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Por que ainda não desisti de viver? Suicídio nº II – Do começo ao fim Caio está sentado em uma cadeira de praia. Ele está na área da piscina do Hotel Marina Park. O dia está ensolarado nessa manhã de sábado. O seu telefone toca. É o policial Jonas. - Tudo bem policial? Pergunta Caio. - Por enquanto sim – Responde Jonas. - Como andam as coisas na delegacia? - Bem. O delegado Sérgio está cada dia mais relaxado. Os policiais continuam metidos com propinas e eu estou no meio de tudo isso. - Sim, você está. Como uma ovelha no meio dos lobos – brinca Caio. - Como vai o caso do libanês canibal? - Sem nenhuma pista – Caio observa as crianças brincarem no trampolim e pularem na piscina. - Mas como assim? E o cara tatuado no cemitério? E a garota das tatuagens? Nada? - Ela não conhecia o cara – responde Caio enquanto um palhaço sobe em uma coluna na beira da piscina em forma de cascata que cai direto na água. - Você procurou os tatuadores da cidade? - Praticamente todos. Alguns falaram que fizeram essa tatuagem, mas não há registro de clientes que possa me indicar quem seja o cara. - Esse caso tá ficando complicado. Não há indício de mais nada. Parece que tudo já foi resolvido e ninguém se importa se existir algo mais – observa Jonas. - Perfeitamente – Caio afirma enquanto observa o palhaço em cima da cascata animar as crianças com uma corneta.

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Por que ainda não desisti de viver? Suicídio nº II – Do começo ao fim

Caio está sentado em uma cadeira de praia. Ele está na área da piscina do Hotel Marina Park. O dia está ensolarado nessa manhã de sábado. O seu telefone toca. É o policial Jonas.

- Tudo bem policial? Pergunta Caio.

- Por enquanto sim – Responde Jonas.

- Como andam as coisas na delegacia?

- Bem. O delegado Sérgio está cada dia mais relaxado. Os policiais continuam metidos com propinas e eu estou no meio de tudo isso.

- Sim, você está. Como uma ovelha no meio dos lobos – brinca Caio.

- Como vai o caso do libanês canibal?

- Sem nenhuma pista – Caio observa as crianças brincarem no trampolim e pularem na piscina.

- Mas como assim? E o cara tatuado no cemitério? E a garota das tatuagens? Nada?

- Ela não conhecia o cara – responde Caio enquanto um palhaço sobe em uma coluna na beira da piscina em forma de cascata que cai direto na água.

- Você procurou os tatuadores da cidade?

- Praticamente todos. Alguns falaram que fizeram essa tatuagem, mas não há registro de clientes que possa me indicar quem seja o cara.

- Esse caso tá ficando complicado. Não há indício de mais nada. Parece que tudo já foi resolvido e ninguém se importa se existir algo mais – observa Jonas.

- Perfeitamente – Caio afirma enquanto observa o palhaço em cima da cascata animar as crianças com uma corneta.

- Que barulho é esse? Pergunta Jonas.

- Eu estou no hotel que o libanês gostava de vir. A faxineira que disse. E, tem um palhaço barulhento em cima de uma cascata brincando com as crianças que estão na piscina.

Um garçom chega e deixa uma lata de coca-cola e um copo vazio na mesa em que Caio está sentado. Caio observa a sua chegada e rapidamente coloca as mãos em baixo da mesa.

- Obrigado – ele diz.

O garçom se retira.

- Eu gostaria de ajudar mais. Mas, não vejo como – diz Jonas.

- Eu entendo – diz Caio enquanto abre a lata de coca e derrama em seu copo.

- Tenho que desligar. Eu estou escutando as conversas de um suspeito. Conseguimos autorização para ouvir todas as conversas do sacana.

- Sério. Isso é empolgante. O meu trabalho parece mais divertido – brinca Caio.

- Seu miserável. Eu posso escutar até as suas ligações se você me perturbar mais um pouco.

- É tão fácil assim policial? Pergunta Caio.

- Na verdade sim. Eles têm um sistema tão precário que qualquer um com uma ordem de quebra de sigilo pode mexer no sistema. E qualquer número é passível de ser grampeado. Inclusive o seu moçinha.

- É, seu trabalho começou a ficar empolgante. E, quem é o suspeito?

- Não posso entrar em maiores detalhes. Mas, está ligado à chacina da Messejana. Por hoje é só. Tenho que ir.

- Espera! – pede Caio – Eu acho que essa investigação é uma furada. Não consigo ver aonde isso vai dar?

- Certo. Tire suas conclusões.

Jonas desliga.

Seu corpo balança no trampolim. Ele olha ao redor e alguns meninos brincam na beira da piscina. O palhaço continua animando os pequenos com sua corneta.

Caio anda até a beirada do trampolim. Ele olha para baixo e vê a água esverdeada da piscina. O que fazer a partir de agora? Um passo de cada vez. E ele se aproxima da ponta. Não sei por que estou fazendo isso? Eu nem sei por que estou aqui! Ele pula e cai na água. Ao retornar para a mesa ele toma mais um gole da coca-cola e segue para o banheiro. Não me sinto bem. Estou tonto. Ele lava o rosto. Olha-se no espelho. Seus olhos escurecem. As luzes parecem apagar. Está tudo tão nublado de repente. E eu não me sinto bem. Caio cai no chão do banheiro.

Ao acordar, Caio está em um dos quartos do hotel.

Minha cabeça dói. O que eu estou fazendo aqui? O que aconteceu?

Suas mãos estão amarradas na cadeira em que ele está sentado. Ele está de costas para a porta.

- Tudo bem investigador? Pergunta uma voz masculina que está atrás dele.

Caio tenta virar a cabeça para ver quem é, mas um cano de uma pistola encosta-se a sua nuca e ele para.

- Não se vire – diz a voz que mais parece um locutor aposentado em depressão.

Ele roça o cano da arma na nuca de Caio.

- Está coçando? Pergunta a voz

- De onde você me conhece? O que você quer? Vai me matar assim? Amarrado? Pergunta Caio, irritado.

- Calma docinho, não queremos estresse.

- Seu covarde de merda.

- Eu só quero te dar um recado – ele diz pausadamente – É melhor se afastar desse caso. O libanês era covarde de mais para viver. Deixe os mortos onde eles devem estar. Você me entendeu? Ele pergunta com certa impaciência.

- Seu covarde.

Caio tenta virar mais uma vez e ele engatilha a arma.

- Se você continuar mexendo nisso. Eu prometo. Eu não serei tão gentil da próxima vez – diz de forma ameaçadora.

Seus passos deixam o quarto.

- Nós não encontramos nada Caio – diz Jonas enquanto caminha nos corredores do hotel com Caio.

- Eu não acredito que ninguém viu esse cara e nenhuma câmera o capturou? Caio pergunta irritado.

- Não. Nós olhamos cada câmera e falamos com todos os camareiros e garçons. Ninguém viu esse homem – ele diz entrando na sala de segurança.

- Ele com certeza têm cara de radialista – diz Caio coçando os pulsos machucados.

- Eu não sei qual a cara dele. Eu só sei que ele é bastante profissional para não deixar nenhum rastro – Diz Jonas juntando algumas caixas que estão no chão.

- Isso é impossível Jonas. Você é policial e mais do que ninguém sabe que ninguém passa sem deixar rastros – afirma Caio.

- Bem, nós vamos levar cópias das câmeras de segurança. Temos vídeos das áreas externas, corredores e da piscina – afirma Jonas exibindo as caixas com os vídeos.

- Eu fui dopado. Eu quero saber quem me serviu a bebida.

- Nós já falamos com ele – diz Jonas – É um senhor de cinquenta anos que te serviu uma coca-cola. Coca esta que você mesmo abriu enquanto falava ao celular. Nós vimos nas imagens. E, depois disso ninguém mais se quer se aproximou de você. Então, presumimos que ele não te dopou. Ou pelo menos não temos como provar. Ele está sendo investigado. Nós ainda estamos interrogando.

- E o banheiro?

- É o único lugar que as câmeras não cobrem. Não vimos quem entrou ou quem saiu. Estamos no escuro em relação a tudo que aconteceu aqui – diz Jonas enquanto caminha para o hall.

- Eu quero ficar com uma cópia das imagens pode ser? Pergunta Caio seguindo Jonas.

- Eu consigo isso.

Caio e Jonas param no hall do hotel.

- Olha Caio, eu não quero que você se preocupe – Jonas põe a mão no ombro dele – Se você acha que está ficando perigoso e que não compensa o esforço, você pode falar.

- Eu estou sendo pago por isso Jonas. Eu vou investigar até onde eu puder – ele diz com certa arrogância. – E outra! Quem fez isso vai ter que me dar um susto maior. Ele me conhecia cara! – diz olhando nos olhos de Jonas - Ele sabia que eu coço a nuca quando estou nervoso!

O garçom está sentado de frente para o delegado Sérgio.

Atrás do delegado estão Jonas e Caio.

Eles estão no 34º Distrito de Polícia.

O garçom é um homem velho. Na faixa dos 60 anos. Tem olhos de quem já chorou muito.

- Você dopou o meu colega? Pergunta o delegado.

- Não senhor. Eu não tenho essa coragem.

- Do que você se lembra? Qual a última imagem que você se recorda do nosso amigo aqui?

Ele mexe a cabeça – Eu lembro que ele me olhou quando eu cheguei. Ele parecia nervoso. Eu deixei a lata na mesa e o copo. E eu me recordo que ele colocou as mãos em baixo da mesa.

- Como assim? Colocou as mãos em baixo da mesa? Pergunta o delegado.

Caio observa o homem atento e se endireita na cadeira, prestando muita atenção.

- Ele baixou as mãos e parecia esconder algo – o homem disse parecendo receoso – Mas enfim, eu sou pago para servir os hóspedes e não para analisá-los. – ele olha para Caio e depois fixa os olhos no delegado – Senhor, eu tenho uma esposa prestes a morrer com Alzheimer. Não consigo me aposentar e não tenho razões para dopar este homem.

Caio se levanta – Eu vou sair.

Jonas vai atrás dele. Eles saem da sala.

- O que aconteceu? Pergunta Jonas.

- Não foi ele. Ele parece inocente.

- Sim. Mas qual é a história das mãos – pergunta curioso.

- Isso é problema meu – Caio responde enquanto vai em direção à saída.

- Espera! – Jonas corre atrás dele – Eu não sei o que isso significa, mas você não pode sair assim, como se tudo estivesse resolvido. Você pode aguardar um pouco?

- Olha Jonas eu vou pra casa. Vou tentar descansar. Se precisar de alguma coisa eu te chamo – diz enquanto deixa o 34° Distrito.

- Me avisa se conseguir algo! – grita Jonas da porta.

Ele responde com um sinal de OK.

Ok. Primeiro o cara é drogado e corta a perna para depois comê-la. Que nojento. Que tipo de droga despertaria um instinto tão selvagem e autodestrutivo como o canibalismo? Mas, porque carne humana? Por que não carne bovina? Ou frango? Ou até mesmo peixe? Mas, carne humana! Incrível, o que falta para o ser humano inventar? Criaremos uma substância capaz de nos fazer comermos uns aos outros e aí seremos uma raça ímpar e altamente evoluída? Será que é isso? Merda, eu passei três dias no hotel atrás de pistas. Mas, tudo que encontrei foram momentos de lazer do libanês. No entanto, quem me ameaçou me encontrou no hotel. Existe uma ligação. Existe algo que possa ser descoberto. E o garçom? Não sei. Algo ainda existe ali que possa ser explorado. Eu voltarei ao hotel.

Por enquanto vou continuar avaliando as imagens. E ainda tem a carta. Essa carta é muito estranha. Por que ainda não desisti de viver? Eu posso investigar a associação. Será que o libanês frequentou esse grupo de autoajuda? Veremos!

Caio está sentado no banco do motorista do seu Impala 1995. No banco do carona está Mirtes e suas tatuagens. Eles estão no estacionamento da associação Por que ainda não desisti de viver? A noite está agradável. Durante o dia choveu bastante, mas agora o céu está azul e cheio de estrelas. Mirtes olha para Caio.

- Que foi? Pergunta Caio parecendo inocente.

Mirtes cruza os braços.

- Era essa a urgência? Pergunta Mirtes impaciente.

- Eu não poderia vir sozinho, ok!

- Você já é bem grandinho – ela responde lhe encarando.

- Você não entendeu. É que eu nem sei o que eles fazem aí dentro – ele diz enquanto segura o charuto.

- É um grupo de conversa. Eles compartilham suas experiências autodestrutivas.

- Você precisa ir comigo. Você disse que já frequentou algumas reuniões.

- Eu preciso ir. Eu tenho outras coisas para fazer – ela abre a porta.

- Por favor, Mirtes – ele segura no seu braço – Por favor!

- Eu realmente preciso ir – ela fala olhando pra ele.

- Você me deve essa – ele baixa a cabeça.

- Você está me subornando? – ela pergunta querendo se irritar.

- Eu não disse isso.

- Eu não te devo nada. Eu já falei que sei me virar sozinha.

- Olha calma. Eu sei que você sabe se virar só. Eu preciso da sua ajuda aqui ok!

Ela fecha a porta.

- Você só precisa sentar lá comigo. E, eu vou procurar o responsável – ele fala com olhos pedintes.

- Vê se não me procura mais depois disso certo! Vamos – ela sai do carro.

O salão é claro. Tem paredes azul piscina. No espaço tem muitas cadeiras dispostas em um grande círculo. Algumas estão vazias. Quatro homens e seis mulheres estão sentados. Eles escutam um homem que parece dirigir a reunião. Ele tem cabelos longos e usa uma camiseta azul marinho xadrez. Uma mulher magra e alta de cabelos presos em coque começa a falar. Ela tem uma voz trêmula e fraca.

- Eu tive uma semana muito boa – ela fala enquanto coça a palma da mão – Um dos meus sobrinhos veio do interior, e, ele simplesmente trouxe tanta alegria a minha casa, que eu não queria que ele fosse mais embora.

- Ele já voltou para o interior? Pergunta o homem de camisa xadrez.

- Ainda não. Ele vai ficar mais uma semana – ela diz enquanto levanta a cabeça e olha para Caio e Mirtes em pé na porta.

O homem de xadrez se levanta.

- Olá amigos. Vocês vão participar? Ele pergunta calorosamente.

- Sim, ele vai – responde Mirtes empurrando levemente Caio.

Ele senta em frente ao homem de xadrez.

- Bem, sejam bem-vindos. Eu me chamo Jordan e todos nós somos amigos que vocês podem contar quando precisarem. Como se chama?

- Caio.

- Caio de quê?

Boa jogada perguntar meu nome completo. Faz-me sentir importante e parte do grupo.

- Somente Caio. Minha amiga é a Mirtes.

- Tudo bem somente Caio. Prazer Mirtes. Nós estávamos escutando a nossa querida Ana falar. Pode continuar Ana – diz Jordan.

- Bem, então ele vai ficar mais uma semana e depois disso só no próximo ano.

- Isso mexe com você de alguma forma? Eu digo, negativamente?

- Não sei, talvez.

- Caio você quer compartilhar algo conosco? Pergunta Jordan.

- Não. Eu quero escutar.

- Ok. Mais alguém quer falar algo?

Eles se entreolham e disfarçam.

- Vamos lá pessoal. Compartilhem – instiga Jordan.

O homem com boné ao lado esquerdo de Caio pergunta: “O que faríamos se pudéssemos voltar e não tentarmos fazer o que tentamos fazer?”

- Você quer dizer, o que faria se voltasse no tempo e não tentasse mais o suicídio? Pergunta Jordan.

O homem assente com a cabeça.

- Bem Maicon, o que fizemos está feito. O que tentamos fazer já foi tentado. A questão aqui é o que faremos com o tempo que temos hoje.

Caio olha para Jordan. Ele usa óculos com aro preto. Parece inteligente. O que o levou a tentar o suicídio?

- Imaginem esta cena – diz Jordan abrindo as mãos como se segurasse uma câmera – Um homem está no topo de um prédio. Ele está destroçado. Partido. Derrotado. Não existe nenhum motivo para continuar – todos prestam atenção ao que Jordan diz.

- Imaginem que este homem é você. No topo do prédio. Você se apoia na sacada. O vento sopra e balança seu corpo. Você olha para baixo e percebe que o prédio é alto o suficiente para te matar. Não há mais esperança em sua mente. Você simplesmente tem que cair para terminar com tudo isso.

Caio olha atentamente para Jordan, que parece gostar de descrever a cena.

- É angustiante não acham? Toda a dor da solidão. Todo o desespero e toda a frustração parecem que estão lá embaixo aguardando você pra terminar com tudo – Ele para e observa sua plateia.

- E você cai. Seu corpo parece uma maçã caindo do pé em direção ao duro e cruel concreto. Você sabe que vai se esparramar quando chegar lá em baixo. Mas, de repente tudo parece fazer sentido. Você não sabe se é o vento cortante que bate em seu rosto? Ou se é o grito ensurdecedor que você está emitindo durante a queda? Mas parece que tudo faz sentido agora.

Mirtes encosta-se a parede enquanto observa Jordan falar.

- Você sabe exatamente o que fazer para tratar cada uma das suas mazelas. E, você sabe onde encontrar toda a energia necessária para operar cada mudança em sua vida. A catarse da morte te trouxe lucidez ao ponto de você saber exatamente o que fazer.

Ana cruza os braços e morde os lábios.

- Mas, agora o que fazer? Você já tomou sua decisão. Você já pulou do edifício. É impossível retornar. A não ser que você tenha em suas mãos uma ampulheta com uma areia mágica. E quando você gira a ampulheta o tempo começa a voltar. E daí, você ao invés de cair, começa a subir.

Caio levanta a cabeça e põe as mãos no bolso.

- Imagine se você pudesse voltar no tempo durante a queda. Você mudaria tudo. É isso que nós estamos fazendo aqui. Voltamos durante a queda. Fomos do começo ao fim. E, do fim ao começo.

Ana enxuga uma lágrima que cai rapidamente.

- Por hoje é só. Próxima semana nos encontramos? Pergunta Jordan.

Caio vai em direção a Mirtes.

- E aí. Vai falar com ele agora? Pergunta Mirtes.

- Não, eu preciso ir urgentemente – Caio diz enquanto carrega Mirtes para fora.

- Voltem sempre – grita Jordan.

Caio entra no carro e dá partida.

- Pra onde você vai? Pergunta Mirtes

- Pra minha casa.

Caio e Mirtes estão na frente do computador. Eles observam o vídeo atentamente. A casa continua bagunçada.

- Eu não consigo ver nada – diz Mirtes frustrada.

- Olha – ele fala enquanto clica na imagem – olha agora. Na hora em que eu estou pulando.

Ela observa.

Na imagem Caio sobe no trampolim. Ele balança. Olha para baixo e pula. No vídeo estão algumas crianças na piscina. Um palhaço com uma corneta em cima de uma coluna em forma de cascata.

- Você viu?

- Me desculpa, mas não consegui ver nada.

- Você pode voltar o vídeo. Na parte em que eu estou caindo.

Mirtes volta o vídeo exatamente na hora em que ele vai dá o pulo. Ele pula e cai na água.

- Pronto – diz Caio eufórico – congele a imagem enquanto eu caio. Agora volte enquanto eu estou caindo. Mais um pouco. Volte mais um pouco. E, pare!

- O quê? Ela pergunta.

- Caiu algo no meu copo. No exato momento da queda – ela aponta a tela.

- Não vejo nada.

- Veja! Caiu algo no meu copo. É branco. Pode ser um comprimido.

Mirtes abre um sorriso.

- Sim, eu vi. Realmente cai alguma coisa no seu copo.

- Eu disse! Exatamente enquanto eu caía.

- Que bom que no seu caso podemos voltar no tempo!

Caio observa repetidamente o vídeo.

- Achei.

- O quê?

Ele aponta para o palhaço.

- Foi ele – diz Caio.

- Está tão distante. Como ele fez isso? Pergunta Mirtes.

- A corneta.

- O que tem a corneta?

- Zarabatana! Grita Caio.

- Você vai me contar ou ficar de suspense? Pergunta Mirtes.

- Você sabe o que é uma zarabatana?

- Sei.

- Ele soprou o remédio com uma zarabatana.

- Ele não parece ter uma zarabatana.

- Isso é por que ele escondeu na corneta. Veja – diz Caio apontando para a tela – ele vira para a mesa no momento em que cai o remédio no copo. Eu tenho certeza que foi ele.

- É uma hipótese. O que você vai fazer agora? Pergunta Mirtes.

O celular de Caio toca.

- Eu já ia ligar pra você Jonas.

- Tenho notícias amigo – diz Jonas.

- Eu também tenho. E com certeza são mais importantes do que as suas.

- Eu duvido, mas fique a vontade pra começar.

- Eu encontrei o cara que me dopou. Ele usou uma zarabatana pra lançar um comprimido no meu copo. É bem provável que ele seja o mesmo cara que me ameaçou.

- De quem você está falando Caio – pergunta Jonas.

- Do palhaço que estava na piscina.

- Caramba. É ele mesmo. Nós já o encontramos Caio – diz Jonas eufórico.

- Mas como assim encontraram? Caio pergunta surpreso.

- Nós falamos com todos no hotel. Menos com ele. Ele era um empregado temporário do hotel. Vivia sozinho. Nós fomos a casa dele esta noite e encontramos tudo em chamas.

- Como assim? A casa estava pegando fogo?

- Sim senhor. Não restou nada. Encontramo-lo deitado na calçada perto das chamas. Se tivéssemos demorado mais um pouco ele teria derretido com a casa.

- E aí, o que ele disse?

- Nada. Ele está em coma. Não está consciente.

- Que droga Jonas. Essas são notícias péssimas.

- Eu sei. Nós queríamos interrogá-lo, mas não é possível.

- Que merda. Não serviu de nada descobrir quem foi o miserável que me dopou.

- Aconteceu algo com ele Caio – ele fala com preocupação.

- O quê? O que foi que aconteceu?

Jonas parece hexitar.

- Ele estava drogado.

- Ahh, isso não é nada.

- É sim Caio, isso é alguma coisa. Principalmente se a droga te faz comer os dedos.

- Metilona de novo?

- Exatamente. Ele esta com os dedos comidos.

Caio baixa a cabeça e suspira. – Parece que nada se explica nesse caso. Só mais perguntas e mais bizarrices.

- Caio. Eu não vou mais te ajudar nesse caso. O delegado Sérgio me pediu exclusividade no caso da chacina da Messejana. Eu tenho que terminar de escutar as ligações dos suspeitos.

- Eu entendo policial.

- Agora sabemos que o garçom não esteve envolvido.

- Mas quem contratou o palhaço? Pergunta Caio.

- Foi o hotel. Mas isso foi há duas semanas. E o libanês não frequenta esse hotel a mais de um mês. Acho que não há nenhuma ligação.

- Ligação. Pode ser que sim, pode ser que não.

- Quando foi a última vez que viu o homem tatuado?

- A última e única foi no cemitério.

- Posso tentar conseguir as imagens do cemitério. Mas eles só têm câmeras na entrada. Acho que você conseguiu essas não foi? Pergunta Jonas.

- Consegui. Eu consegui ver as imagens. De uma forma estranha mais consegui.

- Tenho que ir. Fica bem – se despede Jonas.

Mirtes observa Caio desligar o telefone.

- Tenho que ir – ela fala.

- Posso te deixar em casa.

- Não, eu agradeço.

- Poderíamos sair qualquer dia. O que você acha?

- Você tem o que? Trinta anos? Pergunta Mirtes.

- Eu. Eu tenho 27 anos. Quase lá. E você tem o que? 17 anos?

- Eu? Tenho 20. Mas não se preocupe. Eu gosto de homens acima dos 40 – ela fala sorrindo.

- Ok. Posso te ajudar em algo mais?

- Não investigador. Só quero saber uma coisa – ela para na porta e olha para ele – Qual o ano do seu carro? E desde quando viramos amigos?

- Uau – ele sorri – Que pergunta. O ano é 1995 e viramos amigos quando você quiser.

Ela balança a cabeça e sorri.

- Achei que tivesse sido na associação de autoajuda – ela pisca para ele – Mas você está avisado. Você só é meu amigo quando eu permitir isso ok?

- Ok chefe!

Ela vai embora.

Os últimos carros estão saindo do cemitério. É fim de tarde quando o último enterro acontece. Os parentes deixam o local, arrasados. Cabeça baixa. Lenços nas mãos. A tristeza paira acima de todos.

A tia Morgana poderia ter deixado o vício no cigarro. Mas a dependência era tão forte que ela não conseguia se livrar. Foi morrendo aos poucos.

Caio esta ali. Cabeça baixa. Olhos vermelhos. Vestido com sua camiseta xadrez azul marinho.

Ele se aproxima da Central de Segurança. Seus passos são trôpegos. Parece desnorteado. Ele se aproxima do segurança que está em frente a porta.

- Olá amigo - saúda Caio.

- Tudo bem com você? Pergunta o segurança.

- Tudo bem. Agora está tudo bem. Você lembra-se de mim? Caio pergunta encarando o segurança.

- É claro que sim senhor.

Caio estende a mão.

- Eu me chamo Caio.

- Prazer, sou Adauto.

Caio retira o celular do bolso.

- Olha Adauto. Eu não queria ter feito aquilo naquele dia. Eu estava desesperado. Mas hoje eu só quero te pedir desculpas.

- Sem problemas senhor. O dinheiro veio em boa hora. E afinal, o senhor só viu uma imagem.

- É, e hoje eu estou aqui voltando para enterrar minha tia – diz Caio baixando a cabeça.

- Meus sentimentos senhor – diz Adauto – Eu não sabia que era da família.

- Sim. Ela era uma verdadeira mãe pra mim. Criou-me desde os quatro anos quando minha mãe morreu com câncer.

- Nem consigo imaginar senhor.

Caio tenta ligar o celular e não consegue.

- Eu estou agora com um problema. O meu tio veio do interior pra enterrar a minha tia. Ele saiu daqui sem mim. Vai ficar desorientado se eu não encontrá-lo. Acho que está ficando sem memória. Mas eu vou ligar pra ele e informar que estou aqui. Acho que ele está com o motorista particular.

- Fique a vontade senhor – diz Adauto.

Caio tenta ligar mais uma vez, mas o celular não liga.

- Algum problema senhor?

- Meu celular parece que descarregou.

- Posso usar o telefone da Central?

- Infelizmente não, senhor. A sala é exclusiva para os seguranças.

- Você pode me emprestar o celular? Caio pergunta.

Adauto tira o celular do bolso e entrega a Caio.

- É somente uma ligação. Vai ser rápido.

Adauto observa Caio discar os números.

- Alô Francis. Onde você está. Você me deixou no cemitério. Não, eu avise que ficaria um pouco mais. Mas achava que você iria me esperar. Ainda estou aqui. Não tenho dinheiro para taxi. Venha me buscar e levarei o tio Célio para casa. Ele está desorientado. Rápido Francis – Caio desliga o celular e entrega para Adauto.

- Agradeço sua gentileza Adauto. Você é um bom homem. Tenho certeza que nunca será enganado.

- Sempre que precisar estarei aqui senhor – diz Adauto.

- Obrigado – diz Caio indo em direção à saída.

Caio está em casa. Já é noite quando ele liga para Jonas.

- Eu preciso da sua ajuda – diz Caio eufórico.

- Cara eu não posso mais te ajudar, você sabe disso.

- É só um último favor – insiste.

- O que você quer?

- Bem, no dia em que eu vi o homem tatuado no cemitério. Eu falei com o segurança para poder olhar as imagens e identificar quem era. E aconteceu algo estranho. Eu mostrei o distintivo e ele não quis cooperar. Daí eu ofereci dinheiro e ele continuou irredutível. Mas aí ele recebeu uma ligação e de repente tudo mudou. Ele decidiu me ajudar. Não sei quem ligou mais de alguma maneira conseguiu convencê-lo com mais rapidez do que eu. Ou talvez com mais poder do que eu.

- Você não tem poder nenhum seu sacana. E essa de usar distintivo falso.

- O sermão fica pra depois Jonas, eu preciso de ajuda agora.

- E o que você quer?

- Quero que você descubra quem ligou pra o segurança. Talvez seja uma pista.

- Mas como eu vou fazer isso? Pergunta Jonas.

- Eu tenho o número do segurança. E tenho o número da pessoa que ligou pra ele?

- Como você conseguiu isso?

- Contando uma historinha muito convincente – sorri Caio.

- Não sei como descobrir quem ligou pra ele.

- Você disse que pode escutar até mesmo as minhas ligações. Por que não pode fazer isso?

- Ahh, agora eu entendi. Você quer que eu escute as ligações de um segurança por que você acha que alguém ligou pra ele e deu ordens pra te ajudar?

- Exatamente – responde Caio.

- Eu não vou fazer isso.

- Você vai me ajudar cara. Eu só tenho essa pista. Eu não consigo encontrar mais nada. O garçom é inocente. O palhaço é um completo estranho que eu não sei nem quem é direito. Por que você não coopera um pouco Jonas? Grita Caio irritado.

- Eu não posso fazer. É crime.

- Você consegue fazer sim. Você já fez outra vez. E outra. É só uma ligação. Pontual. Foi às 08:30hs da manhã de uma segunda-feira. Eu consegui ver tudo isso enquanto o segurança achava que eu discava um numero.

- Você é um safado mentiroso Caio. Dá-me o número. Vai ser só dessa vez. Não me peça mais nada – diz Jonas bufando.

O computador está ligado. O vídeo volta mais uma vez. Caio tira sua camisa xadrez azul marinho. Está quente esta noite.

Ele senta em frente ao computador e observa o vídeo novamente. Ele vê seus próprios movimentos em direção ao trampolim. O balanço. A parada antes do pulo. A olhada para baixo. A queda.

Um carro estaciona em frente ao edifício de dois andares onde Caio mora. É uma viatura.

Jonas sai do carro. Caio abre a porta.

- E aí. Conseguiu? Caio pergunta.

- Acho melhor você entrar – diz Jonas parecendo preocupado.

- O que foi? Caio pergunta.

- Eu tenho algo esquisito pra te falar – ele fala como se tivesse visto a morte

- Jonas, você está me assustando.

- Preciso que você guarde total sigilo sobre o que eu vou te contar agora – ele fala baixo olhando para os lados.

- Eu to ficando com medo.

- Eu sei que isso é estranho. Mas não podemos tirar conclusões precipitadas. Mas eu não poderia deixar de te contar isso.

- Fala logo Jonas. O que aconteceu.

Jonas senta no sofá. Parece trêmulo.

- Quer água?

- Não. Eu só estou confuso. Você disse que era alguém com poder que tinha falado com o segurança?

- Bem, eu acho. É? Pergunta Caio.

- É o meu chefe Caio. Foi o delegado quem ligou para aquele segurança naquela manhã.

- O quê? Caio pergunta assustado.

- O delegado Sérgio deu a ordem para que você visse o que quisesse ver.

Caio senta na cadeira em frente ao computador.

- Eu não sei o que pensar – diz Caio.

- Acho melhor você sair dessa.

Caio assente com a cabeça.

ALGUNS DIAS ATRÁS.

O bordel está cheio. Nas noites de domingo o local fica lotado. O segurança vem falar com o homem que se denomina “ O maior de todos”, ele usa um lenço amarelo amarrado na cabeça.

- Eu mandei que uma garota anotasse a placa do carro – avisa o segurança.

- Muito bem. Você tem ideia de quem seja? Um policial? Um marido traído? Pergunta O maior de todos.

- Eu não sei senhor. Nunca vi mais estranho na minha vida. Eu só sei que ele aparece em um Impala antigo e para do outro lado da rua. Sempre no mesmo horário.

- Ok, vamos descobrir quem é o curioso.

Um garoto com um celular chega correndo e entrega ao O maior de todos.

- Oi – ele diz- Certo. Eu vou esperar lá fora. Tem certeza que o curioso já saiu? Tudo muito bem.

Ele desliga o celular e vai em direção à saída.

Mirtes aparece e se aproxima.

- Você conseguiu? Pergunta o senhor do lenço.

- Sim – ela responde

- Dê- me aqui – o senhor estende a mão.

Mirtes tira um papel do bolso e entrega ao O maior de todos. Ele balança a cabeça e se vira, mas antes de sair ele pergunta: “Qual é mesmo o seu nome?”

- Mirtes – ela responde.

- Prazer, eu sou “O maior de todos” – ele sorri e entra novamente no bordel.

O segurança se aproxima e pergunta: “Ela anotou o número da placa senhor?”

- Sim, ela foi muito eficaz – ele responde com um sorriso de satisfação.

CONTINUA...