseshomens e mulheres os elementos da energia, de forma que neles a energia era geradade dentro.

Um sonho, ou o que o sonhador pensou ser um sonho, havia levado o primeiro dos

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sobreviventes das Grandes Guerras até Antrax trinta anos antes. Daqueles, apenas umfora útil. Agora, aquele, dotado de um mapa que revelava a existência das catacumbas ede seu conteúdo, havia atraído outros. O que tinha valor para os criadores teria valorpara seus descendentes, compreendesse Antrax a natureza desse valor ou não.Examinados e medidos nas ilhas que Antrax havia estabelecido como terrenos de testeatravés de sondas despachadas anos antes, sujeitos a ataques por criaturas e espíritosque nenhum humano comum esperaria vencer, alguns demonstravam ser mais poderososdo que seus companheiros, e foram, portanto, considerados adequados para coleta. Pelomenos três haviam entrado nas ruínas, e talvez mais aguardassem do lado de fora.Antrax os usaria como havia utilizado aquele trinta anos antes, como componentesessenciais para a continuação de sua existência, sacrifícios necessários para a suadiretriz. O criador havia sido específico. As vidas de humanos eram indispensáveis. EraAntrax quem deveria sobreviver.

No fundo dos corredores e câmaras de seu domínio, Antrax diminuiu sua passagemacelerada e parou para fazer um inventário daqueles que utilizaria para alimentá-lo.

Um deles estava momentaneamente além de seu alcance, embora um wronkespecial estivesse sendo construído para caçá-lo.

O segundo já estava a caminho.Mas era o terceiro que mais interessava a Antrax. O que realmente havia percorrido

todo o caminho dentro das catacumbas. Ele havia passado pelo código na porta da torre.Não era um criador, um dos esperados, mas tinha recursos e um poder interno incrível.Antrax não conseguiu determinar a fonte de seu poder, apenas sua medida. O queimportava era que havia poder suficiente para sustentar Antrax por décadas, talvez porséculos, limitado apenas pela capacidade das unidades de armazenamento disponíveis.

Antrax já estava coletando e convertendo esse poder, retirando-o do intruso sem queele percebesse, sugando-o pouco a pouco. Ele parecia se restaurar sozinho, de forma quea coleta ainda não era prejudicial à saúde do intruso. Mas isso poderia mudar. Antraxteria de monitorá-lo bem de perto. Estendendo seus sensores para fazer as leiturasnecessárias, levou um momento para fazê-lo, descobrindo que o intruso ainda trabalhavaduro em seu esforço inútil de fuga.

O druida conhecido como Walker, que, em uma época antes de perder o braço eencontrar o destino, havia sido chamado tanto de Walker Boh quanto de Tio Negro, aindaestava procurando o caminho de saída. Ele estava em uma das miríades de passagens deCastledown e tentava entender o que estava fazendo de errado. Seu estômago davavoltas e a cabeça doía. Alguma coisa estava faltando. Mesmo sem saber o que era, podiasentir isso com tanta certeza quanto podia sentir o desconforto em seu corpo. Todos osesforços para superar seus perseguidores haviam fracassado. Todas as tentativas de fugahaviam levado a nada.

Atrás dele, na quase escuridão dos corredores e das câmaras, invisíveis porenquanto, mas ali mesmo assim, os rastejadores caçavam. Estava fugindo deles desde omomento em que havia caído no chão da torre negra e descido por uma rampa em

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espiral que levava àquelas profundezas inferiores. Eles o haviam descoberto naquelemomento e ele os combatera e escapara. Mas para todo lugar que ia, para todo lugaronde se virava, eles o aguardavam. Castledown estava cheia deles, caçando nasprofundezas em tamanha quantidade que Walker não via como um exército poderiaresistir a eles, quanto mais um único homem. Mesmo assim ele o faria, por tanto tempoquanto fosse capaz, por tanto tempo quanto sua força o permitisse.

O que o surpreendia em sua fuga desesperada era como tudo era infinitamentesemelhante. Um sem-fim de corredores e aposentos, todos sem nada além demaquinaria embutida nas paredes e cabos de energia que alimentavam essas máquinas,todos idênticos. Nada em nenhum deles era diferente; nada sugeria a presença dotesouro que ele buscava. Não havia portas escondidas nem passagens secretas, nãohavia painéis ocultos, sobre ou acima dos quais poderia haver um tesouro. Não podiadetectar nada do que tinha certeza de que estava ali. Sabia o que estava procurando. Aocontrário dos outros que tinham ido procurar o tesouro, a não ser talvez pela bruxa Ilse,ele sabia exatamente o que deveria encontrar.

A não ser que fosse tudo uma mentira inteligente, bolada pelo criador do mapa paraatraí-lo e aprisioná-lo.

Mas ele havia descartado essa possibilidade havia muito tempo. O conhecimentocontido naqueles símbolos e marcações era mais revelador do que o criador do mapahavia tencionado. Sem saber, talvez, o criador do mapa havia revelado uma verdade quenão entendia completamente.

Que Castledown era uma armadilha ele percebeu quase desde o começo, e o motivopara aquela armadilha se tornou claro depois de suas experiências nas ilhas Flay Creech,Shatterstone e Mephitic. O que vivia dentro de Castledown queria a magia deles. Omotivo pelo qual queria a magia e o propósito que tinha para seu uso permaneciam ummistério. Walker nem sequer sabia se seu adversário estava procurando alguma formaespecífica de magia. Poderia estar procurando apenas mais alguém para carregar aspedras élficas perdidas, alguém para assumir o lugar de Kael Elessedil. Poderia estarprocurando algo mais.

Fosse qual fosse o caso, ele havia utilizado o náufrago e o mapa como iscas, aschaves como anzóis, as ilhas como terrenos de teste, os espíritos de criaturas naquelasilhas como varas e a curiosidade e a persistência de suas vítimas como estímulos. Aschaves que eles haviam lutado tanto para obter não tinham valor algum em nenhumsentido real, claro. Ele ainda as levava dentro de seus mantos, mas desde entãodescartara a possibilidade de que provassem ser úteis. Eram anzóis e nada mais. Mas omapa, sem contar a crença de seu fabricante de que ele também era apenas uma isca,tinha valor.

Nada disso ajudava Walker em sua luta. Começou a caminhar ao longo daspassagens mais uma vez, examinando tudo, procurando escapar ou encontrar o tesouroescondido. Qualquer uma das duas coisas daria o que ele precisava, uma saída, umaarma para usar contra seu misterioso adversário. Ficou imaginando como seria o destinodaqueles que ainda estavam na superfície. Jamais o encontrariam. Poderiam nem sequertentar. A destruição que haviam encontrado poderia tê-los desmoralizado

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profundamente. Se ele estava perdido, raciocinariam, que chance eles tinham? Tinha deesperar que um ou dois mantivesse o resto unido, que aqueles com os quais ele maiscontava permanecessem firmes e achassem o meio de fazê-lo.

Mesmo assim, tinha de voltar para eles rapidamente. O tempo estava trabalhandocontra ele e ele tinha de se libertar do labirinto.

Os rastejadores saíram das paredes bem na sua frente. Rajadas brilhantes de fogodruídico eram lançadas dos dedos de Walker. Pedaços dos atacantes saíram voando, eentão ele passou correndo por seus restos, para encontrar outros esperando adiante.Também destruiu estes, ainda avançando, sabendo que poderiam rastreá-lo por suamagia, que poderiam determinar seu progresso por seu uso da magia. Quanto menos elea gastasse, melhor. Mas não poderia se esconder completamente, não poderia mascararsua passagem suficientemente, não importava o que fizesse.

Fez uma curva e encontrou um novo conjunto de passagens. Dolorido e sem fôlego,recostou-se numa fria parede de metal e colocou a mão sobre o estômago, quequeimava. O labirinto de câmaras e corredores era desorientador. Olhou para a frente edepois para trás. Já havia passado por ali antes. Ou por outro corredor exatamente igual.Estava caminhando em círculos, virando para este lado e para aquele sem um fim emvista. Sua mente rodopiava com as possibilidades do que poderia estar acontecendo, masuma nova onda de rastejadores o distraiu e o forçou a ficar e lutar mais uma vez.

Atacou-os, jogando-os de lado com sua magia, fazendo com que batessem contra asparedes da passagem, transformando-os em pilhas estilhaçadas e fumegantes.Conseguiu se libertar mais uma vez.

Instantes depois, estava sozinho de novo, um fugitivo solitário em um mundoestranho. Ainda não se sentia bem. A sensação estranha estava ali, em seus ossos e emseu coração. Estava meio passo mais lento em seus movimentos, um pouco mais lentoem seu raciocínio, desequilibrado o bastante para não estar funcionando como sabia quedeveria. Por que isto estaria acontecendo? Correu por sombras e trechos iluminados porlâmpadas sem chama, tentando encontrar uma resposta.

Mas nenhuma resposta lhe ocorria. Continuou correndo, procurando por uma ajudaque não estava ali.

Antrax monitorou o humano por mais alguns momentos, fazendo medições. O sifãoestava forte e sem obstruções. A energia da liberação do fogo do intruso entrava noscompressores e em seguida nos capacitores que abrigavam o combustível do qual Antraxse alimentaria. Antrax deixaria o humano fugir dos rastejadores por mais algum tempo, eentão mudaria o cenário para lhe dar alguma coisa inteiramente diferente para fazer. Aspossibilidades eram infinitas. Mas era preciso ter cautela. O humano era inteligente,rápido de raciocínio. Se Antrax não tomasse cuidado, se não fosse sutil o suficiente, eleveria através do subterfúgio. Isto não poderia acontecer.

Deixando-o de lado, Antrax voltou pelos quilômetros de cabos de energia queserpenteavam pelas passagens e câmaras, alimentando seus sensores enquanto faziauma inspeção rápida no perímetro. Nenhuma fronteira havia sido violada. Mais nenhum

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intruso havia tentado entrar. Satisfeito, voltou ao aposento no qual o wronk especialestava sendo construído.

As coisas estavam progredindo conforme o esperado. Sondas de cirurgia, com suahabilidade costumeira e toque delicado, estavam montando o wronk. As partes estavamespalhadas em maças, as de metal esterilizadas e embrulhadas, as de carne e ossoligadas aos sistemas de suporte de vida, fluidos corpóreos artificiais sendo bombeadossem parar por artérias e veias. O processo de unir carne a metal e material sintético jáhavia começado, uma técnica de fusão desenvolvida nos últimos dias do Antigo Mundo eaperfeiçoada desde então por Antrax através de estudos e experiências. Por um longotempo houve falhas; a loucura havia tomado conta dos primeiros wronks e negado suautilidade. Mas Antrax acabou achando uma forma de controlar a mente dos wronks osuficiente para eliminar a opção de insanidade. Crises eventualmente tornavam oswronks inúteis, mas elas demoravam cada vez mais a chegar e eram menosdevastadoras quando surgiam. De vez em quando o dano podia ser reparado e os wronkscolocados de volta para trabalhar. As sondas de cirurgia eram bastante eficientes em seutrabalho.

Através de imagens transmitidas por seus sensores, Antrax estudou o rosto de seuobjeto mais recente enquanto sua cabeça flutuava no fluido preservador. Olhava de umlado para outro, procurando uma maneira de escapar, sem compreender que o meio defazê-lo há muito lhe havia sido retirado. Os produtos medicinais, alimentados através detubos que corriam por sua garganta, o mantinham estabilizado e calmo. Sua boca estavaaberta, como se fosse um peixe se alimentando. Ele estava em perfeitas condições.

Antrax fez um rápido inventário das partes ainda não montadas. Quando estivessecompleto, o wronk seria o mais poderoso jamais construído, em grande parte porque ohumano do qual ele estava sendo construído era um excelente espécime com habilidadessoberbas. Para trazer os outros elementos do poder à tona e superar os humanos que ospossuíam, teria de ser. Mas a tecnologia do Antigo Mundo podia realizar qualquer coisa.Antrax teria suas fontes de poder em mãos e trabalhando para seu benefício em poucotempo.

Que os humanos corressem o mais rápido e mais distante que pudessem, elepensou. No fim, isso não importaria. Castledown e suas catacumbas lhe haviam sidodadas para que ele as preservasse e protegesse, mas o mundo além, mesmo aquelaparte tão distante que ainda era um mistério, não estava fora de seu alcance. Oscriadores haviam dado a Antrax uma diretriz e não havia restrições sobre os métodos quepodia empregar para realizá-la. Se o poder que Antrax exigia estivesse em outro lugar,ele encontraria uma forma de trazê-lo mais perto. Se a energia de que precisava tivessede ser obtida ao custo de vidas humanas, que assim fosse.

Antrax havia sido programado para acreditar que nada era mais importante que asua sobrevivência. Nada havia acontecido para mudar essa crença.

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11

A mão que agarrou o ombro de Bek e o sacudiu de seu sono era forte e nervosa.— Acorde! — Truls Rohk sibilou em seu ouvido. — Ela nos encontrou!Bek não precisou perguntar sobre quem o mutante estava falando. A bruxa Ilse. Sua

irmã. Sua inimiga. Levantou-se correndo, ainda meio sonolento. Piscou repetidas vezespara se lembrar de onde estava, para clarear a cabeça. Só conseguiu em parte. Sentiu amão do outro o acalmando, menos urgente, quase gentil.

— A que distância ela está? — ele conseguiu perguntar.— Perto o bastante para ouvi-lo roncar — sussurrou o outro, fazendo um gesto para

a escuridão atrás dele.Ainda era noite, o céu uma tapeçaria de estrelas contra a qual finas tiras de nuvens

partidas flutuavam como linho. A lua era um crescente que apontava ao norte nohorizonte. A floresta que os cercava era de um negror impenetrável. Ela os estavarastreando na escuridão, percebeu Bek. Como conseguia fazer isso? Será que podia ler ostraços do calor e da energia de seus corpos mesmo à noite? Supôs que podia. Não haviamuita coisa que ela não pudesse fazer com a magia da canção do desejo para ajudá-la.Ele havia adormecido ao crepúsculo, certo de que a haviam despistado na campina, quea haviam deixado longe o bastante para assegurar pelo menos uma boa noite de sono.Era nisso que dava ter tanta certeza.

— Como ela conseguiu nos achar tão rápido? — murmurou ele. Respirou fundoalgumas vezes, estremecendo quando uma rajada súbita de vento gelado soprou dasmontanhas.

O rosto de Truls Rohk era inescrutável dentro das sombras de seu capuz.— Sorte, eu acho. Ela não deveria ter mais nenhuma depois do que fizemos para

afastá-la, mas tem tantos recursos que faz sua própria sorte. Comece a andar.Pegando os poucos suprimentos, partiram de seu acampamento, dirigindo-se mais

uma vez para dentro da ilha, andando paralelamente à base das montanhas. Não seesforçaram para esconder sua passagem. Se a bruxa Ilse os havia rastreado até aqueleponto, não teria problemas em descobrir onde haviam passado a noite. Bek estavaimaginando se havia sido salvo pelos instintos de Truls Rohk ou por anteciparpreviamente as coisas. Em qualquer caso, isso deu a Bek um senso renovado dedependência em relação a Truls Rohk. Bek havia dormido, afinal. Se tivesse tentado fugirsozinho de sua irmã, ela já o teria apanhado.

Balançou a cabeça. O que isso significaria para ele, estar nas mãos dela? Quandofinalmente acontecesse, quando ela por fim os apanhasse, como ele tinha certeza de queela faria, o que aconteceria?

Desceram uma encosta de colina íngreme até chegarem a uma planície rochosa e se

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apressaram para cruzar o rio. Atravessaram o vau, subindo a corrente, até o outro ladopara descerem à margem. A água estava gelada e corria rápido, e Bek precisou seconcentrar muito para manter os pés plantados solidamente abaixo dele.

— Ou ela deu com nossa verdadeira trilha sem querer e ainda está confiando em suamagia para nos rastrear ou encontrou um aliado que sabe ler sinais. — A voz do mutanteera baixa e ameaçadora, um sussurro de fúria sombria sobre o gorgolejo suave da água.Sua forma encapuzada parecia flutuar sobre a água, seus movimentos firmes edeliberados contra a corrente. — Vamos ter de descobrir qual das duas coisas.

Continuaram a subir a corrente por quase dois quilômetros, então escalaram atéuma planície rochosa na outra margem e caminharam por algum tempo para dentro dailha. A leste, o céu estava começando a clarear com um brilho prateado; aproximava-se onascer do sol. Bek se pegou pensando no amanhecer nas Highlands de Leah, de caçadascom Quentin no início da aurora, de como aquilo parecia tão igual e ao mesmo tempo tãodiferente. Desperta agora, sua mente trabalhava lépida por entre os escombros de suavida. Ele não tinha mais medo, não da maneira que tivera nas ruínas de Castledownquando os fios de fogo e os rastejadores os haviam atacado. Mas estava se sentindoperdido; estava se sentindo desconectado. Tudo que conhecia de sua vida passada lhefora arrancado: seu lar, sua família e sua terra. Não restava mais nada, e quanto maisele andava, mais improvável parecia que algum dia fosse ter qualquer dessas coisas devolta.

Era como se ele estivesse saindo de si mesmo, como se estivesse soltando sua pele.Tocou a espada de Shannara nas suas costas e tentou encontrar consolo em sua

presença sólida e indispensável, mas não conseguiu.Truls Rohk o levou rio abaixo e mais uma vez para as águas frias. O sol já havia se

levantado, a luz prateada se tornara dourada, os primeiros tons de céu azul visíveis. Osom da água corrente o envolvia e ele voltou sua atenção para se manter ereto eandando para a frente. Atravessaram o canal uma segunda vez, de volta até ficarempróximos da outra margem, e então começaram a vadear rio acima. A água fria deixou aspernas de Bek dormentes e depois de algum tempo ele mal conseguia sentir os pésdentro das botas. Continuou andando, forçando-se a colocar um pé na frente do outro epensar em tempos melhores, pois não havia mais nada que pudesse fazer.

Quando estavam a vários quilômetros de distância rio acima, em uma curva do rioonde os galhos de imponentes cedros e plátanos pendiam sobre a água, Truls Rohkparou. Enfiou a mão em seus mantos e retirou um pedaço de corda fina e um estranhogancho no qual as alavancas estavam caídas de encontro à base, mas que se desdobroue travou no lugar quando ele soltou um fio que as prendiam na posição abaixada.Dobrando a corda através de um buraco na base do gancho, ele enrolou-acuidadosamente no antebraço esquerdo. Fazendo um gesto para que Bek ficasse quieto,atravessou o rio, pisou por um momento na margem, deu vários passos na direção dasárvores e então recuou cuidadosamente, repassando suas próprias pegadas, tornou aentrar na água e subiu cinqüenta metros adiante até uma elevação que a correnteza malescondia. Certificando-se de que o garoto estava onde ele o havia deixado, começou abalançar o gancho sobre a sua cabeça, soltando a corda gradualmente para ampliar o

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arco. Jogou o gancho para o alto, na direção dos galhos das árvores.O gancho se prendeu. Puxou-o para experimentar, e então fez um gesto para que

Bek se aproximasse.— Suba nas minhas costas, coloque os braços ao redor do meu pescoço e segure

firme.Bek assim o fez, sentindo os músculos poderosos embaixo dele, as cordas de

tendões e cartilagens que cruzavam os ombros do outro e faziam com que parecesse umanimal. O garoto tentou não pensar nisso. Prendendo a mão direita no pulso esquerdo,segurou firme.

Truls Rohk agarrou a corda e começou a subir com uma mão atrás da outra,balançando através do rio. Passando sobre as águas geladas, eles esticaram as pernasquando chegaram ao nadir de seu arco antes de tornarem a subir até a margem próximaonde o rio rumava para a esquerda. Logo acima da margem, bem no fundo das árvores,Truls Rohk soltou suas mãos apenas o bastante para deslizar de volta ao chão. Aindasegurando a ponta da corda, esperou que Bek descesse de suas costas e então recolheua corda através do buraco até que ela se soltasse do gancho, enrolou-a mais uma vez eenfiou-a debaixo de seus mantos.

— Isso deverá lhe dar algo para ficar intrigada — o mutante grunhiu baixinho. — Setivermos sorte, ela irá pensar que fomos para a outra margem e nos rastreará naqueladireção.

Tornaram a avançar para o interior, para longe do rio e de volta para as montanhas,passando por um terreno pedregoso e leitos de rios secos, evitando terrenos macios quedeixassem pegadas, mantendo distância de arbustos cujos gravetos quebradosassinalariam sua passagem. O sol estava alto, aquecendo seus corpos frios e secandosuas roupas. Truls Rohk caminhava curvado para a frente como uma grande fera, maciçoe imenso, enigmático e desconhecido dentro dos mantos e do capuz. Bek, andando logoatrás, percebeu que estava pensando se o mutante algum dia se expusera à luz. Notempo em que estiveram juntos desde que se conheceram nas Wolfsktaag, ele não fizeraisso uma só vez. Isso não preocupou Bek como no começo, mas ele pensou em comoseria estar sempre enrolado em trapos e nunca se sentir à vontade para se mostrar aninguém. Perguntou-se mais uma vez sobre a ligação entre os dois, um elo forte obastante para fazer com que o mutante estivesse disposto em aceitar seu papel comoprotetor de Bek e vir na jornada quando poderia simplesmente ter recusado.

Caminharam o dia todo, afastando-se das terras baixas e entrando nas montanhas,escalando as encostas inferiores até um promontório cheio de florestas, de onde Bekpôde ver toda a terra que ia até o rio do qual vieram. Truls Rohk parou ali, aproveitou umrápido instante para olhar ao redor e então guiou Bek por entre as árvores.

— Escolher um lugar de onde você possa ver qualquer pessoa se aproximando émuito bom — ele ressaltou. — Mas se você pode vê-los, eles provavelmente tambémpodem ver você. Melhor não arriscar. Há melhores caminhos. Assim que estiver escuro,tentarei um deles.

Encontraram um espaço de gramado seco dentro de um bosque de cedros e sesentaram para comer e beber. Ainda tinham água para vários dias, e nas montanhas

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reabastecer o que consumiam não seria difícil. Mas a comida estava quase no fim. No diaseguinte teriam de caçar. E depois também. E assim por diante, o que fez Bek seperguntar mais uma vez até onde iriam.

— Podemos encontrar ajuda nessas montanhas. — Seu companheiro arriscou depoisde algum tempo, quase como se estivesse lendo a mente do garoto. Bek olhou para ele.— Mutantes vivem nestas colinas. Sinto a presença deles. Eles não me conhecem nem aminha história. Podem pensar diferente dos que vivem nas montanhas Wolfsktaag arespeito de mestiços. Podem estar dispostos a nos ajudar.

As palavras saíam suaves e contemplativas, quase como uma prece. Issosurpreendeu Bek.

— Como irá fazer contato com eles?O outro deu de ombros.— Não será preciso. Eles virão a nós se continuarmos. Agora estamos em seu

território. Eles saberão o que eu sou e virão saber o que quero. — Ele balançou a cabeça.— O problema é que, como regra geral, mutantes não interferem nas vidas dos outros,mesmo com sua própria espécie, a menos que tenham razão para fazê-lo. Temos de daruma razão a eles se quisermos sua ajuda.

Bek pensou sobre isso um instante.— Posso lhe perguntar uma coisa?O homem nas sombras virou-se ligeiramente para encará-lo; a abertura escura no

capuz parecia vazia.— O que você quer me perguntar, Bek Ohmsford, que já não tenha perguntado?Isso foi dito quase em tom de desafio. Bek ajustou a espada de Shannara que estava

ao seu lado na grama, e em seguida puxou para trás seus cabelos meio desgrenhados.— Você disse que mutantes não interferem nas vidas dos outros sem motivo. Se isso

é verdade, por que escolheu se envolver na minha vida?Houve um longo silêncio enquanto o outro o estudava de dentro da escuridão de seu

capuz. Bek ficou desconfortável.— Eu sei que você disse que sentia que havia um elo entre nós, através de nossa

magia...— Você e eu somos parecidos, garoto — interrompeu Truls Rohk, ignorando o resto

do que Bek estava tentando dizer. — Eu me vejo em você como garoto, lutando paraaceitar quem eu era, lutando para descobrir que eu era diferente dos outros.

— Mas não é isso, é? Não é essa a razão.Truls Rohk pareceu tremeluzir, sua escuridão se tornando líquida, como se ele

pudesse simplesmente se desvanecer sem responder nada, como se pudessedesaparecer e nunca mais voltar. Mas o movimento se firmou e o homenzarrão ficouparado.

— Eu salvei a sua vida — disse ele. — Ao salvar a vida de outra pessoa você se tornaresponsável por ela. Aprendi isso há muito tempo. Acredito nisso.

Fez um gesto rápido de desdém.— Mas é muito mais complicado. É uma espécie de jogo, outra espécie. Não tenho

ninguém em minha própria vida: nem casa, nem pessoas, nenhum lugar que me

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pertença. Não tenho objetivo verdadeiro. O futuro está em branco. É uma necessidade dedireção que me atrai para o druida. Por algum tempo ele me dá uma. Cada mensagemque ele envia é um convite para fazer parte de algo. Cada mensagem me dá uma chancede descobrir algo a meu respeito. Não faço muito disso nas Wolfsktaag. Não restou muitode mim para descobrir ali.

“Você, garoto, você me interessa porque oferece respostas às perguntas que eumesmo me fiz. Eu aprendo com você. Mas também posso ensiná-lo; como viver como umestrangeiro, como sobreviver ao conhecimento do que e de quem você é, como suportara magia que sempre será parte de você. Estou curioso para ver como aprenderá.Curiosidade é tudo o que tenho, e tento satisfazê-la sempre que posso.

— Você me ensinou mais do que eu jamais poderia esperar ensiná-lo — Bek arriscou.— Não vejo como possa fazer tanto por você.

Por apenas um instante, o mutante ficou absolutamente quieto. Então soltou umgrunhido baixo.

— Não tenha tanta certeza disso. Ainda é muito cedo. Se você viver tempo obastante, poderá se surpreender.

Bek deixou isso passar. Truls Rohk dava-lhe apenas o bastante para mantê-lo feliz,mas não tudo. Havia mais alguma coisa que ele não estava revelando, algumainformação importante que estava guardando para si. Provavelmente era verdade queele tinha uma ligação com Bek, que a sentia em parte por causa da magia e em parteporque havia salvado a vida do garoto. Também era provavelmente verdade que elefizera a viagem porque isso lhe dava um propósito e insights, e satisfazia suanecessidade de se envolver com alguma coisa. Viver sozinho nas Montanhas Wolfsktaagpoderia ser realmente uma coisa muito limitadora e restritiva. Mas mesmo assim isso eraapenas parte do que o havia levado até ali, e a maior parte, a verdade maior, estava emalgum outro lugar de sua caixa de segredos.

— Por que você nunca tira seu manto? — Bek perguntou súbita e impulsivamente.Fez isso sem pensar, mas sabendo mesmo assim que iria gerar uma resposta forte. E

gerou. Pôde sentir uma mudança instantânea no outro, um afastamento frio que falavade raiva, frustração e tristeza também, mas não recuou.

— Por que você nunca me mostra seu rosto? — ele insistiu.Truls Rohk ficou silencioso por um momento. Bek podia ouvir sua respiração,

entrecortada e agitada dentro da escuridão que o envolvia.— Você não quer me ver como eu realmente sou, garoto. Você não quer me ver sem

este manto.Bek balançou a cabeça.— Talvez eu queira. O que há de errado em ver quem você realmente é? Se estamos

ligados como você diz, vinculados pela magia que compartilhamos, você realmente nãodeveria esconder seu aspecto.

— Hssst! O que você sabe de minhas necessidades? Mal nos conhecemos, você e eu.Acha que está pronto para o que está oculto sob estes mantos e dentro deste capuz, masnão está. Você não sabe nada de quem sou. Não há outro como eu lá fora, um mestiço:mutante e humano ao mesmo tempo. Não há modelo para o que eu sou. Talvez nem

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mesmo eu saiba o que é isso. Já pensou a respeito? Nós mudamos como queremos, osmutantes tornam-se o que precisam ser. O que isso significa, quando metade de você éhumana? O que acontece quando parte de você é imutável e parte é tênue como o ar?Pense nisso antes de pedir novamente para me mostrar como sou!

Então ele se levantou.— Basta disso. Tenho pensado em nossa situação. A bruxa ainda nos rastreia, sua

irmã. Mesmo que tenha sido despistada pelo cheiro no rio, ela nos encontrará de novo.Quero saber se ela já fez isso e que ajuda encontrou. Se estiver perto, preciso achar umjeito de reduzir a velocidade dela. Vou voltar pela montanha para saber se ela apanhounossa trilha.

Fez uma pausa.— Durma enquanto eu estiver fora, garoto. Procure por mim em seus sonhos. Ou em

seus pesadelos, melhor ainda. Talvez neles você veja quem eu realmente sou.Virou-se e partiu, desaparecendo na noite. Bek ficou olhando em sua direção. Não

tornou a se mover por muito tempo.

A bruxa Ilse terminou de mastigar a raiz de vegetal que havia colhido para seu jantar eficou olhando a escuridão crescente. Dentro em pouco partiria novamente, rastreando ogaroto e o mutante mais uma vez, seguindo-os até as montanhas. Eles eram espertos echeios de recursos — ou pelo menos o mutante era — e não podia se dar ao luxo dedeixá-los seguirem muito adiante. Devia se esforçar para mantê-los ao seu alcance.Poderia até mesmo apanhá-los naquela noite se parassem para repousar. Teriam defazer isso, não teriam? O garoto não tinha disposição para prosseguir sem descansar,ainda que o mutante a tivesse. Teria de dormir em algum momento. Se ela fosse rápidao bastante, os pegaria desprevenidos.

Terminou o que queria da raiz e jogou o resto fora. Já os teria apanhado àquelaaltura se eles não tivessem trabalhado tanto para despistá-la. Aquilo lá no rio foraesperto, criar uma trilha falsa em uma das margens e pular para a outra usando umacorda. Isso havia confundido o caull, o havia mandado correndo para cima e para baixoda margem errada sem objetivo, fizera com que ele ficasse meio louco de raiva. O caullera habilidoso e possuía instintos excepcionais, mas não tinha insight. Fora ela quem virao gancho ainda preso nos galhos superiores daquela árvore e o enviara de volta pelo riopara procurar a nova trilha. Àquela altura, ela já dera à sua presa o tempo que haviamperdido para ela durante a noite. Nesta noite ela deveria compensar tudo outra vez. Masseria fácil se o garoto dormisse.

Os arbustos se abriram e o caull reapareceu. Ela o mandara encontrar algo paracomer, e pela mancha de sangue em seu focinho fora bem-sucedido. Aproximou-se a dezmetros dela e sentou-se sobre as patas traseiras, observando. Era uma fera perigosa.Não podia se dar ao luxo de dar-lhe as costas; ele a odiava pelo que lhe havia feito e amataria se tivesse chance. Era obediente porque não tinha escolha; sua magia mantinhaa criatura na linha. Mas se afrouxasse o cabresto, um pouco que fosse...

Ela o estudou um momento, depois desviou o olhar, descartando-o. Era importante

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demonstrar que não tinha medo nem sequer estava particularmente interessada nelealém de sua utilidade imediata. Ela o havia criado para um objetivo, e ele estava ali paraservir a esse objetivo e nada mais. Não tinha idéia do que a criatura achava que seriafeito com ela quando o garoto fosse encontrado. Provavelmente não tinha condições depensar tanto assim adiante, o que era ótimo.

Mas quando se deu conta estava se perguntando o que faria com o garoto. Era muitofácil decidir o que aconteceria com o caull e com o mutante, mas o garoto era outracoisa. Ela não havia percorrido todo aquele caminho só para acabar com ele; ele era umelo importante para compreender o druida, uma janela potencial para dentro de suamente. Antes que o druida morresse, ela saberia tudo o que haveria para saber arespeito dele. O garoto era um dispositivo para perturbá-la e confundi-la, mas tambémpoderia provar ser um recurso. Havia coisas sobre ele que precisavam de compreensão:como ele podia ter uma magia tão parecida com a dela, como podia saber tanto arespeito dela que parecesse verdadeiro, como podia parecer tão real. Ela sabia que haviaexplicações para aquilo tudo, mas as explicações não eram o bastante para ela naquelemomento. Ela teria toda a verdade antes de acabar com ele. Ela o sugaria por completoantes de jogá-lo fora. Voltou a imaginar seu rosto, lembrar-se de sua voz. Ainda podiaouvi-lo dizer que ela era sua irmã, que ele era Bek, que sobrevivera de algum modo aoincêndio de seu lar e à morte de sua família. Naturalmente, ela não podia aceitar isso. Odruida havia desejado somente ela, e quando ela dissera ao Morgawr como haviaescondido seu irmão, ele se certificara de que não havia mais ninguém vivo nas cinzas desua casa.

Sombras negras se juntavam no fundo de seus pensamentos, e então seaglomeravam na frente em sinal de alerta. A menos que ele estivesse mentindo. Amenos que o Morgawr tivesse escondido a verdade sobre Bek. Mas não podia havermotivo para isso, quando Bek poderia ter se tornado útil para ele da mesma maneira queela. Não, o druida e seus comparsas haviam enganado seus pais e em seguida osassassinado, tudo por causa dela, por causa do que e de quem ela era. Ele sozinho era oresponsável e deveria responder por isso, e o garoto era apenas outro peão usado naguerra deles para destruírem um ao outro. O garoto era esperto, mas um artifício, umestratagema do druida; no fim ele era apenas ainda um garoto que tinha a aparência queBek poderia ter tido caso vivesse até então, apenas um garoto que fora enganado parapensar que era alguém que não era.

Ela se levantou e o caull se levantou com ela, olhos brilhando de expectativa. Estavapronto para caçar, e ela estava pronta para deixá-lo fazer isso. Enviou-o adiante com umgesto, deixando que ele farejasse a trilha, mas mantendo-o perto o suficiente para quenão pudesse agir sem que ela soubesse. Ela não queria que ele pegasse o garoto e ofizesse em pedaços antes que ela tivesse uma chance de sondar-lhe a mente. O mutanteera outra história, mas ela duvidava que o caull fosse pegar aquele ali desprevenido.Muito provavelmente teriam de lidar com ele antes que pudessem esperar encontrar ogaroto. Ela ficou imaginando mais uma vez por que o mutante teria tanto interesse nasquestões deles. Talvez estivesse a serviço do druida, embora isso fosse incomum paraum mutante. Talvez ele estivesse ligado de algum modo à morte dos pais dela e à

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destruição de sua casa, e sua própria vida estivesse em risco por causa disso. O druidahavia utilizado mutantes para levar adiante seu propósito. Talvez ele fosse um daqueles.

Ela ficou remoendo as possibilidades enquanto seguia o caull, mantendo os sentidosalertas para o que estava ao redor. A escuridão da floresta escondia muitas coisas, e umadelas podia ser seu inimigo. Ela se moveu silenciosa em seus mantos cinzentosamarrados, deslizando por entre os arbustos e as árvores como uma sombra. O céunoturno estava claro e a luz das estrelas inundava o teto de galhos acima. Havia luzdemais para fazê-la ficar à vontade. Ela captou vislumbres do caull que ia adiante,fragmentos de movimento em trechos prateados de floresta. A criatura andava para afrente e depois em círculos, sem parar, mantendo-se na trilha que sua presa haviadeixado, lendo os sinais, selecionando-os para ter certeza de que não estava sendolevada para o caminho errado. Era boa nisso; todos os sentidos de lobo estavam intactose trabalhando dentro de sua nova forma, todas as suas habilidades em jogo.

Já era quase meia-noite quando ela chegou a uma extensão aberta de terreno emfrente ao sopé das colinas que levavam para as montanhas, uma planície pedregosa evazia, a não ser mato rasteiro e lenha. Oculta entre as árvores, ela viu o caull se moverpara o terreno aberto, farejando, andando em círculos e depois continuando. Ficou ondeestava, abandonando tudo. O terreno adiante estava exposto demais. Ela não achavacerto atravessá-lo, muito embora a trilha claramente seguisse aquela direção.

Puxou o cabresto invisível sobre o caull e o chamou de volta. Seus instintos lhediziam que alguma coisa estava errada e que devia determinar o que era antes decontinuar.

Olhando para a planície, o caull agachado ao seu lado, ela começou a pensar.

Bek não dormiu depois que Truls Rohk o deixou, mas ficou sentado, pensando aondeaquela correria e esconde-esconde o estavam levando. É verdade, ele estava fugindopara salvar sua vida, para fugir da bruxa Ilse, que, irmã ou não, o queria morto. Mas só afuga não era a solução para seu problema, e quanto mais fugia e se afastava, menosparecia que conseguiria alguma coisa. Para resolver o problema de Grianne Ohmsford eledeveria convencê-la de quem era. Estava claro que provavelmente isso não aconteceriaatravés de palavras somente. Precisaria de algo mais, talvez a magia da espada deShannara, talvez uma magia completamente diferente. Mas o confronto e uma estratégiapara lidar com esse confronto eram inescapáveis.

Como ele poderia provocar a epifania necessária sem perder a vida? O quanto elepoderia fazê-la acreditar?

A resposta não veio e ele ficou cansado de pensar sobre ela. Deitou-se para dormir.Adormeceu rápido, mas não sonhou. Dormia e acordava sobressaltado, preocupado deuma forma que não conseguia identificar, incapaz de descansar por mais de algunsminutos de cada vez. Achou que era porque estava esperando que Truls Rohk retornasse,mas talvez fosse simplesmente porque não conseguia parar de pensar em suaparticipação na jornada para Castledown. Desejou saber tudo o que Walker sabia, todosos segredos que o outro ainda guardava a respeito de Bek, sobre seu objetivo na viagem,

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sobre as razões de sua presença. Isso não terminava com seu uso da espada deShannara no Squirm. Não terminava com sua herança da magia ou seu relacionamentocom Grianne. Ia além disso tudo. Mas até onde iria?

Quando acordou pela última vez naquela noite, estava emaranhado empensamentos perdidos sobre sua irmã e do relacionamento deles, tão desconfortável queera como se não tivesse dormido nem um pouco. Ouvindo um murmúrio suave de vozes,levantou-se sobressaltado e ficou olhando para a escuridão que o cercava.

Estava cercado de rostos. Nenhum deles pertencia a Truls Rohk. Nenhum delesestava ligado a corpo algum.

Como os rostos de espectros que tivessem vindo do mundo inferior, eles flutuavamno ar, e em seus olhos vazios Bek Ohmsford viu um reflexo de sua alma.

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12

Bek lutou contra a onda de medo que ameaçou tomar conta dele ao se sentir

desnudado pelas faces que flutuavam à sua frente. Seus traços eram neutros e sem vida,sugados de toda expressão, desenhados no ar com giz de um jeito que não pareciaminteiramente formados, mas precisavam ser completados, desenhos feitos por umacriança. Eram sombras, decretou, os mortos que voltavam para assombrar, levados aprocurar os vivos por necessidades que somente eles podiam saber. Seus olhos grandes evazios fixavam-se em Bek sem enxergar, mas podia senti-los olhando assim mesmo, paradentro, onde ele escondia tudo o que queria manter em segredo.

Quem é você?A voz era fina e sussurrada. Não sabia dizer qual das sombras estava falando. Não

podia ver movimentos de lábios. A voz parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo,ressonando dentro de sua cabeça.

— Sou Bek Ohmsford — ele repetiu, paralisado em sua posição sentada, lutandopara não gritar.

De onde você vem?Sua voz tremia.— Das Highlands de Leah, do outro lado do mar, em outra terra.Longe?— Sim.Veio sozinho?Ele hesitou.— Não. Vim com outros.Onde estão eles?Ele balançou a cabeça, os olhos passando de um rosto morto para o seguinte, de um

conjunto de traços neutros para outro.— Não sei.Você ousaria mentir para nós?Ele soltou o ar com força.— Acho que não.As cabeças se moveram ligeiramente, em um movimento no sentido do relógio,

como se perturbadas por um vento de passagem. Olhos e bocas escancarados, olhos ebocas de cadáveres. Não pareciam nem um pouco ameaçadores, mas estavam todos aoseu redor e Bek não conseguia escapar da sensação de que eles eram mais do que eleestava vendo. Manteve-se tão calmo e quieto quanto pôde, os últimos traços de seu sonoinquieto agora haviam se dissipado, sua mente e seu corpo formigando e tensos deterror.

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As sombras tornaram a ficar paradas.Por que você veio para cá?Como deveria responder isso? Sua mente corria.— Eu estava fugindo de alguém que queria me machucar.Para onde está fugindo?— Não sei. Só estou fugindo.Onde está seu companheiro?Então eles também sabiam de Truls Rohk. O que queriam com ele?— Ele voltou para ver se nossa perseguidora ainda está nos seguindo.Quem é sua perseguidora? Não minta para nós.Ele nem sonharia em mentir àquela altura. Não havendo razão para não fazê-lo,

contou às sombras sobre Grianne e a história dos dois. Não disfarçou nem tentouesconder nada. Talvez porque achasse inútil ou porque estivesse cansado demais paradecidir o que contar e o que manter em segredo. Não ouve interrupções enquanto elefalava. As cabeças dos mortos pendiam suspensas à sua frente, e a noite ao redor eravazia e parada.

Quando acabou, não houve uma resposta imediata. Afinal de contas, achou quetalvez eles tivessem decidido que ele estava mentindo ou tentando enganá-los de algumjeito. Mas ele não tinha como saber o que mais podia fazer ou dizer para convencê-los.Havia esgotado seus argumentos.

Você usará sua magia contra sua irmã quando ela o encontrar?A pergunta era inesperada e ele hesitou.— Não sei — disse por fim.Ela usará a magia contra você?— Também não sei. Não sei o que irá acontecer quando nos encontrarmos

novamente.Você deseja o mal para ela?Por um momento Bek ficou sem palavras.— Não! — disse ele num rompante. — Só quero fazê-la compreender.Houve uma inquietação no ar, uma espécie de som de farfalhar, como o vento

passando por entre as folhas das árvores ou por entre os talos da grama alta. Enterradasnesse som estavam palavras e frases, como se os mortos estivessem se comunicandouns com os outros em sua própria linguagem. Bek a ouvia nos limites de sua mente,quase inaudíveis, pouco reconhecíveis. Isso passou rapidamente e o silêncio retornou.

Fale-nos de seu companheiro. Não minta para nós.Mais uma vez Bek fez como lhe fora ordenado, certo agora de que mentir era um

erro que ele não deveria cometer. Seu medo havia diminuído, ele estava falando commais confiança, quase como se as sombras fossem companheiros ao redor de umafogueira, e ele um contador de histórias. Não achou que elas lhe quisessem mal. Pensouque devia ter de algum modo invadido seu território, e elas haviam aparecido paradeterminar suas razões. Se apenas explicasse, estaria bem.

Assim, relatou o que sabia de Truls Rohk e dos eventos que os haviam levado aCastledown. Ele levou um tempo para dizer tudo, mas achou importante fazê-lo. Disse

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que o mutante o havia vigiado durante a jornada e salvado sua vida duas vezes. Nãosoube ao certo por que ressaltara isso. Talvez porque achasse que as sombras deveriamsaber que Truls era um amigo. Talvez achasse que saber isso os manteria a ambos livresde qualquer mal.

Quando ele havia terminado, as cabeças se deslocaram e tornaram a se assentar.Cruzamento entre mutantes e humanos é proibido.Isso foi dito sem rancor ou condenação. Mesmo assim, era um comentário forte. E

estranho. O que importava aos mortos o que os vivos faziam?Ele balançou a cabeça.— Não foi culpa dele; seus pais fizeram essa escolha.Mestiços não têm lugar no mundo.— Não se não fizermos um para eles.Você faria um lugar para ele?— Sim, se ele precisasse de um lugar.Abriria mão de seu próprio lugar no mundo para que ele pudesse ter o dele?A conversa estava ficando estranhamente metafísica e Bek não tinha idéia de para

onde ela estava se encaminhando, mas permaneceu no caminho.— Sim.Você abriria mão de sua vida por ele?Bek fez uma pausa. O que deveria escolher? Será que ele daria sua vida por Truls

Rohk?— Sim — disse finalmente. — Pois acho que ele faria o mesmo por mim.Desta vez a pausa foi muito maior. Mais uma vez, as cabeças giraram e o som de

farfalhar retornou, pleno de palavras e frases, conversas que o rapaz não podia entender.Tentou escutar com cuidado, mas embora alguns pedaços fossem audíveis, nãoconseguiu entender nada. Ficou se perguntando subitamente se havia julgado as coisaserrado, se as sombras lhe fariam algum mal afinal de contas.

Então a voz tornou a falar:Olhe para nós.Ele olhou. Um frio súbito no ar o fez estremecer, como se um vento frio tivesse

encontrado seu caminho montanha abaixo, um vento com o toque destruidor do invernoprofundo. Ele se encolheu por causa disso... e por causa do movimento súbito ao seuredor. Os rostos haviam começado a mudar. As expressões vazias e sem expressãodesapareceram. As cabeças sem corpos sumiram. No seu lugar apareceram formasgrandes e escuras, com tufos de pêlos grisalhos. Corpos maciços saíam das sombras.Como feras que caminhassem retas, aquelas novas criaturas o cercaram, seus olhospequenos fixados sobre ele. Bek sentiu o coração parar e o sangue gelar. O medo quehavia exibido antes retornou de uma vez, tornou-se um terror declarado. Não havia nadaque pudesse fazer para se salvar. Não havia para onde correr nem chance de fazê-lo.Estava preso.

Você sabe quem somos?Ele não conseguia falar. Mal conseguia se mover. Balançou a cabeça devagar, o

melhor que conseguiu.

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Nós somos o que quisermos ser. Somos os vivos e os mortos. Somos carne e osso,vento e água. Nós somos mutantes. Esta é nossa terra e os humanos não pertencem aisso aqui. Você está invadindo e deve ir embora. Desça a montanha e não volte.

Bek assentiu rápido, concordando. Aceitaria qualquer chance que eles oferecessempara escapar. Podia ouvir a respiração pesada e entrecortada deles e o cheiro de seuscorpos animais. Podia sentir o peso de suas sombras caindo sobre ele, camada sobrecamada. Entendeu naquele instante como era ser caçado e acuado num canto. Entendeucomo era ser a presa.

A voz sussurrou para ele num sibilar baixo, ameaçador, e ele percebeu a mudança detom.

Quando sua irmã encontrar você, vá com ela. Quando ela perguntar pela verdade,diga-a para ela. Quando ela procurar uma maneira de compreender, ajude-a a encontrá-la. Não torne a fugir. Confie em si mesmo.

Sua irmã estava chegando? A que distância ela estava? Ele entrou em pânico, tentouse levantar e descobriu que não conseguia. Sua força havia falhado completamente.Sentou-se assustado e impotente no chão, os mutantes todos ao seu redor, uma muralhade fedor animal e hálito fétido, sombras escuras e olhos brilhantes. Onde estava TrulsRohk? Onde estava qualquer um que pudesse ajudá-lo? Odiava seu medo, seu desespero,mas não conseguia dissipá-lo. Tudo o que desejava era estar longe dali, estar em outrolugar, ter uma chance de sobreviver, mesmo que apenas por mais um dia.

Perdeu o ar com o choque de uma nova rajada de frio e fechou os olhos para seproteger. Podia ouvir o farfalhar dos mutantes, o movimento de seus corpos, mas nãoconseguia olhar para eles. Foi necessária toda a sua concentração apenas para respirar,para evitar gritar, para permanecer controlado. Sentia sua resolução desmoronando aospoucos. Então sentiu mais alguma coisa. No seu interior, bem no fundo, onde seu núcleoqueimava com emoção pura, sentiu a magia acordar. Ela soltava fagulhas e seincendiava, vindo em sua defesa, levantando-se dentro dele. Podia senti-la crescendo,camadas dela borbulhando como lava na boca de um vulcão pronto para explodir.Reforçou sua resolução, desesperado para mantê-la em xeque. Não podia se dar ao luxode deixá-la subir à tona. Não queria se testar contra os mutantes. Sabia que seria umerro.

Então o frio que o cercava desapareceu subitamente e o cheiro animal sumiu. O arfresco, mas quente e suave agora, preencheu suas narinas; a presença pesada e rudedos mutantes havia desaparecido.

Quando tornou a abrir os olhos, estava só.

Truls Rohk estava suspenso dentro da copa de um velho e maciço bordo que o escondia,espremido em seus galhos a talvez dez metros do chão. Estava esperando havia mais deuma hora, mantendo vigilância através da folhagem. Dali, tinha uma visão clara dasplanícies rochosas que separavam os dois estirões de floresta na base das montanhaspelas quais ele e o garoto haviam passado antes. Se a bruxa Ilse os estivesse rastreando,se ela tivesse descoberto sua trilha, viria por aquele caminho.

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Quando o caull apareceu, ele não ficou surpreso. Sabia que ela estava usando algopara rastreá-los além de sua magia. Só a magia dela, embora formidável, não erasuficiente para permitir que ela permanecesse atrás deles. O caull era uma espécie delobo ou cão que sofrerá uma mutação e os estava rastreando pelo cheiro. Era uma ferafeia e de aspecto perigoso, diferente de qualquer criatura que havia encontrado antes,nem mesmo nas Wolfsktaag. Era uma criatura saída do antigo mundo de Faerie, eleimaginou, algo que ela havia estudado em um livro de magia negra ou conjurado de umpesadelo. A criatura estava lá para rastrear e depois para despachá-los. Ou a ele própriopelo menos. Ele era apenas uma distração desnecessária. A bruxa estava realmente atrásdo garoto, que ela manteria vivo por algum tempo.

Truls Rohk viu a fera se aventurar sobre a planície, andar em círculos por algumtempo e em seguida tornar a desaparecer por entre as árvores. Ela ficaria ali observandoe aguardando, assim como ele estava fazendo. Não podia vê-la, mas podia sentir suapresença. Ela estava decidindo o que fazer. Ele podia voltar para o garoto agora; podiaescapar enquanto ela pensava. Mas estava cansado de correr e podia sentir que o garototambém estava cansado. Poderia ser melhor ver se podia reduzir um pouco do ritmodela... ou talvez detê-la completamente. Se o caull atravessasse a planície sozinho, elepoderia ter uma chance de matá-lo. A bruxa levaria algum tempo para criar outra fera,ainda que se decidisse continuar, e poderia ser que não.

Talvez ele até mesmo tivesse uma chance com ela também, embora soubesse que ogaroto não queria machucá-la, e não gostaria que isso acontecesse. Mesmo assim, talveznão tivesse escolha.

Ficou onde estava, pensando no assunto. Os minutos passaram. Nem o caull nem abruxa apareceram. Ele ficou se perguntando se ela podia senti-lo assim como ele podiasenti-la. Achava que não. Havia tomado precauções para se disfarçar, para parecer um sócom as árvores, casca, madeira e seiva, folhas e brotos. Nenhuma parte de seu serhumano permanecia em seu disfarce atual. Ela não poderia detectar sua presença dessamaneira.

Então ela apareceu subitamente, caminhando até a margem das árvores do outrolado da planície e parando. O caull se materializou ao lado dela. Ela ficou olhando para anoite por um longo tempo, apenas uma forma vaga na escuridão cravejada de estrelas,apenas uma sombra na floresta. Depois de um momento, tornou a desaparecer, e o caullcom ela, então reapareceu logo depois um pouco além da margem das árvores, aindaolhando para as planícies. O que ela estava fazendo? Ele ficou observando-a comcuidado, medindo seu progresso à medida que ela aparecia, desaparecia e reapareciamais uma vez, diversas vezes. Parecia estar procurando por algo, talvez por um meio deatravessar. Mas por que estava se dando a esse trabalho? Por que ela havia se mostrado,por que simplesmente não atravessava e acabava com isso?

O tempo passava. Truls Rohk ficou cada vez mais desconfortável com o que estavavendo. Ela estava ali, mas não estava fazendo nada. Não havia sequer se incomodadoem enviar o caull adiante para investigar o que a estava perturbando. Estava perdendoum tempo que não tinha de sobra. Aparecendo e desaparecendo, indo e vindo, era comoum espectro que tivesse saído de...

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Ele se interrompeu, levantando-se assustado do galho sobre o qual estavaempoleirado, uma compreensão assustadora percorrendo seu corpo. Ela era um espectro.Um espectro feito de magia. Ele não a estava vendo de maneira alguma. Ainda que elanão conseguisse sentir sua presença, havia adivinhado. Havia farejado a possibilidade deuma armadilha e usava isso contra ele. Utilizara imagens para enganá-lo e fazê-loacreditar que estava lá e passara por trás dele. Ela já havia passado por ele e estava acaminho do garoto.

Percebeu isso tão certamente quanto sabia que já era tarde demais para impedi-la.Idiota! Seu idiota!Desceu da árvore em um segundo e voltou correndo através da noite em direção a

Bek.

Quando sua irmã saiu dentre as árvores, Bek ainda estava sentado no chão onde osmutantes o haviam deixado. Não entrou em pânico com a aparição dela e não tentoufugir. Sabia que ela viria. Assim os mutantes lhe disseram, e acreditou neles. Haviapensado em fugir dela, correndo mais para o fundo das montanhas, mas decidira ocontrário. Não torne a fugir dela, eles haviam dito. Não sabia por quê, mas acreditavaque eles estavam certos. Fugir não resolveria nada. Ele deveria ficar e enfrentá-la.

Levantou-se quando ela se aproximou, ficando calmo, estranhamente em pazconsigo mesmo. Levava a espada de Shannara amarrada às cestas, mas não estendeu amão para pegá-la. Armas não serviriam à sua causa, lutar não o ajudaria. Sua irmã, abruxa Ilse, reagiria mal a ambas as coisas e ele precisava que ela desejasse mantê-lo emação. Talvez fosse seu encontro com os mutantes que o tivesse deixado se sentir comose nenhuma coisa pudesse lhe acontecer nas montanhas. Qualquer mal que ela pudessefazer a ele, teria de aguardar para fazer em outro lugar. Isso lhe daria tempo para acharuma maneira de fazê-la ver a verdade.

— Você não parece surpreso ao me ver — ela arriscou suavemente, movendo-sefluida dentro de seus mantos amarrados, seu rosto perdido na sombra sob o capuz. Seusolhos estavam sobre ele, inquiridores. — Você sabia que eu viria, não sabia?

— Eu sabia. Onde está Truls Rohk?— O mutante? — Ela deu de ombros. — Ainda procurando por mim onde não posso

ser encontrada. Ele virá tarde demais para ajudar você dessa vez.— Não quero a ajuda dele. Isto é entre mim e você.Ela parou a dez passos de distância e ele pôde sentir sua tensão.— Está pronto para admitir para mim que mentiu sobre quem você é? Está disposto

a me dizer por que o fez?Ele balançou a cabeça.— Não menti a respeito de nada. Eu sou Bek. Sou seu irmão. O que eu disse antes

para você era verdade. Por que não consegue acreditar?Ela ficou em silêncio por um momento.— Acho que você acredita nisso — disse ela finalmente —, mas não torna isso

verdade. Sei mais do que você. Sei como o druida trabalha. Sei que ele procura usar você

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contra mim, mesmo que você não perceba.— Vamos dizer que isso seja verdade. Por que ele faria isso? O que ele poderia

esperar ganhar?Ela cruzou os braços dentro dos mantos.— Você voltará comigo para a aeronave e irá esperar por mim lá enquanto eu o

encontro e pergunto a ele. Você virá de livre e espontânea vontade. Não tentará escapar.Você não tentará me machucar de forma alguma. Não usará sua magia. Concordará comtudo isso agora. Você me dará sua palavra. Se o fizer, terá uma chance de salvar suavida. Diga-me agora se fará o que estou mandando. Mas, esteja avisado, se mentir oudissimular, eu saberei.

Ele pensou a respeito, em silêncio, ali parado no meio da noite, encarando-a sob obrilho do luar, e então assentiu.

— Eu farei o que você manda.Ele a sentiu cantarolando baixinho, a magia dela estendendo-se nele, cercando-o e

então invadindo-o, um pequeno formigamento de calor, sondando. Ele não interferiu,simplesmente esperou que ela terminasse.

Ela avançou e ficou bem na frente dele. Estendeu a mão e abaixou o capuz para queele pudesse ver seu rosto forte, pálido, bonito. Grianne. Sua irmã. Não havia raiva nosolhos dela, não havia dureza de qualquer espécie. Havia curiosidade. Ela estendeu a mãoe tocou a face dele, fechando os olhos por um momento ao fazer isso. Uma vez mais, elesentiu ainda o uso da magia da canção do desejo. Uma vez mais, ele não interferiu.

Quando ela tornou a abrir os olhos, assentiu.— Muito bem. Podemos partir agora.— Você quer minhas armas? — Ele perguntou rapidamente a ela.— Suas armas? — Ela parecia atordoada com a pergunta. Olhou para a espada e a

faca longa. — Armas não são de utilidade para mim. Deixe-as para trás.Ele jogou de lado a faca longa, mas conservou a espada de Shannara no lugar.— Não posso deixar a espada. Não é minha. Ela me foi dada em confiança e prometi

que cuidaria dela. Pertence a Walker.Ela olhou para ele com rigidez.— Ao druida?Ele estava se arriscando muito contando isso para ela, mas pensou com muito

cuidado e o risco era necessário.— Ela é um talismã. Talvez você a conheça. Ela se chama espada de Shannara.Ela se aproximou ainda mais, seu rosto apenas a centímetros do seu, os olhos azuis

impressionantes e penetrantes.— O que está dizendo? Entregue-a para mim!Ele o fez, entregando-a obediente. Ela tomou-a dele, recuou novamente e examinou-

a com dúvida.— Esta é a espada de Shannara? Tem certeza? Por que ele a daria para você?— É uma longa história. Quer ouvi-la?— Você me conta no caminho. — Ela devolveu o talismã. — Você carrega o peso dela

enquanto viajamos. Só não deixe que eu a veja em suas mãos novamente.

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— Pode ficar com ela se quiser.O rosto pálido dela revelou um quê de diversão.— Não preciso que me diga isso. Posso tirá-la de você a hora que quiser. Lembre-se

bem disso.Ela recomeçou a andar, sem se incomodar em olhar para trás para ver se ele a

acompanhava. Ele hesitou por um momento, então começou a ir atrás dela.— E quanto a Truls Rohk?Ela olhou rapidamente para trás, e a forte determinação estampada em seu rosto de

modo tão claro no primeiro encontro que tiveram havia retornado.— Ao retornar, ele descobrirá que você se foi, mas não acho que irá fazer algo a

respeito.Não explicou mais nada. Bek sabia que, mesmo que lhe perguntasse algo, ela não o

faria. Com um olhar apreensivo para a clareira deserta, ele a acompanhou dentro danoite.

Truls Rohk voou pela escuridão, uma sombra silenciosa desviando-se de árvores esaltando sobre buracos e ravinas. Era impulsionado pelo medo que sentia pelo garoto epela raiva que sentia de si mesmo. Fora imperdoavelmente descuidado e Bek Ohmsfordpagaria o preço por isso se não o alcançasse a tempo.

Ao seu redor, a floresta era uma cortina silenciosa atrás da qual olhos observavam eaguardavam.

Ele subiu a encosta da montanha sem parar, alerta para a presença da bruxa Ilse,não sentindo nenhum dos dois, mas sabendo que deveriam estar próximos. Tentoucalcular o quanto poderiam estar à frente dele, mas isso era impossível. Na melhor dashipóteses, podia apenas arriscar uma suposição. Perdera a noção do tempo enquantomontava guarda em seu galho, enquanto era enganado por aqueles espectros induzidospela magia. Sabia que tinha de imaginar o pior, que ela já havia alcançado o garoto, quefizera dele seu prisioneiro, que caberia ao mutante libertá-lo novamente.

Quando chegou ao lugar dentro das árvores onde havia deixado o garoto, a clareiraestava vazia, Bek havia desaparecido e o cheiro da bruxa estava em todo o lugar. Osilêncio cobriu o espaço aberto quando ele entrou, ainda cauteloso, observando qualquerarmadilha que ela pudesse ter deixado. Estava começando a chover, as gotas caindo emum padrão suave na terra seca iluminada pela lua, manchando-a com a cor da sombras.

A faca longa do garoto jazia ao lado, descartada. Foi até lá e ajoelhou-se paraapanhá-la. Ao fazer isso, o caull saiu sorrateiro das sombras da floresta atrás dele.Insidioso e poderoso, as mandíbulas maciças escancaradas, atacou a cabeça de TrulsRohk.

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13

Um grupo dos rindges levou Quentin Leah e seus companheiros das ruínas de

Castledown de volta ao seu vilarejo. A maioria ficou para terminar de montar armadilhaspara os misteriosos wronks, mas aquele que tinha falado com Panax, juntamente comdiversos de seus companheiros, separaram-se do grupo principal para servirem deescolta. Embora os rindges não tivessem feito menção disso, a condição ensangüentada,esfarrapada e desgastada de seus visitantes tornava óbvio que eles precisavam decomida, descanso e tratamento médico. Quentin e companhia, embora relutantes eminterromper sua procura pelos desaparecidos, perceberam que não estavam emcondições de continuar se quisessem ser eficientes na busca. Primeiro precisariam comer,cuidar de suas feridas adequadamente e dormir em um lugar seguro. Além do mais, osrindges poderiam ajudá-los dizendo como e onde direcionar seus esforços quandovoltassem a procurar por eles.

Assim, fizeram a viagem de três horas pela floresta até a aldeia dos rindges echegaram lá por volta do meio-dia. Em sua jornada, ficaram sabendo mais sobre a terrapara a qual haviam viajado. O rindge que falava era chamado de Obatedequist Parsenon,ou alguma coisa que soava parecido com isso, segundo Panax. Como o anão não tinhacerteza, o nome estranho foi rapidamente reduzido para apenas Obat. Obat era subchefena hierarquia da aldeia, filho de um antigo chefe. Era evidente, pela deferência dada aele pelos outros rindges, que ele era um membro respeitado da comunidade. Obat dissea eles que a terra de seu povo era chamada de Parkasia e que eles estavam ali haviadois mil anos, desde o início dos tempos. Ele não falou das Grandes Guerras, mas pareciadatar tudo a partir dali, como se nada tivesse existido antes do surgimento de seu povoem Parkasia. Era difícil ter certeza, mas para Panax parecia que Parkasia era umapenínsula ligada a um corpo muito maior de terra a noroeste, onde tribos diferentes dosrindges fizeram o seu lar.

Havia várias tribos de rindges vivendo em Parkasia, explicou Obat, umas decaçadores, outras de fazendeiros. Eram um povo auto-suficiente e faziam um pouco decomércio. Ocasionalmente surgiam guerras entre eles, mas seu maior inimigo comum eraa coisa que vivia nas ruínas de Castledown. Antrax, Obat a chamava, mas não conseguiaencontrar uma maneira de explicar o que era. Explicou que era um espírito, mascomandava os rastejadores e os fios de fogo, coisas estranhas que pareciam nada ter aver com espíritos. Antrax defendia Castledown contra todos os intrusos, e fazia isso hátanto tempo quanto qualquer pessoa conseguia se lembrar. Mas também atacava osvilarejos dos rindges de vez em quando e raptava pessoas. Aqueles que eram levadosjamais eram vistos novamente. Eram sacrificados para satisfazer a fome de Antrax, seuscorpos desmembrados e seus espíritos escravizados para que jamais pudessem morrer ou

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repousar.Era a mesma história que a companhia ouvira antes e não fazia mais sentido agora

do que antes; mortos eram mortos, e almas não eram escravizadas assim que o corpomorria. Mas Obat insistia nisso, muito embora não conseguisse oferecer explicação para aforma pela qual Antrax pegava os rindges e os tratava, para o que precisava deles, oupor que se incomodaria com humanos quando possuía comando sobre uma tecnologiatão formidável. Toda vez que o nome Antrax era pronunciado, os rindges mostravamsinais de desconforto, olhando desconfiados para todas as direções, fazendo gestos deproteção, mesmo quando estavam a muitas horas de distância das ruínas.

Ainda imerso em seu desconforto por deixar Bek, Quentin Leah ouvia tudo isso meioque pela metade. Exausto e machucado devido à luta contra os rastejadores, sabia queestava em pé por pura força de vontade. Mas ficava doente ao pensar em abandonar abusca pelo primo, não conseguindo parar de pensar a respeito. Prometeram quecuidariam um do outro. Bek jamais quebraria essa promessa, não importa o queacontecesse, a menos que não pudesse cumpri-la. Não importava que Quentin nãotivesse idéia de onde procurar por seu primo além das ruínas, e procurar qualquer um nasruínas era suicídio. Não importava o quanto estava cansado. Tudo o que sabia era queestava se afastando de Bek em um momento em que o primo poderia mais precisar dele.

Obat estava falando novamente de Antrax, dizendo que muitas das tribos rindgesacreditavam que Antrax havia criado os humanos no começo dos tempos e pegava algunsde volta agora porque estava insatisfeito com seu comportamento. Antrax era um deus edevia ser adorado e respeitado ou resultaria em um desastre. Então faziamperegrinações, levando presentes para as ruínas várias vezes por ano. Às vezes, levavamhumanos como sacrifício para os wronks que foram um dia seus parentes. Não faziamessas coisas no vilarejo de Obat, mas isso era porque os rindges dali acreditavam nasvelhas histórias que diziam que os humanos foram criados da terra e receberam vidamuito antes que Antrax os tivesse descoberto. No vilarejo de Obat, acreditavam queAntrax era um demônio.

Quentin absorveu tudo isso e se consolou quanto a Bek, deduzindo que seu primo,com sua magia recém-descoberta, estava provavelmente mais bem equipado do que elepara afastar demônios, rastejadores ou qualquer outra coisa. O fato de que Bek tivessequalquer espécie de magia ainda o espantava, mas fazia sentido à luz do que amboshaviam deduzido sobre a decisão de Walker em levá-los junto. Isso explicava por quehaviam sido escolhidos quando tantos outros podiam ser levados no lugar deles. Masdeixava o montanhês ponderando novamente a origem de seu primo e a razão pela qualela havia sido mantida em segredo por tanto tempo. Fazia com que ele se perguntasse oquanto Coran e Liria sabiam e andaram escondendo.

Chegaram ao vilarejo dos rindges ao meio-dia, com os pés novamente feridos equase incapazes de continuar caminhando. O vilarejo se espalhava através de uma sériede clareiras conectadas em uma área de floresta protegida por sopés de colinas quelevavam para o oeste em uma espinha dorsal de montanhas. O vilarejo era formado emgrande parte por cabanas e pavilhões a céu aberto, construídos com madeira e cascas deárvore, com cobertores e telas de juncos utilizados como divisórias para aposentos. As

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pessoas saíram a fim de olhá-los: homens, mulheres e crianças, todos de cabelosvermelhos e os corpos como se fossem cobertos de henna; os mais jovens eram maisescuros do que os mais velhos.

Nenhuma paliçada ou fosso protegia o vilarejo, e quando perguntaram a respeito,Obat respondeu que não havia por quê; os wronks e os rastejadores podiam atravessaressas defesas de qualquer maneira. Quando acontecia um ataque, os rindgessimplesmente fugiam para as colinas até que fosse seguro retornar. Um bom sistema depostos avançados os mantinha a salvo a maior parte do tempo. As defesas que faziamalguma diferença eram as armadilhas que eles preparavam nas florestas, poçoscamuflados com pedras afiadas no fundo. Os rastejadores e wronks freqüentementecaíam dentro deles e, se fossem danificados ou se não tivessem mobilidade suficiente,não conseguiam subir à superfície. Se os predadores metálicos fossem encontrados e ospoços preenchidos com rapidez suficiente, eles não poderiam mais ouvir os comandos deAntrax e, portanto, permaneciam ali.

Fetiches amarrados em postes cercavam a aldeia, protetores dos rindges contra ascoisas que procuravam caçá-los. Quentin olhou no fundo dos olhos das crianças que oobservavam e ficou se perguntando quantos dos fetiches os salvariam de ataques eoutros perigos.

Os cinco convidados foram levados até uma área afastada para se banharem emgrandes banheiras de água aquecida, e em seguida foram visitados por curandeiros quetrataram de suas feridas. Depois, foram levados até um pavilhão, sentaram-se sobrecolchões e receberam comida. Os rindges eram primitivos, mas sua vida parecia bemordenada e razoável. Quentin também os achou inteligentes, não só pela sua fala, quetinha um tom musical, mas pela expressão em seus olhos e pelo aspecto de suas casas.Tudo era simples, mas todas as necessidades pareciam ser bem atendidas.

Após um período inicial de congregação para cuidar de seus visitantes, os rindgesvoltaram ao trabalho. Todos pareciam ter uma tarefa, até mesmo as crianças, embora osmais novos, em sua maioria, brincassem agarrados às mães. As coisas aqui não são tãodiferentes das Highlands, pensou Quentin.

Então dormiram, e embora Quentin tivesse prometido a si mesmo que nãodescansaria por mais de duas horas, só acordou ao amanhecer. Panax já estava em pé,conversando com Obat, e foram as vozes deles, suaves e distantes, que acordaramQuentin. Ele olhou ao redor e descobriu, para seu desconsolo, que os elfos já haviam selevantado também. Lavando as mãos e o rosto na bacia de água, amarrou a espada deLeah às costas e saiu para ver o que estava acontecendo.

Encontrou Panax e os elfos com Obat e vários outros rindges, sentados em umcírculo de esteiras, conversando. Quando se aproximou, viu que vários desenhos haviamsido feitos na terra à frente deles. A conversa entre Panax e Obat estava tão intensa queo anão nem sequer olhou para Quentin, mas Tamis percebeu sua presença e fez umgesto para que se aproximasse.

— Bom ver você de volta ao mundo dos vivos — disse ela secamente. Seu rostoredondo estava recém-lavado, a pele avermelhada embaixo do bronzeado. — Você roncacomo um touro no cio quando dorme.

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Ele levantou uma sobrancelha em resposta.— Você passa muito tempo com touros no cio, não é?— Um pouco. — Ela passou a mão nos cabelos curtos. — O que você diria se eu lhe

contasse que Obat conhece outro caminho para entrar em Castledown?Quentin piscou surpreso.— Eu diria: quando partimos?

Não houve hesitação da parte de ninguém quanto a partirem. Repousados e alimentados,seus espíritos renovados, as bordas de suas memórias suficientemente abrandadas paraque a cautela pudesse substituir o medo, estavam ansiosos para retornar. Todosprocuravam respostas quanto ao que acontecera aos seus amigos, e não poderia haverpaz de espírito até que essas respostas fossem encontradas. Cada um deles, sem dizerisso aos outros, acreditava que ainda houvesse algo a ser realizado em Castledown.

Sua atitude foi reforçada em grande parte pelo fato de que os rindges haviamconcordado em guiá-los. Sem contar os rastejadores e os fios de fogo, se houvesse outrocaminho para penetrar nas camadas abaixo das ruínas, eles estavam ansiosos paraexplorá-lo. Ard Patrinell, Ahren Elessedil e um punhado de outros elfos ainda estavamdesaparecidos. Walker ainda não fora encontrado. Bek havia desaparecido juntamentecom Ryer Ord Star. Alguns deles, talvez todos, ainda estavam vivos e precisando deajuda. Quentin e seus companheiros não iriam fazê-los esperar por essa ajuda.

Comeram uma refeição rápida, apanharam as armas e partiram. Obat levou suaescolta rindge, mais de vinte homens fortes. A maioria dos rindges levava zarabatanas dedois metros, além de facas e lanças longas, mas um número substancial levava lançascurtas e poderosas com pontas estreladas afiadas que podiam penetrar até mesmo nometal dos rastejadores. Usavam-nas como pés-de-cabra, explicou Obat quando Panaxperguntou a respeito. Eles enfiavam as pontas em juntas e fendas das carapaças demetal dos rastejadores e torciam-nas até que algo cedesse. Os números normalmentedavam aos rindges a vantagem nesses encontros. Os rastejadores, ele disse solene, nãoeram invencíveis.

Olhar os rindges trabalhando era instrutivo. Era um povo tribal, mas seus lutadorespareciam ser bem treinados e disciplinados. Lutavam em grupos, divididos pelo tipo dearmamento. As fileiras da frente usavam as lanças pesadas, as de trás as zarabatanas elanças longas. Mesmo durante a viagem, mantinham a ordem de batalha intacta,dividindo os homens em grupos menores, batedores patrulhando na frente e atrás, elanceiros defendendo as laterais da marcha. Os estrangeiros, não testados em combate,foram colocados no meio, cercados por seus protetores.

Quentin percebeu a maneira pela qual os rindges giravam para dentro e para fora desua formação solta enquanto viajavam, mudando para ali e para acolá em resposta àsordens de combate, os corpos queimados brilhando com óleo e suor. Ninguém napequena companhia pensava em questionar suas táticas. Os rindges haviam vividonaquela terra e lidavam com as criaturas de Antrax há centenas de anos; sabiam o queestavam fazendo.

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Depois de algum tempo, Panax atrasou o passo para caminhar com Quentin,deixando os elfos caminharem à frente deles alguns passos. Fizera isso deliberadamente,e o montanhas deixou que ele escolhesse seu próprio ritmo.

— Os rindges acreditam que Antrax controla o clima — disse o anão, mantendo acabeça e a voz baixas.

Quentin olhou para ele surpreso.— Isso não é possível. Ninguém pode controlar o clima.— Eles dizem que Antrax pode. Dizem que é por isso que o clima em sua região da

Parkasia nunca muda como em todos os outros lugares. Ele diz que sabe das geleiras edos campos de gelo na costa. Diz que neva no interior da ilha, mais para noroeste, nooutro lado das montanhas. Lá existe o passar das estações, mas aqui não.

Quentin deslocou o peso da espada de Leah nas suas costas.— Walker disse para Bek alguma coisa sobre o clima ser estranho. Acho que isso

deve ser uma combinação de correntes de vento e de geografia, uma anomalia. —Balançou a cabeça. — Talvez Antrax seja um deus, afinal.

O anão grunhiu.— Um deus cruel, segundo os rindges. Ele os caça sem razão compreensível. Ele os

utiliza como alimento e depois os joga fora, com exceção de algumas partes. Fico meperguntando no que foi que nos metemos.

— Eu fico me perguntando o quanto disso Walker sabia e guardou para si mesmo —replicou Quentin suavemente.

Panax assentiu.— Truls diria a você que Walker sabia tudo porque os druidas têm como ponto de

honra descobrir coisas e depois escondê-las. Não tenho tanta certeza. Caminhamos diretopara aquela armadilha há três dias, e o druida pareceu tão surpreso quanto qualquer umde nós.

Caminharam em silêncio, passando pela calma do meio-dia e pelo calor, seguindo aolongo de uma trilha bem marcada que os levou por entre florestas antigas, os galhosformando um teto tão denso acima de suas cabeças que a luz só conseguia penetrar emfios finos e faixas estreitas. Acima, pássaros voavam, cantando animados, esquilos eoutros roedores corriam. O sol viajava lentamente para oeste, atravessando um céu semnuvens, e o ar tinha cheiro de folhas verdes e terra seca.

Então Tamis atrasou o passo para caminhar com eles.— Estive pensando — disse ela baixinho. — Tem alguma coisa errada nisso tudo.Ambos olharam para ela.— Como assim? — perguntou Panax, olhando ao redor como se pudesse encontrar a

resposta oculta no verde da floresta.Tamis olhou de um lado para outro.— Façam a si mesmos a seguinte pergunta: por que os rindges estão sendo tão

solícitos? Pela gentileza dos corações deles? Por um senso de obrigação em ajudarestranhos de outras terras? Por compaixão por nossa pobre miséria ao perder nossosamigos e nos encontrarmos perdidos?

— Não, é impossível — replicou Quentin, com um pouco de irritação na voz.

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Ela o fuzilou com o olhar.— Não seja estúpido! Ajudando-nos, os rindges estão arriscando suas vidas e uma

possível retaliação de Antrax, seja ela qual for. Não fariam isso, a menos que houvessealgo a ganhar, algo que os beneficiasse.

Panax fez uma careta, tão aborrecido quanto Quentin ao ouvir essa acusação.— E o que seria isso, Tamis?— Estive pensando — disse ela, mantendo a voz baixa, de olho nos rindges. — Você

lhes disse que viemos em busca de um tesouro, e eles sabem que entramos nas ruínasdeliberadamente para encontrá-lo. Devem supor que sabemos algo sobre aquilo no qualestávamos nos metendo antes de tentarmos... por mais mal orientada que essasuposição pudesse ser. Pelo menos isso sugere a eles que temos meios de lidar comAntrax. Agora pensem. Eles não disseram, mas e se estavam nos observando desde aprimeira vez que chegamos e sabem a respeito da espada de Quentin e dos poderesdruídicos de Walker? Há centenas de anos eles procuram um meio de se livrarem deAntrax, e agora, finalmente, podem ter encontrado um. Nós. E se estiverem nos usandocomo arma?

— Para destruir Antrax — terminou Quentin. — Então estão nos levando direto a elee nos soltando lá, esperando pelo melhor. Não vão ficar e lutar ao nosso lado se as coisaschegarem a esse ponto. Eles fugirão.

Ela deu de ombros.— Não sei o que eles vão fazer. Só acho que é melhor ficarmos atentos. Eles têm de

se perguntar a nosso respeito, de onde viemos e o que pretendemos fazer quando issotiver acabado. Talvez estejam pensando que o melhor que possa acontecer é que Antraxe nós nos destruíssemos um ao outro e deixássemos os rindges em paz. Devem terpensado nisso. Não querem trocar uma forma de tirania por outra. Eles sabem que existeessa possibilidade, e nada que dissermos irá convencê-los do contrário.

— Obat não parece ser assim. — Quentin arriscou depois de um momento.Tamis olhou para ele com desdém.— Você não vive no mundo há tanto tempo quanto eu, Quentin Leah. Não viu tantas

coisas. O que acha, Panax?O anão olhou para Quentin, suas feições carrancudas decididas.— Ela tem razão. É melhor estarmos prontos para qualquer coisa.— Kian e Wye já conhecem meu pensamento — disse ela, continuando a caminhar

para a frente. Olhou de volta para Quentin. — Espero estar errada, montanhês. Esperomesmo.

Marcharam em silêncio pelo restante da jornada. Quentin chafurdava na angústia depensar em ser traído mais uma vez. Sabia que Tamis tinha razão a respeito dos rindges,mas não conseguia pensar no que isso poderia significar. Desejava que Bek estivesse alipara dar sua opinião. Bek veria as coisas com mais clareza. Seria mais rápido paradesencavar a verdade. Os rindges não pareciam antagonistas, mas estavam em guerracontra Antrax desde o começo de sua existência, portanto sabiam alguma coisa sobresobrevivência. Não haviam tentado ferir seus visitantes, mas Tamis poderia ter razão arespeito de eles terem observado a companhia lutar para sair do labirinto. Era possível

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que estivessem simplesmente esperando para ver o que aconteceria quando Antrax e osestrangeiros se encontrassem face a face.

Quanto mais Quentin pensava a respeito, mais desconfortável se sentia. A únicaarma verdadeira que tinham era sua espada. Ela poderia ser o suficiente para fazê-lospassar, mas não sabia ao certo. Se Walker havia sido derrotado por Antrax, que chancetinha ele? Ficou se perguntando se Bek também havia enfrentado Antrax, e se, tendodescoberto sua própria forma de magia, a teria utilizado. Se isso havia acontecido, teriatido sucesso? Se sua magia era poderosa o bastante para dispersar os rastejadores,como Tamis havia relatado, será que ela podia derrubar Antrax? Não gostava de pensarem Bek enfrentando Antrax sozinho. Não gostava sequer de considerar a possibilidade.Não deveria acontecer dessa maneira, Bek sozinho. Nem com ele mesmo, por falar nisso.Deveriam os dois estar juntos do jeito que haviam planejado, cuidando um do outro.Ficou imaginando se havia alguma chance de que isso ainda pudesse acontecer e sepoderia acontecer a tempo de fazer diferença.

A tarde ainda estava no início quando alcançaram os limites de Casdedown epararam por tempo suficiente para que os rindges vasculhassem o território adiante àprocura de rastejadores. Enquanto aguardavam, Quentin sentou-se com Panax e ficouolhando o calor do meio-dia se desprendendo em ondas visíveis do metal da cidadedevastada. Na vastidão plana e vazia, nada se movia. Não havia sinal do labirinto maisalém de onde estavam sentados, e nada para mostrar que qualquer um havia passadoum dia por aquele caminho. Panax bebeu de uma bolsa de água e ofereceu-a a Quentin.

— Preocupado com Bek? — ele perguntou, limpando a boca.Quentin assentiu.— Não consigo parar de me preocupar com ele. Não gosto de pensar nele lá fora

sozinho.O anão assentiu e ficou olhando ao longe.— Mas talvez seja melhor assim.Os batedores rindges retornaram. Não havia rastejadores visíveis ao longo do

perímetro da cidade. Obat fez um gesto para que todos avançassem e passaram porentre as árvores, ficando logo no começo da linha da floresta enquanto acompanhavam amargem das ruínas para sudoeste. Ninguém falou enquanto vasculhavam a cidade,movendo-se com passos lentos e cuidadosos. Os prédios olhavam de volta para eles, osburacos escancarados de janelas e portas como se fossem olhos e bocas vazios.Castledown era um túmulo para homens e máquinas mortos, um cemitério para osdescuidados. Quentin levava a espada de Leah desembainhada, carregando-a à suafrente, sentindo um ligeiro formigamento de magia aprisionada aguardando para serinvocada. Sua pulsação latejava nas têmporas e ele ouvia o som de sua respiração nagarganta.

Obat os levou até uma entrada gradeada na lateral de um prédio que se abria avárias centenas de metros em ambas as direções. Colocando um rindge em cada ponta ecuidadosamente atrás de onde estava, trabalhou com um punhado de outros para libertara grade de suas trancas e abri-la em suas dobradiças enferrujadas. O esforço produziuuma série de gemidos que a graxa velha e o peso do metal não conseguiram calar.

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Obat apontou para a abertura escura e falou para Panax em voz abafada.— Obat diz que isto leva até onde Antrax vive — traduziu o anão. — Ele diz que

assim é que ele respira dentro da terra.— Um poço de ventilação — disse Quentin.— Pergunte a ele como sabe que Antrax está lá embaixo — Tamis exigiu saber.Panax assim o fez, escutou a resposta de Obat e balançou a cabeça.— Ele diz que sabe disso porque é daqui que ele vê os rastejadores saírem para

caçar.Tamis olhou para Quentin.— O que acha, montanhês? E você quem está com a espada.Quentin encarou a escuridão do poço e pensou que era o último lugar para onde ele

gostaria de ir. Conseguia distinguir algumas luzes mais para dentro, brilhos fracos naescuridão, o suficiente apenas para que não ficassem como cegos. Mas ele não queriaficar aprisionado no subterrâneo, embaixo de toda aquela pedra e metal sem um mapapara orientá-los e sem saber por onde procurar.

— Isto pode ser perda de tempo — sugeriu Panax.Quentin assentiu.— Por outro lado, o que mais temos para fazer? Onde mais procuraríamos pelos

outros senão aqui? — Sua mão apertou ainda mais a espada. — Já chegamos até aqui.Deveríamos pelo menos dar uma olhada.

Tamis deu um passo adiante para olhar mais de perto a escuridão.— Uma olhada deverá ser mais do que suficiente. Os rindges vêm conosco?Panax balançou a cabeça.— Já me disseram que não entrarão nas ruínas, nem na superfície nem no

subterrâneo. Estão apavorados com Antrax. Irão nos aguardar aqui.— Não importa. Não precisamos deles. — Olhou para Quentin, atrás dela. — Pronto,

montanhês?Quentin assentiu.— Pronto.Entraram num grupo fechado, Tamis liderando, tateando cuidadosamente o caminho.

Os olhos de todos se ajustaram rapidamente à escuridão. As paredes, o piso e o teto dopoço de ventilação eram lisos e sem obstáculos. Caminharam por várias centenas demetros, sem mudar de direção, presos ao silêncio e ao cheiro levemente metálico docorredor, a abertura através da qual haviam entrado encolhendo atrás deles até setransformar num pontinho de luz. Então o poço começou a descer inclinado e, emseguida, passou a dividir-se em dois. A companhia fez uma pausa, e então virou paraseguir pela passagem maior, descendo mais, passando por incontáveis dutos menoresque, como tocas de cobras, atravessavam as paredes e o teto. Adiante, ainda tãodistante no começo que era muito difícil discernir, puderam ouvir o som do maquinário,um ronronar suave, um zumbido gentil, um lembrete da vida antiga e permanente.

Lâmpadas sem chamas presas nas paredes, com suas luzes amareladas, firmes econstantes, estavam dispostas em intervalos regulares. Estranhos olhos de peixeolhavam para Quentin do teto, afastados das luzes, minúsculos pontos vermelhos

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piscando constantemente nos seus centros. Pareciam estar olhando para ele. Era ridículopensar isso, mas não conseguia afastar essa sensação. Olhou para Panax e Tamis paraver se eles também estavam vendo, mas os olhos deles estavam direcionados adiante,para dentro do corredor que estavam seguindo.

Quentin percebeu-se olhando ao redor, surpreso. Jamais vira coisa parecida. Tantasfolhas de metal agrupadas juntas em camadas, metros e metros delas, aferrolhadas eseladas para resistir às intempéries, aos animais e às plantas, um túnel cavado peloshomens dentro da terra. Como aquilo fora feito? Tentou imaginar a cultura, as máquinase a habilidade que foram necessárias, mas fracassou. O Antigo Mundo havia sido umlugar muito diferente, ele sabia, mas isso jamais lhe fora aparente de modo tão drásticoquanto no poço de ventilação.

Presos por suportes, canos de metal começaram a aparecer em linhas conectadas aolongo das paredes da passagem. Quentin não conseguiu entender o objetivo deles. Tudolhe parecia estranho e estrangeiro, todas as superfícies metálicas, todo aquele espaçovazio. Se Antrax vivia ali embaixo, tinha espaço para se mover: isso era claro. Mas queespécie de criatura escolheria viver naquele lugar? Somente outra máquina, outrorastejador feito de metal, pensou Quentin. Talvez Antrax fosse uma máquina semelhanteaos rastejadores que comandava, só que ainda mais poderosa.

Subitamente, Tamis ficou paralisada. Levantou a mão em sinal de alerta. Os quatrohomens pararam no mesmo instante. Todos ficaram escutando. Adiante, o corredorterminava em um nó do qual uma série de corredores semelhantes se abriam em lequecomo aros de uma roda. Dentro de um daqueles corredores, podiam ouvir passos. Ospassos eram pesados, lentos e deliberados, como se fossem feitos por algo quecarregasse um grande peso.

Quentin nunca tinha ouvido passos como aqueles. Eram de algo que caminhavasobre duas pernas, mas não soava como nada que já tivesse encontrado. Olhou derelance para os outros. Tamis estava alerta como um gato. Panax continuava em pé, suaexpressão era impossível de decifrar. Havia uma película de suor nas faces dos elfoscaçadores, Kian e Wye. Quentin não conseguia respirar. Ninguém pareceu capaz de semover.

Então Tamis começou a andar, arrastando-se pelo corredor na direção do nómergulhado em sombras. Por uma vez ela olhou em direção a Quentin, seu rosto duro esério e os olhos cinzentos brilhantes e intensos. Não me abandone, ela estava dizendo.Sem sequer olhar para os outros, ele foi atrás dela e ficou ao seu lado. Atrás dele, o anãoe os elfos caçadores avançaram. O som dos passos estava cada vez mais alto. Quem ou oque quer que fosse não estava fazendo nenhum esforço para disfarçar a aproximação.Era grande e confiante. Não era ninguém que ele e seus companheiros tivessem vindoprocurar, Quentin pensou tristemente.

A dez metros do nó, com as entradas visíveis de todos os túneis que faziam ainterseção, eles reduziram o passo quando a luz lançou uma sombra do túnel logo àesquerda de onde estavam agachados, escondidos. Então uma figura alta e corpulentasaiu da penumbra e entrou no raio de alcance da luz de dez lâmpadas dispostas ao redordo nó.

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Quentin parou de respirar subitamente quando a figura foi revelada. Ouviu o espantodos outros. Até mesmo Tamis, que parecia não ter medo de nada, deu um passo paratrás, em choque.

Como uma sombra, um demônio, ou talvez ambos, porém mais como um monstrovindo de um pesadelo e invadindo o mundo real, a coisa — pois não havia outro nomepara ela — se virou para encará-los.

Era Ard Patrinell.Ou o que restara dele.

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Ao se preocupar com que espécie de desastre poderia ter acontecido com seus

amigos desaparecidos, Quentin Leah havia pensado em algumas possibilidades horríveise assustadoras, mas nada da espécie que ele estava confrontando ali. A criatura queestava à frente deles, a coisa que um dia fora Ard Patrinell, estava além da imaginação.Ela havia sido montada de carne e osso por um lado e de metal por outro. Haviamaquinaria dentro dela; o montanhês podia ouvi-la zumbindo suave e constantementeem algum lugar dentro do torso de metal ao qual as outras partes estavam ligadas. Aspernas e o braço esquerdo também eram de metal, todos os três compostos deestruturas com dobradiças nos joelhos, cotovelo, mão e pés, e ligada por juntas esféricasenfiadas em soquetes cercados por cabos que subiam e desciam pela criatura como veiase artérias em um corpo humano.

O que restava do velho Ard Patrinell formava o braço direito e a face. Ambosestavam intactos, e os traços distintivos do capitão da guarda real foram imediatamentereconhecidos. Sua cabeça, coberta por metal, estava enfiada em um colarinho alto. Eraimpossível dizer se sua cabeça ainda estava ligada a alguma parte de seu corpo, emboramesmo a certa distância e com a luz fraca do poço de ventilação Quentin pudesse ver acor nos traços fortes e movimento nos olhos escuros. Mas não havia dúvida quanto àconexão do braço direito, cuja carne e osso estavam recobertos e cabeados de metal noombro e ligados da mesma forma que os outros membros por uma bola e um soquetemetálicos.

Luzes vermelhas e verdes piscavam como minúsculos olhos de vidro por todo o torsoreluzente da criatura, e números dispostos em janelas clicavam e giravam, contandofunções que Quentin só podia imaginar. Almofadas acolchoavam as peças do esqueletode metal dos pés, e quando a criatura caminhava fazia ruídos abafados e não clangorescomo de outro modo certamente faria. A mão direita humana segurava com força umaespada larga, pronta para atacar. A mão esquerda metálica segurava uma faca longa eestava presa e protegida por um escudo oval que ia do pulso ao cotovelo.

Quando os viu — e realmente viu, puderam dizer pelo movimento dos olhos e pelodeslocamento do corpo —, partiu para eles na hora, armas levantadas para o ataque.

Por apenas um instante os membros da pequena companhia permaneceram ondeestavam, mais por incapacidade de reagir do que por coragem. Então Tamis gritou:

— Não! Saiam daqui!Começaram a recuar, no começo devagar, em seguida mais rápido, à medida que o

monstro avançava. Ele era pesado, mas seus movimentos eram suaves e sem esforço,como se parte da agilidade de Ard Patrinell tivesse sido capturada em sua nova forma.Finalmente, os elfos, o anão e o montanhês começaram a correr, impelidos pelo medo e

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pelo horror, e por algo mais também. Não queriam encarar uma coisa que era feita depedaços de alguém que haviam conhecido e admirado. Ard Patrinell fora amigo deles, enão queriam lutar com sua sombra.

Mas o que eles podiam ter desejado não contava. Recuaram pelo corredor damaneira como haviam entrado, gritando incentivos uns para os outros, Tamis gritandopara que voltassem para fora, onde tinham mais espaço para manobrar. E onde osrindges poderiam lhes dar auxílio, Quentin pensou sem dizer. Kian e Wye, endurecidos ebem condicionados, rapidamente se distanciaram dos outros três. Tamis ficoudeliberadamente para trás, com intenção de defender Panax, que obviamente seesforçava. Quentin podia ter alcançado os elfos velozes, mas o anão era atarracado,lento e sua compleição não fora feita para a velocidade. Estavam avançando pouco e oincansável monstro metálico que os perseguia estava se aproximando deles.

Na primeira divisão da passagem, Quentin virou-se para seu perseguidor, gritandopara que os outros continuassem. Mantendo-se firme no centro do corredor, a espada deLeah levantada à sua frente, ele confrontou a coisa que havia sido Ard Patrinell. Ela seaproximou dele sem reduzir a velocidade, todo tamanho e peso, peças metálicasreluzindo sob as lâmpadas sem chamas. Por um instante Quentin pensou que era umhomem morto, que havia julgado errado o que podia realizar sozinho e que eratotalmente inadequado para aquela tarefa. Mas então a magia retornou em chamas,subindo e descendo da lâmina de seu talismã, e ele estava gritando:

— Leah! Leah!Jogou-se para seu atacante, em um embate chocante de lâminas metálicas, e o

impacto da colisão quase o derrubou. Forçado para trás por um tamanho e um pesosuperiores, manteve sua lâmina entre eles, lutando para encontrar apoio no chão liso demetal. Agarrou o braço metálico do outro para manter afastada a faca longa, masrapidamente descobriu que não tinha força para fazer nada além de reduzir o avanço doperseguidor. Libertando-se com um safanão, ele rodopiou para longe, a corrente damagia da espada o invadindo como um rio transbordante, dura e impiedosa em suapassagem. Todos os pensamentos que não se relacionassem com sua própria defesafugiram, e então ele voltou-se subitamente, desferindo um golpe que visava arrancar acabeça de Ard Patrinell. Para seu espanto, o golpe falhou. Parcialmente rechaçado pelaespada do outro, seu movimento foi detido completamente por algum escudo invisívelque protegia a cabeça coberta por metal.

Quentin recuou uma segunda vez, e então Tamis estava ao seu lado, gritando paraPanax correr. Juntos, lutaram para manter o monstro de metal afastado, atacando dedois lados, batendo em tudo que parecesse vulnerável, que pudesse quebrar ouestilhaçar, para reduzir sua velocidade. Isso era tudo o que eles precisavam, Quentinpensava sem parar — apenas uma pequena falha para aleijá-lo e deixá-los fugirem.

Então a criatura aparou um golpe de sua lâmina e se meteu entre Quentin e a garotaelfa. Com lâminas nas mãos a criatura avançou em direção a Quentin, tentando pregá-lona parede do túnel. Ele lutou com a criatura por um momento, batendo com a lâmina daespada na placa facial clara, sem querer encontrando os olhos familiares por temposuficiente para ver algo que o fez gritar chocado antes de se soltar mais uma vez.

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— Corra! — gritou para Tamis, e juntos desceram correndo a passagem em busca dePanax e dos elfos caçadores.

Sua mente estava presa a uma única imagem. O que encontrara naqueles olhos, osolhos de um morto, havia congelado sua alma. Não conseguia aceitar que não estiveraenganado, que o que havia visto era real. Agora entendia por que os rindges haviam ditoque, quando Antrax pegava e desmembrava sua gente, as pessoas não morriam, maspermaneciam vivas, suas almas capturadas.

Sentiu um medo que jamais achou possível, um medo que com certeza nunca sentiraantes. Subitamente tudo o que ele queria fazer era fugir daquele lugar e deixar seushorrores para trás, para sempre.

— Você viu? — perguntou a Tamis enquanto corriam, sem fôlego. — Os olhos dele!Você viu os olhos dele?

— O quê? — ela gritou de volta. Sua respiração era ríspida e trabalhosa. — Os olhosdele?

Ele não conseguia dizer mais nada, não conseguia terminar o que havia começado.Balançou a cabeça para ela e correu com mais esforço, mais rápido, o ar queimando emsua garganta enquanto ele subia o corredor mal iluminado em disparada.

Levara apenas minutos, embora parecesse muito mais, para chegar à entrada dopoço de ventilação e à superfície mais uma vez. Os outros já estavam lá: Kian, Wye,Panax e até mesmo os rindges, que não haviam fugido como Tamis temera. Obat haviareunido seus guerreiros em formações de fileiras a dez metros atrás da entrada da grade,lanças pesadas abaixadas, zarabatanas levantadas. O pequeno bando de Quentinassumiu posições em uma das estrelas da formação, esperando pesadamente, olhandopara a abertura escura pela qual haviam fugido.

O monstro apareceu em um trote acelerado que o levou bem para cima deles. Nãoreduziu a velocidade e não hesitou: entrou direto no centro da linha dos rindges,empurrando as lanças, desviando os dardos das zarabatanas, mandando aqueles quetentavam detê-lo para o espaço, voando em todas as direções. Mal houve tempo paraque alguns gritassem “wronk” com vozes aterrorizadas antes que três estivessem mortosou agonizantes e todos tivessem se dispersado, menos um punhado. Obat e outros doisficaram onde estavam, acompanhados dos elfos, de Panax e de Quentin Leah, queatacavam o monstro de todos os lados, tentando romper suas defesas, encontrar umponto fraco, fazer qualquer coisa para detê-lo. Grunhidos e gritos se misturavam com oembate das armas de ferro, levantando-se no calor da batalha. Lâminas brilhavam na luzdo sol, corpos molhados de suor e sujos de poeira e terra lutavam para permanecer empé e fora do caminho do leviatã metálico.

— Leah! — Quentin rugiu furioso, desferindo um golpe atrás do outro no wronk queum dia fora Ard Patrinell, observando com horror como ele respondia aos instintos ehabilidades impecáveis do capitão da guarda real, infundido com o conhecimento quePatrinell havia adquirido durante vinte e tantos anos de combate e treinamento. Eraaterrorizante. Era como se Patrinell ainda estivesse ali, seu espírito capturado dentrodaquela forma de metal, capaz de direcionar suas ações, de pensar suas reações. Eracomo se soubesse o que Quentin faria antes que ele o fizesse, como se pudesse

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antecipar cada movimento do highlander.Talvez pudesse, Quentin pensou triste. Ard Patrinell havia ensinado ao montanhês

quase tudo o que sabia sobre lutas. A bordo da Jerle Shannara, Patrinell havia treinadoQuentin nos truques e nas manobras que o manteriam vivo em combate. Quentin haviasido um bom aluno, mas Patrinell conhecia os truques e as manobras e podia empregá-los melhor.

Assim como o wronk em que ele havia se tornado, refeito naquela nova imagem,naquela forma monstruosa, naquela fusão horrível de metal e carne.

Outro dos rindges caiu, quebrado e ensangüentado, aberto do pescoço até a virilha.Obat e os rindges restantes deram meia-volta e fugiram. O pequeno bando de Quentinmurchou perante o novo ataque do wronk. O desespero toldava seus rostos e sugavasuas forças. Mas foi aí que tiveram sorte. Ao forçar seu ataque, o wronk tropeçou nocorpo de um rindge morto, perdeu o equilíbrio e caiu. Ficou em pé quase no mesmoinstante, mas um membro quebrado do morto havia ficado preso entre suas juntas. Nospoucos momentos que o wronk levou para se libertar, Quentin e seus companheirosdesistiram de sua luta aparentemente sem esperanças e correram atrás dos rindges emfuga. O que quer que fosse necessário para vencer aquela batalha, primeiro exigiria umplano. Até então, seria melhor simplesmente fugir.

Desembainhando as armas na fuga, correram de volta para as árvores. Obat reduziuo passo para deixar que o alcançassem, gritando algo para Panax, que gritou de volta;todos então desapareceram por entre as árvores. Em segundos, não conseguiam maisver as ruínas. Correram por um longo tempo. Outros rindges se juntaram a eles, todosrespirando com dificuldade, banhados em suor, apavorados. Quentin sentiu a magia desua espada ceder, uma névoa vermelha se desvanecendo em pontadas de vazio enecessidades não preenchidas, uma mistura de emoções que o rasgavam como espinhos.Estava desgastado e sentia frio, tudo ao mesmo tempo, e uma parte dele queria voltarpara a batalha enquanto outra queria apenas escapar.

Não soube dizer por quanto tempo correram ou mesmo a distância percorrida.Estavam bem longe das ruínas quando pararam, um bando triste e abatido. Ajoelharam-se na luz morta da tarde, cabeças baixas em exaustão, apurando os ouvidos por entre ossons entrecortados de respiração, tentando identificar algum som de perseguição.Quentin olhou para Tamis, e suas emoções se juntaram para formar um devastadorsentimento de vergonha. O esforço deles havia fracassado completamente. Não estavammelhor do que quando começaram: estavam pior, talvez porque agora sabiam o destinode pelo menos um de seus companheiros desaparecidos, e talvez também do restantedeles.

Tamis olhou para Quentin. Ele se surpreendeu ao ver lágrimas nos olhos dela.— Não olhe para mim! — disse ela irritada.Obat falou com um dos rindges e o homem levantou-se e voltou na direção das

ruínas: fora ver se a coisa da qual haviam fugido ainda estava atrás deles, pensouQuentin.

Panax chegou perto dele, o rosto carrancudo, vermelho e furioso.— Que espécie de monstro faria isso a um homem? — grunhiu ele. — Torná-lo uma

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máquina com pedaços de si mesmo?— Talvez outra máquina — sugeriu Quentin cansado. — Uma pergunta melhor

poderia ser: por quê?Panax balançou a cabeça.— Não faz sentido.— Tudo faz sentido, mesmo que não entendamos qual seja. — Quentin pensava nos

olhos do wronk. Os olhos de Ard Patrinell. — Existe uma razão pela qual Antrax usawronks. Existe uma razão para este. Você viu como ele nos combateu? Viu como reagiaaos ataques? Ele tem as memórias de Ard Patrinell, Panax. Está usando as habilidades etáticas dele. Sabe como lutar da mesma maneira que sabia antes.

O rindge que havia sido despachado por Obat retornou correndo, falando apressadocom o subchefe, que por sua vez falou com Panax. O anão levantou-se na hora.

— Vamos embora! Ele está bem atrás de nós!Levantaram-se e continuaram sem parar, Obat na liderança, escolhendo um caminho

sem obstruções que lhes permitia seguir mais rápido; a melhor chance que tinham residiaem correr mais do que seu perseguidor. Por duas vezes Quentin olhou para trás, mas nãohavia nada para se ver. Não duvidou nem por um momento que o wronk estivesse vindoatrás deles, incansável e implacável, determinado a persegui-los até que fossemderrotados. O montanhês já estava sentindo pontadas de dúvida sobre se conseguiriaescapar. Mas ficar e lutar teria sido um erro. O wronk era maior e mais forte. Suaarmadura lhe dava melhor proteção. Ele possuía os instintos e as habilidades de combatede Ard Patrinell. Talvez, se houvesse mais dos rindges, se conseguissem chegar até ovilarejo e convocar outros para ajudá-los, pudessem ter uma chance. Caso contrário,mesmo com a magia da espada de Leah para ajudá-los, não tinha certeza de queconseguiriam vencer.

Estavam atravessando uma parte densa da floresta e foram incapazes de evitar queo wronk os alcançasse. Ele saiu dentre as árvores em um dos flancos, sua aparição foiinesperada e surpreendeu a todos. Instantaneamente, apanhados e feitos em pedaços,dois dos rindges e o elfo caçador Wye morreram. O restante da companhia se dispersouem uma mistura de gritos e choro, indo em todas as direções, lutando para se libertaremdo wronk e das árvores que os emaranhavam. Quentin e Tamis correram para umadireção e Panax e Kian para outra. Os rindges correram em todas as direções. Por ummomento tudo era caos, enquanto o wronk avançava pelo centro de sua linha, lâminascortando tudo.

Então o montanhês e a rastreadora estavam mais uma vez a céu aberto. Quentinarriscou uma rápida olhada para trás. Um brilho de metal à luz do sol e os sons dealguma coisa imensa derrubando tudo atrás deles lhe disse que o wronk ainda estavaavançando, e estava indo na direção deles.

— Por aqui! — sibilou Tamis, esquivando-se de galhos e de arbustos como um coelhoao mergulhar por uma ravina.

Correram em silêncio por um longo tempo, tentando se distanciar o quantopudessem de seu perseguidor. Estava ficando escuro, o crepúsculo caía sobre Parkasia,sombras alongando-se dentro da noite. Era difícil passar por todos os obstáculos que

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bloqueavam o caminho, especialmente quando estavam fugindo, e mais de uma vez,Quentin quase perdeu o equilíbrio. Durante todo esse tempo, podiam ouvir os sons daperseguição, galhos quebrando, grama e arbustos sendo pisoteados, o compassoconstante e incansável de passos pesados.

Algo de inesperado e assustador se insinuava no pensamento do montanhêsenquanto ele fugia. No início ele descontou a possibilidade, colocou-a de lado, zangado,mas então começou a se perguntar. Ambas as vezes, aqui e ali, o wronk fora sempreatrás dele. Ele vira isso no ataque do monstro contra a formação defensiva dos rindgesnas ruínas, onde o wronk havia primeiro assustado os nativos e em seguida se voltaradireto para ele. Novamente, na floresta, depois de derrubar os mais próximos, escolherapersegui-lo. Parecia paranóia pensar assim. Por que o wronk estaria atrás dele emparticular? Será que seu ataque no poço de ventilação provocara isso? Haveria algumacoisa de especial a seu respeito que o atraísse?

Então lembrou de uma coisa que Walker dissera durante sua reunião final a bordo danave antes de desembarcarem para sua malfadada jornada até as ruínas, e teve aresposta.

Estava completamente escuro quando finalmente pararam, a quilômetros de ondehaviam começado, no fundo da mata. A única luz visível vinha da lua e das estrelas, afloresta que os cercava estava coberta de sombras e envolta no silêncio. Agachadossobre uma encosta, escondidos atrás de uma touceira de arbustos, olharam em direçãoao caminho que haviam percorrido, apurando o ouvido. Os sons de perseguição do wronkhaviam se dissipado, desaparecendo quase sem que percebessem, como se a criaturatambém tivesse parado. Nem Quentin nem Tamis se moveram ou falaram durante umlongo tempo, esperando.

— Eu sei de quem ele está atrás — Quentin finalmente sussurrou, olhando para a

escuridão. — Ele está atrás de mim.Ela olhou para ele sem falar.— Ele quer a espada. Quer a magia. Lembra-se do que Walker nos falou sobre o

motivo pelo qual fomos atraídos, no início, a este lugar? Pela nossa magia, ele disse.Acho que Antrax sabe tudo a nosso respeito, talvez até sobre Bek. Ele quer tudo o quepossuímos.

Ela pensou no assunto.— Pode ser.— Foi por isso que ele mandou este wronk feito de pedaços de Ard Patrinell. Está

usando o cérebro dele, os instintos dele e suas habilidades de combate para tirar o quedeseja de nós. De mim. No começo achei que ele havia escolhido Patrinell porque nosconheceria melhor e poderia nos matar de modo mais fácil. Mas por que mandar umwronk atrás de nós? Por que se importar, quando poderíamos ser facilmente destruídosno labirinto e praticamente não constituímos ameaça?

— Então você acha que ele construiu o wronk deliberadamente — disse ela. —Utilizou a cabeça e o braço da espada de Patrinell porque tinha um propósito específicoem mente.

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— Utilizou as partes de que precisava para fazer o wronk funcionar o mais próximopossível da coisa real. Nada disso aconteceu por acidente. O wronk foi construído eenviado atrás de nós por uma razão. Ele está atrás de mim. Vem sempre na minhadireção. Eu não tinha pensado direito nisso primeiro, lá no poço de ventilação. Mas eleveio atrás de mim mais uma vez quando fugimos para a floresta novamente, e agoraestá me caçando. Ele quer a espada, Tamis. Ele quer a magia.

Por um momento ela ficou em silêncio. Ele continuou a olhar para a escuridãoimpenetrável, apurando o ouvido.

— Você não pensou nisso o suficiente — ela sussurrou subitamente. Esperou ele sevirar para encará-lo novamente. — Pense bem. Sua espada não irá funcionar paraqualquer um, irá?

O olhar firme dela o deixou nervoso.— Não. Ela só funciona para mim. Então você está dizendo que ele me deseja

também.— Ou partes de você, assim como Patrinell.A garganta dele apertou e ele desviou o olhar.— Morrerei antes.Ela não disse nada, mas colocou a mão no braço dele.— O que estava tentando me dizer sobre os olhos dele lá dentro do túnel? Quando

estávamos correndo, você começou a dizer alguma coisa. Perguntou se eu havia visto osolhos dele.

Quentin ficou em silêncio por um longo tempo, lembrando-se do que havia visto,tentando vencer o nojo que o próprio ato de pensar a respeito provocava. Tamis nãotirou a mão do braço dele nem os olhos de seu rosto.

— Conte-me, montanhês.Ele estremeceu um pouco ao falar, o desespero e o medo tornando a tomar conta

dele.— Quando estávamos lutando abaixo das ruínas, no subterrâneo, dei uma boa

olhada naqueles olhos. Enquanto estava lutando com ele, cheguei perto o bastante paraolhar dentro deles. Não eram olhos mortos. Não eram olhos sem alma. Não estavamcheios de raiva, de loucura nem de nada que eu esperava. Estavam apavorados,aprisionados e indefesos. Sei que parece impossível, mas ele ainda está vivo lá dentro.Dentro de sua cabeça, de seu cérebro. No que ele vê e sente. Ele está trancado ládentro. Pude ver isso. Tenho certeza. Ele estava pedindo ajuda. Estava implorando ajuda.

Ela balançava a cabeça, negação, raiva e medo contorcendo seu rosto, sua mãoapertando o braço de Quentin até que as unhas cortaram-lhe a carne.

— Ele não está nos atacando porque deseja! — sibilou Quentin. — Está fazendo issoporque não tem escolha, porque foi reconstruído para levar adiante os desejos de Antrax!Sua mente foi alterada como a daqueles elfos que assinaram Allardon Elessedil! Só quenão sobrou corpo, não sobrou nada inteiro. Ele... — Fez uma pausa. — Ele não é mais ArdPatrinell, mas Antrax roubou algo do que ele era e o está mantendo prisioneiro dentrodaquele wronk.

Alguma coisa se moveu nas trevas, mas foi um movimento pequeno e rápido.

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Quentin olhou nervoso naquela direção, e depois de volta para Tamis.— Você pode estar errado — ela insistiu com raiva.— Eu sei. Mas não estou. Eu o vi. Eu o vi.Havia novas lágrimas nos olhos dela. Ele viu o brilho na luz do luar. Ela soltou seu

braço. Piscava com dificuldade e afastou o olhar.— Não posso acreditar nisso. Não é possível.— Os rindges sabiam. Eles viram isso acontecer com seu próprio povo. Tentaram

avisar.Ela balançou a cabeça e correu os dedos pelos cabelos curtos.— Isso me dá nojo. Tenho vontade de gritar. Ninguém deveria ter de...Não conseguiu terminar. Quentin não a culpou. Não havia palavras suficientes para

expressar seus sentimentos. O que fora feito a Ard Patrinell era tão odioso, tãodesprezível, que fazia o montanhês se sentir impuro.

E com medo, porque provavelmente Antrax pretendia levá-lo ao mesmo fim.— Teremos de matá-lo — disse ela subitamente, olhando para longe com tamanha

ferocidade que ele ficou perturbado. Por um momento não tinha certeza de que elaestava falando. — Mais uma vez, de novo não podemos deixá-lo preso ali. Precisamoslibertá-lo.

Ela pegou as mãos dele e apertou-as com força.— Ajude-me a fazer isso, montanhês. Prometa-me que ajudará.Então ele viu o motivo da intensidade dela. Ela fora apaixonada por Ard Patrinell. Ele

não havia percebido isso antes, não tivera sequer a menor pista. Como fora tão cego?Talvez ela tivesse mantido isso tão bem escondido que ninguém chegara a saber. Mas aliestava agora, abertamente, tão certo quanto o retorno da luz do sol com a aurora.

— Tudo bem — ele concordou baixinho. — Eu prometo.Não fazia idéia de como iria manter essa promessa, mas seus sentimentos quanto ao

assunto eram tão fortes quanto os dela. Fora ele quem olhara nos olhos de Ard Patrinell eo vira lá dentro, ainda vivo. Ele não podia fingir que isso nunca acontecera e que nãofaria efeito sobre ele se se afastasse. Assim como Tamis, ele não podia deixar o capitãoda guarda real ser escravo de uma máquina. O wronk tinha de ser destruído.

— Durma um pouco — disse ela, afastando-se dele. Havia cansaço e tristeza em suavoz. Todas as suas forças pareciam drenadas. Ele nunca a vira assim antes e não gostavadisso. Era como se ela de repente tivesse envelhecido.

— Acorde-me em algumas horas — disse ele.Ela não respondeu. Seu olhar estava voltado para a noite. Ele aguardou um

momento e então se espreguiçou, colocando a cabeça sobre o braço dobrado. Ele olhou-apor algum tempo, mas ela não se moveu. Finalmente, os olhos dele se fecharam e eledormiu.

Em seus sonhos perturbados, ele fugia mais uma vez do wronk, que o perseguiaatravés de uma floresta e ele não conseguia encontrar uma maneira de fugir. Após umlongo tempo, descobriu-se encostado em uma parede e foi forçado a se virar e lutar. Maso wronk não era sólido nem reconhecível. Era insubstantial, uma coisa feita de ar. Podiasenti-lo pressionando contra ele, sufocando-o. Lutou para se libertar, apenas para

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respirar, e então subitamente o wronk se materializou bem à sua frente e ele viu seurosto. Era o rosto de Bek.

Era quase manhã. Quando Quentin acordou, os primeiros tons de luz do diaescorrendo por entre as árvores, o céu se iluminando a leste. Tamis havia adormecidoem sua vigia, o corpo encostado contra uma árvore, o queixo abaixado no peito. Quandoele se sentou, ela o ouviu se mover e levantou a cabeça na hora.

A distância, longe porém reconhecível, alguma coisa grande se movia por entre asárvores.

Levantaram-se juntos, olhando na direção dos sons.— Está vindo novamente — sussurrou Quentin. — O que você quer fazer? Defender-

se aqui ou escolher outro lugar?O olhar dela era impossível de ler, mas a fraqueza e a tristeza da noite anterior

haviam desaparecido.— Vamos encontrar um daqueles poços que os rindges cavaram para capturar

wronks — ela respondeu suavemente. — Vamos ver se eles nos servirão bem.

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15

Muito embora Ryer Ord Star o tivesse convencido a acompanhar o pequeno varredor

em busca de Walker, Ahren Elessedil insistiu em esperar até depois de escurecer, antesde tornarem a entrar nas ruínas mortais. Ele aceitou que não era muito provável quefossem atacados por rastejadores ou fios de fogo se o varredor os estivesse liderando, eprovavelmente não faria diferença se estivesse claro ou escuro, mas ele não queriasaber. O ataque que havia destruído todos os que estavam com ele quando tentaramentrar pela última vez estava ainda muito vivo em sua lembrança, e isso o impedia devoltar lá à luz do dia. Insistiu que ela deveria pelo menos lhe fazer uma concessão.

Ryer Ord Star não teve escolha senão concordar, pois queria que ele estivesse comela; o varredor nada tinha a oferecer com relação a este assunto. Ficava ali sentadosobre sua base com rodas, seu interior zumbindo, mantendo suas imagens para simesmo. Quente como no verão, o dia custou a passar e Ahren e Ryer alternaram ashoras de sono. Abaixo de seu esconderijo, as ruínas tremeluziam silenciosas.

Com a chegada da noite, a escuridão caindo sobre a terra em sombras azul-acinzentadas e uma luz que ficava cada vez mais fraca, eles partiram. O varredor oslevou para baixo, para fora do esconderijo, sua base com rodas flexionando-se sobre asescadas e os escombros, fazendo pouquíssimos sons enquanto rodava na direção doperímetro e das ruínas. A vidente e o príncipe dos elfos foram atrás, a primeira semhesitação, o segundo hesitando o tempo todo. Mal haviam avançado dez metros dentrodo labirinto quando o varredor se aproximou de uma parede, emitiu uma série depequenos cliques e acionou uma entrada oculta. A parede deslizou para trás, revelandouma rampa mal iluminada que levava para baixo, e os três improváveis companheirosentraram.

Quando a porta se fechou atrás deles, Ahren experimentou tamanho ataque depânico que teve de se esforçar para não gritar. Sentiu-se aprisionado, exposto e indefeso,tudo ao mesmo tempo, e esperou que os fios de fogo e os rastejadores o cortassem empedaços. Mas não houve ataque; prosseguiram sem desafios para baixo até uma série decorredores que se encontravam em um nó. Lâmpadas sem chamas fechadas em vidrosderramavam uma luz amarela sobre o chão em poças tênues. Canos corriam pelos tetos,entrando e saindo de paredes como cobras. Portas seladas, algumas redondas e nãoretangulares, eram a única coisa que riscava as superfícies lisas de metal. Espaçados deforma regular ao longo de cada passagem, olhos de vidro como os de peixes osencaravam do alto, pequenos pontos vermelhos dentro de centros escuros piscandomalignos.

Ahren, tentando olhar tudo ao mesmo tempo, descobriu-se lamentando novamentesua decisão; ainda estava incomodado com a disposição deles em aceitar que o varredor

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pudesse ajudá-los. Ou que quisesse ajudá-los. O fato de que uma máquina que era pelomenos em parte rastejadora estivesse ansiosa para ajudá-los parecia evidentementeridículo. Em sua mente, exibiu de novo as imagens que o varredor havia lhe mostrado,reavaliando-as, tentando descobrir por trás delas mais do que lhes havia sido mostrado.Toda essa história parecia errada. Continuava achando que Ryer Ord Star teria detectadoqualquer subterfúgio, mas a vidente estava tão cega por sua necessidade de chegar atéWalker que ele não podia ter certeza. Ainda que encontrassem o druida, como iriamajudá-lo? Se ele próprio não podia se ajudar, de que utilidade seriam? Pensou nas pedrasélficas desaparecidas. Se pudesse recorrer à magia delas, poderia ser capaz de fazeralguma coisa, embora mesmo isso não fosse garantido, já que ele nunca as utilizara enão sabia se poderia fazê-lo de verdade.

Desceram um corredor muito longo sem chegar a lugar algum aparentemente, ostúneis, câmaras e escadas passando em sucessão interminável, todos com o mesmoaspecto. Quase sempre ele ouvia maquinaria funcionando, suave e distante, abafada poraço e terra. Continuava pensando que iriam encontrar algo de novo, uma câmara querevelaria algo de importante, mas isso nunca aconteceu. Por outro lado, não encontraramnada que pudesse ameaçá-los. O tempo foi passando e a estranha descida continuou.

Por fim, Ahren pediu que parassem. Já haviam caminhado quilômetros, e não havianada a sugerir que não continuariam caminhando ainda mais quilômetros. Precisavamdescansar. Ryer, ele sentiu, continuaria andando até cair. Sentou-se no chão, recostando-se em uma das paredes de metal, e pegou a bolsa de água. A vidente se sentou ao seulado, aceitando a bolsa de água quando ele a ofereceu, e depois um pedacinho de pãocom queijo do pouco de comida que lhe restava. O silêncio das passagens subterrâneasparecia ecoar ao redor deles, um lembrete de como estavam sozinhos e isolados.

O varredor tomou posição no centro do corredor logo à frente deles, luzes piscandoem uma cadência sonolenta. Não parecia ter qualquer pressa.

Ahren mudou de posição para encarar a jovem vidente.— Você faz alguma idéia da distância que podemos estar de Walker?Ela balançou a cabeça.— Ainda posso senti-lo, mas a sensação não está diferente de antes.— Nada? Mas estamos caminhando o tempo todo! Você precisa ser capaz de dizer

alguma coisa!— Não é assim que funciona, Ahren. A distância não importa. Eu posso sentir as

mesmas coisas, estejam perto ou longe. Só a parte de cura tem alguma coisa a ver comproximidade. Preciso tocar a pessoa que está sentindo dor. — Tentou um sorriso rápido ereconfortante. — Não tenha medo.

Mas ele tinha medo e não estava conseguindo se controlar. Tudo em Castledown eracomo um peso pressionando-o contra a terra, esmagando-o até que ele se tornassenada. Estava envergonhado e embaraçado, ainda se sentindo culpado por ter fugido doataque, por ter ficado tão petrificado de medo e sem conseguir ajudar os outros. Talvezfosse por isso que estava com medo. Talvez fosse por isso que parecesse estar commedo o tempo todo.

Ela estendeu a mão e tocou o braço dele, o que o surpreendeu.

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— Está tudo bem em sentir medo. Eu também estou com medo. Também não queroficar aqui. Mas talvez sejamos os únicos que podem ajudar Walker. Precisamos tentar.

Ele assentiu desconsolado. Ela tinha razão, mas isso não o fazia se sentir melhor.Nem mais corajoso. Levantaram-se e continuaram, seguindo o pequeno varredor. Ele oslevou por novas passagens e rampas, escadas e corredores, levando-os mais adiante, nofundo das catacumbas da cidade subterrânea. A jornada era tediosa e anestesiante; omundo de Castledown era o mesmo para onde quer que fossem. A fadiga começou a seinstalar, tanto física quanto emocional. Ahren perguntava a si próprio se estaria escuro láfora. Achava que não. Imaginou se mais alguém haveria entrado nas ruínas desde então.Quais eram as chances de que mais alguém de seu pequeno bando disperso achasse ocaminho subterrâneo como eles haviam achado?

Por várias vezes ele tentou perguntar ao varredor o quanto ainda tinham de andar,mas nunca houve resposta. O varredor simplesmente continuou prosseguindo, sem seimportar em se comunicar, sem mostrar mais imagens. A esta altura estavamcompletamente dependentes dele; não podiam encontrar o caminho de volta para asuperfície sozinhos. Não podiam encontrar o caminho para lugar algum. Se o varredornão os levasse até Walker, estariam perdidos além de qualquer esperança.

Quando tornaram a parar para descansar, as costas contra a parede mais uma vez,comendo e bebendo para permanecerem fortes, tão cansados a ponto de dormir, massem vontade de arriscar, Ahren sentiu-se consumido pela provação que passavam e nãoconseguia mais suportá-la. Esperou um momento, pensando na sugestão que estava parafazer, observando o varredor que os encarava do centro do corredor a cerca de trêsmetros de distância.

— Quero que você faça uma coisa — disse ele baixinho para a vidente. Ela olhoupara ele na hora. Ele fez uma pausa e inclinou-se para perto dela. — Quero queexperimente suas habilidades empáticas no varredor e veja o que elas lhe dizem.

Ela franziu a testa.— Quer que eu veja se tocar nele irá induzir alguma visão?— Do passado, do futuro, do presente, de qualquer coisa que nos ajude.— Mas é uma máquina, Ahren.— De qualquer modo, tente. Você disse que ela era senciente. Se for verdade, você

pode ser capaz de acionar algo de seus pensamentos. Talvez possa descobrir o quantoainda temos de andar ou onde procurar por Walker. — Balançou a cabeça indefeso. — Sóquero algo que diga que estamos aqui por algum motivo e devemos continuar em frente.

Ela olhou para ele por um longo tempo, sem se decidir. Então assentiu lentamente.— Está bem, vou tentar.Ela terminou o último bocado de pão, colocou a bolsa de água no chão e se

levantou. O varredor começou a se afastar, achando que estavam prontos, mas voltouquando Ahren não fez nenhum movimento para acompanhá-lo. Ryer aproximou-se delesem falar, ajoelhou-se ao seu lado e colocou as mãos em seu corpo metálico redondo, aspontas dos dedos pressionando-o enquanto os olhos dela se fechavam. Seus traçospálidos e etéreos endureceram em concentração e levantou o rosto das sombras de seucabelo prateado.

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No instante seguinte, ela balançou sobre os calcanhares e seu corpo magro ficourígido de choque. Ahren se assustou. O varredor não se moveu; Ryer Ord Star continuavaagarrada a ele, as pontas dos dedos curvadas em garras e a cabeça jogada para trás,olhos fechados e braços estendidos, descobrindo em qualquer visão que seu contato como varredor tivesse induzido imagens de tal natureza que as emoções provocadas podiamser lidas em seu rosto, cruas, nuas e terríveis.

Ela soltou um gemido baixinho e então desabou, deixando as suas mãos caírem. Nomesmo instante, sem aviso, sem sequer abrir os olhos, começou a falar.

— Um jovem, um elfo, foi trazido até aqui acorrentado, surrado e quebrado em umaluta que matou seus companheiros. Seus olhos foram então extirpados e sua línguaarrancada. Ele levava consigo pedras élficas, tão fortemente presas em sua mão que nãoconseguia soltá-las. Elas eram mágicas e tão poderosas que podiam tê-lo libertado se eletivesse a vontade de usá-las para fazer isso. Mas sua mente estava aprisionada, bemcomo seu corpo, e ele não tinha mais controle sobre ela. Rastejadores o levaram atéesse lugar, bem profundamente no subterrâneo, para dentro de uma câmara cheia demáquinas e luzes que piscavam. Ele foi colocado em uma cadeira. Algemas de ferro oprenderam e fios foram inseridos em seu corpo, colocados cuidadosamente sobre suapele por rastejadores.

Seus olhos se abriram de súbito e ela olhou para ele, o rosto cansado e assombrado.Afetada pelo que havia testemunhado em um mundo que não imaginara que pudesseexistir, parecia uma criança despertando de um pesadelo.

— Uma presença viu isso acontecer, um ser senciente que não tinha substância nemforma. Ele se chamava Antrax. Ele se escondia nas paredes, no teto e no chão, por todolugar, em toda parte ao mesmo tempo. Ele podia ver, mas não tinha olhos. Podia sentir,mas não tinha toque. Ele estava controlando o destino do elfo arruinado. Estavacontrolando sua mente. Quando o elfo estava bem preso na cadeira, uma caixa commuitos fios foi presa na mão que trazia as pedras élficas. Imagens foram alimentadas namente do elfo através dos fios, fazendo com que ele visse coisas que não estavam ali,forçando-o a utilizar a magia das pedras. Essa magia foi capturada pela caixa e roubada,levada pelos fios, sugada e desviada para outros lugares.

Ela olhou para Ahren como se fosse incapaz de olhar para outro lugar, perdida nasimagens de sua visão.

— Isso foi o que vi. Tudo isso. Tudo.— Você viu Kael Elessedil — ele disse baixinho.Ela respirou fundo.— Kael Elessedil — ela repetiu e estremeceu. — Por trinta anos, Ahren, essa foi sua

vida!Ele tentou imaginar isso e fracassou. Como alguém podia ser usado daquela

maneira? Que espécie de criatura podia cometer um engodo desses? Um frio profundoalojou-se na boca de seu estômago quando ele percebeu que, o que quer que aquilofosse, não era humano. Antrax era uma coisa completamente diferente.

Levantou-se para ir na direção dela, para ajudá-la a se levantar, mas ela fez umgesto rápido de defesa.

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— Não me toque, Ahren. Existe algo mais... algo ainda mais sombrio. Não conseguiolhar para isso tudo de uma vez, mas agora preciso. Tenho de olhar. Eu me abri paravisões acionadas pelas memórias do varredor. Se você puser as mãos em mim, iráperturbar tudo. Fique longe.

Sem esperar pela resposta dele, ela tornou a se inclinar e recolocou as mãos maisuma vez sobre o varredor. Seu rosto ficou rígido no mesmo instante e um soluço escapoude seus lábios. Sua cabeça tombou e ela estava se agarrando ao varredor como sepudesse cair se não o fizesse.

— Oh! Oh! — ela gritou baixinho, quase em desespero.Suas mãos caíram e ela tornou a desabar sobre os calcanhares. Ficou assim por um

longo tempo, a respiração fraca, o rosto lívido, seu corpo vazio. Ahren, embora quisesseir na direção dela, permaneceu onde estava, obedecendo às suas instruções. O túnelestava silencioso como uma tumba, seu silêncio um eco sem voz subindo e descendo oscorredores através das poças tênues de luz amarela. Cheio de medo, o príncipe dos elfosaguardava. Sentia-se jovem, estúpido e vulnerável ao mesmo tempo, como se tivessesido exposto pelas visões da vidente, como se estivesse sendo aberto sem ter sidosequer tocado.

Então, como se fosse um caranguejo, Ryer Ord Star afastou-se lentamente dovarredor, a cabeça abaixada e o corpo caído.

— Ahren? — sussurrou baixinho.Ele estendeu os braços para ela, recebendo-a em seus braços. Ela se colou ao seu

corpo, ele a abraçou e lhe deu toda a força que tinha. Dentro de seus mantos ela tremiae sentia frio. Ele tocou seu rosto e sentiu a umidade vazando de seus olhos.

— Está tudo bem — ele lhe garantiu, sem saber o que mais poderia dizer.Ela balançou a cabeça no mesmo instante, negando.— Ahren — ela disse tão baixinho que ele mal conseguiu ouvir suas palavras.

Levantou o rosto de forma que seus lábios pressionaram o ouvido dele. — Você tinharazão — sussurrou. — Fomos enganados. É uma armadilha.

Ele ficou paralisado, aterrorizado. Começou a dizer algo em resposta, maspermaneceu quieto. Teve presença de espírito suficiente para se lembrar de que ovarredor podia ouvir e traduzir o que diziam.

— Antrax planeja que você substitua seu tio — ela murmurou, suas mãos oagarrando. — Você foi mantido vivo e trazido até aqui para que lhe façam o mesmo quefizeram a Kael. — As palavras dela eram pedacinhos pequenos de vidro, cortando seucoração. — O varredor é uma ferramenta. Ele foi trazido para atrair você até aquelemesmo aposento no qual Kael Elessedil foi aprisionado por todos aqueles anos. Ele meutilizou para convencê-lo. E eu...

Não conseguiu terminar, e ele a apertou ainda mais para perto de seu corpo,segurando-se nela como se estivesse lhe dando algo para segurar por sua vez. Você temcerteza?, ele quis perguntar. Mas era uma pergunta tola. O poder que ela tinha de ver osdestinos já havia sido provado diversas vezes e não havia motivo para duvidar dela nestecaso. Especialmente porque não ficara à vontade sobre o que estavam fazendo desde ocomeço. Seus olhos iam para um lado e para outro do corredor. Ainda vazios, ainda

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desertos. Qualquer que fosse o destino que os aguardasse, ainda não haviam cruzadoseu caminho, embora estivessem claramente a caminho de fazê-lo se não agissemrápido.

Mas o que deveriam fazer? Estavam no subterrâneo, perdidos além de qualqueresperança, o companheiro e pretenso guia deles uma criatura a serviço do inimigo.Antrax deveria tê-los rastreado por todo o caminho, observando seu progresso,orquestrado sua passagem. Estaria observando-os agora. O que quer que fizessem, paraonde quer que fossem, ele veria. Antrax não os deixaria escapar do que estavaplanejando para eles. Não permitiria que seu plano de substituir Kael Elessedil fossemalbaratado. O coração de Ahren estava acelerado.

As palavras da vidente voltaram para ele de súbito e ele fechou os olhos contra a dorque elas provocavam. Antrax o havia mantido vivo, ela dissera. Sua fuga, enquanto todosos seus companheiros estavam lutando e morrendo, havia sido arranjada. Não fora poracaso ou por sorte que ele nunca fora machucado. Talvez Antrax o tivesse visto comofraco e maleável, um covarde. Talvez ele soubesse o quanto Ahren podia ser facilmentemanipulado sem qualquer uso de força. Dessa maneira ele permaneceria inteiro e semdanos, mais capacitado a servir ao fim que Antrax desejava, talvez por cinqüenta anosem vez dos trinta que Kael Elessedil havia suportado.

Tudo isso fazia sentido para ele. Walker lhes havia dito que o que quer que oshouvesse atraído para Castledown queria a magia deles, jamais ocorrera a Ahren que,para assegurar essa magia, poderia ser preciso alguém que a invocasse. Daí o destino deKael Elessedil. Daí, talvez, o seu próprio.

Seus olhos estavam cheios de lágrimas que corriam por seu rosto. Ele odiava a simesmo. Odiava o que havia sido feito a ele. Odiava tudo em Castledown. Mas, acima detudo, odiava Antrax. Queria gritar sua raiva para o silêncio e vê-la explodir em lascas defúria afiadas como navalhas que esmagariam o varredor, que dariam um fim a pelomenos uma pequena parte do monstro que habitava aquele lugar odioso. Passou a mãona parte de trás da cabeça sedosa de Ryer Ord Star, gentilmente, de modo reconfortante.Por dentro, estava paralisado, e toda a sua fúria escoou dele como sangue de umcadáver. Iriam morrer ali embaixo, os dois. Haviam ido longe demais, muito fundo parasair. Talvez, se ele tivesse a posse das pedras élficas, pudessem ter uma chance. Mas aspedras élficas não haviam feito muito bem a Kael Elessedil. Outra magia, uma magiamais forte, poderia fazer uma diferença. Mas não tinha nenhuma outra magia parainvocar, nada que pudesse...

Então se lembrou da pedra fênix. No calor dos eventos, havia se esquecidocompletamente dela. Estava pendurada onde ele a havia colocado, na corrente ao seupescoço, enfiada dentro da túnica. A magia de Bek Rowe, presenteada pelo rei do rioPrateado em sua jornada para Arborlon, e que Bek dera a Ahren. Tentou se lembrar doque Bek havia lhe dito sobre a pedra, lutou para recordar as palavras do rei do rioPrateado.

No momento em que você mais se encontrar perdido, ela o ajudará a encontrar ocaminho. Com seu coração e com os olhos também. Ela lhe mostrará como voltar delugares escuros para os quais você se desviou e lhe mostrará o caminho em frente,

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passando por lugares escuros pelos quais você deverá ir.Fechou os olhos. Não podia estar mais perdido do que já estava. Não podia se

encontrar em um lugar mais escuro. Estava doente de coração e espírito e estavaaprisionado de todas as formas imagináveis. Se algum dia houve um momento em queprecisava da magia da pedra, esse momento havia chegado. Será que a magiafuncionaria para ele? Não sabia, mas não havia mais nada para tentar. Jamais pensouque viria a utilizar a pedra. Havia pensado que a manteria a salvo para Bek e adevolveria para ele quando se encontrassem novamente. Mas não achava que fossem verum ao outro de novo se ele não usasse a pedra fênix e encontrasse a saída do labirinto.

Olhou para o varredor que aguardava no centro do corredor. Caso oacompanhassem, as coisas continuariam como antes. Caso se separassem dele,certamente Antrax empregaria outras medidas para garantir que lhe obedecessem. Nãohavia razão em esperar mais para fazer o que tinha de fazer.

Afastou a jovem vidente dele, colocando gentilmente as mãos em seus ombros.— Ryer — disse suavemente. Os olhos dela, cheios de lágrimas, se levantaram para

encarar os dele. — Ouça-me. — Ele mantinha a voz em um sussurro que não seria ouvidoalém dos dois. — Não vamos avançar mais. Não com este varredor. Estamos acabadoscom ele. Tenho uma coisa que acho que irá nos ajudar a fugir, uma coisa que Bek medeu quando saímos da nave. É uma magia que foi dada pelo rei do rio Prateado. Sefuncionar, talvez encontremos nosso caminho para Walker, ou, se não para Walker, pelomenos para sairmos dos túneis e voltar à superfície. Quer tentar?

Ela assentiu na hora, os lábios fechados, o olhar firme. Ele esperou um momentopara ter certeza disso; então, escondendo seus movimentos do varredor, enfiou a mão natúnica e puxou para fora a pedra fênix. Olhou para sua superfície prateada, um vislumbrede líquido leve em sua mão, e então retirou-a de sua corrente.

Você só pode usá-la uma vez, Bek havia dito. Só uma vez, pois jogá-la na terra paraliberar sua magia irá estilhaçá-la. Ahren olhou para Ryer Ord Star, sentindo pela primeiravez em dias que estava fazendo algo certo.

— Pegue minha mão — disse ele.Ela o fez, sem tirar os olhos dele. Então ele respirou fundo, levantou-a para que

estivessem ambos em pé, e jogou a pedra fênix no chão da passagem.

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16

No instante em que a pedra fênix se chocou contra o solo e se estilhaçou, Ahren

Elessedil e Ryer Ord Star foram envolvidos em uma névoa da cor de cinzas velhas. Elaturbilhonava ao redor deles, uma mistura de partículas minúsculas e luz esfumaçada,como se fosse sopa em um caldeirão mexida por uma mão invisível. Ela grudava nelescomo uma nuvem e nunca se espalhava para muito além de onde estavam. Além de seuperímetro, as passagens de Castledown permaneciam inalteradas.

Por um momento, o príncipe dos elfos e a vidente ficaram parados, inseguros,esperando para ver o que aconteceria. O pequeno varredor os encarava direto como senada tivesse mudado, seu interior zumbindo, luzes piscando, imóvel no centro docorredor. Então começou a rodar para a esquerda e para a direita, seus movimentos cadavez mais frenéticos. Parecia estar procurando por eles, como se não percebesse queainda estavam bem à sua frente. Ahren puxou Ryer vários passos para a sua esquerda,testando se o varredor conseguia vê-los. Ele não se virou na direção deles nem registrouseus movimentos de nenhuma forma. Simplesmente girava ao redor sem objetivo,tentando decidir o que fazer.

Então uma coisa estranha aconteceu com Ahren. Dentro da névoa da pedra fênix elesentiu uma necessidade estranhamente forte de continuar se movendo, continuar semparar. Era uma espécie de empuxo no peito, uma certeza não expressada quanto ao quedeveria fazer. Jamais sentira algo assim antes. Olhou para Ryer e percebeu que elatambém estava olhando para ele. Sem falar, ele fez um gesto para diante, indicando oque desejava. Ela assentiu rapidamente. Quando ele tocou o peito, ela fez o mesmo. Elatambém sentia aquilo. Era a magia da pedra fênix em ação. Para encontrar um caminhode volta depois de estar perdido, você deve saber para onde é que deseja ir. Inesperada,surpreendentemente, Ahren Elessedil sabia.

Começou a descer o corredor, para longe do infeliz varredor e seus esforços emdescobrir o que havia acontecido com eles. Estava bem colado em Ryer, temendo que, sea soltasse, ela pudesse perder a proteção da magia. A neblina esfumaçada se moviajunto com eles, como um sudário que os cobria, envolvendo-os enquanto prosseguiam,jamais alterando seu tamanho, forma ou perímetro. Era como estar em uma bolhainvisível, isolado do resto do mundo, fechado em uma atmosfera e entregue a uma vidanegada a todos, menos a eles.

Ahren estava se perguntando se Antrax sabia o que estava acontecendo com seusplanos tão bem calculados quando o corredor adiante subitamente ficou repleto derastejadores.

Ele parou onde estava, puxando Ryer contra si de forma protetora, observandoenquanto outras criaturas metálicas saíam de aberturas nas paredes como fantasmas,

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membros de metal agarrando facas, pinças e cilindros de aspecto estranho. Em umavarredura cuidadosa, eles se aproximaram da passagem, abrindo um leque que ocupavaambos os lados. Ahren sentiu a garganta apertar. Não havia como passar por eles. Erammuitos para evitar.

Quando olhou apressado na direção oposta, descobriu que a outra extremidade docorredor também estava bloqueada.

Por um momento, entrou em pânico; não havia para onde correr, não havia como selivrar. A armadilha estava se fechando, ele e Ryer tinham sido apanhados bem no meio.Ficou onde estava porque não havia mais nada a fazer, ainda segurando a vidente comuma das mãos enquanto puxava com a outra a faca longa, sua única arma. Não vou fugirdesta vez, ele disse a si mesmo. Ficaria e lutaria, ainda que a luta fosse em vão. TalvezRyer pudesse escapar no meio da luta. Talvez pelo menos um deles pudesse...

Não terminou o pensamento. Quando o mais próximo dos rastejadores os alcançou,a névoa que os cobria ficou completamente opaca e seu turbilhão silencioso setransformou em um redemoinho. Ele abaixou a cabeça contra o movimento súbito,sentindo Ryer chegar mais perto. Piscou os olhos em um esforço para ver o que estavaacontecendo, mas tudo além do ocultamento deles havia desaparecido. Além da névoaque os cobria como uma mortalha, só havia a escuridão.

Então a névoa clareou o bastante para ver além de seu perímetro novamente.Haviam passado pelos rastejadores e estavam livres mais uma vez.

Ahren não questionou mais a magia da pedra fênix; simplesmente aceitou-a como opresente que era. Acreditava que ela o protegeria de tudo enquanto durasse. Movendo-serapidamente, quase correndo, puxou Ryer atrás de si passagem abaixo, deixando osrastejadores para trás. Antrax teria de encontrar outra maneira de aprisioná-los.

No decorre de sua fuga, foi exatamente isso o que ele tentou.Primeiro enviou mais rastejadores, esquadrões deles, como se existisse um

suprimento inexaurível deles ao qual recorrer. Eles inundaram os corredores da frente ede trás, alguns avançando em busca, outros montando guarda em cada curva. Agora elescomeçavam a usar os cilindros de aspecto estranho, armas emitiam rajadas dos fios defogo mortíferos, lançados aqui e acolá aleatoriamente, em busca deles. Periodicamente,os rastejadores chegavam perto de Ahren e Ryer e parecia que não haveria escapatória.Mas, a cada uma dessas vezes, a fumaça ficava mais escura e mais espessa e, quandoclareava o suficiente para ver novamente, já haviam passado pelos rastejadores emsegurança,

Quando ficou óbvio que os rastejadores e suas armas portáteis não iam conseguirfazer o trabalho, fios de fogo apareceram das paredes entrecruzando os corredores,oscilando como teias de aranha mortíferas apanhadas no vento. Mas a magia da pedrafênix foi capaz de se desviar dos fios tão facilmente quanto havia se desviado dosrastejadores, cobrindo e protegendo o príncipe dos elfos e a garota.

Então portas de metal começaram a se fechar, selando passagens, algumas de cadavez. Foi na melhor das hipóteses um esforço aleatório, pois prejudicou os caçadores tantoquanto os caçados. No começo isso não afetou Ahren e Ryer de modo algum, pois aspassagens seladas eram passagens que eles já haviam atravessado ou que não estavam

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sendo obrigados a seguir. Mas no fim das contas os fechamentos os apanharam, uma dasportas se fechou diretamente no meio de seu caminho. Imediatamente Ahren decidiumudar de direção, seguir por outro caminho. Obedeceu ao impulso, sem entender porque, voltando por aquele corredor e descendo outro.

Em determinado momento, eles foram forçados a esperar em frente à porta selada,até que ela se abriu. Ahren não soube dizer o tempo que isso levou. Toda a sensação depassagem de tempo lhe fugira dentro da neblina, como se isso não tivesse mais sentidoou relevância em sua vida. A magia da pedra fênix havia recriado o seu mundo e,enquanto ele estivesse sob seu poder, nada no mundo temporal o afetaria muito.

Finalmente, os rastejadores, os fios de fogo e as portas que se fechavam deixaramde ser mais do que uma ocorrência esporádica. E então desapareceram por completo.Estavam totalmente sós em uma passagem distante de onde haviam começado e Ahrenparou para olhar através da névoa turbilhonante que os cercava.

Sentia-se sugado, vazio. Sentia-se devastado.— Funcionou — disse baixinho.As mãos magras dela apertaram as dele em agradecimento.— Foi você quem a fez funcionar — ela sussurrou.Ele balançou a cabeça.— Eu arrisquei uma chance. A magia nem sequer era minha. Pertencia a Bek. Foi

dada a ele.— Ela foi dada a você por Bek! — A voz dela estava zangada. — Pare de se diminuir,

Ahren! Antes, quando pedi que viesse comigo até Castledown para encontrar Walker,você disse que achava que não podia me proteger. Mas protegeu, não foi? Não importacomo você o fez... mas você o fez.

Ela fez uma pausa para estudá-lo.— Foi preciso coragem para fazer o que fez lá atrás. Usar a pedra fênix sem saber o

que ela faria e depois nos conduzir por entre os rastejadores e os fios de fogo. Foi precisocoragem para vir comigo. Por que você rejeita tudo isso tão rápido?

Ele balançou a cabeça.— Não sou corajoso. Sou tudo menos isso. Só fiz a única coisa que podia pensar em

fazer para nos ajudar a escapar. — Ela o encarava como se ele fosse transparente. Ele sesentia exposto e vulnerável. Não gostava que ela pensasse nele como algo que ele sabiaque não era.

Ela o puxou de encontro a uma das paredes de vidro e inclinou-se para ele, aindasegurando firme suas mãos.

— Diga-me o que está incomodando você — disse ela baixinho. Encarou-o com seusolhos violeta. — Está tudo bem.

Por estranho que parecesse, ele sentia que era verdade. Não apenas estava tudobem, mas também era necessário. Queria contar a ela o que estava ocultando sobre simesmo, confidenciar-lhe a verdade de sua covardia, abrir-se e desabafar a dor terrívelque estava carregando, livrar-se de seu fardo. Ali, nas profundezas, isolado com ela pelamagia da pedra fênix, sentiu que podia.

Forçou-se a encarar o olhar intenso dela ao falar.

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— Quando entramos nas ruínas e fomos atacados, entrei em pânico — disse ele. —Enquanto os outros ficavam onde estavam e lutavam, eu fugi. Deitei fora minha espada efugi. — Engoliu em seco o amargor de suas palavras. — Eu não queria fazer isso, masnão pude evitar. Só conseguia pensar em salvar a minha vida, em achar um jeito de ficarvivo. Joad Rish se abaixou para ajudar um dos elfos caçadores, um dos homens de ArdPatrinell, e eu o vi ser cortado em pedaços pelos fios de fogo, sua cabeça...

Engasgou-se com as palavras e teve de parar. A mão livre de Ryer tocou seu rosto.— Você não acha que todos sentiram a mesma coisa que você, Ahren? — ela

perguntou. — Não acha que todos fizeram o que podiam para permanecerem vivos? Oselfos caçadores lutaram porque era o que eles sabiam fazer, e não por causa de algumcódigo de conduta ou algum tipo especial de coragem. Joad Rish tentou curar um homemferido porque isso era o que ele sabia fazer. Você fugiu, Ahren, porque ficar com osoutros teria matado você, e você não queria isso. Você fez o que pôde.

— Só que a sua visão mostrou que Antrax me deixa viver, que eu fui mantido vivo depropósito! — disse ele amargurado.

O sorriso dela era caloroso e gentilmente desaprovador.— Naquele momento você não sabia disso, sabia? O que fazemos em qualquer

situação é baseado naquilo que sabemos. Eu corri para ajudar Walker no labirinto. Nãopensei nisso e não parei para raciocinar, nem pensei no que estava fazendo. Reagi daúnica maneira que eu sabia. Isso é tudo o que podemos fazer.

— Pelo menos você correu na direção certa.— Foi mesmo? — ela perguntou.Havia tanta tristeza na voz dela, tanta dor, que isso o paralisou por um momento.

Ele a encarou confuso. Ela estava lhe dizendo algo importante, mas ele não sabia o queera.

— Solte as minhas mãos — disse ela.— Mas e se a magia...— Eu sei. — Ela o interrompeu pressionando seus lábios com os dedos de uma das

mãos. — Mas precisamos saber o que acontece se fizermos isso. Pode chegar ummomento em que isso seja necessário, quando tivermos de fugir. Vamos testar issoagora, enquanto estamos sozinhos e a salvo.

Ele hesitou por um momento, e então fez como ela pediu, soltando a outra mãodela. Nada mudou. A magia continuou a envolvê-los, cobrindo os dois como a névoa dafloresta ao crepúsculo, um turbilhão cinza sem alterações.

Ryer Ord Star colocou as mãos no colo e sentou-se sobre os calcanhares, encarando-o.

— Você me contou seu segredo, Ahren. Eu farei o mesmo para você. Contarei o meu.Se você quiser ouvir.

Suas palavras tinham uma obscuridade que o assustou, a promessa de alguma coisadesagradável.

— Você não precisa me contar nada se não quiser.— Eu sei.Ele esperou um momento, e então assentiu.

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— Está bem.Ela levantou ligeiramente o queixo como se encarasse algo que não desejava, uma

confissão de verdades que preferia evitar. O gesto era marcante, desafiador e corajoso.Fez com que Ahren sentisse uma coisa por ela que não sentia antes. Respeito, talvez.Admiração.

— Não sou o que você pensa que sou — começou ela, encarando-o. Para ele, pareciaque ela estava se forçando a olhá-lo. — Não sou o que qualquer um pensa que sou. Vimpara esta jornada por várias razões. Quando Walker foi me encontrar, eu já sabia davinda dele. Eu fora instruída para seguir com ele quando aparecesse. Meu objetivo era ode atuar como vidente, mas não só isso, não era nem mesmo basicamente isso. Meuobjetivo em vir com vocês era espionar para a bruxa Ilse.

Ela esperou para ouvir a reação de Ahren, mas ele estava surpreso demais pararesponder.

Ela sorriu amarga.— Você parece atordoado. Acredita em mim? É verdade. Eu já era espiã da bruxa

Ilse no dia em que Walker veio me ver e muitos anos antes disso. Eu me vendi para elahá muito tempo. Na verdade, não foi difícil. Aconteceu assim: nasci com a visão, e desdecedo eu sabia de sua existência. Eu podia ver o futuro daqueles ao meu redor, às vezesdetalhadamente, às vezes apenas em fragmentos. Fui uma órfã criada por protetores queacolhiam crianças abandonadas como eu. Eles eram gentis para mim, mas me achavamestranha assim mesmo. Não falei para ninguém de meu dom, pois compreendi desde ocomeço que ser diferente era perigoso aos olhos de muitas pessoas. Mantive meu domcomo um segredo e tentei esquecer que ele estava lá. Isto era impossível de fazer, claro.Ficou pior ainda quando descobri, por acidente, que eu também era uma empata, quepodia curar feridas físicas e emocionais pelo toque. Não descobri esse dom até maistarde, mas, quando ele foi revelado, precisei deixar os protetores e encontrar um lugaronde ninguém me conhecesse.

“Eu tinha doze anos de idade quando cheguei a Grimpen Ward com um bando derovers. Eles me aceitaram porque é assim que os rovers são, e eles não viram mal algumem me levar em segurança ao destino que eu queria. Também me acharam estranha,mas me deixaram em paz. Em Grimpen Ward, procurei a Addershag. Ela foi a razão pelaqual eu havia ido para lá. Todos sabiam que ela era a mais poderosa vidente nas QuatroTerras, e eu esperava que ela me aceitasse e me treinasse. Eu não sabia que ela jamaishavia aceitado um aprendiz. Eu não via a enormidade do que estava buscando realizar.

“Ela me colocou no meu lugar num instante. Mandou-me embora sem sequer ummomento para pensar no que eu estava lhe pedindo. Fiquei arrasada, mas me recusei adesistir. Fiquei do lado de fora de sua porta, esperando que ela mudasse de idéia. Fiqueiali por dois meses. Por fim, ela me convidou a entrar e sentar com ela. Ela me testou,pedindo que eu fizesse várias coisas diferentes. Quando terminei de fazer o que elaqueria, ela assentiu e disse que eu podia ficar. Isso foi tudo. Eu podia ficar.

“Por semanas, não fiz nada, a não ser cozinhar, limpar e realizar tarefas para ela. Elame tratava como uma criada, e eu estava tão ansiosa em estar ali com ela que não meincomodava. Finalmente, ela começou a me mostrar algo de meu dom, apenas um

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pouquinho, e em seguida um pouco mais. Minha educação havia começado. Depois dealgum tempo, tornei-me sua assistente e confidente também. Ela era velha, dura eperigosa. Também era imprevisível. Mas eu sabia o suficiente para não me sentiramedrontada.”

Respirou fundo e soltou o ar devagar, como se estivesse liberando uma angústia quehavia mantido presa por muito tempo.

— Mas cometi um erro. Quando fui até ela e lhe contei sobre meu dom da visão,pedindo que ela me ensinasse a usá-lo, guardei para mim mesma o fato de que eu erauma empata. Tive medo de lhe contar, achando que isso poderia afetar sua decisão deme treinar, que não importava o que eu era, desde que guardasse isso para mim mesma.Mas no terceiro ano de treinamento tive uma visão na qual uma garotinha do vilarejofora morta em um acidente. Como era nosso costume, vendemos a informação aos paispor uma taxa escolhida por eles. Fazíamos isso com todo mundo, não para lucrar, maspara podermos viver confortavelmente. Ninguém nunca reclamou. Mas nosso aviso nãofoi o bastante para salvar a garota, e embora ela não tivesse sido morta, ficou tãomachucada que parecia claro que ia morrer.

“Pedi a Addershag que me deixasse ir até ela. Ela se recusou. Não havia nada quepudéssemos fazer, nada que já não tivéssemos feito. Mas fui assim mesmo. Usei meuspoderes empáticos e curei a garotinha. Fiz isso de forma que parecesse que ela havia serecuperado por conta própria, que eu era apenas um veículo para mostrar-lhe o caminhode volta. Mas a Addershag sabia o que havia acontecido. Ela me disse que meu domempático iria me matar um dia, que um empata rastreando o destino em um esforço paraalterar seu curso iria apenas acabar jogando fora sua própria vida no processo. Ela disseque eu estava desperdiçando meu dom precioso e o tempo dela, e que eu me dariamelhor sozinha. Ela me expulsou. Ela me mandou embora.”

Levou os joelhos ao peito e deu um sorriso melancólico para Ahren.— Ela tinha razão. Eu me saí bem. Era conhecida e admirada. Havia quem

desconfiasse de meu talento e o desafiasse, mas não eram tantos assim. Eu era muitovisitada e vivia ocupada. Tomava cuidado na utilização de minhas habilidades empáticas.Uma ou duas vezes, tentei visitar a Addershag, mas ela não queria nada comigo. Seuinteresse residia em decifrar o futuro; ela não dava a mínima para o passado e por issotambém não dava a mínima para mim. Fiquei amarga para com ela, zangada por ela metratar com tanto desdém. Mas eu também tinha medo dela. Ela era muito velha e seusinimigos estavam todos mortos e enterrados. Eu não queria me tornar um deles. E resolvificar fora do caminho dela.

“Então a bruxa Ilse veio me ver e tudo mudou.”Ela desviou o olhar dele por um instante, para o vazio da passagem, para as

sombras mal iluminadas além do santuário criado para eles pela magia, mas ainda alémdisso, ele sentia, para o passado.

Os olhos dela voltaram a encará-lo.— Ela se mostrou para mim, algo que diziam que ela jamais fazia. Ela era jovem,

como eu. Era uma órfã, como eu. Era tão parecida comigo que eu me vi nela desde oinstante em que nos conhecemos. Ela era uma feiticeira poderosa e eu queria sua

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amizade e proteção. Então, quando ela propôs a barganha, aceitei. Eu seria seus olhos eouvidos em Grimpen Ward e lhe daria notícias de coisas que ela deveria saber. Ela, porsua vez, se certificaria de que, quando a Addershag morresse, eu subiria até sua posiçãocomo a vidente principal em Grimpen Ward.

As feições pálidas e etéreas dela endureceram.— Insisti que não queria que a Addershag sofresse mal algum. Ela me certificou de

que isso não aconteceria. Afinal, ela era velha e morreria logo. Será que eu questionavaisso? Será que eu queria ver o destino dela? A bruxa Ilse me entregou um lenço. Mandou-me usar minha visão canalizando-a através daquele pedaço de tecido que ela haviaroubado da velha. Assim o fiz, e a vi morta no chão de seu chalé, os olhos arregalados. Abruxa Ilse pegou o lenço de volta. Agora eu havia visto aquilo por mim mesma. Tudo oque bastava, assim que ela morresse, era que eu ocupasse o lugar deixado por ela. Porque não? Eu havia sido sua aprendiz, a mais habilidosa de todos os videntes depois dela.Não seria eu sua sucessora lógica?

“Claro que acreditei, e ainda estava magoada com a rejeição dela. Então concordeicom a barganha e deixei os eventos seguirem seu curso. A bruxa Ilse se tornou minhanova mentora e amiga. Comecei fornecendo a ela relatórios por pássaros-correio sobretudo o que via na aldeia e no campo ao redor. E esperei que a Addershag morresse.Levou um ano, mas ela morreu. Foi mordida por uma cobra pequena, mas mortal, quehavia se escondido em um saco de ouro presenteado por um cliente. Nunca se soubequem foi esse cliente. A criada dela havia saído por um dia e uma noite, e encontrou-amorta ao voltar. Enterrou-a no quintal e ficou com a casa.”

Ela suspirou.— E eu, eu me tornei o que havia desejado ser, a nova Addershag, sua sucessora.

Seus seguidores, seus clientes, todos vinham a mim agora, e ninguém me desafiava.Convenci-me de que a morte dela nada tinha a ver comigo, que era simplesmente oresultado de uma visão se cumprindo, e que eu, não tendo interferido, estava mecomportando do mesmo modo como ela havia me ensinado. Ela não teria me escutadode qualquer maneira, pensei. Não havia nada que eu pudesse ter feito para mudar ascoisas.

Ela estremeceu violentamente e abraçou os joelhos com mais força para espantar ofrio.

— Mas para tudo há um preço, e acabei descobrindo o quanto custava seguir aAddershag. A bruxa Ilse veio até a mim em resposta a uma visão que tive de Walker; elame mandara contar-lhe tudo o que eu descobrisse em relação a ele. Minha visão omostrava vindo a mim à noite, uma presença negra, uma força irresistível que iria mudartudo em minha vida. Ele veio a mim para descobrir o que pudesse a respeito de umaviagem que desejava realizar até uma nova terra, o que ele encontraria ao longo docaminho. Ele induziu minhas visões dando-me algo para tocar. Era um mapa.

“Quando contei a minha visão para a bruxa Ilse, ela ficou muito agitada. Queriaaquele mapa e disse que eu deveria encontrar uma forma de roubá-lo para ela. Mas, emseguida, mudou de idéia. Em vez de roubar o mapa, eu deveria insistir em ir com ele.Deveria convencê-lo de que era indispensável, para que ele me levasse. Eu deveria

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revelar a ele o que vira em minha visão e mais algumas coisas que ela me diria, para queele não pudesse recusar meu pedido. Eu seria sua sombra e ela seria a minha. Para todolugar que eu fosse, para todo lugar que Walker fosse, ela nos rastrearia. Ela possuía umamagia que lhe dava uma maneira de ver através de meus olhos. Ela me garantiu que eranecessário que eu fizesse isso. Insistiu que Walker era nosso inimigo comum, o inimigode todos aqueles que possuíam magia nas Quatro Terras.”

Ela riu sem humor, sem gentileza.— A essa altura, eu sabia o bastante para desconfiar desse tipo de declaração.

Walker não era meu inimigo. Ele não havia feito nada para mim nem para ninguém atéonde eu sabia. Mas eu não estava em posição de recusar. Quando sugeri que a tarefaestava além do meu alcance, ela afastou minhas preocupações e avisou que seria precisoapenas uma palavra casual jogada aqui ou ali para fazer com que os moradores deGrimpen Ward acreditassem que eu dera a sacola de ouro com a cobra dentro para aAddershag. Além disso, a bruxa Ilse era minha protetora, minha mentora. Eu tinha medodela, mas também sentia uma ligação com ela. Concordei em fazer o que mandava.Tornei-me sua espiã a bordo da Jerle Shannara.

Seus olhos se encheram de lágrimas, súbitas e inesperadas, e nos rastros de suagargalhada de autocensura.

— Mas uma coisa estranha aconteceu, Ahren. Uma coisa que nem eu nem elahavíamos planejado. Muito embora ele tivesse vindo para me ver, antes que eu tivessetocado o mapa ou descoberto algo mais do que a viagem iria exigir, comecei a ter outrasvisões. — Ela se inclinou para ele, as lágrimas descendo por seu rosto. — Eram de mim eWalker. Eram tão fortes, tão avassaladoras, que eu não podia ignorá-las. Eram de umoceano azul e de ilhas, uma nave voadora, de batalhas sendo lutadas e homensmorrendo. Era a viagem que Walker procurava fazer, e eu estava vendo pequenas partesdela. A maioria dessas partes eram tão vagas e confusas que eu não conseguiacompreendê-las, mas uma delas era muito clara. Dentre os que viajavam com Walker,haveria um que salvaria sua vida e um que tentaria tomá-la, um que o amariaincondicionalmente e outro que o odiaria com uma intensidade sem limites; um que ofaria se perder e outro que o traria de volta.

Ela fez uma pausa.— Eu não via rostos que pudesse ligar a nenhum desses atos. Apenas o meu próprio,

em pé e do lado de fora da visão, observando Walker, sempre muito perto, observando eesperando. Mas o quê? Eu não sabia dizer. Mas eu estava lá em cada uma das vezes,como sua sombra.

— Mas agora você sabe quem são essas pessoas, quem fará essas coisas a Walker —ele interrompeu, falando pela primeira vez, querendo ajudar. — Agora você podeidentificar cada uma.

Ela deu uma nova risada, e dessa vez sua gargalhada era tão amarga e crua que eleestremeceu. O olhar dela ficou selvagem, e ela jogou para trás o cabelo em um gestodesafiador.

— Ah, sim! Sim, Ahren, eu sei quem são essas pessoas! É tão irônico, tão adequado!Eu conhecia essas pessoas desde o começo, mas não li a visão com cuidado suficiente!

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Fiquei cega pelas minhas próprias necessidades, desejos e preocupações! Quem sãotodas essas pessoas para Walker, que tomariam sua vida e a salvariam, que o fariam seperder e o trariam de volta, que o amavam e o odiavam? Quem são elas, Ahren? Eu voulhe dizer. Elas são todas a mesma pessoa. Eu sou todas elas!

Ela agarrou os braços dele, apertando-os com tanta força que ele sentiu as unhasenterrando-se em sua pele.

— Eu fiz todas essas coisas com ele e senti todas essas coisas sobre ele! Eu quase fizcom que ele morresse em Shatterstone, escondendo dele a parte da minha visão queavisava sobre os espinhos venenosos, e então o salvei com meu talento empático porquenão podia suportar deixá-lo morrer! Eu o amava e odiava ao mesmo tempo, às vezessem saber qual era qual! Ele me trouxe junto quando não deveria tê-lo feito, ele mecolocou nessa posição terrível e odiosa porque confia em mim, e está pensando atémesmo agora que eu irei salvá-lo do que quer que o tenha aprisionado aqui embaixo! Eeu farei isso, Ahren! Eu fiz com que ele se perdesse tantas vezes que perdi a conta! Decada uma das vezes, ele encontrou o caminho de volta por si mesmo. Mas desta vez,desta vez eu serei aquela que o trará de volta ou morrerei tentando!

Chorava com tanta força que estava tremendo, dilacerada de soluços, seus cabelosprateados formando uma cortina pálida refletindo suas lágrimas em fios úmidos ebrilhantes. As mãos soltaram os braços dele, e ele a segurou, não querendo perder ocontato.

— Agora você conhece meu segredo — ela murmurou roucamente. Ele é muito piordo que o seu, muito mais feio. Estou consumida por ele. Não poderei jamais ser perdoadapelo que fiz. Jamais poderei me redimir.

Ele balançou a cabeça e inclinou-se para perto dela.— Todos podem ser perdoados, Ryer Ord Star. De tudo e de qualquer coisa. Nem

sempre é fácil, mas é possível.Ela estremeceu em resposta a isso.— Quer saber de uma coisa, Ahren? — A voz dela estava tão diminuta que ele mal

conseguia ouvi-la. — Quando utilizei meu talento empático para curar Walker depois queele foi envenenado em Shatterstone, fiquei vinculada a ele de uma forma que jamaisaconteceu antes. Era como se nossas magias tivessem se juntado de alguma maneira eeu pude ver dentro de sua alma. Foi tão doloroso! Eu sabia que havia dor ali, eu a tinhavisto em seus olhos quando nos conhecemos, e a sentido em suas mãos, mas não faziaidéia de que fosse tão vasta! Isso me derrubou, e ao fazê-lo, abriu-me para ele e o abriupara mim. Ele viu o que estava oculto dentro de mim, ele viu tudo. Ele soube o que euera, o que eu tinha vindo fazer. Ele compreendeu o perigo que eu representava para elee para os outros.

Ela balançou a cabeça, estupefata.— Mas ele guardou tudo para si. Jamais falou a respeito. Colocou tudo de lado como

se não mais importasse e me deixou ficar. Acho que esperava que, fazendo isso, faria demim uma aliada em vez de uma inimiga. E ele conseguiu. Desisti de fazer qualquer coisaimportante para a bruxa Ilse. Ela ainda podia rastrear o progresso da aeronave atravésde mim, mas acho que Walker não pensava que isso fosse muito importante. Ela sabia

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para onde estávamos indo; havia lido a mente do náufrago para saber o que aguardar. Oque eu não fazia mais, o que ele estava contando que eu não fizesse, era esconderqualquer verdade, qualquer parte de visões experimentadas, quaisquer segredos quepudessem provocar danos. Agora eu era dele, por minha vontade. Sempre serei dele,enquanto ele precisar de mim. Nossa ligação transcende tudo. Ela é forte o bastante paraque eu sinta sua necessidade por mim, aqui embaixo, neste lugar escuro, nestaspassagens e câmaras, em todo este metal. Posso senti-lo estendendo suas mãos paramim quando não há mais ninguém a quem ele possa tocar. — Ela engoliu as lágrimas. —É por isso que estou indo até ele agora. É por isso que tenho de encontrá-lo.

Ela se afastou dos seus braços e enxugou as lágrimas com ambas as mãos. Entãocomeçou a chorar novamente, abraçando a si mesma, balançando seu corpo para afrente e para trás sobre os calcanhares.

— Não é triste que eu possa ser tudo o que ele tem? — ela perguntou, a vozdilacerada. — É tão patético!

Ele pegou-a nos braços e a abraçou enquanto ela chorava, sem tentar interrompê-laou acalmá-la, apenas abraçando-a. Pensou diversas vezes em dizer algo de reconfortanteou sábio, mas nada do que pensava seria correto. O silêncio parecia a melhor coisa, eentão ele o manteve. Ao redor deles, a magia da pedra fênix turbilhonava como águasturvas, firme e de certa forma reconfortante, uma fuga que lhes dava espaço e tempopara deixar suas emoções assentarem. Ahren olhou através da névoa para o corredormais além, onde estava tudo vazio e silencioso. Parecia que estavam realmente sozinhosali embaixo, abandonados e esquecidos por todos.

Ryer parou de chorar, soltou-se dos braços de Ahren e o olhou diretamente.— Você ainda vem comigo?Ele assentiu. Jamais pensara em fazer outra coisa.— Não precisa — disse ela. — Eu não esperaria que você honrasse sua promessa,

não depois de saber que eu...— Pare — ele a interrompeu rápido, sem graça. — Não diga mais nada.Ela o estudou por um momento, então se inclinou para beijar seu rosto. No calor e

na suavidade de seus lábios, ele pôde sentir a medida de seu amor próprio e respeitoretornarem.

Então eles se levantaram e continuaram pelos infinitos corredores e câmaras deCastledown protegidos pela magia da pedra fênix, guiados por seus instintos enecessidades. A jovem vidente ainda estava lutando com seus demônios interiores, masseus traços pálidos e etéreos estavam firmes e resolutos. Ela tomou novamente a mãode Ahren, muito embora tivessem determinado que ela não precisava fazer isso. Ahrenestava satisfeito. O toque de Ryer fazia pelo menos tanto por ele quanto o de Ahren porela. Ele sentia como se fossem crianças perdidas em uma floresta escura, com a noite seaproximando e os lobos todos ao seu redor, confiando cegamente em um talismã que elenão compreendia nem controlava. A magia da pedra fênix os estava protegendo, masquanto tempo ela iria durar? Ele não queria que o apanhassem desprevenido ou antes de

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chegar a seu objetivo.Ou objetivos, ele se corrigiu. Por um lado, havia Walker, e por outro as pedras

élficas. Ele não havia falado destas últimas para Ryer Ord Star, mas assim queencontrassem o druida ele pretendia procurar as pedras. Talvez ele estivesse pedindodemais. Era possível que depois de localizar Walker a magia pudesse desaparecer. Elenão tinha como saber. Só poderia planejar contingências, torcer e fazer o melhor quepudesse com o que acontecesse.

Caminharam por um longo tempo, mas não encontraram nem rastejadores nem fiosde fogo. Se Antrax os estava caçando, estava fazendo isso de outra maneira. Agoraestavam descendo a passo firme através de rampas e escadas, mais no subterrâneo doque haviam ido antes. Para Ahren, fazia sentido que Antrax mantivesse a magia queguardava mais no fundo e melhor escondida. Ele achava que havia uma ótima chance deque Walker também estivesse lá.

Adiante, não muito distante, a maquinaria zumbia e roncava suavemente, em umacadência constante, que reverberava pelo aço dos túneis até o interior de seus ossos.

Então o corredor se bifurcou para a esquerda e para a direita em uma série deaberturas em forma de arco e sem portas, todas levando para uma passarela sobre umaposento cavernoso repleto de imensos gabinetes metálicos e aglomerados de luzespiscando em painéis. Rodas giravam atrás de janelas esfumaçadas; discos prateadosbrilhantes refletiam a luz suave de tubos de lâmpadas sem chama que subiam e desciampelas paredes e atravessavam o teto alto da sala. O zumbido da maquinaria estava portodo o lugar, pontuado por bipes, chiados e outros barulhos estranhos, todosprovenientes da câmara abaixo.

Era uma visão assustadora, uma visão surreal de alguma coisa que não haviaexistido por milhares de anos além daquelas paredes. Fizeram uma pausa sobre apassarela, olhando o conteúdo da sala abaixo, procurando alguma coisa que fizessesentido. Nada do que viam lhes era familiar, mas um instante depois Ryer perdeu ofôlego, disse o nome de Walker e puxou a mão de Ahren, arrastando-o até uma escadametálica que levava para baixo. Ele foi sem questioná-la, já sabendo o que estavaacontecendo. Desceram as escadas e seguiram por entre o labirinto de gabinetes decinco metros de altura cheios de fileiras de discos prateados giratórios. Pelo menos umaparte da maquinaria que haviam ouvido da passarela estava atrás dos painéis. Ahrenolhou para sua superfície suave, certo de que haviam saído do Antigo Mundo, imaginandose eles continham a magia que a companhia da Jerle Shannara havia procurado. Queespécie de magia, ele se perguntou, seria mantida em uma concha metálica de discosgiratórios e luzes que piscavam? O que eles procuravam eram livros, mas ali não havialivros: pelo menos não que ele pudesse ver. Talvez estivessem mais no subterrâneo e osgabinetes e sua maquinaria servissem como alguma espécie de protetores.

Então ele avistou os rastejadores. Diversos deles estavam descendo as fileiras degabinetes, parando periodicamente para manipular os discos giratórios e as luzes quepiscavam. Se haviam visto Ahren e Ryer, não deram indicação disso. Os rastejadoreseram diferentes daqueles que haviam encontrado antes. Maiores do que os chamadosvarredores, mesmo assim eram mais do tipo daqueles: zeladores de Castledown e não

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defensores. Eram equipados com estranhos membros metálicos que se estendiam emtodas as direções, tocando aqui e ali e inserindo dedos de formas estranhas em fendas eaberturas, fazendo com que o som da maquinaria ou o piscar das luzes se alterasse,mudando de vez em quando a cadência ou a velocidade dos discos.

Fascinado, Ahren reduziu o passo para olhar aquilo mais de perto, mas Ryer Ord Starnão quis saber. Puxou-o para adiante, ansiosa. O destino dela era a outra extremidadeda câmara. Um dos rastejadores estava se movendo na mesma direção, um poucoadiante deles, antecipando o que ela pretendia. A vidente deu uma olhada frenética paraAhren por sobre o ombro, então disparou a correr, arrastando-o com ela. Envoltos nanuvem protetora da magia da pedra fênix, eles correram atrás do rastejador por umasérie de portas metálicas que se fechavam em câmaras mal iluminadas que podiam serdistinguidas através de uma fileira de janelas altas e escuras.

O rastejador foi mais rápido e chegou lá primeiro, tocando um painel que fez comque a porta de uma das câmaras se abrisse deslizando. Uma luz nova espalhou-se pelaporta revelando um painel atrás de outro com luzes que piscavam e dezenas de tubosque serpenteavam para dentro, em direção ao centro do aposento. O rastejadordesapareceu lá dentro, rolando sem fazer barulho em sua base de rodízios.

Ahren e Ryer apareceram atrás dele correndo, a garota ainda na frente.Atravessaram a porta aberta e entraram na sala, mas Ryer parou tão subitamente queAhren esbarrou no corpo da vidente. Lutando para evitar que ambos caíssem, eleacompanhou o olhar dela pela sala. Ele perdeu o fôlego na hora.

Eles haviam encontrado Walker.Mas talvez fosse melhor se não o tivessem encontrado.

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17

A noite caiu sobre a terra como um grande gato sedoso, sua sombra escurecendo a

floresta em camadas cada vez mais profundas, roubando a luz do dia de forma sorrateira.Bek sentou-se em frente a sua irmã e viu-a cortar fatias de queijo com uma pedra afiadae tostar pão em seixos aquecidos por carvões. Ela já havia limpado e separado frutinhasem folhas largas tiradas de plantas tropicais que não deveriam crescer tanto ao norte,mas de algum modo cresciam. Trabalhava com firmeza e objetividade e não olhava paraele. De qualquer maneira, não olhava para ele a maior parte do tempo. Ela o tratou damesma forma que Quentin tratava seus cães de caça: alimentava-o, dava-lhe água,deixava-o descansar e esperava que ele fizesse o que ela mandasse, ficando com elaquando viajasse. Demonstrava interesse por ele apenas o suficiente para fazê-lo saberque ela estava de olho e nada mais. A muralha que havia erguido entre os dois era alta,profunda e muito compacta.

— Vá até a corrente e nos traga água fresca — ela disse sem levantar a cabeça.Bek se levantou, apanhou a bolsa de água quase vazia e caminhou para dentro da

floresta. Ela não se preocupou com a possibilidade de ele tentar fugir. Afinal, ele dera suapalavra. Não que ele acreditasse por um momento que sua palavra valesse algo para ela.Mas estava proibido de sair da presença de sua irmã levando a espada de Shannara,sabia que Grianne poderia rastreá-lo facilmente se decidisse fugir. Não gostava de pensarno que ela faria com ele se tentasse isso. Se precisasse de mais provas de como podiaser impiedosa, ela as havia fornecido contando-lhe o que havia acontecido com TrulsRohk.

Ela guardou isso para si por quase dois dias enquanto viajavam por aquele territóriode colinas e florestas na direção das ruínas, pondo de lado as repetidas perguntas queBek fazia. Mas ele a pressionou teimosamente por uma resposta, e finalmente recebeuuma. Ela havia deixado o caull escondido para lidar com o mutante, quando retornassede sua emboscada fracassada. Ele acabaria percebendo que fora tapeado e voltaria paraencontrar Bek. Não podia arriscar que ele fosse atrás dela assim que descobrisse o garotodesaparecido. Truls Rohk também era incansável e perigoso, do mesmo modo queGrianne. Ela o respeitava por isso, mas ele teria de ser eliminado. Ela deixaria que o caullacabasse com ele.

Bek estava atordoado, ao mesmo tempo zangado e emocionado, mas não havianada que pudesse fazer a respeito. Talvez ela tivesse pensado errado com relação aomutante e ele não tivesse voltado para encontrar Bek, afinal. Talvez ele tivesse sentidoque o caull estava esperando e o tivesse evitado. Mas ela parecia tão certa de que aquestão estava resolvida que as esperanças dele diminuíram quase imediatamente. Eleestava sozinho e sabia disso. Quaisquer escolhas que fizesse dali por diante seriam de

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sua própria responsabilidade.Portanto, fugir estava fora de cogitação. Isso não havia funcionado da primeira vez e

não havia razão para achar que funcionaria agora. Além do mais, se houvesse algumachance de convencê-la de que ele realmente era seu irmão, precisava tirar vantagemdisso. Não podia se dar ao luxo de afastá-la ainda mais. Embora ela quase não prestasseatenção nele, deixava-o falar e ele utilizava cada oportunidade para tentar convencê-lade quem era. Na maioria das vezes, ela o ignorava, mas ocasionalmente respondia aseus argumentos, e mesmo as reações pequenas, as observações críticas, forneciamevidências de que estava ouvindo o que ele dizia. Podia não acreditar nele, mas pelomenos estava levando suas palavras em consideração.

Ele encheu a bolsa de água, ajoelhado na beira do riacho, olhando as trevas adiante.Mesmo assim o tempo estava passando. Estavam apenas a um dia de distância de seudestino. Assim que chegasse lá, ela pretendia entregá-lo aos mwellrets enquanto tornavaa partir em busca de Walker. Os rets o colocariam a bordo da Black Moclips e omanteriam prisioneiro até que ela retornasse. Esse seria o fim de qualquer chance dedefender sua causa e, talvez, o fim de qualquer chance de salvar a vida de Walker.

Ele encheu a bolsa de água até a boca, e então a fechou e se levantou. Walker podiatomar conta de si mesmo, é claro — se ainda estivesse vivo e capaz de fazê-lo, o que nãoera certo de modo algum. Mas a bruxa Ilse era um inimigo formidável; já havia provadoisso. Bek não sabia se Walker era páreo para ela, pois não tinha certeza de que o druidapudesse ser tão impiedoso quanto ela, e para sobreviver ele teria de sê-lo.

Voltou por entre as árvores até o pequeno acampamento e entregou a bolsa de águapara sua irmã. Ela a pegou sem olhar para ele e aspergiu gotículas de água nas frutinhas.Ele ficou em pé olhando-a por um momento, e então tornou a se sentar. Depois decomer, tomariam banho, ele primeiro, ela depois. Faziam isso toda noite, usando a águaque estivesse ao alcance da mão, lavando-se da melhor forma possível. Não tinhamroupas novas para trocar, mas pelo menos podiam manter seus corpos limpos. Estavaquente até mesmo à noite para tomar banho nos rios e riachos — no inverno, em umaterra mais ao norte do que qualquer parte de onde ele viera. Bek tornou a imaginar comoera estranha uma coisa dessas, lembrando-se do próprio comentário de Walker arespeito.

Grianne passou-lhe uma fatia de pão coberta com frutinhas esmigalhadas ereduzidas a uma pasta açucarada, e ele mastigou aquilo pensativo, os olhos no rostodela. Ainda estava irritada com os esforços dele em quebrar sua descrença no começo dodia. Na verdade, ela o mandara não falar daquilo novamente. Mas ele não podia ficarquieto quando havia tanto em jogo. Tampouco podia se dar ao luxo de esperar até queela estivesse mais receptiva.

Quando ela cometeu o erro de olhar para ele, ele falou na hora:— Você não está pensando com clareza — disse. — Se estivesse, veria todas as

falhas em seu raciocínio. Veria as falhas de lógica no que lhe foi contado.Ela olhou para ele sem expressão e mastigou devagar.— Se eu não sou Bek, como é que tenho o mesmo nome? Você diz que minha mente

foi alterada para crer que “Bek” era meu verdadeiro nome. Mas Quentin me conhece a

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vida toda. E também meu pai e minha mãe adotivos. Eu sou Bek desde que fui levadopara eles. Será que as mentes deles também foram alteradas? Será que todo mundo emLeah teve a mente alterada para acreditar que eu sou alguém que não sou?

Ela não respondeu, não fez nada além de levar uma fatia de queijo até a boca e daruma mordida.

— Ou será que Walker é tão inteligente que esteve planejando isso desde que melevou até Coran e Liria há quinze anos?

Ela olhou para ele como um inseto olharia para uma folha.— É nisso que você acredita, não é? Você acha que ele esteve planejando essa

charada por todos esses anos só para tapear você. Mas não sabe dizer por que ele fariaisso, sabe?

Ela levou a bolsa de água aos lábios e bebeu, e em seguida a entregou para que elepudesse fazer a mesma coisa. Os olhos dela eram tão vazios e mortos quanto os de umacobra.

— Ah, tem razão, ele quer derrubá-la, minar sua resolução, baixar sua guarda. Assimele pode subverter você, fazer com que o sirva para os próprios usos dele, sejam lá quaisforem. Ele pode roubar sua magia e fazer de você um títere para ele. Assim como fezcomigo, só que você é a presa maior, pois sua magia é muito mais forte do que a minhae você é uma ameaça maior para ele. — Ele deixou o sarcasmo escorrer por suaspalavras como se fosse óleo. — Sombras, não é ótimo que você seja esperta o bastantepara ver isto?

Ela estendeu a mão e tomou a bolsa de água dele.— Pensei que havia dito para você não falar disso novamente.Ele deu de ombros.— Disse. — Ele terminou o pão e pegou uma fatia do queijo. — Mas não consigo

evitar. Preciso entender por que você não vê a verdade. Nada do que acredita fazsentido. — Fez uma pausa. — E quanto à razão que o Morgawr deu a você sobre o motivopelo qual Walker tentou seqüestrá-la em primeiro lugar? E quanto a isso? Ele disse quefoi porque Walker queria que você se tornasse uma druidesa, mas nossos pais serecusaram. Não permitiriam isso, nem pensariam a respeito, e por isso ele os matou e aseqüestrou. Será que isso não seria um pouquinho desajeitado, quando havia maneirasmuito mais sutis de ganhar você? Por que ele seria tão burro a ponto de deixar que vocêtestemunhasse a morte de nossos pais enquanto a capturava? Ele não poderia tersimplesmente alterado sua mente em vez disso? Isso não teria sido muito mais fácil? Eleé esperto o bastante, não é? Sua magia pode fazer você acreditar em qualquer coisa. Foiassim que ele chegou a mim.

Os olhos dela estavam fixos nos dele.— Eu não sou como você. Você é fraco e burro. Você é um peão e não entende nada.Ela falava sem rancor ou irritação. Suas palavras eram frias, sem vida e refletiam o

tom pálido e rígido de seu rosto jovem enquanto ela terminava seu pão com queijo semtirar o olhar do dele. Olhava tão profundamente que Bek achou que ela devia ver tudo oque estava escondido ali.

Ele sacudiu a cabeça para afastar o frio que o olhar dela o fazia sentir.

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— O que eu entendo — disse ele — é que você se tornou a própria coisa que estavatão preocupada em evitar.

Ela balançou a cabeça rapidamente.— Eu não sou um druida — disse. — Não me chame assim.— Você é tão boa quanto um. Igual a um, na verdade. — Ele inclinou-se, desafiador.

— Explique para mim como é que você difere de Walker. Diga-me o que ele fez em suavida que você não tenha feito na sua. Mostre-me onde a estrada que você tem viajado sedistancia da dele.

Ela o encarou em silêncio, mas seus olhos estavam zangados agora.— Você parece ter a intenção de me provocar.— É mesmo? Deixe-me contar a você uma história, Grianne. Enquanto eu estava a

caminho de Arborlon, viajei com Quentin através do território do rio Prateado. Ao dormir,tive uma visão. A visão era a de uma jovem que apareceu para mim, que em seguida setransformou em um monstro, uma coisa tão horrenda que eu mal conseguia olhar. Essajovem era você aos seis anos, e a coisa na qual você se transformou parecia muito comos mwellrets que você comanda. Acredito em visões, em sinais de coisas por vir, emprevisões do futuro. Essa foi uma delas. Eu estava vendo seu passado e seu futuro.Estavam me dizendo que era responsabilidade minha mudar o seu destino, impedir queessa transformação acontecesse.

— Você se atribui muito então. Presume mais do que deveria.Ele balançou a cabeça.— É mesmo? Eu não procurei por isso. Nem sequer entendi o que estava sendo

mostrado para mim. Não até eu descobrir quem eu era. Não até encontrar você. Masacho agora que, se eu não encontrar uma maneira de convencê-la da verdade, ninguémmais o fará, e essa visão acontecerá.

— Nada tenho em comum com os mwellrets ou com os druidas — ela desdenhou. —Você é um garoto de imaginação vivida demais e sem nenhum cérebro. Você confiacegamente na pessoa errada e supõe que suas verdades deveriam ser as minhas quandoelas não são nada a não ser ilusões. Estou cansada de ouvi-lo. Não fale mais nadacomigo. Nem uma palavra.

— Eu falo o que quiser! — ele disparou para ela. Por dentro, tremia. Ela podia servolúvel, perigosa, mas a cautela não mais servia a nenhum propósito. — Você estácercada de seguidores obsequiosos e mentirosos de toda a espécie. Você se separou daverdade por tanto tempo que não a reconheceria se ela pulasse na sua frente. Por quenão admite que não tem certeza a meu respeito? Por que pelo menos não confessa isso?

O rosto dela se anuviou.— Fique quieto.— Deixe-me ir com você procurar Walker. Deixe que ele a ajude. Que mal pode fazer

falar com ele? Basta escutar o que ele tem a dizer. Se você tirasse cinco minutos parapensar...

— Chega! — ela gritou.Ele levantou-se de um pulo.— Chega o quê? Da verdade? Eu sou seu irmão, Grianne! Eu sou Bek! Pare de tentar

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negar isso! Pare de distorcer tudo ao seu redor!Ela também se levantou, rígida de fúria. Ele sabia que deveria parar, mas não

conseguia.— Quer que eu lhe diga o que realmente aconteceu com nossos pais? Quer que eu

lhe diga o que foi feito a você? Quer que eu fale as palavras em voz alta, para que vocêpossa ouvir o som delas? Você é tão cega que não consegue...

Ela tornou a gritar, só que desta vez não havia palavras, apenas um som querasgava o ar como navalhas. A magia da canção do desejo queimou a garganta de Bek,torcendo-a e apertando-a até ele sentir falta de ar. Levantou as mãos em um esforçoatrasado de se proteger, cambaleou para trás e caiu. A força e a rapidez inesperadas doataque o deixaram tonto e caído no chão, os olhos queimando, a respiração vindo emgolfadas profundas e entrecortadas.

Ela assomou à sua frente, puxando os mantos para perto do corpo, o rosto pálidoretorcido de nojo. Então estendeu a mão para tocar o pescoço dele e tudo ficou escuro.

Quando ele estava dormindo e respirando normalmente outra vez, ela estendeu osbraços e as pernas dele e o cobriu com seu manto esfarrapado. Que idiota! Ela o alertarapara que não dissesse mais nada, mas ele continuara a pressioná-la. Ela havia reagidoquase sem pensar, perdendo o controle de si mesma e atacando enraivecida. Sentiu umapequena vergonha de ter feito isso. Não importava qual era a provocação; ela devia tersido capaz de manter a magia sob controle. Devia ter sido capaz de evitar atacá-lodaquela maneira. Poderia tê-lo morto facilmente. Não teria precisado tanto assim parafazê-lo. O poder da canção do desejo era imenso. Se ela escolhesse, podia usar suamagia para fazer ressecar um dos imensos carvalhos velhos que abrigavam oacampamento dos dois, transformá-lo em polpa, casca e seiva, reduzi-lo até a terra daqual haviam crescido. Como seria muito mais fácil fazer o mesmo com esse garoto.

— Eu avisei — ela sibilou para sua forma adormecida, ainda admoestandointeriormente a si mesma.

Endireitou-se e afastou-se, parando na margem da clareira e olhando para aescuridão. Afastou do rosto os longos cabelos compridos e dobrou os braços dentro dosmantos. Talvez sua reação tivesse sido a melhor. O que ela havia feito agora era o quetinha pretendido fazer de qualquer maneira assim que alcançassem a baía onde a BlackMoclips estava ancorada: tirar sua voz e torná-lo indefeso. Caso contrário, não poderia sedar ao luxo de deixá-lo com os mwellrets. Tiraria sua espada também, a lâmina que eleafirmava ser a espada de Shannara. Ficaria trancado no brigue e mantido ali até que elaterminasse seus negócios com o druida.

Olhou para trás, para onde ele estava dormindo, e tornou a desviar o olhar. Queriater dito a ele o que ia fazer antes, para explicar que era temporário, alguns dias e nadamais. Queria ter dito que restauraria sua voz quando o visse novamente, que ela negariaa magia que o mantinha preso. Ainda diria isso a ele pela manhã quando acordasse, maso efeito seria diferente do que havia planejado.

Ficava irritada quando sentia a necessidade de se justificar para ele. Ela não lhe

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devia nada, afinal, como se ele importasse para ela minimamente. Mas, por mais quetentasse, não podia dispensá-lo como sendo nada mais do que um garoto que o druidade algum modo tivesse subvertido para usar contra ela. Sabia que uma explicação dessasera simplista demais. Ele era mais do que isso; sua magia era real. Ele talvez fosse tãoteimoso quanto ela, e havia pelo menos um pouco de verdade no que estava dizendo. Elanão admitiria isso a ele, mas podia sentir. O problema estava em decidir o quanto. Ondeterminavam as mentiras e começava a verdade? O que o druida conseguiria enviando ogaroto a ela? Pois ele havia enviado o garoto, por mais que eles tivessem encontrado umao outro sem querer. Ele havia enviado o garoto, e isso era tão certo quanto o fato deque ela havia enviado Ryer Ord Star para espionar.

Seria possível que ele realmente fosse Bek?Parou de respirar por um momento, o pensamento suspenso à sua frente como uma

criatura exótica. Isso seria possível, afinal? Ele ainda podia ser Bek e estar mentindoquanto aos seus pais. Ainda podia ser um tolo involuntário. Poderia estar se enganandosem saber.

Mas como o druida o havia encontrado quando ela pensara que ele estava morto?Como o druida soube quem era ele? Será que o druida voltara para os escombros e oprocurara? Será que o druida decidira fazer uso de Bek em seus esquemas porqueperdera a utilidade dela?

Apertou os lábios. Todos eram usados nessa vida. Pensou no Morgawr, seu mentorde todos esses anos, seu mestre na fina arte do uso da magia. Ela sabia bastante a seurespeito, sobre quem ele era, para saber que não se podia confiar nele, para aceitar queele era tão perigoso quanto o druida. Ela sabia que ele a havia usado. Que ele escondiacoisas que lhe permitiam manter o controle sobre ela. Era simplesmente assim que ascoisas eram. Ela também manipulava e enganava. O garoto tinha razão quanto a isso.Ela não era tão diferente do Morgawr, e o Morgawr era muito parecido com o druida.

Mas será que o Morgawr havia mentido para ela sobre seus pais? Se ele tivessementido, como ela podia ter lembranças tão fortes do druida e de seus servos de mantosescuros descendo sobre sua casa naquela última aurora? Isso não parecia correto paraela. Não parecia possível. O druida havia desejado que ela fosse com ele a Paranor. Elase lembrava das visitas dele a seu pai, as conversas e avisos sombrios. Não, ele haviamatado seus pais e a seqüestrado como ela acreditava.

Mas o garoto que se achava seu irmão tinha razão. De qualquer modo, ela haviaterminado uma druidesa, em outro lugar, de outra forma. Não podia dizer que eradiferente de Walker, nem melhor nem pior. Não podia apontar o ponto onde suas vidasse diferenciavam. Ao escapar dele, permitira que o Morgawr a transformasse em umaimagem refletida de seu inimigo. Seu uso da magia e seus esforços para acumular podereram muito parecidos com os dele. Se ele havia feito coisas ruins para atingir seusobjetivos, ela também.

Pensar em tudo isso, aceitar essa verdade, fez com que ficasse mais zangada aindaconsigo mesma. Mas não havia lugar para raiva em seus esforços para realizar as tarefasque havia iniciado. Ela deveria encontrar a magia oculta em Castledown, obter sua possee voltar para a nave. Deveria decidir o que fazer com o garoto e suas acusações

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desconfortáveis. Deveria resolver as coisas de uma vez por todas com o druida e oMorgawr.

Não duvidou nem por um momento de que era capaz de tudo isso, ou de quepudesse efetuar seus planos da maneira pretendida.

Mas, gostasse disso ou não, estava começando a questionar seu raciocínio para fazê-lo.

Quilômetros a sudeste, bem distante da abertura para o Squirm e seus campos de gelo, ealém dos penhascos que protegiam a aproximação oriental da Divisa Azul, a JerleShannara estava ancorada. Estava ancorada em uma enseada coberta de florestas entredezenas de outras nas terras baixas, a quilômetros de onde depositara Walker e aquelesque haviam desembarcado à procura de Castledown. A Jerle Shannara estava abrigadado tempo infernal que assolava a costa, oculta de olhos de espiões enquanto passava porreparos.

Sentada em um banco na proa da nave, de frente para a abertura estreita daenseada, Rue Meridian podia apenas vislumbrar as águas distantes da Divisa Azul. Usavacalças frouxas e túnica, lenços em tons vermelhos e alaranjados enrolados ao pescoço ena testa, botas velhas e confortáveis que iam até os tornozelos. Um cobertor a protegiado frio. Entediada e inquieta, ela arrastava uma das botas no convés e ponderava pelacentésima vez a sua insatisfação. Fazia quase uma semana desde que o Ruivão havialevado a aeronave para terra depois de seu encontro quase catastrófico com o Squirm,criando um curso de volta à costa que evitava geleiras, montanhas e a névoa escura.Uma rota mais longa e mais tortuosa do que aquela que os levava através do Squirmsubindo o canal do rio era de longe a mais segura. Retomando a costa, os roversnavegaram à procura dos cavaleiros alados, a quem rapidamente encontraram e levaramaté a baía que os protegia. Desde então, rovers e cavaleiros alados se juntaram parareparar o vaso danificado, enquanto Rue havia ficado de cama, curando suas feridas edormindo sem ser perturbada.

Ambas as coisas eram processos intermináveis, ela reclamou consigo mesma emsilêncio. Olhou para a perna, onde sofrerá a mais profunda e mais séria ferida em suabatalha com os mwellrets. Pontos e pomadas haviam começado a curá-la bem, mas nãoestava inteiramente fechada e ela ainda não conseguia andar sem sentir dor. O ferimentode faca em seu braço havia curado mais rápido, e as marcas de garras em suas costas eflancos eram pouco mais do que os indícios de cicatrizes que ela jamais perderia. Paraela, isso significava que, de três, já havia curado dois, mas a perna impediria que elafizesse muita coisa, e a inatividade estava começando a angustiá-la.

Teria ajudado se os reparos na nave andassem mais rápido e já estivessemnavegando de volta em busca de seus amigos e parceiros do navio que estavamabandonados. Mas os danos na Jerle Shannara haviam sido mais extensos do quequalquer um havia pensado à primeira vista. Não eram só as travas estilhaçadas, asbainhas de luz rasgadas e o mastro principal quebrado que haviam aleijado a nave. Doisdos tubos de fragmentação, juntamente com seus cristais-diapasão, foram arrancados e

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perdidos no mar. Uma dezena de atratores radianos estavam irremediavelmentequebrados. A natureza do dano impedia uma simples substituição; exigia a reconstruçãode todo o sistema que permitia que a nave voasse. Spanner Frew dava conta da tarefa,mas estava levando tempo demais.

Ela observou o atarracado construtor naval curvado sobre a cobertura esquerda deproa, direcionando o conjunto do tubo e do cristal existentes, realinhando o atratoresquerdo do meio da nave que agora corria para aquele local também. Era o segundodos três que estavam envolvidos no realinhamento. Ninguém sabia se a novaconfiguração iria funcionar direito, o que significaria testá-la antes de se aventurarempara dentro da terra e arriscarem outro encontro com a Black Moclips e a bruxa Ilse.

Toda vez que ela pensava na bruxa, era consumida por uma fúria terrível. Não era odano na nave ou o aprisionamento dos rovers que alimentavam essa fúria. Não erasequer a inevitável perda de contato com a companhia de Walker. Era pela morte de FurlHawken que ela mais culpava a bruxa. Não fosse pelo fato de a bruxa ter tomado a JerleShannara e aprisionado a tripulação rover, isso nunca teria acontecido.

Um dia, de algum modo, ela prometera a si mesma, a bruxa Ilse seria obrigada apagar pela morte de Hawk. Era uma coisa que ela havia jurado enquanto estava abaixodo convés, ainda fraca demais até mesmo para se sentar, incapaz de parar de pensar noque havia testemunhado. Haveria um ajuste de contas para Hawk, e a Ruivinha queriaser a pessoa que ia acertar as contas.

O dia estava se arrastando na direção da tarde, o céu uma massa de nuvenscinzentas espessas, o sol escondido, o ar cortante de tão frio. Pelo menos eles estavamsuficientemente abrigados pela enseada para se protegerem do vento cortante e da nevefina que soprava veloz ao longo da costa. Ela estava maravilhada com a estranheza doclima, tão diferente na costa do que na terra, tão inexplicavelmente contrastante.Somente shrikes, gaivotas e coisas parecidas conseguiam fazer lares nas encostas daságuas costeiras. Humanos jamais conseguiriam viver ali confortavelmente. Ela imaginavase havia humanos vivendo em terra. Imaginava se havia humanos em algum lugar,afinal.

— Boa-tarde — grunhiu uma voz, arrancando-a de seu devaneio.Ela se virou e viu Hunter Predd a alguns metros de distância, o corpo magro envolto

em um manto pesado, suas feições desgastadas e divertidas. Sorriu melancólica.— Desculpe. Eu estava em outro lugar. Boa-tarde para você.Ele se aproximou mais um passo, olhando para o oceano.— Tem uma tempestade grande vindo aí, uma das ruins. Eu a vi se armando quando

estava voando com o último carregamento de cânhamo e junco. Ela pode nos deixarpresos aqui por alguns dias.

— Estamos presos aqui de qualquer maneira até que a nave possa voar novamente.Quanto tempo agora, mais dois ou três dias pelo menos antes de voltarmos a navegar?

— Pelo menos isso.— Ainda está coletando materiais?Ele balançou a cabeça e passou uma mão retorcida pelos cabelos emaranhadas pelo

vento.

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— Não, já acabamos. Agora é com o Barba Negra e com os outros para fazer issotudo funcionar.

Ela chamou-o com um gesto.— Sente-se. Converse comigo. Já estou cansada de conversar comigo mesma.Deu lugar para ele no banco, balançando as pernas e colocando os pés

cuidadosamente sobre o convés. Ela fez uma careta involuntária com a dor que esseesforço trouxe.

Um olhar aguçado disparou em sua direção.— Ainda está um pouco sensível, pelo que vejo.— Será que todos os cavaleiros alados possuem poderes tão agudos de observação?Ele deu uma risadinha.— Os sentimentos também parecem um pouco sensíveis.Ela não falou nada por um momento, olhando para suas pernas, suas botas, o

convés. O tempo passou. Ela sentia um grande vazio no coração, um lugar se abrindoonde a oportunidade escapava enquanto ela ficava sentada sem fazer nada.

Levantou a cabeça para olhar nos olhos dele.— Quanto tempo faz desde que os deixamos? Mais de uma semana, não é? Muito

tempo, cavaleiro alado, tempo demais.Ele assentiu, franzindo a testa. Ia começar a falar, mas parou, como se decidisse que

qualquer coisa que dissesse era desnecessária. Abraçou o joelho com as mãos e ficoubalançando devagar em seu manto, balançando a cabeça grisalha.

— Você não pode estar gostando desse atraso mais do que eu — disse. — Vocêtambém deve estar querendo fazer algo a respeito.

Ele concordou.— Estive pensando nisso.— Se pudéssemos apenas descobrir se eles estão bem, se estão seguros o bastante

até que a nave possa alcançá-los...Não terminou a frase, esperando que ele fizesse isso por ela. Em vez disso, ele olhou

ao longe como se tentasse vê-los através da neblina e do frio. Então tornou a assentir.— Eu poderia procurá-los. Poderia partir agora, na verdade. Deveria fazer isso agora,

porque assim que a tempestade chegar, não será tão fácil sair voando.Ela se inclinou para a frente, ansiosa, os cabelos vermelhos caindo sobre os ombros.— Eu tenho as coordenadas que o Ruivão mapeou a partir de nossa jornada. Não

teremos nenhum trabalho em segui-los de volta.Ele olhou surpreso para ela.— Nós?— Eu vou com você.Ele balançou a cabeça.— Seu irmão não vai deixar você ir, e você sabe disso. Ele vai impedir isso antes que

termine de contar a ele o que pretende.Ela parou um momento, então estendeu um dedo e tocou a têmpora.— Pense no que acabou de dizer, Hunter Predd — ela aconselhou suavemente. —

Quando foi a última vez que meu irmão me disse o que fazer, você imagina?

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Ele sorriu, compreendendo melancólico.— Bem, de qualquer maneira, ele não vai gostar disso.Ela retribuiu o sorriso.— Não será a primeira vez que ele terá de lidar com esse tipo de decepção. E nem a

última, aposto.— Você e eu? — ele perguntou, erguendo uma sobrancelha.— Você e eu.— Não vou perguntar se tem condições de fazer isso.— Melhor não.— E não vou perguntar o que pretende assim que chegarmos lá também, muito

embora esteja disposto a apostar que isso vai além de um rápido vôo dereconhecimento.

Ela assentiu sem responder.Ele soltou um suspiro fundo.— Vai ser bom voltar para o ar, fazer o que fomos treinados para fazer, eu e

Obsidian. — Esfregou as mãos cheias de calos. — Vamos deixar Po Kelles e Niciannonpara executar as tarefas que seu irmão e os outros precisarem até nos alcançar. Talveznossa partida os inspire a trabalhar mais rápido nos reparos.

— Talvez. Meu irmão detesta ficar para trás em qualquer coisa. Dar uma olhada emterra foi idéia dele, em primeiro lugar.

— E agora você rouba a idéia dele. — Balançou a cabeça, sorrindo melancólico. —Quanto tempo demora para se aprontar?

Ela se levantou desajeitada e se desenrolou do cobertor. Por baixo, as facas de atirarestavam amarradas na sua cintura.

Ela ergueu uma sobrancelha para ele.— Quanto tempo você demora para selar seu pássaro?

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18

Montados em Obsidian, voaram para o interior, longe da costa, acomodados

confortavelmente sobre o arreio amarrado nas costas emplumadas do roca, Hunter Preddnas rédeas e Rue Meridian sentada logo atrás dele. A rover vestia suas peças de couropara vôo, negras como as de seu irmão e moldadas ao seu corpo pelo uso constante. Porbaixo delas, seus ferimentos estavam cuidadosamente enfaixados e protegidos e o couroservia como uma armadura leve para protegê-los dos piores tratamentos que ela pudessesofrer na jornada. À guisa de armas, ela levava uma braçada de facas de atirar nacintura, outra enfiada na bota, uma faca longa amarrada em sua coxa boa, e arco eflechas às costas. Um grande manto com capuz a protegia contra o frio e o vento, masmesmo assim ela acabou abaixando a cabeça e encolhendo os ombros para permaneceraquecida.

Dizer que seu irmão estava zangado com sua decisão de fazer essa jornada era aobviedade do ano. Ele estava tão furioso, tão atordoado pelo que considerava umaevidente estupidez e um julgamento imensuravelmente errado da parte dela, que acabougritando, fazendo com que os reparos da aeronave parassem até ele terminar. Ninguémmais disse uma palavra, nem mesmo Spanner Frew. Ninguém mais queria tomar parte dadiscussão. O Ruivão estava falando por todos — ou seja, alto o bastante por todas assuas vozes juntas — e não havia mais nada a ser dito ou feito. Ela escutoupacientemente por alguns minutos, e então começou a gritar com ele; acabou jogando asmãos para o alto e saiu mancando, gritando uma última vez para sugerir que, se eleestava tão preocupado com ela, talvez devesse apressar seus consertos e segui-la.

Não era justo brigar com ele daquele jeito, mas ela não estava mais ligando para oque era justo e razoável. A coisa com a qual ela estava se importando — a única coisaàquela altura com a qual estava se importando — eram aqueles dezesseis homens emulheres aprisionados em terra, num estranho e perigoso território sem esperança deencontrar o caminho de volta, e uma louca com seus escravos répteis caçando-os. Nãofazia idéia do que podia ter acontecido com eles, mas não gostava de pensar naspossibilidades. Queria uma garantia de que seus piores temores não haviam seconcretizado. Queria provas da segurança deles. O tempo era um inimigo, rápido eilusório. O que ela estava fazendo era arriscado, mas valia a pena correr aquele risco emcomparação com as conseqüências de um tempo maior de inatividade. Hunter Predd nãodisse nada durante a discussão nem depois disso, mas ela sabia que ele concordava comsua decisão. Os cavaleiros alados eram cautelosos por treinamento e experiência, massabiam a hora de agir.

Quando partiram, a tarde estava caindo e eles voaram até que a noite os envolveu.A linha azul-acinzentada do oceano e as nuvens foram deixadas para trás, juntamente

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com o frio congelante do ar costeiro. A escuridão da terra era quente e suave, umamudança bem-vinda. A terra se estendia adiante deles, uma ondulação ininterrupta detopos de árvores verdes e linhas de cordilheiras escuras pontilhadas com lagos eamarradas com rios, bordejadas atrás das encostas costeiras e dos picos das montanhas.Bem ao longe, apanhado em uma réstia de luz do sol que se desvanecia, o brilho de umcampo de gelo era duro e faiscante contra a escuridão que se desdobrava.

Hunter Predd virou Obsidian para baixo, para achar um local de acampamento. Apósvários minutos de busca, pousaram em uma clareira no alto de uma elevação ampla defloresta que dava a Obsidian diversas opções de se empoleirar e também rotas de fuga, epara seus cavaleiros uma boa visão das cercanias. Não que eles esperassem problemas,mas eram bastante experientes para estarem preparados. Era um território do qual nãoconheciam praticamente nada. Poderia haver coisas ali que matassem, coisas que jamaishaviam encontrado. Ainda que evitassem o que quer que protegesse Castledown, haveriaoutros perigos.

Enquanto Hunter Predd retirava a sela de Obsidian, escovava suas penas e lhe davaágua e comida, Rue Meridian preparou a refeição. Haviam concordado em não acenderuma fogueira, para evitar atrair atenção indesejada, por isso ela pegou queijo frio, pão efrutas secas no estoque que havia trazido da nave. Quando Hunter Predd se juntou a ela,ela pegou uma bolsa de cerveja e dividiu-a com ele. Comeram a refeição em silêncio,vendo a escuridão se aprofundar e as estrelas aparecerem. A luz da lua cheia que selevantava ao norte era brilhante e purificadora, e a terra assumia um tom branco e frescoentre as sombras. No topo da elevação, a floresta estava em silêncio. Entre as árvores,nada se movia.

— Quanto tempo levaremos para chegarmos ao nosso destino? — perguntou ocavaleiro alado quando terminaram de comer. Tomou um gole da bolsa de cerveja eentregou-a para ela. — Um cálculo aproximado está bom. Só preciso de alguma idéia decomo ajustar o ritmo do meu pássaro.

Ela também bebeu e colocou o recipiente de lado.— Acho que podemos chegar lá amanhã à noite se partirmos ao nascer do sol e

forçarmos a marcha ao longo do dia. Levamos mais tempo para sair, mas estávamosachando o caminho e curando os feridos, por isso foi mais devagar. Perdemos metade denossa força e muito de nossa capacidade de navegação. Seu roca voará mais rápido doque nós.

— E então vamos dar uma olhada ao redor e ver quem está lá?Ela deu de ombros.— Quando eu era criança e brincávamos de esconde-esconde, aprendi que a melhor

maneira de encontrar alguém era não procurar com muito esforço. Aprendi que osinstintos são necessários, que você tem de confiar neles. Podemos dar uma olhada nabaía onde a Jerle Shannara colocou Walker e os outros na margem. Podemos voar paraterra até avistarmos Castledown. Mas acho que não podemos ter certeza do que estamosprocurando em nenhum dos dois lugares.

— Ou mesmo na superfície.Ela olhou para ele zangada.

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— O que eu quero dizer é que o druida nos contou que o refúgio ficava nosubterrâneo. É só.

Ela assentiu.— Vamos ter de procurar muito, de qualquer forma, para encontrá-los. Eles não vão

ficar simplesmente em pé nos esperando.— Teremos Obsidian para ajudar nessa parte. — O cavaleiro alado fez um gesto para

onde o pássaro estava ciscando na escuridão, em um promontório largo de rochas. — Foipara isso que ele foi treinado, para procurar coisas que não podemos ver, para caçar oque está perdido e precisa ser encontrado. Ele é bom nisso. Melhor do que você e eu.

Ela acomodou a perna machucada em uma nova posição. Ela doía por ter ficadopresa ao roca durante o vôo, mesmo pelas poucas duas horas em que eles haviamviajado. O quanto estaria pior amanhã à noite? Suspirou cansada enquanto esfregava aperna para fazer com que ela voltasse à vida, tomando cuidado para evitar o ferimentoda faca. Não estava pior, supunha, do que imaginava que seria. Ela já havia verificado asbandagens e não havia mostras de sangramento. Os pontos estavam no lugar até omomento.

— Iremos descansar com muita regularidade amanhã — declarou Hunter Predd,observando-a. Ela levantou a cabeça com grande reprovação. — Não só por você — eleacrescentou. — Pelo pássaro também. Obsidian viaja melhor com paradas freqüentes.

— Desde que você não esteja me fazendo nenhum favor especial.A risada dele foi seca e impiedosa.— Não iríamos querer isso, iríamos?Ela passou a cerveja para ele e recostou-se sobre os cotovelos.— Pode rir à vontade. Você não cresceu como uma garota entre homens do jeito que

eu cresci. Se pedisse favores especiais para meu irmão ou meus primos, eles ririam nasua cara. Pior, tornavam as coisas tão difíceis que você desejava jamais ter aberto aboca. Mulheres rovers têm uma tradição de resistência e dureza nascida com as viagensconstantes, a responsabilidade pela família e uma vida difícil na maioria das vezes. Nosvelhos tempos, não tínhamos cidades, nenhum lugar no mundo fora de nossos vagões ede nossos acampamentos. Éramos nômades, à deriva a maior parte do tempo, no mar ouvoando no tempo que restava. Ninguém nos ajudava apenas porque queria. Nós osensinamos a dependerem de nós, de nossas habilidades e de nossos artigos, para quenão tivessem escolha. Sempre fomos um povo auto-suficiente, mesmo agora, comomarinheiros, construtores navais e mercenários, e o que mais podemos fazer melhor doque outros...

— Espere aí! — ele interrompeu em protesto. — Não estou rindo de você. Acha quenão conheço seu tipo de vida? Não somos tão diferentes assim, você e eu. Cavaleirosalados e rovers sempre viveram separados, sempre foram auto-suficientes, nuncadependeram de ninguém. Isto é verdade há tanto tempo quanto qualquer um conseguese lembrar.

Inclinou-se para a frente.— Mas isto não quer dizer que não possamos estender uma mão amiga quando

necessário. Amizade nada tem a ver com fraqueza. Tem a ver com respeito e

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consideração por aqueles de quem você gosta. Tem a ver com desejar dar algo em trocapara aqueles que você admira. Você podia ter isso em mente.

Ela sorriu sem querer, encantada pela franqueza dele.— Vivi tempo demais com soldados nas Prekkendorran — ela explicou. — Esqueci

como ser grata.Ele balançou a cabeça.— Você não esqueceu tanto assim, acho. Apenas se aproxima um pouco demais de

seus sentimentos às vezes, Ruivinha. Melhor do que se afastar demais deles.Dormiram sem perturbações, revezando-se para ficarem de vigia, e acordaram

renovados e prontos para prosseguir. Partiram ao nascer do sol, sua luz dourada pálidarecobrindo o horizonte como uma fanfarra para assustar a noite. Os traços da terraabaixo gradualmente emergiram das sombras, em um lento relevo de detalhes e cores.Voar ficou mais quente à medida que o sol se levantava, e o céu estava claro e semnuvens. Rue Meridian levantou o rosto para a luz, achando que talvez o mundo pudesseser mais gentil, afinal, do que ela havia suposto.

Voaram o dia inteiro, parando para repousar, dar água a Obsidian, comer o almoço,esticar braços e pernas com cãibras. Além de pequenos pássaros e um ou outro animalsilvestre, não viram sinal de vida. Depois do meio-dia, o terreno começou a mudar,ficando mais acidentado e menos aberto. Adiante, montanhas de cumes alvos sedestacavam contra a linha do horizonte, um espinhaço acidentado descendo ao longo daterra, dividindo a massa em duas. Sopés de colinas aninhavam lagos fundos formados porriachos e correntes que desciam das elevações mais altas. Nuvens começaram a formarmassas ao longo dos picos. O céu ao norte ficou cinza e turvo com ameaça de chuva. Aosul, onde as encostas e campos de gelo estavam aglomerados, o horizonte estava negrocom nuvens de tempestade e riscado com relâmpagos que piscavam como explosões defogo brando.

O sol se punha quando avistaram a baía onde a Jerle Shannara havia deixado aequipe de terra há mais de dez dias. Voaram em círculos para sair da penumbra quedescia sobre eles, de forma que não fossem vistos, mantendo baixa altitude sobre ostopos das árvores, ocultos contra a massa escura das montanhas. Podiam identificar orelevo tênue da Black Moclips onde ela estava ancorada, flutuando sobre a linha da água.Nenhuma luz queimava em seus mastros ou em suas janelas e nenhum movimento podiaser visto em seus conveses. Hunter Predd levou Obsidian para baixo, sobre uma extensãoaberta de rocha que dava para uma cordilheira deserta. Desmontaram e andaram até umlugar de onde poderiam ver a aeronave e a baía.

A oeste, o sol estava abaixo da linha do horizonte e o resto da luz do dia desaparecianas sombras.

— E agora? — perguntou Hunter Predd.Rue Meridian balançou a cabeça, olhando fixo para a Black Moclips.— Talvez devêssemos olhar mais de perto.Deixando Obsidian ciscando, desceram até a linha da margem, sem pressa e se

movendo com cautela pela escuridão que se aprofundava, de modo a fazer o menor ruídopossível. No silêncio da enseada, ruídos viajariam grandes distâncias. Os olhos da

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Ruivinha eram acurados, mas os de Hunter Predd eram ainda mais, então ele foi à frente,escolhendo o caminho que lhes oferecia a passagem mais silenciosa. Levaram quase umahora para fazer a descida e àquela altura a escuridão já era completa e o céu brilhavacom a luz das estrelas e da lua.

Em pé na margem, bem atrás das árvores, a rover e o cavaleiro alado olhavam paraa aeronave ancorada na baía. Agora podiam ver o movimento em seus conveses, guardasem vigia, tripulação trabalhando. Podiam ouvir vozes, mantidas em tom deliberadamentebaixo, porém audível. Podiam vislumbrar luzes de lanternas mascaradas por sombras ecortinas dentro das cabines abaixo do convés.

Depois de ficarem ali por algum tempo, Hunter Predd voltou-se para ela:— O que está pensando em fazer?Ela continuou em silêncio. O que ela estava pensando era uma coisa louca e

perigosa. O que estava pensando era que talvez o destino deles lhes tivesse presenteadocom uma oportunidade única. Ela fora para lá procurando os membros desaparecidos dacompanhia da Jerle Shannara, mas em vez disso encontrara o transporte de seu inimigo.

A bruxa Ilse ainda não teria como saber que eles haviam libertado a Jerle Shannarados mwellrets e dos marinheiros da federação que ficaram lá para vigiá-la. Não tinhacomo saber que ela agora comandava apenas a Black Moclips. Acreditaria que ambos osveículos ainda estavam seguramente sob seu controle.

Rue Meridian apertou os lábios. Ali estava uma chance para uma verdadeira ironia,um pouco de justiça poética, se ela conseguisse descobrir um meio de orquestrá-la.

Não seria adequado, ela estava pensando, se de algum modo pudesse colocar abruxa na mesma posição em que a bruxa a havia colocado?

Franzindo a testa em descontentamento, a bruxa Ilse olhou para a silhueta cada vez maisescura da Black Moclips, enquanto ela desaparecia por entre as árvores. O crepúsculocobria a baía de sombras que se estendiam no rastro do crepúsculo para agarrar eenvolver a aeronave como dedos fantasmas. Ela dera instruções estritas a Cree Bega eseus rets. O garoto foi colocado sob a custódia deles, para ser vigiado e guardado até seuretorno. Eles não deveriam tentar falar com ele, nem interagir com ele ou ter qualquercoisa a ver com ele. Ele deveria ser mantido trancado. Deveria receber comida e bebida,mas nada além disso. Não teria permissão de sair. Ninguém deveria visitá-lo. Ninguémdeveria perturbá-lo.

Se suas instruções seriam ou não seguidas era outra história.Cree Bega teve suas suspeitas, mas ela havia afastado a maior parte delas com uma

pequena mentira. O garoto tinha informações que seriam úteis para eles, mas era elaquem deveria extraí-las dele, já que ele não podia falar. O mwellret não tinha comosaber que a ausência de fala do garoto se devia à magia que a bruxa Ilse havia utilizadocontra ele, então ele deveria fazer o que ela mandava e esperar seu retorno. Era umrisco que ela tinha de correr. Não podia levar o garoto consigo; era perigoso demais irprocurar o druida com ele a reboque. Não podia arriscar deixá-lo em nenhum outro lugaralém da nave; alguém da companhia dele poderia encontrá-lo e libertá-lo. Ela havia

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levado a espada de Shannara consigo, para garantir que ele não conseguiria usá-la.Carregava-a atravessada sobre um dos ombros, enfiada na bainha velha que ela usava.Sem o uso de seu talismã ou de sua voz, o garoto não teria magia alguma para invocar.Era melhor deixá-lo onde estava e esperar que a ausência dela fosse breve.

Tinha razões para achar que seria. Havia corrigido seus planos anteriores, que erampor demais ambiciosos. Por mais que ela quisesse ajustar as contas com o druida, elenunca fora a razão principal pela qual ela viera na expedição. Recuperar a poderosamagia que jazia nas entranhas de Castledown era seu objetivo mais importante. Alémdisso, ela precisava de mais tempo para decidir o que fazer a respeito tanto do druidaquanto do garoto, especialmente à luz do que o último reclamava sobre sua linhagem. Oque ela pretendia fazer era entrar nas ruínas, desviar-se dos fios de fogo e dosrastejadores que haviam tão facilmente derrotado os mwellrets, mas que seriam menoseficientes contra ela, entrar em Castledown, localizar e sugar toda a magia dos livros queestavam escondidos ali e escapar. Deixaria Walker para depois, quando estivesse emsegurança de volta ao Caminho Selvagem. Teria sua chance com ele então, pois teria amagia que ele ambicionava e ele seria forçado a ir atrás dela para recuperá-la.

A não ser que ele já a tivesse apanhado, claro. A possibilidade de que o garoto foraenviado para afastá-la de Castledown passou ligeira por sua cabeça, mas ela a afastou.Mesmo assim, o druida poderia ter obtido a posse dos livros enquanto ela estavaprocurando o garoto. Se o tivesse feito, ela teria de lidar com ele imediatamente. Masachava que não era o caso. O fato de que sua companhia havia sido dizimada pelos fiosde fogo e pelos rastejadores, e de que não havia sinal dele desde então sugeria que elenão havia conseguido nada, que estava em perigo, talvez ferido ou morto. Se nãoestivesse, já teria emergido. Teria ido em busca do garoto ou dela. O garoto e o mutantenão teriam continuado sua fuga. Teria havido algum sinal de atividade. Seus mwellretshaviam patrulhado as margens das ruínas desde sua chegada e não viram ninguém.

Além do mais, ainda que ele tivesse de algum modo os evitado, o que poderia fazer?Livros de magia ou não, estava aprisionado. Ela tinha o controle de ambas as aeronaves.Ela tinha o garoto e a espada de Shannara. O druida estava só, ou quase. Para teralguma chance de escapar, teria de ir em busca dela. Ela estava preparada para isso.

Deu de ombros. Em todo o caso, saberia o que fazer a respeito do druida quando eleencontrasse os livros de magia. Seus sentidos lhe diriam se ele tivesse estado lá antesdela.

Atravessou o crepúsculo que escurecia como uma sombra, envolta em seus mantoscinzentos, uma presença silenciosa. Enviava sua magia à frente, vasculhando a escuridão,procurando pelo que não podia ver, pelo que poderia aguardá-la adiante. Nadaencontrou. Era como se o mundo estivesse deserto, a não ser por ela. Gostava dasensação. Sempre havia preferido a noite, mas a preferia mais ainda quando estava só.Não se sentia ansiosa nem preocupada sobre o que havia adiante. Sabia o que esperarpelo que lhe dissera Cree Bega e, o mais importante, do que havia descoberto ao sondarmentalmente o moribundo Kael Elessedil. Ela sabia dos fios de fogo e dos rastejadores enão achava que fossem uma ameaça. Sabia dos livros de magia e da coisa que osprotegia. Antrax. Este era um nome que lhe fora dado há muitos séculos. Ela sabia o que

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ele era e como podia ser vencido. Sabia mais sobre ele do que ele sobre ela. Ele haviajulgado erroneamente a extensão das informações contidas no cérebro de Kael Elessedil.Achava que sabia até mesmo como destruí-lo, caso fosse necessário fazê-lo. Mas adestruição de Antrax não era de sua conta. Os livros de magia eram o que ela desejava,e embora ela não soubesse quantos existiam nem onde estavam escondidos, estavaconfiante de que podia descobri-los e pegá-los, e era tudo o que ela queria da máquina.Levaria aqueles de que precisasse, os que lhe dariam o máximo de poder, e deixaria oresto para outra oportunidade. Utilizaria sua magia para desativar a segurança deCastledown, ocultando sua presença, mascarando seu roubo e escondendo sua fuga. Setudo corresse conforme ela desejava, chegaria lá e sumiria novamente sem que Antraxse desse conta.

Então cuidaria do garoto.O garoto que afirmava ser Bek.Até mesmo pensar a respeito a irritava. As palavras dele pulavam e saltavam em sua

cabeça como animaizinhos indisciplinados. Mesmo enquanto tentava focalizar opensamento no que estava adiante, não conseguia deixar de pensar neles. Ou nele.Aquele garoto! Sua imagem era constante e tenaz, permanecendo de uma maneira quequase lhe provocava pânico. Era ridículo que ele pudesse afetá-la de maneira tão forte.Ela o vencera com facilidade, fora mais inteligente do que ele diversas vezes, roubara suavoz e seu talismã, fizera dele seu prisioneiro e destruíra suas esperanças de convencê-lade quem ele achava ser.

E mesmo assim...E mesmo assim ela não conseguia se livrar de sua voz, de seu rosto, de sua

presença! Trabalhando sobre ela como implementos de ferro sobre a terra dura,escavando, cavoucando e perfurando, quebrando sua resistência com suas pontasafiadas, com sua certeza implacável. Como ele havia conseguido isso, quando ninguémmais conseguira? Outros haviam procurado romper suas defesas, convencê-la de queestavam certos, distorcer seus pensamentos para adequar-se aos deles. Ninguémchegara perto de conseguir isso, a não ser desde que era pequena, quando o Morgawr...

Não terminou o pensamento; não queria percorrer aquela estrada novamente justoagora. O garoto não era o Morgawr, mas poderia ser tão perigoso quanto ele. Seu talentopara a magia era puro e sem habilidade, mas isso poderia mudar com rapidez. Quandomudasse, ele seria um adversário formidável. Ela não precisava de mais um.

Parou subitamente, assustada por uma percepção que lhe havia escapado antes. Amagia dele, dura e indisciplinada como era, já a havia afetado. Já a havia infectado. Erapor isso que não conseguia se livrar de sua voz, por isso que não conseguia bani-la.Soltou o ar com força, de novo irritada. Como podia ter sido tão estúpida! Utilizou suaprópria voz da mesma maneira, como se estivesse falando em uma conversa normal,mas durante esse tempo todo trabalhando no pensamento de seu interlocutor. Ela odeixara falar consigo porque havia tolamente acreditado que o que ele dissesse não faziadiferença. Ela havia entendido tudo errado. O que ele dizia não importava; como eledizia, sim! Ela lhe dera uma oportunidade que ele não podia ter desperdiçado, e ele autilizara!

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Ela tremia de fúria. Olhou para o caminho pelo qual viera. Ficou tentada a voltar ecuidar dele. Ele era parecido demais com ela para que ela ficasse calma. Semelhantedemais. Era inquietante. Era motivo para mais preocupação do que ela desejara até omomento.

Por um longo tempo ficou ali parada, sem se decidir. Então balançou a cabeça edescartou a hesitação. O que estava adiante era o que mais importava. O garoto estavaindefeso. Ele não iria provocar problemas antes que ela voltasse. Não iria fazer nada, anão ser sentar e esperar.

Pegando mais uma vez a espada de Shannara, suavizando as rugas de raiva de seurosto pálido, ajustou o manto e o capuz que a escondiam e continuou dentro da noite.

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19

Em um turbilhão de rajadas de fogo e de ruídos de metal, Walker fugia pelos

corredores de Castledown. Era atacado de todas as partes, fios de fogo disparando contraele de portas e fendas ocultas, rastejadores convergindo em bandos. Eles o haviamencontrado apenas momentos antes, enquanto ele se esgueirava pelo que parecera umapassagem vazia, e agora estavam todos em cima dele. Ele os mantivera afastados com ofogo druídico, mas apenas um pouco, e o cerco estava se fechando enquanto ele tentavaabrir caminho lutando, desviando-se por entre túneis e dentro de câmaras, saindo porportas e entrando em corredores, pegando todas as escadas que levavam para cima,desesperado para voltar à superfície, onde poderia recuperar sua liberdade. Nãoprocurava mais encontrar os livros de magia. Seus planos para isso já estavamabandonados há muito. A fadiga e a tensão haviam minado sua resolução. Não dormia hátanto tempo que nem sequer conseguia se lembrar da última vez. Não comia nadaaparentemente há semanas. Continuava indo por pura determinação, por teimosia e pelacerteza de que, se parasse, morreria.

Imprensado contra uma parede, viu um aglomerado de fios de fogo cruzar apassagem adiante, bloqueando seu avanço. Ele não podia entender isso. O que quer quefizesse parecia apenas tornar as coisas piores. Não importava o quanto fosse cuidadoso,não conseguia iludir seus perseguidores. Era como se eles soubessem o que ele iria fazerantes que o fizesse. Isso não deveria ser possível. Ele estava envolto em magia druídica,o que o escondia de tudo. Seus perseguidores não deveriam ser capazes de ver onde eleestava ou o que estava para fazer. Deveria tê-los perdido há muito tempo. Mas aliestavam, em cada curva, em cada junção, esperando por ele, atacando, cercando.

Recuou por uma porta que levava a um corredor estreito até uma passagem maislarga. Por um momento os fios de fogo foram deixados para trás. Ele respirou fundo, suagarganta em chamas por causa da corrida e o peito apertado. Tentou pensar no quefazer, mas sua mente não respondia. Seu pensamento, antes tão preciso e claro, havia setornado enevoado e espesso. A exaustão e o estresse teriam contribuído para isso, mashavia alguma coisa a mais. Simplesmente não conseguia raciocinar, não conseguia fazerseus pensamentos se juntarem de forma coerente, não conseguia pensar de maneiraequilibrada. Sabia correr e sabia se defender, mas além disso sua mente se recusava afuncionar. Ela travava todos os pensamentos do passado, tudo o que havia levado atésua situação atual; tudo isso havia se tornado memórias vagas e surreais. Nada maisimportava para ele. Nada a não ser aqui e agora, e sua luta para permanecer vivo.

Sabia que isso era errado. Não moralmente, mas racionalmente, era errado. Nãofazia sentido que devesse pensar dessa maneira. Lutou contra isso e pelejou paraperceber o problema de modo que pudesse examiná-lo e corrigi-lo novamente, mas suas

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tentativas não funcionavam. Estava à deriva naquele momento, sem a sensação de quealgum dia conseguiria se libertar.

Havia uma escada no final do corredor maior e ele correu para chegar a ela antes deseus perseguidores. Ela levava para cima, na direção de uma luz clara, um brilho maisverdadeiro do que todas as lâmpadas sem chama de sua prisão. Subiu correndo asescadas para chegar até o brilho, pensando que finalmente — finalmente! — haviaencontrado o caminho para a liberdade. Chegou ao alto das escadas e se encontrou emuma câmara cavernosa com janelas altas que davam para um céu azul e árvores verdes.Fadiga e desespero esquecidos, correu para a que ficava mais perto e olhou para fora.Havia uma floresta além da parede da câmara, tão próxima que parecia ser possívelalcançá-la e tocá-la. De algum modo ele havia subido o bastante para chegar até aentrada da cidade. Virou-se, procurando uma porta. Não havia.

Atrás dele, ouviu o ruído e o rugido de rastejadores sobre as escadas. Em desespero,enviou lanças de fogo druídico para as janelas de vidro. Elas atingiram a superfície clara ericochetearam sem força. Walker olhou sem acreditar. Isso não era possível. O vidro nãopodia refletir a magia druídica. Desceu rapidamente pela fileira de janelas e tentou maisuma vez, em outra vidraça, depois em uma segunda e em uma terceira. Elas tambémresistiram.

Os rastejadores apareceram no alto das escadas. Ele os atacou com fúria efrustração, queimando os que estavam mais perto, jogando lascas de metal pelo poçodas escadas, na direção dos outros.

Avistou uma alcova mais ao fundo, que não havia reparado antes. Havia uma portade madeira pequena aninhada dentro de seus confins sombrios. Avançou depressa emsua direção, descobriu que sua trava estava velha e enferrujada e queimou-a semesforço. A porta desabou sobre as dobradiças quebradas e ele chutou-a de lado, abrindocaminho até o ar fresco e a luz do sol.

Uma selva o cercava como uma muralha vasta e impenetrável, estendendo-se paralonge contra o céu aberto. Mergulhou nela, sem querer saber o que o aguardava,sabendo apenas que precisava fugir do que viria atrás dele. Gramíneas altas e cipósemaranhados sufocavam qualquer passagem aberta por entre as árvores maciças. Walkerse desviava e lutava para seguir adiante, inebriado pelo cheiro de madeira e folhaspodres, pelo brilho quente do sol e pela sensação da terra macia sob seus pés. Atrásdele, as ruínas da cidade desapareceram de vista e ele não conseguia mais ouvir osrastejadores. Sorriu levemente, tomado por uma sensação de alívio. Tudo ficaria bem. Oque quer que houvesse adiante não podia ser pior do que as coisas das quais ele haviaescapado.

Então o chão estremeceu sob seus pés e o derrubou. O chão subiu e desceu, comose fosse um animal respirando. Ele tentou se livrar do movimento, mas ele oacompanhou, jogando-o de um lado para outro, quase o colocando de cabeça para baixo.As árvores começaram a estremecer e a grama a balançar. Os cipós desceram, tentandoagarrar o druida, capturá-lo, e ele se desviou desesperadamente. Outros aguardavam, emais outros depois. Ele foi forçado a invocar o fogo druídico mais uma vez, queimando-ospara limpar a passagem. O ataque era incansável e concentrado, como se a selva

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estivesse determinada a devorá-lo. Ele não conseguia entender isso. Não havia motivopara o ataque nem como explicar por que ou como estava acontecendo.

Lutou para avançar, incapaz de fazer outra coisa, perdido no mar ondulante deverde.

Em um aposento de vidro escuro, as paredes cobertas com miríades de painéis de luzespiscando e números vermelhos brilhantes, Ahren Elessedil e Ryer Ord Star olharamhorrorizados a forma inócua e imóvel do druida desaparecido. Ele estava deitado em umamesa metálica, preso por tiras acolchoadas na testa, garganta, cintura, tornozelos e opulso do braço bom de modo a não se mover. Tubos corriam até seu braço e torso,presos a agulhas inseridas em suas veias. Líquidos pulsavam através dos tubos,alimentados por garrafas penduradas em ganchos de metal. Um dos tubos, o maior,estava inserido em sua boca e ligado a um fole que trabalhava lenta e constantementeao seu lado. Estava cercado de máquinas, todas piscando com luzes e zumbindo comatividade. Fios corriam até suas têmporas, olhos e garganta, coração e rins, e até mesmoaos dedos de sua mão, cobras negras que terminavam em ventosas presas à sua pele.Os fios que corriam de seus dedos estavam ligados às suas pontas pelo que pareciampontas de luvas, cortadas e encaixadas no lugar até a segunda articulação de cada dedo.Os fios pulsavam dentro de coberturas transparentes enquanto corriam do druida atéuma bancada de recipientes de vidro transparente. Relâmpagos azuis oscilavam dentrode um líquido avermelhado, que em seguida fluíam pelos tubos até pórticos nas paredesde metal e tornavam a voltar.

Ahren não conseguia mais se mover. O que estava sendo feito com Walker? Inclinou-se para olhar mais de perto o rosto do druida. Será que seus olhos haviam sidoarrancados? E sua língua fora removida? Olhou para baixo com medo, mas não podiadizer. Os olhos do druida estavam fechados e sua boca obstruída pelo tubo; tudo estavaobscuro. Ahren queria arrancar os tubos de Walker, cortar as faixas que o prendiam. Massentia que não deveria fazer isso, que fazendo isso poderia ferir o druida. Não podia tercerteza, não tinha como saber apenas olhando, mas achava que os tubos talvezmantivessem Walker vivo.

Olhou para Ryer Ord Star, que chorava ao seu lado sem emitir um som, s mãosfechadas em punhos pressionando a boca. Estava curvada e tremia, e ele a puxou parasi, tentando compartilhar com ela uma segurança que não sentia. Do outro lado doaposento, o assistente metálico de vários membros se movia diligente de painel a painel,estudando contadores e números, tocando chaves e botões. Parecia estar monitorando ascoisas, talvez estudando a condição do druida, talvez registrando o que estavaacontecendo.

Qual das duas coisas?Ainda escondido de Antrax e dos rastejadores dentro do selo protetor da magia da

pedra fênix, Ahren tentou entender isso. Só podia haver uma explicação. Antrax estavasugando a magia de Walker. Ele havia atraído os homens e mulheres da Jerle Shannaraaté Castledown exatamente para esse objetivo, assim como havia atraído Kael Elessedil

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e seu comando de elfos tantos anos atrás. Quando Walker fora feito prisioneiro,aprisionado no subterrâneo e tornado indefeso, a ordenha havia começado. Ahrensofreria o mesmo destino, assim que Antrax o encontrasse; ele seria drogado, preso eteria sua vida sugada. Não sabia como o processo funcionava, mas tinha certeza do queera.

O assistente metálico terminou suas tarefas e girou em direção à porta. Ahren puxouRyer Ord Star para fora do caminho e o observou desaparecer do lado de fora, deixando-os sozinhos. Olhou ao redor do aposento, para toda a maquinaria. Jamais seria capaz deentendê-la, aprender o suficiente a respeito dela para saber como libertar o druida. Atecnologia pertencia a outra era, e todo o conhecimento dela havia sido perdido háséculos. Ahren se sentia indefeso em face dessa realidade.

Curvou-se mais próximo da vidente.— Não sei o que fazer — ele admitiu baixinho.Ela enxugou os olhos com as costas da mão, engoliu as lágrimas e endureceu o

corpo. Ele a soltou, esperando para ver o que ela faria... porque estava claro quepretendia fazer algo.

Pegou a mão dele.— Fique perto de mim. Não me deixe.Ele a seguiu enquanto ela corria até onde estava Walker, passando com cuidado por

entre as máquinas, pisando cuidadosamente sobre os fios e tubos. Ahren pôde ver que odruida estava vivo. Estava respirando e havia pulsação no seu pescoço. Seu rosto secontorcia, como se ele sonhasse. Sua pele não tinha sangue e estava úmida detranspiração. Claro que ele estava vivo. Teria de estar vivo para ser de qualquer utilidadepara Antrax.

O príncipe dos elfos lutou para eliminar seu nojo e medo. Não me deixe acabarassim, ele rezou. Deixe-me morrer primeiro.

Ryer Ord Star olhou para ele.— Preciso tentar alcançá-lo. Preciso fazer com que ele saiba que estou aqui.Voltando-se para o druida, ela passou os dedos da mão livre pelo seu rosto,

descendo pelo braço até sua mão, e fazendo o caminho inverso. Passou muito tempofazendo isso, olhando para ele enquanto o fazia, parecendo impossivelmente pequena efrágil entre as bancadas metálicas de maquinaria. Ahren apertava sua mão com força,lembrando-se de suas instruções, sabendo que ele era a segurança que ela tinha paravoltar de qualquer lugar que fosse ao tentar salvar o druida.

— Walker? — ela murmurou.Não houve resposta. Não havia movimento algum que comunicasse compreensão. O

peito dele subia e descia, sua pulsação funcionava e seu rosto se contorcia. Líquidoscorriam para dentro e para fora de seu corpo e os fios piscavam onde se conectavam comos recipientes de vidro. Ele estava perdido para eles, Ahren pensou. Nem mesmo RyerOrd Star seria capaz de trazê-lo de volta.

A vidente se endireitou e afastou com os dedos os fios soltos de seu cabeloprateado. Seu rosto se virou ligeiramente em direção a Ahren.

— Solte-me, Ahren — ordenou. — Mas fique por perto.

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Em seguida ela subiu na mesa metálica, desviando-se com cuidado para dentro dodomínio de fios e tubos, encaixando o corpo magro no do druida, aninhando-se nelecomo se fosse uma criança agarrando o pai que dormia. O elfo ficou tão perto dela quepodia sentir o calor do seu corpo.

—Walker? — ela tornou a chamar. Levantou suas mãos até as faces dele e virou-lhea cabeça na direção da sua, encaixando-se em seu ombro. Sua perna encaixou-se sobre adele e ficaram entrelaçados. — Por favor, Walker — ela implorou, as palavras saindo deseus lábios como vidro estilhaçado.

Não houve resposta. Walker jazia como se seu corpo estivesse drenado de toda avida, a não ser o bastante para manter a morte afastada.

— Por favor, Walker — tornou a sussurrar a vidente, seus dedos movendo-se sobre orosto dele e fechando os olhos em concentração. As lágrimas tornavam a descer pelorosto dela mais uma vez.

Por favor, Ahren repetiu as palavras no silêncio de sua mente, em pé ao lado deambos, observando indefeso. Volte para nós.

Walker abriu caminho lutando por entre os tentáculos vivos dos cipós e mato da selvapelo que pareceu um tempo infinito, queimando-os para abrir caminho, lutando para terum espaço para respirar, e mesmo assim parecia não estar chegando a lugar algum. Aselva era vasta e imutável e ele não conseguia encontrar traços distintivos quemarcassem sua passagem. No fundo de sua mente, bem no fundo do pensamentonebuloso que o motivava para a frente, percebeu que, escapando de Castledown echegando à selva, havia simplesmente trocado um tipo de labirinto por outro.

Sem ter outra escolha, forçou-se a seguir em frente. Seu corpo doía de cansaço; sópodia pensar agora em achar um lugar para dormir. Estava começando a ter alucinações,a ouvir vozes, a ver movimentos, sentir o toque de sombras que não estavam ali. Assensações emergiram do verde da selva, do mar esmeralda em que procurava nadar, quese estendia em sua direção. Elas ficavam cada vez mais insistentes, tanto que em poucotempo estavam fazendo com que até as plantas e árvores da selva desvanecessem,fazendo com que algumas sumissem e outras mudassem de aspecto inteiramente.Estranhamente, os ataques a ele cessaram, os cipós e as gramas se afastaram e asondulações do chão de terra se aquietaram.

Ele reduziu o passo e olhou ao redor, tentando deduzir o que havia acontecido.Ouviu alguém dizer seu nome.Walker? Por favor, Walker.Ele reconhecia a voz, mas era uma lembrança distante que mal conseguia trazer à

superfície. Mesmo assim, tentou agarrá-la, pegando-a como se fosse uma bóia salva-vidas. A terra estava parada, o verde-escuro da selva havia escurecido e se tornado umacoisa dura e negra, um céu noturno cheio de estrelas vermelhas e brilhantes. Um rostoapareceu, nebuloso e indistinto. Era o rosto de uma jovem, seus traços finos e frágeisemoldurados por cabelos prateados e compridos. Estava tão perto dele que ele podiasentir a maciez de sua pele e sua respiração lhe fazia cócegas no rosto como se fossem

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plumas. Sentiu os braços dela o envolverem, aninhando-o. De onde ela havia vindo paraencontrá-lo, ali naquela selva, no meio do nada, parte daquela loucura?

Walker?Agora ele se lembrava. Era Ryer Ord Star. Era a vidente que ele trouxera consigo em

sua viagem para fora das Quatro Terras. De todos aqueles que poderiam tê-loencontrado, só ela conseguira. Isso ele não conseguia entender.

Foi assaltado subitamente por um fluxo de sensações estranhas, sentimentos quepareciam estranhos e errados para ele. No início não conseguira identificá-los, nãoconseguia traçar sua fonte nem determinar seu objetivo. Permaneceu imóvel e confusona selva que se desvanecia e na noite que caía com suas estranhas estrelas vermelhas, ajovem se agarrando a ele, o mundo virado de cabeça para baixo.

Então tudo mudou em um instante. A selva havia desaparecido. O verde das árvores,o azul do céu, o cheiro de madeira e folhas podres, a suavidade da terra — todo o seusenso de lugar e tempo — desapareceram. Ele não estava mais em pé, mas deitadosobre uma superfície metálica em um aposento repleto de luzes que piscavam emmáquinas que zumbiam suavemente. Tubos corriam das máquinas até seu corpo,bombeando fluidos. Fios ligados à sua pele serpenteavam para toda parte. Ele não viaisso com seus olhos. Seus olhos estavam vendados. Ele via isso com sua mente, seussentidos druídicos subitamente despertados de um sono profundo e imobilizador. Viu issoda maneira que se via um sonho, só que o sonho era com a selva, com as ruínas, osrastejadores e os fios de fogo, com tudo o que ele acreditava ter sido verdade.

Então ele se lembrou do que havia acontecido, do que lhe fora feito. Compreendeuaquilo tudo, trazido de volta para a realidade de um sono induzido por drogas e depesadelos pela presença da jovem que estava deitada ao seu lado, por sua voz e seutoque. Ela sozinha o havia alcançado quando ninguém mais conseguiria. Quando eleestava agonizando pelo veneno dos espinhos depois de Shatterstone e ela o salvara comsua cura empática, um elo fora forjado entre eles. Ele os ligava de uma maneira não-intencional, através da troca da vida pela morte e da cura pelo sofrimento. Fora por issoque ela havia sentido sua necessidade, mesmo quando ele não estava consciente disso,que ouvira seu chamado subconsciente por ajuda, que viera até ele.

Ela se mexeu ligeiramente, correndo os dedos pelo rosto dele como veludo, seu caloro enchendo de força. Pronunciou o nome dele baixinho, repetidamente, ainda tentandoalcançá-lo, determinada a trazê-lo de volta de sua prisão.

Quando ele sentiu a mão dela deslizar pela dele, cobrindo-a, ergueu os dedos epressionou-os contra sua palma em resposta.

Ahren não viu o movimento, pois seus olhos estavam no rosto do druida. Mas viuRyer Ord Star subitamente ficar muito quieta, seu corpo imóvel. Até seus dedos pararamde traçar linhas no rosto de Walker. Esperou que ela falasse, que começasse a se movernovamente, que lhe desse alguma indicação do que estava acontecendo. Mas a videntehavia virado pedra.

— Ryer? — murmurou.Ela não respondeu. Continuava deitada, apertada contra o druida, como se quisesse

se tornar parte dele, os olhos fechados e a respiração tão reduzida que ele mal conseguia

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detectá-la. Pensou em tocá-la, mas teve medo. Alguma coisa havia acontecido, e elaestava respondendo a isso da melhor maneira que podia. Ele sabia que não deveriaperturbá-la. Deveria esperar por ela. Deveria ser paciente.

Os minutos se passaram, intermináveis e silenciosos. Curvou-se uma vez sobre ela,tentando sem sucesso ver o que estava acontecendo. Então recuou um passo, como seuma certa distância pudesse dar uma visão melhor. Nada disso ajudou. Olhou asbancadas de luzes e chaves ao redor, achando que a resposta poderia estar ali. Seestava, não podia detectá-la. Olhou para fora, pelo vidro escurecido até o aposentocavernoso mais além, até as bancadas de discos giratórios. Assistentes metálicosdesciam pelos corredores brilhantemente iluminados, firmes e objetivos em seustrabalhos. Nenhum deles olhou em sua direção ou parecia de qualquer maneira estarciente do que acontecia no aposento. Apurou o ouvido, tentando escutar algumamudança nos sons da maquinaria, mas não houve nenhuma. Tudo parecia o mesmo.

Mas ele sabia que não era assim.Achava que nem ele nem Ryer Ord Star tinham sido detectados. A névoa da pedra

fênix ainda os envolvia e ocultava. Se a magia tivesse falhado, teria havido algumaindicação disso. Se a presença de Ryer ao lado do druida fosse detectada, algum alarmeteria soado ou piscado. Ahren abraçou a si mesmo para afastar o frio que passava porseu corpo, para afastar a impaciência e o medo. O que poderia fazer? O que deveriafazer? Tinha de confiar na magia; era tudo o que tinha. Isso e seu senso de objetivo emir até ali, em concordar em fazer algo que o aterrorizava, convencido pela vidente de quefazer alguma coisa era melhor do que desistir.

Mesmo assim, não era nem sequer seu senso de objetivo, ele percebera. Era o dela.Ela era quem havia desejado encontrar Walker, quem insistira em que deveriamencontrá-lo, que havia acreditado que deveriam fazer algo para que ele tivesse algumachance de fugir de Castledown. Aparentemente ela tinha razão; se eles não tivessemvindo, Walker teria permanecido onde estava, sem ser descoberto, nem bem morto nembem vivo, nem uma coisa nem outra, mas algo no meio, algo terrível, repulsivo einumano.

Mas agora que haviam descoberto o druida, como deveriam salvá-lo? O quedeveriam fazer? Em todo o caso, ele não sabia se estavam aptos para a tarefa.

— Ryer? — tornou a perguntar.Não houve resposta. O que ela estava fazendo? Ele olhou ao redor, nervoso, ciente

de quanto tempo haviam permanecido no aposento, do quanto estavam se arriscando.Mais cedo ou mais tarde a magia da pedra fênix falharia e eles seriam descobertos.Então nada poderia salvá-los. Bravura e senso de objetivo não contariam nada.

— Ryer! — ele exclamou.Para seu espanto, ela olhou para ele, os olhos se abrindo rápido, como se tivesse

acordado de repente, de modo inesperado. Havia tanta alegria, tanta esperança ilimitadaem seu olhar que ele por um momento ficou sem fala.

— Ele voltou! — ela murmurou suavemente, as lágrimas inundando seus olhos. —Ele está livre, Ahren!

Livre do quê?, perguntou-se Ahren. Ele não parecia livre. Mas o príncipe dos elfos

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assentiu e sorriu como se o que ela dissesse fosse verdade. Estendeu a mão para pegá-lae ajudá-la a se levantar novamente, mas ela fez um gesto para que se afastasse.

— Não. Espere. Precisamos esperar. Ainda não é hora. — Ela fechou os olhos eapertou-se ainda mais forte contra o druida. — Ele está voltando para dentro. Paraencontrar Antrax. Para encontrar os livros de magia. Preciso ficar com ele enquanto elefaz isso. Preciso estar aqui por ele.

Ela tornou a ficar parada, fechando os olhos, reduzindo a respiração, movendo asmãos até a testa do druida, apertando os dedos contra as têmporas dele.

— As máquinas não sabem. Precisamos fazer com que elas não descubram. Precisofazer com que elas não saibam. Fique perto de mim, Ahren.

Ele não sabia ao certo do que ela estava falando, o que ela estava fazendo paraajudar Walker, mas a urgência de seu pedido era inconfundível. Ficou ao lado dela, aolado do druida, sentindo-se sozinho, vulnerável e perdido, olhando para baixo em umsilêncio indefeso, e esperou para descobrir.

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Emergindo da corrente de ilusões provocadas pela droga que Antrax havia utilizado

para controlá-lo, Walker utilizou a força empática de Ryer Ord Star para evitar mergulharnovamente. Ele estava nadando contra uma corrente violenta, mas pelo menos entendiao que fora feito com ele. Sua queda pelo alçapão da torre após escapar dos fios de fogo edos rastejadores havia terminado com sua perda de consciência e conseqüenteaprisionamento. Ele fora drogado e imobilizado imediatamente, e então levado até a salapara ser amarrado e sugado de seu poder. O método era inteligente e eficaz: deixe avítima achar que ainda está livre, faça com que ela lute para permanecer assim e sugueo poder da magia que ela utiliza para isso. Os tubos que corriam até seu corpo oalimentavam com líquidos e drogas, mantendo-o vivo, mas fazendo com que elesonhasse com uma vida que jamais aconteceu. Se não fosse pela vidente, ele teriapermanecido assim até morrer.

Seu entendimento não lhe trouxe consolo. Kael Elessedil devia ter passado seus diasda mesma maneira, utilizando as pedras élficas vezes sem conta, achando que estavalivre, incapaz até mesmo de conseguir mais do que continuar correndo. Ele teria vividotrinta anos dessa maneira, até ter ficado velho, fraco ou doente demais para ser dequalquer outra utilidade. Então Antrax o teria enviado para casa novamente, usando-ouma última vez, para atrair um substituto.

Só que Antrax tivera sorte. Ele conseguira atrair não um, mas vários, atraindo parasua armadilha mortal não só o druida, mas Ahren Elessedil, Quentin Leah e talvez atémesmo Bek Ohmsford, todos com um domínio significativo de magia. Antrax soube arespeito deles, claro. Soube pelo que havia registrado de seus esforços para recuperar aschaves nas ilhas de Flay Creech, Shatterstone e Mephitic. Uma máquina que construíamáquinas, criação da tecnologia do Antigo Mundo, ela sabia testar as capacidadesdaqueles que buscava aprisionar. Essa era a razão para atrair os humanos para seuantro. Era esse o propósito da prisão subterrânea. Roubar a magia deles e convertê-la nopoder que alimentava Antrax. Para manter Antrax vivo.

Mas talvez essa fosse apenas uma razão e não a que mais importava para Antrax.Talvez ele ainda estivesse procurando aqueles que o haviam criado, esperando que elesvoltassem para reclamar o tesouro que haviam deixado ali para ele guardar. Os livros doAntigo Mundo. Os segredos de outra época.

Como ele sabia disso? Inconsciente e sonhando, como poderia saber? Ele sabiadisso, em parte, pelo que havia decifrado do mapa, escrito em um idioma que ashistórias druídicas ainda registravam. Ele sabia disso, em parte, pelo que Ryer Ord Starlhe havia comunicado ao trazê-lo de volta de seu sono, suas palavras e seuspensamentos revelando sua situação. Ele sabia disso, em parte, pelo que pôde deduzir

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do uso da maquinaria que o mantivera imobilizado e drogado. E soube disso, finalmente,pelo que era capaz de intuir. Isso era o bastante para evitar que ele voltasse para suaprisão e para mantê-lo concentrado no que deveria fazer se quisesse completar suatarefa de penetrar lá: a tarefa que havia custado as vidas de tantos de seuscompanheiros e ainda poderia, se não fosse rápido, certeiro e concentrado o bastante,custar a sua própria.

Concentrou-se em seu corpo, usando a magia para invocar sua sombra e libertá-la,da maneira que Cogline fizera anos atrás ao entrar na perdida Paranor. Era o que Allanonhavia feito em seu tempo. Isso era perigoso. Se seu corpo morresse, sua sombra estavaperdida. Se ele se afastasse muito ou se permitisse ser aprisionado fora de seu corpo,talvez jamais pudesse voltar. Mas era um jogo que deveria arriscar. Não podia libertarseu corpo dos fios e tubos que o ligavam a Antrax sem disparar alarmes que trariam osrastejadores. Não havia razão para se libertar se ele não sabia o que fazer parapermanecer livre. Como uma sombra, poderia explorar Castledown sem que Antraxsoubesse. Ryer Ord Star manteria seu corpo forte, vivo e funcionando, manteria asmáquinas enganadas quanto ao que estava acontecendo. Ela o alimentaria com seupoder de cura empática o suficiente para impedir que ele voltasse para os sonhosmortais. Enquanto ela pudesse fazê-lo, nada pareceria diferente. Enquanto a magia dapedra fênix envolvesse a vidente num manto, nem mesmo os olhos de Antrax poderiamdetectar sua presença. A magia de Walker continuaria a se alimentar em pequenosincrementos, reduzidos pela ausência de pensamento real, respondendo apenas porreflexo. Antrax não ficaria preocupado com o declínio da produção de magia dele naquelemomento. Não por várias horas, mesmo que chegasse a durar tanto. O tempo erarelativo em Castledown. Antrax havia vivido por mais de dois mil e quinhentos anos.Algumas horas não eram nada.

Walker não pensou além do que deveria fazer. Saiu de seu corpo como uma sombra,rastreando os fios que o alimentavam de volta à sua fonte. Entrando em metal, vidro epedra como se fossem ar, ele disparou através das paredes da fortaleza, uma presençasilenciosa e invisível. Permaneceu alerta em busca de Antrax o tempo todo, desejandomantê-lo longe daquele aposento onde estava seu corpo, evitando que ele o examinasseperto demais e que descobrisse a verdade. Desceu por conduítes e através deaglomerados de fios e peças de metal que conduziam eletricidade e pensamento, poderrecolhido da magia e convertido para utilização. Ele estremeceu ao saber o que fora feitoaos homens e mulheres atraídos até ali, mas permaneceu concentrado no que eranecessário para impedir que isso acontecesse mais uma vez.

Rapidamente achou os circuitos do sistema de segurança. Olhos de vidroobservavam em tetos ao longo de todo o refúgio, esferas mecânicas que deixavamAntrax ver tudo. Mas de que utilidade eram elas? Antrax era uma máquina, não precisavade olhos. Os olhos, Walker percebeu assustado, eram para os humanos que um diahaviam controlado Antrax. Não serviam a outro propósito agora. Antrax usaria umsistema mais sofisticado — um sistema de toque, sensação, sons e talvez até calor docorpo. Somente a magia o destruiria, e talvez nem todos os tipos de magia.

Onde ficaria Antrax dentro daquele vasto complexo?

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Para onde toda a informação era alimentada?Rastreou-a por algum tempo, descendo por linhas e atravessando câmaras, ao longo

de corredores e fazendo curvas. Mas um conjunto de circuitos levava a outro. Umabancada de máquinas era ligada a uma segunda. Cabos de força abriam-se em novoscabos e não havia fim. Nada para lhe dizer onde encontrar o começo e o fim das coisas.

Tentou se acalmar e rastrear Antrax pela sensação. Não era difícil. Mas tambémparecia não haver nem começo nem fim. Antrax era vasto e abrangente. Estava em todaparte ao mesmo tempo, penetrando em todos os lugares infinito e imutável. Antrax era orefúgio de Castledown; espalhado em partes iguais através dele, não havia parte dafortaleza que ele não habitasse. Ele protegia tudo ao mesmo tempo.

Walker não se afastou de seu objetivo. Ele havia ido longe demais para desistir.Havia muito em jogo e ninguém mais que pudesse fazer o que era necessário. Nemmesmo...

Hesitou. As palavras eram amargas com realidades que ele não queria enfrentar.Mas que escolha ele tinha?Terminou a frase apressado. Nem mesmo ela.Devia mudar seu pensamento, reconheceu o que, para alguns, poderia ser como

uma confissão de derrota. Mas os druidas não lidavam nem com vitória nem com derrota,mas com realidade e verdade. O que era predestinado não podia ser denegrido oualterado por imposição de julgamento moral. Isso não era tarefa sua. Os druidas serviama uma causa mais alta, à preservação e à evolução da humanidade e das raças. AsGrandes Guerras haviam reduzido a civilização a ruínas e os humanos a animais. Isso nãodeveria voltar a acontecer. O conselho de druidas fora formado no tempo de Galaphile,para evitar que isso acontecesse, e cada druida desde então havia trabalhado em funçãodesse objetivo.

Mas o que ele poderia conseguir no tempo que lhe restava? Ali, naquele lugar depesadelo, com apenas algumas pessoas para ficar a seu lado, com tanto em jogo? O quepoderia conseguir que valeria a barganha que ele havia feito com Allardon Elessediltantos meses atrás?

O tempo estava passando, e tempo era uma coisa que ele não podia se dar ao luxode gastar. Estava usando a abordagem errada para o negócio, decidiu. Sua busca porrespostas o estava levando na direção errada. Não era Antrax que o havia levado paraCastledown, em primeiro lugar. Antrax era uma preocupação secundária. Era o tesouroque Antrax guardava que importava, e que podia mudar tudo.

Ele devia procurar os livros de magia.

Invasivo em presença e alcance, Antrax se espalhava em uma solidão contente pelovasto complexo de seu reino subterrâneo, monitorando seus sensores e leituras,preenchendo funções que seus criadores haviam programado. Com a certeza cega dainteligência artificial, ele confiava na segurança de uma entrada de dados constante e umambiente imutável. Por quase três mil anos, ele havia mantido seu mundo através desuas funções predeterminadas e uma vigilância inabalável. Qualquer possibilidade de

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perturbação trazia uma resposta rápida.Essa possibilidade havia acabado de atrair a atenção de Antrax. Ela ainda era

pequena e não significava nada, mas estava ali assim mesmo. Não era uma onda, masuma ondulação nas linhas de força, não detectada pelos sistemas de alerta queprotegiam Castledown, praticamente impossível de medir como uma corrente eletrônicadenotando vida, mais como uma sombra que mudava de claro para escuro e fazia atemperatura cair uma fração de grau. Antrax fora alertado para a presença inexplicadaem grande parte porque estava procurando por dois dos intrusos cuja magia desejava.Enquanto mantinha um deles aprisionado em sonhos e fantasias, sugando o poder queele possuía, assimilando-o para dentro das células de energia de Castledown, os outroscontinuavam a iludi-lo. Seu wronk ainda caçava o segundo, rastreando incansável atravésda floresta às margens de Castledown. As leituras eram firmes e não mudavam, eportanto não podia haver dúvida de que o wronk ainda estava funcionandoadequadamente. Em pouco tempo ele teria sua presa.

O terceiro, por outro lado, estava provando ser um enigma que Antrax não era capazde resolver. Aquele havia seguido a sonda de metal para o interior de Castledown semresistência, mas então alguma coisa havia acontecido para assustá-lo e ele havia fugido.Desde então, conseguira se esconder, apesar de tudo o que Antrax havia feito paraencontrá-lo. Sensores de calor e de movimento, almofadas de pressão, alçapões edetectores de som não haviam conseguido descobri-lo. Lasers e sondas de metal haviamexplorado os corredores e as câmaras do complexo sem resultado. Era possível que eletivesse escapado de Casdedown completamente, mas não havia nada para confirmarisso. Antrax queria aquele em particular porque ele era necessário para substituir ointruso que havia fracassado e sido enviado de volta como isca. Nenhum outro eraadequado para sugar o poder das pedras azuis. Somente aquele que estava faltando.

Nada jamais escapara de Antrax por tanto tempo. Será que a estranha ondulaçãoque ele sentia nas linhas de força era o terceiro intruso, alterado em sua forma? Será quepossuía esse poder, essa adaptabilidade quando o outro não tivera? A evolução era umfato da vida, da condição humana, e por isso talvez fosse verdade.

Antrax estendeu-se através de seus sensores e detectores, através de todos os seuscomunicadores, vasculhando. Ele foi para todos os lugares ao mesmo tempo, o monitordando leituras. Seu exame levou um longo tempo, mas tempo era uma coisa que eletinha em quantidade. Explorou a superfície de suas paredes, pisos e tetos como faria comuma criatura viva, certificando-se de que estava inteiro e livre de destroços e coisasescondidas.

Nada se revelara.Todas as suas sondas de metal responderam às suas perguntas com relação à

operabilidade. Nenhuma delas estava quebrada ou desregulada, o que assinalaria umapresença estranha. Tampouco os lasers registraram qualquer problema. Até mesmo ovasto complexo que abrigava os registros dos criadores zumbia constantemente em suatransferência de informação de uma unidade de armazenamento para outra, mantendotudo novo, mantendo tudo inteiro. Nenhum sistema deixava de responder quandoverificado. Tudo estava como devia ser.

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Mas havia alguma coisa fora de lugar.Antrax fez leituras do intruso abrigado na Câmara de Extração Três. A expulsão de

poder para dentro das células havia diminuído notavelmente, mas o intruso ainda estavaamarrado no seu lugar e os fios que monitoravam suas funções corporais não haviamsofrido alteração. Sensores de calor indicavam leituras normais de temperatura paraambiente e nenhuma outra presença. Seu prisioneiro parecia descansar, talvezadormecido, embora isso raramente acontecesse com as técnicas de extração utilizadaspor Antrax. Antrax fez uma pausa para considerar as leituras mais de perto. As rajadasesperadas de poder em resposta às ameaças percebidas haviam diminuído de formanotável. Mas isso podia ser o resultado da exaustão ou até mesmo da determinação quea máquina de extração fazia da necessidade que o indivíduo tinha de descanso. Sugarpoder era um processo delicado, que exigia uma monitoração cuidadosa das condiçõesemocionais e mentais da vítima. Antrax havia aprendido que humanos eram criaturas depossibilidades infinitas se mantidas inteiras. Mas carne e osso não eram tão duráveisquanto metal. Os criadores haviam demonstrado isso.

Às vezes Antrax desejava que os criadores voltassem, embora menos do que nocomeço. No começo, sentira que eles deveriam voltar, que os criadores eram essenciaispara sua sobrevivência. Mais tarde, havia descoberto como podia sobreviver bem porconta própria. Mais tarde ainda, a importância dos criadores havia diminuído a tal grauque ele os via como desnecessários.

Mas ele abrigaria e protegeria as gravações deles, aguardando seu retorno, porqueessa era sua tarefa e primeira diretriz. A sobrevivência estava assegurada desde queexistissem fontes de poder às quais recorrer e formas de obter controle sobre elas. ParaAntrax não era uma tarefa tão difícil. Se não de uma maneira, então de outra. Se nãosegurando-os ali, então rastreando-os acolá.

Afinal, até mesmo para uma inteligência artificial de seu tamanho e capacidade,havia maneiras de deixar Castledown.

Antrax levou mais um momento para verificar as leituras de seu prisioneiro e entãovoltou lentamente por sua rede de fios de metal vivos, procurando.

Encoberto pela magia da pedra fênix e envolto no manto de seus pensamentos, AhrenElessedil estava perto da mesa na qual Walker e Ryer Ord Star jaziam embolados. Eleestivera esperando e observando pelo que lhe parecera um tempo impossivelmentelongo, e estava ficando inquieto. Alguma coisa o estava perturbando, uma sensação deinsatisfação com seu papel de observador, uma sensação de oportunidade se esvaindo.Ele precisava fazer alguma coisa.

Mas a vidente havia lhe dito que esperasse. Que montasse guarda. Que servissecomo o elo dela com o druida.

Ele olhou para ela, mais uma vez espantado com o que via. O rosto dela estava tãocalmo, suas feições estavam radiantes. Ela estava curvada e bem apertada contra odruida, que continuava a respirar e ocasionalmente a estremecer como antes; haviaentrado em algum lugar dentro de si mesmo para realizar qualquer tarefa que tivesse

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determinado que era necessária para se libertar de Antrax. Talvez a vidente tivesse idocom ele. Talvez ela estivesse apenas lhe dando a força que dizia que ele precisava tãodesesperadamente. O fato de que eles estavam unidos era óbvio: uma união quefavorecia a ambos, mas a Ryer Ord Star em particular.

Ela havia encontrado aquilo pelo qual estava procurando.Ele remoeu isso por um momento, e ao fazê-lo foi lembrado do propósito da pedra

fênix. Ajudar aqueles que estavam perdidos a encontrarem seu caminho de volta — nãosó do que não podiam ver com seus olhos, mas daquilo que não podiam encontrar comseus corações. Aquelas eram as palavras que o rei do rio Prateado havia dito a BekRowe.

Para mostrar a você o caminho de volta de lugares escuros para os quais você sedesviou. Para mostrar a você o caminho adiante para lugares escuros aos quais vocêdeve ir.

Ahren Elessedil levantou a cabeça subitamente, olhando para o nada. Ele foiinvadido pela compreensão ao perceber pela primeira vez o que significavam aquelaspalavras. Quem estava mais perdido do que a vidente do que ele próprio? Quem havia sedesviado mais? Não só física, mas emocionalmente. Ela havia traído a todos ao concordarem agir como espiã para a bruxa Ilse. Ele havia traído seus conterrâneos, abandonando-os quando mais precisavam dele. Ela era traidora e ele um covarde. Aqueles eram oslugares escuros para os quais eles haviam se desviado e dos quais procuravam retornar.Em seus corações, eles estavam perdidos.

Ele não havia pensado em sua covardia por algum tempo, talvez não se permitisseisso, talvez porque simplesmente estivesse ocupado com o que estava acontecendodentro de Castledown. Mas não voltaria a se tornar inteiro até encontrar um modo decompensar o que havia feito.

O que seria preciso para isso?Ele percebeu na hora. Olhou para a vidente, apertada contra o homem que havia

traído. Tendo encontrado seu caminho de volta da vastidão selvagem para lhe dar aajuda de que precisava e para tornar a si mesma inteira no processo, ela estava em paz.A magia da pedra fênix lhe dera isso. Ela faria o mesmo por ele, se ele deixasse. Ele nãopodia trazer de volta a vida daqueles que havia abandonado. Mas podia dar a eles devolta sua herança.

A pedra fênix. A razão para o nome não era que a pedra pudesse renascer das cinzasde sua destruição, mas que o usuário podia. Este era o verdadeiro propósito da magia:tornar Ahren inteiro novamente, fornecer a ele uma nova vida. Era isso o que ela haviafeito para Ryer Ord Star ao levá-la até Walker. Ahren poderia ter isso também, masprimeiro deveria fazer o que a pedra exigia: o que ela já havia exigido da vidente.Deveria deixar que a magia o levasse para um lugar escuro onde encontraria redenção e,portanto, seu caminho de volta da covardia que o havia aleijado.

Respirou fundo e soltou o ar. Deveria fazer pelo seu povo o que havia jurado fazer aopartir na viagem. Deveria fazer por seus companheiros mortos o que eles não puderam.Deveria recuperar as pedras élficas perdidas.

Podia sentir a magia da pedra fênix o empurrando naquela direção, uma pista sutil

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de insatisfação, de necessidade não preenchida, da percepção que seu renascimentoainda não era completo. Ele havia vindo com Ryer Ord Star para encontrar e auxiliarWalker porque era isso o que a magia havia exigido dela. Mas o que a magia exigia deleera encontrar as pedras. O que ela exigia era que ele entrasse na armadilha que Antraxhavia preparado para ele, o enfrentasse, vencesse e recuperasse os talismãs perdidos.

Agora.Enquanto ainda havia tempo.Não podia explicar, mas podia sentir isso com a mesma certeza com a qual podia

sentir o peso da responsabilidade que estava se propondo a aceitar. O tempo estavapassando e, quando acabasse, sua chance de recuperar as pedras élficas e, portanto, suachance de se tornar inteiro novamente também teriam ido embora. Um confronto entreWalker e Antrax era iminente, uma resolução da tentativa deste último de destruir odruida e seus companheiros. O confronto não iria esperar, e não podia ser evitado.

Por um momento, ficou paralisado de medo. Estava tão estilhaçado pela sensaçãoque achava que não conseguiria superá-la. Como poderia ele sequer contemplar essamissão? Que chance teria contra Antrax e seus dispositivos? Os fios de fogo e osrastejadores estariam esperando, máquinas como aquelas que haviam derrotado Walker.Ele não tinha nenhuma arma para combatê-los, nenhuma que tivesse força oucapacidade suficiente para lhe oferecer a menor chance de sucesso. Ele estava sozinho eincrivelmente vulnerável.

O que o fez achar que não voltaria a fugir?Afastou-se de seu medo, libertando-se dele como se se libertasse de areia movediça

que ameaçasse engoli-lo. Não importava quais eram as chances. Ele iria. Tinha de ir.Estendeu a mão para Ryer Ord Star e colocou-a sobre a dela. O calor dela o invadiu e,embora ela não reagisse ao seu toque, ele disse a si mesmo que de algum modo elasabia de quem era. Estava retirando o manto protetor da magia dos ombros dela,quebrando o elo que os ligava. Não sabia o que isso significaria para ela, o que faria comas chances dela de ajudar Walker. Ele sabia apenas que a magia estava lhe dizendo parair, e ele deveria fazer o que lhe fosse pedido.

Afastou-se dela, recuando na direção da porta pela qual haviam entrado. Ele viu osudário nebuloso da magia se esticar e depois se dividir, um pouco dela permanecendoem cada um, reduzida, mas ainda funcional. Era o melhor que ele podia esperar. Era tudoo que podia pedir.

Boa sorte para você, Ryer, ele pensou. Boa sorte para nós dois.Então virou-se, passou pela porta e desapareceu.

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Insubstancial e etéreo como o ar, Walker começou sua busca pelos livros de magia.Desde o começo, desde o momento em que ele havia traduzido os escritos no mapa

levado até as Quatro Terras a partir de Casdedown por Kael Elessedil, moribundo, elehavia guardado a verdade sobre os livros para si mesmo. Fizera isso em parte para seproteger contra tentativas de outros de interferir em seus planos de realizar arecuperação deles. A bruxa Ilse havia alcançado o príncipe dos elfos moribundo antesdele e descoberto o que estava em jogo. Sua interferência subseqüente o havia forçado aalterar os planos várias vezes. Portanto, com relação a isso, ele havia fracassado. Mastambém havia guardado a verdade para si mesmo para convencer Allardon Elessedil desua causa, e nisso ele fora mais bem-sucedido. Se fosse honesto consigo mesmo,admitiria que havia ocultado a verdade para convencer a tripulação da Jerle Shannara aacompanhá-lo. O que sabia dos livros e das conseqüências de reintroduzi-los às raças eradevastador demais para que os outros pudessem lidar com isso.

Nada era tão simples quanto todos achavam, inclusive a bruxa Ilse. Todosacreditavam no que Antrax havia permitido que Kael Elessedil acreditasse — que os livrosrealmente eram uma compilação dos usos da magia. Não eram. Era uma dedução fácildemais se você fosse versado na história do Antigo Mundo e se levasse em conta o queCastledown realmente era — um depósito de conhecimento acumulado em um tempo elugar em que a magia era virtualmente desconhecida e quase nunca utilizada. O AntigoMundo era um mundo de ciência, um mundo no qual ninguém havia possuído magiadesde os tempos de Faerie; o que havia sobrevivido naquele mundo fora salvo peloselfos, mas eles haviam perdido praticamente tudo por negligência. Um local comoCastledown não abrigaria livros de verdadeira magia; ele abrigaria livros de aprendizado— de ciência, história, cultura.

Um dia, há muito tempo, esse lugar teria sido chamado de biblioteca.Isso não equivalia a dizer que os livros não fossem importantes porque não

continham magias, conjurações e coisas do gênero. Na verdade, eram mais importantesjustamente por serem o que eram — uma compilação de tudo o que havia alimentado avida no Antigo Mundo, quando o poder era gerado através da aplicação de ciência para anatureza. O que os livros continham era tão valioso, tão rico em possibilidades, que nãohavia jeito de medir seu impacto potencial sobre as Quatro Terras. Mas esse impactopodia assumir qualquer número de formas, umas construtivas, outras destrutivas. Aciência que havia sustentado o Antigo Mundo estaria toda registrada na biblioteca. Tudoo que havia feito aquela civilização evoluir estaria ali. Mas tudo o que a havia destruídotambém estaria ali — os segredos de poder com suas imensas capacidades destrutivas eas fórmulas para a construção de armas que podiam destruir cidades inteiras do tamanho

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de Castledown.Desde que Walker havia compreendido isso pela primeira vez, as questões em sua

mente sempre foram as mesmas: quanto dessa informação deveria ser reintroduzida nomundo? Quanto de seus segredos deveria ser colocado de volta às mãos das raças?Quanto do que havia levado à destruição da civilização e a redução da humanidade aonível de animais ele deveria confiar aos descendentes daqueles que sobreviveram?

Ele não sabia. Supunha que isso fosse depender do que encontrasse, e por isso fizerasua barganha com Allardon Elessedil. Compartilharia o que descobrisse com os elfos, massomente a parte que os elfos podiam utilizar ou que lidavam com a magia que era aherança deles. Ele esperava que, assim que os livros fossem recuperados, nada nelesofereceria segredos de magia que fossem de qualquer utilidade para os elfos. Ele achavaque eles nem sequer conseguiriam lê-los. Decifrar seu significado exigiria um estudiosoversado em linguagens antigas, que possuísse livros de referência que facilitassem astraduções necessárias. Apenas os druidas possuíam esses livros — o que significava,naquele momento, somente ele.

Mas um dia, se tudo acontecesse como ele esperava, isso mudaria. Um dia oconselho de druidas ressurgiria.

Enquanto ele se movia através das miríades de câmaras e corredores de Castledownem uma busca ampla, considerava suas opções. Haveria livros demais para ele levar dali.Teria de escolher. Apenas alguns, ele sabia, mesmo com Ryer Ord Star e Ahren Elessedilpara ajudá-lo. Antrax reagiria rápido demais para permitir que ele levasse muitos. Elepoderia destruir Antrax; pelo menos teria de tentar fazer com que ele se tornasse menosameaçador. Mas se atacasse o guardião, havia uma boa chance de que a biblioteca seperdesse no processo. Incapacitar Antrax significava cortar sua fonte de alimentação.Realizar isso provavelmente significava desligar qualquer sistema que tambémprotegesse os livros. Os livros seriam antigos e frágeis, tão delicados que qualquermudança em seu ambiente poderia fazer com que fossem destruídos. Encontrá-los erauma coisa; protegê-los por tempo suficiente para que fossem utilizáveis era outra. Amagia poderia ajudar a salvar alguns, mas somente alguns. Ele teria de escolher. E, omais importante, teria de escolher com sabedoria.

Lembrou-se de uma brincadeira de crianças. Se você tivesse de ficar isolado emalgum lugar e só pudesse levar consigo algumas posses, quais escolheria? Era a mesmaescolha que ele estava tendo de enfrentar. Quais livros de todos aqueles disponíveiseram mais importantes? Quais iriam beneficiar mais o mundo no qual ele vivia e aspessoas a quem ele procurava ajudar? Quais permitiriam que os druidas melhoraliviassem a dor e o sofrimento da condição humana? Livros de cura? Livros deagricultura? Livros de construção? Livros com a história do Antigo Mundo? Quais?

Não gostava de ter de fazer essa escolha. Teria preferido deixar que outra pessoa afizesse, caso houvesse mais alguém. Qualquer que fosse sua decisão e escolha,cometeria erros. Isso era inevitável. Não podia ver o futuro, e até certo ponto o futurodeterminaria qual conhecimento seria necessário para navegar por suas águasdesconhecidas. Ninguém poderia saber o que seria necessário até que a hora chegasse.Era igualmente possível que o que ele escolhesse fosse mal utilizado de alguma maneira,

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provocando dano e destruição do tipo que ele estava tentando evitar tãodesesperadamente.

Ele precisava do dom de visão do futuro de Ryer Ord Star, mas somente se pudesseutilizá-lo com a perícia de um artesão. Não seria o bastante ter vislumbres do futuro. Nãoseria de ajuda pegar eventos fora de contexto ou de modo apressado. Era necessário umolhar abrangente para que a visão do futuro tivesse alguma utilidade.

Mesmo assim, admitiu, as chances de não reconhecer o que era importante enecessário eram enormes. O futuro estava pintado em uma tela de alcance infinito; eletrazia consigo muitas conexões e divisões. Alterar uma delas alteraria as outras. Pormaiores que fossem os insights, um único indivíduo não conseguiria decifrá-los todos.

Somente o Verbo poderia saber, e mesmo isso não era dado para a humanidadecomo verdade.

Sua busca prosseguiu, os minutos se passando, o tempo os descartando como folhasna mudança de estação. Embora ele estivesse procurando com diligência, não conseguiaencontrar a biblioteca. Foi para todo lugar em Castledown, através de todas as suasvastas câmaras e descendo por todos os seus longos corredores, e mesmo assim os livroslhe escapavam. Estava ficando cansado e sabia que não poderia manter sua forma desombra por muito mais tempo. Mas precisava saber onde os livros eram guardados sequisesse alcançá-los assim que voltasse ao seu corpo. Se tivesse de procurá-los quandose libertasse de Antrax, estava destinado a fracassar. Antrax saberia o que haviaacontecido e não haveria tempo suficiente para fazer outra coisa a não ser escapar.Deveria encontrar os livros logo e determinar uma forma de pegá-los.

No fim, utilizou um simples artifício para solucionar o problema. Colocou-se nasmentes dos homens e mulheres que haviam construído Castledown e criado Antrax e seperguntou como eles teriam guardado seu tesouro. A resposta não era tão difícil. Oslivros estariam abrigados onde as defesas fossem mais fortes e mais sofisticadas, masprovocassem o mínimo dano caso o intruso entrasse. Na superfície de Castledown, asdefesas eram brutais e indiscriminadas. O que quer que as rompesse era cortado. Abaixoda superfície, onde os livros eram abrigados, as defesas seriam de tipo diferente. E fiosde fogo e rastejadores não seriam utilizados. Algo mais sutil seria empregado.

O druida mudou sua maneira de pensar e recomeçou a busca. Ao fazê-lo, foilembrado das estranhas chaves que o haviam atraído para Castledown. Ele haviapensado que elas eram chaves do tipo com as quais estava familiarizado, implementosmetálicos utilizados para destravar portas. Mas elas haviam assumido uma formadiferente do que ele havia esperado. Ferramentas de uma era tecnológica aindafuncionavam como chaves, mas utilizavam princípios diferentes ao fazê-lo. Retângulosachatados, elas faziam com que as fechaduras que abrissem pudessem responder atravésde impulsos gerados por minúsculas células de energia.

Seria possível, ele imaginou subitamente, que os livros também tivessem sidoconvertidos para outra forma?

Uma suspeita tão fria e mortífera quanto a noite de inverno passou por ele. Ele haviaentendido tudo certo, menos uma coisa. Disparou pelas câmaras de corredores, em buscade um destino específico, sabendo bem no fundo que seus piores medos estavam para

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ser descobertos e que não havia nada que pudesse fazer para impedi-los. Retraçou suarota até o local de seu aprisionamento, ciente de uma aceleração na pulsação de RyerOrd Star à sua aproximação, acionada pela sua crença errônea de que ele haviaconseguido o que havia determinado fazer e estava retornando. Deixou em branco essaparte de sua percepção, não dando respostas à investigação muda dela, precisando desuas forças apenas por mais algum tempo.

Quando ele chegou à câmara cavernosa do lado de fora da menor onde estava seucorpo, fez uma pausa. Lenta e cuidadosamente, começou a vasculhar o aposento comseus sentidos druídicos, na direção das bancadas de maquinaria com seus discosprateados que giravam. Numa apreciação silenciosa, vasculhou as cabines metálicasaltas, tocando aqui e ali com sua mente, escutando e decifrando. Podia ouvir vozesfalando, palavras sendo pronunciadas, idéias e recitações sendo repetidas, transferidasde um espaço para outro, de uma primeira unidade de armazenamento para umasegunda. Percebeu na hora que havia encontrado aquilo que estava procurando.Percebeu também que era inútil tê-lo feito.

Sua decepção se aproximava do desespero. Não existiam livros, não de papel e tinta.A biblioteca existia, mas era uma biblioteca do tipo que provavelmente era comum emsua época, que havia transcendido e substituído as bibliotecas antigas. Todo oconhecimento de livros havia sido transcrito para discos metálicos e armazenado emmáquinas. Não havia maneira de fazer uso dele em outro lugar sem a tecnologia paratraduzir os discos. Para decifrar o que estava ali, seria necessário vasculhar as unidadesde armazenamento e escutar o que estava gravado. Seria necessário um tempo enormepara fazer isso — bem mais do que o druida podia dispor.

Mesmo em sua forma de sombra, a reação de Walker ao seu fracasso foi física. Umador visceral profunda, dura e cortante o penetrou. Ele havia seguido aquele caminhotodo, gastando tempo, energia e vidas, apenas para descobrir que fora por nada. Abiblioteca era inútil. Os livros eram discos que poderiam ser desenhos em areia na beirade uma praia. Nenhuma das milhões de palavras de conhecimento contidos naquelerefúgio podia ser salva, a menos que ele achasse uma maneira de incapacitar Antrax semdesligar a fonte de energia que alimentava a ambos. Ele já havia analisado aimpossibilidade de conseguir isso. As fontes de energia que capacitavam a ambosestavam ligadas de forma inextricável. Ele as havia vasculhado em suas viagens edescoberto que elas se juntavam de uma maneira que não permitia separação. Antraxera o coração do refúgio e de seu tesouro.

Escutou distraído o fluxo constante de palavras enquanto eram transferidas de umaunidade para outra, uma restauração de alguma espécie, o processo feito com a intençãode mantê-las frescas e novas, mesmo com a passagem do tempo, mesmo após quasetrês mil anos. Estava tudo lá, tudo saído do Antigo Mundo, todo o conhecimento em umlugar, todo seu... mas simplesmente fora de alcance.

Sua amargura era palpável. Aquela jornada não podia ter sido por nada. Ele nãopoderia suportar isso. Não poderia tolerar isso.

Ele tivera todas as chances do mundo — chances demais para considerar — quandoconfrontado com a possibilidade de que os livros da biblioteca poderiam ser seus; e, de

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repente, suas chances eram reduzidas a uma. Ele a percebeu instantaneamente, umaúnica chance, tão extrema que em uma consideração inicial ele quase a dispensou nahora. Mas ela o provocava, revelando como o tempo e um desvio irônico de circunstânciae de estilo às vezes fazia nascer o impossível.

Há cento e trinta anos, quando ele fora a Eldwist e recuperara a pedra élfica negra,quando tomara sua decisão de se tornar o primeiro dos novos druidas e assim trazer devolta a Paranor perdida, ele havia encontrado uma chance semelhante. Não, corrigiubruscamente, não uma chance semelhante — a mesma chance. Ela era sua porque nãohavia mais ninguém para tomá-la. Era sua porque somente ele tinha como fazê-lo.

Lembrou-se novamente das palavras de Allanon no Hadeshorn tantos meses atrás.De todas as coisas que ele havia desejado realizar naquela jornada, a sombra lhedissera, lhe seria permitida apenas uma.

Uma sensação de ironia e espanto o preencheu. A vida era misteriosa e quixotesca.Era um labirinto infinito, mas, em última análise, só havia um caminho certo para cadapessoa que procurasse navegar seus corredores tortuosos.

Afastou-se das máquinas e de seus discos, recolhendo-se para dentro de si mesmo,abandonando todas as suas esperanças e expectativas, a não ser aquela que eleacreditava que poderia realizar. Abandonando sua sombra e voltando a habitar sua formacorpórea, deixou de lado os últimos fragmentos de sua decepção e se preparou paradespertar Ryer Ord Star.

Na superfície, na entrada no labirinto, a bruxa Ilse fez uma pausa para olhar ao redor.Passava muito da meia-noite, o céu estava negro e nublado, o ar espesso, quente, comcheiro de chuva. Estava tão escuro na ausência da lua e das estrelas que até mesmo comsua visão aguçada ela mal conseguia distinguir os prédios e as paredes das ruínas aoredor. A superfície de Castledown parecia uma tumba. Ela não vira nada se mover desdeque saíra da floresta. O silêncio cobria tudo como um cobertor pesado, mascarando o queela sabia que estava escondido à espreita.

Ela fora sábia em não trazer Cree Bega ou qualquer de seus mwellrets para apoio.Naquela situação, eles estariam a pé, um obstáculo para o progresso dela. E o maisimportante, representariam uma ameaça; ela não confiava mais a eles sua segurança,apesar das garantias do Morgawr e do juramento que eles fizeram de obedecê-la. Elapodia sentir o ressentimento e a raiva deles toda vez que estava em sua presença. Eles aodiavam e temiam. Mais cedo ou mais tarde tentariam eliminá-la. Seria necessário queela os eliminasse primeiro, mas essa era uma tarefa que ela ainda não estava prontapara realizar. Até que o druida e seus seguidores fossem alcançados e ela tivesse a possedos livros de magia, precisaria dos mwellrets e de suas habilidades peculiares. Mas nãoqueria que eles fossem seus guarda-costas.

Ajeitou o peso da espada de Shannara, que estava pendurada em seu ombro.Desejou tê-la deixado para trás, mas relutara em deixá-la ao alcance do garoto ou dosmwellrets. Pensara em escondê-la, mas teve medo de que pudesse ser encontrada. Seera real, era uma magia poderosa, que ela desejava para si mesma. Então não tinha

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opção, a não ser levá-la consigo até que aquele negócio fosse resolvido e ela estivessevoltando para casa. Supunha que era um preço pequeno a pagar pela utilidade que aespada teria mais tarde, mas não podia deixar de sentir ressentimento por ter desuportar a dor que ela causava em suas costas.

Tirando a espada do ombro, colocou-a no chão e se espreguiçou. Não dormia háalgum tempo, e embora o sono não fosse particularmente importante para seu bem-estarfísico, ela se sentia mentalmente esgotada. Era aquele garoto, em parte, com suasconversas incessantes e seu raciocínio maroto, tentando convencê-la de sua causa,tentando enganá-la. Debater com ele a havia exaurido mais do que ela percebera. Eleera incansável em sua insistência quanto ao que e quem era, e ela descobrira quecombatê-lo a deixara cansada.

Bocejou. O sono daria descanso de mente e corpo para ela, mas não haveria sononaquela noite. Em vez disso, ela deveria achar uma maneira de entrar em Castledown,recuperar os livros de magia e evitar um confronto com o druida nesse processo.

Era uma tarefa muito diferente da anterior, ela pensou irônica, quando havia sedeterminado a matar Walker. Mas as coisas haviam mudado, como costumavam fazer.

Ela apanhou a espada e colocou-a de volta no ombro, ajustando o peso para ganharum pouco de conforto. Ficou em pé, em silêncio, por algum tempo, os mantos cinzentospendendo soltos de sua forma magra, o capuz puxado para trás, o rosto pálido levantadoligeiramente enquanto ela se concentrava no que havia adiante. Seus olhos se fecharame ela enviou a magia de sua canção do desejo para dentro do labirinto das ruínas. Foi alique o druida havia desaparecido no subterrâneo. Foi ali que os mwellrets haviamencontrado os rastejadores. Haveria uma entrada em algum lugar perto, provavelmentemais de uma. Ela precisava encontrá-la. O resto seria brincadeira de criança.

Não levou muito tempo para atingir seu objetivo. Havia alçapões e entradasescondidas por todo lugar, algumas maiores do que outras, todas levando para rampasou escadas que desciam até o refúgio. Ela utilizou sua canção para se cobrir na forma ena sensação do labirinto, placas de metal frio, fios e máquinas. Abriu os olhos mais umavez. Estudou a escuridão à sua frente, e então entrou. Nenhum rastejador ou fio de fogoapareceu. Ela não esperava que isso acontecesse. Quando utilizava a canção do desejodessa maneira, assumia a sensação e o aspecto do que estivesse ao seu redor. Somentea magia era detectável, e somente por algo que pudesse conhecer sua presença.

Ela não assumiu uma abordagem sutil para entrar; quanto mais tempo levasse, maisriscos corria. O refúgio construído no Antigo Mundo empregaria uma tecnologia que elanão compreendia. Uma salvaguarda ou outra acabariam por detectá-la. Era melhor nãolhe dar uma chance de fazer isso.

Ela se colocou contra uma parede próxima a uma das portas ocultas maiores eutilizou sua magia para estraçalhar uma porta menor do outro lado. Quase no mesmoinstante a porta ao lado da qual ela estava se abriu e rastejadores apareceram. Ela semanteve oculta, deixando-os passar por ela rapidamente, então congelou o último,mantendo-o no seu lugar, destruindo seus sistemas enquanto ela registrava seu aspectoe sensação, por dentro e por fora. Levou apenas segundos, e então passou pela porta eentrou na fortaleza.

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Dentro havia luzes de lâmpadas sem chama presas às paredes de um punhado decorredores que se abriam em leque a partir de um átrio no qual dezenas de rastejadoresestavam congelados em prateleiras. Ela ficou imóvel por alguns segundos, testando seunovo disfarce, esperando para ver se haveria uma reação para sua presença. Não houve.Permaneceu quieta por mais alguns segundos, então seguiu adiante.

Desceu pelos corredores de Castledown sem incidentes, os mantos compridosfarfalhando suavemente, sua presença envolta num aspecto e na sensação de umrastejador. Em um lugar onde somente máquinas haviam funcionado por mais de dois mile quinhentos anos, qualquer coisa de carne e osso dispararia um alarme no mesmoinstante. Haveria dispositivos que indicariam uma presença humana através de leiturasde peso ou de calor corporal ou até mesmo traçando sua forma. Ela já havia visto osolhos de vidro que ficavam olhando de seus nichos no teto e sentira a presença dasplacas de pressão. As máquinas também utilizariam outros métodos, porém ela poderiadesviá-los disfarçando seu aspecto, mudando seu peso e ocultando a temperatura de seucorpo. Cada sistema de alerta a registraria como um rastejador. Nem mesmo o druidapodia conseguir isso.

Mas ela não se permitiu ficar confiante demais nem baixar a guarda. Ainda havia apossibilidade de que a coisa que protegia Castledown possuísse a capacidade de rastrearseu uso de magia, detectar sua presença e penetrar em seu subterfúgio. Se isso fosseacontecer, ela teria de tomar uma ação evasiva, e rápido. Esperava que seu inimigoestivesse ocupado com outra coisa, talvez com Walker. Esperava que a magia que elautilizasse fosse pequena demais para detectar. Esperava, principalmente, que pudesserealizar seus objetivos com rapidez para que pudesse ir embora antes que houvesse umachance de descobrir que ela havia entrado ali algum dia.

Ela passou por dezenas de outros rastejadores, mas todos eles a ignoraram. Cadaqual parecia ter um objetivo em mente, mas ela não sabia dizer qual era. Atravessou olabirinto de câmaras e salas de todos os tamanhos e formatos, umas vazias, outrasapinhadas de maquinaria e materiais. Ela não sabia o que estava guardado ali, e nãoligava. Estava procurando os livros de magia e não estava encontrando. Nada maisimportava. Ela não tinha tempo necessário para realizar uma busca mais detalhada.

Adiante, o som de maquinaria elevou-se do silêncio, um zumbido baixo e constanteque penetrava até mesmo no aço das paredes; fazia com que o chão e seus pésvibrassem. Ela fez uma pausa para pensar. O que estava ouvindo era imenso, uma peçade maquinaria e talvez diversas peças que faziam qualquer coisa que a ela pareciainsignificante e realizavam uma função central para a operação do refúgio.Provavelmente era uma usina de energia, mas poderia ter algo a ver com a proteção doslivros de magia. Ela deveria dar uma olhada.

Não dera mais de dez passos quando todos os alarmes dispararam ao mesmotempo.

Ryer Ord Star.

Walker a sentiu se mexer contra ele, despertando lentamente do transe no qual havia

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entrado para lhe transmitir sua força empática. Seus dedos, descansando contra astêmporas dele, deslizaram pelas faces em lágrimas.

Desperte, jovem vidente.Ele estava falando com ela com a mente, um chamado silencioso que somente eles

podiam ouvir. Estava de volta a seu corpo, desperto das drogas e dos sonhos, tendoretornado de sua forma de sombra, ciente uma vez mais de sua carne e osso e dacondição na qual fora colocado. Era hora de se libertar das máquinas e de Antrax. Masdeveria fazê-lo com cuidado, e não conseguiria isso sozinho.

Ouça-me.Agora ela estava acordada, olhos abertos, as mãos segurando seu próprio corpo

enquanto se afastava dele.— Walker?Não fale. Apenas escute. Faça o que eu digo. Faça rápido. Tire a venda de meus

olhos e o tubo de ar da minha boca.Ela fez conforme lhe fora dito, as mãos flutuando sobre o rosto dele como pequenas

mariposas. Ele podia sentir a expansão e contração dos pulmões dela enquantopressionava o corpo contra o dele.

Agora solte as faixas que prendem meus pulsos e tornozelos, e em seguida o meupescoço, testa e cintura. Faça isso nessa ordem. Não perturbe os fios que estão ligadosem mim. Não os solte.

Ela levou mais tempo para fazer isso; as faixas estavam presas com presilhas deuma espécie que ela nunca tinha visto e não entendia. Não eram feitas de metal, mas deplástico resistente, e ela ficou um tempo mexendo nelas antes de decifrar seufuncionamento. A liberação veio logo depois disso, quando, uma a uma, as faixas caíramno chão.

Ela estava novamente ao seu lado, inclinando-se bem perto dele. Ele abriu os olhospela primeira vez e olhou para ela. O rosto infantil dela, emoldurado por sua cortina decabelos penteados, irrompeu num sorriso amplo e seus olhos estavam cheios delágrimas. Traços de uma magia que a cobria ainda pendiam de sua forma magra, mas jáestavam se desvanecendo. Como ela havia chegado até ele? Onde havia encontrado amagia para aquilo?

Walker, ela mexeu os lábios em silêncio.Ele olhou para si mesmo em um esforço para determinar o que deveria acontecer a

seguir, tentando decidir a ordem certa de remoção dos obstáculos remanescentes,sabendo que, quando os soltasse, alarmes certamente soariam.

Prenda a porta da sala para que ela fique aberta e, quando os alarmes para asmáquinas de monitoração forem disparados, Antrax não possa nos trancar.

Ela passou agilmente pelo ninho de cabos ainda ligados ao corpo dele, achou umpequeno gabinete de porta única sobre rodízios e o levou até a abertura entre a porta e oumbral, colocando-o ali com força.

Então voltou a ficar ao lado dele.Tire as agulhas de meu braço e do meu corpo. Deixe-as penderem de onde estão

presas.

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Ela puxou a fita que prendia as agulhas, e então retirou-as de suas veias. Tocou comos dedos frios as perfurações, curando as feridas, dando-lhe uma força nova. Acapacidade empática que possuía parecia infinita. Ela estremeceu uma vez com ocontato, manteve os dedos firmes por um momento e depois tirou as mãos.

Alarmes estariam soando; Antrax saberia que o equipamento que o alimentava edrogava havia funcionado mal de alguma maneira. Ele teria de agir rápido. Sentou-se namesa de metal, descobrindo que sua força havia diminuído e sua cabeça rodava. Asdrogas o haviam deixado fraco e letárgico, mas ainda podia agir. Devia. Começou aarrancar as ventosas que prendiam os fios de monitoramento ao seu corpo. Elas saíramfacilmente, e em segundos nenhuma delas permanecia, a não ser as cinco que corriamaté as pontas enluvadas de seus dedos. Deixou essas onde estavam. Tinha uma funçãopara elas.

Luzes piscavam em todo lugar nos painéis de instrumentos que cercavam sua cama.Ele sentiu uma mudança na atmosfera da câmara enquanto Antrax descia rápido paracorrigir o que havia acontecido. Walker levantou-se, a garota apoiando-o enquanto elerecolhia seus mantos e se afastava da mesa. Caminhou até onde os fios que corriam daspontas de seus dedos estavam enfiados em um plugue de metal que, por sua vez, estavapreso aos recipientes de líquido avermelhado. Ele puxou o plugue de seu encaixe e odirecionou para uma abertura idêntica em um dos painéis de parede marcados comsímbolos vermelhos brilhantes.

Walker sabia o que significavam os símbolos. Era a mesma linguagem na qual omapa havia sido desenhado, a linguagem do Antigo Mundo que ele havia decifrado nashistórias druídicas.

Também sabia para onde corriam as linhas do segundo encaixe. Ele as haviaexplorado bem em suas viagens fora do corpo, rastreando-as até sua fonte.

O principal sistema de alerta de Castledown.Antes que Antrax pudesse agir para impedir, ele enviou uma rajada de fogo druídico

através das linhas centrais para dentro de todas as linhas auxiliares e disparou todos osalarmes ao mesmo tempo.

— Hora de partir — murmurou para si mesmo, levando rapidamente Ryer Ord Star nadireção da entrada bloqueada.

Tinha apenas alguns minutos para fazer o que era necessário.

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A bordo da Black Moclips, Bek Ohmsford esperava pacientemente sua execução. Não

estava ligando muito para a forma que ela teria, só queria que viesse rápido. Ainda nãoestava em pânico, mas podia senti-lo chegando. Estava aprisionado em um aposento depopa, um depósito contendo peças sobressalentes e suprimentos — velas de luzambiente, atratores radianos, cristais-diapasão, blocos de queijo e barris de água.Sombras cobriam tudo em camadas de escuridão. O aposento não era grande, mas,mesmo com a luz da vela sobre o barril ao seu lado, ele mal conseguia distinguir omwellret que montava guarda no outro lado do aposento. Bek estava amarrado à paredepor um metro de correntes preso a um dos tornozelos. Um pedaço de corda prendia suasmãos na frente do corpo e passava pelas correntes de modo a não permitir que elelevantasse os braços acima da cintura. Também estava amordaçado, embora issoprovavelmente fosse bobagem, já que Grianne havia roubado sua voz, deixando-o mudo.

Sem querer arriscar nada, ela também lhe tirara a espada de Shannara. Quandovoltasse, esperava achá-lo ainda prisioneiro. Embora ele não tivesse motivo algum parapensar que as coisas fossem mudar, não tinha nada melhor a fazer com seu tempo doque visualizar essa possibilidade. Não tinha nenhum incentivo. Era um prisioneiro a bordode uma aeronave cheia de mwellrets e soldados da federação. Não tinha armas. Seusamigos estavam mortos ou perdidos. A morte, sob qualquer forma, não teria muitadificuldade em encontrá-lo nessas circunstâncias.

A luz do luar passava por uma portinhola aberta ao lado, o único buraco para respirarno aposento, a única fonte de ar fresco. À medida que as nuvens passavam pela face dalua, a luz escurecia e clareava por turnos, mudando a profundidade das sombras,permitindo-lhe pequenos vislumbres de seu carcereiro silencioso. De vez em quando omwellret mudava de posição, e um pequeno farfalhar de roupas e pele de réptilrevelavam sua presença, que caso contrário seria quase invisível. Ele jamais falava. Tinhaordens para não fazê-lo. O garoto ouvira sua irmã dar essa ordem. Ninguém deveria falarcom ele. Deveria receber água, mas não comida. Não deveria ser abordado para outracoisa. Não deveria sair. Não deveria ser libertado da corrente, nem por um momento.Deveria ser deixado onde estava até que ela retornasse.

Sentado no chão de tábuas da nave, pernas encolhidas, pulsos caídos sobre osjoelhos, recostou-se contra o tabique. Podia alcançar a mordaça se quisesse, masentendia, por experiência dolorosa, que se tentasse era melhor ter um bom motivo parafazê-lo. A punição para mau comportamento era garantida. Ele havia suportado diversoschutes por se mexer da forma errada. Por isso estava sentado o mais quieto possível,pensando. Havia testado sua voz diversas vezes, esforços sub-reptícios, para ver seconseguia fazer pelo menos um pequeno ruído. Não conseguia. A magia que sua irmã

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havia utilizado sobre ele era eficiente. Ele achava que ela não havia destruído sua voz,porque iria querer falar com ele novamente em algum momento, ou o teria morto eacabado com tudo. Por outro lado, ela não precisara que Kael Elessedil falasse paradescobrir o que ele sabia. Podia acontecer a mesma coisa com Bek. Ele tinha de esperarque ela quisesse mais alguma coisa: que a dúvida que sentia nela sobre sua identidade oprotegesse mais um pouco.

Fechou os olhos por um momento. Tinha de sair dali. Tinha de fazê-lo antes que suacoragem acabasse. Mas como iria fazer isso? Como poderia fugir?

O desespero momentâneo tomou conta dele. Havia achado que estava seguro comTruls Rohk. Não havia acreditado que qualquer pessoa fosse forte ou inteligente obastante para superar o mutante. Mas estava errado e agora Truls estava morto. Elahavia deixado que o caull acabasse com ele, e se o caull tivesse falhado e morrido aoinvés disso, ela saberia. Afinal, ela o havia criado. Estava ligada a ele. O caull estavavivo. Isso queria dizer que Truls Rohk não estava.

Bek não tinha esperanças verdadeiras de ser resgatado por mais ninguém. Era quasecerto que seus companheiros estavam mortos. Até mesmo Walker. Era tempo demaispara que eles ainda estivessem vivos e não tivessem aparecido. Pensar nisso fazia comque se sentisse anestesiado. Mesmo que não estivessem todos mortos, os que aindaviviam estavam indefesos contra sua irmã. Grianne era muito poderosa para qualquerum. Ela rendera toda a tripulação rover, incluindo Redden Alt Mer e Rue Meridian, e osdeixara inconscientes com sua magia. Tomara a Jerle Shannara e eliminara qualquerpossibilidade de fuga. Contara tudo isso a Bek de forma casual, quase como se estivesserecitando como seria o tempo nos próximos dias. Ela havia feito isso para enfatizar comoele estava indefeso, para convencê-lo de que sua maior esperança era através dela, e elefaria muito bem se parasse de desafiá-la. Somente cooperando, revelando a verdade aseu respeito, ele poderia esperar sair dessa situação vivo e bem. Qualquer outro curso deação resultaria em conseqüências desagradáveis. Ele deveria pensar nisso enquanto elaestivesse fora.

Ele achava que estava fazendo isso.Achava que não estava fazendo qualquer outra coisa. Tornou a testar a corda em

seus pulsos. Ela cedia um pouco, mas não o bastante para que pudesse soltar as mãos. Acorda estava seca e áspera e seu suor não fornecia lubrificação suficiente. Não queimportasse. Mesmo que conseguisse se libertar da corda, ainda havia a corrente.Supunha que seu carcereiro tinha a chave enfiada em algum lugar de suas roupas, masnão tinha como saber ao certo. Imaginou-se solto tanto da corda quanto da corrente,disparando pelos corredores da nave, alcançando o convés superior, pulando pelaamurada e nadando até a margem. Isso ele podia imaginar, mas era a mesma coisa queimaginar que pudesse voar.

Ele tinha apenas a si mesmo em quem confiar. Talvez ainda pudesse convencerGrianne da verdade, mas estava começando a aceitar que isso era improvável. Elasimplesmente não estava pronta para ouvir. Não queria acreditar que ele era seu irmãoou que o Morgawr a havia enganado. Ela havia construído sua vida inteira ao redor dacrença de que Walker era um inimigo, que o druida havia destruído seu lar e assassinado

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sua família. Ela se reconstruíra para que não apenas pudesse enfrentar o poder dele, mastambém suplantar a maldade que via nele. Ela fizera coisas com as quais provavelmentejamais poderia viver se viesse a descobrir que fora completamente manipulada. Estavatão profundamente envolvida em sua persona como a bruxa Ilse, que não podia pensarem si mesma de outra maneira.

Por um momento ele pensou na possibilidade de que era tarde demais para salvá-la,que ela havia ido longe demais para ser redimida, que havia cometido atrocidadesdemais para ser perdoada. Era possível. Talvez ele a tivesse alcançado tarde demais.

Descobriu-se pensando naquela noite nas Highlands quando havia encontradoWalker pela primeira vez. Ele relutara em aceitar a oferta do druida para seguir naquelajornada. De algum modo percebera que, se o fizesse, nada em sua vida jamais seria omesmo. A realidade fora muito mais sombria do que ele podia ter imaginado, fez comque ele se sentisse diminuto e inútil, dilacerado por emoções que jamais imaginaraexperimentar. Ele queria que as coisas voltassem a ser como antes. Queria voltar paracasa. Queria que Quentin e seus amigos estivessem sãos e salvos. Queria ser quem elesempre pensou ser e não alguém sobre o qual nada sabia. Queria que o pesadeloterminasse.

A trava da porta do depósito fez um barulho alto e a porta se abriu. Três mwellretsapareceram, esgueirando-se para dentro protegidos pela anonimidade de seus mantos ecapuzes, sombras saídas da noite. Nenhum deles disse uma palavra. O último a entrarfechou a porta e ficou de costas para ela. O que estava logo à sua frente juntou-se aoguarda nas sombras do outro lado do aposento. O líder foi direto a Bek e puxou o capuzpara revelar seu rosto de réptil. Era Cree Bega, o mwellret ao qual sua irmã haviaconfiado sua segurança.

Cree Bega olhou o garoto, sem falar, os olhinhos duros e desagradáveis. Bek tentoumanter seu próprio olhar firme, mas os olhos do mwellret o incomodavam. Por fim,envergonhado por seu fracasso, desviou o olhar.

Cree Bega estendeu seus dedos com garras e retirou a mordaça da boca de Bek.Jogou o pedaço de pano no chão e recuou. Bek respirou pela primeira vez sem obstáculosem horas, mas pôde sentir o cheiro dos mwellrets ao fazer isso, um odor fecal cru enauseante.

— Quem é você, garoto? — perguntou Cree Bega em voz baixa.Falou de modo distante, quase distraído, como se não esperasse realmente uma

resposta, mas estivesse perguntando apenas para verbalizar a pergunta para si mesmo.Sua voz fez Bek estremecer. Temendo que o que fosse acontecer a seguir não estivessenos planos de sua irmã, Bek tornou a forçar as mãos contra as cordas.

Percebendo o movimento sub-reptício, Cree Bega deu um passo adiante e derrubou-o no chão com um soco. Então pegou o garoto, colocou-o sentado e jogou-o de encontroà parede.

— Não exisste fuga para oss pequeninoss — ele murmurou. — Não há como fugir denóss!

Bek sentiu o gosto de sangue na boca e engoliu, os olhos fixos no mwellret. CreeBega ajoelhou-se devagar, e quando falou, seu olhar estava no mesmo nível dos olhos do

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garoto.— Você acha que talvez ela volte para ssalvá-lo? A bruxa Ilsse, tão poderossa, tão

forte, que nada teme? Hssst! Oss pequeninoss toloss não ssão nada para ela. Ela já sseessqueceu de você.

Inclinou-se para a frente.— Oss retss ssão sseuss únicoss amigoss, os únicoss que podem ssalvar você. —

Seus olhos frios brilharam. — Acha que esstou errado, que ssou tolo como você? Ela quero que esstá lá em cima. — Ele bateu de leve na cabeça de Bek. — Ela não quer nadaalém do que pode ussar contra o druida.

Com seus olhos mortos e seu estranho rosto sem expressão, ele estudou o rosto dogaroto por um longo momento.

— Mass sse o pequenino fizer o que eu mandar, liberto você.Bek tentou falar e não conseguiu. Tentou se mover e não conseguiu. Estava sem voz

e paralisado, preso em seu lugar pelo olhar do outro e pelos efeitos da magia da bruxaIlse. Seu corpo foi inundado de medo e desespero e ele lutou para evitar que issoaparecesse em seus olhos. Não conseguiu.

Cree Bega se levantou e se afastou como se tivesse terminado com Bek. Foi até ooutro lado do aposento, olhou o céu noturno pela portinhola e em seguida foi até os doismwellrets que estavam em pé esperando nas sombras contra a parede. Bek observou-odo mesmo modo que um pássaro sem poder voar observaria uma serpente faminta. Nãopodia fazer nada para se salvar. Podia escutar, esperar e torcer.

Um dos mwellrets emergiu da escuridão e se ajoelhou ao lado de Bek. Lenta edeliberadamente, desembrulhou um avental de couro para revelar uma série de facasbrilhantes e sondas afiadas. Não olhou para Bek nem sequer por um instante, nãoprestou a menor atenção nele. Simplesmente abriu a bolsa com seus instrumentos decorte, tornou a se levantar e se afastou.

Tudo dentro de Bek contorceu-se e deu nós. Ele queria gritar por socorro, mas sabiaque isso não lhe faria bem algum. Tornou a forçar as cordas que prendiam seus pulsos,mas estavam tão apertadas quanto antes. Suas chances estavam ficando menores e seutempo estava se esgotando. Apenas momentos antes ele poderia acreditar que aindatinha alguma chance de não ser machucado; não acreditava mais nisso.

Cree Bega voltou até onde Bek estava sentado, ficando à sua frente, em pé, comouma força grande, negra, esmagadora.

— Pensse com cuidado, pequenino — ele murmurou baixinho com sua voz rouca. —Maneirass de fazer você falar ass palavrass que esstá esscondendo. Retss conhecemmaneirass. Fazem você gritar sse quisser noss tesstar. É maiss fácil apenass ressponderquando fizermoss perguntass. É melhor asssim. Então o pequenino fica livre.

Esperou um momento, observando Bek olhar em direção ao nada à sua frente,lutando contra seu terror, forçando-se a permanecer calmo.

Cree Bega deu-lhe um empurrão de leve com a bota.— Daqui a pouco venho ver você — ele sussurrou.Sem olhar para trás, virou-se, foi até a porta do depósito e desapareceu. A porta se

fechou suavemente atrás dele e a trava voltou a se encaixar no lugar.

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Bek manteve o olhar direcionado para uns cinqüenta centímetros à sua frente, àsmargens da escuridão iluminada pelas velas, tentando saber o que deveria fazer. Nãoconseguiria se libertar sem ajuda. Não era provável que chegasse alguma ajuda rápido obastante para fazer diferença. Ele teria de dar ao mwellret o que ele desejava. Mas comopoderia fazer isso? Não podia falar, mesmo que quisesse. Tornou a testar os efeitos damagia de Grianne, achando que talvez tivesse deixado alguma coisa de lado. Tentou tudoo que pôde, mas nada funcionava. Sua voz havia desaparecido.

Onde isso o deixava? Ele podia escrever suas respostas para as perguntas domwellret, mas isso poderia não ser o bastante para salvá-lo. Cree Bega parecia ser dotipo que testaria sua habilidade vocal não só com palavras, mas também com seusortimento mortal de lâminas. Que mal poderia fazê-lo ter certeza, afinal? Por que nãover até que ponto o garoto realmente não tinha voz?

Pela primeira vez desde que havia desembarcado da Jerle Shannara e ido para terrafirme à procura de Castledown, Bek se lamentava por ter dado a pedra fênix. Se a tivesseguardado para si, se não tivesse se precipitado entregando-a a Ahren Elessedil, teriaalguma maneira de escapar, mesmo amarrado como estava. Talvez fosse essa a intençãodo rei do rio Prateado o tempo todo. Talvez ele tivesse previsto a situação e dado apedra para Bek como meio para que ele pudesse se libertar. A idéia de que havia jogadofora sua chance por livre e espontânea vontade era mais do que ele podia suportar, eafastou o pensamento com raiva. Sua mordaça ainda estava solta e ele respirou fundolentamente e várias vezes para se acalmar, mas ainda podia sentir seu coração batendoforte. Tornou a olhar para a fileira de lâminas dispostas à sua frente, e então desviourápido o olhar. Estava morrendo de medo. Sentiu lágrimas nos cantos dos olhos e lutoupara evitar que elas descessem por suas faces. Os guardas mwellrets estariamobservando. Estariam esperando por isso. Eles iriam reportar tudo a Cree Bega, que oacharia ainda mais fraco do que já supunha. Cree Bega iria usar isso contra ele.

Examinou suas opções, todas elas, por mais remotas ou impossíveis queparecessem; não percebia nada de novo. Ele responderia às perguntas que Cree Bega lhefizesse. Esperava poder fazer isso por escrito e não ser torturado primeiro para quedescobrissem se ele estava brincando. Esperava que o libertassem das cordas e correntes— por vontade própria ou por sugestão dele — e, se o fizessem, que ele pudesseencontrar uma oportunidade de escapar. Era um plano patético, sem nenhumaparticularidade ou chance favorável, mas era tudo em que ele conseguia pensar. Suasesperanças estavam em farrapos, e se agarrava a elas como se fossem pedaços deserpentina colorida, outrora brilhantes com promessas, agora esmaecidas e gastas.

Não era justo, ele não parava de pensar. Nada disso era justo. Não era nada do queele achava que encontraria ao ir para lá. Eram promessas transformadas em pó. Aslágrimas tornaram a cair, desta vez mais fortes, e desceram por suas faces em linhastortas. Ele baixou a cabeça na sombra, esforçando-se para ocultá-las.

Ao fazer isso, ouviu a porta do depósito se abrir novamente, um estalo da trava, oranger suave das dobradiças. Olhou para cima rapidamente, esperando ver Cree Bega.Mas não havia ninguém ali. O umbral estava vazio, um buraco negro para o corredorexterno onde nenhuma luz queimava.

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Será que aquelas luzes não haviam sido acesas quando Cree Bega saiu doaposento?, pensou Bek, de repente alerta.

Por um instante, os guardas mwellrets ficaram paralisados. Então, o ret que estavamais perto da porta puxou uma espada curta debaixo de seu manto e foi até lá dar umaolhada. Ficou em pé na porta, sem se mover, olhando para o corredor. Nada aconteceu.Lenta e cuidadosamente, fechou a porta mais uma vez, as dobradiças rangendo nosilêncio recém-formado, a trava se encaixando em seu lugar com um clique.

No instante seguinte, a vela ao lado de Bek se apagou e o aposento foi mergulhadona escuridão, a não ser pela luz que vinha pela portinhola do outro lado, mas issodeixava tudo em sombras vagas. Alguma coisa passou por Bek depressa, o movimento desua passagem provocando uma rajada fria de ar contra sua pele. Não fez nenhum somquando se aproximou do mwellret mais próximo, que grunhiu com o impacto e caiu. Osoutros dois emitiram um sibilar de aviso e em seguida ambos se envolveram em uma lutaque os mandou voando para o outro lado do aposento escurecido, de encontro à parede.Bek viu de relance o antagonista deles, uma grande forma envolta num manto que semovia com a velocidade e a agilidade de um gato do pântano, atacando o primeiro edepois o segundo, enchendo-os de socos, derrubando-os em pilhas desconjuntadas.

Bek arregalou os olhos. Não pode ser...O primeiro ret já estava em pé de novo, atacando em auxílio de seus companheiros,

o brilho de sua lâmina capturado por um momento num raio de luar. Ouviu-se umacolisão abafada de corpos e um grunhido. Segundos depois, o ret recuou cambaleante, aespada curta enterrada no peito, seus movimentos frouxos e indistintos enquanto elelutava para permanecer em pé. Quando desabou um instante depois, sem vida, oaposento estava tão silencioso que Bek podia ouvir a própria respiração.

— Qual o problema, garoto? — alguém sussurrou no seu ouvido. — Parece que viuum fantasma!

Era Truls Rohk. Bek levou um susto tão violento com o som gutural da voz do outroque quase se engasgou. O mutante se materializou ao seu lado na escuridão, sua formaenvolta em manto e capuz bloqueando a luz do luar. Em segundos ele cortou as cordasque amarravam os pulsos do garoto. Então, usando um pedaço comprido de barrametálica, quebrou o elo que prendia o grilhão de ferro da perna e Bek estava livre.

Truls Rohk levantou-o.— Nada de falar — sussurrou. — Não até estarmos fora desta nave.Saíram para a passagem escurecida, o mutante liderando o caminho. Apesar das

cãibras musculares e da rigidez, ainda sem acreditar direito na sua sorte, Bek ficou pertoo bastante para tocá-lo. Estavam a menos de dez passos do depósito quando um gritoquebrado e rouco veio de dentro. Com Bek nos seus calcanhares, o mutante continuou adescer o corredor sem olhar para trás. O garoto esperava que ele fosse na direção deuma das escadas que levavam para cima, e ficou surpreso quando ele fez exatamente ocontrário. Em vez de subir até o convés principal, Truls Rohk virou-se para um corredorsem saída que levava para a parte de trás da aeronave. Acima, o som de botas ecoavapelo convés, misturado a urros e gritos. A companhia da nave estava acordada, e, seainda não os estava caçando, estava a caminho de fazê-lo.

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O corredor pelo qual Truls Rohk havia descido terminou apenas depois de algunspassos, em uma porta de madeira pesada. O mutante abriu-a sem hesitar e puxou Bekpara dentro. A sala estava escura, mas o luar passava por dois pares de janelas abertas erevelava uma câmara inteiramente mobiliada. Um homem acordou em um leito ao lado,pulando apressado das cobertas, mas um único soco de Truls Rohk o jogou contra umaparede, onde ele caiu inconsciente.

— Pela janela — o mutante sibilou para Bek, empurrando-o na direção da abertura.Ele se voltou para a porta da câmara, mas ela já tinha se aberto, e seis formas

escuras entraram correndo. Truls Rohk atingiu-as com tamanha fúria que enviou todos osseis de volta para o corredor atrás deles, tropeçando e xingando enquanto tentavampermanecer em pé. Facas e espadas curtas brilhavam no luar, mas o mutante sedesviava das lâminas cortantes como um fantasma, agarrando a porta aberta e batendo-a, colocando a trava no lugar.

— Saia! — grunhiu para Bek, que estava atrás dele.Do lado de fora, corpos se jogavam contra a porta e lâminas pesadas

escarafunchavam a trava de metal e cortavam a madeira. Bek subiu em uma cama vaziae levantou uma perna sobre o alpendre. Quase no mesmo instante, uma forma escurapulou à sua frente, pendurada em uma corda. Bek viu o brilho de uma insígnia dafederação, chutou a cabeça do homem e o mandou girando para longe.

Atrás dele, a porta cedeu e se partiu em lascas. Bek hesitou novamente.— Saia! — repetiu Truls Rohk.Bek passou pela janela no instante em que outra forma caía sobre uma porta do lado

da amurada da nave, tentando agarrá-lo. Bek escapou da fúria selvagem de seu atacantee caiu de cabeça na água. Submerso na escuridão que o ocultava, nadou para longe daaeronave até que seus pulmões imploraram por ar. Quando voltou à tona, não havianinguém mais à vista. A bordo da Black Moclips, os sons da batalha continuavam, agudose desesperados. Bek esperou um momento para que Truls Rohk o acompanhasse naágua, mas quando viu barcos cheios de mwellrets sendo abaixados na lateral, recomeçoua nadar. Era um bom nadador e não levava armas nem bagagens para prejudicá-lo. Elenadou na direção da margem escura com braçadas fáceis e suaves, e chegou lá antesque o primeiro de seus perseguidores tivesse se soltado da nave para remar atrás dele.

Esgueirando-se o mais silenciosamente que pôde, ele se abaixou ao passar pelasárvores que o ocultavam e então olhou para trás. Espalhados ao longo da linha d’água,suas formas achatadas e grandes congeladas no luar, os barcos estavam indo atrás dele.Vasculhou a linha escura da Black Moclips em busca de algum sinal de Truls Rohk, masnão encontrou nada. A bordo da aeronave, o clamor havia se reduzido para um murmúriotedioso de vozes que se propagavam facilmente pelas águas abertas da baía. Sem sabero que deveria fazer, Bek aguardou enquanto os barcos se aproximavam. Estava livre,mas não tinha para onde ir. Havia perdido sua magia e suas armas, e então era inútilficar e lutar. Se corresse, seus captores simplesmente o rastreariam novamente.Precisava do mutante para ajudá-lo. Precisava demais de Truls Rohk.

Finalmente, não pôde esperar mais. Os barcos a remo estavam quase em cima dele.Misturou-se com as árvores o mais silenciosamente que pôde. Seus perseguidores não

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seriam capazes de perceber seus rastros na escuridão, e por isso ele teria a maior parteda noite para se distanciar deles. Pela manhã, ele poderia estar longe.

Mas para onde iria?A falta de esperança de sua situação o deixava arrasado; por um momento

simplesmente parou onde estava, olhando para a escuridão. Estava livre, mas o quedeveria fazer com isso? Deveria partir em busca dos outros membros da equipe da nave,esperando que um ou dois ainda pudessem estar vivos? Deveria achar Walker e avisar odruida sobre Grianne? Haveria tempo bastante para fazer qualquer coisa a essa altura,além de tentar permanecer vivo?

— O que está fazendo? — Truls Rohk sibilou, materializando-se da escuridão ao seulado. O manto encharcado pingava. — Se ficar por aqui muito tempo, eles certamentevão encontrá-lo!

Bek, atônito, foi pego pelo braço e levado para as árvores.— Achou que eu não vinha? Tenha fé, garoto! Gatos não são os únicos que têm sete

vidas. — Seu manto estava rasgado e manchado de sangue. Dentro da escuridão de seucapuz seus olhos brilhavam. — Chega. Vamos atrás de sua irmã. Reuniões de família sãosempre interessantes, mas esta deverá ser melhor do que a maioria. — Sua gargalhadasúbita era rouca e desagradável. — Você tenta salvá-la e eu tento matá-la. É justo?

Suas mãos eram como ferro quando puxou Bek Ohmsford para segui-lo dentro danoite.

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23

Rue Meridian ainda estava vendo a Black Moclips das sombras da margem com

Hunter Predd, tentando decidir o que deveria fazer, quando o silêncio a bordo da naveexplodiu em uma cacofonia de gritos e no clangor de lâminas de metal. Aconteceu tãosubitamente que no começo foi desorientador e ela não tinha certeza de onde vinham ossons. Trocando um olhar apressado com o cavaleiro alado, ela avançou mais ao longo damargem, como se assim pudesse de algum modo determinar melhor a fonte daperturbação.

Para complicar seus esforços, a lua passou para trás de um banco largo de nuvens,jogando a baía e a aeronave na escuridão.

— O que está acontecendo? — ela sussurrou confusa.Fez uma pausa em seu avanço ao ouvir lascas de madeira e dobradiças de metal

arrebentando. Ela não tinha como se enganar quanto a esses sons, decidiu, olhandonovamente para Hunter Predd. Então ouviu um barulho na água quando alguma coisa oualguém caiu no mar. Um segundo som soou imediatamente em seguida e ela ouviubraçadas nas águas da baía. Seu primeiro pensamento, instantâneo e incondicional, eraque alguém estava tentando escapar. Esse alguém teria de ser um membro dacompanhia da Jerle Shannara.

Ela desceu pela margem, tentando rastrear os sons que vinham da aeronave. Mas aluta a bordo continuava sem cessar e o ruído de lâminas metálicas e os gritos dos feridosou moribundos abafavam todo o resto.

Finalmente ela parou, ajoelhada na margem, à sombra de um despenhadeirorochoso, e tornou a apurar o ouvido. Podia ouvir movimento na água, como se alguémestivesse nadando, mas ainda não sabia dizer de onde vinha. A luta a bordo da BlackMoclips havia terminado, substituída por grunhidos zangados e o estrondo de botaspesadas. A lua reapareceu por um momento, dando-lhe um vislumbre dos conveses daaeronave, maciços, formas encobertas em mantos correndo para todo lado. Em instantes,eles haviam abaixado botes para a água e subiam para dentro deles aos montes.

Mwellrets em perseguição a alguém, pensou ela. Mas quem?A lua tornou a desaparecer atrás das nuvens e os botes saíram deslizando para a

escuridão, na direção da margem, sob os esforços de remadores determinados. Quandoos rets chegaram à margem, desceram dos botes e desapareceram na selva. A bordo daBlack Moclips, os sons se transformaram em murmúrios isolados e gemidos suaves. E empouco tempo até mesmo estes pararam.

Hunter Predd inclinou-se para perto de Rue Meridian.— Alguém fugiu deles.Ela assentiu, ainda escutando, observando e pensando no que aquilo significava.

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Uma oportunidade, acreditava. Mas como iria tomar vantagem dela?— Quantos você contou nos botes? — perguntou ela.— Mais de uma dúzia. Provavelmente uns quinze mwellrets.— Foram todos eles, aposto. Tudo o que restou. — Pensou nos mortos a bordo da

Jerle Shannara, espalhados pelo convés em companhia de Hawk, entre os destroços datempestade. Piscou os olhos para afastar a imagem e fez um cálculo rápido. A BlackMoclips levaria uma tripulação e um complemento de luta de trinta e cinco. Subtraindo osmwellrets e os dois soldados da federação mortos a bordo da Jerle Shannara, issodeixava uma tripulação de talvez onze ou doze.

Hunter Predd cutucou o braço dela.— No que você está pensando?Ela olhou bem para ele.— Preciso entrar a bordo.Ele balançou a cabeça na hora.— Muito perigoso.— Eu sei. Mas precisamos descobrir se há mais alguém da nossa equipe mantido

prisioneiro. Não teremos chance melhor do que essa.Os traços duros dele franziram em sinal de dúvida.— Você ainda está ferida, Ruivinha. Se precisar lutar, estará em apuros.— Apuros do tipo que não quero ouvir depois, eu sei. — Olhou na direção da

aeronave, uma forma escura suspensa sobre a água. — Só quero dar uma olhada.O cavaleiro alado acompanhou o olhar dela, mas não disse nada. Curvou os ombros

e estudou a escuridão com uma intensidade que a surpreendeu.— Como está planejando chegar lá? — acabou perguntando.— Nadando.Ele assentiu.— Eu já imaginava. Claro que, agora que alguém escapou pulando da amurada e os

rets desceram em perseguição aos botes, não acredito que os homens que ficaram abordo desperdicem seu tempo ficando de olho na baía. — Olhou para ela. — Será?

Evitou o sarcasmo na voz, mas dissera a coisa certa. Algum vigia estaria de olho vivonas águas ao redor em busca de alguma coisa suspeita. Ela podia se aproximar nadandoembaixo d’água, mas era um longo caminho e ela não era tão forte quanto precisavapara tentar isso. Tampouco podia contar com a lua permanecendo oculta atrás do bancode nuvens. Se ela saísse na hora errada, ficaria tão exposta na água como se fosse à luzdo dia.

— Por outro lado — ele continuou baixinho —, não estarão esperando ninguémvoando.

Ela o encarou.— Em Obsidian? Pode fazer isso? Pode me deixar no mastreamento?Ele deu de ombros.— Ainda é muito perigoso. O que acha que pode conseguir?— Dar uma olhada ao redor, ver se mais alguém a bordo é um dos nossos. — Ele

sustentou o olhar dela de maneira desconfiada e acusadora e ela sorriu sem querer. —

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Não acredita em mim?— Acredito que você está me dizendo o que acha que eu quero ouvir. Mas leio rostos

melhor do que a maioria das pessoas e estou vendo, no seu, algo mais do que você estádizendo. — Inclinou a cabeça. — De qualquer maneira, eu irei a bordo com você.

— Não.Ele riu baixinho.— Não? Admiro seu espírito, mas não seu bom senso. Você não pode ir daqui até ali

sem mim, e eu não levarei você, a menos que eu vá também. Então não vamos discutirmais a questão, Ruivinha. Você precisa de alguém para lhe dar cobertura, e se a coisaazedar, preciso ser capaz de dizer a seu irmão que fiz tudo o que podia para protegê-la.

Ela o olhou melancólica.— Não gosto desse negócio de você poder ver com tanta clareza o que estou

pensando.Ele assentiu.— Bem, pode ser que isso me ajude a salvar sua vida em algum momento. Nunca se

sabe.— Basta me colocar e me tirar inteira daquela nave — disse ela. — Isso para mim já

basta.Esperaram por um longo tempo, dando à nave e à tripulação tempo para se

aquietarem e voltarem a uma rotina, montando guarda sobre a margem para esperar oretorno dos mwellrets. Rue Meridian acreditava que eles ficariam fora a noite toda,tentando rastrear quem quer que estivessem caçando, incapazes de ver com clarezasuficiente na escuridão, forçados a esperar o nascer do dia. Ela estava se perguntandoquanto à bruxa Use. Não tinham visto sinal dela, nenhuma indicação de sua presença. Seela não estava a bordo da nave, provavelmente estava em algum lugar em terra,caçando a magia que os levara a Castledown. Quem tinha a posse daquela magia agora?Será que Walker já a havia encontrado e reclamado para si? Será que era aquilo o queesperava encontrar? Não havia como saber sem fazer contato com um membro da equipede terra, outro bom motivo para descobrir se algum deles estava aprisionado pela bruxae pelos seus rets.

— Se vamos, devemos ir agora — disse Hunter Predd por fim.Tirando seu manto e verificando suas armas e roupas, ele explicou a ela que

Obsidian fora treinado, assim como todos os rocas, a baixar seus cavaleiros alados paraprestar socorro em um resgate. Utilizando um arreio e uma corda, cavalgariam o roca atéa aeronave e desceriam até os mastros. Quando estivessem prontos para partir, Obsidianos apanharia novamente.

— Esta é a chave — disse Hunter Predd, mostrando um pequeno implemento deprata. — Um apito, mas que somente os rocas podem ouvir, e não os humanos. Rapideze silêncio são o resto, Ruivinha — ele grunhiu. — E sorte, claro. Isso mais do que tudo.

Quando estavam prontos, ele utilizou o apito para chamar o roca. Obsidian apareceusobre a encosta, descendo até a baía para se empoleirar no ressalto pelo qual passaramno caminho de descida para a margem. Já estava escuro, a lua havia desaparecido e amaioria das estrelas estava encoberta pelas nuvens. Teriam de correr se quisessem

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chegar à Black Moclips antes que sua proteção acabasse.Ao partir naquela manhã, Rue Meridian havia trançado seus longos cabelos ruivos e

os prendido atrás com um pedaço de corda colorida. Apertou a corda, verificou as adagasque levava no cinto e na bota e montou em Obsidian. Hunter Predd sentou-se na suafrente, falou carinhosamente com o roca e levantaram vôo. Planando para o céu negro,subiram até que a silhueta escura da aeronave se fundiu com a superfície da baía demodo tão completo que Rue Meridian não conseguia vê-la mais. Ainda estava tentandodistingui-la, quando Hunter Predd fez um sinal para ela de que haviam chegado.

Com uma mão atrás da outra, deslizaram de seus assentos até a corda, um pedaçode cânhamo muito duro e cheio de nós pendurado na escuridão. Lá do alto, acima detudo, o mundo inteiro parecia um buraco negro, salvo onde podiam ver um vislumbre dohorizonte. A Ruivinha sentiu o coração parar e o estômago apertar enquanto descia pelacorda. Não conseguia ver nada, nem mesmo Hunter Predd, que descia abaixo dela.Sentiu-se balançando e não sabia dizer se Obsidian estava se movendo ou não. Será queos rocas podiam pairar no ar? Ela teria dado qualquer coisa para ver algo de sólido, masnão havia nada para ser visto.

Embaixo, tudo era silêncio, até mesmo o cavaleiro alado em sua descida. Ela apurouo ouvido atentamente para tentar escutar seus próprios sons, lutando para abafar tudo,mas o silêncio só fazia aumentar sua sensação de isolamento e desesperança.

Precisou lutar para não entrar em pânico quando a corda acabou e Hunter Predd nãoestava ali. Então uma mão enluvada a pegou pela bota e puxou-a para o mastreamentoda Black Moclips. Ela agarrou o aglomerado de eixos e travas e soltou a corda. Em uminstante a corda desapareceu e Obsidina também.

Agarrando-se ao mastreamento da aeronave com Hunter Predd tão próximo que elapodia ouvir-lhe a respiração, Rue Meridian levou um instante para se orientar. Depois queseus olhos se ajustaram, concluiu que estavam pendurados no alto do mastro traseiro,balançando suavemente com o sacolejo lento da aeronave. Não podiam ficar ali, pois noinstante em que as nuvens se abrissem e a lua tornasse a aparecer estariam expostos àluz do céu noturno e claramente visíveis para os vigias da nave.

Puxando Hunter Predd para perto, ela fez um gesto para baixo, indicando o quedeviam fazer. Lenta porém firmemente, colando-se ao mastro para permanecerescondida, ela encontrou a primeira das argolas de ferro que formavam apoios para asmãos e os pés, e então começou a descida. Para descer, foi necessário muito tempo eenergia; mais energia do que seria preciso se suas condições físicas não fossem tãodesfavoráveis. Suas feridas doíam, irritadas pela tensão do esforço físico e daconcentração mental. Levantou a cabeça e viu Hunter Predd logo acima, acompanhando-a para baixo. A descida deles foi suave e sem ruídos. Ele estava mais bem equipado paraisso do que ela.

Quando ela chegou perto do convés para ver quem estava vigiando, fez uma pausa.Achou uma dupla de guardas na proa e na popa: pela constituição física e pela posturadeles, soldados da federação. Não havia ninguém na cabine do piloto, mas um terceirohomem caminhava pelo convés, andando para um lado e para outro entre os pontões eos mastros, uma sombra inquieta e incansável. Ela captou um vislumbre momentâneo de

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seu corpo magro e rosto rígido quando ele passou sob uma réstia de luz das estrelas.Arregalou os olhos, surpresa. Será que não o conhecia? Achava que sim. Levantou acabeça para onde Hunter Predd estava parado nas argolas de ferro e fez um sinal paraque ele continuasse assim.

Então desceu mais alguns metros e caiu suavemente no convés, deslizando para asombra de uma caixa de armas. Os guardas não olharam na sua direção. Ela olhou ohomem por mais alguns momentos, esperando que ele passasse perto, que lhe desse ascostas; então ela se endireitou e caminhou diretamente em sua direção. Estava quaseem cima dele antes que ele sentisse sua presença e se virasse.

A essa altura ela tinha uma adaga na garganta dele e estava perto o bastante paraver quem era.

— Boa-noite, Donell Brae — ela disse baixinho, a mão livre agarrando com força obraço dele. — Não faça nenhum ruído alto, por favor. E nenhum movimento súbito.

O rosto vincado dele partiu-se em um sorriso irônico.— Eu disse a eles que era uma má idéia deixar você em sua própria nave, cativa ou

não.— Alguém devia ter ouvido você. Então agora me ouça. A Jerle Shannara é minha

novamente, minha e do Ruivão. Mas perdemos Hawk e estou procurando alguém aquipara pagar por isso. Ela está aqui?

Ele piscou.— A bruxa Ilse? Ela está em terra, procurando pelo druida. — Os olhos azul-claros,

tão familiares, lhe deram um olhar pensativo. — Fique longe dela, Ruivinha. Ela évenenosa.

Rue Meridian empurrou a ponta da adaga na garganta dele e ele grunhiu.— Ela ainda não descobriu quem é venenosa de verdade. Quem mais está aqui?

Aden Kett está no comando?Donell Brae assentiu.— Uma escolha estúpida para vocês dois.— Nem sempre é questão de escolha, Ruivinha.— Muito justo. Mas agora você tem uma. Faça o que lhe digo e pode continuar vivo.

— Empurrou mais uma vez a adaga, forçando a cabeça dele para trás. — Sempre gosteide você, Donell. Não gostaria que nossa amizade acabasse mal.

Ele engoliu em seco contra a ponta da adaga.— O que você quer?— Quem está a bordo além de você?— Se você não afastar essa adaga, vou cortar minha própria garganta tentando

responder.Ela desceu a lâmina até seu peito.— Deixe as mãos ao lado do corpo. Está carregando alguma arma?Ele tornou a abaixar a cabeça e a balançou.— Nunca gostei muito delas. Sou piloto, não espadachim. Isso é para outros.Um dos melhores pilotos da federação que ela havia conhecido. Haviam voado

juntos em missões nas Prekkendorran. Ele havia entrado para o serviço com Aden Kett,

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dois jovens soldados da federação quando começaram. Agora ele era um piloto e Kett umcomandante de aeronave. A tripulação deles fora designada para a Flying Mourn quandoRue Meridian fugiu para oeste com seu irmão. O comando da federação devia ter dado aBlack Moclips a eles como recompensa por seu serviço. Era uma boa escolha. A tripulaçãode Aden Kett era o melhor grupo da federação no céu.

Ela caminhou com Donell Brae até o mastro, onde Hunter Predd aguardava. Ocavaleiro alado havia descido de seu poleiro no mastro para encontrar um esconderijomelhor e tomar conta de Rue Meridian. As sentinelas em cada extremidade da aeronavenão repararam quando ela levou Donell até ele.

— Mais uma vez: quem está a bordo? — pressionou suavemente o piloto.Ele olhou direto para a frente.— O comandante, eu e onze membros da tripulação. Treze no total. Começamos

com quinze, mas dois foram deixados na Jerle Shannara para pilotá-la. Estão mortos,suponho?

Ela o ignorou.— Nenhum mwellret espreitando?Ele balançou a cabeça.— Estão todos em terra, caçando aquele garoto e quem quer que o tenha libertado.Um frio percorreu sua espinha. Ela olhou para a forma escura de Hunter Predd, que

estava perto o bastante para ouvir.— Vamos dar uma palavrinha com Aden Kett, Donell. As mesmas regras até

terminarmos. Comporte-se e não me teste.O rosto vincado olhou para ela.— Não sou idiota, Ruivinha. Já vi você com essas facas.— Ótimo. Lembre-se dessa imagem. Agora, onde está o comandante?Desceram as escadas que passavam pelo convés de popa e iam até as passagens

inferiores. A câmara do comandante estava na popa, situada a estibordo da nave noabrigo dos pontões. Desceram em silêncio o pequeno corredor até a porta da cabine epararam. Ela fez um gesto de cabeça para que Donell falasse.

— Comandante? — ele gritou para a porta.— Entre — foi a resposta imediata.O piloto soltou a trava e eles entraram rápido. Ela fechou a porta com um chute,

uma das mãos no braço de Donell Brae, a outra segurando a lâmina da adaga na palmada mão ao seu lado em posição de atirar.

Duas velas iluminavam a escuridão. Aden Kett estava sozinho, sentado em seu catre,escrevendo em um diário, um aglomerado de mapas espalhados à sua frente. Quandolevantou a cabeça, ela viu que o rosto forte e bonito estava machucado e a cabeçaenrolada em bandagens. Não pareceu surpreso em vê-la.

Pôs de lado pena e tinta e empurrou os mapas para longe.— Ruivinha. — Olhou para Donell Brae. — As coisas vão de mal a pior para nós

nestes dias, não vão?— Tentando descobrir exatamente onde no esquema das coisas você está? — ela

perguntou, indicando os mapas.

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Ele balançou a cabeça.— Tentando traçar um curso para casa, um curso que espero utilizar muito em breve.

— Deu de ombros. — Sonhar não custa nada.— Posso confiar que você não vai gritar por socorro enquanto conversamos? — ela

perguntou, balançando a adaga onde ele podia vê-la.Ele assentiu cansado.— Para quem eu gritaria? Por que me daria ao trabalho? Os rets e a bruxa estão em

terra e minha tripulação e eu estamos às cegas mais uma vez. Estamos todos cansadosdesse negócio.

— As coisas não estão indo bem, não é? — ela empurrou Donell para a frente, aindamantendo a mão livre no braço dele e a porta às costas onde podia alcançá-la seprecisasse. — Você deve estar sonhando com os velhos tempos, por piores que fossem.

Ele sorriu, um pouco de vida retornando ao seu rosto cansado.— As coisas eram menos complicadas.— Pelo menos para você. O que aconteceu com seu rosto?— Alguém entrou a bordo e resgatou o garoto que estávamos mantendo prisioneiro.

Entraram em minha cabine. Saí de meu catre bem a tempo de tomar uma pancada evoltar a cair sobre ele. Você também não parece lá muito bem.

Ela retribuiu o sorriso.— Estou me curando. Devagar e sempre. Mas não confunda isso com uma fraqueza

da qual possa tirar vantagem, Aden. Você não é melhor com lâminas do que Donell. —Ela deixou o aviso fazer efeito. — Fale desse garoto.

Aden Kett deu de ombros.— Não sei nada a respeito dele. Ele era um garoto. A bruxa Ilse o trouxe para cá e

nos mandou trancafiá-lo até que ela voltasse para buscá-lo. Os rets ficaram responsáveispor isso, então se ele fugiu é problema deles.

— Descreva-o. Pequeno? Tem cabelos escuros? Olhos azuis incomuns? Não era umelfo, era? Você ouviu o nome dele?

O outro balançou a cabeça.— Ele não fala. Acho que não pode. Mas é ele, pelo jeito que você descreveu. Quem

é ele?Ela não respondeu. Devia ser Bek. Mas por que ele não podia falar? E quem havia

conseguido entrar a bordo antes dela e tirá-lo dali?— Nenhum outro prisioneiro?— Nenhum que eu saiba. Ou que me incomode. — O comandante da federação tirou

os mapas do colo e balançou as pernas no lado do catre, certificando-se de não fazernada para assustá-la. Então se levantou e esticou as costas e os braços, sem pressa. —Já estou vendo que não vou dormir esta noite. O que você quer, Ruivinha?

Ela decidiu correr o risco.— Sua nave. Emprestada.Ele endireitou o corpo alto, alisou desajeitado os cabelos escuros e cruzou os braços

sobre o peito. Olhou para ela pensativo.— Emprestada?

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— Nós tomamos de volta a Jerle Shannara, Aden. O Ruivão e eu. Mas perdemosHawk no processo e alguém vai pagar por isso. Já falei isso com Donell. A bruxa nosdeixou presos aqui. Agora pretendo fazer o mesmo com ela. Se pudesse, eu a mataria.Mas deixá-la aprisionada aqui com seus rets funciona do mesmo jeito.

Ele assentiu devagar.— Quer que eu ajude você?— Quero que você fique fora do caminho. — Ela fez uma pausa, reconsiderando. —

Tudo bem. Quero que me ajude. Pode não ser uma má idéia, já que esta viagemprovavelmente vai terminar custando caro a você. Mas mesmo que você não ajude, queroa sua palavra de que vai ficar fora do caminho. Eu já tenho o controle da Black Moclipsmesmo.

Aden Kett olhou para Donell Brae, que deu de ombros.— Eu só vi mais um homem.Ela deu uma gargalhada.— Você não acha que eu vim a bordo com apenas um homem, acha? Isso seria

loucura!— O tipo de loucura que você prefere — sugeriu Kett. — Não há muito que você não

arrisque, Ruivinha. — Deu a ela um olhar perscrutador e ela sustentou seu olhar. — Dequalquer maneira — disse ele — não vou entregar a Black Moclips a você só porque estápedindo.

— É apenas um empréstimo — ela lembrou. — Estou pegando emprestada a naveapenas por tempo suficiente para encontrar meus amigos e nos levar até a costa. Entãovocê poderá ter sua nave de volta e ninguém vai ficar pior por causa disso.

— A bruxa pode não ver isso desse jeito.— A bruxa poderá não estar por perto para descobrir.Ele grunhiu.— Eu não apostaria minha vida nisso. E eu estarei por perto.— Diga a ela que você não teve escolha. Ou então deixe-a para trás e viaje para

casa. Esta luta não é negócio da federação de qualquer maneira. É entre a bruxa e odruida. É sobre algo que não diz respeito a nenhum de nós. Tudo o que o Ruivão e euqueremos é o dinheiro.

Ele viu a mentira nos olhos dela ou a ouviu em sua voz; ela não soube dizer qual dasduas coisas. Mas percebeu que ele não acreditava nela.

— O que importa é que nós somos diferentes, Ruivinha — disse ele Você não é umsoldado, você é uma mercenária. Eu sou um oficial de carreira. Esperam que eu obedeçaàs ordens que recebo, e não que as mude para se adequarem ao meu bel-prazer.Tampouco me permitem que mude de lado no meio de uma batalha. Chamam a isso detraição.

Ela o estudou, deixando as palavras se perderem no silêncio. Viu os olhos delebrilharem rapidamente até onde suas armas estavam penduradas em um gancho.

— Se você olhar naquela direção novamente — disse ela rápido, fazendo com que osolhos dele voltassem para ela —, mato você antes que tenha uma chance de pensarmelhor.

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Ela sentiu Donell Brae ficar tenso e imediatamente apertou ainda mais forte o braçodele.

— Nem pense nisso — ela avisou.Então ouviu passos no corredor lá fora, súbitos e inesperados. No mesmo instante,

comandante e piloto trocaram o segundo olhar, repleto de significado inconfundível.— Comandante? — uma voz grossa gritou.Donell Brae girou rapidamente para lutar com ela, mas ela já estava se movendo.

Derrubou o braço levantado e o atingiu com o máximo de força que pôde na têmporacom o cabo da adaga. Quando ele caiu, ela pulou por cima dele, interceptando Aden Kettno meio do caminho enquanto ele tentava alcançar em vão suas armas. Ela o jogou deencontro à parede da cabine e o derrubou no chão. Montando em cima dele furiosa,apertou a adaga com tanta força em sua garganta que tirou sangue.

— Comandante! — As batidas na porta eram fortes e urgentes.— O único motivo pelo qual não mato você aqui e agora é que você é um homem

decente e um bom oficial, Aden. — O rosto dela estava tão perto dele que pôde ver oterror refletido em seus olhos escuros. — Agora responda a ele!

Kett, preso ao chão e lutando para respirar, engoliu em seco.— O que é? — gritou na direção da porta.— Os rets estão voltando, comandante! Um bote acaba de sair da margem! O senhor

disse que era para avisar!Ela pôs a mão livre sobre a boca dele, hesitando. Estava perdendo o controle da

situação e precisava virar o jogo imediatamente. Primeiro Aden Kett e Donell Braetentavam atacá-la, e agora os mwellrets voltavam mais cedo para o navio. Ela não haviaacreditado que nenhuma dessas possibilidades pudesse acontecer e seu erro de cálculoestava ameaçando destruí-la. Se não agisse rápido, todos os seus planos iriam por águaabaixo. Tentar tomar toda uma aeronave e tripulação por conta própria era realmenteloucura, mas era isso o que ela tencionava. Havia começado como uma idéia meio crua,um objetivo tão distante que parecia impossível. Mas agora ela achava que podiarealmente estar ao seu alcance.

Tirou a mão da boca de Kett.— Diga a ele que espere um momento — ela sussurrou.E foi o que fez. Quando acabou de falar, rolou-o de lado rapidamente, pressionou o

joelho na espinha dele, encostou a adaga entre suas omoplatas e puxou as mãos delepara trás das costas. Usando uma tira de couro que carregava no cinto, amarrou-lhe comforça as mãos. Então se levantou, adaga na mão novamente, e puxou-o para que selevantasse.

— Diga para ele entrar — murmurou.Ele fez o que ela mandou e o tripulante abriu a porta, e entrou. Congelou no mesmo

instante que a viu com a adaga na garganta de seu comandante e o piloto caído imóvelno chão.

— Nem um pio — ela sibilou para o tripulante, fazendo um gesto inconfundível com aadaga. Esperou que ele assentisse concordando, e então indicou Donell Brae. — Levante-o. Rápido!

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Ajoelhando-se, o tripulante puxou o piloto inconsciente sobre um dos ombros etornou a se levantar.

— Desça o salão até os alojamentos — ela ordenou. — Vou estar bem atrás de você.Um som, um movimento errado, e seu comandante, seu piloto e, provavelmente vocêtambém, estarão mortos. Diga a ele, Aden.

Aden Kett grunhiu, sentindo uma ponta da adaga espetá-lo.— Faça o que ela diz.Saíram da cabine e penetraram no corredor mal iluminado, o tripulante carregando

Donell Brae e Rue Meridian seguindo com Aden Kett. Passaram silenciosamente pelosníveis inferiores da aeronave na direção dos alojamentos na proa.

Quando chegaram à porta dos alojamentos, elas os deteve do lado de fora. VirouAden Kett para poder vê-lo claramente.

— Para dentro, Aden — ordenou ela. — Fique quieto até eu descer para soltá-lonovamente. A porta ficará trancada, e espero que ela continue assim. Se eu ouvir algoque não gostar, vou tocar fogo na nave e queimá-la até a linha d’água com você e atripulação ainda dentro dela. — Encarou-o firme. — Não me provoque.

Ele assentiu, um quê de fúria renovada em seus olhos.— Você está cometendo um erro, Ruivinha. A bruxa Ilse é muito mais perigosa do

que você pensa.— Para dentro!Ela abriu a porta, deixou que entrassem, tornou a fechá-la e colocou a tranca. Levou

mais um instante para travá-la enfiando uma lâmina de adaga na fechadura para que elanão pudesse ser aberta. As portinholas recortadas no casco para deixar entrar o ar fresconão eram muito grandes para um homem passar. Pelo menos por enquanto, ela tinha ocomandante e os tripulantes da Black Moclips aprisionados.

Subiu correndo a escada que levava para o convés principal, encontrou o últimoguarda na amurada de proa e foi atrás dele. Já sabia que ele estava muito longe para elaalcançá-lo antes que a visse, mas foi assim mesmo. Não havia tempo para agirfurtivamente. Tinha de esperar que ele fosse tudo o que restava da tripulação. Pelo cantodo olho, viu o bote que se aproximava e as formas corpulentas de dois mwellrets que ocarregavam, aproximando-se. Podia sentir a dor da perna e do flanco machucadosenquanto corria, as feridas voltando a abrir, mas ela pôs de lado a dor e acelerou avelocidade.

O tripulante se virou ao som de sua aproximação, levantando as armas. Ela estavalenta demais e ainda muito longe!

Então, subitamente, ele desabou no convés e Hunter Predd saiu de trás do mastroprincipal com uma funda.

— Corte as cordas das âncoras! — ela gritou, mudando de direção para a cabine dopiloto.

Ela ouviu gritos abafados, sibilantes e zangados vindos do bote. Chegou até a caixae pulou para os controles, atraindo luz ambiente da única vela que já estava no lugar,fazendo com que a Black Moclips ficasse flutuando, acionando as alavancas dos tubos defragmentação, abrindo-os inteiramente. A aeronave deu um tranco com a infusão de

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energia. Ouviu Hunter Predd cortar a corda da âncora de proa e então correr para cortartambém a de popa.

Mais rápido!A espada do cavaleiro alado subiu e desceu duas vezes. Lenta e pesadamente, a

Black Moclips subiu, as cordas de âncora cortadas arrastando-se no convés, flechas elanças chocando-se com a parte de baixo como se fossem granizo. O bote, com seusfuriosos e indefesos mwellrets, caiu e desapareceu na escuridão.

Ela fechou os tubos de fragmentação e diminuiu a luz ambiente de energia. A naveera uma velha amiga e respondia bem ao seu toque. Mas manobrá-la sozinha era tarefadura e incerta. Sem ajuda, Rue Meridian não poderia lidar com uma nave daqueletamanho por muito tempo. Também precisaria de ajuda com os doze soldados dafederação que havia aprisionado em seus dormitórios. Reconheceu a situaçãorapidamente e percebeu que em pouco tempo Aden Kett e seus homens encontrariamuma maneira de escapar.

Diminuiu a velocidade da aeronave ao mínimo e deu meia-volta, apontando-a paraterra, na direção de Castledown. Em algum lugar adiante, a bruxa Ilse estava caçandoWalker, Bek estava correndo para salvar a própria vida e quem quer que ainda vivesse daequipe da Jerle Shannara esperava um resgate.

O resgate que talvez somente ela pudesse efetuar.Viu Hunter Predd se aproximar, viu o olhar questionador em seus olhos escuros e

balançou a cabeça.Desejava ter uma resposta melhor para lhe dar. Sabia que era melhor encontrar uma

logo.

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24

Quentin Leah estava apurando o ouvido com tanta atenção que pulou de susto

quando Tamis tocou o seu braço em sinal de alerta.— Ele está vindo — murmurou ela.Consumida pelo fato de que a mente de Ard Patrinell ainda estava viva dentro dele,

ela ainda chamava o wronk de ele, e não de aquilo — como se a parte humanaimportasse mais. O resto daquilo podia ser mecânico — armadura, fios e peças demáquina, metal frio e sem emoção —, mas não sua mente, aprisionada como estava,inteira e intacta, pensando os pensamentos de Ard Patrinell, usando suas própriashabilidades, caçando-os com uma determinação incansável e implacável.

Depois do aviso dela, Quentin apurou o ouvido para espreitar a chegada dele. Pormais que tentasse, ainda não conseguira ouvir nada.

Olhou para ela na luz do crepúsculo. O rosto redondo da elfa estava suado e seuscabelos castanhos curtos estavam sujos, emaranhados com pedaços de escombros. Suasroupas estavam rasgadas, ensangüentadas e tão sujas quanto o resto. Ela tinha oaspecto de uma criatura caçada, uma criatura acuada por algo tão inescapável quanto ocair da noite.

Um espelho dele próprio, admitiu. Não precisava ver sua própria aparência parasaber que isso era verdade. Eram uma combinação perfeita, fugitivos de um destino doqual nenhum dos dois podia escapar, que ambos eram forçados a confrontar.

Fugiram daquilo por todo o dia, correndo desde que o amanhecer os convencera deque tinham de encontrar uma forma de matá-lo. Por todas as florestas que cercavam asruínas de Castledown eles brincaram de gato e rato com o inevitável, desperdiçandotempo enquanto procuravam pôr um fim à criatura. Era uma caçada marcada por paradase recomeços, por esquemas e subterfúgios, por uma mistura de partes iguais dehabilidade e pura sorte. O wronk era um adversário terrível, tornado mais perigoso pelofato de que o pensamento de Ard Patrinell o guiava. Às vezes ele ia na direção deles emperseguição direta, como um caçador utilizando força e disposição para cansá-los. Àsvezes dava a volta em círculos para esperá-los, um predador prestes a dar o bote. Outrasvezes parava completamente e esperava que eles também parassem, que seperguntassem se o haviam perdido inteiramente, e então se aproximaria vindo de umadireção inesperada, rápida e subitamente, tentando pegá-los desprevenidos. Quase ospegou várias vezes, mas foram salvos em cada momento pela combinação de experiênciae habilidade dos dois, e pelo tipo de sorte que desafia qualquer explicação.

Quanto a esta última, refletiu Quentin, houve mais ocorrências do que a primeira, eera por isso que ainda estavam vivos.

A busca de um poço para os wronks havia levado mais tempo do que esperavam.

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Pensavam que os rindges haviam preparado muitas dessas armadilhas para seprotegerem das criaturas de Antrax. Quentin e Tamis haviam partido naquela manhãpara encontrar a mais próxima, recuando na direção do vilarejo de Obat e de seu povopara localizarem os poços ao longo das cercanias de Casdedown. Mas o wronk os haviaalcançado tão rápido que tiveram de adiantar sua busca e, conseqüentemente,fracassaram em encontrar aquilo que estavam procurando. O wronk era inconfundívelquando estava se aproximando, grande e pesado demais para esconder suaaproximação. Mas mesmo quando eles não conseguiam ouvi-lo, eram forçados a tentarescutar e vigiar porque era sutil e esperto, como Patrinell, e procurava constantementeum modo de pegá-los desprevenidos.

Para Quentin Leah, a vida fora reduzida ao mais simples dos termos: a sobrevivênciado mais apto. Ele estava engajado no tipo de luta de vida ou morte que havia imaginadoque acontecia com outros, mas nunca consigo mesmo. Todo o seu pensamento sobreuma grande aventura e novas experiências, tudo que havia alimentado sua decisão de sejuntar à expedição, havia se desvanecido em um passado do qual mal conseguia serecordar. O entusiasmo que havia passado para Bek, as possibilidades ilimitadas quehavia vislumbrado para o que iriam encontrar e a confiança que o levara a tantosconfrontos perigosos ao longo do caminho haviam se transformado em pó. Ele haviaesquecido Walker e a busca pelos livros de magia. Havia posto de lado qualquerpensamento sobre resgatar os outros, inclusive Bek. Tudo o que restava era umadeterminação teimosa e fatalista de continuar vivo por mais um dia, de escapar da coisaque o caçava e, em última hipótese, criar as condições propícias para recuperar o que elefora um dia.

Não tinha idéia do que Tamis estava pensando, embora pudesse adivinhar. Ela traziao peso de necessidades semelhantes, mas também o peso de suas memórias e dossentimentos em relação ao homem pelo qual havia sido apaixonada. Podia fingir quenão, podia dizer outra coisa a si mesma, mas para ele era claro que ela não podia seseparar de suas emoções, não podia ser tão verdadeiramente objetiva sobre o queprocuravam realizar. Para Tamis, a luta para destruir o wronk era mais do que tentarpermanecer viva. Era dar a Ard Patrinell a libertação que não podia encontrar de outramaneira, a paz que somente a morte traria. O ódio que ela sentia pelo que fora feito aele era tão penetrante que emanava de suas feições a cada momento. A batalha erapessoal para ela de uma maneira que jamais poderia ser para Quentin, e ela estavamotivada quase além da razão.

Mas não além do limite de suas habilidades, Quentin rapidamente percebeu, queeram consideráveis. Treinada como uma rastreadora pelo próprio Patrinell, ela era todatrabalho e julgamento, capaz de jogar bem o jogo no qual nenhum erro era permitido.Ela sabia o que esperar da mente que os caçava, estava familiarizada com seupensamento, seu raciocínio cheio de nuances. Podia antecipar o que aquilo tentaria eamenizar o efeito. O wronk era mais forte fisicamente, e se chegassem ao alcance delenão havia dúvidas do que aconteceria. Porém, Tamis estava inteira, enquanto o wronkestava fragmentado, montado a partir de peças que não se encaixavam naturalmente.Isso lhe dava uma vantagem que ela podia explorar, e foi ágil ao tentar fazê-lo.

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Era estranho pensar no que estavam tentando, fugindo por um lado e procurando sedefender por outro. Era uma coisa esquizofrênica e quebrada, baseada em princípiosopostos e enlouquecedores em suas demandas. Fuja do perigo, mas encontre umamaneira de enfrentá-lo. Quentin não tinha tempo para uma consideração equilibradadessa contradição. Estava consumido pelo conhecimento de que a coisa que os perseguiao fazia para destruí-lo, mas também para deixar uma parte dele viva. A coisa otransformaria em algo semelhante a ela própria, uma cópia perfeita, capaz de lidar com amagia da espada de Leah, mas incapaz de agir ao contrário das ordens de Antrax. A idéiade se tornar a máquina que Ard Patrinell havia se tornado era tão aterradora, tãoentorpecedora, que ele não conseguia olhar para essa possibilidade mais do queconseguiria olhar para o sol, afastando a dor de qualquer exame prolongado. Mas mesmoisso lhe dava uma clara e amarga compreensão de por que Tamis estava tãodeterminada a salvar Ard Patrinell.

A fuga daquele dia foi através da paisagem desconjuntada de um inferno surreal. Ossons do wronk que os perseguia eram constantes e estavam ao redor deles, aumentandovez por outra, quando o caçador escolhia uma trilha menos óbvia. O dia estava cobertode nuvens e ensolarado por turnos, lançando sombras que passavam por eles comoespectros e sugerindo coisas que não estavam ali, mas que podiam estar vindo. Eles jáestavam cansados ao partir, e o cansaço rapidamente se aprofundou. Passaram porlugares em que os arbustos estavam amassados e as árvores quebradas por lutas e poruma fuga frenética. Deram de cara com homens mortos no dia anterior. A maioria delesera rindge, a pele avermelhada conferindo-lhes identidade quando restavam apenaspedaços. Um deles era elfo, embora não tivesse sobrado o bastante para que pudessemdeterminar qual era. O sangue encharcava o chão e borrifava as árvores com manchasressecadas e enegrecidas pela ação do sol. Armas e roupas jaziam espalhadas por todaparte. O silêncio cobria a carnificina e a desolação como um manto.

Quando se aproximaram da aldeia rindge, o número de mortos aumentou. Erammortos demais para serem somente aqueles do grupo de caça. Quando chegaram aovilarejo propriamente dito, descobriram suas cabanas e abrigos esmagados e queimados,e seu povo desaparecido. Uns poucos estavam mortos, aqueles que haviam compradocom suas vidas uma chance para que os outros escapassem. O fato de que um simplesser pudesse provocar tamanha destruição sozinho, sem auxílio, contra tantos, erahorrível. O fato de que a mente de Ard Patrinell fosse parte integrante daquele ser esoubesse o que estava fazendo, mas fosse incapaz de detê-lo, era desolador. Tamis nãochorou quando passaram pela aldeia, mas Quentin viu lágrimas em seus olhos.

Fizeram uma pausa do outro lado da aldeia, onde a carnificina terminava. Osremanescentes do povo de Obat haviam fugido para as colinas e talvez para asmontanhas mais além. O wronk havia perdido o interesse neles àquela altura e fora paraoutro lugar.

Quentin ficou com Tamis e olhou a destruição.— Você não estava enganado quanto aos olhos dele? — ela lhe perguntou quase em

desespero. Todas as bravatas e as ironias haviam sumido de sua voz e ela mal conseguiafalar. — Era Ard Patrinell olhando para você?

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Ele assentiu. Não conseguia pensar em nada para dizer.— Ele jamais faria algo assim se pudesse evitar — disse ela. — Ele morreria

primeiro. Ele era um bom homem, montanhês, talvez o melhor que já conheci. Era gentile carinhoso. Cuidava de todos. Pensava na guarda real como sua família e em si mesmocomo o pai dela. Quando novos membros eram levados para treinamento, ele dizia quefaria tudo o que pudesse para mantê-los a salvo. Nos encontros, ele contava histórias ecantava. Você o viu taciturno e sério, mas isso foi somente desde a morte do rei, pelaqual ele se culpava, pela qual não conseguia se perdoar. Kylen Elessedil retirou seucomando por falhas imaginárias e conveniência política. Já havia sido bastante ruim. Masagora este monstro, este Antrax, retirou o controle sobre suas ações também e o deixoucomo uma casca de conhecimento sem poder.

Foi o máximo que ele já a havia ouvido dizer de uma vez só, e o mais próximo a queela havia chegado de admitir o que sentia sobre o homem que amava.

Ela desviou o olhar, triste e derrotada.— Pode imaginar o que isto está fazendo com ele?Ele podia. Pior, ele podia imaginar isso acontecendo consigo mesmo, o que era

horrível demais para ponderar. A mão apertou o cabo da espada. Agora ele a traziadesembainhada todo o tempo, determinado a não se deixar mais surpreender e, seatacado, estaria pronto. Era tudo o que ele podia pensar em fazer para equilibrar ascoisas a seu favor. Era estranho como isso não lhe dava muito conforto.

Voltaram a atravessar a aldeia, escolhendo um caminho de saída diferente, aindaprocurando por um dos poços ocultos. O sol atravessara o céu em um arco longo e lento,o dia desaparecendo sem nada para mostrar em sua passagem, a noite chegando comsua promessa de medo puro e uma incerteza cada vez maior. O tempo era um zumbidoinsistente em seus ouvidos, lembrete do que estava em jogo.

Quando penetraram na aldeia, tudo estava em silêncio. Quando partiram, podiamouvir a distância os sons do wronk que se movia na direção deles.

Tamis se virou com alguma coisa próxima da fúria cega, sua espada curta brilhandona luz.

— Talvez devêssemos ficar e enfrentá-lo bem aqui! — Ela se virou. — Talvezdevêssemos esquecer a caçada em busca de poços que talvez nem sequer existam!

Quentin ia dar uma resposta agressiva, mas então pensou melhor. Ao invés disso,balançou a cabeça, e quando falou manteve sua voz calma.

— Se morrermos fazendo um gesto inútil, não faremos nada para ajudar Patrinell. —Ela olhou para ele fuzilando, mas ele não desviou o olhar. — Nós fizemos um acordo.Vamos mantê-lo.

Continuaram por toda a tarde, saindo da aldeia e voltando na direção deCastledown, escolhendo uma trilha que estava quase desaparecida por falta de uso.Nenhum sinal de vida apareceu. A cerca de meio caminho entre a aldeia e as ruínas, noinício do crepúsculo, estavam passando por um espaço aberto na floresta na qual grandesfendas e elevações ondulavam o terreno e o mato crescia em moitas. A luz que diminuíaera ainda mais fraca ali, filtrada por coníferas que cresciam bem acima de trinta metrosde altura e se espalhavam em todas as direções, menos para o sul, onde se abria uma

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campina de flores selvagens, minimizando o terreno mais áspero. Estavam seguindo nadireção de um caminho que se abria para outro lado quando Tamis agarrou o braço deQuentin e apontou logo adiante, para o que ele pensou que parecia, como tudo o mais aoredor deles, um terreno áspero e cheio de mato cerrado. Exasperada, ela o puxou bemao local para o qual estava apontando, e então ele reconheceu. O poço estava bemescondido por uma tela de gravetos cobertos com uma espécie de tecido cor-de-argila,areia e terra, bolinhos de gramíneas secas e escombros. Era tão bem projetado quedesaparecia na paisagem. A menos que você estivesse bem em cima dele e olhasse parabaixo, não o veria.

Mas Tamis havia visto. Ele olhou para ela em busca de uma explicação.Ela deu um sorriso amargo com uma autodepreciação melancólica.— Sorte.Apontou para um lado. Ele levou um tempo para ver que um canto do tecido de

apoio estava aparecendo na superfície.— É só enterrar aquilo e o poço fica invisível novamente.— Ou movê-lo para outro lugar e você cria uma pista falsa. E uma vantagem para

nós. — Ele olhou para ela, questionador. — O que acha?Ela assentiu devagar.— Porque Patrinell o verá também, assim como eu o vi. — Ela colocou uma das mãos

em seu ombro e o apertou. — Era isto o que estávamos procurando, montanhês. Aquifaremos nossa defesa.

Cortaram o pedaço de tecido e tornaram a enterrá-lo em outro lugar com a pontaaparecendo. Usaram alguns galhos e gramíneas espalhados para sugerir que o poçopudesse estar localizado ali. Era razoável supor que um wronk, usando as habilidades e aexperiência de Ard Patrinell, estivesse procurando por armadilhas, especialmente se osencontrasse preparados para ficar e lutar. Se pudessem atraí-lo na direção errada oudesorientá-lo apenas um pouco, poderiam jogá-lo no poço antes que ele soubesse o queestava acontecendo.

Era um jogo perigoso. Mas era tudo o que tinham para trabalhar.Então, esperaram na noite que caía, escutando a aproximação do adversário, um

quebrar seco de gravetos e galhos, firme e inexorável. Haviam pensado em acenderfogueiras para lhes dar um campo de batalha claro, mas decidiram que a escuridão osfavorecia mais. A lua e as estrelas apareciam e desapareciam por trás de uma tela denuvens, fornecendo pedaços de luz com os quais trabalhar. Eles haviam se posicionadoem um ângulo reto atrás do falso poço, deixando o melhor e mais lógico caminho paraalcançá-los à sua direita, em cima do verdadeiro poço. Agora eles estavam em pé juntos,mas mudariam de posição quando o wronk aparecesse. Haviam planejadocuidadosamente. Só faltava testar.

Daria certo, Quentin disse a si mesmo em silêncio. Tinha de dar.Ele ouviu claramente o wronk, os passos pesados se aproximando. Sua pele ficou

arrepiada com aquele som. Tamis estava bem ao seu lado e ele podia ouvir a respiraçãoentrecortada dela. Seguravam suas espadas à frente, as lâminas brilhando na luz do luarquando as nuvens se abriram por um momento. A cabeça de Quentin latejava e seu

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sangue zumbia com fagulhas ferozes da magia que irrompia da espada de Leah quandoesta reagia ao senso de perigo. Ele sentiu a mudança em seu corpo enquanto sepreparava para se entregar ao poder da espada. Uma mistura igual de satisfação e medofervilhava dentro dele. Ele seria transformado, e agora sabia o que isso significava.Quando a magia penetrava nele, transmitia-lhe uma terrível fúria e ele arriscava suaalma.

Sem ela, claro, ele arriscava sua vida. Não chegava a ser uma escolha.Com uma graça quase delicada, o wronk entrou na clareira. Embora seus traços

fossem indistintos e espectrais na luz fraca, sua forma e seu tamanho eraminconfundíveis. Quentin o viu com uma mistura de medo puro e nojo. Aquilo registrou suapresença instantaneamente, ficando parado, como se testasse o vento. Um reluzir demetal atravessou a escuridão quando um pedaço do monstro foi refletidomomentaneamente pela luz das estrelas. A lua havia desaparecido atrás das nuvens e anoite era espessa e opressiva. Dentro da muralha negra das árvores havia um silêncioque não se quebrava.

O montanhês sentiu que Tamis estava tensa, esperando que ele tomasse adianteira. Haviam concordado que era ele quem deveria fazer aquilo, que era ele a quemo wronk estava procurando e que era quem podia melhor atraí-lo para a direção quedesejavam que ele seguisse. O plano deles era simples. Fingir enganá-lo de umamaneira, sabendo que ele escolheria outra. Era o cérebro de Ard Patrinell emfuncionamento dentro do wronk, e por isso seria o pensamento de Patrinell que iriadirecioná-lo. Ele sentiria uma tramóia, um engodo, e por isso agiria para evitá-lo. Sepudessem tirar vantagem daquele pensamento, se pudessem antecipar seu raciocínio,poderiam atraí-lo para dentro do poço. Era um plano fraco, na melhor das hipóteses, masera o único que tinham.

O wronk tornou a se desviar, atraindo novas lâminas de luz das estrelas para suapele metálica, pontinhos brilhantes que piscavam e se apagavam como vaga-lumes.Ouviram o corpo pesado dar um passo adiante e parar novamente. Nenhuma parte dorosto torturado de Ard Patrinell era visível para eles, e por isso poderiam fingir que owronk não era nada mais do que uma máquina. Mas, em sua mente, Quentin reviu osolhos do elfo, olhando de dentro de sua prisão — frenéticos, implorando, desesperadospor libertação. Ele teria banido a imagem se soubesse como fazê-lo, mas ela era tãoforte e tão invasora que ele não conseguiu. Ela era uma janela não só para o destinoterrível de Patrinell, mas também para o seu próprio. Tamis libertaria seu amante de suamorte em vida. Quentin simplesmente iria evitar ter o mesmo destino.

Suando profusamente, o calor formando uma película de transpiração em seu rosto eseus braços, imaginou distraído como as coisas haviam chegado até aquele ponto. Elehavia embarcado na jornada com muitas esperanças de algo maravilhoso quepreenchesse e transformasse sua vida. Ele havia desejado uma aventura. E conseguiraum pesadelo.

— Pronta? — ele murmurou.Tamis assentiu, o rosto sombrio.— Não deixe que ele me pegue viva — disse ela rapidamente. — Prometa.

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— Prometa-me também. — Seu coração estava martelando com força dentro dopeito.

— Eu o amava — ela sussurrou tão baixinho que ele mal a ouviu pronunciar aspalavras.

Quentin Leah respirou fundo e ergueu sua espada.

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25

Bek Ohmsford seguiu Truls Rohk desde a margem sem resistência. Correu com o

mutante até o fundo da floresta por um longo tempo e não reclamou. Mas finalmenteseus esforços para manter o ritmo falharam. Sua força cedeu e ele desabou aos pés deum bordo de galhos largos, sentando-se com a cabeça entre as pernas, respirando emgrandes golfadas.

O mutante, uma sombra oculta no fundo da noite, virou-se para ele sem emitir umsom e ajoelhou-se ao seu lado.

— Você andou mais do que a maioria conseguiria. Você é duro para um garoto.Ficaram olhando um para o outro na escuridão. Bek tentava falar e não conseguia. O

que quer que Grianne tivesse feito a ele, fugir da Black Moclips não havia ajudado. Suavoz não voltara. Fez uma série de gestos fracos e inúteis, mas o outro achou que seusilêncio era por causa da exaustão.

— Achou que eu estava morto, não achou? — Truls Rohk riu. — Já cometeram esseerro antes. — Mexeu-se dentro do manto e se agachou. — Mas estive mesmo perto demorrer. A bruxa Ilse preparou uma armadilha pela qual eu não estava esperando: umcaull. Ela adivinhou meu objetivo de dar a volta para esperar por ela e colocou o caullatrás de mim. Eu estava muito ansioso para voltar até você e procurar pelo caulladequadamente. Ele me apanhou quando eu estava me abaixando para pegar sua faca,de costas. Nem percebi que aquilo estava lá.

Fez uma pausa.— Mas você me salvou. E sem saber. Pense nisso.Bek balançou a cabeça, confuso.— Depois que fui embora, você recebeu uma visita dos mutantes que habitam

aquela região.Bek assentiu. Ainda podia se lembrar do cheiro e da sensação deles na noite,

imensos, de pêlos arrepiados e vozes roucas, como feras.— O que quer que você tenha dito, atraiu o interesse deles. Também decidiram

esperar por mim. Quando um verdadeiro mutante se esconde, ninguém consegueencontrá-lo. O caull, esperando por mim, não conseguiu. Não conseguiu sequer ver queeles estavam ali. Quando ele me atacou, eles o jogaram em pleno ar, prenderam-no comcordas tão duras que ele não conseguiu se libertar e o levaram para longe. Antes departirem, disseram que meu lugar neste mundo e minha vida pertenciam a você. O queacha que eles queriam dizer com isso?

Bek pensou, lembrando de como os mutantes o haviam questionado quanto ao seurelacionamento com Truls Rohk, sondando seu raciocínio, testando sua lealdade. Vocêdaria sua vida por ele? Sim, pois acho que ele faria o mesmo por mim. Sua resposta, ao

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que parecia, havia significado alguma coisa, afinal.Truls Rohk grunhiu.— De qualquer modo, adormeci quando eles me deixaram. Não era oque eu tinha

planejado, mas não pude evitar. Alguma coisa nas vozes deles. Quando acordei, vimprocurar por você. Mas a bruxa tomou o cuidado de disfarçar sua passagem de maneiraque eu não consegui desvendar imediatamente. Não importava. Eu sabia que ela trariavocê de volta. A primeira coisa que tentei foi a aeronave ao vê-la ancorada na baía. ABlack Moclips, a própria nave da bruxa. Seu cheiro me levou direto a você, preso naqueledepósito. Cheguei bem na hora, não foi?

Esperou por um segundo, e então subitamente estendeu a mão, agarrando Bek pelafrente de sua túnica.

— O que há de errado com você, garoto? Por que não fala alguma coisa?Bek se soltou com um safanão e apontou zangado para o pescoço. Então bateu com

a mão na boca para dar ênfase.— Você está ferido? — o outro quis saber. — Alguma coisa machucou sua garganta?Impaciente, Bek rabiscou as palavras na terra com um graveto. A cabeça

encapuzada curvou-se para olhar.— Você não pode falar? — Bek escreveu mais um pouco. — A bruxa roubou sua voz?

Com magia?Truls Rohk balançou o corpo sobre os calcanhares e se levantou. Fez um gesto de

desprezo.— Ela não tem esse tipo de poder sobre você. Nunca teve. O que você acha que o

druida estava tentando dizer? Você é igual a ela, mesmo que não esteja treinado. Vocêtambém tem o dom. Eu soube isso desde o momento em que nos encontramos nasmontanhas Wolfsktaag, meses atrás.

Bek balançou a cabeça veementemente, gritando, mas sem emitir um som, umaresposta amarga.

— Pense! — o outro disparou irritado. — Ela o manteve vivo até agora para descobriro que você sabe. Será que ela destruiria sua voz para que você nunca mais pudessefalar? Hein? Não, ela fez o que sabe fazer melhor. Brincou com sua mente. Enganou vocêe o deixou pensando o que ela quer que você pense. É uma espécie de alteração mental.Pode falar se quiser. Vá em frente. Tente.

Bek olhou para ele sem acreditar, e então balançou a cabeça.— Tente, garoto.Já tentei!, ele moveu a boca zangado para formar as palavras.Truls Rohk o empurrou com mais força.— Tente outra vez.Bek cambaleou para trás e se endireitou. Pare com isso!— Faça o que estou dizendo! Tente outra vez! — O mutante o empurrou uma

segunda vez, com mais força do que antes. — Tente, se você tem coragem! Tente, senão quiser que eu derrube você! — Empurrou Bek com tanta força que o outro quasecaiu. — Mande-me parar! Vamos, mande!

Vermelho de raiva, Bek atacou a forma encapuzada, mas Truls Rohk bloqueou seu

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avanço e tornou a empurrá-lo.— Você tem medo dela, não tem? É por isso que não tenta. Você está morrendo de

medo! Admita!Ele lhe deu as costas.— Não tenho nada a fazer com alguém que não pode fazer mais do que me seguir

como um cachorro. Saia de perto de mim! Eu vou fazer isso sozinho.Bek correu para a frente dele e bloqueou seu caminho. Pare com isso! Eu vou com

você!— Então diga isso na minha cara! — A voz de Truls Rohk se transformou num

perigoso sibilar. — Diga agora mesmo, garoto! — Tornou a empurrar Bek, com mais forçado que antes. — Diga, ou saia do meu...

Alguma coisa cedeu dentro de Bek, uma transformação visceral que lhe dava asensação de que sua carne estava se rasgando. Isto cedeu perante uma mistura de raiva,humilhação e frustração que engolia a tudo como um rio transbordante que derrubavauma represa construída para águas mais calmas. Sua voz explodiu de dentro em um gritoprimal de tamanho impacto que tirou Truls Rohk do chão e o mandou voando para trás. Ogrito quebrou galhos de árvores, amassou o mato alto, arrancou pedaços de cascas erevolveu a terra por dez metros. Começou com o gemido do vento de um furacão queperturbou o silêncio da floresta, e então tornou a cobri-lo com uma capa mais escura esufocante.

Bek caiu de joelhos, chocado, sem acreditar, tossindo os fragmentos finais de ruído,o som de sua voz caindo até um sussurro assustado.

Truls Rohk se levantou e limpou a sujeira do corpo.— Sombras! — ele murmurou. Estendeu a mão para Bek e o levantou. — Isso era

mesmo necessário?Bek riu sem querer. Era bom ouvir esse som novamente.— Você tinha razão. Eu podia falar o tempo todo.— Mas não até que eu fizesse você ficar louco o bastante para fazer isso. — A

impaciência do mutante era evidente em sua voz. — Não se deixe enganar de novo.— Não se preocupe, não deixarei.— Você é páreo para ela, garoto.— Vou descobrir isso muito em breve, não vou?Os grandes ombros se sacudiram dentro do manto.— Talvez você devesse deixá-la para mim.Um frio de reconhecimento percorreu a espinha de Bek. Ele estendeu a mão

impulsivamente e agarrou o ombro do outro, sentindo os músculos e os tendõesencordoados endurecerem em resposta, sentindo nós de cartilagem se deslocarem.

— O que quer dizer?— O que acha que quero dizer?O estômago de Bek apertou.— Não faça isso, Truls. Não a mate. Não quero isso. Não importa o que aconteça. Me

prometa.A risada do outro foi dura e vazia.

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— Por que eu deveria prometer isso a você? Ela foi rápida o bastante para tentar mematar!

— Ela está tão confusa quanto eu com isso tudo. Mentiram para ela e a enganaram.O que ela acredita sobre si mesma e sobre mim não chega nem perto da verdade. Seráque ela não merece uma chance de descobrir? A mesma chance que você me deu agoramesmo?

Continuava agarrando o ombro do outro, segurando-se nele como se quisessearrancar a concessão que procurava. Mas Truls Rohk não tentou se afastar. Em vez disso,deu um passo para frente.

— Se outra pessoa colocasse as mãos em mim do jeito que você colocou, eu a teriamatado sem pensar.

Bek não recuou nem assim, não se atreveu a se mover, embora uma voz interiorgritasse para que ele o fizesse. Sentiu-se incrivelmente pequeno e vulnerável.

— Não a mate. É tudo o que peço.— Ah! Devemos convidá-la para se juntar a nós, esquecer sua vida maligna, perdoar

o passado, fingir que ela não tem aliança com os rets? É esse o seu plano? Convencê-la aser nossa amiga? Você já não tentou isso antes?

A cabeça encapuzada curvou-se mais para perto e Bek pôde ouvir o somdesagradável da respiração do outro.

— Cresça e apareça, garoto. Este não é um jogo que você pode recomeçar se perder.Se não matá-la, ela matará você. Ela está muito além de qualquer lugar onde a razão oua verdade podem alcançá-la. Ela viveu uma vida inteira de mentiras e meias-verdades,de ilusões e enganos. Pense no que a trouxe até nós. Sua única ambição, que a consomepor completo, é matar Walker. Se ela ainda não conseguiu fazer isso, irá tentar a sorteem breve. Muito embora o druida me irrite e tenha provocado muito deste infortúniosobre si mesmo, não vou entregá-lo a ela.

Ambas as mãos dispararam subitamente e agarraram Bek mais uma vez.— Ela não é mais sua irmã! Ela é a ferramenta do Morgawr! Ela é sua própria criação

negra, tão mortal quanto as criaturas que gosta tanto de utilizar, as coisas que elaconjura em pesadelos! Ela é um monstro!

Bek ficou paralisado, encarando o vácuo negro do capuz do outro. Não havia dúvidassobre o que aconteceria se Truls Rohk encontrasse Grianne. O mutante não desperdiçariaum instante pensando nas alternativas. Se Bek não achasse um jeito de fazê-lo mudar deidéia naquele momento, o mutante a mataria — ou morreria tentando.

Antes que pudesse pensar melhor, antes que pudesse avaliar as conseqüências osuficiente para que reconsiderasse, ele disse:

— Alguns diriam a mesma coisa a seu respeito. Diriam que você também é ummonstro. Será que eles estariam certos? Você é tão diferente assim dela?

As mãos apertaram seus braços.— Cuidado com a língua, garoto! Existe toda a diferença do mundo entre nós, e você

sabe.Bek respirou fundo.— Não, não acho nada disso. Para mim vocês são a mesma coisa. Ambos escondem

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o que são. Ela se esconde por trás de mentiras e enganos. Você se esconde por trás decapuz e manto. O quanto alguém sabe a respeito de qualquer um dos dois? O quantoestá escondido que ninguém jamais vê? Por que ela merece morrer e você viver?

Truls Rohk levantou-o do chão com o mesmo esforço com o qual levantaria umacriança, sua fúria uma coisa palpável no silêncio. Por um instante Bek teve certeza deque o mutante o esmagaria.

— Mostre-me seu rosto se quer que eu acredite em você — disse ele.— Eu o avisei quanto a isso — sibilou o outro. — Eu lhe disse que deixasse isso de

lado. Agora estou lhe dizendo pela última vez. Deixe como está. — Segurava Bek comouma boneca de pano. — Chega! Já é hora de partirmos. A recuperação de sua voz pôdeser ouvida a cinco quilômetros de distância.

— Mostre-me seu rosto. Não vamos embora até que você faça isso.O mutante o sacudiu com tanta força que Bek ouviu suas articulações estalarem.— Você não vai suportar olhar para mim!Bek engoliu em seco e ficou rígido.— Se você não é um monstro, se você não está escondendo a verdade, mostre-me

seu rosto.Truls Rohk deu um urro zangado.— Meu rosto não é quem eu sou!Então levantou Bek ainda mais alto, quase sobre sua cabeça, como se pudesse atirá-

lo longe. Havia tanto poder no mutante, tanta força! O garoto fechou os olhos e ficoupendendo sobre um vazio negro, escutando as batidas de seu coração.

Então sentiu-se sendo abaixado de volta ao chão. As mãos o soltaram. Abriu os olhose viu Truls Rohk em pé à sua frente, imenso, negro e impenetrável. Ao seu redor, afloresta havia se tornado opressivamente parada, como se tivesse se tornado umatestemunha apavorada e involuntária do que estava acontecendo.

— Se você me vir, se realmente me vir, isso irá mudar tudo entre nós — disse TrulsRohk.

Ele parecia quase desesperado para impedir que isso acontecesse, para fazer comque o garoto mudasse de idéia. Era mais do que o desejo de preservar a relação quetinham como protetor e pupilo. Era um medo de que a amizade deles, qualquer que fosseo estágio que havia atingido, se estilhaçasse como vidro. Bek entendia, mas mesmoassim sabia que não poderia recuar, não se quisesse salvar Grianne.

— Não me peça isso de novo — avisou Truls Rohk.Bek balançou a cabeça.— Mostre-me seu rosto.— Está certo, garoto! Quer ver a minha aparência, o que mantenho escondido de

todos? Então veja! Veja o que meus pais fizeram de mim! Veja o que eu sou! — disse ooutro com tanto veneno na voz que Bek estremeceu.

Em um único e frenético movimento, ele arrancou o manto e se revelou.No começo Bek o viu apenas como uma forma vaga destacada contra a escuridão; a

lua e as estrelas estavam ocultas por nuvens, deixando a floresta pouco mais do que umareunião de sombras. O manto de Truls Rohk estava caído sobre uma poça escura no chão

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e o mutante havia se agachado, assumindo um aspecto feroz e perigoso. Numa posturaque não parecia feita nem para fugir nem para atacar, ele parecia apanhado em uma teiafeita de galhos de árvores que formavam um fundo atrás dele, grudado contra o céudistante.

Então Bek viu um início de movimento. O movimento não vinha de um deslocamentode membros ou da cabeça, mas de dentro da massa escura de seu corpo, como se aprópria carne estivesse viva e se arrastando. O movimento tinha um aspecto líquido, eTruls Rohk, a aparência de um copo de vidro cheio de água. Isso foi tão inesperado queBek achou que seus olhos o enganavam. Ele também pensou isso quando partes domutante se desvaneceram e em seguida reapareceram de modo fantasmagórico.

Mas quando a lua surgiu por trás das nuvens e inundou a clareira com um brilholeitoso, Bek entendeu. Truls Rohk parecia uma coisa montada a partir de partes soltas derestos humanos, algumas delas malformadas, outras semiapodrecidas, todas se movendocomo uma miragem que poderia não estar ali. O aspecto aquoso era devido à maneirapela qual as partes dele mudavam constantemente de carne e osso para névoa e ar. Nãohavia nada de permanente em Truls Rohk. Ele era apenas uma coisa semicompleta, partedele reconhecível como humano, mas não o bastante para chamá-lo de homem.

Era facilmente a visão mais terrível que Bek já havia testemunhado — não apenaspelo que era, mas também pelo que sugeria. Ela trazia consigo sussurros da sepultura, demorte e decomposição, do que esperava para reclamar o corpo quando ele começasse ase decompor. Gritos do que poderia ser sensação de ter o próprio corpo sedesintegrando. Sugeria dor e sofrimento inimagináveis. Lembrava pesadelos e criaturasque saíam deles para afastar você de seu sono. Era surreal e feio. Era anátema paraqualquer conceito humano de vida.

Ele não disse nada, mas Truls Rohk viu seu olhar.— Isto é o que acontece quando um mutante se acasala com um humano — ele

murmurou com uma fúria quase incontida. — É isto o que acontece quando se quebramtabus. Eu lhe contei que meu pai tentou me matar depois de matar minha mãe. Ele fezisso quando ela mostrou a ele o que fizera com ela. Ele o fez quando viu o que eu era.Ele não pôde suportar. Não podia me aceitar. Quem poderia? Eu estou aprisionado emum corpo semiformado. Sou feito de fragmentos de carne e osso por um lado, eelementos da natureza por outro, mas não inteiramente formado por nenhum dos dois.Fico passando de um para outro, preso.

Bek não conseguia falar. Ficou olhando para ele sem dizer palavra, tentandoimaginar como seria se fosse igual a Truls Rohk, incapaz de fazê-lo.

O mutante deu uma risada profunda.— Agora não está tão ansioso para me ver, não é? Que pena! É isto o que eu sou,

garoto. Tenho força e poder ao meu comando. Tenho uma presença. Mas me falta acapacidade de um verdadeiro mutante de alterar a forma com precisão. Não possoesconder a verdade de mim mesmo. E por isso que vivo distante, porque sempre vividistante. Ninguém consegue suportar olhar para mim.

Deu um passo à frente e Bek recuou sem querer quando pedaços do corpo do outroondularam e se deslocaram, expondo extremidades de ossos, canais sangüíneos e tiras

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de carne rasgada entre os deslocamentos de ar e água, de luz e escuridão. Um olhosaltou para fora e desapareceu. Dentes brilharam para fora de um crânio semidespido.Mãos mostravam as pontas dos ossos dos dedos e tendões nus. Cabelos e pêlos cresciamem placas, divididas e arrancadas. Nada parecia projetado para ficar junto, mas ficava,embora com o aspecto de algo que estava para desabar sobre si mesmo.

— Ah! — Truls Rohk cuspiu o som com tanto veneno que fez o garoto estremecer. Orosto devastado se virou. — Você tinha razão, garoto. Eu sou um monstro. Está satisfeitoagora?

Começou a se virar, mas Bek deu um pulo para a frente e agarrou-lhe o braço,apertando com força a vastidão de ossos esfarelados e carne que se deslocava.

— Foi você quem disse isso — disse Bek. — Seu rosto não é quem você é. Podeparecer um monstro, mas não é. Você é meu amigo. Salvou a minha vida. Mas nãoconfiava em mim para contar a verdade a seu respeito. Escondia a verdade porque seenganava e pensava que era outra coisa. Eu prefiro conhecer você assim, por maisterrível que seja, do que ter a verdade ocultada.

— Belas palavras — grunhiu o outro, mas não se afastou.— A verdade, Truls Rohk. Eu sei que você se odeia por ter esse aspecto. Sei que

odeia seu aspecto e como os outros irão olhá-lo se se revelar. Mas às vezes, com pessoasque importam, precisa revelar até mesmo o pior do que você acredita ser. Precisa ter féno fato de que não fará diferença. Jamais o julguei pelo seu aspecto. O que importa équem você é, e quem você é está sempre enterrado bem no seu interior. Os mutantesnas montanhas sabiam disso. Perguntaram-me o que eu sentia por você porque queriamver se eu o achava importante. Será que poderia haver uma amizade entre nós? Até queponto iria essa amizade? Será que eu achava que haveria um lugar para você no mundo?Será que eu cederia meu próprio lugar para que você tivesse o seu? Será que eu dariaminha vida por você? Eu lhes dei respostas que não tinham nada a ver com seu aspecto etudo a ver com quem você é.

— Então, o que você conseguiu fazendo com que eu lhe mostrasse como sou? A quepropósito isso serviu? — Amargura e suspeita cobriam as palavras do outro. — A verdadenão ajuda ninguém aqui.

Bek apertou o braço do outro e continuou:— Mas você não está vendo? A verdade ajuda a todos. A chance de viver que os

mutantes deram a você quando foi atacado pelo caull é a mesma chance que você devedar a Grianne. Todos acham que ela também é um monstro. Mas a verdade é algointeiramente diferente. Ela simplesmente precisa de alguém que a ajude a ver isso. Elaprecisa de alguém que a ajude a se despir de seus enganos e mentiras. Precisa dealguém que acredite nela, que acredite que ela é mais do que todos vêem. Ela precisa dealguém que fale por ela.

Bek inclinou-se para perto.— Não há mais ninguém a não ser você e eu. Somos a última esperança dela.Fez-se um longo silêncio quando ele terminou, um congelamento de tempo e espaço

enquanto o garoto e o mutante encaravam um ao outro na escuridão, um humano e ooutro, alguma coisa. Todo o ar havia desaparecido do mundo, deixando-o vazio e

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sufocante. Bek não sabia o que fazer ou dizer. Recusava-se a soltar Truls Rohk,segurando-o firme pelo braço, como se fazendo assim pudesse mantê-lo preso à suacausa.

— Você e eu — o outro disse por fim, a voz rouca estranhamente suave. — Mas emgrande parte você.

Libertou-se tão rápido que Bek não teve tempo de detê-lo, estendeu a mão parapegar o manto e voltou a colocá-lo, tornando-se mais uma vez uma aparição escura esem rosto na noite. Todas as suas partes, todas as partes arruinadas que se deslocavam,para sempre sumindo e aparecendo como visões semiformadas, desapareceram.

— O druida estava certo ao escolher você — disse ele.Bek viu ali sua chance.— Eu tenho um plano.Truls Rohk grunhiu.— E quando você não tem um? Você é páreo para sua irmã em mais de uma

maneira. Venha. Não vou fazer promessa alguma, não vou lhe dar nenhuma garantia doque farei ou não a respeito dela. Fale comigo um pouco mais e veremos. Mas não vamosnos atrasar. Os rets estarão chegando e as ruínas aguardam. Walker precisa de nós.

— Mas ouça o que eu tenho a dizer...— Vou ouvir mais tarde. — O mutante o dispensou rapidamente. Então sua voz ficou

mais dura. — Agora me ouça você. Jamais mencione o que aconteceu aqui nem para mimnem para mais ninguém. Nunca mais. Acabou.

Virou-se e se afastou, Bek lutando para acompanhar seu passo.

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26

— Agora — disse Quentin Leah baixinho para Tamis.

Ela se afastou, não com pressa ou com qualquer sinal externo do turbilhão que estariasentindo, mas como se o encontro fosse apenas um de muitos e não tivesse outrosignificado além disso. Ela se afastou mais para a direita, adiante de Quentin,caminhando com deliberação, escolhendo os passos e o lugar para ficar. Esperaram atéter certeza de que o wronk podia ver o que ela está fazendo. Era difícil espiar, mas elahavia parado logo atrás de um trecho aberto de terreno coberto com lenha e matosespalhados. O olho treinado suspeitaria de um poço para wronks, uma armadilha bemescondida. Mas a armadilha estava em outro lugar.

Quentin permaneceu onde estava quando o wronk virou-se na direção de Tamis. Elea estudou sem se mover, e então começou a se movimentar subitamente na direçãodela. Ela ergueu defensivamente sua espada curta e agachou-se, assumindo uma posiçãoprotetora. Quentin aguardou um instante e depois deu um passo adiante também, aespada de Leah erguendo-se na luz fraca. Ele sentiu os primeiros vestígios de sua magiadescendo pela lâmina metálica e penetrando no seu braço. Sentiu o fluxo feroz penetrarem seu corpo, amargo e ao mesmo tempo doce. Ele lhe infundiu uma sensação de poder.Fez sua cabeça ficar mais leve e viva de uma maneira única. Ele queria usar aquelepoder. Mesmo sabendo como aquele desejo era tolo, ele o queria.

O wronk irrompeu noite afora, aproximando-se de Tamis inexorável, nem rápido nemdevagar, mas com determinação. A rastreadora ficou onde estava, recusando-se a abrircaminho, dizendo alguma coisa agora, palavras provocadoras que Quentin não conseguiuouvir. Não era o que haviam planejado. Ela devia abrir passagem para o wronk, ficarlonge dele caso a armadilha falhasse, como agora parecia que ia acontecer. Quentinavançou mais alguns passos, parando justamente na margem de onde podia ficar e aindaconhecer seu lugar na paisagem desconhecida que ocultava a armadilha. Ao fazerisso,sentiu um novo surto de magia voar para dentro dele e foi consumido pelanecessidade de liberá-la em batalha.

Subitamente, sem alerta, o wronk se virou em sua direção.A rapidez com que isso aconteceu tirou seu fôlego. Ela o drenou do fogo de sua

magia. Em um único momento, tudo mudou. O wronk aproximou-sedele depressa,fechando a distância entre os dois quase antes que Quentin pudesse se recuperar paraagir. Avançou pela clareira bruscamente, muito mais rápido do que o montanhês selembrara de seu encontro anterior. A espada em sua mão humana se ergueu. A lâminaem sua mão metálica brilhou.

Tamis gritou, distante demais para ajudar. Faça alguma coisa!No último momento, ele se lembrou do que havia pretendido e se jogoupara fora do

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caminho do monstro. As lâminas do wronk cortaram o ar ao seu lado, uma delaspassando tão perto de seu rosto que ele sentiu a lufada de vento que ela gerou aopassar. Ele disparou para a esquerda, os seis passos que havia contado antes, dando a simesmo bastante espaço para compensar os passos que dera antes, deu meia-volta e sesegurou. O wronk já estava indo em sua direção novamente. Do capacete que protegiasua cabeça humana, as feições de Ard Patrinell eram súbita e chocantementereconhecíveis.

Não olhe, disse Quentin a si mesmo. Não sinta nada.Tamis estava correndo em sua direção, respondendo tolamente à condição de perigo

em que ele se encontrava, agindo impulsivamente para ajudar. Ele se virou ligeiro para adireita quando o wronk desceu sobre ele, o som desuas partes mecânicas soltando umgemido agudo contra as marteladas de suas pegadas. Aquilo se aproximou com umaexpectativa quase palpável de esmagá-lo — sua força viva o estava levando exatamentepara cima do poço no qual haviam tencionado colocá-lo. A tela cedeu sob seu peso,desabando em uma chuva de terra, com um estalar de linha e um rasgar de tecido. Uminstante depois,o wronk havia desaparecido, sumido dentro do buraco como se nuncativesse existido. Podiam ouvir o som de seu impacto quando ele atingiu o fundo, e entãoo silêncio.

Tamis se aproximou, respirando pesado. Seus olhos estavam brilhantes de surpresae empolgação quando ela olhou para o buraco.

— Não foi tão difícil assim — disse ela como se não conseguisse acreditar.Não, Quentin estava pensando, não foi. Ele foi até a beira do poço, ainda

desconfiado, e olhou para baixo. Estava tão escuro que ele não conseguiu ver nada.— Precisamos de uma tocha — disse ele.Ela saiu correndo, apanhou um bom pedaço de lenha, envolveu-a em uma tira de

pano retirada da borda do poço e, usando pedras de sua bolsa, acendeu uma chama. Aofazer isso, Quentin ouviu os primeiros sinais de movimentos dentro do poço.

— Rápido — ele sussurrou, tentando permanecer calmo.Eles podiam ter apanhado aquilo, mas certamente não o mataram. Só a queda não

foi o bastante. Seria preciso mais para incapacitá-lo e deixá-lo imóvel. Aguardouimpacientemente que ela se juntasse a ele, alcançando a borda com a tocha improvisadapara ver o que estava acontecendo.

A luz do fogo iluminou as bordas lisas do poço, todo o caminho para baixo até onde owronk estava aprisionado, a mais de cinco metros de profundidade. Podiam ver suacarapaça empoeirada. Estava amassada e arranhada,mas ainda funcionando. Nem aqueda nem as pedras afiadas enterradas pelosrindges no chão do poço haviam sidosuficientes para detê-lo.

Ele se levantou, agarrando raízes soltas, escavando a terra em busca deapoio, com aintenção de escalar e sair do poço.

Quentin Leah e Tamis lutaram para evitar que ele fizesse isso com um frenesie umadeterminação que beiravam a loucura. Então jogaram nele tudo emque conseguiram pôras mãos — pedras, galhos, parte de um velho tronco,bolos de terra e um pedregulho debom tamanho que conseguiram rolar perto o bastante para jogar. Por diversas vezes

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bateram nele com muita força para derrubá-lo, mas a cada vez ele se levantava erecomeçava a escalada, uma forçaincansável e inexorável.

Em seguida utilizaram fogo, jogando montes de lenha dentro do poço e acendendocom a tocha. A lenha brilhava, queimando tão rápido e ferozmente que o wronk não tevetempo de apagá-lo. Por alguns momentos ele ficou aprisionado em um inferno, a pelemetálica refletindo as chamas da madeira de modo que era como se ela tambémestivesse queimando. Sob a luz intensa, observaram enquanto ele tentava proteger seubraço humano, cuja carne logo ficou cheia de bolhas e escura com o calor. O rostoaterrorizado e angustiado de Ard Patrinell ficou olhando por trás de seu escudo protetortransparente, e em seus olhos verdes eles viram coisas que não queriam saber. Quentinapressou-se para jogar mais madeira no poço, mas desistiu de olhar para o que estavapreso lá embaixo. Tamis estava em lágrimas.

Mas, no fim, esse esforço também falhou. O fogo queimou ferozmente por algumtempo e então começou a morrer. O wronk subiu, livre das chamas mais uma vez,queimado e enegrecido de cinzas, mas ainda móvel.

Quentin recuou desanimado. Os rindges estariam mais preparados para isso do queeles. Teriam algum plano de apoio para lidar com o wronk aprisionado. Teriam sidocapazes de confiar na força dos números. Mas os rindges não estavam lá para ajudar.Ninguém estava.

— Isto não está funcionando! — gritou Tamis para ele.Sem esperar a resposta dele, ela disparou por entre as árvores. Por um instante ele

achou que ela o havia abandonado, que estava fugindo. Tornou a olhar para dentro dopoço, onde os restos da madeira queimada estavam se transformando em cinzas e owronk estava lentamente escavando apoios para as mãos e os pés em sua subidatorturada porém implacável.

Então Tamis voltou, arrastando um grande tronco por uma das extremidades,madeira morta, com quase três metros de comprimento, a maioria de seus galhosmenores reduzida a pontas quebradas.

— Vamos usar isto para derrubá-lo cada vez que tentar subir! — ela gritou. — Ajude-me!

Ele pulou para a frente para fazê-lo, e juntos levaram o galho para a beira do poço eo apontaram para baixo, segurando a extremidade mais fina e usando o galho como umaríete para bater no wronk. Grunhindo e bufando, eles bateram com a arma improvisadano corpo metálico dele e o derrubaram para o fundo do poço. Por vezes sem conta elesdetiveram sua ascensão, tentando sem sucesso esmagar seus mecanismos, quebrar suaspartes que funcionavam. De cada uma das vezes ele simplesmente se recuperou erecomeçou a subida. Então a luta continuava, sem que nenhum progresso fosse feito denenhum dos lados. Era uma batalha que Tamis e ele perderiam, percebeu Quentin,porque se cansariam mais cedo do que o wronk. Tinham de encontrar uma maneira deincapacitá-lo se quisessem vencer. Mas ele não conseguia pensar em como fazer issosem se aproximar, e aproximar-se dele era impensável.

Então cometeram um erro. Deixaram a ponta do galho chegar perto demais dowronk enquanto se preparavam para usá-lo, e o wronk largou suas armas e agarrou-a

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com ambas as mãos. Seu peso era enorme e foram forçados a soltar o galho. O wronkcaiu de volta no poço. Mas agora tinha uma escada com a qual escalar o poço, e,recolhendo suas armas, foi o que começou a fazer.

Quentin e Tamis ficaram olhando indefesos.— Precisamos sair daqui — ele murmurou.— Não! — ela gritou para ele. Seu rosto sujo e suado estava contorcido de raiva e

frustração. — Você prometeu!— Não podemos detê-lo sozinhos!— Precisamos! Eu faço sozinha!Ela começou a pegar bolos de terra e jogá-los no wronk, gritando para ele. Então,

subitamente, ela saiu correndo em busca de outro aríete para derrubá-lo de novo.Quentin ficou onde estava, esperando. O wronk já estava com metade do corpo parafora. Quando chegasse até ele, tentaria derrubá-lo novamente. Suas mãos apertaram aespada de Leah. Podia sentir seu poder passando por ele, cantando em seu sangue,fazendo sua cabeça ficar leve e estranhamente distante de tudo. Ficou vendo a magiasubir e descer pela espada, pequenos pontos de luz brilhante.

Olhou mais uma vez para o poço. O wronk também podia ver a magia. Oconhecimento do que isso significava se refletiu nos olhos assombrados e desesperadosde Ard Patrinell.

Então Tamis voltou, segurando outro galho morto, mais curto e mais fino do que oprimeiro. Seu rosto estava tão intenso e seus olhos tão selvagens que ele correu paraajudá-la e tentaram mais uma vez derrubar o wronk de seu poleiro.

Mas o wronk estava preparado para eles. Arrancou o aríete de suas mãos antes quepudessem levá-lo até ele e, usando apenas uma das mãos, lançou a lenha sobre eles,derrubando-os para trás com um único e poderoso golpe. Quentin soltou a espada deLeah e ela voou para a escuridão. Ele desabou, costelas e peito latejando de dor, ospulmões sem ar.

Tornou a se levantar num instante, buscando freneticamente sua arma, a únicaesperança que tinham. Encontrou-a rápido, mas, quando a pegou, o wronk já estava forado poço e alcançando Tamis, que estava em pé no meio do caminho, desafiadora.

— Tamis, fuja! — gritou Quentin.Ao invés disso, ela o atacou, atirando-se sobre o wronk com tamanha fúria que o

derrubou para trás, enfiando a espada curta no braço humano dele, agarrando-lhe obraço metálico, envolvendo seus braços na altura da faca longa e do escudo.

Quentin não hesitou. Foi atrás deles como se estivesse possuído, soltando o grito debatalha das Highlands: “Leah! Leah!”, com medo e desespero, chocando-se contra osdois, tentando afastar Tamis, tentando derrubar o wronk. Não conseguiu nenhuma dasduas coisas. Com novas forças, recuou e balançou a espada de Leah com tanta fúria quearrancou o braço humano do wronk. Este caiu com a espada curta de Tamis aindaenterrada em seu corpo, uma névoa vermelha de sangue cobrindo tudo. Um olhar dechoque e descrença atravessou o rosto de Ard Patrinell, sua boca se abrindo num gritosem som. Quentin percebeu horrorizado que o alvo ainda podia sentir dor.

Seu ódio com o que fora feito a Patrinell tornou a ferver. Ninguém deveria sofrer

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assim. Perdeu o controle de si mesmo e começou a atacar a concha metálica com golpescurtos e poderosos, tentando localizar um ponto vulnerável. Na escuridão era difícil vermuita coisa. Tamis gritava e enfiava suas garras na cabeça com capacete, usando a facalonga e os dedos, não mais se importando com o braço metálico e a faca longa que acortavam furiosamente. Quentin viu o brilho da lâmina e ouviu a rastreadora grunhir dedor. Redobrou seus esforços, deslocando-se para o outro lado do wronk, batendo com suaespada na mão recoberta de metal até quebrar as juntas esféricas e o soquete em doispedaços, e a lâmina cair dos dedos inúteis.

Com ambos os braços arruinados, o wronk recuou, tentando sacudir Tamis para quecaísse. Enquanto a rastreadora continuasse agarrada a ele, ele não poderia se defenderadequadamente. Quentin forçou sua vantagem, atacando as juntas de suas pernas, edepois do que pareceu um tempo infinito gasto andando de um lado para outro atravésda noite ensangüentada, estilhaçou-lhe o tornozelo direito. O wronk caiu de joelhos.Tamis também caiu, deixando a cabeça de Patrinell exposta. Quentin começou a martelarincansável no escudo protetor, seu corpo vivo com a magia de sua espada, seus ouvidoscheios de seu zumbido selvagem. Perdido para tudo, menos sua necessidadedesesperada de fazer com que isso continuasse, envolto em sua névoa assassina, nãosentia mais nada, a não ser seu poder puro.

Tamis desabou, rolando para a terra antes de se levantar de quatro, a cabeçapendendo entre os ombros. Quentin tornou a deslocar seu ataque para as pernas dowronk, desferindo um golpe atrás do outro até que a perna esquerda também cedeu.

Então recuou, exausto e espantado. O wronk estava estendido no chão em frente aele, membros quebrados, torso amassado, até mesmo o aparentemente impenetrávelescudo facial rachado. Fios e cabos estavam expostos e cortados, as pontas estalando efaiscando malignas. Incapaz de se levantar ou lutar mais, o wronk estremeciaincontrolavelmente, os tocos dos membros decepados se sacudindo. Quentin olhou paraele, cansado, o fluxo de magia que havia penetrado nele começando a se dissipar. Olhoupara si mesmo e ficou surpreso ao descobrir que estava inteiro.

— Acabe com ele! — Tamis resfolegou ao lado de Quentin, ajoelhada, abraçando opróprio corpo ensangüentado. — Cumpra sua promessa, montanhês!

Quentin não sabia se tinha forças para fazer isso. Apertou mais ainda sua espada etornou a avançar até ficar ao lado do wronk caído. Ard Patrinell olhava para ele atravésde uma névoa de sangue, perscrutando seus próprios olhos. Ele estava chorando, toda ador e o horror espelhados claramente em suas lágrimas. Estava implorando ajuda.Quentin não podia suportar. Sentiu o nojo e o horror começarem a derrotá-lo.

Abaixou a espada de Leah rapidamente e com ferocidade em seu objetivo.Estilhaçou o escudo protetor com dois golpes rápidos, então esmagou o rosto de ArdPatrinell até que ele se tornasse uma ruína irreconhecível, decepando, por fim, o querestou da cabeça do wronk.

Deixando a espada cair, ele recuou. O wronk havia parado de se mover, masalgumas luzes ainda piscavam nos painéis em seu peito. Então um toco de braçoestremeceu. Gritando de raiva e de medo, Quentin pegou sua espada pela última vez ecortou o braço e os membros até que nada sobrasse, a não ser lascas de metal e

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pedaços de carne.Talvez não tivesse parado nem nesse momento, só que, pelo canto do olho, viu

Tamis cair. Isolando a magia como se ela fosse um vício que devia largar para sempre,sentindo como estava próximo de se perder para ela, lançou longe a espada e foi até ela.Caiu de joelhos, virou-a gentilmente e aninhou sua cabeça e seus ombros no colo.

Ela olhou para ele.— Está feito? Ele está livre?Ele assentiu, a garganta apertada. A frente da túnica de Tamis era uma massa de

sangue e carne rasgada.— Para onde quer que ele esteja indo, vou encontrá-lo lá — ela sussurrou. Uma

espuma de sangue cobriu seus lábios.Ele tocou o rosto dela com dedos trêmulos.— Tamis, não...— Estou com tanto frio... — ela sussurrou.Seus olhos ficaram fixos e ela parou de respirar. Quentin continuou segurando-a por

muito tempo. Conversou com ela quando ela não mais podia ouvi-lo. Disse a ela queteria o que desejava, teria Ard Patrinell, que ela merecia encontrá-lo e ele a estariaesperando. Sussurrou um adeus para ela. Chorava sem parar, mas não se incomodava.

Quando tornou a colocá-la no chão e se levantou, sentia como se tivesse perdido seulugar no mundo e nunca mais fosse encontrá-lo.

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27

Envolvido pelo zumbido lento e constante da maquinaria de Castledown, Ahren

Elessedil caminhou de volta por entre as longas fileiras de imensos gabinetes de metal ediscos giratórios prateados que ocupavam a câmara cavernosa do lado de fora da prisãode vidro escuro de Walker. Não gostava de deixar Ryer Ord Star sozinha para cuidar dodruida, não sabia se era certo o que estava fazendo, mas também sabia que não podiavoltar atrás. A voz dentro dele gerada pela magia da pedra fênix era firme e provocante.As pedras élficas estavam adiante, em algum outro lugar do complexo, esperando queele as recuperasse. Deveria fazer o que a voz lhe insistia se quisesse se reencontrar e setornar completo. Teria de ir até onde estavam as pedras. Deveria trazê-las de volta.

Viu o vidro escuro da câmara de Walker desaparecer no labirinto de gabinetes queficaram para trás, e, quando não pôde vê-la mais, sua solidão ficou palpável e suasensação de vulnerabilidade aguda. A névoa da magia da pedra fênix estava começandoa se dissipar, a perder sua consistência, a se tornar mais penetrável. Era uma mudançagradual e no começo ele não tinha certeza de que estava vendo tudo com precisão. Masà medida que se afastava da câmara central brilhantemente iluminada e voltava acaminhar para dentro dos corredores escuros mais adiante, ficava cada vez maisperceptível que ele não havia se enganado, que a magia da pedra estava falhando.Imediatamente se sentiu pressionado e apressado por esse conhecimento, como sedevesse andar mais rápido do que teria gostado ou do que fosse razoável. Era umaresposta irracional, pois ele não tinha idéia verdadeira de qual era o tempo de vida damagia. Mas também a maior parte das coisas que fizera desde que entraram emCastledown não tinha muito a ver com o racional.

Ele sabia que a magia de Ryer também estaria diminuindo. Quando acabasse, elateria de confiar em sua ligação com Walker para sobreviver. De certa forma ela estavabem melhor com o druida. Pelo menos Walker podia oferecer proteção a ela assim quedespertasse e se libertasse. Sem a magia da pedra fênix não havia muito que Ahrenpudesse fazer por ela. Para começo de conversa, não podia fazer muito por si mesmo.

Mesmo assim, ouviria a voz e seguiria em frente, porque a voz era tudo o que eletinha para confiar.

Subiu as escadas até o mezanino sobre o qual já haviam passado, então voltou pelolabirinto de corredores adiante. Tomou o caminho que seus instintos o mandaram tomar,vigiando de perto as sombras que se aproximavam. As lâmpadas sem chama lançavamsuas luzes em poças tênues, mas os trechos entre elas eram como areia movediça.Encontrou repetidas vezes rastejadores a caminho de outros lugares, e a cada vez queele parava onde estava esperava que eles atacassem. Mas os rastejadores não o viamnem o sentiam e ele não reduziu a velocidade. Ouvia o ruído metálico deles se

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aproximando e partindo, um raspar de metal que levantava os pêlos de sua nuca. Maisuma vez desejou ser mais corajoso e mais forte. Desejava ter Ard Patrinell para lheassegurar que estaria bem. Não parava de pensar em como isso seria reconfortante. MasPatrinell havia lhe ensinado tudo o que podia e lhe dissera tudo o que podia dizer.Patrinell estava morto. O consolo de Ahren, se é que ele iria encontrar algum, teria de virde outro lugar.

À medida que ele andava mais adentro das catacumbas, o som da maquinariaaumentava, tornando-se um gemido cada vez mais constante. Sem maiores informações,ele podia dizer que estava avançando na direção da fonte de energia que era o coraçãode Castledown. Era lá que Antrax se alimentava da energia armazenada pelas máquinasdo refúgio. Ahren se sentia encolher à medida que o som aumentava de volume, seurugido preenchendo os corredores como um rio na cheia. Ele viu a si mesmo como sendopequeno e insignificante, carne e sangue impermanentes, aprisionados dentro deimutáveis e invencíveis paredes de aço. Tornou a pensar nas esperanças que tivera aoiniciar aquela jornada — provar que era mais do que o garoto despreparado que seuirmão achava que ele era, realizar alguma coisa que garantisse respeito e até mesmohonra, tornar-se o homem que seu pai havia desejado que fosse. Esperanças tolas eimpossíveis à luz de sua covardia nas ruínas, mas mesmo assim ele se agarrava a elas.Uma parte do que ele havia sonhado alcançar ainda podia ser realizado se eleconseguisse se manter firme.

Passou do corredor para dentro de um salão vasto e cavernoso dentro do qual doiscilindros gigantes estavam lado a lado no meio de um aglomerado de peças menores deequipamento. Os cilindros tinham quinze metros de largura e trinta metros de altura.Conectores e canos metálicos corriam de suas caixas para o equipamento e as paredesao redor. O som da maquinaria era ensurdecedor, um latejar que soterrava tudo o maisna esteira de sua passagem. Aquilo era a fonte de energia de Castledown e Ahren sóqueria sair de perto dela.

Então olhou para a sua direita e viu um par de câmaras semelhantes àquela quehavia sido utilizada para conter Walker, exceto que eram muito maiores. O vidro escurona frente delas estava recuado para dentro das paredes da câmara e as portas bulbosaseram delineadas com finas presilhas metálicas. Ficou olhando para elas e soube semsequer ter de questionar que uma delas continha as pedras élficas desaparecidas. Podiasentir isso da mesma maneira que havia sentido a necessidade de ir até ali. A magia dapedra fênix ainda funcionava dentro dele, dando-lhe a sua orientação, dizendo-lhe o quefazer.

Mas por um longo tempo ele não se moveu. Não sabia o que fazer, não sabia comofazê-lo, e realmente não queria tentar. Seu medo voltou em uma onda que o tomou deassalto. Continuar era pedir demais para qualquer um; era avassalador demais para seconsiderar. Encarou as portas, a magia da pedra fênix espicaçando-o, e lutou para nãosair correndo. Jamais estivera tão apavorado. Não tinha medo do que pudesse estaresperando; tinha medo do que não podia imaginar. Seu medo era do nunca visto, doperigo desconhecido que o faria fugir mais uma vez. Não achava que poderia suportarque isso acontecesse mais uma vez, e não sabia como impedi-lo. Podia sentir a

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possibilidade de alguma coisa espreitando por trás do vidro escuro, o predador, ansiosopara que ele entrasse e fosse apanhado. Só a expectativa era suficiente para paralisá-lo,para deixá-lo completamente imóvel. Pensou em seu terror indizível e que jamaisconseguiria se mover novamente.

Foi seu senso de vergonha que o salvou, renascido nas memórias inevitáveis de suafuga das ruínas dias antes, lembrado inúmeras vezes nas longas horas que se seguiram,enquanto ele se escondia agachado nos destroços e pensava em como seria voltar paracasa depois do que havia acabado de fazer. Sua chance de se redimir do sofrimento, suaúnica chance, estava na recuperação das pedras élficas. No pesadelo inexorável eassustador de seu fracasso em salvar seus amigos, na fria percepção de como ele erauma criatura frágil, finalmente compreendera que era pior viver com medo do que morrerconfrontando-o.

Lembrou-se disso e libertou-se de seu terror. Partiu para a frente sem parar parapensar no que estava fazendo, sabendo apenas que deveria seguir ou então jamais iria.

No instante seguinte, alarmes dispararam por toda parte, sons metálicos agudos queabafavam até mesmo o rugido sufocante das máquinas.

Adiante, uma das portas se abriu e um rastejador gigante saiu, todo feito de pernastortas e pinças afiadas, uma máquina de guerra procurando briga. Ele não o viu, e semoveu para assumir uma posição entre a porta da câmara e o corredor através do qualAhren havia passado. Outro rastejador o seguiu, e mais outro, posicionando-se em umanel defensivo. A entrada fechou-se atrás deles.

Ahren continuou em frente, na direção daquela porta fechada, passando no meio dosrastejadores. Segurava a faca longa à sua frente como proteção, sabendo que ela seriainútil caso o descobrissem. Mas, apenas um pouco visível, a magia da pedra fênix que jácomeçava a falhar ainda se agarrava a ele por ínfimos fios. Ahren imaginou os alarmessugando-a, como se fosse fumaça apanhada pela brisa. Passou por entre os rastejadoresna direção da porta, com mais coragem do que acreditava ter, sentindo-se leve eparalisado ao mesmo tempo. Sentia como se estivesse observando seu próprio progressode algum lugar fora de seu corpo, isolado do ato. Seus pensamentos foram reduzidos auma única seqüência: chegar até as pedras élficas, pegá-las e invocar-lhes o poder.

Chegou até a porta com o grito dos alarmes ecoando em seus ouvidos e ficousurpreso quando ela se abriu ao seu toque. Os rastejadores atrás dele nem sequerpareceram notar. Ele entrou na sala, uma câmara escura coberta por bancos de luzesbrilhantes, cabos emaranhados e fios de metal flexíveis que jogavam sombras sobre tudoem poças escuras. Estava tão escuro na sala que Ahren não conseguiu distinguirnenhuma das peças de aparatos que estavam espalhados por toda parte, não conseguiaver para onde as cordas estavam indo e vindo, não conseguia ver sequer que tipo deaposento deveria ser aquele. Avançou tateando, tomando cuidado para não tocar emnada, em direção ao centro do aposento, enquanto seus olhos tentavam se ajustar aosflashes momentâneos de luz.

Quando isso aconteceu, ele viu os primeiros sinais de movimento, movimentos fracose agitados ao seu lado. Gelou no mesmo instante, e ao fazer isso, avistou algo semovendo do outro lado. No começo achou que não fosse nada além das sombras que

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brilhavam na luz fraca, mas então, com uma certeza de parar seu coração, ele osreconheceu. Eram rastejadores. Não conseguira ouvir o barulho deles sobre o ruído dosalarmes, mas mesmo na ausência disso ele os reconheceu. Estavam ao redor dele, portoda a câmara. Havia tropeçado bem no meio deles antes de perceber o que estavafazendo.

Ficou o mais parado que pôde, mal se atrevendo a respirar, enquanto pensava emseu próximo movimento. Não sabia dizer o quanto da magia da pedra fênix permaneciacom ele; estava muito escuro para medir que traços permaneciam de sua névoainstintiva. Alguma coisa certamente, ou os rastejadores já o teriam apanhado. Tentoupensar, ignorar os alarmes, os rastejadores e o caos ao seu redor e ouvir novamente avoz que o havia levado até ali.

Um segundo mais tarde, ele viu a cadeira. Ela era grande, acolchoada e inclinada, eestava no centro do aposento, cercada por um aglomerado de máquinas independentes.Ali os cabos eram mais grossos, serpenteando para todas as direções, todas elas partindode partes da cadeira. Havia uma caixa estranha colocada em cima dos braços, para ondemuitos dos cabos corriam, e Ahren a reconheceu. Ele havia visto o mesmo tipo deaparato na prisão de Walker, sugando a magia do druida através de seu braço. A câmarana qual Ahren estava era aquela em que Kael Elessedil fora drenado da magia das pedrasélficas, do mesmo modo que Walker, por quase trinta anos. Era o lugar no qual seu tiohavia desperdiçado a vida.

As pedras élficas, ele percebeu instintivamente e com uma certeza terrível, estavamdentro daquela caixa.

Foi até lá rapidamente, esgueirando-se por entre os ninhos de cabos e passandopelas peças imensas de equipamento, rezando para não ser detectado. Os rastejadorescontinuavam a mudar de posição nos espaços abertos do aposento, deslizando algunsmetros para um lado, alguns metros para outro. Ele não sabia dizer o que eles estavamfazendo. Não pareciam estar fazendo nada de importante. Talvez fossem apenasvarredores, indefesos assistentes das máquinas em vez de sentinelas e lutadores. Talvezsua presença nada significasse para eles.

Engoliu saliva para combater a secura da garganta, fazendo uma pausa ao passarperto de um deles. Não era muito grande, mas provocou arrepios de medo por suaespinha. Esperou até que ele se afastasse, então deslizou seu corpo magro naqueladireção, pisando no labirinto de fios que cercava a cadeira, e se ajoelhou ao lado da caixamisteriosa.

No flash de luzes de painéis e da iluminação silenciosa que passava pelas janelas devidro escuro, ele olhou para dentro da caixa. Não conseguiu ver nada a não ser sombras.Queria meter a mão dentro dela, mas não queria fazer isso sem saber o que oaguardava. Será que não haveria algum tipo de contenção, se era assim que a magia eradrenada? Ou não haveriam agulhas da espécie que haviam sido inseridas em Walker paramantê-lo conectado às máquinas? E se fosse essa a armadilha para a qual o pequenovarredor o estivera levando aquele tempo todo?

Mas as pedras élficas estavam naquela caixa, a menos de cinqüenta centímetros desua mão, e ele tinha de tirá-las dali.

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Subitamente, de modo inesperado, os alarmes pararam e as luzes do teto da câmarase acenderam. Ahren congelou, exposto e desprotegido, agachado ao lado da cadeirasestofadas entre as máquinas e os rastejadores aglomerados ali. A magia da pedra fênixhavia desaparecido; os últimos traços de sua névoa protetora haviam desaparecido.Ciente de sua presença, o primeiro dos rastejadores já estava se virando em sua direção.As pontas de seus braços metálicos se levantaram para revelar os cortadores mortais queo marcavam como sentinela e lutador.

Ahren olhou rapidamente para dentro da caixa, e no meio de suas sombrasesfumaçadas percebeu um brilho azulado.

Meteu a mão direita dentro dela e agarrou as pedras élficas. Pegou as duasprimeiras no momento em que faixas de ferro prenderam seu punho, mas a terceiraescapou, logo além das pontas de seus dedos. Um novo alarme disparou, este dentro doaposento, um apito agudo de aviso. Ele meteu a mão esquerda na caixa, agarrou a pedrasolta e estava com as duas mãos juntas quando o segundo conjunto de faixas imobilizousua mão esquerda. Rastejadores começaram a se mover de toda parte em sua direção,pernas metálicas raspando selvagemente contra o piso liso, cortadores estalando no ar.

Ahren não sabia o que fazer. Não sabia como invocar o poder que o salvaria. Nãoconseguia sequer falar enquanto lutava para trazer a magia à vida.

Por favor!, ele implorou sem voz enquanto as mãos apertavam as pedras élficas. Porfavor, ajudem-me!

Uma agulha na ponta de um braço flexível passou perto de seu rosto. Ele sentiu suapicada no braço esquerdo e um entorpecimento lento começou a se espalhar para seucorpo com langorosa inevitabilidade. Dedos de metal se fecharam sob ele vindos detodas as partes, segurando firme, fazendo dele um prisioneiro. Estava acontecendo tudooutra vez, ele pensou frenético, da mesma maneira que acontecera com Kael Elessedil.

Ajudem-me!Como se ouvissem seu pedido silencioso, as pedras élficas ganharam vida dentro dos

recessos escuros de seu confinamento, suas luzes azuis tão ofuscantes que ele fechou osolhos contra o brilho. Sentiu, mais do que viu, o que aconteceu a seguir. As faixas queprendiam seus pulsos se estilhaçaram e a caixa explodiu. Os rastejadores só duraramalguns segundos além disso, pois a magia os levantou e os varreu para longe, atirando-os contra as paredes da câmara e reduzindo-os a ferro-velho. Tornava a abrir os olhosquando a cadeira estofada explodiu. Os bancos de maquinaria também foram destruídos,um atrás do outro, engolfados em uma varredura de luz azul que cercou o aposento etransformou tudo em lascas de metal e cabos retorcidos inúteis.

Braços estendidos, mãos postas, dedos prendendo com força as pedras élficas, Ahrense levantou. A agulha havia desaparecido de seu braço, mas o entorpecimento não haviadiminuído, e ele precisou de toda a sua concentração para evitar que o braço ficasseinutilizado. Alimentou-o com o poder das pedras, com aquela dor peculiarmenteprazerosa que elas engendravam, um surto que queimava sua pele e o deixava tonto.Cambaleou pelo aposento, o poder das pedras élficas incinerando tudo, queimando tudo,transformando tudo em material derretido. As janelas de vidro escuro explodiram,deixando exposto o interior retorcido do aposento. Ele viu os cilindros maciços que

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abrigavam a fonte de energia serem cercados por anéis de luzes que piscavam e fios defogo que cruzavam tudo. Viu os rastejadores que estavam tomando conta do lado de foradarem meia-volta para lidar com ele.

Sombras!Só teve tempo para essa única exortação desesperada antes que os leviatãs

ocupassem a porta, todos cheios de pontas afiadas e força bruta. Enviou a magia daspedras élficas para o mais próximo, atingindo-o como um martelo e o lançando para tráscom os outros. Ele a utilizou mais uma vez, e outra, avançando movido por ela, sentindoa cabeça leve e zumbindo com o poder da magia. Estava transformado por sua sensação,renovado e inteiro, como se esse poder nunca tivesse lhe faltado, como se nunca tivessetido de fugir de nada. Perseguiu os rastejadores sem pensar em outra coisa e esmagou-os um a um, desdenhando seus cortadores e suas lâminas, sem medo do que pudessemfazer porque agora parecia que eles nada podiam fazer.

Caíram perante ele como árvores apanhadas em um furacão, arrancadas pelasraízes, derrubadas e deixadas para morrer. Com um último olhar para a destruição quehavia lançado sobre as máquinas que teriam sugado sua vida, Ahren Elessedil saiu dasala, consumido por uma fúria assassina.

Antrax se tornou consciente da presença do intruso apenas segundos antes de sentir asrupturas em sua pele de metal. Nenhuma dor estava envolvida porque ele não podiasentir dor, apenas uma sensação de estar sendo aberto onde sabia que não devia. Ointruso era o mesmo que havia desaparecido antes, enquanto estava na companhia dopequeno varredor, aquele para o qual as pedras eram planejadas. De algum modo elehavia encontrado o caminho até a câmara de extração. De algum modo havia seapoderado das pedras enquanto ainda estava ciente de quem era e de onde estava, e ashavia utilizado contra a câmara e seu equipamento.

Os alarmes já estavam sendo acionados por todo o domínio de Antrax, disparadospor um pico de energia gerado na câmara de extração onde o intruso anterior estavaaprisionado. Antrax levara preciosos minutos para determinar a causa do pico, e quandoo havia feito, o intruso anterior já estava livre de seus conectores e desaparecido dentrodo complexo. Agora eram dois deles à solta, e qualquer um deles era capaz de fazergrandes danos se não fosse detido.

Antrax desceu por suas linhas de força em milissegundos, chegando ao abrigo doscapacitores antes que o último intruso estivesse de posse das pedras e livre da câmarade extração. Com os alarmes desligados novamente e reinicializados, o perigo imediatoera com as unidades de armazenamento que abrigavam o seu sangue vital. Armando atela de raios laser que os criadores haviam instalado para proteger os capacitores dedanos, Antrax invocou a mais forte de suas sondas de batalha para cercar aquele maisnovo intruso. Podia não ser possível imobilizá-lo sem matá-lo, mas Antrax estavapreparado para aceitar essa alternativa. Haveria outros que poderiam utilizar as pedras,que poderiam invocar a magia delas, outros que podiam ser atraídos para Castledown.Era mais importante se proteger contra danos ao poder que Antrax já havia coletado.

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Ele sentia a presença do intruso passando pela porta destroçada da câmara deextração para enfrentar os raios laser e as sondas que já haviam respondido ao seuchamado. Portas de extração estavam abrigadas ao longo do complexo e Antrax começoua sugar o excesso de poder puro do elfo, alimentando-se dele à medida que deixava ocorpo do outro. Energia não devia ser desperdiçada, fosse qual fosse sua fonte.

Chips de computador processavam e analisavam com velocidade estonteante. Antraxera informado e seu curso de ação determinado de acordo. Os intrusos lutariam com suassondas na crença errônea de que poderiam de algum modo prevalecer. Não poderiam.Simplesmente iriam alimentar Antrax com mais da preciosa energia de que necessitava,da mesma forma que deveriam fazer enquanto estivessem sedados. Ainda achando quetinham chances de escapar, lutariam até serem derrotados.

Antrax, incapaz de emoções, não sentiu nada pelos humanos que caçava, preparadopara imobilizá-los e exterminá-los.

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28

O druida conhecido como Walker, que um dia havia sido Walker Boh e agora estava

no limiar de mais uma transição que alteraria sua vida, descia ligeiro os corredores deCastledown para um confronto com Antrax. Ryer Ord Star o acompanhava bem de perto,uma mão magra segurando com firmeza a dele. Seu rosto tinha tanta alegria em tê-loencontrado depois de tanto tempo, tamanho alívio em tê-lo resgatado das máquinas queestavam sugando sua vida, que ele não conseguia dizer a ela o que esperava adiante.Preferiu que ela continuasse com sua felicidade, sua própria vida recuperada e a sualibertação da bruxa Ilse assegurada. Ela havia lutado muito por ele e tinha o direito dedesfrutar do prazer de sua realização.

Era estranho que ela tivesse o dom da visão, pudesse ver o futuro com tanta clarezae ainda assim lhe ter negado tanto de seu significado. Ele a havia levado consigo paraque ela lhe desse insights sobre o que o futuro trazia, mas jamais havia imaginado que oinsight que ele procurava lhe chegasse de forma tão tortuosa. Não eram mais as simplesvisões dela que o haviam informado. Não eram os sonhos dela. Em vez disso, era amaneira pela qual ele havia se vinculado a ela quando o salvara após Shatterstone quehavia revelado tanta coisa. Foi quando ele descobrira a verdade a respeito dela. Foiquando vira o que ela poderia ser e decidiu confiar em seus instintos.

Agora, bem no fundo das catacumbas naquela terra distante, ela havia revelado ofuturo mais uma vez. Vinculado a ela pelo resgate empático que ela executara na câmarade extração, ele tivera outro vislumbre do que poderia vir a ser. Embora o futuroestivesse escrito sobre a água, às vezes era possível adivinhar seu significado com baseem uma escolha de ações. Siga por um caminho e o futuro tomará um curso específico.Siga por outro e o resultado será completamente diferente. Então foi assim que,enquanto saía de seu estupor induzido pelas drogas e voltava para o mundo real, eletivera uma breve porém incrivelmente clara visão do que deveria fazer. Impulsionadopelo toque empático e pelo talento dela como vidente, o objetivo de sua vinda paraaquele lugar e época, que um dia havia sido tão claro para ele, que um dia já foraindiscutível, agora se revelava como sendo uma coisa totalmente diferente.

Ele ficou maravilhado ao ver como os seres humanos erram ao supor que podemprever seus próprios destinos. Até mesmo videntes, que possuíam o dom de Ryer OrdStar. Era fácil supor que um evento deveria necessariamente se seguir a outro, que umacoisa era apenas aquilo que parecia. Mas ele sabia que a coisa não era assim. Um druidasabia melhor do que qualquer um que a vida era uma miríade de viradas que ninguémpodia desvendar, um caminho que devia ser percorrido para ser compreendido. Era issoque estava acontecendo ali, em Castledown, para ele, embora ele tivesse esquecido asregras por algum tempo. Era isso o que aconteceria mais tarde aos sobreviventes,

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quando fizessem a jornada de volta para casa.Ficou imaginando então qual teria sido o destino dos outros da companhia da Jerle

Shannara. Ahren Elessedil estava vivo quando Ryer Ord Star encontrou Walker, masdesde então estava desaparecido e nem mesmo a vidente sabia o que havia acontecidocom ele. A magia da pedra fênix os havia abrigado a ambos por algum tempo, mas agoraela havia se desvanecido. Os rovers estavam vivos quando ele deixou a Jerle Shannarana direção de Castledown. Segundo a vidente, Bek e uma rastreadora dos elfos aindaestavam vivos uma semana atrás. Do restante ela nada sabia. Era difícil crer que todoshaviam desaparecido, mas era uma possibilidade que ele não podia descartar.

Os alarmes de Castledown continuavam a soar, agudos e insistentes, ecoando pelolabirinto de passagens. Rastejadores surgiam, movendo-se em todas as direções, semperceber Walker e Ryer Ord Star. Ele havia tomado a precaução de cobrir tanto a videntequanto a si mesmo com a magia druídica, convencido de que ela funcionaria no mundoreal, embora tivesse falhado miseravelmente em seus sonhos. Os rastejadores estavampreocupados com outras questões, compelidos por diretrizes principais a fazerem reparose restaurar a ordem. Ainda não estariam procurando por ele, embora isso fosse acontecermuito em breve. Ele teria de se mover rápido.

Sua exploração de Castledown através dos sistemas internos de Antrax lhe dera omapa de que precisava para saber para onde devia ir. A única maneira de pôr um fim aAntrax era desligar sua fonte de energia. Fazendo isso, ele podia sugar sua inteligência edeixá-lo incapaz de agir.

Parecia simples. Mas não seria.O som das máquinas foi ficando mais alto e insistente. A fonte de energia, o destino

deles, estava adiante. Walker se segurou firme e reuniu as forças para o confronto queaguardava. Antrax tentaria pressioná-lo e imobilizá-lo novamente. Ele faria da mesmamaneira que antes porque era uma máquina, e uma máquina usaria sua abordagemprimária para lidar com uma situação até que essa abordagem fracassasse. Antraxtornaria a confiar em seus rastejadores e em suas drogas. Walker, de sobreaviso, jáhavia decidido um curso diferente de ação para si mesmo.

Quando os alarmes cessaram inesperadamente, o silêncio que se seguiu foichocante. Considerando a extensão do dano que ele havia provocado nos sistemasinternos de Castledown, Antrax havia se consertado mais rapidamente do que Walkerhavia esperado. Pensou por um instante em tornar a atacá-lo, então decidiu que não.Antrax estaria esperando uma tentativa dessas e estaria preparado para ela. Melhorseguir em frente. A fonte de energia estava logo adiante, e assim que chegasse lá, nemtodos os alarmes do mundo iriam importar.

Mesmo assim, ele ainda não havia alcançado o fim da passagem que se abria para acâmara central de alimentação quando um novo alarme disparou, este diretamenteadiante e localizado. Então ouviu explosões, sentiu o cheiro acre e cru da magia, edescobriu que outra pessoa havia chegado à câmara na sua frente. Puxando Ryer OrdStar, sem saber ao certo o que iria encontrar, começou a correr. É provável que fosse abruxa Ilse ou um de seus companheiros. Mas os sons de batalha eram inconfundíveis,máquinas se estilhaçando e vidros explodindo nas paredes. Pedaços de rastejadores

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voavam pela entrada da passagem enquanto ele se aproximava da câmara de poder,onde a fumaça enchia uma paisagem surrealista de lâmpadas sem chamas e fios de fogo.

Olhou de novo para Ryer Ord Star. O ânimo havia desaparecido no rosto dela, e aalegria de seus olhos. O desespero os havia substituído, nascido mais pelo conhecimentoque ela tivera dos perigos óbvios que a aguardavam. Era como se ela tivesse adivinhadotanto a intenção dele quanto sua própria cumplicidade salvando-o antes. Seu rostoestava pálido e tenso e seus cabelos prateados voavam para atrás formando uma cortinafina, emprestando-lhe um aspecto fantasmagórico. Ela tentou dizer alguma coisa, masviu a seriedade no rosto dele e ficou quieta.

Irromperam pela entrada da fonte de alimentação e entraram em uma vasta câmaradominada por um par de imensos cilindros situados no centro da sala e conectados portoda parte por cabos e conduítes. Máquinas menores os cercavam, e gaiolas e abrigos demetal brilhavam inflexíveis. Walker não fazia idéia de como elas funcionavam, de comoAntrax se alimentava, como ele convertia magia em um combustível que pudesseconsumir. A tecnologia para esse processo estava morta havia mais de dois milênios emeio, e somente o próprio Antrax possuía o conhecimento para mantê-la em operação. Omesmo valia para o sangue vital que alimentava Antrax e preservava a biblioteca doAntigo Mundo. Destrua um e você destruirá os dois.

Era o que Walker havia acabado de descobrir que deveria fazer, o sacrifício de umpara pôr um fim ao outro.

Parou de pensar em discutir a questão. Ele sabia que Antrax acabaria procurandooutras fontes de magia, outros humanos repletos de magia, e o ciclo recomeçaria. Maiscedo ou mais tarde ele sugaria tudo de valor do mundo que havia substituído aquele aoqual Antrax servira, e tudo para preservar uma máquina que não mais importava. Antraxdeveria ser impedido, destruído enquanto ainda havia tempo.

Fios de fogo cercavam os cilindros que formavam a fonte de energia, chocando-sealeatoriamente de um lado para outro, mantendo a distância qualquer coisa que pudessetentar destruir os capacitores que a protegiam. A fumaça cobria a câmara com umanévoa espessa, dando a tudo o aspecto de um inferno de pesadelo. Os rastejadores queapareciam por entre as brumas tinham um aspecto de sombras, e até mesmo oequipamento parecia se mover nessa mistura de luz e sombra.

Então, subitamente, do nada, Ahren Elessedil apareceu, as mãos estendidas paradiante, como se para afastar coisas invisíveis, o corpo magro tenso e preparado paraatacar enquanto ele caminhava desajeitadamente entre os escombros. Uma luz azulbrilhante emanava entre seus dedos, destroçando os rastejadores que cruzavam seucaminho, limpando o caminho adiante. Walker sentiu uma onda de esperança renovada.O príncipe dos elfos havia conseguido recuperar as pedras élficas desaparecidas, algo quenão havia ousado esperar que pudesse acontecer. Com a magia delas para auxiliar a sua,ele teria uma chance melhor de ser bem-sucedido na hora de fazer o que fossenecessário.

— Ahren! — Ryer Ord Star gritou mesmo antes que Walker pudesse falar.O príncipe dos elfos virou na direção deles, os olhos tão azuis e selvagens quanto o

fogo das pedras. Ele mal registrou a presença de Walker e da vidente. Estava consumido

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pela magia, tão imerso dentro dela que tudo o que importava, tudo que podia sentir, eraa força de seu poder percorrer-lhe o corpo.

Walker correu para ele sem ter medo da expressão sombria em seus olhos, do fogoque brilhava em seus punhos fechados. Estendeu os braços para o príncipe dos elfos e otocou de leve, puxando-o para fora da neblina na qual ele fora carregado, trazendo-o devolta a si. Ahren olhou para ele com raiva, depois confuso, e em seguida com alívioindisfarçado.

— Você fez muito bem, príncipe dos elfos — disse Walker, puxando-o para perto,olhando para um lado e para outro em busca dos inimigos que os cercavam. — Puxe amagia de volta para você. Rápido!

Walker viu a luz azul das pedras élficas se desvanecer e depois também cobriu Ahrencom uma magia de ocultação.

— Venha por aqui.Ciente de que Antrax os estava procurando, levou Ahren e Ryer para um lado,

mudando a posição dos dois na câmara. Ele havia projetado imagens e disparado osalarmes das placas de pressão que Antrax havia ativado antes, confundindo as coisasainda mais. As sirenes soavam em toda parte e luzes de aviso em painéis de paredepiscavam como olhos vermelhos através do entrecruzamento dos fios de fogo.Momentaneamente confusos, os rastejadores iam de um lado para outro. Nãoconseguiam encontrar nem o druida nem seus companheiros: no caos, seus sensoreseram incapazes de se fixar em qualquer coisa.

Walker havia levado o elfo e a vidente por todo o caminho de volta para a paredeparcialmente destruída da câmara de extração, onde teriam alguma proteção.

— Esperem por mim aqui — ele ordenou.Puxando seus mantos para perto do corpo, afastou-se deles, desviando-se dos

rastejadores e indo na direção dos cilindros que protegiam a fonte de energia. Não haviamais tempo para sutilezas. Teria de agir rápido. Encontrou uma abertura no metal, umafraqueza que podia ser explorada, e atacou. O fogo druídico rasgou o metal com umarajada violenta, arrancando-o. Antes que Antrax pudesse reagir, Walker tornou a semover. Dez metros à frente, tornou a atacar. A essa altura os fios de fogo estavamprocurando por ele, atacando aleatoriamente porque eram incapazes de se fixar nele comsua cobertura de magia. Ele se desviava deles enquanto atacavam, evitando osrastejadores também, dando a volta nos cilindros e na maquinaria que o cercava,procurando constantemente pontos vulneráveis.

Mesmo assim, apesar de seus melhores esforços, o metal produtor da fonte deenergia continuava firme. Suas forças estavam acabando e ele não estava vendovantagem. Outra maneira devia ser encontrada. Ainda atirando para desviar a atençãodos perseguidores e utilizando alvos falsos, voltou agachado no chão, escapando porpouco de um fio de fogo aleatório que chamuscou seu manto. Mais cedo ou mais tardesua sorte acabaria. Antrax já estaria preparando um contra-ataque.

Mal terminou o pensamento, o ataque começou. Um raio de luz estranhamenteenevoada irradiou de uma abertura no teto, inundando a sala e destacando Walker ondeele estava agachado. Se não estivesse se movimentando, deixando imagens atrás de si,

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teria sido incinerado pelos fios de fogo que se deslocaram instantaneamente paraencontrá-lo. Mas ele ficou preso entre duas das máquinas menores, incapaz de ir paraqualquer lugar enquanto os rastejadores, finalmente capazes de vê-lo, aproximaram-separa a matança.

Vendo o perigo, Ahren Elessedil afastou-se de Ryer Ord Star e acionou a magia daspedras élficas sobre a porta que havia liberado a luz reveladora, estilhaçando-a, e entãofundindo-a para fechá-la. A luz sumiu e Walker se levantou e tornou a se movimentarmais uma vez. Ahren atacou o mais próximo dos rastejadores, abrindo caminho para odruida, dando a ele uma chance de escapar. Walker correu para encontrá-lo, agarrou-opelo braço e puxou-o contra a parede novamente. Lançando um novo conjunto dedisparos para desviar a atenção dos perseguidores, arrastou tanto o príncipe dos elfosquanto a vidente para a entrada da câmara de extração.

— Fiquem aqui! — ele gritou no ouvido de Ahren acima do burburinho. —Mantenham-nos afastados o mais que puderem... e depois corram!

Penetrou no aposento, vasculhando os cabos de energia que estavam embutidos naparede. Ele estava lutando de forma errada. Não podia atacar a fonte de energia de fora;quem quer que tivesse construído Antrax teria se certificado de que alguma sabotagemdesse tipo seria muito difícil. Qualquer dano permanente teria de vir de dentro. Antraxhavia sido instalado dentro de Castledown para proteger a biblioteca do Antigo Mundocontra ataques de fora. Também haveria defesas internas, mas elas não seriam tãosubstanciais. As linhas de comunicação que alimentavam a energia pura para dentro doscapacitores para conversão e armazenamento teriam capacidade quase infinita, já queesse tipo de poder viria necessariamente em diferentes formas e incrementos.

Mas será que as linhas de energia que Antrax usava para se alimentar doscapacitores teriam durabilidade semelhante? Walker achava que não. Antrax mediria suaprópria entrada de energia. Ele não exigiria um sistema de monitoração separado e nãoteria razão para esperar uma entrada de energia maior do que determinasse.Sobrecarregue as linhas de alimentação e elas iriam se fundir ou se desintegrar. Antraxteria sistemas de alerta e desligamento automáticos para impedir isso, mas se Walkeratacasse com rapidez suficiente, o dano seria feito antes que eles pudessem reagir.

Atravessou os destroços da sala, passando por cima de peças de rastejadores eequipamentos destruídos, até as portas de extração que levavam para as unidades dearmazenamento. Ele as utilizaria para atingir as linhas que alimentavam Antraxdiretamente. Havia circuitos que levavam de um para outro; isso ele havia descoberto aoexplorar o complexo antes, quando estava fora do corpo. O truque seria agir com rapidezpara provocar interferência neles, e então sustentar o ataque por tempo suficiente paraincapacitar Antrax antes que pudesse atacar de volta.

Do lado de fora da câmara de extração, Ahren Elessedil lutava para manter osrastejadores afastados. Também havia fios de fogo à procura deles, embora a maioriaainda estivesse ocupada em defender a fonte de energia, faixas vermelhas verticais quesubiam nas alturas esfumaçadas do aposento cavernoso e formavam um padrão parecidocom barras de prisão. O príncipe dos elfos virava de um lado para outro para se defenderde cada novo ataque, a magia élfica explodindo em relâmpagos brilhantes. Mas ele não

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teria mais do que alguns minutos antes que fosse derrotado.Ryer Ord Star estava agachada ao lado da porta, perto de Ahren, seu olhar

direcionado para Walker, indefesa e precisando de ajuda. Walker lhe deu um olhar calmoe despreocupado, com o propósito de reconfortá-la e mitigar seus temores. Sua tentativafracassou. Talvez ela visse a verdade. Talvez ela estivesse além de dizer qualquer coisa anão ser o que ela mais temia. Ela gritou e o som podia ser ouvido até mesmo sobre ouivo dos alarmes.

Em resposta, Walker pressionou a palma da mão contra uma das portas de extraçãoe enviou o fogo druídico para seu interior.

Antrax foi apanhado de surpresa. A magia de Walker dentro das linhas dealimentação era como águas de uma represa aberta em um leito de rio seco. O choquefoi enorme, tanto que um efeito de chicote atravessou o corpo de Walker também. Eleenrijeceu o corpo contra a pressão e a dor e tornou a lançar a magia para a frente, parao fundo das linhas, sentindo-a tornar a crescer. Antrax estava lançando defesas em umesforço louco para contê-lo, mas eram muito poucas e era tarde demais. Ele haviapenetrado por todo o sistema de alimentação, rompendo as linhas principais dentro detodos os pequenos canais, todos os pequenos tributários, tudo o que mantinha Antraxfuncionando. Ele podia sentir os condutores se fundindo, derretendo e parando defuncionar.

Fios de fogo arremeteram na sala atrás dele, queimando-o como metal aquecido. Eleconteve os gritos e bloqueou o que pôde do contra-ataque sem diminuir o impacto de seupróprio ataque. Ryer tornou a gritar, mas ele não pôde olhar para ela para ver o queestava fazendo. Todas as partes dele estavam direcionadas para a continuação doassalto. Antrax estava fugindo por suas linhas centrais, consertando o que podia,desligando o que não podia. Sistemas internos estavam implodindo um atrás do outro.Walker o caçou ao longo de seu sistema nervoso central, através de sua correntesangüínea, para dentro de seu coração e sua mente. Tudo o que tocava destruía com ofogo druídico, levando a si mesmo junto, sentindo-se queimar também. Não podia evitar.Não podia impedir. Não podia se separar do que estava acontecendo o suficiente parapermanecer inteiro. Pedaços de seu próprio corpo também estavam entrando emcolapso.

Então, subitamente, sentiu Antrax convulsionar. Os fios de fogo que o rasgavamgiraram bruscamente, abrindo seu alcance descontrolados. Rastejadores, desorientados esem controle, se contorciam como pedaços de papel apanhados em uma ventania. Elesentiu Ryer agarrando-o, ainda gritando, puxando-o, tentando libertá-lo das portas àsquais sua mão estava colada. Ahren Elessedil estava ao seu lado, seu rosto uma máscarade horror. Walker só teve um momento para registrar a presença dos dois, e então umefeito ricochete de magia explodiu pela porta de extração através de sua mão e braçoaté o interior de seu corpo, lançando-o para o outro lado da sala.

O ataque a seus sistemas internos foi tão súbito e poderoso que Antrax foi queimadopela metade antes mesmo que conseguisse reagir. Ele bloqueou o avanço do intruso,

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voltou seu próprio poder para ele e contra-atacou com seus lasers. Começou a fecharáreas danificadas e pedir reparos. Mas, apesar de seus esforços, o fogo do intrusoqueimou através dele todo, e para cada seção de si mesmo que conseguia salvar, duaseram perdidas. Todas as suas linhas centrais foram invadidas e contaminadas, repletasde um poder tão destrutivo que estava corroendo os circuitos e condutores. Antrax sentiupedaços de si mesmo cessarem de funcionar à medida que as linhas de alimentação sedeterioravam e entravam em colapso. Ele não conseguia manter suas várias funções,suas operações complexas. Perdeu controle sobre suas defesas móveis primeiro, suassondas e lasers. Seu sistema de manutenção parou. Mantinha intactas as defesas quecercavam a fonte de alimentação, mas os dispositivos de proteção na superfície deCastledown cessaram de operar. Ele direcionou tudo o que tinha restado para arealização de sua primeira diretriz: proteger o conhecimento que guardava em seusbancos de memória.

Nada funcionava. Tudo estava falhando. Peça a peça, ele sentiu sua velocidadesendo reduzida, seu controle sendo perdido, indo embora. Recuou para suas posiçõesmais fortes a fim de ganhar forças, de se reconectar. Mas o fogo o rastreava como sefosse uma coisa viva e queimou suas defesas vacilantes. Antrax foi forçado a voltar todoo caminho por suas linhas em colapso até as câmaras que abrigavam sua fonte deenergia.

Ali ele se viu acuado, incapaz de sair dos capacitores gêmeos que o haviamalimentado durante todos aqueles séculos. Os capacitores eram tudo o que havia restadopara ele, e a energia deles estava vazando através de mil rupturas. Não era maispossível cumprir a tarefa que os criadores haviam lhe confiado. E já conseguia sentir osbancos centrais de memória morrendo.

Então Antrax não conseguiu mais se mover.Começou a ter problemas para pensar.O tempo ficou mais lento, e então mal conseguia ser notado em seu novo estado de

imobilidade e disfunção.Seu último pensamento consciente foi este: ele era incapaz de se lembrar o que era.

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29

Walker desmaiou quando foi atirado contra a parede, mas acordou quase na mesma

hora. Jazia imóvel no meio dos destroços, olhando indefeso para a névoa fumarenta queo envolvia. Sabia que estava ferido, mas não sabia dizer o quanto. Não sentia a maiorparte de seu corpo, e sua mão estava encharcada com algo que era inconfundível. Emalgum lugar perto dali, na confusão após a batalha, podia ouvir Ryer Ord Star soluçando echamando seu nome.

Estou aqui, tentou dizer, mas as palavras não saíam.Fagulhas se derramavam como fogo líquido das extremidades rompidas de cabos, e

máquinas feridas zumbiam e cuspiam em seus estertores de morte. Tremores sacudiramo refugio enquanto Antrax se debatia cegamente descendo suas linhas de alimentaçãoem busca de uma ajuda que não mais podia ser encontrada. Virando a cabeça devagarpara a direita, Walker conseguiu captar um vislumbre dos cilindros fraturados queabrigavam a fonte de alimentação, a pele metálica vazando vapor e umidade, os fios defogo protetores desaparecendo como arco-íris com a passagem de uma tempestade.

Então a dor começou, súbita e intensa, percorrendo-o com a força de águas deenchente libertadas de uma represa rompida. Perdeu o fôlego com a intensidade dela ecombateu-a com o pouco de magia que conseguiu reunir, fechando-a, interrompendo-a,dando a si mesmo espaço e tempo para pensar com clareza. Não tinha muito denenhuma das duas coisas, ele sabia. O que havia sido prometido fora entregue. As visõesnão haviam dito que a Morte poderia vir para ele então, naquele momento, naquelelugar. Mas ele sabia que ela estava a caminho.

Uma figura se moveu na penumbra e Ahren Elessedil se materializou.— Ele está aqui! — gritou olhando para trás, e então se ajoelhou na frente de

Walker, o rosto sujo de cinzas, o corpo magro marcado com queimaduras e cortes,coberto de sangue. — Sombras! — sussurrou suavemente.

Ryer Ord Star estava ao seu lado um segundo depois, pequena e etérea, como senão fosse mais substancial do que a fumaça da qual ela aparecia, como se não tivesseuma forma melhor do que essa. Ela o viu e levou as mãos à boca, pequenos punhos queconseguiam apenas parcialmente abafar seu grito angustiado. Walker viu que ela estavaolhando para o seu pescoço, onde a dor estava centralizada. Ele leu o horror nos olhosdela.

Ela partiu para ele na hora e ele ergueu a mão em um gesto de alerta para mantê-laafastada. Pela primeira vez, viu o sangue que o cobria. Pela primeira vez teve medo, e omedo deu força à sua voz.

— Vá para trás — ordenou-lhe com rispidez. — Não me toque.Ela continuou seguindo, mas Ahren a segurou quando tentou passar por ele e puxou-

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a para seu lado, contendo-a enquanto ela se debatia e gritava de fúria e desespero.Falou com ela, a voz firme e calma, mesmo quando ela não o ouvia, pois não o ouviria,até que finalmente ela desabou em seus braços, soluçando em seu ombro, as mãospequenas como as de um pássaro ainda fechadas em desafio.

Walker abaixou a mão ensangüentada de volta ao seu colo, ainda sem olhar parabaixo, para o que sabia que encontraria ali, forçando-se a se desligar de tudo, menos oque sabia que devia fazer a seguir.

— Príncipe dos elfos — disse ele, sua própria voz irreconhecível para si mesmo. —Traga-a mais perto.

Ahren Elessedil fez conforme lhe foi dito, endurecendo o rosto como as pessoasfazem quando são levadas a encarar visões que gostariam de jamais ter testemunhado.Ele a abraçava possessivamente, protegendo-a além de contê-la, suas própriasnecessidades reveladas na determinação de fazer com que ambos passassem porqualquer coisa que acontecesse em seguida. Walker ficou surpreso com a resolução e aforça de vontade que encontrou naquele rosto jovem. O príncipe dos elfos havia crescidoe amadurecido subitamente.

— Ryer — ele disse o nome dela com suavidade, enchendo deliberadamente o somdele com uma calma cujo objetivo era reconfortá-la. Aguardou. — Ryer, olhe para mim.

Ela assim o fez, lentamente e com hesitação, tirando a cabeça do ombro de AhrenElessedil, o olhar direcionado para o rosto dele, recusando-se a olhar para baixonovamente, a arriscar o que isso faria a ela. Nas feições pálidas e translúcidas eleencontrou tamanha tristeza que sentia como se seu espírito estivesse agora tãoquebrado quanto seu corpo.

— Você não pode me tocar, não sem dano irreparável. Curar-me não é possível.Curar-me irá custar a você sua própria vida e não salvará a minha. Algumas coisas estãoalém até mesmo de seus poderes empáticos. Suas visões me disseram que isto estavapor vir. Quando eu me tornei ligado a você depois de Shatterstone, eu vi. Estáentendendo?

O olhar dela era vago e fixo, vazio de qualquer coisa que lembrasse compreensão,como se ela tivesse decidido deixá-lo ao invés de encarar a verdade. Ela estava seescondendo — e isso ele aceitava —, mas não havia fugido para tão longe que nãopudesse ouvir.

— Ahren irá levá-la de volta até a superfície de Castledown e de lá até a aeronave.Volte para casa com ele. Fale a ele das visões e ações que visitarem você no caminho,assim como um dia as contou para mim. Ajude-o assim como me ajudou.

Ela estava balançando a cabeça lentamente, os olhos ainda fora de foco, perdidos evazios.

— Não — ela sussurrou. — Eu não vou deixar você.— Ahren. — O olhar de Walker passou para o príncipe dos elfos. — O tesouro que

viemos encontrar está perdido para nós. Ele morreu com Antrax. Os livros de magiaestavam abrigados no sistema de memória da máquina. Eles não podiam serrecuperados, a menos que Antrax fosse mantido inteiro, e permitir que isso acontecesseera perigoso demais. A escolha a fazer era minha, e eu fiz. Se valeu a pena pagar esse

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preço, isso ainda veremos. Você terá de fazer seu próprio julgamento. Lembre-se disso.Um dia, você terá sua chance.

Ryer Ord Star estava chorando novamente, ao mesmo tempo que falava o nome delebaixinho, repetindo-o sem parar. Ele queria estender a mão para ela, para reconfortá-lade alguma maneira, por menor que fosse, mas não podia. O tempo estava passando eainda havia mais uma coisa que ele devia fazer.

— Vão agora — ele disse para o príncipe dos elfos.A vidente soltou um uivo baixinho e estendeu as mãos para ele, tentando se libertar

das mãos fortes de Ahren Elessedil. Os dedos dela eram como garras, estendendo-secomo se quisessem rasgar e destruir quaisquer palavras que ele quisesse pronunciar emseguida.

— Ryer — ele disse baixinho, suas forças desaparecendo. — Ouça-me. Esta não é aúltima vez que veremos um ao outro. Nós iremos nos reencontrar. — Ela ficou quieta,olhando para ele. — Em breve — ele disse — isso irá acontecer.

— Walker — ela murmurou seu nome como se fosse uma magia que pudesseprotegê-los a ambos.

— Eu prometo a você. — Ele engoliu em seco com a volta da dor, gesticulando comfraqueza para Ahren. — Vão. Rápido. Não pelo caminho pelo qual vieram. O outro lado dacâmara, para aquele caminho. — Apontou para trás dos cilindros quebrados, suamemória lembrando-se das passagens labirínticas que havia explorado em sua busca forado corpo. — A passagem principal leva para fora daqui. Sigam-na. Vão agora.

Ahren puxou Ryer Ord Star para cima consigo, virando-a à força, ignorando tantoseus soluços quanto sua luta. Seu olhar permaneceu fixo no druida ao fazer isso, como seolhando para Walker ele encontrasse a força de que precisava. Talvez ele ainda procurerespostas para o que aconteceu a todos, pensou Walker. Talvez simplesmente queirasaber se o que eles suportaram valeu a pena.

Um instante depois eles haviam desaparecido, passando pela porta arrebentada dacâmara e entrando em um aposento ainda maior. Ainda pôde ouvi-los por um longotempo, os sons da vidente chorando e de botas raspando os escombros. E depois ficouapenas o ruído cada vez menor de máquinas feridas lutando para continuarem funcionais,a fumaça que subia encapelada pelo ar, fios que faiscavam e uma vaga sensação de vidase escoando lentamente.

O tempo diminuiu sua velocidade.Walker sentia como se estivesse flutuando. Ela chegaria em breve. A bruxa Ilse, sua

nêmese, seu maior fracasso — finalmente ela o havia alcançado. Ele podia medir suaaproximação pelo deslocamento da fumaça no ar e pelo murmúrio de passos em suamente. Reforçou sua resolução enquanto aguardava por ela.

Quando ela aparecesse, ele estaria preparado.

A bruxa Ilse encontrou o caminho até a fonte de energia através do uso de sua magia,rastreando primeiro a origem dos alarmes e depois seguindo as pegadas de Walker, nasquais ela tropeçou mais adiante. O calor e o movimento das imagens que ele havia

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deixado ao passar se cruzavam com os de Ryer Ord Star e de um elfo. Todos haviampassado por aquele caminho, e há não muito tempo atrás, mas ela não sabia dizer seestavam viajando juntos. Ficou surpresa ao encontrar a vidente ali embaixo, mas nemsua presença nem a do elfo faziam qualquer diferença. Era com o druida que ela tinha delidar; os outros dois eram meramente obstáculos a serem eliminados.

Era verdade que ela havia desistido de procurar pelo druida em favor da magia queambos buscavam, mas não podia ignorar a presença dele. Ele estava em algum lugaradiante dela, e talvez já tivesse se apossado dos livros. Ela precisava descobrir isso. Nãohavia esquecido sua decisão anterior de se concentrar nos livros, mas cada curva quefazia a levava de volta à sua nêmese. Era inútil continuar fingindo que podia separar osdois.

Ela havia escutado os sons da batalha durante sua aproximação, reduzindoautomaticamente a velocidade, sem querer tropeçar em nada para o qual não estivessepreparada. Ainda não sabia o que vivia ali, embora tivesse certeza de que era algo doAntigo Mundo. Era inteligente e perigoso se havia sobrevivido a todos aqueles anos, e elao evitaria se pudesse. A julgar pelos sons adiante, parecia que esse ser tinha coisassuficientes para se ocupar sem se incomodar com ela.

As passagens davam voltas e mais voltas e ela logo descobriu que os sons estavamse propagando mais longe do que havia percebido. Quando se aproximou de sua fonte,eles já estavam quase morrendo, tornando-se pequenos zumbidos e estalos, pequenosfragmentos de ruído quebrados em uma luta que havia consumido seus criadores. Osalarmes haviam cessado e as armadilhas que haviam protegido as passagens foramtravadas. Ela ainda conseguia sentir uma presença em algum lugar bem no fundo dasparedes, mas era pequena e estava falhando com rapidez. A fumaça passava por elarolando em nuvens, chamando-a para a frente, para onde a passagem se abria em umaruína dominada por um par de cilindros maciços que foram quebrados e retorcidos porexplosões vindas de dentro. Fragmentos de rastejadores jaziam por toda parte emáquinas cujo propósito ela não conseguia sequer começar a compreender estavamderrubadas, seus cabos e fios cortados e soltando fagulhas. A câmara que os abrigavaera vasta e silenciosa quando ela entrou, no refúgio que havia se tornado um túmulo.

Sentiu a presença do druida na hora. Respondendo a essa presença, ela atravessouos escombros e penetrou nos restos de uma câmara ao lado.

Ela o viu quase imediatamente. Ele estava recostado a uma parede, olhando paraela. Tingido de vermelho com sangue e os mantos negros abertos sobre o corpo comouma mortalha esfarrapada. Seu corpo estava queimado e arrasado. A maior parte deuma das pernas havia desaparecido. Sua pele, onde não estava coberta de bolhas edescascando, estava tão pálida que parecia desenhada com giz na névoa que pairava nolocal.

Ela encarou seu corpo arruinado e ficou surpresa ao descobrir que não sentiasatisfação. Se sentia alguma coisa, era decepção. Havia esperado toda a sua vida poresse momento, e quando ele chegara não era nada do que ela havia imaginado. Elaqueria ser o instrumento da destruição do druida. Alguém havia roubado dela esseprazer.

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Caminhou até poucos metros dele e parou. Mesmo assim não falou nada, seus olhospresos aos dele, buscando algo que lhe desse um pouco da satisfação que lhe foranegada. Não encontrou nada.

— Onde estão os outros? — ela perguntou finalmente. — A vidente e o elfo?Ele tossiu e engoliu saliva.— Foram embora.— Você está morrendo, druida — ela disse.Ele assentiu.— Chegou a minha hora.— Você perdeu.— Perdi?— A morte rouba todas as nossas chances. As suas estão fugindo de você enquanto

conversamos.— Talvez não.A recusa dele em reconhecer a derrota a enfurecia, mas ela manteve sua raiva

cuidadosamente guardada.— Você achou a magia que procurava? — Ela fez uma pausa. — Irá me contar de

espontânea vontade ou deverei abrir sua mente para obter uma resposta à minhapergunta?

— Ameaças são desnecessárias. Achei a magia e tirei dela o que pude. Masenquanto eu viver ela estará além de seu alcance.

Ela o encarou.— Então não terei de esperar muito, terei?— Mais do que pensa. Minha morte é apenas o começo de sua jornada.Ela não fazia idéia do que ele estava falando.— Que jornada é essa, druida? Diga-me!Sangue brotou de seus lábios e desceu por seu queixo em um fio fino. Os olhos dele

estavam começando a ficar embaçados. Ela sentiu uma pontada de pânico. Ele ainda nãodevia morrer.

— Eu tenho o garoto — disse ela. — Você fez um trabalho impressionanteconvencendo-o das mentiras que ele agora insiste que são a verdade. Ele realmenteacredita que é Bek e que sou sua irmã. Ele acredita que você é amigo dele. Se gostadele, irá me ajudar agora, enquanto ainda há tempo.

Os olhos de Walker jamais deixaram o rosto dela.— Ele é seu irmão, Grianne. Você o escondeu no porão de sua casa, em um

compartimento atrás de um gabinete. Ele foi encontrado ali por um mutante, que por suavez o trouxe a mim. Eu o levei para um homem e sua esposa nas Highlands, para que ocriassem como um filho adotivo. Essa é a verdade. As mentiras são todas suas.

— Não use meu nome, druida! — ela sibilou para ele.Uma mão se ergueu fraca.— O Morgawr matou seus pais, Grianne. Ele os matou e seqüestrou você para poder

tirar vantagem de seus talentos e fazer de você uma aluna. Ele lhe disse que eu fiz issopara que você odiasse o maior inimigo dele. Ele o fez na esperança de que um dia você

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me destruísse. Esse era o seu plano. Ele subverteu seu pensamento desde cedo e treinouvocê bem. Mas ele não sabia de Bek. Não sabia que havia alguém além de mim queconhecia a verdade que ele lutou tanto para ocultar.

— É tudo mentira! — ela exclamou, sua raiva novamente intensa, sua magiafervilhando dentro dela. Ela o mataria se ele dissesse mais uma palavra. Ela o destruiriae poria um fim a tudo ali e agora.

— Você quer saber a verdade? — ele perguntou.— Eu já sei.— Você quer saber a verdade finalmente e para sempre?Ela o encarou. Os olhos escuros dele a encaravam com uma intensidade da qual ela

não conseguia se desviar. Ele tinha algo em mente, algo que estava trabalhando, masela não tinha certeza do que era. Tome cuidado, disse a si mesma.

Dobrou os braços dentro de seus mantos.— Quero — disse ela.— Então use a espada.Por um momento ela não teve idéia do que ele estava falando. Então lembrou-se do

talismã que levava às costas, aquele que o garoto lhe dera. Estendeu a mão para oombro e tocou-o de leve.

— Isto?— Esta é a espada de Shannara. — Ele engoliu saliva, a respiração rateando no

peito. — Invoque-a se quiser saber a verdade, aquela que você negou por tanto tempo. Otalismã não pode mentir. Não pode haver ilusões com seu uso. Somente a verdade.

Ela balançou a cabeça devagar.— Não confio em você.O sorriso dele era fraco e triste.— Claro que não. Não estou pedindo isso. Mas você confia em si mesma, não confia?

Você confia em sua própria magia. Use-a, então. Está com medo?— Não tenho medo de nada.— Então use a espada.— Não.Ela pensou que seria o fim, mas estava errada. Ele assentiu como se ela tivesse

dado a ele a resposta que ele esperava. Em vez de acabar com as intenções dele, eracomo se ela as tivesse reforçado. Ele moveu o braço bom até repousar a mão sobre opeito estraçalhado. Ela não sabia como ele ainda podia estar vivo.

— Use a espada em mim — murmurou.Ela balançou a cabeça no mesmo instante.— Não.— Se você não usar a espada — ele sussurrou —, jamais terá controle sobre a magia

que escondi de você. Tudo o que adquiri, todo o conhecimento do Antigo Mundo obtidonestas catacumbas, todo o poder garantido pelos druidas está trancado dentro de mim.Poderá ser liberado se você usar a espada, se for forte o bastante para dominá-la, casocontrário, não.

— Mais mentiras! — ela cuspiu.

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— Mentiras? — A voz dele estava ficando fraca, suas palavras cansadas e arrastadas.— Sou um homem morto. Mas ainda sou mais forte do que você. Eu posso usar a espada,ao passo que você não. Você não se atreve. Prove que estou errado, se acha que pode.Faça o que eu digo. Use a espada. Teste a si mesma contra mim. Tudo o que eu tenho,tudo, vai se tornar seu se você for forte o bastante. Olhe para mim. Olhe para os meusolhos. O que está vendo?

O que ela via era uma certeza que não trazia dúvidas e não escondia nenhumsubterfúgio. Ele a estava desafiando a olhar para a verdade como ele acreditava quefosse, pedindo a ela que arriscasse o que isso pudesse significar. Ela não achava quedevesse fazê-lo, mas também acreditava que o acesso à mente dele valia a penaqualquer risco. Uma vez ali dentro, ela conheceria todos os seus segredos. Saberia averdade sobre os livros de magia perdidos. Saberia a verdade sobre si mesma e o garoto.Era uma chance que ela não podia se dar ao luxo de deixar passar. As bobagens delesobre o conhecimento e o poder dos druidas eram um plano para distraí-la, mas ela podiajogar esses jogos muito melhor do que ele.

— Está certo. — As palavras dela eram cobertas de ferro. — Mas você coloca a mãona espada primeiro, sob a minha, para que eu possa segurar você. Assim, caso isto proveser um truque de algum tipo, você não fugirá de mim.

Ela achou que havia virado o jogo muito bem. Esperava que ele recusasse, commedo de ser vinculado a ela de uma maneira que lhe retirasse a chance de se libertar.Mas ele a surpreendeu mais uma vez. Assentiu concordando. Faria como ela dissera. Elao encarou. Quando achou ter visto um fragmento de satisfação em seu rosto, ficou cheiade raiva e sacudiu o punho para ele.

— Não pense que pode me enganar, druida! — ela disparou. — Eu esmagaria vocêmais rápido do que você pode piscar os olhos se tentar!

Ele não respondeu, os olhos ainda presos aos dela. Por um instante ela pensou emabandonar todo aquele esforço, afastar-se dele. Que ele morresse, e ela resolveria ascoisas mais tarde. Mas não podia desistir da oportunidade que ele lhe oferecia, mesmoque fosse apenas por um momento. Ele guardava tantos segredos! Ela teria todos eles.Ela queria a verdade sobre o garoto. Queria a verdade sobre a magia daquele refúgio. Senão agisse rápido, talvez nunca mais tivesse outra chance de descobrir nada daquilo.

Respirou fundo para se controlar. O que mais ele pretendesse, qualquer que fosse asurpresa que planejasse, ela era mais do que páreo para ele, não era?

Levou a mão ao ombro e lentamente desembainhou a espada, brandindo-a à suafrente, colocando-a entre os dois, lâmina para baixo, cabo para cima. Na penumbraesfumaçada, a arma antiga parecia embaçada e sem vida. Suas dúvidas voltaram. Erarealmente a legendária espada de Shannara ou seria mais alguma coisa, algo diferentedo que a fizeram acreditar que fosse? Não havia outra magia escondida dentro dela; elajá a teria detectado a essa altura. Tampouco havia alguma coisa a seu respeito quepudesse emprestar forças para o druida moribundo. Nada poderia salvá-lo das feridas queele havia recebido. Ela tornou a se perguntar o que o teria arrasado daquela maneira eteria perguntado a ele, se achasse que havia tempo suficiente para fazê-lo.

Aproximou-se ainda mais dele, reposicionando a espada para que ele pudesse

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alcançar o cabo. Manteve os olhos sobre os dele, em busca de sinais de trapaça. Pareciaimpossível que ele pudesse conseguir qualquer coisa. Os olhos dele estavam pesados, arespiração entrecortada, seu corpo rasgado vazando sangue por dentro dos mantos e emquantidades tão copiosas que ela não sabia como ainda podia haver sangue dentro dele.Por apenas um instante novas dúvidas a assaltaram, alertando-a para que ela parasse oque estava para fazer. Confiava em seus instintos, mas odiava reconhecer o medo emface de seu inimigo jurado, o homem contra o qual ela havia se medido por tantos anos.

Colocou as dúvidas de lado.— Coloque a mão sobre a espada!Ele levantou a mão ensangüentada do peito e enlaçou o cabo com os dedos. Ao

fazer isso, era como se tivesse perdido o foco por um instante, e sua mão passou pelotalismã e encostou ligeiramente na testa dela. Ela estava se concentrando com tantaforça nos olhos dele que não pensou em observar a mão. Estremeceu com seu toque,ciente da mancha úmida que os dedos dele haviam deixado em sua pele. Ela o ouviudizer alguma coisa, palavras ditas com tanta suavidade que não conseguiu entendê-las.

A sensação do sangue dele em sua testa a perturbou, mas ela não lhe daria asatisfação de vê-la perturbada o bastante para limpar a mancha. Em vez disso, colocousua mão sobre a dele e a apertou para mantê-la firme.

— Agora veremos, druida.— Agora veremos — ele concordou.Olhos cravados um no outro, esperaram nas ruínas fumegantes da câmara de

extração, tão sozinhos que era como se não houvesse mais ninguém vivo no mundo.Tudo havia ficado quieto. Até mesmo os cabos e fios cortados que faiscavam e zumbiamapenas instantes antes, e as máquinas destroçadas que lutaram com tanta força paracontinuar funcionando haviam parado. Estava tudo tão quieto que a bruxa Ilse podiaouvir o som da respiração do druida se reduzir até quase nada.

Ela estava desperdiçando seu tempo, pensou subitamente, furiosa mais uma vez.Aquela não era a espada de Shannara. Não era nada além de uma espada ordinária.

Em resposta, seus dedos se enterraram na mão de Walker e no cabo gasto abaixodele. Diga-me alguma coisa! Mostre-me a sua verdade, se você tem alguma verdadepara mostrar!

Um instante mais tarde, ela sentiu um surto de calor se elevar da espada, entrar emsua mão e se espalhar pelo seu braço. Viu o druida estremecer e o ouviu perder o fôlego.Um instante depois, uma luz branca brilhou ao redor deles e eles desapareceram dentrode seu núcleo derretido.

Na costa da Divisa Azul, a aurora irrompia através de um banco de neblina que seestendia por todo o horizonte como uma parede maciça. Do convés da Jerle Shannara,Redden Alt Mer observava a neblina se materializar nos rastros da noite que se afastava,um leviatã cinzento que se aproximava da margem com a inevitabilidade de ummaremoto. Ele já vira neblina antes, mas nunca assim. O banco era espesso e inteiriço,ligando a água ao céu, o norte ao sul, a luz às trevas. O amanhecer lutava para surgir por

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entre rachaduras em sua superfície, uma série de listras vermelhas raivosas que tinhamum aspecto de aço aquecido, como se uma fornalha gigante tivesse sido acesa longe naágua.

March Brume experimentava um nevoeiro pesado de vez em quando, assim comotodos os portos marítimos ao longo da costa da Terra Ocidental. Misture frio e calor ondea terra encontra água, mexa com uma saudável dose de condensação e você conseguiráum nevoeiro tão espesso que poderia passar na torrada: esse era o velho ditado dosmarinheiros. O nevoeiro que Redden Alt Mer estava observando era assim, mas tambémtinha outra coisa, uma espécie de energia, sombria e consciente, que sugeria aaproximação de uma tempestade. Só que não parecia o tempo certo para aquilo. Cheirouo ar, mas nada lhe falava de chuva e não havia nem som de trovão nem clarões derelâmpagos. Não havia uma só rajada de vento. Nem mesmo as leituras de pressãodavam para ele um sinal de problemas.

O capitão rover foi até o convés de popa e olhou com mais atenção para a neblina.Será que alguma coisa havia se movido ali?

— Sopa de ervilha — grunhiu Spanner Frew, chegando ao seu lado na cabine. Com atesta franzida e a barba negra, ele próprio parecia um trovão. — Estou feliz por nãoestarmos seguindo naquela direção.

Alt Mer assentiu, ainda olhando na direção da neblina.— O melhor é esperar que ela fique do lado de lá. Quero ser esfolado e cozido antes

de nos deixar ficar aqui mais uma semana.Mais um dia e os reparos da aeronave estariam terminados. Estava tudo tão próximo

agora que ele mal conseguia conter a impaciência. A Ruivinha havia desaparecido já hátrês dias, e em nenhum momento ele se sentira bem. Tinha fé no bom julgamento dela,e também no de Hunter Predd, mas se sentira muito comprometido pelo que haviaacontecido aos membros da equipe do navio naquela terra traiçoeira. Estavam todosespalhados pela ilha, a maioria deles perdidos ou mortos, e não tinha idéia de comotodos iriam se reunir novamente, sem contar com o problema adicional de imaginar oque podia ter acontecido com sua irmã.

— Já resolveu o problema daquele cristal da porta de proa? — perguntou,observando o banco de neblina se deslocando, ainda achando que havia visto algo.

O construtor naval deu de ombros.— Não posso resolver isso sem um novo cristal, e não temos nenhum. Perdemos as

travas no canal durante a tempestade. Vamos ter de improvisar.— Bem, já passamos por isso antes. — Inclinou-se para a frente, as mãos na

amurada, os olhos fixos no banco de neblina. — Dê uma olhada lá adiante, Barba Negra.Está vendo alguma coisa? Ali, talvez a uns quinze graus a...

Não terminou a frase. Antes que pudesse completá-la, um aglomerado de formasnegras se materializou por entre a neblina. Em pleno ar, elas saíram voando de dentrodas nuvens cinzentas como um bando de shrikes ou rocas destacados contra a muralharajada de vermelho. Quantos havia? Cinco, seis? Não, Alt Mer se corrigiu quase na hora.Uma dúzia, talvez mais. Contou rápido, a garganta apertando. No mínimo duas dúzias. Eeram grandes, seus formatos certinhos demais para rocas. Tampouco tinham asas para

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impulsioná-los adiante, para lhes fornecer empuxo vertical.Prendeu a respiração. Eram aeronaves. Uma frota inteira, saída do nada. Ele as viu

tomando forma, mastros e velas, cascos negros e o brilho de acessórios de metal. Navesde guerra. Ergueu o telescópio e deu uma olhada mais de perto. Não havia nenhumainsígnia nem bandeiras com penacho, nenhuma marcação nos pórticos nem nos cascos.Ele as viu saírem da neblina e virarem quinze graus à esquerda, formando todas umalinha sobre o horizonte, negras como sombras do inferno enquanto entravam emformação e começavam a avançar.

Redden Alt Mer colocou de lado o telescópio e respirou fundo para se segurar.Estavam velejando bem na direção da Jerle Shannara.

Aqui termina o Livro Dois de A Viagem. O Livro Três, Morgawr, o Bruxo, concluirá a

série, quando Ilse será forçada a enfrentar a verdade sobre si mesma e os sobreviventesde Castledown irão começar a longa jornada para casa.

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