treinamento dos doze - a.b bruce

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Um dos maiores desafios dos nossos dias é o treina­mento de novos líderes, quepossam continuar, com in­tegridade e seriedade, o tra­balho -de evangelizar e le­var ao mundo a mensagem do Evangelho.

D atado do século XIX, O Treinamento dos Doze é

Vi r\ c i

clássica. Desenvolvido pelo D r. A lexan d er B alm ain Bruce, esta obra fala, à nos­sa geração, acerca da im ­portância do preparo de novos obreiros para o Rei- r o .principal escopo a forma com que o Senhor Jesus trei­nou seus discípulos para que estes dessem continuidade à obra que Ele iniciara.

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REIS BOOK’S DIGITAL

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A. B. B R U C EPrefácio de D. Stuart Briscoe

E nos Para ο n....... :seDv°ivimeni:o da Lirterariça

I a Edição

Traduzido por Degmar Ribas

CPADR io de Jan e iro

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Todos os direitos reservados. Copyright © 2007 para a língua portuguesa da Casa Publicadora das Assembléias de Deus. Aprovado pelo Conselho de Doutrina.

T ítu lo do original em inglês: The Training o f the Twelve Kregel Publications, Grand Rapids, M I 49501 , EUA Primeira edição em ingles: 1971 Tradução: Degmar Ribas

Revisão: Elaine Arsenio e Daniele Pereira Capa e projeto gráfico: Leonardo Marinho Editoração: Leonardo Marinho

CDD: 248-V ida Cristã ISBN: 978-85-263-0855-8

As citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Corrigida, edição de 1995, da Sociedade Bíblica do Brasil, salvo indicação em contrário.

Para maiores informações sobre livros, revistas, periódicos e os últimos lançamentos da CPAD, visite nosso site: h ttp ://www.cpad.com.br.

SAC — Serviço de Atendimento ao Cliente: 0800-21-7373

Casa Publicadora das Assembléias de DeusCaixa Postal 33120001-970 , R io de Janeiro, RJ, Brasil

I a ed ição/2007

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Prefáciode D. Stuart Briscoe

A-Z Alexander Balmain Bruce, um homem tão escocês quanto seu nome, nasceu em uma fazenda de Perthshire e foi educado no Edinburgh College. Ministrou em congregações no território escocês e deu aulas em um Seminário em Glasgow. Por mais de quarenta anos, dedicou-se a minis­trar o evangelho cristão, primeiro como pastor, e então como um ilustre professor de Apologética e Exegese do Novo Testamento. Começou a escrever durante o tempo em que pastoreava, e seu conhecido livro O Treinamento dos Doze foi publicado em 1871. Mantendo a preferência por títulos ponderosos e descritivos no século XIX, a obra recebeu o seguin­te subtítulo: “Passagens Extraídas dos Evangelhos Apresentando os Doze Discípulos de Jesus sob Disciplina para o Apostolado”.

Por mais de um século O Treinamento dos Doze foi altamente respeita­do e amplamente recebido. Uma autoridade como o Dr. W. H. Griffith Thomas chamou o livro de “um dos grandes clássicos cristãos do século XIX”, e o Dr. W ilbur Smith, principal bibliófilo americano, observou: “Não há nada importante na vida de nosso Senhor em relação ao treina­mento dos doze apóstolos que não tenha sido relatado nesse livro...”

Agora, esse “clássico do século XIX” pode expandir seu ministério já rico e abençoado. Embora com mais de cem anos de idade, a obra do Dr. Bruce fala poderosa e efetivamente à geração cristã contemporânea.

Nos anos recentes, tem havido uma redescoberta da importância dos ensinamentos de Paulo no capítulo 4 de Efésios acerca da responsa­bilidade de os pastores e mestres prepararem os santos para a obra do ministério. Por vários anos, muitas igrejas ignoraram, ou escolheram ig­

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6 O Treinamento dos Doze

norar, esses ensinamentos bíblicos, e, portanto, uma pequena parte do povo de Deus ficou sobrecarregada enquanto a m aioria ficou subempregada. Enquanto um pouco dos dons eram colocados em práti­ca de forma plena, milhares de pessoas que receberam dons nem mesmo sabiam que os haviam recebido. Como resultado, o ministério potencial da Igreja de Cristo foi reduzido consideravelmente. O Dr. Bruce teria se sentido em casa com a ênfase atual no treinamento de pessoas para o ministério, e seu livro tem muito a oferecer como fonte para o treina­mento ao apresentar o Mestre ensinando sua equipe especial.

Ver a Igreja como o Corpo de Cristo é outra ênfase contemporânea saudável. Ela serve para libertar as pessoas da idéia equivocada de que a igreja é um lugar que as pessoas freqüentam e as apresenta ao conceito bíblico de que a Igreja é algo que as pessoas são. E potencialmente revolucionário para os cristãos verem a si mesmos como o Corpo de Cristo e consagrarem suas vidas a amar uns aos outros como membros companheiros, comprometidos com a nutrição mútua. Este livro documenta com todo o cuidado os confli­tos e os sucessos do primeiro grupo de pessoas que se empenhou tanto para amar aos outros que se tornaram reconhecidos como discípulos de Cristo.

Recentemente, muito tem sido escrito sobre o crescimento cristão pessoal. Alguns materiais se inclinam mais para as ciências sociais do que para ensinamentos teológicos e bíblicos, e cheiram mais a auto- aperfeiçoamento do que a crescimento espiritual. A obra do Dr. Bruce beneficiará muitos leitores modernos porque seus estudos examinam cuidadosamente de que forma os discípulos cresceram como resultado do relacionamento que tinham com o Mestre. A igreja contemporânea precisa lembrar-se de que informação inestimável ajuntada aos poucos de cientistas sociais acerca do comportamento humano nunca deve ser vista como substituta para um relacionamento pessoal com o Senhor Jesus semelhante àquele experimentado pelos doze enquanto caminha­vam juntos para cima e para baixo. Como eles ouviam sua palavra, estu­davam suas reações, cumpriam seus mandamentos e respondiam às suas promessas estão fielmente registrados para nós nas Escrituras e muito bem aplicados a nossas situações neste livro.

Pessoalmente, constatei que O Treinamento dos Doze é de imenso valor por motivos além dos relacionados acima. Quando prego acerca dos

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Prefácio 7

Evangelhos, constantemente uso este livro, e descobri que se trata de um excelente comentário. Além disso, quase sempre me sento e leio alguns capítulos apenas porque preciso do alimento que só encontro nas aplica­ções devocionais das Escrituras em minha alma. Poucos expositores fi­zeram mais do que A. B. Bruce em relação a isso.

Talvez a melhor recomendação que posso dar sobre o livro, porém, é dizer que embora eu tenha centenas de livros em minha crescente bibli­oteca, todos cuidadosamente catalogados e organizados em prateleiras, percebi que O Treinamento dos Doze nunca foi incluído oficialmente em minha biblioteca! A razão é simples. Desde que adquiri meu exemplar, anos atrás, ele fica em minha escrivaninha ou em minhas mãos, com muitos outros livros a que recorro constantemente. Simplesmente não consegui ficar sem usá-lo por tempo suficiente para que minha secretária pudesse colocá-lo no lugar apropriado! Pensando bem, o lugar apropri­ado para ele é onde eu possa pegá-lo rapidamente. Espero que o seu exemplar encontre esse lugar em sua vida e em sua experiência.

D. Stuart Briscoe

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Prefácioà Segunda Edição

AJL Vd ser informado por um editor de que seria necessária uma segunda edição de O Treinamento dos Doze, que foi publicado pela primeira vez em 1871, fui compelido a pensar sobre a questão de que alterações deveriam ser feitas em um trabalho que, embora escrito com cuidado, também esta­va obviamente, em minha opinião, selado com imperfeição. Duas alterna­tivas surgiram em minha mente. Uma foi reformar a obra por inteiro, a fim de conferir-lhe um caráter mais crítico e científico, e fazer com que resistis­se mais diretamente as atuais controvérsias sobre a origem do cristianismo. A outra era permitir que o livro ficasse substancialmente como estava, conservando sua forma popular, e limitando as alterações a detalhes susce­tíveis de melhoria sem mudança do plano. Depois de um pouco de hesita­ção, optei pela última, pelas seguintes razões. De expressões de opiniões que me alcançaram de muitas e diversas áreas, fiquei convencido de que o livro era apreciado e útil, e por isso concluí que, apesar de suas falhas, continuaria sendo útil em sua forma original. Então, considerando quão difícil em todas as coisas é servir a dois senhores ou concluir com dois finais, percebi que a escolha da primeira das duas alternativas era equiva­lente a escrever um novo livro, o que poderia ser feito, se necessário, inde­pendentemente da atual publicação. Confesso ter uma vaga idéia de tal trabalho em minha mente, que pode ou não ser colocada em prática. A escola Tübingen de críticos, com cujas palavras os leitores ingleses estão ficando acostumados através das traduções, afirma que o cristianismo ca­tólico foi o resultado de um compromisso ou reconciliação entre duas tendências radicais opostas, representadas respectivamente pelos apósto­

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los originais e por Paulo, sendo as duas tendências uma exclusividade ju­daica por um lado e, por outro, o universalismo paulino. Os doze disse­ram: Cristianismo para os judeus, e todos que estão dispostos a se torna­rem judeus por submissão aos costumes judaicos; Paulo disse: Cristianis­mo para o mundo todo, e para todos nos mesmos termos. Agora o mate­rial com que se lidou em O Treinamento dos Doze, deve, pela natureza do caso, ter algum resistência nessa hipótese-conflito do Dr. Baur e seus amigos. Surge a questão: O que deve ser esperado dos homens que estavam com Jesus? E a consideração dessa questão formaria uma importante divisão no traba­lho tão controverso que tenho em vista. Um outro capítulo poderia ser considerado a parte designada a Pedro em Atos dos Apóstolos (alegado pela mesma escola de críticos como sendo uma parte inventada pelo escri­tor com propósito apologético), buscando especialmente determinar se era uma parte apropriada para ele desempenhar — apropriada em vista de suas idiossincrasias, ou o treinamento que ele havia recebido. Um outro tópico adequado seria o caráter do apóstolo João como retratado nos Evan­gelhos Sinóticos, em sua resistência sobre as questões acerca da autoria do quarto Evangelho, e a hostilidade a Paulo e seu universalismo que alegava estar manifesto no livro de Apocalipse. Em uma obra dessas, falharia em considerar os materiais resistindo ao mesmo tema em outras partes do Novo Testamento, especialmente aquelas encontradas na Epístola aos Gaiatas. Por fim, apropriadamente seria encontrado um lugar na obra para discutir sobre a questão: Até que ponto os Evangelhos Sinóticos — as prin­cipais fontes de informação acerca dos ensinamentos e dos atos públicos de Cristo — conservam traços da influência de tendências controversas ou conciliatórias? Por exemplo: Qual é a razão para se afirmar que a missão dos setenta é uma invenção causada pelo interesse do universalismo paulino com a intenção de superar os apóstolos originais?

No presente trabalho, não tentei desenvolver o argumento esboça­do aqui, mas simplesmente indiquei os lugares em que diferentes pon­tos do argumento aparecem, e a maneira como poderiam ser usados. A hipótese-conflito não esteve ausente de minha mente enquanto eu escre­via este livro inicialmente; mas eu nem estava acostumado com a litera­tura relativa a isso, nem tão sensível acerca de sua importância como estou agora.

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Prefácio à Segunda Ediçao 11

Ao preparar esta nova edição, não perdi de vista quaisquer dicas de críticas amigáveis que podem torná-la mais aceitável e útil. Em particular, tenho mantido a vista fixa na economia de elementos homiléticos, embora eu esteja ciente de que ainda posso ter conservado demais para o gosto de alguns, porém espero que não tanto para os leitores em geral. Tive que me lembrar que enquanto alguns amigos pediram condensação, outros recla­maram que a questão estava hermeticamente fechada. Também tive opor­tunidade de observar em minhas leituras de obras sobre a história do Evan­gelho que é possível ser tão breve e resumido a ponto de perder não só as conexões latentes das idéias, mas também as próprias idéias. Nem todas as mudanças foram na direção da economia. Embora alguns parágrafos te­nham sido cancelados ou reduzidos em tamanho, outros foram adiciona­dos, e em um ou dois casos, páginas inteiras foram reescritas. Entre os acréscimos mais importantes podemos mencionar uma nota no final do capítulo acerca do discurso de despedida, fazendo uma análise do discurso e das partes que o compõem; e um parágrafo conclusivo no final da obra resumindo as instruções que os doze receberam de Jesus durante o tempo em que estiveram com Ele. Além disso, uma característica dessa edição é uma série de notas de rodapé referindo-se a algumas das principais publi­cações recentes, inglesas ou não, cujo conteúdo se relacione mais ou menos com a história do Evangelho, tais como as obras de Keim, Pfleiderer, Golani, Farrar, Sanday e Supernatural Religion (Religião Sobrenatural). As notas em referência à obra do Sr. Sanday apoia-se na importante questão, até que ponto temos no Evangelho de João um registro confiável das palavras ditas por Jesus aos seus discípulos na véspera de sua morte.

Além do índice de passagens examinadas que aparece na primeira edição, essa contém uma tabela cuidadosamente preparada com os con­teúdos no final, com a qual se espera acrescentar utilidade à obra. Para tornar a base do conteúdo do treinamento dos discípulos mais aparente, em vários casos mudei o título dos capítulos, ou incluí títulos alternativos.

Com essas explicações, envio esta nova edição, com sentimentos de gra­tidão pela gentil recepção com que a obra já tem sido recebida, e na esperan­ça de que pela bênção divina continuará a ser usada como uma tentativa de ilustrar um tema tão interessante e importante.

A. B. B.

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SumárioPrefácio de D. S tuart Briscoe .............................. ........................................................ .............. 5Prefácio à Segunda Edição............................................................................................................................ 9

1. O P r in c íp io ....................................................................................................................................... 152. Pescadores de H o m en s ...............................................................................................................2 53. M ateus, o P ub licano ......................................................................................................... .........334. Os D o ze ..............................................................................................................................................455. Ouvindo e V en d o ...........................................................................................................................576. Lições sobre a O ração ..................................................................................................................697. Lições sobre a Liberdade Religiosa; ou A Natureza da Verdadeira Santidade ...8 7

Seção I. O Jejum....................................................................................................................87II. Abluções R itu a is .................................................................................................96III. A Observância do Sábado........................................................................... 106

8. Primeiras Tentativas de Evangelização............................................................ .............. 119Seção I. A M issão .............................................................................................................. 119

II. As Instruções.....................................................................................................1299. A Crise da G a lilé ia ..................... ........................... ....................................................... ..........141

Seção I. O M ilagre ............................................................................................................ 141II. A Tempestade.................................................................................................... 149III. O Sermão..........................................................................................................156IV A Escolha — “Peneirando” .......................................................................... 165

10. O Fermento dos Fariseus e dos Saduceus........................... ........... ............................. 17911. A Confissão de Pedro; ou A O pinião Corrente e a Verdade E terna......... . 18712. A Prim eira L ição sobre a C ru z ............................................................................................197

Seção I. O Primeiro Anúncio da Morte de Cristo................................................. 197II. Tomar a sua Cruz, a Lei do Discipulado............................................... 205

13. A T ransfiguração ........................................................... ...........................................................21314. Treinando o Temperamento; ou Discurso sobre a H um ildade .............. .........223

Seção I. Como uma Criancinha....................................................................................223II. A Disciplina da Igreja.................................................................................... 2 3 1III. Perdoando as Ofensas..................................................................................239IV O Imposto do Templo: Uma Ilustração do Sermão.......................... 246V A Interdição do Homem que Expulsava Demônios: Outra Ilustraçãodo Sermão................ ...............................................................................................253

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515 . Os Filhos do T rovão .......................................................... ................................................2 6 516. N a Peréia; ou A D outrina do A u to -Sacrifíc io ....... ...................................................275

Seção I. Conselhos de Perfeição....................................................................................2 75II. As Recompensas do Sacrifício Pessoal..................................................... 287III. Os Primeiros que se Tornarão os Últimos e os Últimos que se Tornarão os Primeiros......................................................................................................296

17. Os Filhos de Zebedeu de Novo; ou Segunda Lição sobre a Doutrina da Cruz .. 30918. A Unção em Betânia; ou A Terceira Lição da D outrina da C r u z .......................32519. As Prim ícias dos G entios........................................................................................... . 34720 . Õ Jerusalém, Jerusalém ! ou O Discurso sobre as U ltim as C o isas .....................3572 1 . O M estre Servindo; ou U m a O utra Lição de H u m ild ad e ................................... 373

Seção I. A Cerimônia de Lavar os Pés.......................................................................... 373II. A Explicação...................................................................................................... 381

22 . Em M em ória; ou A Q uarta Lição sobre a D outrina da C ru z ............................ 38923 . Judas Iscario tes............. ............................ ...................... ...... .................................................. 40124 . O Pai que M orre e seus F ilh in h o s................................................................................... 4 1 1

Seção I. Palavras de Conforto e Conselho para os Filhos Entristecidos........4 1 1II. As Perguntas dos Filhos e a Despedida....................................................420

25 . Orientações aos Futuros Apóstolos antes da M orte do S en h o r ............. . 443Seção I. A Videira e seus R am os....................................................................................443

II. Tribulações Apostólicas e Encorajamento................................................455III. O Breve Período e o Final do D iscurso..................................................467

2 6 . A Oração In te rcessó ria ............................... ......................................................................... 481Apêndice dos Capítulos 2 4 —26 ............................................................ ..................... . 4 9 4

27 . As Ovelhas D ispersas................................................................... ..........................................4 9 7Seção I. “Todos os Discípulos, Deixando-o, Fugiram” ............. ...........................497

II. Peneirados como o Trigo .............................................................................. 504III. Pedro e João......................................................................................................514

28 . O Pastor R essuscitado ....................................................................................................... 523Seção I. Uma Notícia Boa demais para Ser Verdade....................................................... ............. 523

II. Os Olhos dos Discípulos São Abertos..................................................... 5 3 1III. A Dúvida de Tomé.........................................................................................540

29 . Os Co-pastores São A dvertidos........ ............................................................................... 551Seção I. Dever Pastoral...................................................................................................... 551

II. Pastor Pastorum...................................................................................... . 56030 . Poder do A lto ......................................... ...... .................... ............................................... . 56931 . Esperando...................................... ........................................................................... ..................575

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10 Princípio

João 1.29 -5 1

Ο trecho do Evangelho de João indicado acima possui um interesse ímpar para o conhecimento da gênese de algumas coisas que vieram a alcançar a grandeza. Aqui nos é mostrado a Igreja ainda em seu berço, as fontes singelas do Rio da Vida, o desabrochar da fé cristã, a origem humilde do poderoso Império de Jesus Cristo.

Todo início é mais ou menos obscuro em relação à sua aparência, mas nenhum foi tão obscuro quanto o cristianismo. Que evento insigni­ficante na história da igreja, para não dizer do mundo, foi esse primeiro encontro de Jesus de Nazaré com os cinco homens humildes, André, Pedro, Filipe, Natanael, e outro cujo nome não é mencionado! Na reali­dade, parece um tanto trivial que esse evento encontre um lugar até mes­mo nas narrativas dos Evangelhos. Não se trata aqui de nenhum chama­do solene à função do apostolado, ou mesmo do início de um apostolado ininterrupto, mas no máximo do início de um conhecimento da fé em Jesus por parte de certos indivíduos que subseqüentemente se tornaram assistentes constantes de sua pessoa, e finalmente apóstolos de suas Boas Novas. Assim, não encontramos nos três primeiros evangelhos nenhuma menção dos eventos aqui registrados.

Longe de se surpreender com o silêncio dos evangelistas sinópticos, alguém pode sentir-se tentado a questionar o fato de João, o autor do quarto evangelho, depois de um intervalo de tempo tão grande, ter pen­sado que valeria a pena relatar incidentes tão minuciosos, especialmente em relação à proximidade das sentenças sublimes com as quais seu Evan­gelho começa. Mas somos afastados de tais dúvidas incrédulas através

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da reflexão de que fatos objetivamente insignificantes podem ser muito importantes para os sentimentos daqueles a quem são pessoalmente di­rigidos. E se João fosse um dos cinco homens presentes na ocasião em que conheceram Jesus? Haveria então uma grande diferença entre ele e os outros evangelistas, que poderiam saber dos incidentes aqui relatados, se realmente tivessem conhecimento dos mesmos, somente por interme­diários. No suposto caso, não é de se estranhar que João, em seus últi­mos momentos, tenha se lembrado com emoção da primeira vez que viu o verbo encarnado, e considerado as lembranças mínimas daquele mo­mento de preciosidade ímpar. Os primeiros encontros são sagrados, as­sim como os últimos, especialmente quando são seguidos de uma histó­ria significativa, e acompanhados, como é apropriado ao caso, com pres­ságios proféticos do futuro1. Tais presságios não estavam ligados ao pri­meiro encontro de Jesus com os cinco discípulos. Não foi João Batista quem primeiro deu a Jesus o nome de “Cordeiro de Deus”, descrevendo tão precisamente sua missão e destino na terra? Não foi a pergunta du­vidosa de Natanael: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” um pressá­gio indicando um conflito e a descrença que aguardavam o Messias? E que bom presságio aquele da chegada de uma nova era de milagres a serem realizados através da graça divina e do poder contidos na promes­sa de Jesus aos israelitas, embora a princípio duvidosos: “Daqui em di­ante, vereis o céu aberto e os anjos de Deus subirem e descerem sobre o Filho do Homem!”

Pode ser considerado como certo que João, o escritor do quarto Evangelho, realmente tenha sido o quinto discípulo cujo nome não foi mencionado. Este é o seu estilo, ao longo de seu Evangelho: quando se referia a si próprio, usava perífrases, ou deixava em branco, como aqui, o lugar onde deveria constar o seu nome. Dos discípulos que ouviram João Batista chamar Jesus de Cordeiro de Deus, provavelmente um fosse o próprio evangelista, e o outro fosse André, irmão de Simão Pedro2.

As impressões produzidas em nossas mentes por essas pequenas passagens da infância do Evangelho devem ser pequenas, quando com­paradas às emoções despertadas pela memória delas no peito do velho apóstolo, por quem foram registradas. De qualquer modo, não seria possível creditar nem à nossa inteligência, nem à nossa piedade um exa-

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0 Princípio 17

me dessa página da história evangélica, inalterada, como se fosse total­mente destituída de interesse. Devemos nos dirigir ao estudo dessa sim­ples história com um pouco do sentimento com que os homens fazem peregrinações a locais sagrados; por que de fato o solo é sagrado.

O cenário das ocorrências sobre o qual estamos falando é a região da Peréia, nas margens do Jordão, na região mais baixa do seu curso. As pessoas que aparecem em cena eram todas nativas da Galiléia, e sua pre­sença aqui deve-se à fama do notável homem, cujo ofício era ser o pre­cursor de Cristo. João, chamado de Batista, que havia passado sua juven­tude no deserto como um ermitão, vivendo de mel silvestre e gafanho­tos, vestido com pêlos de camelo, saiu de seu retiro, e apareceu diante dos homens como um profeta de Deus. O conteúdo de sua profecia era: “Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus”. Em um curto período de tempo, muitos foram atraídos de todos os cantos para vê-lo e ouví-lo. Daqueles que se reuniam para ouvir sua pregação, um grande número se foi da mesma forma como tinha vindo; mas não eram poucos os que estavam profundamente impressionados e, confessando os seus pecados, submetiam-se ao batismo nas águas do Jordão. Daqueles que foram batizados, um número seleto formou um círculo de discípulos ao redor da pessoa de João Batista, dentre os quais pelo menos dois, e pro­vavelmente todos os cinco homens mencionados pelo evangelista. A con­versão anterior por intermédio de João Batista despertou nesses discípu­los um desejo de ver Jesus, e os preparou para crer nele. Em sua comuni­cação com as pessoas ao seu redor, João freqüentemente fazia alusões "Aquele” que viria depois dele. Ele falou da vinda dessa pessoa em uma linguagem peculiar, de modo a despertar grandes expectativas. Ele se referiu a si próprio em relação ao que estava por vir, como sendo uma mera voz no deserto, clamando: “Preparai o caminho do Senhor”. Em uma outra ocasião ele disse: “E eu, em verdade, vos batizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; não sou digno de levar as suas sandálias; ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”. Esse grandioso homem não era outro senão o Messias, o Filho de Deus, o Rei de Israel.

Tais discursos, por parte do homem de Deus que os proferiu, pro­vavelmente teriam como resultado o fato de os discípulos de João Batista

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18 O Treinamento dos Doze

deixarem-no para seguir Jesus. E aqui vemos, na verdade, o início do processo de transição. Não afirmamos que as pessoas aqui mencionadas tenham se privado da companhia de João Batista na ocasião para se tor­narem, a partir de então, seguidores regulares de Jesus. Mas aqui tem início um conhecimento que no final levará esses homens a seguirem ao Senhor. A noiva é apresentada ao noivo, e o casamento se dará na devida estação; não para o pesar, mas para a alegria do amigo do Noivo3.

Com que facilidade e simplicidade a noiva mística, representada pelos cinco discípulos, se familiarizou com o Noivo! A importância des­se encontro é idílica pela simplicidade, e somente seria danificada por um comentário. Não há necessidade de uma apresentação formal: todos se apresentam uns aos outros. Nem mesmo João e André foram formal­mente apresentados a Jesus por João Batista; eles mesmos se apresenta­ram. A exclamação do profeta do deserto ao ver Jesus: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” repetida de uma forma abrevia­da no dia seguinte, foi uma elocução involuntária de alguém absorto em seus próprios pensamentos, e não o discurso deliberado de alguém que estava orientando seus discípulos a deixarem-no e a seguirem Aquele de quem ele falava. Os dois discípulos, por outro lado, em sua partida rumo àquele cuja presença havia sido tão largamente anunciada, não estavam obedecendo à ordem dada por seu velho mestre; estavam simplesmente seguindo a ordem dos sentimentos que foram despertados dentro deles por tudo o que o ouviram dizer a respeito de Jesus, tanto no presente como em outras ocasiões. Eles não precisavam de uma injunção para buscar o conhecimento daquele por quem se sentiam tão profundamen­te interessados: tudo o que precisavam saber era que esse era Ele. Esta­vam ansiosos para ver o Rei Messiânico da mesma forma que o mundo está ansioso para ver a face de um príncipe secular.

E natural que devamos examinar cuidadosamente a narrativa dos Evangelhos para encontrar indicações referentes àqueles que, no modo tão singularmente descrito, viram Jesus pela primeira vez. Pouco tem sido dito sobre os cinco discípulos, mas esse pouco é suficiente para demonstrar que eram todos homens piedosos. O que encontraram em seu novo amigo indica o que queriam encontrar. Evidentemente, eles pertenciam a um grupo seleto que esperava pela consolação de Israel, e

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0 Princípio 19

procuravam avidamente por Aquele que cumpriria as promessas de Deus e as expectativas de todas as almas devotas. Além dessa indicação geral do caráter contido em sua confissão comum de fé, alguns poucos fatos são relatados a respeito desses primeiros crentes em Jesus que nos levam a saber mais sobre eles. Provavelmente todos tenham sido discípulos de João Batista (dois deles com certeza foram). Este fato é decisivo em relação à sua seriedade moral. De tal região ninguém, além dos homens que eram espiritualmente sinceros, poderia possivelmente surgir. Se to­dos os seguidores de João fossem de alguma forma como ele, seriam homens famintos e sedentos pela verdadeira justiça, fartos dos “justos” populares de então. Disseram amém em seus corações à exposição do pregador dos desertos, sobre o vazio existente na profissão religiosa e da inutilidade das obras de então, e suspiravam por uma santidade que esta­va além da superstição farisaica e da ostentação; suas consciências reco­nheciam a verdade do oráculo profético: “Todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; e todos nós caímos corno a folha, e as nossas culpas, como um vento, nos arreba­tam”; e eles oravam fervorosamente pela revivificação da verdadeira reli­gião, pela vinda do reino divino, pelo advento do Rei Messiânico com a pá em sua mão para separar o joio do trigo, e para corrigir todas as coisas que estivessem erradas. Tais, sem dúvida, eram os sentimentos daqueles que tiveram a honra de ser os primeiros discípulos de Cristo.

Simão, o mais conhecido dos doze, sob o nome de Pedro, nos é apresentado aqui por meio do critério profético de Jesus, pelo lado bom de seu caráter, como um homem “de pedra”. Quando este discípulo foi trazido por seu irmão André à presença de seu futuro Mestre, “olhando Jesus para ele, disse: Tu és Simão, filho de Jonas; tu serás chamado Cefas” — Cefas em aramaico significa, como o evangelista explicou, o mesmo que Petros em grego. O olhar penetrante de Cristo discerniu nesse discí­pulo a capacidade latente de fé e devoção, os rudimentos da força máxi­ma e poder.

O evangelista não nos diz diretamente que tipo de homem era Fili­pe, mas apenas de onde ele veio. Pela passagem presente, e pelas outras observações contidas nos Evangelhos, a conclusão é que ele era caracte- risticamente deliberado, lento para tomar uma decisão; e para provar tal

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ponto de vista, foi feita uma referência à “circunstância flegmática”4 com a qual ele descreveu a Natanael quem era Aquele que havia acabado de conhecer5. Mas estas palavras de Filipe, e tudo o que lemos em outros lugares sobre ele, nos sugerem a idéia de um inquiridor sincero buscando a verdade, que havia realmente pesquisado as Escrituras, e s’e tornado conhecedor do Messias da promessa e da profecia, e a quem o conheci­mento de Deus era summum bonum. Na solicitude manifestada por esse discípulo para cativar seu amigo Natanael à mesma fé, reconhecemos um espírito generoso e solidário, característico dos inquiridores since­ros, que posteriormente se revelou quando se tornou o portador do pedido dos gregos devotos que queriam ver Jesus6.

As observações relacionadas a Natanael, conhecido de Filipe, são mais detalhadas e mais interessantes do que no caso de qualquer um dos outros cinco discípulos; e não é de causar surpresa o fato de que deverí­amos vir a saber mais sobre alguém de quem, de outra maneira, não conheceríamos quase nada. Não é absolutamente certo afirmar que ele tenha pertencido ao círculo dos doze, embora exista a probabilidade de que ele seja identificado como Bartolomeu nos sinópticos — seu nome completo seria Bartolomeu, filho deTolmai. Por causa desta suposição é que o nome Bartolomeu vem imediatamente após o de Filipe na lista dos apóstolos7. Sendo assim, sabemos que Natanael era um homem de grande excelência moral. Assim que Jesus o viu, exclamou: “Eis aqui um verdadeiro israelita, em quem não há dolo!” As palavras sugerem a idéia de alguém puro de coração; em quem não havia inconstância, motivos impuros, orgulho, ou paixões profanas: um homem brando, de espírito pensativo, em cuja mente o céu era refletido como o céu azul em um lago de águas tranqüilas em um dia calmo de verão. Ele era um homem afei­çoado aos hábitos da devoção: ele estava entregue a exercícios espirituais debaixo da copa de uma figueira pouco antes de conhecer a Jesus. Che­gamos a esta conclusão a partir da profunda impressão causada em sua mente pelas palavras de Jesus: “Antes que Filipe te chamasse, te vi eu estando tu debaixo da figueira”. Natanael parece ter compreendido estas palavras da seguinte maneira: “Eu vi teu coração e sei com que estavas ocupado. Por esta razão declarei que és de fato um verdadeiro israelita”. Natanael aceitou a declaração feita por Jesus como uma evidência de

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conhecimento sobrenatural, e então sem demora fez a seguinte confis­são: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel” — o Rei daquele reino sagrado de onde dizes que sou cidadão.

E notável que esse homem, tão dotado das disposições morais ne­cessárias para ver a Deus, fosse o único de todos os cinco discípulos que tenha manifestado alguma hesitação em relação a receber Jesus como o Cristo. Quando Filipe lhe falou que havia encontrado o Messias em Jesus de Nazaré, ele perguntou com incredulidade: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” E difícil imaginar tanto preconceito em alguém tão brando e amável; porém, quanto à sua reflexão, percebemos ser um tanto característica. O preconceito de Natanael contra Nazaré não se originava de orgulho, como no caso das pessoas da Judéia, que despreza­vam os galileus em geral, mas da humildade. Ele próprio era galileu, e um objeto de desprezo dos judeus tanto quanto os nazarenos. Seu pen­samento íntimo era: “Certamente o Messias nunca poderia vir de um pobre povo desprezado como o nosso — de Nazaré ou de qualquer outra cidade ou vila da galiléia!”8. Natanael timidamente permitiu que sua mente fosse influenciada pela opinião geral, o que originou senti­mentos com os quais ele não simpatizava; uma falha comum nos ho­mens cuja piedade, embora pura e sincera, têm uma elevada considera­ção pela autoridade humana, e naqueles que se tornam escravos de sen­timentos absolutamente indignos de sua qualidade moral.

Embora Natanael não estivesse livre de preconceitos, mostrou sin­ceridade ao se dispor a desprender-se deles. Ele veio e viu. Esta abertura à convicção é a marca da integridade moral. A sinceridade que o homem não dogmatiza, mas investiga, e que, ao final, se mostra a contento. O homem propenso ao mal, que tem o coração desonesto, ao contrário, não vem e vê. Considerando seu interesse de permanecer em seu estado presente, ele cautelosamente evita olhar para qualquer coisa que não seja para confirmar suas conclusões anteriores. Natanael poderia, de fato, professar um desejo de questionar — como certos israelitas a respeito dos quais lemos neste mesmo Evangelho — um tipo de caráter diferente do seu, mas compartilhando com esses homens o preconceito contra a Galiléia. “Examina e verás”, diziam esses israelitas, em resposta à per­gunta ingênua do honesto e tímido Nicodemos: “Porventura, condena a

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nossa lei um homem sem primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz?” “Examina e verás”, disseram eles, apelando à observação e atrain­do a dúvida; porém acrescentaram: “Da Galiléia nenhum profeta sur­giu”9 — uma expressão que proibia a realização do questionamento e sugeria que isso era desnecessário. “Procure e veja; mas nos dizemos antecipadamente que você não poderá chegar a nenhuma outra conclu­são além da nossa; e ainda o alertamos, é melhor que não o faça”.

Assim era o caráter dos dois primeiros homens que creram em Je­sus. Qual era, então, o tamanho e o valor de sua fé? Â primeira vista, a fé dos cinco discípulos, ignorando o relato da hesitação de Natanael, pare­ce naturalmente repentina e madura. Eles creram em Jesus rapidamente e expressaram a sua fé em termos que pareciam apropriados apenas ao conhecimento cristão avançado. Na presente seção do Evangelho de João, vemos Jesus ser chamado, não apenas de Cristo, o Messias, o Rei de Israel, mas de Filho de Deus e de Cordeiro de Deus — nomes que para nós expressam as principais doutrinas do cristianismo, a encarnação e a expiação.

A rapidez e a maturidade que pareciam caracterizar a fé dos cinco discípulos eram apenas uma aparência superficial. Como já foi dito an­teriormente, estes homens acreditavam que o Messias viria em breve, e àesejavam muito que tosse naquele momento, porque sentiam que Ele era imensamente necessário. Eles eram homens que esperavam pela con­solação de Israel, e estavam preparados para testemunhar o advento do Consolador a qualquer momento. Então João Batista disse-lhes que Cristo havia chegado, e que era a pessoa a quem ele havia batizado, e cujo batis­mo havia sido acompanhado por notáveis sinais vindos do céu; e eles criam implicitamente naquilo que João Batista lhes havia dito. Final­mente, a impressão produzida neles quando conheceram a Jesus, confir­mava o testemunho de João, pois todo o conjunto era digno de Cristo.

A aparência da maturidade da fé dos cinco irmãos era igualmente superficial. O nome “Cordeiro de Deus” foi dado a Jesus por João, não por eles. O príncipe dentre os pregadores do arrependimento havia apren­dido que o Senhor Jesus era o Cordeiro de Deus por meio da reflexão, ou por uma revelação especial. Ele mesmo compreendia apenas vaga­mente o que esse nome significava. Sua repetição mostrava que ele era

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um aprendiz que estava se esforçando para entender a sua lição; mas sabemos que aquilo que João compreendia somente em parte, também não foi totalmente compreendido pelos homens apresentados a Jesus, naquele momento, e por muito tempo10.

O título “Filho de Deus” foi dado a Jesus por um dos cinco discí­pulos assim como por João Batista, um título que até mesmo os apósto­los anos mais tarde consideraram suficiente para expressar a sua creduli­dade madura em relação à pessoa do seu Senhor. Mas não lhes ocorreu que o nome usado por eles no início teria o mesmo significado no final. Era um nome que poderia ser usado em um sentido muito além do que é capaz de transmitir, e que foi transmitido na pregação apostólica — meramente como um dos títulos do Antigo Testamento para o Messias, um sinônimo de Cristo. Sem dúvida foi neste sentido rudimentar que Natanael aplicou essa designação a Cristo, a quem também chamou de Rei de Israel.

A fé desses irmãos estava, portanto, de acordo com aquela que de­vemos esperar«dos iniciantes. Em essência, eles reconheceram em Jesus o divino Profeta, o Rei, o Filho da profecia do Antigo Testamento. E seu valor não repousa em sua maturidade ou precisão, mas nisto: que mesmo sendo imperfeita, a fé que possuíam os aproximou, os colocou em con­tato e íntima comunhão com o Senhor, na companhia de quem veriam coisas ainda maiores do que quando creram no início; uma verdade após outra, assumindo o seu lugar no firmamento de suas mentes, como as estrelas aparecendo no céu vespertino à medida que a luz se desvanece.

1 Omina principiis inesse solent. — OVID. Fast. i. 1782 v. 413 João 3.294 Luthardt, Das Johan. Evang. i. 1025 v. 456 João 12.22.7 Ewald enfatiza este argumento como prova da identidade dos dois, na obra Geschichte Christus, p. 327. Em Atos

1.13, Tomé está entre Felipe e Bartolomeu.8 Stanley pensa que Natanael teve a intenção de separar Nazaré do resto da Galiléia como um local de má

reputação. Neste caso o argumento seria à fortiori: Pode algo bom vir da Galiléia, e especialmente de Nazaré, mesmo sendo um local tão infame? — Sinai and Palestine, p. 366.

9 João 7.52. Na versão moderna (N TLH ) lê-se: “Estude as Escrituras Sagradas e verá que da Galiléia nunca surgiu nenhum profeta”.

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10 O uso de tal título por João em um período tão precoce é certamente surpreendente. E não é mais surpreen­dente encontrar tal passagem no capítulo 53 de Isaías, em qualquer interpretação do mesmo ou em qualquer livro do Antigo Testamento? E estando lá, porque nos maravilharmos de que este título estivesse nos lábios de João? Não pocjemos afirmar nem sugerir que João compreendesse toda a profundidade de suas palavras. Por que a afirmação não seria tão misteriosa para ele como, de acordo com o apóstolo Pedro, as afirmações semelhantes o eram para profetas mais antigos?

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Pescadores de HomensMateus 4 .18 -22 ; Marcos 1 .16-20; Lucas 5 .I-II

O s doze haviam chegado ao relacionamento íntimo com Jesus por etapas; três etapas na história de sua comunhão com Ele são identificáveis. Na primeira etapa eles simplesmente criam nele como sendo o Cristo, e sendo seus companheiros mais próximos, particularmente em eventuais ocasiões festivas. Desta fase inicial do relacionamento dos discípulos com seu Mestre, temos algumas lembranças nos primeiros quatro capí­tulos do Evangelho segundo Jcsão . que narra como alguns deles inicial­mente conheceram Jesus, e o acompanharam nas bodas de Caná1, na Páscoa em Jerúsalém2, em uma visita ao local onde João Batista estava ministrando3, e na jornada de retorno do sul para a Galiléia, passando por Samaria4.

Na segunda etapa, a comunhão com Cristo assumiu a forma de uma presença ininterrupta de sua pessoa, em tempo integral ou, ao me­nos, o abandono das ocupações seculares habituais5. As narrativas pre­sentes nos mostram alguns discípulos entrando nesta segunda fase do discipulado. Das quatro pessoas aqui mencionadas, reconhecemos três: Pedro, André e João, como antigos conhecidos, que já haviam passado pela primeira fase do discipulado. De um deles, Tiago, o irmão de João, tomamos conhecimento pela primeira vez; um fato que sugere a obser­vação de que em alguns casos, a primeira e a segunda fase podem ter ocorrido simultaneamente — profissões de fé em Jesus como o Cristo sendo imediatamente seguidas pela renúncia das atividades seculares com o propósito de se unir à sua companhia. Tais casos, de qualquer modo, eram provavelmente excepcionais e raros.

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Os doze entraram no estágio final e mais elevado do discipulado quando foram escolhidos por seu Mestre dentre toda a multidão de seus seguidores, e formaram um grupo seleto, a ser treinado para a grande obra do apostolado. Este importante evento provavelmente não ocorreu até que todos os membros do círculo apostólico tivessem convivido por algum tempo com Jesus.

A partir dos registros dos Evangelhos parece que Jesus começou logo no início de seu ministério a reunir em torno de si um grupo de discípulos, com a intenção de preparar uma representação para a conti­nuação do trabalho do reino divino. Os dois pares de irmãos foram chamados no início do primeiro ministério galileu, no qual o primeiro ato foi a seleção de Cafarnaum, ao lado do mar, como o centro das operações e o lugar comum de residência6. E quando pensamos na cha­mada que receberam, percebemos que esta não poderia ter vindo cedo demais. Os doze deveriam ser testemunhas de Cristo no mundo após a sua partida; era o dever peculiar deles transmitir ao mundo um relato fiel das palavras e atos do Mestre, uma imagem justa do seu caráter, e um reflexo verdadeiro do seu espírito7. Este serviço obviamente só poderia ser realizado por aqueles que tivessem sido, tanto quanto possível, teste­munhas oculares e servos do Verbo Encarnado desde o início. Como exceto nos casos de Pedro, Tiago, João, André e Mateus, não há menção no Evangelho em relação ao chamado de homens que posteriormente se tornaram apóstolos, devemos assumir que todos os chamados ocorre­ram no primeiro ano do ministério público do Salvador.

Estes chamados foram feitos com referência consciente a um final distante, o próprio apostolado, ficando evidente a partir dos termos notáveis através dos quais foram expressos. “Vinde após mim”, disse Jesus ao pescador de Betsaida, “e eu vos farei pescadores de homens”. Estas palavras (cuja originalidade as identifica como uma declaração de Jesus) mostram o grande fundador da fé, desejando não somente ter discípulos, mas ter consigo homens que pudesse treinar para fazer ou­tros discípulos: para lançar a rede da verdade divina ao mar do mundo, e para aportar nas margens do reino divino uma grande multidão de almas crentes. Tanto de suas palavras como de seus atos, podemos ver que Ele dava suma importância a esta parte de seu trabalho, que consistia no

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treinamento dos doze. Na oração intercessória8 por exemplo, Ele fala do treinamento que havia concedido a estes homens nos dando a idéia de que esta fosse a parte principal de seu próprio ministério terreno. E, de certo modo, o foi. O cuidadoso e esmerado ensino dos discípulos asse­gurou que a influência do professor no mundo deveria ser permanente; que seu reino deveria ser fundado sobre a rocha da profunda convicção indestrutível na mente de poucos, não na areia movediça das impressões superficiais imperceptíveis na mente de muitos. Em relação a tal reino, nosso Senhor nos ensinou em uma de suas parábolas a trabalhar9 como aquele que introduz no mundo uma semente que é lançada ao solo e que deverá crescer de acordo com as leis naturais. Mas para os doze havia o risco da doutrina, das obras e da lembrança de Jesus perecerem na mente humana, não restando senão uma vaga tradição mítica, sem valor histó­rico e de pouca influência prática.

Aqueles de quem essa obra tanto dependia possuíam, claramente, qualificações extraordinárias. Os espelhos devem ser completamente polidos pois estavam destinados a refletir a imagem de Cristo! Os após­tolos da mensagem cristã deveriam ser homens de rara capacitação espi­ritual. Trata-se de uma religião universal, direcionada a todas as nações; portanto, seus'apóstolos deveriam ser livres da mesquinhez judaica e ter sentimentos tão amplos quanto o mundo. Trata-se de uma religião espiri­tual, há muito destinada a tornar antiquado o cerimonialismo judaico; e assim, seus apóstolos deveriam ser emancipados, em sua consciência, em relação ao jugo das ordenanças10. Trata-se de uma religião que deve pro­clamar a cruz. A cruz, dantes um instrumento da crueldade e uma insíg­nia da infâmia, agora se torna a esperança da redenção do mundo e o símbolo de tudo o que é nobre e heróico em conduta. Portanto, seus arautos deveriam ser superiores a todos os conceitos convencionais de dignidade humana e estarem à altura da dignidade divina, sendo capazes de se gloriar na cruz de Cristo, e estarem dispostos a carregar, eles pró­prios, a cruz. Em suma, o caráter apostólico deveria combinar a liberda­de de consciência, a amplitude de coração, a iluminação da mente e todas as qualidades no grau superlativo.

Os humildes pescadores da Galiléia tinham muito a aprender antes de corresponderem satisfatoriamente a essas elevadas exigências; porém

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o tempo do seu aprendizado para o desempenho do trabalho apostólico, mesmo contando desde o início do ministério de Cristo, parece muito curto. Eles eram homens devotos, que já haviam mostrado a sinceridade de sua piedade ao renunciar a tudo pela causa de seu Mestre. Mas na ocasião de seu chamado, eles eram excessivamente ignorantes, de mentes limitadas, supersticiosos, cheios de preconceitos judaicos, concepções errôneas, e animosidades. Tinham muito a mudar em relação ao que era mau, assim como tinham muito a aprender sobre o que era bom. Eram lentos tanto para aprender quanto para “desaprender” o que era incon­veniente. Velhas crenças já incutidas em suas mentes fizeram da comuni­cação das novas idéias religiosas uma tarefa difícil. Homens de coração bom e honesto, o solo de sua natureza espiritual era adequado para pro­duzir uma colheita abundante; mas era duro, e precisava ser muito arado antes de produzir frutos. Então, mais uma vez, demonstravam ser ho­mens pobres, de origem humilde, de posição inferior, com ocupações simples, que nunca haviam sentido a influência de uma educação liberal ou de um relacionamento social com pessoas cultas11.

A medida que prosseguimos com os estudos relativos ao assunto em questão, podemos observar as evidências abundantes da condição de imaturidade espiritual dos doze, mesmo muito'tempo depois do perío­do em que foram chamados para seguir Jesus. Neste processo, podemos vir a descobrir indicações significativas da imaturidade religiosa de pelo menos um dos discípulos — Simão, o filho de Jonas — na narrativa de Lucas quanto aos incidentes relacionados ao seu chamado. Pressionado por uma multidão que se reuniu à margem do lago para ouvi-lo pregar, Jesus entrou em um barco (um dos dois mais próximos), que era de Simão e pediu-lhe que o afastasse um pouco da margem; sentou-se e, do barco, ensinava as pessoas. Quando terminou de falar, Jesus disse ao dono do barco: “faze-te ao mar alto, e lançai as vossas redes para pes­car”. Seus esforços anteriores de pesca foram em vão; mas Simão e seu irmão fizeram como Jesus havia ordenado, e foram recompensados com uma pesca extraordinária, que para eles e seus companheiros, Tiago e João, não era nada menos do que uma pesca milagrosa. Simão, o mais impressionável e impulsivo dos quatro, expressou seu sentimento de es­panto por meio de palavras e gestos característicos. Ele caiu aos pés de

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Jesus dizendo: “Senhor, ausenta-te de mim, por que sou um homem pecador!”

Esta exclamação abre uma janela para o seu lado interior aqui de­monstrado; através dessa janela podemos ver o seu estado espiritual. Em tal ocasião, observamos em Pedro uma mistura de bem e mal, de graça e natureza, que com freqüência reaparece em seu caráter na história subse­qüente. Dentre os bons elementos que podem ser discernidos está o temor reverente na presença do poder divino, uma pronta lembrança do pecado que incomoda a consciência, e uma sincera auto-humilhação em razão do benefício imerecido. Valiosas características de caráter; masexistiam em Pedro na forma de uma mistura. Junto com essas estavam associados temores supersticiosos do sobrenatural, e um escravizante medo de Deus. A presença do elemento anterior está implícita na exor­tação tranqüilizadora dirigida por Jesus ao discípulo: “Não temas; de agora em diante, serás pescador de homens”. O medo escravizante que Pedro sentia em relação a Deus é manifestado por suas próprias palavras: “Senhor, ausenta-te de mim”. Muito impressionado com o conheci­mento sobre-humano revelado na grande pesca, Pedro considera, por um momento, que Jesus é um ser sobrenatural, e tal fato o leva a concluir que não é segiíro estar próximo dele, especialmente tratando-se de um pobre mortal, pecador. Este estado de consciência mostra quão incapa­citado era Pedro para ser um apóstolo de um Evangelho que exalta a graça de Deus dirigida até mesmo aos maiores pecadores. Sua piedade, suficientemente forte e decidida, não era cristã, era legal, quase, pode-se dizer, pagã em espírito.

Com todas as suas imperfeições, que eram tanto numerosas como grandes, esses humildes pescadores da Galiléia tinham, no início de sua carreira, uma grande virtude que os distinguia. Embora esta pudesse coexistir com muitos defeitos, é a principal virtude da ética cristã, e a precursora para se alcançar as maiores realizações. Eles eram incentiva­dos pela devoção a Jesus e pelo reino divino que os tornou capazes de quaisquer sacrifícios. Ao crerem naquele que os convidou a segui-lo com a finalidade de estabelecer o reino de Deus na terra, “imediatamente” deixaram as suas redes e se juntaram à sua companhia, para serem, a partir de então, seus companheiros em todas as suas jornadas. Isto foi

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reconhecido pelo próprio Senhor Jesus Cristo como meritório; e não podemos, sem cometer injustiça, buscar menosprezar os motivos dos apóstolos, relacionando-os ao ócio, ao descontentamento ou à ambição. A narrativa do Evangelho mostra que os quatro irmãos não eram ocio­sos, e sim trabalhadores assíduos, homens laboriosos. Nem.eram des­contentes, porque não havia outro motivo para que o fossem. A família de Tiago e João parecia ter uma situação confortável. Marcos relata que quando estes foram chamados por Jesus, eles deixaram seu pai Zebedeu no barco com os servos e o seguiram. Mas e a ambição, ela tinha lugar em meio aos seus motivos? Bem, devemos admitir que os doze, especial­mente Tiago e João, não estavam livres do sentimento de ambição, como veremos a seguir. Mas qualquer que fosse a extensão da ambição que pode ter influenciado a conduta desses homens em um período posteri­or, não foi este o motivo que determinou que deixassem suas redes. A ambição precisa de uma tentação: ela não se une a uma causa obscura e relutante, cujo sucesso seja duvidoso; tem início quando o sucesso é aparentemente certo e quando o movimento que ela incentiva se dá na véspera de sua glorificação. A causa de Jesus ainda não havia alcançado tal estágio.

Somente uma acusação pode ser feita contra aqueles homens, e po­dem ser feitas com veracidade e sem causar dano algum à sua memória. Eles eram entusiastas: seus corações eram inflamados e, como o mundo descrente poderia dizer, suas idéias estavam voltadas ao sonho de estabe­lecer o reino divino em Israel, com Jesus de Nazaré como o seu rei. Este sonho os possuía, e imperiosamente governava suas mentes e moldava seus destinos, compelindo-os, como Abraão, a deixarem suas famílias e seu país, para seguir o que antes parecia ser um objetivo tolo. Que bom para o mundo que eles estavam possuídos pela idéia do reino! Porque seu objetivo não era tolo, ao deixarem suas redes para trás. O reino que buscavam se tornou tão real quanto a terra de Canaã, embora não fosse inteiramente do modo como o haviam imaginado. Os pescadores da Galiléia se tornaram pescadores de homens em uma escala mais extensi­va e, com a ajuda de Deus, reuniram, na igreja, muitas almas que deveri­am ser salvas. Eles estavam lançando suas redes ao mar do mundo, e pelo seu testemunho a respeito de Jesus nos Evangelhos e nas Epístolas, leva­

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ram multidões a se tornarem discípulos dele, dentre as quais tiveram a alegria de ser contados como os primeiros seguidores.

Os quatro, e mais tarde os doze, renunciaram a tudo e seguiram ao seu Mestre. A palavra “tudo” incluía também a esposa e os filhos? Sim, em pelo menos um caso — 110 caso de Pedro; os Evangelhos contam como a sogra de Pedro foi curada de uma febre pelo poder miraculoso de Cristo12. A partir de uma passagem na primeira epístola de Paulo à igreja de Corinto, parece que Pedro não era o único casado entre os apóstolos13. Na mesma passagem observamos que tal renúncia das espo­sas pela causa de Cristo não significava a deserção literal. Pedro, como apóstolo, levou sua esposa consigo, e Pedro, como discípulo, ao lado de Jesus, algumas vezes pode ter feito o mesmo. Provavelmente, os discípu­los casados, assim como os soldados casados, tenham levado suas espo­sas consigo ou as deixado em casa, conforme as circunstâncias permiti­am ou exigiam. As mulheres, mesmo as casadas, às vezes seguiam a Jesus; e a esposa de Simão, ou de qualquer outro discípulo casado, pode ocasi­onalmente ter estado entre elas. Em um período avançado na história, vemos a mãe de Tiago e João na companhia de Cristo e longe de casa; e onde havia mães, as esposas, se desejassem, também poderiam estar. A igreja, em seu 'estado inicial nômade ou itinerante, parece ter sido uma mistura de peregrinos, na qual havia todos os tipos de pessoas, de ambos os sexos, de várias posições sociais e caráter moral diverso, totalmente unidas, sendo o laço de união um intenso apego a Jesus.

Essa igreja itinerante não era uma sociedade regularmente organiza­da, da qual era necessário ser um membro constante para ser considera­do um verdadeiro discípulo. Exceto no caso dos doze, seguir a Jesus de um lugar para outro era opcional, não um ato compulsório; e na maioria dos casos provavelmente era somente ocasional14. Era a conseqüência natural da fé, cujo objeto, o centro do círculo, era o próprio Senhor Jesus em movimento. Os crentes espontaneamente desejavam ver o maior nú­mero possível das obras de Cristo, e ouvir as suas palavras tanto quanto fosse possível. Quando o objeto dessa fé deixou a terra, e sua presença passou a ser espiritual, todas as ocasiões para o discipulado itinerante foram encerradas. A partir de então, para estar em sua presença, os ho­mens devem apenas renunciar aos seus pecados.

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1 João 2.12 João 2.13, 17, 223 João 3.224 João 4.1-27, 31 ,43-455 Um abandono completo no caso de Mateus, é claro; no caso dos pescadores, não necessariamente.6 Mateus 4.137 Não se assume aqui que os Evangelhos, como os temos, tenham sido escritos pelos apóstolos. A declaração no

texto implica apenas que o ensino dos apóstolos, quer orais ou escritos, foram a fonte suprema das tradições registradas nos Evangelhos.

8 João 17.69 Marcos 4.2610 E universal e espiritualmente admitido pela escola Tübingen que os atributos da religião de Jesus foram

estabelecidos por Ele mesmo. Este é um fato importante em relação às suas hipóteses-conflitos.11 Ao longo deste trabalho é dada grande proeminência aos defeitos morais e espirituais dos doze. Mas deve­

mos protestar desde o início contra a inferência de que tais homens sejam permanentemente considerados desqualificados (exceto Judas) para a tarefa de serem apóstolos da religião universal, a religião da humanidade. Tudo de bom pode ser esperado de homens que foram capazes de deixar tudo para seguir a Cristo. Onde quer que exista uma alma nobre, existirá uma capacidade extremamente grande de crescimento.

12 Mateus 8 .14; Marcos 1,29-31; Lucas 4.38, 3913 I Coríntios 9.514 As palavras registradas em Lucas 22.28, ditas por Jesus aos seus discípulos na noite anterior à sua morte: “Vós

sois os que tendes permanecido comigo nas minhas tentações”, têm sido utilizadas com a intenção de provar tanto a continuidade da companhia dos doze com Jesus quanto a data do seu início. Este pronunciamento tem a intenção direta de transmitir o testemunho da fidelidade dos discípulos, mas indiretamente também dá testemunho de outros pontos. Eles estiveram com o seu Mestre, se não como um corpo constituído por doze pessoas, pelo menos como indivíduos, desde o tempo em que Ele começou a sofrer “tentações”, o que ocorreu muito cedo, e estiveram com Ele ao longo de todas elas.

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Mateus, o PublicanoMateus 9 .9-13; Marcos 2 .I5 -I7 ; Lucas 5.27-32

O chamado de Mateus ilustra bem o caráter proeminente da ação pública de Jesus, e seu desprezo absoluto em relação ao máximo da sabe­doria mundana. Um discípulo publicano, e muito mais um apóstolo publicano, não deixaria de ser uma pedra de tropeço ao preconceito judeu e, na ocasião, uma fonte de fraqueza e não de força. E mesmo estando perfeitamente ciente desse fato, Jesus convidou ao convívio ínti­mo do discipulado alguém que havia procurado uma ocupação de co­brador de impostos, e que posteriormente foi selecionado para ser um dos doze. Seu procedimento nesse caso é o mais notável de todos quan­do comparado com o modo como Ele tratou outros que tinham aparen­tes vantagens que os recomendavam favoravelmente, e que haviam mos­trado sua boa vontade de seguirem-no voluntariamente como discípu­los. Observe, por exemplo o escriba que se apresentou e disse: “Mestre, aonde quer que fores, eu te seguirei”1. Esse homem, cuja posição social e capacidade profissional pareciam apontá-lo como uma aquisição muito desejável, não foi convidado pelo Mestre, que deliberadamente lhe mos­trou o difícil panorama de sua própria condição, dizendo: “As raposas têm covis2, e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”.

Os olhos de Jesus são únicos e também oniscientes. Ele olhava para o coração e tinha um respeito exclusivo pela aptidão espiritual. Ele não tinha fé alguma no discipulado baseado em equívocos e coisas munda­nas; e, por outro lado, não tinha medo de obstáculos vindos das cone­xões externas ou da história passada dos crentes; pelo contrário, Ele era

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completamente indiferente aos antecedentes dos homens. Confiante no poder da verdade, escolheu as coisas básicas do mundo ao invés das coisas favoráveis, seguro de que venceriam no final. Ciente de que tanto Ele quanto os seus discípulos seriam desprezados e rejeitados pelos ho­mens por algum tempo, seguiu seu caminho calmamente,, escolhendo como seus companheiros e auxiliares “os que Ele quis”, sem se preocu­par com a contradição de sua geração — como alguém que sabia que sua obra dizia respeito a todas as nações; em todas as épocas.

O discípulo publicano possui dois nomes no relato do Evangelho. No primeiro Evangelho ele é chamado de Mateus, enquanto no segun­do e no terceiro é chamado de Levi. Podemos considerar com certeza tratar-se da mesma pessoa3. Dificilmente seria concebível que dois publicanos tivessem sido chamados para ser discípulos no mesmo lugar e ao mesmo tempo, e com as mesmas circunstâncias envolvidas, e estas tão notáveis e precisamente similares. Não deveríamos nos surpreender pelo fato de a identidade não ter sido notificada, em razão dos dois nomes pertencentes à mesma pessoa terem sjdo familiares aos primeiros leitores do Evangelho, o que tornaria tal informação supérflua.

Não é improvável que Levi tenha sido o nome desse discípulo antes de receber seu chamado, e que Mateus tenha sido seu nome como discípu­lo — assim, o novo nome passou a ser um símbolo e uma lembrança da mais importante mudança ocorrida em seu coração e em sua vida. M u­danças emblemáticas de nomes ocorriam com freqüência no início do Evangelho. Simão, o filho de Jonas, passou a se chamar Pedro; Saulo de Tarso passou a ser Paulo, e José, o Cipriota, recebeu dos apóstolos o belo nome cristão Barnabé (filho da consolação, ou profecia), por sua filantropia, magnanimidade, e sabedoria espiritual — um nome bem merecido.

Parece que Mateus desempenhava a função de coletor de impostos na ocasião em que foi chamado em Cafarnaum, cidade que Jesus adotou como residência. Foi enquanto Jesus estava em casa, em “sua cidade”4, como Cafarnaum passou a ser chamada, que o paralítico foi levado até Ele para ser curado; e em todos os Evangelhos5 constatamos que foi na saída de sua casa — onde o milagre foi efetuado — que Ele viu Mateus, e disse-lhe: “Siga-me”. A inferência a ser feita a partir desses fatos é simples, e também importante, para explicar a prontidão do chamado e

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Mateus, o Publicano 35

a prontidão com que foi respondido. Sendo Jesus e seus novos discípu­los da mesma cidade, provavelmente tiveram oportunidades de se ver anteriormente.

A data do chamado de Mateus não pode ser determinada com pre­cisão, mas existe uma boa razão para colocá-la antes do Sermão da Montanha, sobre o qual o Evangelho segundo Mateus contém o relato mais completo. O fato por si só sustenta uma forte evidência a favor dessa colocação cronológica, porque tal narrativa tão completa do Ser­mão não poderia se originar de alguém que não o tivesse ouvido. Um exame do terceiro Evangelho converte a probabilidade em algo como certo. Lucas anexa à sua abreviada narrativa do Sermão uma nota da constituição da sociedade apostólica e representa Jesus como descendo “com eles”6 — os doze, cujos nomes ele havia acabado de citar — à cena onde o sermão foi proferido. E óbvio que o ato da constituição deve ter sido precedido pelos atos separados do chamado, e pelo chama­do de Mateus em particular, que é relatado pelo terceiro evangelista em um trecho anterior ao seu Evangelho7. E verdade que a posição do cha­mado na narrativa de Lucas por si só não prova nada, já que Mateus relata o seu próprio chamado depois do Sermão. E assim, nenhum deles nem outros afirmam algum princípio cronológico de organização no relato dos fatos. Baseamos a nossa conclusão na suposição de que quando algum dos evangelistas professa dando a ordem de seqüência, seu depoi­mento pode ser confiável; e na observação, Lucas manifestadamente em­prega uma ordem cronológica na organização dos doze antecedendo o Sermão da Montanha. A organização de Mateus no início de seu Evange­lho não obedece a uma cronologia; sua questão se concentra no seguinte princípio típico: capítulos 5 a 7, mostrar Jesus como um grande professor ético; capítulos 8 e 9, como um operador de milagres; capítulo 10, como um Mestre, escolhendo, instruindo, e ordenando uma missão evangelística dos doze discípulos; capítulo II , como um crítico dos seus contemporâ­neos e preservador das suas próprias prerrogativas; capítulo 12, como ex­posto às contradições da incredulidade; e capítulo 13, ensinando as dou­trinas do reino por meio de parábolas.

Passando desses pontos subordinados ao chamado em si, observa­mos que as narrativas do evento são muito breves e fragmentadas. Não

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há nenhuma insinuação de algum conhecimento prévio que pudesse pre­parar Mateus para aceitar o convite que lhe fora feito por Jesus. Não se deve concluir, de qualquer forma, que tal conhecimento não existisse, como podemos ver no caso dos quatro pescadores cujo chamado é nar­rado com igual brevidade nos evangelhos sinópticos, enquanto sabemos a partir do Evangelho de João que pelo menos três deles já conheciam Jesus. A verdade é que, considerando ambos os chamados, os evangelistas se preocuparam somente com os momentos críticos, passando em silêncio por todos os estágios preparatórios, e não considerando necessário in­formar aos leitores inteligentes que, é claro, nem os publicanos nem os outros discípulos seguiram cegamente àquele a respeito de quem não sabiam nada, meramente por terem sido convocados a segui-lo. Um fato já averiguado — que Mateus, na condição de publicano, residia em Cafarnaum — torna absolutamente certo que ele conhecia Jesus antes de ser chamado. Nenhum homem poderia ter vivido em tal cidade na­queles dias sem ter ouvido falar das “obras maravilhosas” realizadas nela e em sua vizinhança. O céu havia sido aberto exatamente sobre Cafarnaum, aos olhos de todos, e os anjos “subiam e desciam” sobre o Filho do Homem. Leprosos foram limpos, os demônios dos possessos foram ex­pulsos, os cegos voltaram a ver, e os homens paralíticos puderam usar seus membros; uma mulher foi curada de uma doença crônica, e uma outra, filha de um cidadão distinto — Jairo, príncipe da sinagoga — foi ressuscitada. Estas coisas eram feitas publicamente, causavam grande alarde e eram notáveis. Os evangelistas relatam como as pessoas “se admira­ram, a ponto de perguntarem entre si, dizendo: Que é isto? Que nova doutrina é esta? Pois com autoridade ordena aos espíritos imundos, e eles lhe obedecem!”8, como glorificavam a Deus dizendo: “Nunca tal vimos”9 ou, “Hoje, vimos prodígios”10. O próprio Mateus concluiu sua narrativa da ressurreição da filha de Jairo com a seguinte observação: “E espalhou-se aquela notícia por todo aquele país”11.

Não afirmamos que todos esses milagres foram realizados antes do chamado do publicano, mas alguns deles certamente o foram. Compa­rando um Evangelho com o outro, para determinar a seqüência históri­ca12, concluímos que a maior de todas essas obras maravilhosas, a última mencionada, embora narrada por Mateus depois de seu chamado, real­

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mente ocorreu antes disso. Pense, então, no efeito poderoso que esse ato excelente teria na preparação do coletor de impostos para reconhecer, em uma palavra solenemente pronunciada: "Siga-me”, a ordem daquele que era o Senhor tanto da morte como da vida, e se render ao seu convi­te, prontamente, obedecendo sem hesitação!

Ao creditar a Mateus algum conhecimento prévio de Cristo, faze­mos essa conversão ao discipulado parecer razoável sem diminuir seu valor moral. Não era natural que ele devesse se tornar um seguidor de Jesus meramente por ter ouvido, ou mesmo visto, suas obras maravilho­sas. Os milagres por si só não poderiam fazer nenhum homem se tornar crente, porque se este fosse o caso, todas as pessoas de Cafarnaum teri­am crido. Que fato diferente aprendemos a partir das reclamações mais tarde feitas por Jesus em relação às cidades ao longo das margens do Lago de Genesaré, onde a maior parte de suas obras poderosas foi feita, e de Cafarnaum em -particular. A respeito desta cidade, Ele disse com amar­gura: “E tu, Cafarnaum, que te ergues até aos céus, serás abatida até aos infernos; porque, se em Sodoma tivessem sido feitos os prodígios que em ti se operaram, teria ela permanecido até hoje”13. A queixa de Cristo contra os habitantes dessas cidades favorecidas era que elas não se arre­pendiam, ou seja”, não permitiam que o Reino dos céus se tornasse o seu maior bem, assim como o motivo de sua vida. Questionavam o suficien­te seus milagres, e falavam muito sobre eles. Corriam atrás dele para ver mais obras do mesmo tipo e ter uma nova sensação de estupefação. Po­rém depois de algum tempo, reincidiam em sua própria estupidez e indi­ferença, e permaneciam moralmente como eram antes de sua presença entre eles, não se tornando filhos do reino, mas permanecendo ainda como filhos deste mundo.

Não foi assim com o coletor de impostos. Ele não vagava e falava simplesmente, mas se “arrependeu”. Se ele tinha mais do que se arre­pender que seus vizinhos, não sabemos. E verdade que Mateus pertencia a uma classe de homens que, vistos através do preconceito popular co­mum, eram todos maus, e muitos eram realmente culpados de fraudes e extorsões, mas ele pode ter sido uma exceção. Seu banquete de despedi­da mostra que ele possuía recursos, mas não podemos presumir que estes tenham sido adquiridos de forma ilícita. Porém podemos dizer

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com certeza que se o discípulo publicano era cobiçoso, agora o espírito da ganância havia sido expulso; se alguma vez foi culpado de oprimir os pobres, agora abominava tal atitude. Ele havia se cansado de coletar im­postos de uma população relutante, e estava feliz por seguir alguém que tinha vindo para carregar os fardos, e não para se apoiar neles, para perdoar as dívidas ao invés de cobrá-las com rigor. E então aconteceu que a voz de Jesus agiu em seu coração com muito vigor: “E ele, deixan­do tudo, levantou-se e o seguiu”.

Esta importante decisão, de acordo com o relato de todos os evangelistas, foi feita logo após o banquete na casa de Mateus, no qual Jesus estava presente14. A partir da narrativa de Lucas, podemos ver que essa festa tinha todas as características de uma grande ocasião, e que havia sido feita em homenagem a Jesus. A homenagem, contudo, não estava à altura, pois os outros convidados eram peculiares. “Chegaram muitos publicanos e pecadores e sentaram-se juntamente com Jesus e seus discípulos”15; e em meio aos “outros” haviam alguns que eram esti­mados, em um grau superlativo, como “pecadores”16.

Esse banquete era, como julgamos, não menos rico em importância moral do que as iguarias servidas à mesa. Para o próprio anfitrião era, sem dúvida, um jubileu, um banquete comemorativo de sua emancipa­ção do trabalho enfadonho, da sociedade incompatível e do pecado ou, de um modo geral, da tentação de pecar, e o seu ingresso na livre e abençoada vida de comunhão com Jesus. Era um tipo de poema, dizen­do a Mateus o que as linhas familiares de Doddridge dizem a muitos outros, talvez não tão bem:

O dia feliz, quando fiz a minha escolha Por ti, meu Salvador e meu Deus!Que este coração ardente possa se regozijar,Contar sobre seu entusiasmo em todos os lugares!

Está feita; a grande transação está feita:Eu sou do meu Senhor, e Ele é meu;Ele me chamou, e eu o segui,Fascinado por confessar a voz divina.

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O banquete também foi, como já mencionado, um ato de homena­gem a Jesus. Mateus fez seu esplêndido banquete em honra ao seu novo mestre, assim como Maria, de Betânia, derramou seu precioso ungüento sobre os seus pés. E o meio de aqueles a quem muita graça é mostrada manifestarem seu grato amor*em seus atos, exibindo o que um filósofo grego chamava de magnificência17, e as pessoas mais simples chamam de extravagância. Quem quer que tente criticar tais atos de devoção, deve se lembrar de que Jesus sempre os aceitou com prazer.

O banquete do publicano parece ter tido o caráter de uma festa de despedida para seus amigos publicanos. Dali em diante, Mateus e seus amigos seguiriam caminhos diferentes, e ele se separaria deles em paz.

Mais uma vez podemos acreditar que Mateus fez o banquete com a intenção de apresentar Jesus aos seus amigos e vizinhos, procurando com o zelo característico de um jovem discípulo induzir outros a tomar a mesma decisão que ele, ou pelo menos esperando que alguns pecadores presentes pudessem ser tirados do caminho do mal e levados ao cami­nho da justiça. E por que não poderíamos dizer que foi nessa reunião festiva, ou em alguma outra ocasião semelhante, que as impressões da graça haviam produzido o resultado final da comovente demonstração de gratidão inefável naquele outro banquete na casa de Simão, no qual nem os publicanos nem os pecadores foram admitidos?

O banquete de Mateus foi visto internamente como muito agradá­vel, inocente e até edificante. Mas que i n f e l i c id ad e ! Visto externamente, como por janelas sujas, tinha um aspecto diferente: era, de fato, nada menos que escandaloso. Certos fariseus observaram a chegada ou a saída daquelas pessoas, notaram quem eram, e depois fizeram reflexões sinis­tras a seu bel-prazer. Quando surgiu uma oportunidade, eles fizeram aos discípulos de Jesus uma pergunta que era simultaneamente um elogio e uma censura: “Por que comeis e bebeis com publicanos e pecadores?” Aqueles que fizeram esta pergunta eram, em sua maioria, membros da seita local dos fariseus, pois Lucas se refere a eles como: “os escribas deles e os fariseus”18, o que implica que Cafarnaum era suficientemente importante para ser honrada com a presença dos representantes de tal facção religiosa. E pouco provável, contudo, que em meio aos especta­dores pouco amistosos estivessem alguns fariseus vindos de Jerusalém, o

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centro do governo eclesiástico, já no encalço do Profeta de Nazaré, ob­servando seus atos, assim como fizeram com João Batista, antes dele. As notícias das obras milagrosas de Cristo logo se espalharam por toda a terra, e atraíram espectadores de todos os cantos — de Decápolis, de Jerusalém, da Judéia, e da Peréia, assim como da Galiléia19! e podemos estar certos de que os escribas e fariseus da cidade santa não foram os últimos a ir e ver. Devemos considerar que estes cumpriram o dever da espionagem religiosa com diligência exemplar.

A presença desses homens doentes da ordem farisaica era quase um aspecto permanente no ministério público de Cristo. Mas isso nunca o perturbou. Ele seguiu calmamente o seu caminho fazendo a sua obra; e quando sua conduta era posta em questão, Ele estava sempre pronto com uma resposta conclusiva. Dentre as mais impressionantes de suas respostas ou apologias aos que o examinavam, estavam aquelas nas quais Ele se justificava por se misturar com pecadores e publicanos. São três, expressas em muitas ocasiões: a primeira relacionada ao banquete de Mateus; a segunda na casa de Simão, o farkeu20; e a terceira, em uma ocasião sem data definida, quando certos escribas e fariseus lhe fizeram uma grave acusação: “Este recebe pecadores e come com eles”21. Essas apologias pelo fato de amar os não-amados e os moralmente desagradá­veis estão repletas de verdade e graça, poesia e compaixão, com um to­que particular de sátira dirigida contra os santarrões acusadores. A pri­meira pode ser distinguida como o argumento profissional, e tinha o se­guinte conteúdo: “Eu freqüento a casa dos pecadores porque sou um médico; eles estão doentes e precisam de cura. Onde deveria estar um médico se não em meio aos seus pacientes? Onde mais se não entre os mais gravemente aflitos?” A segunda pode ser descrita como sendo um argumento político, e sua construção tem o seguinte sentido: “E uma boa política ser amigo dos pecadores que têm muito a ser perdoado; porque quando forem restituídos ao caminho da virtude e da piedade, quão grande será o seu amor! Veja aquela mulher penitente, chorando de dor e também de alegria, banhando os pés do seu salvador com suas lágri­mas. Tais lágrimas são um refrigério para o meu coração, como uma fonte de água no deserto árido do formalismo e da indiferença farisaica”. A terceira pode ser chamada de argumento do instinto natural, e poderia

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ser expressa assim: “Eu recebo os pecadores, e como com eles, e assim procuro estabelecer a sua restauração moral. Faço-o pela mesma razão que leva o pastor a sair em busca de uma ovelha perdida, deixando o seu rebanho no deserto. Porque é natural procurar o perdido e ter mais ale­gria ao encontrar coisas perdidas do que se alegrar por aquilo que nunca foi perdido. Os homens que não compreendem este sentimento são so­litários no universo; porque os anjos no céu, os pais, as donas de casa, os pastores, todos os que têm corações humanos na terra, compreendem bem, e agem dessa forma todos os dias”.

Em todo esse raciocínio Jesus falou aos seus acusadores baseando- se nas próprias premissas deles, aceitando as estimativas que tinham de si próprios e da classe que julgavam ser infame para se associarem, como justos e pecadores respectivamente. Mas Jesus decidiu expor que seu julgamento em relação a essas duas classes não coincidia com o de seus interrogadores. Ele o fez na ocasião do banquete de Mateus, ordenando que fossem estudar o texto: “Misericórdia quero e não sacrifício”, que­rendo pela citação insinuar que, embora fossem muito religiosos, os fariseus eram também muito desumanos, cheios de orgulho, preconcei­tos, severidade, e ódio. E, proclamando a verdade, disse-lhes que este caráter era, aos°olhos de Deus, muito mais detestável que o daqueles que eram afeiçoados às vozes vulgares da multidão, para não falar daqueles que eram “pecadores” principalmente na imaginação farisaica. Desse modo, Jesus mostrou-lhes um outro lado da situação.

As últimas palavras de nosso Senhor para as pessoas que haviam colocado a sua conduta em questão nessa ocasião não eram meramente apologéticas, mas judiciais: “Eu não vim”, disse Ele, “chamar os justos, mas sim os pecadores, ao arrependimento”22. Com isto, declarou que aqueles que se consideravam justos ficariam sozinhos, e convidou ao arrependimento e às alegrias do reino aqueles que não estivessem satis­feitos com a sua própria vida. Estes últimos passariam a cuidar dos be­nefícios agora oferecidos, e o banquete do evangelho lhes seria uma ver­dadeira festa. A palavra, na verdade, continha uma significativa alusão a uma iminente revolução religiosa, na qual os últimos se tornariam os primeiros e os primeiros, os últimos; os judeus proscritos, os vis gentios (considerados até mesmo como cães), tomariam parte das alegrias do

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reino e os aparentemente “justos” seriam excluídos. Este foi um dos discursos significativos através do qual Jesus tornou conhecido para aque­les que podiam compreender que a sua religião era universal, uma reli­gião para a humanidade, um evangelho para o gênero humano, um evan­gelho para os pecadores. E o que estava sendo declarado em palavras, a apologia à conduta cristã, era proclamado de forma ainda mais expressi­va por meio de suas obras. Tal compaixão pelos “publicanos e pecado­res” era algo abominável — o instinto farisaico o discerniu deste modo — e eles em seguida se alarmaram. Significava a morte dos monopólios e privilégios da graça e do orgulho judaico e do exclusivismo — todos os homens são iguais aos olhos de Deus, e são bem-vindos à salvação nos mesmos termos. De fato, era uma proclamação virtual do programa paulmo de um evangelho universalista, o qual os doze deveriam, como uma escola de teólogos, defender com a mesma determinação exibida pelos próprios fariseus. Causa estranheza saber que aqueles que estive­ram com Jesus tivessem a visão tão restrita a ponto de não entenderem, mesmo no final, o que estava envolvido na comunhão de seu Mestre com aqueles que eram considerados inferiores e perdidos! [Será que Buda foi mais afortunado em relação aos seus discípulos do que Jesus em relação aos seus? Buda disse: “Minha lei é uma lei de graça para todos”, dirigindo suas palavras imediatamente contra a preconceituosa casta bramânica; e seus seguidores entenderam o que isto significava; o budis­mo como uma religião missionária, uma religião para os sudras, e conse­qüentemente para toda a humanidade!]

I Mateus 8.18-20" Mais corretamente, alojamentos, pousadas.3 Ewald ( Cbristus, pp. 364, 397) nega a identidade, e afirma que Levi não era um dos doze; porém admite a

identidade menos evidente de Natanael e Bartolomeu.4 Mateus 9.13 Mateus 9.9; Marcos 2.13; Lucas 5.276 Lucas 6.13-177 Lucas 5.278 Marcos 1.279 Marcos 2.1210 Lucas 5.26II Mateus 9.2612 Veja Ebrard, Gospel History, sobre o assunto da seqüência.

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13 Mateus 11.23. Podem haver poucas dúvidas de que mh , na primeira cláusula, adotada na versão revisada, seja a correta. Ela traz a palavra profética de Cristo a uma correspondência mais próxima com Isaías 14.13-15, ao qual existe uma alusão óbvia: “E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu... contudo, levado serás ao inferno...”

14 Mateus diz modestamente, “em casa’ •(9.10).13 Mateus 9.1016 Lucas 5.29ll mepãloprepeiíi — Aristóteles, Ética a i\'ic$waco 4.2'» Lucas 5 3010 Mateus 4.2520 Lucas 7.3621 Lucas 15.222 e parece ser genuíno somente em Lucas, e as palavras expressam somente uma parte daquilo que Cristo estava

dizendo. Ele convidou os homens não somente ao arrependimento, mas à participação em todas as bênçãos do reino.

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4Os Doze

Mateus I0.I-4; Marcos 3.13-19; Lucas 6.I2-I6; Atos I.I3

AL. 1 escolha que Jesus fez dos doze discípulos que gradualmente se reuniram ao seu redor é uma importante referência na história do evan­gelho. Tal ato divide o ministério do nosso Senhor em duas partes pro­vavelmente muito semelhantes quanto à duração, mas diferentes quanto à extensão e a importância do trabalho realizado em cada uma. No perí­odo inicial Jesjjs trabalhou sozinho; suas obras milagrosas estavam con­finadas a uma área limitada, e seu ensino era, em sua maior parte, de caráter elementar. Mas na ocasião em que os doze foram escolhidos, a obra do reino "assumiu dimensões que requeriam organização e divisão de trabalho. O ensino de Jesus estava começando a ser de natureza mais profunda e elaborada, e suas atividades beneficentes estavam crescendo muito.

E provável que a escolha de um número limitado de discípulos para ser seus companheiros íntimos e constantes tenha se tornado uma neces­sidade para Cristo, em conseqüência de seu próprio sucesso ao fazer discípulos. Seus seguidores eram tão numerosos a ponto de serem um impedimento aos seus movimentos, especialmente nas longas jornadas que marcam a parte posterior de seu ministério. Era impossível que to­dos os que criam pudessem então continuar a segui-lo de modo literal, para onde quer que Ele fosse: o grande número de pessoas agora poderia ser apenas de seguidores ocasionais. Mas era seu desejo que alguns ho­mens escolhidos estivessem consigo em todos os momentos e em todos os lugares — seus companheiros de viagem em todas as suas jornadas, testemunhando toda a sua obra e ministrando às suas necessidades diá­

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rias. E assim, nas palavras singulares de Marcos: “E subiu ao monte e chamou para si os que ele quis; e vieram a ele. E nomeou doze para que estivessem com ele...”1.

Estes doze, contudo, como sabemos, deveriam ser mais que meros companheiros de viagem ou servos comuns do Senhor Jesus Cristo. Eles deveriam ser, então, aprendizes da doutrina cristã, e ocasionais cooperadores das obras do reino, e mais tarde agentes treinados, escolhi­dos por Cristo para propagar a fé depois que Ele deixasse a terra. A partir do momento em que foram escolhidos, de fato, os doze iniciaram um aprendizado regular para o grande ofício do apostolado, no curso do qual deveriam aprender, na privacidade de um relacionamento ínti­mo diário com seu Mestre, como deveriam ser, agir, crer, e ensinar como suas testemunhas e seus embaixadores no mundo. Doravante o treina­mento desses homens deveria ser uma parte constante e proeminente da obra pessoal de Cristo. Ele os orientava à noite a respeito do que deveri­am falar de dia, e falava aos seus ouvidos o que nos anos posteriores anunciariam publicamente2.

A ocasião em que ocorreu essa eleição (embora não se conheça tal data com precisão) é fixa em relação a certos eventos-chave da história do evangelho. João se refere aos doze como uma companhia organizada na ocasião em que o Senhor realizou o milagre de alimentar mais de cinco mil pessoas, e do discurso sobre o Pão da vida na sinagoga de Cafarnaum, proferido pouco tempo após aquele milagre. Desse fato aprendemos que os doze foram escolhidos pelo menos um ano antes da crucificação; pois o milagre da multiplicação dos alimentos ocorreu, de acordo com o quarto evangelista, logo após a festa da Páscoa3. A partir das palavras ditas por Jesus aos homens que havia escolhido, transmitin­do a sua pergunta em relação à fidelidade devida a ele depois da multi­dão tê-lo abandonado: “Não vos escolhi a vós os doze? E um de vós é um diabo”4, concluímos que a escolha não era tão recente. Os doze haviam estado juntos durante tempo suficiente para dar ao falso discí­pulo a oportunidade de mostrar o seu verdadeiro caráter.

Voltando agora aos evangelistas sinópticos, encontramo-los tentan­do estabelecer a posição da eleição em referência a dois outros eventos ainda mais importantes. Mateus fala pela primeira vez dos doze como

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um corpo distinto em relação à sua missão na Galiléia. Ele não diz, contu­do, que foram escolhidos imediatamente antes e com referência direta a tal missão. Antes, fala como se a fraternidade apostólica já existisse ante­riormente, sendo estas as suas palavras: “E, chamando os seus doze dis­cípulos...” Lucas, por outro lado, faz um relato formal da eleição, como um prefácio de seu relatório do Sermão ia Montanha, dando a impressão de que um evento ocorreu logo após o outro5. Finalmente, a narrativa de Marcos confirma o ponto de vista sugerido por essas observações de Mateus e Lucas, isto é, os doze foram chamados pouco antes da realiza­ção do Sermão da Montanha, e um tempo considerável antes de terem sido enviados em missão para pregar e curar. Está escrito: “E subiu ao monte (t )6 e chamou para si os que ele quis” — a subida obviamente se refere à ocasião em que Jesus subiu antes de pregar seu grande discurso. Marcos continua: “E nomeou doze para que estivessem com ele e os mandasse a pregar e para que tivessem o poder de curar as enfermidades e expulsar os demônios”. Aqui há uma alusão feita a uma intenção da parte de Crist® de enviar seus discípulos em uma missão, mas a intenção não é representada e imediatamente executada. Nem pode ser dito que a execução imediata esteja implícita, embora não tenha sido expressa; o evangelista faz um relato da missão como consta em vários capítulos seguintes em seu Evangelho, iniciando com estas palavras: “Chamou a si os doze, e começou a enviá-los de dois a dois...”7.

Deve ser considerado, então, como toleravelmente certo, que o cha­mado dos doze tenha sido um prelúdio à pregação do grande sermão sobre o reino, em cuja fundação eles teriam, posteriormente, uma parti­cipação ainda mais distinta. Não podemos determinar com exatidão em que período do ministério de nosso Senhor o sermão em si deve ser precisamente alocado. Nossa opinião, contudo, é que o Sermão da M on­tanha foi proferido próximo ao primeiro ministério prolongado de Cristo na Galiléia, durante o tempo passado entre as duas visitas a Jerusalém em ocasiões de festas mencionadas no segundo e no quinto capítulo do Evangelho de João8.

O número da companhia apostólica é significativo e, sem dúvida, uma questão de escolha, assim como a composição daquele grupo sele­to. Um número maior de homens elegíveis poderia ser facilmente en-

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contrado no círculo de discípulos que, mais tarde, não se tornou menor que setenta auxiliares na obra evangelística9; e um número menor pode ter servido a todos os propósitos presentes ou futuros do apostolado. O número doze foi recomendado por óbvias razões simbólicas. Expressava de uma forma feliz e figurada o que Jesus reivindicava ser e o que veio fazer e, deste modo, fornecia apoio à fé e estímulo à devoção de seus seguidores. Isto sugeriu de forma significativa que Jesus era o divino Rei messiânico de Israel, que veio para estabelecer o reino cujo advento fora anteriormente previsto pelos profetas em linguagem fervorosa, sugerida pelos dias de felicidade da história de Israel, quando a comunidade teocrática existia em sua integridade, e todas as tribos da nação escolhi­da eram unidas sob a casa real de Davi. Sabemos que o número doze estava designado a conter tal significado espiritual através das próprias palavras de Cristo aos apóstolos em uma ocasião posterior, quando, ao descrever as recompensas que os esperavam no reino pelos serviços e sacrifícios prestados, Ele disse: “Em verdade vos digo que vós, que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho «do Homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis sobre doze tronos, para jul­gar as doze tribos de Israel”10.

E possível que os apóstolos conhecessem muito bem a importância espiritual do seu número, e tenham encontrado nele o encorajamento para a terna e ilusória esperança de que a vinda do reino não deveria ser apenas um cumprimento espiritual das promessas, mas uma restauração literal de Israel em relação à sua independência e integridade política. O risco de tal equívoco era um dos obstáculos relacionados ao número doze em particular, mas não foi considerado por Jesus como uma razão suficiente para estabelecer outro. Seu método de procedimento nesse caso, como em todas as coisas, era continuar o que era verdadeiro e certo, e então corrigir os equívocos à medida que surgissem.

Do número do grupo apostólico passamos para as pessoas que o compõem. Sete dos doze — os primeiros sete na lista de Marcos e Lucas, presumindo que Bartolomeu seja Natanael — são pessoas já conhecidas por nós. Dois dos cinco restantes — o primeiro e o último — conhece­remos bem à medida que avançarmos na história.Tomé, chamado Dídimo ou o Gêmeo, aparece como um homem de coração terno, mas de tempe-

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ramento melancólico, pronto para morrer por seu Senhor, mas lento para crer em sua ressurreição. Judas Iscariotes e conhecido em todo o mundo como o Traidor. Ele aparece pela primeira vez nessa lista de apóstolos com o título infame marcado em sua testa: “Judas Iscariotes, aquele que o traiu”. A presença de um homem capaz de trair entre os discípulos eleitos é um mistério no qual não devemos tentar penetrar. Meramente fazemos aqui uma observação histórica sobre Judas — ele parece ter sido o único não galileu entre os doze. Seu sobrenome veio aparentemente de seu lugar de origem, Queriote; e no livro de Josué podemos constatar que existia uma cidade com tal nome na fronteira do sul da tribo de Judá11.

Os três nomes que restam são extremamente obscuros. Em bases fa­miliares aos estudiosos da Bíblia, existem tentativas de identificar Tiago, filho de Alfeu, com Tiago, o irmão ou parente do Senhor. O próximo na lista de Mateus e Marcos é apontado por muitos como sendo o irmão deste Tiago, e assim, possivelmente um outro irmão de Jesus. Esta opinião é baseada no fato de, em lugar de Lebeu e Tadeu dos dois primeiros Evan­gelhos, encontrarmos na lista de Lucas o nome Judas “... de Tiago”. A elipse nesta designação foi preenchida pela palavra irmão, e presume-se que o Tiago aludido seja Tiago, filho de Alfeu. Independentemente de quão tentador esses resultados possam ser, não podemos considerá-los como apurados, e devemos nos satisfazer com a idéia de que em meio aos doze havia um segundo Tiago, além do irmão de João e filho de Zebedeu, e também um segundo Judas, que novamente aparece como um interlocutor na conversa de despedida entre Jesus e seus discípulos na noite anterior à crucificação, cuidadosamente distinguido do traidor, pelo evangelista, através da anotação parentética: “não o Iscariotes”12. Este Judas, que é o próprio Lebeu ou Tadeu, foi chamado de discípulo de três nomes13.

O discípulo a quem reservamos o último lugar, como aquele que fica no topo de todas as listas, é Simão. Este segundo Simão é desconhe­cido, enquanto o primeiro é notório, porque não é mencionado na his­tória do evangelho, exceto nas listas dos apóstolos; e assim, pouco se sabe a respeito dele, o apelido anexado ao seu nome leva a uma informa­ção curiosa e interessante. Ele é chamado de kananita (não de cananita), o que é uma designação política e não geográfica, como consta no termo

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grego que Lucas usou para substituir o termo hebraico, chamando o discípulo do qual falamos de Simão, o zelote. Este apelido, zelote, rela­ciona Simão indiscutivelmente ao famoso partido que surgiu da rebelião sob a coordenação de Judas nos dias da taxação14, aproximadamente vinte anos antes do mício do ministério de Cristo, quando*a Judéia e Samaria ficaram sob o comando direto do governo de Roma, e o censo populacional foi feito com a intenção de se impor uma tributação subse­qüente. Que fenômeno singular foi a presença desse ex-zelote entre os discípulos de Jesus! Dois homens não poderiam diferir mais em relação ao seu espírito, metas, e pretensões do que Judas (o líder dos zelotes) e Jesus de Nazaré. Um era um político descontente; o outro, completa­mente vencedor, daria a César o que era de César. O primeiro desejava a restauração do reino de Israel, adotando como lema: “Nós não temos um Senhor ou Mestre, exceto Deus”; o segundo desejava a fundação do reino que não era nacional, e sim universal; não deste mundo, e sim “puramente espiritual”. Os métodos empregados pelos dois eram tão diferentes quanto os seus objetivos e fins. Um havia recorrido às armas carnais de guerra, a espada e o punhal; o outro confiava apenas na força bondosa e amável, porém onipotente, da verdade.

Não sabemos o que levou Simão a deixar Judas (o líder dos zelotes) para seguir Jesus; mas ele fez uma troca feliz para si, pois anos depois o partido que ele abandonou atraiu a ruína para si e seu país devido a seu patriotismo fanático, inconseqüente e inútil. Embora a insurreição de Judas fosse subjugada, o fogo do descontentamento ainda queimava no peito dos seus adeptos; e com o tempo, eclodiu na fogueira de uma nova rebelião, que fez surgir uma luta mortal contra o poder gigantesco de Roma, e terminou na destruição da capital do judaísmo, e na dispersão do povo judeu.

A escolha desse discípulo para ser um apóstolo fornece uma outra ilustração do desprezo de Cristo pela sabedoria humana. Não era seguro transformar um ex-zelote em um apóstolo, porque ele poderia ser o meio de transformar Jesus e os seus seguidores em objetos de suspeitas políticas. Mas o Autor da nossa fé estava disposto a correr este risco. Ele desejava ganhar tanto discípulos das classes perigosas como das classes desprezadas, e queria que também estivessem representados entre os doze.

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É uma surpresa agradável pensar que Simão, o zelote, e Mateus, o publicano, homens de posições opostas, estivessem juntos e em comu­nhão naquele pequeno grupo de doze pessoas. Na pessoa desses dois discípulos os extremos se tocam — o ex-coletor de impostos e aquele que odiava os impostos: o judeu que não era patriota, que havia se degra­dado ao se tornar um servo do governante estrangeiro, e o judeu patrio­ta, que se irritava com o domínio estrangeiro, e suspirava pela emancipa­ção. Esta união dos opostos não era acidental, mas havia sido designada por Jesus como uma profecia daquilo que aconteceria no futuro. Ele desejava que os doze fossem a igreja em miniatura ou como o seu em­brião; e assim, Ele os escolheu para que a distinção entre publicanos e zelotes não existisse, e então na igreja do futuro não deveria haver nem gregos nem judeus, circuncisão ou incircuncisão, escravos ou livres, mas somente Cristo — Ele é tudo em todos e todos estão nele.

Estes eram os nomes dos doze conforme consta nas listas dos evangelistas. Quanto à ordem são apresentados, examinando-se cautelo­samente as listas, podemos observar que elas contêm três grupos de qua­tro pessoas, e em cada um deles os mesmos nomes são sempre encontra­dos, embora a ordem não seja a mesma. O primeiro grupo inclui aqueles que são mais conhecidos, o segundo inclui aqueles que são pouco menos conhecidos, e o terceiro inclui aqueles que são os menos conhecidos de todos, exceto no caso do traidor, que ficou muito bem conhecido. Pedro, a figura mais proeminente entre os doze, está no topo de todas as listas, e Judas Iscariotes no rodapé, cuidadosamente designado, conforme já foi observado, como o traidor. O rol apostólico, a partir da ordem fornecida em Mateus, e empregando os cognomes característicos da his­tória do evangelho como um todo, é o seguinte:

PRIM E IRO GRUPO

Sim ão Pedro O homem de pedra

André Irmão de Pedro

T iago e João Filhos de Zebedeu,

e filhos do trovão

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SEG U N D O GRUPO

Filipe

Bartolom eu ou N atanael

ToméM ateus

TERCEIRO GRUPO

O inquiridor sincero

O israelita em quem

não havia dolo

O melancólico

O publicano (assim chamado

apenas por si m esmo)

T iago (filho ) de Alfeu

Lebeu.Tadeu, Judas de T iago

Simão

Judas, o homem de Queriote

(T iago o menor? M arcos 1 5 .4 0 )

O discípulo que tinha três nomes

O zelote

O traidor

Estes foram os homens que Jesus escolheu para o acompanharem enquanto estivesse nesta terra, e para dar continuidade à sua obra depois de sua partida. Estes são os homens que a igreja celebra como “a compa­nhia gloriosa dos apóstolos”. O louvor é merecido; mas a glória dos doze não era deste mundo. Sob um ponto de vista mundano, alguns podem considerá-los, de fato, uma companhia insignificante — um grupo de pobres e iletrados galileus provincianos, totalmente desprezados, pri­vados das características sociais mais elevadas, com mínimas chances de serem escolhidos por alguém que valorizasse as considerações da pru­dência. Por que Jesus escolheu tais homens? Teria Ele sido levado por sentimentos de antagonismo por aqueles que possuíam vantagens soci­ais, ou uma predileção por homens de sua própria classe? Não; sua esco­lha foi feita com base na verdadeira sabedoria. Se Ele escolheu principal­mente os galileus, não foi por preconceito provincial contra aqueles do sul; se, como algumas pessoas pensam, Ele escolheu dois ou mesmo quatro15 de seu próprio parentesco, não foi por nepotismo; se Ele esco­lheu homens rudes, ignorantes, humildes, não foi movido pela inveja do conhecimento, da cultura, ou da boa origem. Se qualquer mestre, ho-

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mem rico, ou governante estivesse disposto a se entregar sem reservas ao serviço do reino, nenhuma objeção teria sido feita a ele em virtude de suas habilidades, posses ou títulos. O caso de Saulo de Tarso, o pupilo de Gamaliel, prova a verdade dessa afirmação. Nem mesmo o próprio Gamaliel poderia ter impedido que Paulo se tornasse um discípulo do Nazareno. Mas sim! Nem ele nem nenhuma de suas ordens chegariam tão longe. Por esta razão o desprezado Senhor não teve nenhuma opor­tunidade de mostrar sua disposição de aceitá-los como díscípulos e escolhê-los como apóstolos.

A verdade é que Jesus quis se contentar com pescadores, publicanos, e antigos zelotes como apóstolos. Eles eram o melhor que se poderia obter. Aqueles que se consideravam melhores, eram também muito or­gulhosos para se tornarem discípulos, e por isso se excluíram do que o mundo considera agora como a honra de serem os príncipes escolhidos do reino. A aristocracia civil e religiosa se gabava de sua descrença16. Os cidadãos de Jerusalém se sentiram, por um momento, interessados no jovem entusiasta que havia purificado o templo com um chicote de cor­reias curtas; mas a fé deles era superficial e sua atitude era defensiva, e por isso Jesus não se entregou a eles, porque sabia o que havia no interior de cada um deles17. Alguns poucos eram simpatizantes sinceros, mas não estavam decididos quanto ao seu ingresso na eleição para o apostolado. Nicodemos mal era capaz de dizer uma tímida palavra apologética a favor de Cristo, e José de Arimatéia foi um discípulo “secretamente”, por medo dos judeus. Estes dificilmente seriam os ho­mens certos para ser enviados como missionários da cruz — homens tão presos aos laços sociais e conexões partidárias, e tão escravizados pelo medo dos homens. Os apóstolos do cristianismo devem ser feitos de material rígido.

E assim Jesus preferiu optar pelos homens da Galiléia: rústicos, po­rém simples, sinceros e motivados. E Ele ficou bastante satisfeito com sua escolha, e devotadamente agradeceu a seu Pai por ter-lhe concedido homens como esses. Jesus não desprezaria a erudição, a posição, a rique­za, o requinte, voluntariamente deixados em razão de seu serviço; mas preferia homens devotos que não tivessem nenhuma dessas vantagens a homens não devotos que tivessem todas elas. E com uma forte razão;

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isso importava muito pouco, exceto aos olhos do preconceito contem­porâneo, para o qual a posição social ou mesmo a história prévia dos doze teria algum significado. O importante é que eram espiritualmente qualificados para o trabalho que foram chamados a fazer. Ou seja, o que importa não é o exterior do homem, mas o seu interior. João* Bunyan foi um homem de origem simples, de posição inferior, e até à sua conversão tinha hábitos pouco louváveis; mas era por natureza um homem capaci­tado e, pela graça, um homem de Deus. Ele teria se tornado — como de fato foi — um dos apóstolos mais eficientes.

Alguém pode argumentar que nenhum dos doze foi tão dotado quanto Bunyan. De fato, a julgar pela obscuridade que envolve alguns deles, e o silêncio da história a seu respeito, não sendo destacados nem por sua alta qualificação ou por sua grande carreira, poderiam ser consi­derados, por alguns, como inúteis. Como esta objeção contesta frontal- mente a sabedoria da escolha de Cristo, podemos dizer que não está de acordo com a verdade18. Submetemos as seguintes considerações em re­lação a este ponto de vista:

I) Não se pode negar que alguns dos apóstolos eram comparativa­mente desconhecidos, homens aparentemente inferiores aos seus com­panheiros de ministério; porém mesmo os menos afamados dentre eles podem ter sido mais úteis como testemunhas daquele a quem estavam acom­panhando desde o início. Não é necessário ser um grande homem para ser uma boa testemunha, e ser testemunha dos fatos cristãos era o mais importante para os apóstolos. Não devemos duvidar que mesmo o ho­mem mais humilde dentre eles tenha prestado um serviço importante com sua capacidade, embora nada tenha sido dito sobre o tal nos escri­tos apostólicos. Não se deveria esperar que a história tão fragmentada e tão breve como aquela narrada por Lucas mencionasse alguém além dos personagens principais, especialmente quando refletimos como são pou­cos os que aparecem no palco em quaisquer crises particularmente rela­cionadas aos assuntos humanos, e são proeminentemente notados até mesmo em relatos detalhados de acontecimentos. O propósito da histó­ria é servido pelo registro das palavras e atos de homens representativos, e muitos que fizeram coisas nobres em suas vidas podem cair no esque­

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cimento. Os membros menos distintos do grupo apostólico contribuem em benefício dessa reflexão.

2) Três homens eminentes, ou mesmo dois (Pedro e João), dentre os doze, é uma boa parcela. Havia poucas sociedades nas quais a excelên­cia superior tinha uma proporção tão elevada em relação à média. Talvez o número de “pilares”19 fosse tão grande quanto o desejável. Longe de lamentar que nem todos fossem como Pedro e João, devemos, ao contrá­rio, ser gratos por ter existido uma diversidade de dons entre os primei­ros pregadores do evangelho. Uma regra geral nos diz que não é bom quando todos são grandes líderes. Homens de menor destaque são tão necessários quanto os grandes homens; a natureza humana é unilateral, e há homens de menor projeção que têm suas virtudes e dons peculiares, podendo fazer algumas coisas melhor que seus irmãos mais célebres.

3) Devemos nos lembrar que sabemos muito pouco sobre qualquer um dos apóstolos. E moda entre alguns biógrafos escrever para um pú­blico ocioso, entrando em pormenores particulares de um evento ou em peculiaridades pessoais relacionadas aos seus heróis. Não existe nenhum traço dessa afeição idólatra nas histórias evangélicas. Os escritores dos Evangelhos não eram aficionados pela mania da biografia. Além disso, os apóstolos não eram o seu tema. Cristo era o seu herói; e seu único desejo era contar o que sabiam a respeito dele. Eles olharam tão fixa­mente para o Sol da Justiça e para o seu esplendor, que perderam de vista as estrelas auxiliares. Faz pouquíssima diferença saber quais dentre eles eram estrelas de primeira magnitude, ou de segunda, ou de terceira.

1 Marcos 3.13. O verbo epoiêse, “feito”, é usado aqui com o mesmo sentido de Hebreus 3.2, “sendo fiel ao que o constituiu” ( tõ poiêsanti auton ). Algumas traduções como a Versão Revisada em inglês traduzem este termo como “designou”.

2 Mateus 10.27° João 6.44 João 6.70, conforme aVersao Revisada. Lucas 6.13 comparado com o verso 17, onde Lucas apresenta o nome “apóstolos” como ordenado por Cristo:

“a quem também deu o nome de apóstolos” (versículo 13). Esta expressão é usada por todos os smópticos. Parece significar uma região montanhosa e não uma colma em

particular.' Marcos 6.7

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8 De acordo com Ebrard, na obra Gosp. History., Ewald coloca a eleição depois do banquete de João 5.9 Essa missão dos setenta é considerada por Baur, e outros da mesma escola, como pura invenção do terceiro

evangelista, com a intenção de lançar os doze na obscuridade, e para servir à causa do universalismo paulino. Esta opinião é inteiramente arbitrária. Mesmo supondo que concordássemos com Baur, o ponto ainda permaneceria verdadeiro, conforme foi declarado no texto, que Cristo poderia ter tido mais que os doze apóstolos que desejou.

10 Mateus 19.28. Keim reconhece o número doze como sendo de significado simbólico, conforme declarado no texto, contra Schleiermacher, que o considerava puramente acidental. — GeschichteJesu von Nazara, 2.304.

11 Josué 15.25. Veja Renan, Vie de Jésus, p. 160 (13° edição). Ewald ( Cbristus, p. 398) pensa que Queriote é Cartá, na tribo de Zebulom (Js 21 .34). Se Judas fosse da Judéia, poderia ter se tornado discípulo na ocasião da visita de Cristo ao Jordão, mencionada em João 3.22.

12 João 14.2213 Ewald ( Cbristus, p. 399) pensa que Lebeu e Judas eram pessoas diferentes, e que o primeiro havia morrido

durante a época em que Cristo estava vivo, e que Judas havia sido escolhido para ocupar o seu lugar.14 Atos 5.3715 Mateus ou Levi, sendo filho de Alfeu, era supostamente irmão de Tiago e Simão, o zelote, mencionado como

Simão em Mateus 13.5516 João 7.4817 João 2.23-2518 Keim diz que Jesus foi verdadeiramente humano (àcht menschlich), tendo se equivocado em relação a seus discí­

pulos até um certo ponto. Este escritor pensa que eles não se tornaram os homens que Jesus esperava. A observação ocorre em relação à missão na Galiléia. — Geschicbte Jesu von Nazara, 2.332

19 Este título é dado a Pedro, Tiago, e João por Paulo em sua epístola aos Gálatas (2 .9). Por isso, na literatura de Tübingen, devotada à sustentação da teoria-conflito, estes três são chamados de “apóstolos-pilares”.

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o que vós vedes, pois vos digo que muitos profetas e reis desejaram ver o que vós vedes e não o viram; e ouvir o que ouvis e não o ouviram”1.

Algumas gerações de Israel tinham visto coisas extraordinárias: uma tinha visto as maravilhas do Exodo, e coisas sublimes com relação às tábuas da Lei no Monte Sinai; outra, os milagres feitos por*Elias e Eliseu; e gerações sucessivas tinham sido privilegiadas por ouvirem os não me­nos maravilhosos oráculos de Deus, proferidos por Davi, Salomão, Isaías, e os demais profetas. Mas as coisas testemunhadas pelos doze apóstolos eclipsaram as maravilhas de todas as eras passadas; pois Alguém maior que Moisés, Elias, Davi, Salomão ou Isaías esteve aqui, e a promessa para Natanael havia sido cumprida. O céu havia sido aberto e os anjos de Deus — os espíritos da sabedoria, poder e amor — estavam subindo e descendo sobre o Filho do Homem.

Aqui podemos fazer um rápido exame da mimbilia que era o privilé­gio peculiar dos doze apóstolos quanto a ver e ouvir, mais ou menos durante todo o período do seu discipulado, e especialmente logo após a sua eleição. Isso pode ser compreendido nos dois tópicos principais: a Doutrina do Reino, e o Trabalho Filantrópico do Reino.

I ) Antes de o ministério de Jesus começar, seu antecessor havia aparecido na região despovoada da Judeia pregando e dizendo: “Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus (M t 3.2)”. Algum tempo depois de sua eleição, os doze apóstolos foram enviados para as cidades e vilas da Galiléia para repetir a mensagem de João Batista. Mas o próprio Senhor Jesus fez algo mais que proclamar a chegada do reino. Ele explicou a natureza do reino divino, descreveu o caráter dos seus cidadãos e estabeleceu a diferença entre os genuínos e os falsos membros da comunidade divina. Isso Ele fez parcialmente no que é comumente chamado de Sermão da Montanha, proferido logo após a eleição dos apóstolos, e parcialmente em certas parábolas proferidas aproximada­mente no mesmo período2.

No extenso discurso feito no topo da montanha, as qualificações para a cidadania no reino dos céus foram explicadas, primeiro positiva­mente, e então comparativamente.

A verdade positiva foi resumida em sete sentenças áureas chamadas Beatitudes, nas quais a felicidade do reino era representada independen­

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temente das condições exteriores e com as quais a felicidade no mundo está associada. Os bem-aventurados, de acordo com o Senhor, eram os pobres de espírito, os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os limpos de coração, os pacificadores e os que sofrem perseguição por causa da justiça (M t 5 .3-11). Dessa manei­ra eles eram abençoados, e fonte de bênçãos para a raça humana: o sal da terra, a luz do mundo aumentava sobre outros em espírito e caráter, para elevá-los, e levá-los a glorificar a Deus.

Depois, com mais detalhes, Jesus apresentou a justiça do reino e dos seus verdadeiros cidadãos, em contraste com o que tinha prevalecido. “Se a vossa justiça”, Ele disse solenemente e com ênfase, “não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no Reino dos céus” (M t 5.20); e então ilustrou e reforçou a proposição geral com uma deta­lhada descrição da falsidade em seus aspectos morais e religiosos: em seu modo de interpretar a lei moral, e em sua maneira de executar tarefas piedosas, como orações, esmolas e jejuns. Em um aspecto Ele caracteri­zou a justiça dos fariseus como superficial e técnica; em outro, como ostentadora, autocomplacente e censuradora. Em contraste com isso, Ele descreveu a ética do reino como um puro fluxo da vida, tendo a cari­dade como sua fonte principal: a moralidade do coração, não meramen­te da conduta exterior; um moralismo também amplo e universal, ultra­passando todas as barreiras arbitrárias erguidas pelo pedantismo e egoís­mo natural. Ele explicou a religião do reino como humilde, reservada, devotada do fundo do coração a Deus e às coisas celestiais. Devemos ter fé em Deus como um Pai gentil e benevolente, e contentamento, alegria, e liberdade em relação aos cuidados seculares como seus frutos. Final­mente, reservados em nossa conduta para com o profano, adversos à severidade no julgar, e não julgando de modo nenhum, deixando que os homens sejam julgados por Deus.

O discurso, do qual fizemos um rápido resumo, causou um podero­so impacto nos ouvintes. “A multidão”, lemos, “se admirou da sua dou­trina, porquanto os ensinava com autoridade” (a autoridade da sabedo­ria e da verdade) “e não como os escribas” (M t 7.28,29), que tinham meramente a autoridade que lhes era conferida por sua posição. Não é provável que a multidão ou os doze apóstolos tenham entendido o ser­

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mão, pois foi profundo e grandioso, e suas mentes estavam ocupadas com idéias muito diferentes do reino que estava por vir. Contudo, a intenção de tudo o que foi dito era clara e simples. O reino do qual Jesus é tanto Rei quanto Legislador não é desse mundo: não está aqui ou ali, em espaço, mas dentro do coração do homem; não é um monopólio de nenhuma classe ou nação, mas aberto a todos os que o aceitarem, em termos iguais. Em nenhum momento foi dito no sermão que rituais para qualificação, como a circuncisão, fossem indispensáveis para a admissão no reino. Mas a circuncisão é aqui ignorada, como foi ignorada nos ensinamentos de Jesus. Ela é tratada simplesmente como algo fora de lugar, que não pode ser presa à doutrina estabelecida; uma incongruên­cia cuja simples menção traria um sentido grotesco. A simplicidade e a verdade são tão evidentes que qualquer um pode perceber, rapidamente, que as Beatitudes não incluem nada como: Bem aventurados são os cir- cuncidados, pois nenhum incircunciso entrará no Reino dos céus. Esse silêncio significativo em relação ao selo da aliança nacional não poderia deixar de causar dúvidas na mente dos discípujos; porém não fazia parte da nova aliança.

Jesus procurou popularizar as importantes verdades que foram pri­meiramente ensinadas de forma didática, em úm discurso ético, usando parábolas. No decorrer de seu ministério Ele usou muitas parábolas, sen­do esta a sua forma favorita de instrução. Das trinta3 parábolas preserva­das nos Evangelhos, a maioria foi de caráter ocasional, e são melhor compreendidas quando vistas em conexão com as circunstâncias em que foram usadas. Mas existem oito parábolas especiais que parecem ter sido proferidas no mesmo período, e designadas para servir a um objetivo; em outras palavras, para apresentar em simples ilustrações os excelentes temas do Reino dos céus em sua natureza e progresso, e em suas relações com as diversas classes dos homens. Uma dessas, a parábola do semea­dor, aparentemente a primeira a ser proferida, mostra a diferente recep­ção oferecida à palavra do Reino por várias classes de ouvintes, e os variados temas da vida deles. Duas — as parábolas do joio e do trigo e da rede lançada ao mar — descrevem a mistura dos bons e dos maus que deveria existir no Reino até o fim, quando acontecerá a grande separação final. Outro par de parábolas curtas — a do tesouro escondido em um

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campo e a da pérola preciosa — explica a incomparável importância do Reino e da cidadania nele. Outras duas — a do grão de mostarda e a do fermento escondido em três medidas de farinha — explicam como o Reino avança de um início pequeno para um grande final. Uma oitava parábola, apenas encontrada no Evangelho de Marcos, ensina que o cres­cimento no reino divino se dá em estágios, análogos à situação da erva, que se torna uma espiga, e, por último, o grão cheio na espiga4.

Essas parábolas, ou a maioria delas, foram proferidas para uma audi­ência mista; e considerando uma resposta de Jesus a uma pergunta feita pelos discípulos, pode parecer que elas foram principalmente dirigidas ao populacho ignorante. A pergunta foi: “Por que lhes falas por parábolas?” e a resposta, “a vós é dado conhecer os mistérios do Reino dos céus, mas a eles não lhes é dado” (M t 13.10); o que parece implicar que no caso dos doze apóstolos tais visões elementares da verdade — como um sermão tão simples, por assim dizer — podiam ser dispensadas. Jesus, no entanto, quis dizer que as parábolas não eram tão importantes para eles quanto para os ouvintes comuns; eram apenas alguns dentre os vários meios da graça pelos quais no final eles se tornariam escribas instruídos acerca do Reino, familiarizados com todos os seus mistérios, e capazes, como um sábio pai de família que tira do seu tesouro co isa s novas e velhas5; enquan­to para as multidões as parábolas eram indispensáveis, como a única chance de ter um vislumbre dos mistérios do Reino.

Fica claro que os doze apóstolos não estavam acima das parábolas pois perguntavam e recebiam do Mestre explicações a respeito delas, em particular. Provavelmente tenham recebido explicações de todas as pará­bolas, embora apenas a interpretação de duas delas — a do semeador, e a do joio e do trigo — sejam apresentadas nos Evangelhos6. Ainda eram apenas como crianças; as parábolas eram lindas estórias para eles, mas talvez não as compreendessem em sua profundidade. Mesmo depois de terem recebido explicações particulares de seus significados, eles prova­velmente não se tornaram mais sábios do que eram antes, embora te­nham dito que estavam satisfeitos7. As palavras dos discípulos eram, sem dúvida, sinceras: eles falavam o que sentiam; mas falavam como crianças, entendiam como crianças, pensavam como crianças e tinham muito a aprender sobre esses divinos mistérios.

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Quando as crianças atingiram a maturidade espiritual, e compre­enderam totalmente esses mistérios, elas deram muito mais valor à felici­dade que sentiram nos anos anteriores, e por serem privilegiadas de ou­vir as parábolas de Jesus. Temos um interessante memorial da profunda impressão produzida em suas mentes por esses simples retratos do Rei­no. Como reflexo de tudo isso, o primeiro evangelista finaliza o relato que faz dos ensinos de Cristo através de parábolas: “Tudo isso”, ele observa, “disse Jesus por parábolas... para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta, que disse: Abrirei em parábolas a boca; publicarei coisas ocultas desde a criação do mundo”8. A citação (do Salmo 78) diverge significativamente tanto do hebraico original quanto da versão da Septuaginta9. Mateus conscientemente adaptou as palavras para ex­pressar a originalidade absoluta dos ensinos nos quais ele encontrou o cumprimento dessas Escrituras. Enquanto o salmista proferiu palavras obscuras dos tempos antigos da história de Israel, Jesus, em suas parábo­las, falou de coisas que haviam estado ocultas desde a criação do mundo. Isso não foi um exagero da parte do evangelista. O uso de parábolas como um veículo de instrução era tudo, menos novo, porém as verdades expressas nas parábolas eram todas novas. Elas eram realmente a eterna verdade do Reino celestial, mas até os dias de Jesus ainda não haviam sido anunciadas. As coisas terrenas sempre tinham sido apropriadas para simbolizar as divinas; mas até o grande Mestre aparecer, ninguém jamais havia pensado em ligá-las, para que uma pudesse se tornar o espelho da outra, revelando as profundezas de Deus para as pessoas comuns: assim como ninguém, antes de Isaac Newton, havia pensado em ligar a queda das maçãs à revolução dos corpos celestes, embora as maçãs sempre ti­vessem caído no chão desde a criação do mundo.

2 ) As coisas que os discípulos tiveram a felicidade de ver em cone­xão com o trabalho filantrópico do Reino foram tão maravilhosas quan­to aquelas que ouviram na companhia de Cristo. Eles foram testemu­nhas oculares dos eventos que Jesus mandou os mensageiros de João reportarem ao seu mestre na prisão, como uma inquestionável evidência de que Ele era o Cristo que havia de vir10. Na presença deles, como espectadores, homens cegos ganharam a visão, aleijados andaram, lepro­sos foram curados, surdos recuperaram a audição e pessoas mortas vol-

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taram a viver. O desempenho de obras tão maravilhosas foi por um tem­po a ocupação diária de Cristo. Ele andou pela Galiléia e por outras regiões, “fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do diabo”11. Os “milagres” contados em detalhes nos Evangelhos não dão idéia da extensão e da duração dessas maravilhosas operações. O leproso curado na descida da montanha, quando o grande sermão foi proferido, o servo doente do centurião romano recuperado com saúde e força, a sogra de Pedro curada de uma febre, a libertação do endemoninhado na sinagoga de Cafarnaum, o filho da viúva trazido de volta à vida enquanto estava sendo levado para o enterro — esses, e outros semelhantes a esses, são algumas amostras selecionadas de uma incontável multidão de ações não menos extraordinárias, milagres ou atos de bondade do Senhor. A verda­de dessa declaração aparece em parágrafos de freqüente recorrência nos Evangelhos, que relatam não milagres individuais, mas um número inde­finido deles feitos em massa. De tais parágrafos tome como exemplo o seguinte, que narra as obras realizadas por Jesus no final de um dia ata­refado: “E, tendo chegado a tarde, quando já estava se pondo o sol, trouxeram-lhe todos os que se achavam enfermos e os endemoninhados. E toda a cidade se ajuntou à porta. E curou muitos que se achavam enfermos de diversas enfermidades e expulsou muitos demônios”12. Isso foi o que aconteceu em um único entardecer de sábado em Cafarnaum, logo após o Sermão da Montanha; e tais cenas parecem ter sido comuns no ministério de Jesus, como podemos ler um pouco mais adiante no mesmo Evangelho: “E ele disse aos seus discípulos que lhe tivessem sempre pronto um barquinho junto dele, por causa da multidão, para que o não comprimisse, porque tinha curado a muitos, de tal maneira que todos quantos tinham algum mal se arrojavam sobre ele, para lhe tocarem”13. E ainda outra vez Marcos conta: “E foram para uma casa. E afluiu outra vez a multidão, de tal maneira que nem sequer podiam comer pão”14.

A inferência sugerida nessas passagens como a vasta extensão dos trabalhos de Cristo entre os sofredores, surgiu pelas impressões que cau­saram nas mentes tanto dos amigos quanto dos adversários. Os adversá­rios do evangelho estavam tão impressionados com o que viam, que con­sideraram necessário elaborar uma teoria para expressar o que pensa­vam sobre a grande influência exercida por Jesus na cura do físico, espe­

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cialmente na cura das enfermidades espirituais. Eles disseram: “Tem Belzebu e pelo príncipe dos demônios expulsa os demônios (M c 3.22)”. Esta era uma teoria absurda, como o próprio Senhor Jesus mostrou; mas foi pelo menos uma evidência conclusiva de que os demônios foram expulsos, e em grande quantidade.

Os pensamentos dos afetados de maneira positiva pelas obras de Jesus foram vários, mas todos que foram relatados envolvem o testemu­nho da sua vasta atividade e extraordinário zelo. Alguns, provavelmente parentes, consideraram-no louco, achando que o entusiasmo tinha per­turbado a sua mente, e por compaixão procuravam salvá-lo para que não causasse nenhum dano a si mesmo através da excessiva solicitude de fa­zer o bem a outros15. Os sentimentos das pessoas que tinham recebido os seus benefícios eram mais devotos. “E a multidão, vendo isso, mara­vilhou-se e glorificou a Deus, que dera tal poder aos homens”16; não estavam, naturalmente, inclinados a criticar um “entusiasmo de humani­dade” através do qual eles mesmos haviam sido beneficiados.

As impressões contemporâneas dos doze apóstolos em relação às ações do seu Mestre não são registradas; mas em suas reflexões subse­qüentes como apóstolos, temos uma interessante amostra nas observa­ções feitas pelo primeiro evangelista, em seu relato dos acontecimentos daquela noite de sábado em Cafarnaum, já aludidas. O devoto Mateus, de acordo com o seu costume, viu nessas maravilhosas obras o cumpri­mento das Escrituras do Antigo Testamento; e a passagem onde encon­trou o cumprimento foi o tocante oráculo de Isaías: “Verdadeiramente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si” (Is 53.4); e, partindo da Septuaginta, ele o tornou adequado ao seu propósito, interpretando: “Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e levou as nossas doenças”17. Alguns tradutores gregos interpretaram o texto como se referindo às enfermidades espirituais dos homens — os seus pecados18; mas Mateus não considerou uma interpretação errada nem uma degradação das palavras por encontrar nelas a profecia da pro­funda solidariedade do Messias com sofredores de quaisquer enfermi­dades, espirituais ou mentais, ou meramente físicas. Ele não sabia como expressar melhor a intensa compaixão do seu Senhor para com os sofre­dores, do que representá-la em linguagem profética mostrando que Ele

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tomou sobre si mesmo as nossas enfermidades. Mateus não distorceu o pensamento do profeta nessa interpretação. Antes, estabeleceu os alicer­ces de uma inferência à fortiori em que mostrava uma simpatia ainda mais intensa por parte do Salvador para com os doentes espirituais. Certa­mente, aquele que tanto cuidou dos corpos dos homens cuidaria ainda mais de suas almas. Com certeza seria seguro antecipar que Ele, que era tão admirável e conhecido como alguém que curava as enfermidades do corpo, se tornaria ainda mais famoso como aquele que salva dos pecados.

As obras que os doze apóstolos tiveram o privilégio de ver eram realmente preciosas, e todas dignas do Rei Messiânico. Elas serviram para demonstrar que o Rei e o Reino não estavam apenas vindo, mas já tinham chegado; pois o que mais poderia indicar a sua presença que o perdão caindo como “chuva serôdia que rega a terra” (Os 6.3)? João realmente parece ter pensado o contrário quando mandou perguntar a Jesus se Ele era o Cristo que estava por vir. Em nossa opinião, ele pode ter considerado que um trabalho de julgamento sobre os impenitentes seria uma prov^ mais confiável da chegada do Messias, do que os mila­gres de misericórdia. A situação de insatisfação e descontentamento de João, além do ambiente da prisão, subtraiu o melhor de seu coração e de sua capacidade de julgamento. João sentia o mesmo mau humor de Jonas, que estava descontente com Deus não porque Ele fosse muito severo, mas por ser excessivamente bondoso e extremamente disposto a perdoar.

O menor no Reino dos céus mostra-se agora incapaz de sentir-se ofendido com essas obras de nosso Senhor, que são fruto de sua miseri­córdia para com os necessitados. A ofensa em nossos dias está em dire­ção diferente. Os homens erram quanto aos milagres vistos pelos discí­pulos e relatados pelos evangelistas. A misericórdia, dizem, é divina, mas os milagres são impossíveis; e pensam que fazem bem ao serem céticos. Fazem uma exceção, realmente, a favor de alguns milagres de cura, por­que não é considerado impossível que estes possam acontecer no curso da natureza, e assim deixarem de pertencer à categoria dos milagres. Os “terapeutas morais” podem contribuir para essa situação -— um depar­tamento de ciência médica que o senhor Matthew Arnould pensa não ter sido ainda de modo algum suficientemente estudado19. Todos os outros milagres além daqueles trabalhados por terapeutas morais são conside­

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rados fabulosos. Mas por que não estender o domínio da moral sobre o físico e dizer sem qualificação: A misericórdia faz parte do caráter de Deus, portanto obras como aquelas que foram feitas por Jesus poderiam ser consideradas naturais? Assim consideram os escritores do Evange­lho. O que lhes interessava não era o aspecto sobrenatural das curas e milagres realizados por Cristo, mas a insondável e incomensurável pro­fundidade da divina compaixão que elas revelaram. Alguns pensam que não há vestígios desse amor nessas maravilhas, nem nos Evangelhos nem nas Epístolas; para estes, os discípulos talvez tenham experimentado esse sentimento quando a época das maravilhas explodiu pela primeira vez diante de seus olhos atônitos, mas perderam-no completamente quando os livros do Novo Testamento começaram a ser escritos20. Ao longo do Novo Testamento os milagres são contados de maneira sóbria, em um tom equilibrado. Como isso pode ser explicado? Uma explicação é que os apóstolos tinham visto tantos milagres enquanto estiveram com Je­sus, que não os expressaram com a ênfase esperada. Alguns entendem que eles já não se maravilhavam como dufante os primeiros milagres, por terem visto muitos milagres. Mas nunca deixaram de admirar a gra­ça do Senhor. O amor de Cristo permaneceu neles durante toda a vida como algo que lhes transmitia conhecimento; e quanto mais viviam, mais reconheciam cordialmente a verdade das palavras de seu Mestre: “Bem- aventurados os olhos que vêem o que vós vedes” (Lc 10.23).

1 Lucas 10.23-24. Os autores da Versão Revisada introduziram muitas mudanças na Versão Autorizada pela estrita interpretação dos tempos verbais, e especialmente os aoristos, o s quais na versão antiga são freqüentemente tratados como perfeitos. Podem ter levado isso muito adiante, mas, no todo, prestaram um bom serviço neste particular.

2 Fica claro em Marcos 10.10 que a eleição dos doze apóstolos precedeu as parábolas: “Os que estavam junto dele com os doze interrogaram-no acerca da parábola”.

3 Esse número é apenas uma estimativa aproximada. Os diferentes escritores estimam um número diferente de parábolas, de acordo com a definição de parábola adotada por cada um deles, bem como o método de tratar a coleção de parábolas.

4 Marcos 4.265 Mateus 13.526 Marcos 4.347 Mateus 13.518 Mateus 13.34-359 ereuxomai kekrummena apo katabolês kosmou (Mateus); ’abbiâ lídótb minni~qedem (hebraico); phtbenxomaiproblemata ap’arcbes

(Septuaginta)

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10 Mateus 11.211 Atos 10.3812 Marcos 1.32-3413 Marcos 3.9-10 f ^14 Marcos 3 .19— Mc 'br- ^15 Marcos 3.2116 Mateus 9.817 Mateus 8.1718 boutos tas hamartias hêmõn pberer19 literature and Dogma, página 143, 4a edição.20 Isaac Taylor, na obra The Restauration o f Belief, encontra nesse fato um argumento para a realidade dos milagres,

alegando que a maneira pela qual são relatados nas Escrituras mostra que foram fatos gloriosos e excelentes para a época (vide páginas I2 8 -2 II).

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Lições sobre a OraçãoMateus 6 .5-13; 7 .7 -11; Lucas I I .I -I3 ; I8 .I-5

TJL eria sido motivo de surpresa se, entre os vários assuntos sobre os quais Jesus deu instruções aos seus discípulos, a oração não tivesse ocu­pado um lugar proeminente. A oração é uma necessidade na vida espiri­tual, e todos aqueles que tentam orar seriamente, logo sentem a necessi­dade de aprender como fazê-lo. E qual seria o tema que estaria mais de acordo com os pensamentos de um Mestre que foi, enfaticamente, um homem de oração e freqüentemente passava noites inteiras orando em comunhão com o seu Pai celestial?1

Concluímos, de acordo com este raciocínio, que a oração era um assunto sobre o qual Jesus conversava freqüentemente com os seus discí­pulos. No Sermão da Montanha, por exemplo, Ele dedicou um parágra­fo inteiro a esse tópico, no qual alertou seus ouvintes contra as ostenta­ções hipócritas dos fariseus e as repetições gentílicas, e recitou uma for­ma de devoção como um modelo de simplicidade, compreensão e brevi­dade2. Em outras ocasiões, Ele direcionou a atenção à necessidade, a fim de que a oração fosse constante e aceitável trazendo perseverança3, har­monia4, o fortalecimento da fé5, e grande expectativa6.

A passagem relacionada ao décimo primeiro capítulo do Evangelho de Lucas nos dá uma explicação sobre aquela que pode ser considerada a mais completa e abrangente de todas as lições dadas por Jesus aos seus discípulos, sobre o importante assunto com o qual está relacionada. As circunstâncias em que essa lição foi dada são interessantes. A própria lição sobre a oração foi uma resposta a uma oração. Um discípulo, pro­vavelmente um dos doze apóstolos7, depois de ouvir Jesus orar, fez o

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seguinte pedido: “Senhor, ensina-nos a orar, como também João ensi­nou aos seus discípulos”. Juntos, o pedido e sua ocasião, nos dão duas informações. Do pedido percebemos que Jesus, além de orar muito sozi­nho, também orava na companhia de seus discípulos, fazendo orações familiares como um pai de família, da mesma forma que fqzia suas ora­ções em particular, em comunhão pessoal com Deus, seu Pai. Da oca­sião, percebemos que as orações sociais ou públicas de Jesus eram comoventes. Ao ouvi-las os discípulos ficaram dolorosamente conscien­tes de sua própria incapacidade, e depois do amém mostraram-se instin­tivamente prontos a fazer o seguinte pedido: “Senhor, ensina-nos a orar”, como se sentissem vergonha de tentar o exercício com suas próprias palavras fracas, vagas e intermitentes.

Não sabemos quando essa lição foi dada, pois Lucas introduz sua narrativa sobre esse tema de maneira mais indefinida, sem mencionar nem a ocasião, nem o lugar. A referência a João Batista, no passado, parece indicar uma data subseqüente à de sua morte; mas o modo da expressão seria suficientemente explicado pela suposição de que o discí­pulo que fez o pedido havia previamente sido um discípulo de João Batista8. Nenhuma inferência correta pode ser extraída do conteúdo dessa lição. E uma lição que deve ter sido dada aos doze apóstolos em qual­quer época durante o seu discipulado, quando estavam preocupados com as suas necessidades espirituais. Esta é uma lição para “crianças”, ou seja, cristãos no estágio inicial da vida com Deus, aqueles que estão aflitos, mentalmente confusos, emudecidos, abatidos, incapazes de orar com pensamentos claros, palavras apropriadas, e acima de tudo, com a fé que ensina a esperar sem perder a esperança. E ela supre as suas necessi­dades sugerindo tópicos, ensinando formas de linguagem, e preenchen­do a sua fraca fé com argumentos convincentes sobre a perseverança. Essa era a situação dos doze apóstolos durante o período que estiveram com Jesus, até Ele ascender ao céu, e o poder descer do céu sobre eles trazendo consigo a facilidade para falar e a largueza de coração. Durante todo o período de seu discipulado, precisavam estar preparados para orar como uma mãe que está sempre preparada para atender os seus filhos. Precisavam também de exortações à perseverança no hábito de orar, assim como convém aos mais humildes seguidores de Cristo. Lon-

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ge de estarem isentos de tais fraquezas, os doze apóstolos talvez até tenham tido essa experiência em um grau superlativo. Quando se trata das experiências espirituais, os pontos mais altos estão relacionados à profundidade tanto da dedicação quanto da experiência. Homens que são destinados a ser apóstofos devem, como discípulos, ter a grande capacidade de enfrentar condições caóticas e indescritíveis, conhecendo a grande e cansativa, porém a mais saudável tarefa que é esperar de Deus a luz, a verdade e a graça, tão desejadas, e às vezes contidas.

Convinha à igreja que os seus primeiros ministros tivessem essas lições sobre a oração; porque chega a hora, na maioria dos casos, se não em todos, em que aqueles que estão espiritualmente determinados pre­cisam da grande oportunidade de ter esse ensino. Na primavera da vida com Deus e no belo florescer da piedade, os cristãos poderão orar com fluência e fervor, sem qualquer embaraço de palavras, pensamentos, e sentimentos de qualquer espécie. Mas esse estágio feliz logo passa, e é sucedido por outro no qual a oração freqüentemente se torna um gran­de esforço, um gemido mal articulado, um silêncio angustiado e deses­perado que aguarda a Deus, fazendo com que sintam-se tentados a duvi­dar de que Deus realmente ouve as orações, ou ainda a questionar se as orações não são perda de tempo ou até mesmo inúteis. As três necessida­des contempladas e providas nessa lição — a necessidade de idéias, de palavras, e de fé — são tão comuns quanto dolorosas. Quanto tempo é necessário para atender até o mais simples pedido da oração do “Pai Nosso” com o seu significado definitivo! O segundo pedido, por exem­plo, “Venha o teu Reino”, pode ser apresentado com perfeita inteligên­cia apenas por, dessa maneira, ter formado para eles mesmos uma clara concepção do Reino ou da comunidade ideal. Quão difícil e, portanto, quão raro, é encontrar palavras aceitáveis para pensamentos preciosos calmamente alcançados! Quantos, que nunca conseguiram o que deseja­ram sem ter precisado pedir com freqüência e esperado muito para recebê- lo (uma experiência comum), sentiram-se tentados, por causa da demo­ra, a desistir de pedir mesmo em meio ao desespero! E não é de admirar; porque, em todos os casos, é difícil suportar a demora, especialmente em conexão com as bênçãos espirituais que são, de fato, e por Cristo, aqui admitidas como o principal objeto de desejo dos cristãos. Almas

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devotas não deveriam ser confundidas pela demora, ou até pela recusa com relação aos bens meramente temporários; porque deveriam saber que coisas como saúde, riqueza, cônjuge, filbos, lar e posição, não são incondicionalmente boas, e às vezes pode ser bom não tê-las, ou ainda não obtê-las tão facilmente ou muito cedo. Porém alguém pode se sentir ainda mais confuso ao desejar, de todo o coração, o Espírito Santo e, contudo, essa bênção de valor incalculável parecer ter-lhe sido negada; orar pela luz e ao invés dela receber a profunda escuridão; orar por fé e ser atormentado com dúvidas que balançam estimadas convicções em seus alicerces; orar por santidade e ter, aparentemente, a lama da corrupção lançada na fonte da vida eterna que está no fundo do coração.Tudo isso, como todo cristão experiente sabe, ainda é parte da disciplina pela qual os estudantes da escola de Cristo têm que passar antes dos desejos de seu coração serem realizados9.

A lição sobre a oração, ensinada por Cristo em resposta ao pedido de seus discípulos, consiste em duas partes; em uma delas os pensamen­tos e as palavras são colocados nas bocas d©s discípulos imaturos, en­quanto a outra provê ajuda na fé em Deus, por ser aquele que atende as orações. Existe primeiro uma forma de orar, e então um argumento re­forçando a perseverança na oração.

A forma de orar, normalmente chamada de “Pai Nosso”, que apa­rece no Sermão da Montanha como um modelo do tipo certo de ora­ção, traz um resumo dos tópicos gerais sob os quais todo pedido especi­al está compreendido. Podemos chamar essa forma de alfabeto de todas as possíveis orações. Ela engloba os elementos de todos os desejos espiritu­ais, resumidos em algumas sentenças escolhidas, para o benefício daque­les que podem não ser capazes de expressar suas difíceis aspirações com uma linguagem articulada. Ela contém ao todo seis pedidos, dos quais os três primeiros se referem à glória de Deus, e os três restantes ao bem do homem. Somos ensinados a orar primeiro pela vinda do Reino divi­no, na forma de reverência universal ao nome de Deus, e obediência universal à sua vontade; e então, em segundo lugar, pelo pão cotidiano, perdão, e proteção contra o mal. Esta oração é, como um todo, direcionada a Deus como o nosso Pai, e devemos agir de acordo com esse preceito para termos comunhão uns com os outros, como membros de uma fa-

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mília Divina, e assim dizermos: “Pai Nosso”. Esta oração não termina com as palavras, “em Nome de Jesus Cristo”, e nem poderia, uma vez que ela procede de Jesus. Nenhuma oração ensinada pelo Senhor aos seus discípulos, para ser proferida antes de sua morte, poderia terminar com tais palavras finais, porque a súplica que ela conteria não seria inte­ligível para eles antes daquele evento. Os doze apóstolos ainda não co­nheciam completamente o poder do Nome de Jesus Cristo; somente o conheceriam depois do seu Senhor ter ascendido e o Espírito ter desci­do e lhes revelado o verdadeiro significado dos fatos da história de Jesus Cristo na terra. Por esta razão, encontramos Jesus, na noite de sua Pai­xão, dizendo aos seus discípulos que até aquela hora eles não tinham pedido nada em seu nome; e então representou o uso do seu nome como uma súplica que seria ouvida, como um dos privilégios que teriam no futuro. “Até agora”, Ele disse, “nada pedistes em meu nome; pedi e recebereis, para que a vossa alegria se cumpra”10. E em uma outra parte do seu discurso: “E tudo quanto pedirdes em meu nome, eu o farei, para que o Pai seja glorifiçado no Filho”11.

Não sabemos por quanto tempo os discípulos fizeram uso dessa bonita, simples e profundamente significativa forma de orar; mas se pode concluir que adquiriram o hábito de repeti-la, como os discípulos de João Batista devem ter repetido as formas de orar que aprenderam com o seu mestre. Não existe, portanto, nenhuma razão para pensar que o “Pai Nosso” (ou “a oração do Senhor”), embora de valor permanente como parte dos ensinos de Cristo, tenha sido designado para ser um método estereotipado e obrigatório de se dirigir ao Pai celestial. O “Pai Nosso” foi designado para ser uma ajuda aos discípulos inexperientes, e não uma regra imposta aos apóstolos12. Mesmo depois de terem alcançado a ma­turidade espiritual, os doze apóstolos podiam usar essa forma se quises­sem, e possivelmente a tenham usado ocasionalmente. Mas Jesus espera­va que quando se tornassem mestres na igreja, superassem a necessidade de ter esta ajuda para a devoção. Cheios do Espírito, com corações dila­tados, amadurecidos no entendimento espiritual, deveriam então ser ca­pazes de orar como o seu Senhor tinha orado quando estava com eles; e embora os seis pedidos que constam na oração-modelo ainda estivessem presentes em todas as suas súplicas diante do trono da graça, participa­

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riam somente como os verbetes de uma língua participam do mais elo­qüente discurso de um palestrante, que nunca pensa sobre como as letras das palavras que profere são compostas13.

Ao manter o caráter pro tempore e provisional do “Pai Nosso” com relação aos doze apóstolos, não enfatizamos o fato, já advertido, de que esta oração não termina com a frase “em Nome de Jesus Cristo”. A falta dessa expressão poderia ser, posteriormente, facilmente preenchida mental ou oralmente e, portanto, não haveria uma razão válida para não usá-la. A mesma observação se aplica ao uso que fazemos da oração em ques­tão. Deixar essa forma cair em desuso meramente pela ausência da súpli­ca habitual conclusiva é tão errado quanto a excessiva repetição dessa oração. O “Pai Nosso” não é nem uma composição de Deísmo indigno de um cristão, nem um talismã como o Pater Noster da devoção católica romana. O fiel mais evoluído geralmente encontra alívio e descanso para a sua alma ao refletir sobre as simples e sublimes sentenças, enquanto mentalmente percebe os muitos particulares que cada uma inclui. E na­tural, no caso daqueles que estão iniciando a sua vida de oração e a sua vida espiritual em geral, que a sua devoção consista exclusivamente, ou até principalmente, em repetir as palavras que Jesus ensinou aos seus imaturos discípulos.

O ponto de vista agora defendido com relação ao objetivo do “Pai Nosso” está em harmonia com o espírito de todos os ensinos de Cristo. Formas litúrgicas e métodos religiosos em geral eram muito mais apro­priados na rigorosa escola ascética de João Batista do que na escola livre de Jesus. Nosso Senhor evidentemente deu pouca importância às for­mas de orar, como também a períodos fixos para o jejum; caso contrário, Ele não teria esperado até lhe pedirem para ensinar uma forma, mas teria feito uma provisão sistemática para as necessidades dos seus seguidores — assim como fez João Batista, por assim dizer — redigindo um livro de devoção ou compondo uma liturgia. E evidente que, mesmo nas ins­truções presentes sobre esse tema, Jesus considerou a forma que forneceu como tendo uma importância relativa: um remédio meramente temporá­rio para um mal menor (a necessidade de expressão), até que o mal maior (a necessidade de ter mais fé) fosse curado; pois a maior parte da lição é dedicada ao propósito de providenciar um antídoto para a descrença14.

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A segunda parte dessa lição sobre a oração tem a finalidade de trans­mitir a mesma moral que está contida na parábola do juiz iníquo — “sobre o dever de orar sempre e nunca desfalecer”. A suposta causa do desfalecimento é também a mesma, e pode também ser considerada a razão da demora da parte de*Deus para responder as nossas orações. Isso realmente não é tão óbvio nas primeiras lições quanto nas posterio­res. A parábola do amigo inoportuno não é adaptada para transmitir a idéia de uma longa espera; pois neste caso o favor pedido, se concedido, é atendido em poucos minutos.

Mas, o lapso de tempo que decorre entre solicitar e receber a dádiva de nossas súplicas é algo lógico e natural que está implícito e pressupos­to. E usando de uma certa protelação que Deus, mesmo sendo bondoso, parece estar nos dizendo aquilo que o vizinho disse ao seu amigo, e que nos leva a pensar que é inútil orar.

Cristo contou essas duas parábolas a fim de mostrar aos discípulos que uma oração perseverante demonstra o poder da constância nas cir­cunstâncias mais desesperadoras. Os dois personagens, a quem o apelo foi feito, são bastante maus — um é sovina e o outro é injusto, e nada têm a nos oferecer a não ser a exploração de seu egoísmo. E nos dois casos, o ponto principal das parábolas é mostrar que a persistência tem um poder de incomodar que lhe permite a conquista de seu objetivo.

Novamente, é importante observar qual seria o propósito princi­pal da oração em relação ao argumento que está sendo agora conside­rado. O que Cristo está pretendendo é que seus discípulos se empe­nhem em sua santificação pessoal15 e isso pode ser constatado através da sentença que encerra o discurso: “Quanto mais dará o Pai celestial o Espírito Santo àqueles que lho pedirem?” Jesus tem como certo que as pessoas às quais está se dirigindo estão, em primeiro lugar, à procura do Reino de Deus e de sua justiça. Portanto, embora tenha incluído uma súplica para o pão de cada dia, sob forma de uma oração, Ele deixa esse assunto de lado na última parte de seu discurso por não ser, por suposição nossa, o principal objeto de desejo e também porque, para todos que realmente concedem ao Reino de Deus o primeiro lugar em suas preocupações, o alimento e o vestuário lhes sejam quase que automaticamente concedidos16.

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Aqueles que não desejam o Espírito Santo acima de todas as coisas Jesus nada tem a dizer. Ele não os leva a esperar que irão receber alguma coisa do Senhor, nem mesmo a justiça do Reino ou a santificação pesso­al. Ele considera as orações de um homem inconstante, que tem dois objetivos principais em vista, como um escárnio — meras palavras que nunca chegarão aos ouvidos do Senhor.

Se a demora foi a suposta causa do desfalecimento, e o suposto objeto do desejo foi o Espírito Santo, então a condição espiritual con­templada no argumento está definitivamente determinada. O propósito do Mestre é socorrer e encorajar aqueles que sentem que a obra da graça opera devagar dentro deles, estão curiosos por saber porque isso assim ocorre, e suspiram com tristeza. Esse é o estado em que, segundo imagi­namos, estavam os doze discípulos quando receberam essa lição. Havi­am se tornado dolorosamente conscientes de que eram incapazes de realizar corretamente seus deveres devocionais, e consideravam essa in­capacidade como um sinal da condição geral de seu espírito e, por con­seguinte, estavam muito deprimidos.

O argumento usado por Jesus para incutir em seus desanimados discípulos a esperança e a confiança como a derradeira realização de seus desejos caracteriza-se pela ousadia, genialidade, sabedoria e força lógica. Sua ousadia está evidenciada na escolha das ilustrações. Jesus tinha tanta confiança na excelência de sua causa que descreve o caso sob o aspecto mais desvantajoso possível para si, evitando escolher como exemplo a figura de homens bons preferindo, ao contrário, pessoas que estivessem abaixo dos padrões normais da virtude humana. Um homem que, ao ser procurado a qualquer hora da noite por um vizinho necessitado de aju­da para um caso de real emergência, como podemos supor através da parábola, ou mesmo em um caso de doença súbita, resolve rechaçá-lo com a seguinte resposta: “Não me importunes; já está a porta fechada, e os meus filhos estão comigo na cama; não posso levantar-me para tos dar”, teria realmente que sofrer o desprezo de seus amigos e se tornar um bom exemplo de todos os que são mesquinhos e insensíveis. A mes­ma presteza em se aproveitar de outro caso extremo pode ser observada no segundo argumento retirado da conduta dos pais em relação aos fi­lhos: Ele começa dizendo “E qual o pai dentre vós que, se o filho lhe

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pedir pão...”17. Jesus não está preocupado com o pai que tenha sido esco­lhido e está disposto a aceitar qualquer um deles; tanto o pior quanto o melhor, porque o argumento não está dirigido à bondade do pai mas à ausência dela, já que o objetivo é mostrar que os pais não precisam de uma bondade especial para evitar fazer aquilo que seria um ultraje ao afeto natural e revoltante aos sentimentos de toda a humanidade.

O caráter bondoso e amável do argumento manifesta-se através da simpatia e do critério que exibe. Jesus enxerga os desagradáveis pensa­mentos que os homens alimentam a respeito de Deus quando estão sob o peso de anseios não realizados; como duvidam de sua bondade e chegam a considerá-lo indiferente, insensível e injusto. Ele demonstra ter um íntimo conhecimento de seus mais secretos pensamentos atra­vés dos casos que apresenta, pois o amigo hostil e o pai desnaturado, e podemos ainda acrescentar o juiz injusto, não representam verdadeira­mente o que Deus é, ou o que Ele gostaria que acreditássemos que fosse, mas certamente o que até os homens mais piedosos às vezes imaginam qua Ele seja18. E Ele não apenas enxerga como também de­monstra sua simpatia. Ao contrário dos amigos de Jó, não encontra culpa naqueles que guardam pensamentos duvidosos e aparentemente profanos, nem os repreende por sua impaciência, desconfiança e desa­lento. Ele os trata como homens cheios de fraquezas e necessitados de simpatia, conselhos e ajuda. E, ao conceder essas graças, Ele desce ao mesmo nível de seus sentimentos e procura mostrar que, mesmo quan­do as coisas são exatamente como parecem, não há razão para desespe­ro. Ele argumenta, a partir de seus próprios conceitos sobre Deus, que ainda assim todos devem esperar por Ele. E como se o Senhor Jesus dissesse: “Suponha que Deus seja aquilo que você imagina, indiferente e insensível. Ainda assim continue a orar; veja o que a perseverança conquistou no caso que eu apresentei. Faça o seu pedido como o ho­mem que suplicava por pães e você também os receberá daquele que, nesse momento, parece estar surdo às suas súplicas. Garanto que as aparências podem ser muito desfavoráveis, mas não mais desfavoráveis em seu caso do que naquele do suplicante da parábola; e você pode observar como ele se saiu bem por não se deixar dominar tão facil­mente pelo desânimo”.

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Jesus revela sua sabedoria ao lidar com as dúvidas de seus discípu­los, ao evitar qualquer explicação elaborada sobre as causas ou razões da demorada resposta às orações e ao usar apenas argumentos apropriados à capacidade das pessoas de pouca fé e de reduzida compreensão espiri­tual. Ele procura mostrar que a santificação é um processo lento e tedi­oso e não um ato momentâneo, porque o Espírito é concedido gradual­mente e em uma medida limitada, e não de imediato e com toda libera­lidade. Ele simplesmente insiste com seus ouvintes que devem perseverar na busca do Espírito Santo e lhes assegura que, apesar dessa tão árdua demora, seus desejos serão finalmente realizados. Ele não lhes ensina qualquer filosofia de esperar em Deus, mas apenas que não irão esperar em vão.

O Mestre optou por esse método não por qualquer necessidade, mas por sua própria escolha. Embora nenhuma tentativa tenha sido feita para explicar a demora da divina graça e providência, isso não aconteceu por essa explicação ser impossível. Havia muitas coisas que Cristo pode­ria ter dito aos seus discípulos nessa ocasião, caso fossem capazes de suportar; algumas delas eles mesmos disseram mais tarde quando o espí­rito da verdade desceu sobre eles e os guiou na verdade e os fez conhecer os caminhos de Deus. Ele poderia, por exemplo, ter mostrado que a demora da qual se queixavam estava de acordo com o exemplo da natu­reza segundo a qual o crescimento gradual representa uma lei universal; que o tempo necessário para a produção dos frutos maduros do Espírito é exatamente igual ao dos frutos maduros do campo ou do pomar, e não deveriam se admirar se os frutos espirituais fossem particularmente len­tos em seu amadurecimento. Pois há uma lei de crescimento segundo a qual quanto mais elevado o produto estiver na escala da natureza, mais lento será o processo pelo qual é produzido19. E assim uma santificação momentânea, embora não seja impossível, será muito mais um milagre no sentido de uma exceção a essa lei, como foi a imediata transformação da água em vinho nas bodas de Caná. E se a santificação imediata fosse uma regra, ao invés de uma rara exceção, o Reino da graça se tornaria demasiadamente parecido com o mundo dos sonhos infantis no qual árvores, frutas e palácios surgem completamente crescidas, maduras e mobiliados, respectivamente, de um momento para outro como que por

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mágica; isto é demasiadamente diferente do mundo verdadeiro e real com o qual os homens estão familiarizados e no qual a demora, o cresci­mento e as leis estabelecidas são características invariáveis.

Jesus poderia ter ido mais longe para reconciliar seus discípulos com a idéia dessa demora dissertando sobre a virtude da paciência. Muito poderia ser dito a respeito desse tópico. Poderia ser mostrado que um caráter não poderá ser perfeito se a virtude da paciência não encontrar nele lugar, que o método gradual da santificação é o mais apropriado para o seu desenvolvimento, e que este permite um abundante escopo para a sua prática. Poderia ter sido mencionado o quanto a suprema alegria de conquistar qualquer coisa é ainda mais apreciada pela demora em consegui-la, assim como o triunfo da fé é proporcional à sua prova. Vejamos isto nas palavras singulares de quem se tornou sábio sobre esse assunto através de experiência própria e da época em que viveu: “E justo ver e sentir o formato e a costura de cada peça do vestuário nupcial e a criação, moldagem e adaptação da coroa de glória para a cabeça do cida­dão do céu”; cpmo “a repetida compreensão e freqüente experiência da graça nos altos e baixos do caminho, o cair e novamente levantar do peregrino, as revoluções e as mudanças da condição espiritual, a lua nova, a lua obscura e a lua cheia na maré vazante e crescente do Espírito fize­ram surgir no coração dos santos em seu caminho para o país celestial o doce perfume da rosa mais formosa, do Lírio dos Vales e da Rosa de Sarom”; e como, “os viajantes da noite falam sobre seus hábitos impu­ros e os louvores de seu guia. E tendo a batalha chegado ao fim, os soldados contam as suas vítimas, exaltam o valor, a habilidade e a cora­gem de seu líder e capitão”, e da mesma forma “será apropriado que os soldados glorificados levem consigo para o céu abundante experiência da generosa graça e lá chegando falem de sua vida e de sua terra e louvem àquele que redimiu a todos, de todas as nações, povos e línguas”20 .

Tais considerações, embora justas, não seriam completamente apli­cáveis a homens que tinham a condição espiritual dos discípulos naquele momento. As crianças não têm qualquer simpatia com o crescimento em nenhum lugar no mundo, quer se trate do crescimento natural ou do crescimento na graça. Não as agradaria saber que uma bola se transfor­masse imediatamente em um carvalho, e que em apenas poucos minutos

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este produzisse um broto que imediatamente se tornasse um fruto ma­duro. Portanto, é inútil falar das qualidades da paciência a pessoas inexperientes; pois o valor moral da disciplina produzido pelas provas não pode ser apreciado até que as provas passem. Portanto, conforme já mencionado antes, Jesus se absteve completamente de lhes ensinar lições como estas, preferindo adotar um estilo de raciocínio simples e popular que até mesmo uma criança seria capaz de compreender.

O raciocínio de Jesus, embora bastante simples, é muito convincen­te e conclusivo. O primeiro argumento — contido na parábola do vizi­nho egoísta — é adequado para inspirar a esperança em Deus, mesmo nas horas mais sombrias, quando Ele parece estar indiferente às nossas súplicas ou positivamente indisposto a ajudar, e dessa forma somos in­duzidos a perseverar em nossas orações. “O homem que queria os pães bateu à porta cada vez com maior força, com uma impertinência que não conhecia vergonha21, e por não aceitar recusa acabou conquistando seu objetivo. O amigo egoísta teve, afinal, que se contentar em levantar e servi-lo somente por consideração ao seu próprio conforto, pois era simplesmente impossível dormir com tal barulho; portanto (esse é o curso do argumento) continue a bater à porta do céu e você obterá o que deseja, mesmo que seja para livrarem-se de você. Veja nessa parábola o poder da impertinência em uma hora extremamente inoportuna — à meia-noite — e com a pessoa mais desfavorável, que prefere seu próprio conforto ao bem de seu vizinho; portanto, peça persistentemente e lhe será concedido, procure e encontrará, bata e a porta se abrirá para você”.

Na verdade, existe um ponto em que esse argumento tão patético e simpático parece ter um lado frágil. Na parábola, o solicitante tinha o amigo egoísta em seu poder por ser capaz de incomodá-lo e impedir que dormisse. Agora, o desanimado e atormentado discípulo, a quem Jesus desejava confortar, poderia responder: “Que poder tenho eu para inco­modar a Deus, que reside no alto, muito além do meu alcance, em sua imperturbável felicidade? Oh! Se eu pudesse encontrá-lo, se pudesse chegar até o seu trono! Mas, olhe, quando caminho à frente, Ele não está lá; caminho para trás, mas não o percebo; se opera à mão esquerda, não o vejo; caso se oculte à mão direita não o diviso”22. Essa objeção raramente deixa de ocorrer ao perspicaz espírito do desesperado e devemos admitir

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que ela nada tem de frívola. Nesse ponto realmente existe a necessidade de entender melhor a analogia. Podemos incomodar um homem em sua cama, como o vizinho que não era generoso ou o juiz injusto, mas não somos capazes de incomodar a Deus. A parábola não sugere a verdadeira explicação para a divina demora na concessão das súplicas, ou o supre­mo sucesso da importunação. Ela simplesmente prova, através de um exemplo simples, que a demora ou a aparente recusa, por qualquer que seja a sua causa, não é necessariamente final e, portanto, que não existe uma boa razão para desistir de suplicar.

Esse é um verdadeiro serviço a ser prestado, embora não seja muito grande. Mas o discípulo incrédulo, além de descobrir com característica precisão o que a parábola está deixando de provar, pode não ser capaz de extrair nenhum conforto daquilo que ela realmente está provando. Vol­temos para a forte afirmação que Jesus usou para acompanhar a parábo­la: “E eu vos digo a vós”. Aqui, sem dúvida, encontra-se uma máxima infalível daquele que pode falar com autoridade; daquele que já esteve no seio do Deus eterno e que veio para revelar o íntimo de seu coração aos homens, que na escuridão da natureza tateavam em busca dele a fim de, se possível, encontrá-lo. Quando Ele se dirige a nós em termos tão enfáticos e solenes como esses: “E eu vos digo a vós: Pedi, e dar-se-vos- á; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á”, podemos confiar em sua palavra, no mínimo visando um benefício pro tempore. Mesmo aqueles que têm dúvidas do poder da oração, por causa da constância das leis da natureza e da imutabilidade dos propósitos divinos, podem crer na Pala­vra de Cristo quando diz que a oração nunca é em vão, mesmo em relação ao pão de cada dia, sem falar em assuntos mais elevados, até alcançar uma certeza maior sobre o assunto que aquela que visam no momento. Estas pessoas poderão até mesmo desprezar a parábola consi­derando-a infantil, ou por transmitir idéias simples demais sobre o ser divino; mas não poderão desprezar as deliberadas declarações daquele a quem consideram como o melhor e o mais sábio dos homens.

O segundo argumento empregado por Jesus para insistir na perse­verança na oração tem a natureza de um reductio a i absurdum* e termina com uma conclusão à fortiori. Segundo ele, se Deus se recusasse a ouvir a oração de seus filhos, ou ainda pior, se caçoasse deles dando-lhes alguma

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coisa que aparentasse ter uma semelhança apenas superficial com o que foi pedido somente para provocar um amargo desapontamento, quando o engano fosse descoberto Ele não seria considerado somente mau; pior ainda, seria considerado mais depravado que a própria humanidade. Pois, qual pai, qualquer que fosse, se um filho lhe pedisse pão lhe daria uma pedra? Se o filho pedisse peixe daria uma serpente? Ou se pedisse um ovo lhe ofereceria um escorpião? A mera hipótese de que isso poderia acontecer é monstruosa. A natureza humana é extremamente corrompi­da pelo pecado moral, existe um espírito maligno de egoísmo no cora­ção que entra em conflito com as generosas afeições e que, muitas vezes, leva os homens a fazer coisas contrárias à natureza. Na média, entretan­to, os homens não são diabólicos e nada que não fosse um diabólico espírito de maldade levaria um pai a caçoar da penúria do filho, ou a deliberadamente entregar-lhe dádivas repletas de perigo mortal. Se os pais terrenos, embora maldosos em muitas de suas inclinações, dão a seus filhos somente coisas que, conforme seu entendimento, são boas e ficam horrorizados perante qualquer outro modo de tratamento, como poderíamos acreditar que o ser supremo, a providência, o Deus que é absolutamente bom, e que personifica todas as qualidades positivas, fa­ria algo que somente os demônios pensariam em fazer? Pelo contrário, o mal que o homem poderia fazer, para Deus é completamente impossí­vel. Com toda certeza Ele concederá boas dádivas, e somente elas, a seus filhos que lhe suplicam. E, mais especialmente, concederá a melhor de­las, o Espírito Santo, o iluminador e santificador, que os seus verdadei­ros filhos desejam acima de todas as outras. Portanto, digo-vos nova­mente: Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á.

No entanto, alguns pensarão que pelo simples fato de Cristo apre­sentar esses casos, como a pedra que é dada no lugar do pão, a serpente no lugar do peixe e o escorpião no lugar do ovo, que Deus possa em alguma ocasião tratar os seus filhos dessa forma. Chegou o momento em que os doze discípulos pensaram estar sendo tratados assim com referência ao assunto com o qual estavam tão profundamente interessa­dos, depois de sua própria santificação, isto é, a restauração do Reino de Israel. Mas sua experiência revela a verdade geral de que quando aquele que ouve a oração parece tratar os seus servos de forma ilógica, é porque

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estes se enganaram sobre a natureza do que é bom e não sabem o que estão pedindo. Pediram uma pedra, pensando que fosse pão; portanto o verdadeiro pão parecerá uma pedra; pediram uma sombra, pensando ser uma riqueza, portanto a riqueza se parecerá com uma sombra. O reino pelo qual os doze discípulos oravam era uma sombra, daí seu desaponta­mento e desespero quando Jesus foi condenado à morte: “o ovo” da esperança, que sua carinhosa imaginação havia estado desenvolvendo, produziu um escorpião — a cruz — e assim podem ter imaginado que Deus os havia enganado e zombado deles. Mas viveram para saber que Deus era verdadeiro e bom e que haviam enganado a si próprios e que tudo que Cristo havia dito se cumpriu. E que todos os que esperam em Deus irão, ao final, fazer a mesma descoberta e se unir para testemunhar que “bom é o Senhor para os que se atêm a ele, para a alma que o busca”23.

Por essas razões todos devem orar e nunca desfalecer. A oração é racional, ainda que o ser divino fosse como a média dos homens: dispos­to a fazer o bem quando o egoísmo não se interpusesse em seu caminho— isto é, o credo do paganismo. Seria ainda mais manifestadamente racional sendo, como Cristo ensinou e os cristãos acreditam, Deus me­lhor que o melhor dos homens — Aquele que é o ser supremamente bom — , o Pai no céu. Somente em um dos dois (ou nos dois) casos a seguir a oração seria irracional: se Deus não fosse absolutamente um ser vivo — este é o credo dos ateus, a favor do qual Cristo não expressa qualquer argumento — ; ou se Ele fosse um ser capaz de fazer coisas perante as quais até os homens mais cruéis se afastassem horrorizados, isto é, um ser que não tivesse a natureza benigna e santa que Ele possui— uma crença que, esperamos, não seja defendida por nenhum ser hu­mano.

*N. doT. Refutação de uma proposição através da demonstração da inevitável e absurda conclusão à qual ela iria logicamente levar.

1 Marcos 1.35; Lucas 6.12; Mateus 14.232 Mateus 6.5-133 Lucas I I .I - I 3 ; I8 .I-54 Mateus 18.195 Mateus 21.22

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6 João 16.23-247 Os doze não estão nomeados; mas a lição deve, por sua natureza, ter sido dada a um círculo de discípulos mais

próximos.8 O pedido, nesse caso, pode ser parafraseado: “Senhor, nos ensine (também) a orar, como João nos ensinou

quando éramos seus discípulos”.9 Os leitores podem se lembrar aqui do conhecido hino de Newton, que começa com as seguintes palavras: “Eu

pedi a Deus que crescesse na fé, no amor e em toda a graça” — (número 25, F. C. Hymn-Book}.10 João 16.2411 João 14.1312 Jeremy Taylor, na obra Apology f o r Authorized and Set Forms o f Liturgy, não faz distinção entre discípulos e apóstolos.

Quando se faz tal distinção, muitos dos seus argumentos perdem a importância. Vide páginas 86-112.13 Keim tem o mesmo ponto de vista: ele pensa que Mustergebet não deveria ser um Alltagsgehet, e como prova cita os

fatos de que nenhum vestígio disso aparece na história da vida de Cristo na época da igreja de Jerusalém, nas recordações do apóstolo Paulo, e que só no segundo século isso começou a ser objeto de um uso regular “ja mechamsch-katolischen” — Jesu von Nazara, 2.280

14 Pela forma como o “Pai Nosso” é agora explicado, podemos determinar o lugar e o uso apropriado de todas as formas estabelecidas de devoção. As formas litúrgicas destinam-se ao uso particular mais do que ao uso público; mais para aqueles que estão no silêncio, no estágio árido da vida espiritual, do que para aqueles que obtiveram o poder e a expressão da maturidade espiritual. Para o uso particular dessas formas por pessoas que querem orar, mas ainda não conseguem, não há nenhuma objeção. A vantagem justifica o uso. O cristão menos experiente pode pedir ao mais experiente para ensiná-lo a orar, e receber em resposta: “Nós oramos dessa forma...” Se podemos ler e repetir as sagradas canções de poetas cristãos para encontrar expressões de emoção que são comuns para nós e para eles, mas que podem rião nos agcadat, podemos adequadamente petguntar. “Pot que não podemos \et e tepetvt as orações dos santos por uma razão semelhante? Os superficiais, que não têm seriedade e sinceridade suficientes para saber o que deve ser balbuciado, podem desprezar tais auxílios por considerarem-nos apropriados apenas para crianças; e aqueles que ainda estão no início do fervor religioso podem desistir das formas escritas por considerarem-nas frias e mortas, mesmo sendo clássicas”. Bem, não há problema quanto àqueles que puderem dispensar esses auxílios; mesmo para os fervorosos — que desprovidos de emoções, deficientes em experiência, desencorajados pelo fracasso, decepcionados em suas grandes esperanças da mocidade, atormentados pelas dúvidas especulativas com relação à utilidade e às razões das orações — pode chegar a época em que sintam os ventos gelados do inverno da história religiosa invadindo a alma. Estes podem se sentir muito felizes ao ler sobre as formas de devoção, que por sua simplicidade e dignidade servem para inspirar um senso de realidade e produzir um efeito suave e relaxante em seus espíritos enfermos e cansados. Para todos os que estiverem em tal condição nós, respeitando o exemplo de Jesus Cristo, sentimo-nos na obrigação de dizer que não devem permanecer sem orar por não poderem fazê-lo sem um livro que lhes ensine.

Mas quando passamos do recesso para a igreja, o caso é alterado. Lá devemos encontrar pastores capazes de fazer pelos seus companheiros de devoção, o que Cristo fez pelos seus discípulos, orar com a liberdade e a força que os discípulos posteriormente alcançaram. Pode-se afirmar, com certeza, que por mais desejável que pareça, esta não é a situação em determinados lugares. Um escritor recente, defendendo a introdução de formas de orações escritas na igreja presbiteriana, diz: “Estou convencido de que um relatório verbatin de todas as orações públicas feitas na Escócia em qualquer domingo do ano esclareceria essa questão para sempre nas mentes de todas as pessoas que fossem capazes de formar um julgamento racional sobre esse assunto”*. Deve ser esperado que isso seja uma visão exagerada da incapacidade do ministério existente; mas mesmo garantindo a sua exatidão, seria uma questão justa se a solução proposta não fosse pior que o mal em si, e o ganho em adequação mais contrabalançado pela perda da qualidade mais importante que é o fervor. Podemos dizer isso, mesmo não dispostos a nos opormos às formas litúrgicas, mas concordar com os sentimentos moderados de Richard Baxter, quando diz: “Não posso ter a mesma opinião daqueles que pensam que Deus não aceitaria as orações de um Livro de Orações comum, e que tais formas sejam venerações inventadas, que Deus rejeitaria. Nem posso pensar como aqueles que preferem orações completa­mente improvisadas”.* Na época de Baxter havia muita controvérsia religiosa, e pontos de vista contrários eram expostos de maneiras extremadas. Os clérigos ridicularizavam as improvisações dos puritanos; os puritanos foram tão longe com sua oposição às orações litúrgicas que até consideravam que o “Pai Nosso” nunca deveria ser repe­tido. Baxter, não sendo um partidário, mas um amante da verdade, não era solidário a nenhum partido, mas consi­derava esta questão como política e não de princípio, que não deveria ser resolvida por meio de uma argumentação abstrata, mas através de uma calma consideração sobre aquilo que, como um todo, conduziria à edificação; nesta, o ponto de vista do seu julgamento e prática estavam ambos do lado da oração improvisada.

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Olhando para a questão do ponto de vista de Baxter, como uma questão política, somos inteiramente persuadi­dos a concordar que a prática existente no presbiterianismo e em outras igrejas pode ser justificada em bons termos já que estão contentes com as suas próprias maneiras, e indispostos a imitar aqueles que têm maneiras diferentes de lidar com essa questão. Os ministros da religião, como os apóstolos, deveriam ser capazes de dispensar as formas litúrgicas; e a melhor maneira de assegurar que podem possuir essa capacidade, é deixá-los por sua própria conta, e por conta de Deus, e assim converter o ideal em um requisito aplicável a todos, sem exceções. O completo benefício de um sistema não pode ser alcançado a menos#que haja uma rígida obrigatoriedade; e até mesmo esta obrigatoriedade pode envolver algumas desvantagens ocasionais, como o relaxamento da regra, que provavelmente causaria um dano maior à igreja. A amenização permitida devido à timidez, inexperiência ou a uma incapacidade extraordinária, sofreria abuso por parte dos indolentes e irresponsáveis; e muitos permaneceriam sempre em um estado semelhante ao dos discípulos que, se compelidos a usar o dom que Deus lhes deu ou a buscar seriamente dons e graças que não possuíssem, alcançariam em pouco tempo a liberdade e o poder apostólico. A mesma observação pode ser aplicada à pregação. Há exemplos individuais de congregações que podem se beneficiar do fato de o pregador estar autori­zado a usar os materiais de instrução que quiser; mas sob tal permissão, quantos ficariam contentes ao ler os sermões dos livros ou de manuscritos comprados às dúzias, que são escritos sob um sistema que visa tornar-se a avaliação máxima do talento individual e, deste modo, pede a todos os professores da verdade que dêem aos seusouvintes o benefício dos seus próprios pensamentos. Tais professores, através da prática, alcançariam uma medidajusta de poder para pregar.

No todo, portanto, a igreja presbiteriana, por exemplo, tem razões para ficar satisfeita com o seu sistema de adoração pública existente, seja qual for a razão da existência do descontentamento com o atual estado de adoração em exemplos particulares. O ideal é bom, mesmo que a realidade deixe algo a desejar. O objetivo e o efeito do sistema litúrgico é tornar o grande número de adoradores o mais independente possível do ministro, através do crescimento na fé e na graça do Senhor. O objetivo não é o efeito do nosso sistema, mas sim tornar o ministério individual o mais valioso possível para os adoradores, pela sua instrução e edificação. Um sistema pode assegurar uma solenidade e decência uniforme, mas o outro sistema tende a assegurar as qualidades mais importantes da devoção fervorosa, eqergia e vida; e acreditamos, a despeito de quão meticulosas possam ser as críticas, que isso pode assegurá-los consideravelmente. No mínimo, o método não-litúrgico assegura que a adoração da igreja deva ser uma reflexão verdadeira de sua vida e, portanto, smcera. Homens que pregam seus próprios sermões e fazem suas próprias orações têm uma tendência maior a pregar e a orar mais como acreditam e vivem, do que aqueles que meramente lêem composições que lhes foram dadas. Só resta dizer que enquanto não houver objeção à tentativa de fundir os dois métodos para usar as vantagens de ambos — um sistema gentilmente oferecido a todas as igrejas por algum irmão respeitável — confessamos ter dúvidas quanto à utilidade de tal tentativa, pelas razões acima explicadas. [Deixamos o texto acima tal qual consta na segunda edição. Nossa atual impressão, no entanto, é que uma mistura do sistema litúrgico de formas fixas, com uma metodologia que não restringe o improviso, não é impraticável e pode ainda dar melhores resultados do que ambos separadamente — Nota da terceira edição].

* The Reform o f the Church o f Scotland, de Robert Lee, D.D., página 76.* Da obra Baxters Life, de seu original M S., livro I, parte I, página 213.

15 O suposto objeto da oração em Lucas 18 é o interesse geral, que existe na terra, sobre o remo divino.16 Em Mateus 7.2, que responde a Lucas I I .13, a frase expressiva do objeto de desejo é agaqa, “boas coisas”, ao

invés de pneuma agion. O caráter paulino da segunda expressão tem sido observado como um dos muitos traços da influência do apóstolo sobre o terceiro evangelista. A doutrina que diz que o Espírito Santo é a base imanente da santidade cristã é enfaticamente paulina. Porém a doutrina da santificação gradual não é proeminentemente paulina.

17 A tradução na ARA tem o mesmo sentido: “Qual dentre vós é o pai que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra?

18 Veja o livro de Jó, passim, e Salmos 73, 77, etc.19 Esta idéia foi bem trabalhada em um sermão de H. W. Beecher intitulado: “Esperando pelo Senhor” — na

obra Sermons, volume I.20 Veja a obra de Samuel Rutherford, Trial and Triumph o f Faith, sermão 18.21 O termo grego anaideian, que significa impudência, cinismo.22 Jó 23.3, 8, 923 Lamentações 3.25

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7Lições sobre a Liberdade Religiosa

ou A Natureza da Verdadeira SantidadeSeção I - O Jejum

Mateus 9 .14 -17 ; Marcos 2 .16-22 ; Lucas 5.33-39

N. capítulo anterior aprendemos como Jesus ensinou os seus dis­cípulos a orar, e agora, neste presente capítulo, vamos aprender como Ele ensinou-lhes a viver.

A ratio vivendi de Cristo era caracteristicamente simples; seus princi­pais aspectos eram a indiferença quanto às minuciosas e mecânicas re­gras, e o hábito de se afastar de todas as coisas em detrimento dos exce­lentes princípios de moralidade e compaixão.

O cumprimento prático dessa regra de vida levou a uma considerá­vel divergência em relação ao costume prevalecente. Em três aspectos, especialmente de acordo com os registros do Evangelho, nosso Senhor e seus discípulos foram cobrados pela ofensa de não se conformarem. Eles se separaram das práticas existentes com relação ao jejum, cerimônias de purificação, como as prescritas pelos anciãos, e a santificação do sábado. A primeira, negligenciaram quase que por completo; a segunda completa­mente; e a terceira não negligenciaram, mas seu modo de observar o des­canso semanal era totalmente em espírito, e mais aberto em relação aos detalhes, diferente daquilo que era praticado pelos religiosos da época.

Essas divergências dos costumes estabelecidos são historicamente interessantes como pequenos começos de uma grande revolução moral e religiosa. Por ensinar esses novos hábitos aos seus discípulos, Jesus estava inaugurando um processo de emancipação espiritual, que resultou na completa libertação dos apóstolos e, através deles, na libertação da igre­ja da sobrecarga do jugo vindo das ordenanças de Moisés, e ainda mais do irritante cativeiro dos costumes vãos recebidos via tradição dos pais.

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As divergências em questão despertam grande interesse por estarem biograficamente relacionadas, também, com a experiência religiosa dos doze. Portanto, é uma grave crise na vida de qualquer homem quando ele, em primeiro lugar, separa-se da maioria dos minuciosos pormenores das opiniões religiosas e das práticas de sua época. Os primeiros passos no processo de mudança são geralmente os mais difíceis, mais perigosos, e mais decisivos. Com relação a esses aspectos, aprender a liberdade espi­ritual é como aprender a nadar. Todo especialista na arte aquática lem­bra-se dos problemas que experimentou em relação às suas primeiras tentativas, como achou difícil manter as braçadas e mexer suas pernas, como debateu-se e afundou, como estava assustado e com medo de na­dar em um local cuja profundidade superasse a sua altura, levando-o a afundar. Agora ele pode sorrir para esses anos iniciais. No entanto, eles não foram totalmente infundados, pois o novato, de fato, corre algum risco de se afogar, mesmo que o local da natação seja uma pequena pis­cina, ou represa, cuidadosamente construída, em um rio que flui por pequenos vales no interior, distante dos rios [argos e do grande mar.

E bom, tanto para jovens nadadores quanto para aprendizes da li­berdade religiosa, fazerem seus primeiros ensaios na companhia de um amigo experiente que poderá lhes salvar, caso estejam em perigo. Que grande amigo os doze tiveram em Cristo, cuja presença não era somente uma proteção contra todos os riscos espirituais mais íntimos, mas um abrigo contra todos os ataques que poderiam lhes sobrevir a partir do nada. Tais ataques deveriam ser esperados ou não — o inconformismo, invariavelmente, ofende a muitos; expõe a parte ofendida no mínimo à interrogação, e freqüentemente a algo mais sério. O costume é um deus para a multidão, e ninguém pode negar-se a prestar homenagem ao ídolo sem impunidade. Os doze, por conseguinte, contraíram, de fato, as pe­nalidades comuns em relação às singularidades. A conduta deles foi ques­tionada e censurada, em todo exemplo de afastamento dos usos e dos costumes. Se tivessem que responder por si mesmos, teriam feito uma defesa fraca das ações impugnadas, pois não entendiam os princípios nos quais as novas práticas foram baseadas, mas simplesmente agiam como eram direcionados. Mas em Jesus tinham um amigo que entendia esses princípios, e que ainda estava pronto para atribuir bons motivos a

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tudo o que fizesse, e a tudo o que ensinou os seus seguidores a fazer. As razões pelas quais defendeu os doze contra os detentores dos costumes predominantes foram especialmente boas e eficazes; e estas constituíam, juntas, uma desculpa para o não-conformismo não menos notável do que aquele que Ele demonstrou ao receber, bondosamente, publicanos e pecadores1 consistindo, assim, de três linhas de defesa correspondentes às acusações que deveriam ser enfrentadas. Nos propomos a considerar esta apologia, neste capítulo, sob três divisões; na primeira delas aborda­remos o tema “jejum”.

A partir do registro de Mateus, aprendemos que a conduta dos discípulos de Cristo, ao negligenciarem o jejum, era censurada pelos dis­cípulos de João Batista. Lemos: “Vieram, depois, os discípulos de João” (que estavam próximos a eles) “e lhe perguntaram: Por que jejuamos nós, e os fariseus, muitas vezes, e teus discípulos não jejuam?”2. Por esta questão aprendemos que, quanto ao jejum, a escola de João Batista e a seita dos fariseus estavam de acordo em suas práticas gerais. Como Jesus disse aos fariseus, dias mais tarde, “João veio a vós no caminho de justi­ça”3. Mas este foi o caso de um encontro de extremos; pois nenhum dos dois partidos religiosos podia estar mais distante em alguns aspectos do que os dois já citados. Mas a diferença consiste, mais exatamente, nos motivos do que nas atitudes exteriores de suas vidas religiosas. Ambos faziam as mesmas coisas — jejuavam, praticavam abluções cerimoniais, faziam muitas orações — mas faziam tudo isto com uma mentalidade diferente. João e seus discípulos cumpriam suas obrigações religiosas com simplicidade, humildade, sinceridade e com zelo moral. Os fariseus, como uma classe, faziam todos os seus trabalhos de maneira ostentosa e hipócrita; e como uma rotina mecânica.

Da mesma questão, aprendemos, mais adiante, que os discípulos de João, assim como os fariseus, eram muito zelosos em relação à prática do jejum. Eles jejuavam “freqüentemente”, “muitas” vezes (itukna, Lucas; polia, Mateus). Nós, por outros aspectos, sabemos que essa declaração em relação aos fariseus é rigorosamente verdadeira, porque estes tinham grandes pretensões religiosas. Além do jejum anual no grande dia da expiação, exigido pela lei de Moisés, e os quatro jejuns que se tornaram habituais na época do profeta Zacarias, no quarto, quinto, sétimo e dé­

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cimo mês do ano judaico, a classe mais rigorosa dos judeus jejuava duas vezes por semana, a saber, nas segundas e nas quintas-feiras4. Esse jejum bi-semanal é mencionado na parábola do fariseu e do publicano5. Não se deve supor, evidentemente, que a prática dos discípulos de João Batis­ta coincidisse, nesse aspecto, com a da classe mais rigorosa’ do partido dos fariseus. O sistema de jejum deles pode ter sido organizado em um plano independente, envolvendo diferentes preparativos quanto ao tem­po e às ocasiões. O único fato conViecido é que, como os fariseus, os discípulos de João jejuavam com freqüência, talvez não precisamente nos mesmos dias, nem pelas mesmas razões.

Não parece claro que os sentimentos tenham sido a causa da ques­tão apresentada a Jesus pelos discípulos de João. Não é impossível que o sentimento faccioso estivesse presente, pois a rivalidade e a inveja não eram desconhecidas, mesmo no ambiente do precursor6. Nesse caso, a referência à prática dos fariseus pode ser explicada pelo aparente desejo de derrotar os discípulos de Jesus pelos números, e colocá-los como se estivessem, na questão, em uma minoria sem-esperança. E mais provável, contudo, que o maior sentimento na mente dos interrogadores fosse o de surpresa, entendendo que em relação ao jejum estivessem se aproxi­mando mais de uma seita — cujos seguidores eram tachados por seu próprio mestre de uma “raça de víboras” — do que de seguidores da­quele por quem João Batista demonstrava o maior apreço e expressava a mais profunda veneração. Nesse caso, o objeto da questão era obter in­formação e instrução. Foi de acordo com essa visão que direcionaram a pergunta a Jesus. Se o propósito tivesse sido discutir, os questionadores certamente teriam questionado os discípulos, e não a Jesus.

Se os discípulos de João estavam, de fato, procurando instrução, não ficaram decepcionados. Jesus respondeu-lhes de forma extraordiná­ria ao mesmo tempo pela originalidade, intenção e emoção. E expôs, vigorosamente e com compaixão, em estilo de parábolas, os grandes prin­cípios pelos quais a conduta dos seus discípulos poderia ser justificada, os quais Ele desejava ver na conduta de todos aqueles que usavam o seu nome. Deve ser observado em sua resposta, em primeiro lugar, que ela é de uma natureza puramente defensiva. Jesus não culpa os discípulos de João por jejuarem, mas contenta-se em defender os seus próprios discí-

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pulos por, naquele momento, absterem-se do jejum. Ele não se sentiu chamado a menosprezar uma parte, a fim de justificar a outra, mas to­mou a posição de alguém que praticamente diz: “Jejuar pode ser certo para vocês, que são seguidores de João: não jejuar, neste momento, é igualmente certo para os meus seguidores”. Como deve ter sido agradá­vel para o Senhor Jesus Cristo poder assumir essa atitude tolerante em uma questão na qual o nome de João foi envolvido. Pois Ele tinha um profundo respeito pelo precursor e pelo seu trabalho, e ainda falava dele nos mais generosos termos apreciativos, agora chamando-o de uma “candeia que ardia e alumiava”7, e em outro momento afirmando que ele não era apenas um profeta, mas algo mais8. E podemos observar na pas­sagem, que João retribuía esses gentis sentimentos, e não tinha simpatia com as insignificantes invejas às quais seus discípulos, às vezes, entrega- vam-se. Os dois maiores (O Senhor Jesus Cristo e João Batista), por diferentes razões, censurados por seus contemporâneos corrompidos, sempre falavam um do outro para seus discípulos e para o público, em termos de um amoroso respeito; a menor luz, magnanimamente, confes­sando sua inferioridade; a maior exaltando o valor de seu humilde com­panheiro e servo. Que contraste reconfortante foi assim apresentado para as vis paixões da inveja, preconceito e maledicência, tão prevalecentes em outros lugares, sob a influência de homens malignos, dos quais piores coisas podiam ser esperadas. Estes chegaram a falar de João como se fosse um insano, e de Jesus como se fosse imoral e profano!9

Passando da forma ao assunto da resposta, observamos que, com o propósito de justificar seus discípulos, Jesus aproveitou-se de uma metá­fora proposta por uma memorável palavra que fora verbalizada a respei­to dele em um período inicial, pelo mestre daqueles que agora examina­vam-no. Para certos discípulos que reclamaram que os homens estavam deixando-o e indo a Cristo, João disse, com efeito: “O que tem a noiva é o noivo; o amigo do noivo que está presente e o ouve muito se regozija por causa da voz do noivo. Pois esta alegria já se cumpriu em mim”10. Jesus, agora, toma as palavras de João Batista, e as transforma em uma explicação com o propósito de defender o modo de vida de seus discí­pulos. Sua resposta, livremente parafraseada, tem esse efeito: “Eu sou o noivo, como disse seu mestre; é certo que os filhos das bodas venham a

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mim; e também é certo que, quando vierem, devam adaptar o seu modo de vida às novas circunstâncias. Conseqüentemente, fazem bem em não jeju­ar, pois o jejum é uma expressão da tristeza, e como podem estar tristes em minha companhia? Seria o mesmo que os homens estarem tristes em uma festa de casamento. Dias chegarão em que os filhos das bodas estarão tristes, pois o noivo não estará sempre com eles; e na tenebrosa hora da sua partida, lhes será natural e propício jejuar, pois então estarão em um esta­do de jejum — chorando, lamentando-se, tristes e desconsolados”.

O princípio por trás dessa representação gráfica é que o jejum não deve ser algo como uma regra mecânica, estabelecida, mas deve referir-se ao estado de espírito; ou, mais claramente, os homens devem jejuar quando estão tristes, ou em um estado de espírito semelhante à tristeza — ab­sorto, preocupado — como em algumas fortes e graves crises que ocor­rem na vida das pessoas, ou de uma comunidade, tais como aquelas na história de Pedro, quando ele foi usado na grandiosa questão sobre a admissão dos gentios na igreja; ou tais como aquelas na história da co­munidade cristã, em Antioquia, quando estavam prestes a designar os primeiros missionários para o mundo pagão. A doutrina de Cristo indi­cou clara e nitidamente aqui, que o jejum em quaisquer outras circuns­tâncias é forçado, não natural, irreal; algo que os homens podem estar prontos para fazer em termos de formalidade, mas que não fazem com os seus corações e almas. “Podeis vós fazer jejuar os convidados das bodas, enquanto o esposo está com eles?”11 perguntou o Senhor, prati­camente afirmando que isso seria impossível.

Por meio dessa regra, os discípulos do nosso Senhor foram justifi­cados; no entanto, os de João não foram condenados. Jejuar era reconhe­cidamente algo natural para eles, quando estavam pesarosos, melancóli­cos, ou insatisfeitos. Eles não tinham encontrado aquele ,que era o dese­jado de todas as nações, a esperança de um futuro, o noivo da alma. Apenas sabiam que tudo estava errado, e em seu estado de desespero e lamentação, tinham prazer em jejuar, usar trajes grosseiros e freqüentar regiões isoladas e desoladas, vivendo como ermitões, um protesto práti­co contra um período de crise. A mensagem de que o Reino estava pró­ximo foi, de fato, pregada a eles também; mas enquanto proclamada por João, o anúncio foi uma terrível notícia, e não boas novas; isso os deixou

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ansiosos e desanimados, e não contentes. Homens nesse estado de espí­rito não podiam fazer outra coisa se não jejuar; embora se devessem ou não continuar nesse estado de espírito depois do noivo ter vindo, e ter lhes sido anunciado como tal pelo seu próprio mestre, seja outro assunto. Seus pesares eram obstinados* infundados e injustificáveis após a vinda de Jesus, aquele que estava prestes a tirar o pecado do mundo.

Jesus, contudo, tinha mais a dizer em resposta às questões dirigidas a ele. Coisas novas e incomuns precisam de diversas explicações, e conse­qüentemente, à linda semelhança dos filhos das bodas Ele adicionou outras duas sugestivas parábolas: a saber, a do remendo novo em trajes velhos, e a do vinho novo em odres velhos. O modelo dessas parábolas é muito semelhante àquele da primeira parte de sua resposta, ou seja, apli­car a “lei da congruência” em relação ao jejum e a assuntos semelhantes; isto é, mostrar que em todos os serviços religiosos voluntários, onde somos livres para regular a nossa própria conduta, nossas atitudes devem corresponder à nossa condição espiritual interior, e nenhuma tentativa deve ser feita para forçar atitudes particulares, ou hábitos, nos homens, sem referência a essa concordância. Ao mencionar as coisas naturais, Ele quis se referir à observação dessa lei da congruência. Nenhum homem põe um remendo de pano novo12 em um vestido velho. Nem põem vi­nhos novos em odres velhos, e isso não apenas por causa da conveniên­cia, mas para evitar conseqüências desagradáveis, ou até mesmo desas­trosas. Pois se a regra da congruência for negligenciada, o vestido re­mendado se rasgará pela contração da nova roupa13; e os odres velhos se romperão sob a força da fermentação da nova bebida, e o vinho se derra­mará e será perdido.

As vestes e os odres velhos, nessas metáforas, representam antigos costumes ascéticos da religião; as novas vestes e o novo vinho represen­tam a nova e feliz vida em Cristo, não desfrutada por aqueles que obsti­nadamente aderiram às formas antigas. As parábolas foram aplicadas primeiramente à época de Cristo, mas podem ser aplicadas a todas as épocas de transição; de fato, elas encontram uma nova ilustração em quase todas as gerações.

A força dessas simples parábolas como argumentos de defesa do abandono das práticas comuns da religião pode ser rejeitada em uma ou

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outra destas formas: Primeiro, sua relevância pode ser negada; isto é, pode ser negado que crenças religiosas sejam de tal natureza quanto à exigência de modos inatos de expressão, sob pena da exigência não ser aceita. Essa postura é habitualmente admitida, parcial ou abertamente, pelos patronos dos usos e dos costumes. Mentes conservadoras têm, na maioria das vezes, uma concepção inadequada da força vital da crença. Suas próprias crenças e toda a sua vida espiritual são, freqüentemente, algo frágil; e essas pessoas imaginam que a mansidão ou a flexibilidade também devem ser um atributo da fé de outros homens. Nada além de uma terrível experiência irá convencê-los de que estão enganados, e quando a prova aparecer na forma de uma irreprimível explosão revolucionária, eles ficarão pasmados. Tais homens nada aprendem da história das gera­ções anteriores, pois persistem em pensar que os seus próprios casos serão uma exceção. Por isso, o vis inertíce do costume instituído sempre insiste na adesão ao que é velho, até que o novo vinho prove seu poder, produzindo uma explosão desnecessariamente esbanjadora, pela qual tanto o vinho quanto os odres, com freqüência, deterioram-se; e energias que poderiam, tranqüilamente, ter trazido uma benéfica reforma, são pervertidas em cegos poderes de indiscriminada destruição.

Ou, em s e g u n d o p lan o , ao a d m it ir - s e a r e lev â n c ia d es sa s m e tá fo ra s em termos gerais, pode ser negado que um novo vinho — tomando emprestada a forma de expressão da segunda metáfora, a mais sugestiva — chegou à existência. Essa foi, praticamente, a atitude assumida pelos fariseus em relação a Cristo. Em outras palavras, estavam perguntando ao Senhor: “O que você trouxe aos seus discípulos? Por que não podem viver como os outros vivem, mas acham necessário inventar novos hábi­tos religiosos para si próprios? Essa nova vida da qual você se vangloria é uma vã pretensão, ou algo ilegítimo, espúrio, não digno de tolerância, e a perda disso não seria motivo de arrependimento”. Semelhante foi a atitude adotada em relação a Lutero pelos oponentes da Reforma. Eles, verdadeiramente, disseram-lhe: “Se esta sua nova revelação, de que os pecadores são justificados apenas pela fé, fosse verdadeira, admitimos que isso implicaria em muitas modificações consideráveis na opinião religiosa, e em muitas alterações na prática religiosa. Mas negamos a verdade da sua doutrina, consideramos a paz e o conforto que nela você

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encontra, como uma alucinação; e, assim, insistimos que você retorne à fé tradicional, e então não terá dificuldade em aquiescer à prática insti­tuída há anos”. O mesmo acontece, em maior ou menor extensão, a todas as gerações; pois o vinho novo está sempre a caminho de ser pro­duzido pelo eterno vinho da .verdade, exigindo, em algumas particulari­dades da crença e da prática, novos odres para a sua preservação, e recebe em resposta uma ordem para se conciliar com os odres antigos.

Sem chegar ao limite da denúncia, ou à tentativa direta de supres­são, aqueles que ficam ao lado do antigo com freqüência opõem-se ao novo pelo mais suave método da depreciação. Eles louvam o venerável passado, e o contrastam com o presente. E fazem-no em detrimento do presente. “O vinho antigo é vastamente superior ao novo: como ele é maduro, suave, fragrante, saudável! Já o outro, como é áspero e ardente/” Aqueles que dizem isso não são os piores dos homens: eles são, muitas vezes, os melhores — os homens que têm bom gosto e sensibilidade, os gentis, respeitosos, bons, que são eles próprio exemplos excelentes da antiga vindima. Suas formas de oposição são certamente o maior obstá­culo para o reconhecimento público e para a tolerância ao que é novo na vida religiosa; já que isso naturalmente cria um forte preconceito contra qualquer motivo quando os religiosos o desaprovam.

Observe, então, como Cristo responde aos sinceros admiradores do vinho velho. Ele reconhece o argumento: Admite que suas preferências são naturais. Lucas o apresenta dizendo, na conclusão de sua resposta aos discípulos de João Batista: “E ninguém, tendo bebido o velho, quer logo o novo, porque diz: Melhor é o velho”14. Esse sentimento impressi­onante mostra uma rara imparcialidade em expor a causa dos oponentes, e também uma rara modéstia e tato em defesa da causa de seus amigos. E como se Jesus tivesse dito: “Eu não me admiro que vocês amem o vinho velho da devoção judaica, fruto de uma vindima muito antiga; ou mes­mo que estejam fascinados pelos muitos odres que o contenham, cober­tos inteiramente pelo pó e por antigas teias de aranha. Mas e então? Os homens opõem-se à existência do vinho novo, ou recusam-se a possuí-lo pelo fato do antigo ser superior em sabor? Não: eles tomam o antigo, mas cuidadosamente preservam o novo, sabendo que o velho irá se esgo­tar, e que o novo, mesmo sendo áspero, irá melhorar com o tempo, e

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poderá, enfim, ser superior mesmo em sabor ao que está em uso atual­mente. Mesmo assim vocês devem comportar-se de acordo com o novo vinho do meu reino. Vocês podem não desejá-lo imediatamente, porque ele é estranho e novo; mas certamente poderiam lidar com isso de uma forma mais sábia, ao invés de meramente rejeitá-lo, ou derramá-lo e destruí-lo!”

Com pouca freqüência, para o bem da igreja, os apreciadores das formas antigas entenderam a sabedoria de Cristo, e os apreciadores dos novos caminhos simpatizaram-se com sua caridade. Um célebre histori­ador observou: “Um homem se tornará desprezível, se, quando estiver no início de uma idade avançada, com inquietação olhar para a geração que se forma, e não se alegrar ao observá-la; no entanto, isso é muito comum em homens mais velhos. Fábio preferiria ter visto Aníbal invic­to, do que ver sua própria fama obscurecida por Scipio”15. Existem sem­pre no mundo muitos como Fábio, que se sentem incomodados porque as coisas não continuarão imóveis, e porque novas formas e novos ho­mens estarão sempre surgindo para assumir o lugar dos antigos. Não menos raro, por outro lado, é a caridade de Cristo entre os defensores do progresso. Aqueles que lutam a favor da liberdade, posicionam-se contra a classe mais rigorosa dos fanáticos' e intolerantes, e combatem a favor das mudanças sem consideração aos seus escrúpulos, e sem qualquer apreço pelas qualidades excelentes do “vinho antigo”. Quando será que homens jovens e mais velhos, liberais e conservadores, cristãos tolerantes e legalistas, aprenderão a suportar uns aos outros, e, de fato, reconhece­rão nos outros o complemento que lhes é necessário?

Seção II — Abluções R itu a isMateus 15.1-20; Marcos 7.1-23; Lucas II .37-41

A sociedade alegre e livre em torno de Jesus, que vivia em clima de festa (como de casamento), enquanto outros jejuavam, era também, nes­se aspecto, singular em seus modos. Assim, os seus membros faziam suas refeições despreocupados com as práticas correntes de purificação. Eles comiam pão com “mãos contaminadas”, por assim dizer, não porque não as lavassem, mas porque de fato não as lavavam de acordo com a forma prescrita na lei cerimonial. Podemos admitir que esta tenha sido a

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sua forma de agir desde o início, embora não tenha se tornado um tema de reprovação até um período avançado do ministério de nosso Senhor16. Entendemos que mesmo que tenha havido algum conflito sobre este assunto, as circunstâncias não foram merecedoras de observação nos re­gistros do Evangelho. Mesmo, no casamento em Caná, onde estavam postas seis talhas de pedra com o propósito de purificação, Cristo e seus discípulos estavam sujeitos a serem julgados como distintos dos outros convidados por uma certa negligência às abluções rituais. E isso inferi­mos a partir dos motivos pelos quais a negligência foi defendida quando contestada, e na prática percebe-se que o hábito condenado não era ape­nas legítimo, mas obrigatório — um dever indiscutível sob aquelas cir­cunstâncias da sociedade judaica e, portanto, certamente um dever que em nenhum momento poderia ser negligenciado por aqueles que deseja­vam agradar a Deus e não aos homens. Mas certamente não se precisava de provas de que alguém com tal alma distinta e sincera como Jesus nunca teria prestado atenção às insignificantes regras sobre os rituais de purificação antes das refeições, inventadas pelos “anciãos”.

Essas regras não eram insignificantes aos olhos dos fariseus; e, portanto, não nos surpreendemos ao aprender que a indiferença com que eram tratadas por Jesus e pelos doze, tenha provocado a censura dessa zelosa facção de religiosos em pelo menos duas ocasiões, referi­das nos relatos do Evangelho. Em uma dessas ocasiões, certos fariseus e escribas, que tinham seguido Jesus de Jerusalém ao Norte, ao verem alguns de seus discípulos comerem sem antes passarem pelas cerimô­nias habituais de abluções, chegaram-se a Ele, e lhe perguntaram: “Por que não andam os teus discípulos conforme a tradição dos antigos, mas comem com as mãos por lavar?”17 Em outra ocasião, o próprio Senhor Jesus foi objeto da censura direta desses homens. “Um fariseu”, relata Lucas, “o convidou para ir comer com ele; então, entrando, to­mou lugar à mesa. O fariseu, porém, admirou-se ao ver que Jesus não se lavara primeiro, antes de comer”18. O texto sagrado não nos infor­ma se o anfitrião expressou sua surpresa por palavras ou por olhares; mas isso foi percebido pelo seu convidado, e assim foi criada uma ocasião para expor as falhas do caráter farisaico. “Agora”, disse o acu­sado, em um zelo santo pela verdadeira pureza, “vós, fariseus, limpais

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o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior está cheio de rapi­na e maldade. Loucos! O que fez o exterior não fez também o interior? Dai, antes, esmola do que tiverdes, e eis que tudo vos será limpo”19. Por assim dizer, o convidado ofendido acusou seu escandalizado anfi­trião, e a facção à qual este pertencia, de renunciar à pureza interior em benefício da exterior; e, ao mesmo tempo, ensinou-lhes a importante v e r d a d e d e que, para o que é puro, c o d a s as c o i s a s s ã o puras, e mos- trou-lhes o caminho pelo qual a verdadeira pureza interior seria alcançada, isto é, pela prática daquelas virtudes infelizmente negligen­ciadas: a bondade e a caridade.

A resposta do Senhor em outro encontro com os adversários fariseus sobre o tema da lavagem foi similar em seu princípio, mas diferente em sua forma. Ele falou aos zelotes sobre purificações, sem perífrases, mos­trando-lhes que eram culpados da grave ofensa de sacrificar os manda­mentos de Deus para obedecerem a mandamentos humanos — as tradi­ções tão estimadas pelos anciãos. A declaração não foi uma calúnia, mas uma simples e triste constatação, embora sua verdade não fique comple­tamente exposta. Pretendemos mostrar isso nos comentários seguintes; mas antes de prosseguir com essa tarefa, devemos nos esforçar, mesmo que de forma relutante, para obter um entendimento um pouco melhor sobre as desprezíveis senilidades cuja negligência outrora parecia um abominável pecado das pessoas que se consideravam santas.

O objetivo dos preceitos rabínicos em relação às lavagens não era o de limpeza física, mas era concebido para ser algo mais elevado, mais consagrado. Seu objetivo era garantir a pureza cerimonial, não física; isto é, purificar a pessoa de impurezas que podiam ser contraídas pelo contato com um gentio, ou com um judeu ritualmente impuro, ou com um animal impuro, ou com um corpo morto, ou com qualquer parte desse corpo. As regras na lei de Moisés relacionadas a tais impurezas, os rabinos acrescentaram um vasto número de regras adicionais por conta própria, em um zelo obstinado pela meticulosa observância dos precei­tos de Moisés. Eles emitiram os seus mandamentos, como a igreja de Roma emitiu os dela, sob o pretexto de que estes eram necessários como meios para se alcançar o grandioso objetivo de cumprir rigorosamente os mandamentos de Deus.

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As cargas colocadas nos ombros dos homens pelos escribas, sobre esse fundamento aparentemente plausível, eram, de acordo com a maio­ria, certamente as mais pesadas. Não satisfeitos com as purificações or­denadas na lei para as verdadeiras situações de impureza, eles simples­mente criaram prescrições para possíveis casos. Se um homem não ficas­se em casa o dia todo, mas saísse para ir ao mercado, deveria lavar suas mãos quando voltasse, conforme o ritual religioso, porque era. possível que ele tivesse tocado em alguma pessoa ou em algo ritualmente impuro. Parece também que deveria ser tomado muito cuidado também com a água usada no processo de ablução, para que esta fosse perfeitamente pura; e era necessário até mesmo aplicá-la de uma maneira singular às mãos, a fim de assegurar o pretenso resultado. Sem irmos além dos re­gistros sagrados encontramos, nas informações fornecidas por Marcos com relação aos costumes judaicos de purificação, o suficiente para mos­trar a que ridículos exageros esse sisudo serviço de lavagem havia chega­do. “E, quando voltam do mercado”, ele observa de forma singular, e não sem um toque de ironia, “se não se lavarem, não comem. E muitas outras coisas há que receberam para observar, como lavar os copos, e os jarros, e os vasos de metal, e as camas”20. Todas as coisas, em síntese, usadas em relação à comida — na sua preparação, ou na forma de colocá- la à mesa — deveriam ser lavadas, não meramente como as pessoas po­dem lavá-las atualmente, para remover verdadeiras impurezas, mas para livrá-las das “mais graves impurezas” que podiam possivelmente ter con­traído, desde a última vez que usaram-nas, por terem tocado em alguma pessoa ou em algo que não estivesse cerimonialmente limpo. Almejavam um tipo e uma medida de pureza que, na verdade, eram incompatíveis com a vida neste mundo. A verdadeira atmosfera do céu não era limpa o bastante para os insanos incentivadores das tradições desses religiosos; pois, para não falar de outras fontes de contaminação mais verdadeiras, a brisa, trazendo terras gentias à santa terra dos judeus, tinha-se poluído, o que a tornou inadequada para passar por pulmões ritualistas até que tivesse sido peneirada por um filtro que possuísse o poder mágico de limpá-la de suas contaminações.

O zelo extravagante e fanático dos judeus nessas questões é ilustra­do no Talmude por histórias que, embora pertencentes a uma época

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posterior, podem ser consideradas como fiéis reflexos do espírito que inspirava os fariseus na época que nosso Senhor veio à terra. A seguinte história é um exemplo: “O rabino Akiba foi lançado na prisão pelos cristãos, e o rabino Josué trazia-lhe todo o dia água suficiente tanto para se lavar quanto para beber. Mas em uma ocasião, aconteceu-que o carce­reiro da prisão pegou a água para tomá-la, e deixou cair metade dela. Akiba viu que tinha pouca água, porém mesmo assim disse: Dê-me a água para as minhas mãos. Seu irmão, rabino, respondeu, meu mestre, você não tem o bastante para beber. Mas Akiba respondeu, aquele que come com mãos impuras comete um crime que deve ser punido com a morte. Para mim é melhor morrer de sede do que transgredir as tradi­ções dos meus antepassados”21. O rabino Akiba preferiria quebrar o sexto mandamento, e ser culpado de suicídio, do que separar-se da me­nor formalidade de um ritualismo irracional; esta é uma ilustração da veracidade da declaração feita pelo Senhor Jesus Cristo em sua resposta aos fariseus, e que agora continuaremos a considerar.

Não deveria ser esperado que, ao defender seus discípulos da co­brança vã de negligenciarem a lavagem das mãos, Jesus mostrasse muito respeito pelos seus acusadores. Portanto, notamos uma considerável di­ferença entre o tom de sua resposta no presente caso, e o de sua resposta aos discípulos de João. Com respeito aos discípulos de João, a atitude adotada foi respeitosamente defensiva e apologética; com respeito aos presentes interrogadores a atitude adotada é ofensiva e denunciatória. Jesus disse aos discípulos de João, em outras palavras: “Jejuar é correto para vocês; não jejuar é igualmente correto para meus discípulos”. Para os fariseus, entretanto, o Senhor responde com um sentença que de uma vez condena a conduta daqueles homens, e justifica o comportamento que eles contestaram. “Por que”, eles perguntaram, “transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos?” O Senhor lhes respondeu fazendo- lhes outra pergunta: “Por que transgredis vós também o mandamento de Deus pela vossa tradição?” Como se dissesse: “Não convêm que vocês julguem; vocês, que vêem o cisco imaginário nos olhos de um irmão, têm uma trave nos seus próprios olhos”.

Essa resposta corajosa foi algo mais que uma mera réplica, ou um argumento et tu quoque. Sob uma forma interrogativa, ela proclamou um

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grande princípio, isto é, que a meticulosa observância das tradições hu­manas em termos de prática leva, com certeza, a uma correspondente negligência e inconsciência em relação às eternas leis de Deus. Portanto, a defesa de Cristo para seus discípulos foi essencialmente esta: “Eu e meus seguidores desprezamos e negligenciamos esses costumes, porque desejamos guardar a lei moral. Essas lavagens, na verdade, podem não parecer entrar gravemente em conflito com os grandes temas da lei, sen­do, na melhor hipótese, apenas superficiais e desprezíveis. Mas esse não é o caso. Tratar insignificâncias como assuntos sérios, como assuntos de consciência, assim como fazeis, é degradante e desmoralizante. Nenhum homem pode fazer isso sem ser ou se tornar um imbecil moral, ou um hipócrita. O mesmo ocorre com qualquer um que for incapaz de discernir entre o que é vital e o que não o é em relação à moralidade, e igualmente o que encontra prazer em obter ninharias, como a lavagem das mãos, ou o pagamento do dízimo das ervas, para que sejam aceitos como assuntos importantes; e às grandes e genuínas questões da lei — justiça, miseri­córdia e fé — discretamente não deram importância como se estas fos­sem a todo o momento questões sem qualquer importância”.

Toda a história da religião prova a veracidade desses pontos de vis­ta. Uma época repleta de cerimônia e tradição é, de forma inevitável, uma época moralmente corrompida. Hipócritas ostensivamente zelo­sos, secretamente ateus; devassos tomando suas vinganças de forma li- cenciosa por terem sido obrigados, por costumes tirânicos ou por into­lerantes autoridades eclesiásticas, a se conformarem exteriormente com práticas pelas quais eles não têm respeito; sacerdotes do tipo dos filhos de Eli, glutões, cobiçosos, devassos: tais são os sombrios presságios de um tempo em que os rituais são tudo; e a piedade e a virtude, nada. Práticas ritualistas e deveres artificiais de todos os tipos, quer originados pelos rabinos judeus, ou pelos doutores da igreja cristã, devem ser total­mente renunciados. Recomendados pelos seus zelosos defensores, fre­qüentemente com sinceridade, como algo notavelmente adequado para promover a cultura da moralidade e da piedade, estes sempre trazem, a longo prazo, a fatalidade para todos. Apropriadamente são chamados na epístola aos Hebreus de “obras mortas”. Elas não estão apenas mortas, mas produzindo a morte; pois, como todas as coisas sem vida, elas ten-

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dem a apodrecer e a provocar uma peste espiritual que leva milhões de almas à perdição. Se elas têm alguma vida, é uma vida sustentada pela morte, a vida de um fungo crescendo em árvores mortas; se elas têm alguma beleza, é a beleza da decadência, de folhas do outono, secas e amarelas, quando a seiva está descendo à terra, e a madeira está prestes a entrar em seu estado de inverno, de nudez e desolação. O ritualismo é, no máximo, apenas o fugaz período após o verão do ano espiritual! Pode ser muito fascinante, mas quando ele vier, tenha a certeza de que o inver­no estará às portas. “E todos nós caímos como a folha, e as nossas culpas, como um vento, nos arrebatam”.

Tendo trazido uma séria contra-acusação aos fariseus, a de renunci­ar à moralidade em benefício do cerimonialismo, e os mandamentos de Deus em benefício das tradições dos homens, Jesus continuou, em se­guida, a substanciar a sua afirmação através de um forte exemplo e de uma citação bíblica. O exemplo selecionado foi a evasão dos deveres provenientes do quinto mandamento, sob o pretexto de uma prévia obri­gação religiosa. Deus disse: “Honra a teu pai e a tua mãe”, e vinculou a quebra deste mandamento à pena de morte. Os escribas judeus diziam: “Se um homem disser ao pai ou à mãe: Aquilo que poderias aproveitar de mim é Corbã, isto é, oferta ao Senhor”, já não precisaria obedecer à Palavra de Deus. A palavra “Corbã”, na lei de Moisés, significa um pre­sente ou uma oferta a Deus, de qualquer tipo, com ou sem derramamen­to de sangue, ofertada em qualquer ocasião, como por exemplo no cum­primento de um voto22. No dialeto rabínico, isso significava algo consa­grado a propósitos santos e, por conseguinte, não disponível para o uso particular ou secular. A doutrina tradicional em relação ao Corbã era prejudicial, de duas formas. Ela encorajava os homens a fazer da religião uma desculpa para negligenciarem a moralidade, e abria uma larga porta para a desonestidade e para a hipocrisia. Ela ensinava que um homem não precisava, apenas por causa de um voto, negar a si mesmo aquilo que lhe era lícito; mas que podia, por consagrar algo a Deus, livrar-se de todas as obrigações de dar algo aos outros, mesmo que se tratasse de algo que tivesse a obrigação de lhes dar. Assim, de acordo com o perni­cioso sistema dos rabinos, não era necessário, na verdade, dar algo lite­ralmente a Deus a fim de ser livre da obrigação de dá-lo a outra pessoa.

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Era suficiente chamar aquilo de Corbã. Bastaria apenas pronunciar essa palavra mágica sobre qualquer coisa, e em seguida esta passaria a ser de Deus, e assim não deveria ser usada por outros, exceto pelo próprio “ofertante”. Portanto, o zelo obstinado por honrar a Deus levou aqueles homens a desonrar a Deus, por tomarem seu precioso nome em vão; e as práticas que, na melhor hipótese, seriam responsáveis por “lançar a pri­meira tábua da lei contra a segunda”, mostraram-se destrutivas para ambas. Eles anularam toda a lei de Deus, tornando-a sem efeito para si mesmos, por causa de suas tradições. A anulação do quinto mandamento foi ape­nas um exemplo do dano que os zelotes, pelos mandamentos dos ho­mens, fizeram, como está subentendido nas palavras do Senhor Jesus Cristo, “... invalidando, assim, a palavra de Deus pela vossa tradição, que vós ordenastes. E muitas coisas fazeis semelhantes a estas”23.

A citação bíblica24 proferida pelo nosso Senhor em resposta aos fariseus, não foi menos adequada do que o exemplo ilustrativo, igual­mente mostrando seus vícios característicos, hipocrisia e superstição. Eles estavam próximos de Deus apenas em palavras, honravam-no com seus lábios, mas em seus corações estavam distantes dEle. Sua religião era totalmente exterior. Eles lavavam cuidadosamente suas mãos e suas ta­ças, mas não tinham o cuidado de purificar suas almas poluídas. Então, em segundo lugar, aprenderam sobre o temor a Deus por meio de pre­ceitos de homens. As prescrições humanas e as tradições eram seus guias na religião, e eles as seguiam cegamente, sendo negligentes em relação a quanto esses mandamentos de homens poderiam levá-los para longe dos caminhos da eqüidade e da verdadeira vida com Deus.

A palavra profética era rápida, poderosa, direta, perspicaz e conclu­siva. Nada mais foi preciso para consternar os fariseus, e nada mais foi- lhes dito nesse momento. O oráculo sagrado era a conclusão convenien­te para um argumento irrefutável contra os defensores da tradição. Mas Jesus teve compaixão da pobre multidão que estava sendo levada à ruína pelos seus guias espirituais cegos; e, por essa razão, Ele aproveitou a oportunidade para dirigir uma palavra àqueles que estavam em torno do assunto da controvérsia. Ele expressou aquilo que tinha a lhes dizer, na forma concisa e penetrante de um provérbio: “Ouvi-me, vós todos, e compreendei. Nada há, fora do homem, que, entrando nele, o possa

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contaminar; mas o que sai dele, isso é que contamina o homem”. Este era um enigma a ser decifrado, um segredo de sabedoria para ser analisa­do, uma lição de religião a ser memorizada. Seu significado, embora provavelmente entendido por poucos no momento, era muito evidente. O sentido de suas palavras foi simplesmente este: “Prestem mais atenção à limpeza do coração, e não, como os fariseus, à limpeza das mãos. Quan­do o coração é puro, tudo é puro; quando o coração é impuro, toda a purificação exterior é vã. A sujeira a ser temida não é a da carne cerimonialmente impura, mas a que emerge de uma mente carnal, a imun- dície de maus pensamentos, más paixões e maus hábitos”.

Essa palavra dirigida aos espectadores tornou-se o assunto de uma subseqüente conversa entre Jesus e seus discípulos, na qual Ele aprovei­tou a ocasião para justificar a razão de proferi-la, e lhes explicou o seu significado. Os fariseus ouviram o comentário, e mostraram-se natural­mente ofendidos, já que este tendia a enfraquecer a autoridade deles sobre a consciência popular. Os doze notaram o seu desgosto, e talvez tenham ouvido os comentários dos fariseus; e, com medo de más conse­qüências, informaram o seu Mestre. Ao falarem-lhe, provavelmente te­nham apresentado um tom que continha uma secreta preocupação pelo fato de o Senhor ter sido tão assertivo. Seja como for, Jesus deu-lhes a entender que não era um caso de clemência, de compromisso, ou de uma política tímida, oportunista e prudencial; a tendência ritualista é uma má planta que deve ser arrancada, mesmo que isso ofenda os seus defen­sores. O Senhor alegou, ao defender a forma direta de seu discurso, sua preocupação com a alma das pessoas ignorantes, que tinham como guias os fariseus, reivindicadores de tal título. “Deixai-os; são condutores ce­gos; ora, se um cego guiar outro c e g o , ambos cairão na cova”. Portanto, se os líderes são tão desesperadamente apegados aos seus erros que não podem se dissuadir deles, deixe-nos ao menos tentar salvar suas vítimas ignorantes.

A pedido de Pedro, Jesus deu a seus discípulos a explicação da pala­vra proverbial dita às pessoas25. Ela é rudemente clara e singular, porque foi encaminhada a simples ouvintes ignorantes. Ela expressa, mais uma vez, na linguagem mais forte possível, a de que comer com mãos cerimonialmente impuras não contamina o homem, porque nada que

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entra pela boca pode chegar à alma; que a sujeira a ser temida, a única impureza que vale a pena ser mencionada, é a de um coração mau e não nascido de novo, do qual procedem maus pensamentos, palavras e atos que são ofensas contra a pura e santa lei de Deus. As palavras conclusi­vas, “ficando puras todas as comidas”, têm, sem dúvida e de qualquer forma, uma importância peculiar, se adotarmos a leitura aprovada pelos críticos: “Ele disse, ficando puras todas as comidas”. Nesse caso, temos o evangelista dando sua opinião pessoal quanto ao efeito das palavras de Cristo, isto é, que elas eqüivaliam a uma anulação da distinção cerimoni­al entre puro e impuro. Um comentário muito notável vem do homem a quem nos tornamos devedores pelo relato da pregação desse apóstolo, que em seus tempos de discípulo inspirou a declaração, e que teve a visão do lençol sendo baixado do céu.

Já que o evangelista deu-nos seu comentário, podemos adicionar os nossos. Percebemos que o nosso Senhor está aqui, silenciosamente, re­fletindo sobre a lei cerimonial de Moisés (à qual as tradições dos anciãos foram um suplemento), e Ele fala apenas dos mandamentos de Deus, isto é, dos preceitos do decálogo. O fato é significativo por mostrar em que termos Ele veio ab-rogar, e em que termos Ele construiu. O ritualismo estava prestes a ser abolido, e as eternas leis da moralidade estavam pres­tes a se tornar o mais importante. A consciência dos homens estava prestes a ser separada da carga das óbvias ordenanças exteriores, para que as pessoas pudessem estar livres para servir ao Deus vivo, guardando seus dez mandamentos, ou a magnífica lei do amor. E é dever da igreja per­manecer firme na liberdade que Cristo criou e conquistou para ela, e ficar atenta a todas as tradições humanas que não condigam com o zelo santo pela vontade de Deus, afastando a superstição por um lado, e a liberdade licenciosa da devassidão ímpia por outro. Os verdadeiros se­guidores de Cristo desejam ficar livres, mas não para fazer o que quise­rem; antes, para fazer o que Deus quer que façam. Com o pensamento assim disposto, eles rejeitam o cerimonialismo e toda a autoridade hu­mana na religião, separando-se por meio disso, dos devotos da tradição; e ao mesmo tempo, como servos de Deus, honram a sua Palavra e a sua lei, colocando assim um extenso abismo entre eles mesmos e aqueles que não vivem de acordo com a lei, os desobedientes, que tomam partido

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nos movimentos de reforma religiosa, não a fim de obterem algo melhor no lugar daquilo que é rejeitado, mas para livrarem-se de todas as restri­ções morais em questões humanas e divinas.

Seção III - A O bservância do Sábado .Mateus I2.I-I4; Marcos 2.23-3.1-6; Lucas 6.1-2; 13.10-16; I4.I-6; João 5.I-I8; 9 .I3-I7

Jesus e seus discípulos foram, mais freqüentemente, considerados culpados pelo modo como lidavam com a questão do sábado do que por sua conduta em geral. Seis diferentes casos de ofensas ligadas ao sábado (em que os fariseus sentiram-se ofendidos ou ofenderam ao Senhor) estão registradas na história do Evangelho; em cinco delas o próprio Senhor Jesus foi o ofensor, enquanto nos outros casos, seus discípulos foram, pelo menos, objetos de censura ostensiva.

As ofensas de Jesus foram todas de uma mesma espécie; o crime de que o acusaram foi o de, no dia de sábado, realizar curas em corpos de homens aflitos, respectivamente por paralisia, mãos deformadas, ceguei­ra, hidropisia, e no corpo de uma pobre mulher “encurvada” por uma enfermidade que sofria há dezoito anos. A ofensa dos discípulos, por outro lado, foi que, enquanto andavam juntos por um caminho que pas­sava por um milharal, arrancaram algumas espigas com a intenção de satisfazer a sua fome. Isto não era furto, pois era permitido pela lei de Moisés26; mas, apesar disso, era, de acordo com o julgamento dos fariseus, desobediência ao mandamento relacionado ao sábado. Diziam ser uma atitude contrária à ordem de não trabalhar no sábado; pois arrancar algumas espigas era ceifar em uma pequena escala, e friccioná-las era uma espécie de debulha!

Essas ofensas, consideradas tão graves quando cometidas, parecem- nos muito pequenas. Todas as transgressões da lei do sábado de que o Senhor Jesus foi acusado estavam relacionadas às suas obras de miseri­córdia; e a única suposta transgressão dos discípulos foi a realização de um trabalho que era necessário para a sobrevivência deles. A tolerância em relação a esses atos era um dever de misericórdia; então, ao condená- los, os fariseus esqueceram-se da Palavra do Senhor: “Misericórdia que­ro e não sacrifício”. Na verdade, é difícil para nós, agora, imaginar como alguém poderia estar sendo sério considerando tais ações como viola­

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ções do sábado, especialmente o inocente ato dos doze. Há uma peque­na demonstração de plausibilidade na objeção assumida pelo adminis­trador da sinagoga a curas miraculosas feitas no sétimo dia: “Seis dias há em que é mister trabalhar; nestes, pois, vinde para serdes curados e não no dia de sábado”27. A observação foi especialmente plausível com refe­rência ao caso que provocou a ira do dignitário da sinagoga. Uma mu­lher que sofria há dezoito anos, podia certamente suportar seu proble­ma por mais um dia, e vir para ser curada na manhã seguinte! Mas com que pretexto os discípulos poderiam ser acusados de violar o sábado, só por servirem-se de algumas espigas de milho? Chamar tal ato de traba­lho era ridículo. Os homens que nessa ocasião viram uma ofensa ao sábado, deveriam estar muito ansiosos para apanhar os discípulos de Jesus em alguma falta.

Não temos nenhuma dúvida de que os fariseus estavam à procura de transgressões; e ainda devemos admitir que, condenando o referido ato, estavam agindo fielmente de acordo com as suas perspectivas teóricas e suas tendências naturais. Seus julgamentos em relação à conduta dos doze estavam de acordo com as suas tradições acerca das lavagens, do pagamen­to de dízimos da hortelã e de outras ervas, e de seus esforços para manter limpas suas taças de vinho. Seus hábitos, em todas as coisas, deveriam degradar a lei de Deus, por conceberem inúmeras regras insignificantes para a sua melhor observância, que, ao invés de garantirem esse fim, apenas faziam com que a lei parecesse ter pouco valor e ser desprezível. Em ne­nhum caso essa miserável meticulosidade atingiu as proporções do caso relacionado ao quarto mandamento. Com uma ingenuidade perversa, as atitudes mais insignificantes foram trazidas para dentro do campo da proi­bição ao trabalho. Mesmo no caso exemplificado por nosso Senhor, aque­le de um animal caindo dentro de um poço, era considerado lícito tirá-lo de lá — pelo menos dizem-nos esses eruditos do saber rabínico — apenas quando deixá-lo lá, até o sábado passar, envolvesse um risco de vida. Quando o atraso não envolvesse risco de vida, a regra era dar ao animal comida suficiente para o dia; e se houvesse água no fundo do poço, devia-se apoiá- lo por baixo, de modo que não submergisse28.

Contudo, a despeito de todos os seus cuidados para se absterem de tudo o que tivesse o mínimo indício de trabalho, os judeus eram curiosa­

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mente negligentes com outras coisas. Enquanto observavam minuciosa­mente a lei que proibia cozinhar no sábado29, não faziam do dia santo, de nenhuma forma, um dia de jejum. Ao contrário, consideravam seu dever, fazer do sábado um dia de festa e de comer bem30. Na verdade, em uma festa para celebrar o sábado, promovida por um dos principais fariseus, Jesus realizou um grande milagre. Nessa festa havia muitos convidados, e Jesus era um deles — porém tudo indica que o Senhor não foi convi­dado devido a um sentimento amigável; parece que desejavam encontrar algo contra Ele em relação à lei do sábado. “Aconteceu”, lemos em Lucas, “que, entrando ele em casa de um dos principais dos fariseus para comer pão, eles o estavam observando”31. Colocaram uma armadilha, e espera­vam apanhar aquele que era odiado sem causa; e se esforçaram nessa busca. Como recompensa por seus ímpios esforços, receberam repreen­sões que provavelmente nunca tinham ouvido32. Esse hábito de festejar havia alcançado um nível de extremo abuso na época de Agostinho, con­forme a descrição que ele faz do modo como os judeus contemporâneos celebravam o seu feriado semanal. “Hoje”, ele escreve, “é sábado, o dia que os judeus de nossa época guardam com um conforto descompromissado e exuberante, pois ocupam seu tempo livre com futi- lidades; e gastam o dia estabelecido por Deus para o descanso com aqui­lo que Ele proíbe. Em nosso descanso nos abstemos das más obras, enquanto eles descansam das boas obras; pois é melhor arar do que dançar. Eles descansam das boas obras, mas não descansam da ociosida­de”33.

Da insensatez e do pedantismo dos escribas e dos fariseus, pra­zerosamente voltamo-nos à sabedoria de Jesus, como reveladas nas ani­madas, profundas e, ainda, sublimemente simples respostas que Ele deu às diversas acusações de quebrar o descanso do sábado, colocadas contra Ele e seus discípulos. Antes de considerarmos essas respostas detalhada­mente, estabeleceremos como premissa um comentário genérico em re­lação a todas elas. Em nenhuma dessas defesas, Jesus colocou em dúvida a obrigação de se cumprir a lei do sábado. Com relação a isso , Ele não teve nenhuma dissensão contra os seus acusadores. Seu argumento nessa ocasião é totalmente diferente da linha de defesa adotada em relação ao jejum e às purificações. Com respeito ao jejum, a posição que Ele adotou

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foi a seguinte: Jejuar é algo intencional, e os homens devem ou não jejuar no momento em que estão dispostos. Em relação à purificação, sua po­sição era: Abluções religiosas são, no máximo, de segunda importância, sendo meras formas de pureza interior, e como praticadas naquele mo­mento, levavam inevitavelmente à completa negligência da pureza espiri­tual, e por causa disso devem ser desconsideradas por todos os que estão preocupados com os maiores interesses da moralidade. Mas com relação à alegada violação da lei do sábado, a posição tomada por Jesus foi: Esses atos que vocês condenam, não são transgressões da lei, são perfeitamen­te compreensíveis, em seu espírito e princípio. A importância da lei foi reconhecida, mas a interpretação farisaica de seu significado foi rejeita­da. Foi feito um apelo em relação ao seu código pedante de regras sobre a observância do sábado para o grandioso princípio e criação da lei; e foi declarado justo examinar todas as regras à luz do princípio, e rejeitar ou desconsiderar aquelas em que o princípio havia sido aplicado erronea­mente, ou, como acontecia em grande parte com os fariseus, perdido a noção do todo.

A chave para todos os ensinos de Cristo sobre o sábado, portanto, permanece em sua concepção da idéia original dessa instituição divina. Encontramos essa concepção expressa com característica epigramática e concisão, em contraste com a idéia farisaica do sábado, em palavras pro­nunciadas por Jesus na ocasião em que Ele estava defendendo seus discí­pulos. “O sábado”, Ele disse, “foi feito por causa do homem, e não o homem, por causa do sábado”. Em outras palavras, era esta a sua doutri­na: O sábado foi feito para ser uma bênção para o homem, não uma carga; não foi um dia tirado do homem por Deus em um espírito de severida­de, mas um dia dado por Deus ao homem por misericórdia — um dia de descanso que pertence a Deus, e que deve ser dedicado às coisas dele. Toda a legislação que reforça a sua observância, tem por finalidade asse­gurar que todos devem, de fato, obter o benefício dessa bênção — que nenhum homem deve se privar, e menos ainda os seus semelhantes, desse gracioso favor.

Essa diferença entre a forma de Cristo julgar o sábado e a dos fariseus inclui, inevitavelmente, uma diferença correspondente no espírito e nos detalhes de sua observância. Tome a perspectiva de Cristo, e seu princí­

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pio tornar-se-á: Essa é a melhor forma de guardar o sábado, que é mais condizente com o bem-estar físico e espiritual do homem — em outras palavras, é melhor para seu corpo e para sua alma; e à luz desse princípio, você guardará o dia santo com um espírito de alegria racional e de grati­dão a Deus, o Criador, por sua graciosa consideração para* com as suas criaturas. Considere a perspectiva farisaica, e seu princípio de observân­cia tornar-se-á: O que melhor guarda o sábado é o que vai às maiores extensões na mera abstinência a qualquer coisa que possa ser interpreta­da como trabalho, sem consideração ao e f e i t o dessa abstinência para o seu próprio bem-estar ou o de outros. Resumidamente, chegamos à es­túpida e absurda exatidão da legislação rabínica. Esta enxerga uma ofen­sa abominável contra o quarto mandamento e seu Autor, por exemplo, nos seguintes atos: aquele em que os discípulos colhem e debulham espi­gas de milho, ou aquele em que o homem curado da paralisia por Jesus carregou sua cama em seus ombros à sua casa34, ou ainda aquele em que alguém devesse andar uma distância maior que dois mil côvados, ou três quartos de uma milha35 em um sábado.

Uma observância do sábado ordenada pelo princípio de que a sua instituição foi feita para o bem do homem, obviamente implica duas práticas grandes e gerais — descanso para o corpo, e adoração como o conforto para a alma. Devemos descansar do trabalho servil nesse dia concedido por Deus, e devemos elevar os nossos corações em sincera meditação àquele que fez todas as coisas em primeiro lugar, e que “tra­balha até agora”, protegendo a existência e o bem-estar da criação, e cuja afável compaixão para com homens pecadores é grande e incompreensí­vel. Essas coisas são necessárias ao verdadeiro bem do homem, e por isso devem ser elementos essenciais de uma adequada observância do sábado.

Mas, por outro lado, uma vez que o sábado foi feito para o homem, as duas principais exigências, o descanso e a adoração não podem ser exigidas a ponto de se tornarem hostis ao bem-estar do homem, e de fato prejudiciais para a pessoa, ou mutuamente destrutivas. A regra: “Descansarás”, não deve ser aplicada de modo a excluir toda a ação e todo o trabalho; pois a completa inércia não e descanso, e a completa abstinência de trabalho de toda espécie seria, muitas vezes, prejudicial para o bem-estar privado e público. Deve-se deixar espaço para atos de

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“necessidade e misericórdia”; e uma legislação muito categórica e minu­ciosa em relação ao que são ou não atos de qualquer dessas espécies deve ser evitada, visto que esses assuntos podem variar para diferentes pesso­as, tempos e circunstâncias, e os homens podem realmente diferir de opinião em detalhes que são pêrfeitamente fiéis aos princípios gerais da consagração do sábado. Da mesma maneira, a regra: “Adorarás”, não deve ser tão reforçada a ponto de fazer dos deveres religiosos algo cansa­tivo e pesaroso — um mero serviço mecânico e aceito; ou de tal forma que envolva o sacrifício de outro objetivo prático do sábado, a saber, descanso para a natureza animal do homem. Os homens também não podem impor, mutuamente, como para fins de adoração, nada mais do que a essência; pois alguém pode encontrar ajuda na devoção de formas que para outros seriam um obstáculo e um impedimento.

Foi apenas com referência à interrupção do trabalho que a legisla­ção e prática farisaica com respeito à observância do sábado foram leva­das ao excesso supersticioso e opressivo. A obsessão pelo sábado era uma monomania; e os afetados por ela tornaram-se loucos simplesmente em um ponto: o severo cumprimento do descanso. Aqui está o caráter peculiar de todas as acusações trazidas contra Cristo e os seus discípulos, e tam­bém de suas respostas. As ofensas cometidas eram todas trabalhos con­siderados proibidos; e todas as defesas tiveram a finalidade de mostrar que os trabalhos feitos não eram contrários à lei, quando essa era inter­pretada à luz do princípio que dizia que o sábado foi feito para o ho­mem. Eram trabalhos de necessidade e de misericórdia e, portanto, per­mitidos no dia de repouso e adoração.

Jesus extraiu suas provas dessa posição, a partir de três fontes: da história das Escrituras, da prática diária dos próprios fariseus e da provi­dência de Deus. Em sua defesa a seus discípulos, Ele se referiu ao caso de Davi que comeu os pães da proposição quando fugiu para a casa de Deus saindo da corte do rei Saul36, e à constante prática dos sacerdotes em fazerem obras para o serviço do templo nos dias de sábado, tais como oferecer holocaustos duplos, e remover os pães amanhecidos da proposição do lugar santo e substituí-los por pães quentes. O caso de Davi provou o princípio geral de que a necessidade não tem lei; a fome justificou o seu ato, como também deveria ter justificado o ato dos dis­

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cípulos, mesmo na visão farisaica. A prática dos sacerdotes mostrou que o trabalho — meramente como trabalho — não é contrário à lei do dia de repouso e adoração, sendo que alguns trabalhos não são apenas líci­tos, mas obrigatórios nesse dia.

O argumento extraído por Jesus da prática comum foi bem adequa­do para silenciar capciosos críticos, e para sugerir o princípio pelo qual sua própria conduta podia ser defendida. Ele teve o seguinte efeito: “Você tiraria um jumento ou um boi de um poço no sábado, não tiraria? Por quê? Para salvar a vida? Então, por que eu não devo curar uma pessoa doente pela mesma razão? Ou a vida de um animal é mais importante que a vida de um ser humano? Ou novamente: Você hesitaria em perder seu boi, ou o seu jumento, não o desprendendo da manjedoura no dia do descanso, para levá-lo a beber água?37 Se não, por quê opõem-se a mim quando, no sábado, eu liberto uma pobre vítima de uma dependência que sofria há dezoito anos, para que ela possa tirar água da fonte da salvação?” O argumento é irresistível, e a conclusão é inevitável; fazer o bem no dia de sábado é legítimo, conveniente e mostra obediência. Como estavam cegos aqueles a quem tão óbvia sentença precisava ser provada! Como estavam esquecidos do fato de que o amor é o fundamento e o cumprimento de toda a lei, e que, assim, nenhum preceito específico ja­mais poderia ser destinado a suspender a operação desse princípio divino!

O argumento da providência usado por Jesus em outra ocasião38 teve a finalidade de servir ao mesmo propósito que os outros, isto é, mostrar a legitimidade de certos tipos de trabalho no dia do descanso. “Meu Pai trabalha até agora”, Ele disse aos seus acusadores, “e eu traba­lho também”. O Filho reivindicou o direito de trabalhar porque, e como, o pai trabalha em todos os dias da semana. O pai trabalhou incessante­mente por fins beneficentes e conservadores, a maior parte do tempo preservando e governando, de forma santa, sábia e poderosa, todas as suas criaturas e todas as suas ações, mantendo os planetas em suas órbi­tas, fazendo o sol nascer e brilhar, os ventos circularem em seus rumos, e as marés a vazar e subir no sétimo dia, como em todos os outros seis. Então, Jesus Cristo, o Filho de Deus, reivindicou o direito de trabalhar e, de fato, trabalhou — salvando, restaurando, curando — e assim pôde restaurar a natureza decaída dos seres humanos a seu estado original, em

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que Deus, o Criador, declarou boas todas as coisas, e descansou e se satisfez com o mundo que trouxe à existência. Tais trabalhos de benefi­cência, de acordo com a doutrina de Cristo, podem ser sempre feitos no dia de repouso e adoração: trabalhos de natureza humanitária, como aqueles do médico; o do professor de crianças que foram negligenciadas; os de natureza filantrópica, entre os pobres e necessitados; ou o do mi­nistro cristão pregando o evangelho da paz; e assim muitos outros, dos quais os homens ocupam-se com amor, e os fazem de bom grado, mas em relação aos quais algumas pessoas, na frieza de seu coração, não fa­zem tanto quanto sonham. Contra tais trabalhos, não há lei, salvo as dos rudes e desagradáveis costumes farisaicos.

Há uma outra declaração que o nosso Senhor proferiu sobre o pre­sente assunto, que traz um grande peso para os cristãos, embora possa não ter tido nenhum valor apologético na opinião dos fariseus, mas an­tes deve ter parecido um agravamento da ofensa que deveria ser perdoa­da. Nos referimos à palavra: “O Filho do homem até do sábado é Se­nhor”, dita por Jesus na ocasião em que Ele defendeu seus discípulos contra a acusação de violarem o sábado. Essa declaração extraordinária, como a reivindicação feita, no mesmo momento, de ser maior que o templo, como uma asserção da dignidade sobre-humana da parte da­quele que é manso e humilde, não tinha a intenção de ser uma pretensão ao direito de violar a lei do descanso sem razão, ou anulá-la totalmente. Isso é evidente no relato de Marcos39, onde as palavras vêm como uma inferência da afirmação de que o sábado foi feito para o homem, e que não poderia, obviamente, tornar-se o alicerce de uma revogação do esta­tuto, visto que esse é o mais poderoso argumento para a perpetuação do descanso semanal. Se o descanso semanal tivesse sido uma mera restri­ção opressiva imposta aos homens, deveríamos ter esperado que o Se­nhor Jesus Cristo o tivesse anulado, pois Ele veio para libertar os ho­mens de todo o tipo de escravidão. Mas o sábado foi feito para o ho­mem — para o seu bem. Então, devemos esperar que a função de Cristo não seja a de um anulador, mas a de um legislador universal e filantrópi­co, fazendo com que aquilo que era previamente um privilégio exclusivo de Israel, se tornasse uma bênção universal, para toda a humanidade. Pois o Pai enviou o seu Filho ao mundo para verdadeiramente libertar o

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homem do jugo das ordenanças, mas não para cancelar nenhuma das suas bênçãos, pois estas são sem arrependimento; os dons e a vocação de Deus, uma vez concedidos, não são retirados (Rm 11.29).

Então, o que significa o senhorio de Cristo sobre o sábado? Sim­plesmente isso: que uma instituição que faz parte da natufeza de uma bênção para o homem, submete-se ao controle daquele que é o Rei da graça e o administrador da misericórdia divina. Ele é o melhor Juiz para julgar como determinado preceito deve ser observado; só Ele tem a prer­rogativa de ver que isso não deve ser pervertido de uma graça para um peso, passando a se opor à verdadeira e imperial lei do amor. O Filho do Homem tem autoridade para cancelar todos os regulamentos que se inclinam nessa direção, emanados dos homens, e até mesmo todos os preceitos paralelos às leis de Moisés que foram preparados pelos ho­mens, repletos do rigor legal, e que tendem a cobrir a concepção benéfi­ca do quarto mandamento do decálogo40. Ele pode, no exercício de sua prerrogativa mediadora, dar à antiga instituição um novo nome, alterar o dia da sua celebração, de maneira a envolvê-la distintamente com associ­ações cristãs apropriadas ao coração dos crentes, e torná-la, em todos os detalhes de sua observância, subserviente ao grande objetivo de sua encarnação.

Com tal propósito, o Filho do Homem afirmou ser Senhor do sá­bado; e sua afirmação, assim compreendida, foi admitida pela igreja, quando, seguindo as pegadas da prática apostólica, mudou o descanso semanal do sétimo para o primeiro dia da semana41, a fim de poderem comemorar o alegre acontecimento da ressurreição do Salvador, que fica mais próximo do coração do crente do que o antigo acontecimento da criação, e chamou o primeiro dia pelo seu nome, o dia do Senhor42. Em relação a essa afirmação, todos os cristãos admitem que, olhando para o dia à luz da criação original de Deus, dos ensinos, exemplos e obras de Cristo, observam-na como para manter o meio termo entre dois extre­mos: o do rigor farisaico e o da falta de cuidado dos saduceus. Os cris­tãos reconhecem, por um lado, as finalidades benéficas fornecidas pela instituição, e fazem o máximo para assegurar que esses fins sejam total­mente realizados; e, por outro lado, evitam o cuidado insignificante do triste legalismo, que leva muitos, especialmente os jovens, a se chocarem

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com a lei como um estatuto de restrições injustas e arbitrárias. Os cris­tãos evitam também o mau hábito farisaico de dar indultos em julga­mentos indiscutíveis com relação a difíceis questões e detalhes, e na con­duta daqueles que em tais questões não pensam nem agem como eles mesmos.

Não devemos encerrar este capítulo, no qual temos estudado as lições de forma livre, mas reverente, dadas pelo nosso Senhor aos seus discípulos, sem adicionarmos uma reflexão aplicável a todas as três. Por meio dessas lições, os doze aprenderam uma virtude muito necessária para os apóstolos de uma religião que era nova em muitos aspectos — o poder de suportar o isolamento e as suas conseqüências. Quando Pedro e João compareceram diante do sinédrio, os administradores se admira­ram com a audácia deles, a ponto de reconhecerem que eram compa­nheiros de Jesus, o Nazareno. Parece que imaginaram os seguidores de Jesus Cristo como estando preparados para qualquer coisa que viesse a requerer a intrepidez. E estavam certos. Os apóstolos tinham “nervos fortes”, e não eram facilmente intimidados; e as lições que temos consi­derado nos ajudam a entender de onde eles tiraram sua rara coragem moral. Durante anos estes homens se acostumaram a permanecer sozi­nhos e a negligenciar o padrão do mundo, até que finalmente pudessem fazer o que era correto, indiferentes à censura humana, sem qualquer esforço aparente, quase que automaticamente, sem pensar duas vezes.

1 Veja o capítulo 32 Mateus 9.14. De Marcos e Lucas pode ser inferido que alguns fariseus eram interrogadores contumazes; mas

isto não é afirmado no texto sagrado.3 Mateus 21.324 Veja Buxtorf, De Synagoga Judaica, capítulo 30; também Zacarias 8.195 Lucas 18.126 João 3.267 João 5.358 Mateus I I .7-159 Mateus 11.16,1910 João 3.2911 Lucas 5.34, mê âunastbe ... poiêsai nêsteuein12 Mateus 9.16, rhakous agnaphou13 Lucas 5.36 dá à reflexão uma outra direção. O pano é meramente novo (kainon), e duas objeções ao remendo

são sugeridas. Primeira, o bom pano é perdido devido ao remendo, e teria sido melhor empregado na construção de uma nova peça. Segundo, o trabalho feito de retalhos é inadequado e insatisfatório. O velho e o novo não estão de acordo (<m sumphonei).

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14 Lucas 5.39. A versão apresentada no texto está de acordo com a leitura aprovada pelos críticos, de uma forma geral, na qual (diretamente) é omitida, e ao invés de (melhor) e permanece (bom). O sentido, de qualquer forma, é o mesmo. Está subentendido que o novo vinho será desejado mais adiante, e bom é uma realidade enfática positiva que, na prática, expressa superioridade.

15 Niebuhr, Lectures on Roman History, 2. 77, 7816 Durante sua última permanência na Galiléia, aproximadamente seis meses antes da crucificação.

' 17 Marcos 7.1, 2, 518 Lucas 11.3719 Lucas I I .39-41. Para uma passagem semelhante, veja Mateus 23.25, 2620 Marcos 7.4. klinwn significa mais propriamente '‘camas” e não “mesas”. Mas há controvérsias sobre o direito

da palavra estar no texto, e assim é omitida em algumas traduções.21 Buxtorf, De Syn.Jud. pp. 236, 237. Este autor cita a seguinte declaração de outro rabino: “Qui íllotis manibus

panem comedit, idem est ac si scorto accubaret” (p. 236).22 Números 6.1423 Marcos 7.1324 Isaías 29.1325 Mateus 15.17-20; Marcos 7.18-2326 Deuteronômio 23.24, 2527 Lucas 13.1428 Buxtorf, De Syn. Jud. pp. 352-356. O mesmo autor declara que era uma violação à lei deixar um galo usar um

pedaço de fita ao redor de suas pernas no sábado: fazia-lhe carregar algo. Também era proibido andar por um rio em pernas de pau, porque, embora a madeira pareça carregar-lhe, na verdade, é você que a carrega. Estes foram, provavelmente, requintes posteriores.

29 Êxodo 16.2330 Na justificação dessa prática apelaram a Neermas 8.1031 Lucas I4 .I32 Lucas 14.7-2433 Enarratio in Psalmum 91 (92.) 2. Reclamações semelhantes foram feitas por outros patriarcas, como Prudêncio

e Crisóstomo. Veja Bingham, B. 20. 100. 2.34 João 5.1035 De acordo com os escribas, este era o limite de uma jornada de sábado. Ele foi estabelecido pela distância entre

o muro de uma cidade levítica e a fronteira extrema de sua periferia. Existiam situações especiais em que se poderia estender a jornada. Veja Números 35.5; e Buxtorf, De Syn. Jud., cap. 16.

36 I Samuel 21.6. Isso ocorreu no sábado, pois o pão da proposição amanhecido era substituído por novos nesse dia (pães quentes assados no sábado). Mas este não é o ponto enfatizado pelo Senhor Jesus Cristo.

37 Lucas 13.14,1538 João 5.1739 Marcos 2.27,2840 A posição do sábado no decálogo (onde nada de interesse meramente judaico fora colocado, sendo de funda­

mental importância) indica, para toda a mente sincera, a idéia de perpetuidade. A questão mais contestada da natureza ética da lei do sábado não é de tão grande importância como tem sido imaginada. Moral ou não, o descanso semanal é de vital importância para todos os homens; assim, praticamente, se não filosoficamente, tem um grande valor ético. O quarto mandamento certamente difere dos outros nesse aspecto, pois não está escrito na consciência natural. A discussão poderia se estender até determinar que o descanso é necessário. Se o descanso deve ser periódico, ou em intervalos irregulares, no sétimo ou no décimo dia, como na França revolucionária, com sua mania pelo sistema decimal, devemos ter em mente que a compreensão da natureza deste descanso deve estar bastante clara a todos. Mas o decálogo estabelece essa questão, e a estabelece para sempre, para todos aqueles que crêem na origem divina da lei de Moisés. O quarto mandamento é uma revelação, para todos os tempos, da mente de Deus, sobre o importante assunto que é a relação apropriada entre o trabalho e o descanso.

41 Não sabemos muito bem como essa mudança foi efetuada. Ela provavelmente aconteceu gradativamente, e sem a completa consciência da transição que estava sendo feita, ou da sua importância. No início, os crentes pareciam ter-se encontrado para adorar no primeiro dia da semana; mas não há evidências de que descansavam inteiramente do trabalho nesse dia. Em muitos casos, eles não poderiam ter descansado se quisessem, como, por exemplo, no caso de escravos de senhores pagãos. Por essa razão, provavelmente, podemos entender o exemplo da

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Lições sobre a Liberdade Religiosa 117

igreja emTrôade, que se encontrava no início da noíte, e adorava até à meia-noite. Há indícios de que os primeiros cristãos descansavam no sétimo dia como judeus, e como cristãos adoravam na manhã ou na noite do primeiro dia, antes ou depois do seu trabalho cotidiano. Com o tempo, como os judeus-cristãos afastaram-se mais do judaísmo, e os adoradores gentios se multiplicaram, este fato teve uma influência preponderante nos costumes da igreja; o descanso no sétimo dia desapareceria, e o descanso no primeiro dia, no dia do Senhor, tomaria o seu lugar. Para evitar equívocos, é necessário explicar que o sétimo dia continuou a ser observado como um dia de jejum ou de festa, com s e r v i ço s religiosos; muito tempo depois ele deixou de ser considerado um dia no qual os homens deveriam descansar inteiramente do trabalho. Veja, sobre este assunto, Bingham, Origines Ecclesiastic#, B. 20. 100. 3.

42 Em Grego kuriakê hêtnera, ou simplesmente hê kuriakê; em Latim Dies Dominicus. Assim, emTertuliano, De Corona, 3, “Die Domimco jejunium nefas ducimus”.

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Primeiras Tentativas de EvangelizaçãoSeção I - A Missão

Mateus 10; Marcos 6 .7-13, 30-32; Lucas 9.1 - 1 1

O s doze agora se apresentam perante nós como eficientes agentes da propagação do reino de Deus. Depois de terem vivido durante algum tempo na companhia de Jesus, testemunhando suas obras milagrosas, ouvindo sua doutrina sobre o reino e aprendendo como deviam orar e viver, foram em seguida enviados para evangelizar as vilas e as cidades de sua província natal e curar os doentes em nome de seu Mestre e através de seu poder. Não há dúvida de que a missão dos discípulos como evan­gelistas, ou como apóstolos em fase de preparação, representava, em par­te, uma experiência educacional em seu próprio benefício; no entanto, sua principal finalidade era atender às necessidades espirituais do povo cuja condição de abandono pesava no coração de Jesus Cristo. O com­passivo Filho do Homem, no curso de suas andanças, havia observado como as populações se encontravam dispersas e divididas\ tal qual um rebanho sem pastor, e era seu desejo que todos soubessem que um bom Pastor havia chegado para cuidar das ovelhas perdidas da casa de Israel. As multidões estavam totalmente prontas para receber as boas-novas; a dificuldade residia em satisfazer à premente demanda do momento. A seara, os grãos, estavam prontos para a colheita, e eram abundantes, mas os ceifeiros eram poucos2.

Em relação a essa missão algumas coisas chamam nossa especial atenção: a região designada para o trabalho, a natureza desse trabalho, as instruções sobre como realizá-lo, os resultados da missão e o retorno dos missionários.

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Esses pontos serão analisados ordenadamente, exceto que, por con­veniência, deixaremos por último as instruções de Jesus aos seus discípu­los, reservando-lhes uma seção própria.

I) A região abrangida pela missão correspondia, em termos gerais, a toda a terra de Israel. “M as, ide antes” , disse ]esus aos do‘ze, “ às ove­lhas perdidas da casa de Israel”; e, continuando a narrativa de Mateus, Ele lhes fala como se o plano da missão incluísse uma visita a todas as cidades de Israel3. Entretanto, as atividades dos discípulos parecem ter ficado, praticamente, restritas à sua província natal da Galiléia e, mesmo dentro de seus reduzidos limites, elas foram levadas a efeito em vilas e aldeias, ao invés de cidades e municípios mais importantes, como por exemplo Tiberíades. As primeiras declarações baseiam-se no fato de que as ações dos discípulos atraíram a atenção de Herodes, o tetrarca da Galiléia4, significando que elas se realizaram nas vizinhanças5; enquanto as mais recentes são comprovadas pelas palavras do terceiro evangelista ao relatar um resumo da missão: “E, saindo eles, percorreram todas as aldeias, anunciando o evangelho e fazendo curas por toda a parte”6.

Embora os aprendizes missionários tivessem recebido permissão de ir até qualquer ovelha de Israel que estivesse perdida, e a todas se isso fosse praticável, eles estavam expressamente proibidos de estender seu trabalho além desses limites. Não deveriam caminhar nas terras dos gen­tios, nem entrar em qualquer cidade ou aldeia de samaritanos7. Em par­te, essa proibição se originava do plano geral que Cristo havia preparado para a fundação do reino de Deus na terra. Seu objetivo supremo era a conquista do mundo; mas para realizá-lo, Ele sabia que seria necessário primeiramente assegurar uma sólida base de operações na Terra Santa e entre o povo que Ele havia escolhido. Dessa forma, por ser pessoalmente o mensageiro de Deus para a nação judaica, e sendo essa uma razão bastante séria para não trabalhar entre os pagãos8, somente afastou-se dessa regra em algumas ocasiões e preencheu seu profético ministério com insinuações sobre um futuro próximo quando judeus, samaritanos e gentios estariam igualmente reunidos em uma comunidade divina9. Mas a principal razão dessa proibição estava relacionada à atual condi­ção espiritual dos próprios discípulos. Haveria de chegar o tempo em que Jesus iria dizer aos seus escolhidos: “Ide por todo o mundo, pregai o

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evangelho a toda criatura”10; mas esse tempo ainda não havia chegado. No período de sua primeira missão experimental, os doze discípulos ainda não estavam preparados para pregar o evangelho, ou para praticar as boas obras, quer entre os samaritanos quer entre os gentios. Suas mentes ainda eram muito estreitas e seus preconceitos muito arraigados: havia um excesso de conceitos judaicos e poucos conceitos cristãos em seu caráter. Para o trabalho universal do apostolado eles precisavam de um novo e divino esclarecimento e de um copioso batismo com o benig­no Espírito do amor. Suponha que um desses inexperientes evangelistas tivesse visitado uma das cidades de samaritanos; o que teria acontecido? Com toda probabilidade, teria se deixado envolver em discussões sobre as diferenças religiosas entre os samaritanos e os judeus, durante as quais, naturalmente, teria se destemperado; dessa forma, ao invés de procurar a salvação do povo que estava visitando, ele estaria em um estado de âni­mo mais inclinado a ordenar que o fogo do céu consumisse a todos, como realmente os discípulos se propuseram a fazer em um período subseqüente11.

2) O trabalho que lhes fora confiado era muito abrangente em um determinado aspecto, embora muito limitado em outro. Eles foram do­tados de poderes ilimitados quanto à realização de curas, mas sua auto­ridade ainda era muito restrita em relação à pregação. Em relação à pri­meira, suas instruções eram: “Curai os enfermos, limpai os leprosos, ressuscitai os mortos, expulsai os demônios; de graça recebestes, de gra­ça dai”; e, em relação à última: “E, indo, pregai, dizendo: Ê chegado o Reino dos céus”12. No primeiro caso, a autoridade parece ser muito ampla e, no segundo, muito limitada; mas em ambos a sabedoria de Jesus mostra-se merecedora de uma consideração mais profunda. Uma vez que se tratava de obras milagrosas, não havia qualquer necessidade de restrições, a não ser evitar o risco delas produzirem vaidade ou sober­ba naqueles que exercitassem tais poderes maravilhosos — um risco que certamente não era imaginário, mas que poderia ser remediado quando assumisse um aspecto mais tangível. Todos os milagres praticados pelos discípulos eram, na realidade, praticados pelo próprio Senhor Jesus; e a única função deles consistia em empregar o seu nome com toda fé. Pare­ce que isso foi perfeitamente entendido por todos; pois as obras realiza-

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das pelos apóstolos não levaram o povo da Galiléia a pensar quem eles eram, mas somente quem era aquele em cujo nome todas essas coisas eram feitas13. Portanto, sendo vontade de Cristo que tais milagres fos­sem realizados através de seus discípulos, como instrumentos, tornou-se muito fácil para eles realizar tanto as maiores como as menores obras; se, na verdade, existisse qualquer sentido em se falar em graus de dificulda­de em relação a mdagres, o que seria mais do que duvidoso.

Por outro lado, em relação à pregação, não havia apenas uma razão, mas também uma necessidade, para essas restrições. Os discípulos não podiam ir além de proclamar o fato de que o reino havia chegado e convidar os homens de toda parte a se arrependerem, como forma de se prepararem para esse advento. Isso era, realmente, tudo o que sabiam. Ainda não haviam compreendido, em sua mínima intensidade, a doutri­na da cruz e nem mesmo a natureza desse reino. Tinham, na verdade, ouvido seu Mestre discursar profundamente a esse respeito, mas não compreenderam suas palavras. Suas idéias a respeito do reino vindouro eram quase tão incipientes e mundanas como a dos outros judeus, que aguardavam a restauração da independência política de Israel e uma pros­peridade temporal igual à dos gloriosos dias da antiguidade. Somente em um ponto eles se colocavam à frente dos conceitos da época. Haviam aprendido, de João e de Jesus, que o arrependimento era necessário para alguém se tornar cidadão desse reino. Em todos os outros aspectos, eles e seus ouvintes certamente pertenciam ao mesmo nível. Portanto, longe de acreditar que o programa de pregação dos discípulos fosse bastante limitado, somos levados a imaginar como Jesus poderia ter confiado totalmente nas palavras enunciadas através da boca desses homens sobre os assuntos do reino. Não haveria o perigo de que homens com idéias tão primitivas pudessem alimentar esperanças enganadoras e dar origem a uma comoção política? Será que não poderíamos descobrir traços reais de tal comoção nos sinais observados em seus movimentos na corte de Herodes e na proposta feita em seguida pela multidão de levar Jesus à força para fazer dele um rei?14. Não há duvida de que havia um perigo nessa direção. Para evitá-lo, Jesus teve de deixar desprotegido o pobre e abandonado o povo e tomar todas as precauções possíveis para eliminar, o quanto possível, qualquer desordem. Para tanto proibiu verdadeira­

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mente que seus mensageiros entrassem em detalhes sobre o assunto do reino, colocando um formato seguro nas palavras que viriam a pronun­ciar. Foram instruídos a anunciar o reino como o Reino dos céus15; algo que alguns poderiam entender como uma visão encantadora, mas que os homens do povo poderiam imaginar ser completamente diferente da­quilo que desejavam. Um reino celestial! O que isso representava para eles? O que queriam era um reino terreno, no qual pudessem viver com paz e felicidade sob um governo justo e, acima de tudo, com abundância do que comer e beber. Um reino celestial! Isso só servia para aqueles que não tinham esperança na terra; um refúgio para os desesperados, um melancólico consolo na ausência de um conforto melhor. Sim, homens mundanos! Na opinião desses, essa mensagem só seria dirigida a ho­mens considerados miseráveis. Somente aos pobres o reino deveria ser pregado. Somente àqueles que labutam e estão pesadamente oprimidos foi feito o convite: “Vinde a mim”, juntamente com uma promessa de repou­so; de repouso da ambição e do descontentamento, uma promessa de pla­nos e de carinho, na esperança abençoada do sobrenatural e do eterno.

3) A impressão produzida pelo trabalho dos doze discípulos parece ter sido bastante considerável. A fama de seus feitos, como já salienta­mos, alcançou os ouvidos de Herodes e parece que grandes multidões os acompanhavam quando se movimentavam de um lugar para outro. Por exemplo, ao retornarem de sua missão para juntar-se à companhia do Mestre, eles eram atropelados por uma multidão ansiosa e cheia de ad­miração que havia testemunhado ou experimentado os benefícios de suas obras, de tal forma que se tornou necessário retirarem-se para um lugar deserto a fim de desfrutar de um tranqüilo intervalo de repouso. “Por­que havia muitos”, nos informa o segundo evangelista, “que iam e vi­nham, e não tinham tempo para comer. E foram sós num barco para um lugar deserto”16. Mesmo na solidão dos lugares ermos das praias do mar da Galiléia eles não conseguiam assegurar sua almejada privacidade. “E a multidão viu-os partir, e muitos os conheceram, e correram para lá, a pé, de todas as cidades, e ali chegaram primeiro do que eles, e aproximavam- se deles”17.

Sob o aspecto da qualidade parece que os resultados da missão fo­ram bem menos satisfatórios que sua amplitude. As impressões religio-

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sas produzidas parecem ter sido, em sua grande maioria, superficiais e passageiras. Havia muitas flores, por assim dizer, nas macieiras da esta­ção primaveril desse “reavivamento” galileu; mas um número comparati­vamente pequeno daquelas que se tornavam frutos. E, desses, um núme­ro ainda menor alcançou o estágio do completo amadurecimento. Fica­mos sabendo disso a partir do que aconteceu logo depois, em conexão com o discurso de Cristo sobre o pão da vida, na sinagoga de Cafarnaum. Os mesmos homens que, depois de terem sido milagrosamente alimenta­dos no deserto teriam transformado Cristo em um rei, foram os mesmos que, em conjunto, o desertaram, escandalizados por sua misteriosa doutri­na; e, em sua maioria, os que assim fizeram eram exatamente aqueles que ouviram os doze discípulos enquanto pregavam o arrependimento18.

Essa situação, diante de tão benevolentes atitudes, deve ter sido pro­fundamente desapontadora para o coração de Jesus. No entanto, é de admirar que o relativo malogro do primeiro movimento evangelístico não o tenha impedido de repetir a experiência algum tempo depois e em uma escala ainda mais extensa. “E depois disso”, escreve o terceiro evangelista, “designou o Senhor ainda outros setenta e mandou-os adi­ante da sua face, de dois em dois, a todas as cidades e lugares aonde ele havia de ir”19. A escola de críticos de Tübingen, como já indicamos an­teriormente20, argumenta que essa missão não aconteceu, e tenta afirmar que foi uma total invenção do terceiro evangelista, com a intenção de ressaltar a missão dos doze e exibir a religião cristã como uma religião para a humanidade, representada pelos samaritanos como os seus desti­natários e pelos setenta como os pregadores da fé, cujo número corresponde ao número das nações. Essa teoria pode até parecer ter al­gum sentido, pois não há tantos detalhes sobre a história dessa missão; apenas o necessário. No entanto, a hipótese de ter sido inventada é uma violência à Palavra de Deus e podemos, com segurança, ter toda a certe­za de que a narrativa de Lucas se apóia em uma autêntica tradição. O motivo dessa segunda missão foi o mesmo da primeira, e as instruções aos missionários foram as mesmas. Jesus ainda sentia uma profunda com­paixão pela multidão que perecia e, demonstrando uma esperança que contrariava todas as perspectivas, fez uma nova tentativa de resgatar as ovelhas perdidas. Ele faria com que todos os homens fossem, pelo me-

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nos, chamados para a comunhão do reino, embora poucos fossem real­mente os escolhidos. E, quando os resultados imediatos se tornaram promissores, Ele se sentiu gratificado, embora sabendo por experiências passadas, assim como através de sua onisciência, que a fé e o arrependi­mento de muitos seriam, provavelmente, tão passageiros quanto o orva­lho da manhã. Quando os setenta retornaram de sua missão, e comuni­caram seu grande sucesso, Ele os saudou enfatizando o presságio da derrota do reino de Satanás e, regozijando-se em espírito, deu graças ao Supremo Soberano do céu e da terra, seu Pai, porque enquanto as coisas do reino estavam ocultas dos sábios e dos inteligentes, dos cidadãos cheios de aparente inteligência e entendimento, elas foram, por sua gra­ça, reveladas aos pequeninos — aos incultos, pobres e ignorantes21.

Na oração de ação de graças de Jesus, a referência feita aos “sábios e inteligentes” sugere que, em relação a esses esforços de evangelização, eles eram considerados com desdém por alguns dos membros das classes refinadas e obstinadas, difíceis de contentar, da sociedade religiosa ju­daica. Isso teria sido realmente muito provável. Sempre existem homens na igreja, inteligentes, sábios e até bons, aos quais os movimentos religi­osos populares são muito desagradáveis. O barulho, a emoção, as extra­vagâncias, as desilusões, o mau direcionamento do zelo religioso, a igno­rância dos agentes, a instabilidade dos convertidos — todas essas coisas lhes trazem muito mal-estar. A mesma classe de intelectuais teria se ofen­dido com o trabalho evangelístico dos doze discípulos e dos outros se­tenta pois, indiscutivelmente, ele estaria acompanhado dos mesmos em­pecilhos. Os agentes eram ignorantes; tinham poucas idéias, entendiam muito pouco sobre a verdade divina; sua única qualificação era a sinceri­dade de seus corações e a capacidade de pregar muito bem o arrependi­mento. Sem dúvida, também havia uma boa dose de barulho e de emo­ção entre as multidões que ouviam suas pregações; e sabemos, certamen­te, que seu zelo religioso ainda era ao mesmo tempo mal informado e de curta duração. Essas coisas, na verdade, são características permanentes de todo movimento popular. Jonathan Edwards, falando com referência ao “reavivamento” da religião que aconteceu na América em seus dias, diz com toda propriedade: “Uma grande dose de barulho e de tumulto, de confusão e de alvoroço, de trevas misturadas com luz, e do mal com o

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bem, sempre devem ser esperados no início de alguma coisa muito glori­osa acontecida no estado de coisas da sociedade humana, ou na ig re ja de Deus. Depois que a natureza esteve fechada por muito tempo em uma condição fria e morta, e o sol retorna na primavera, juntamente com o aumento da luz e do calor aparece um período de tempestades, antes de tudo ficar novamente ordenado, calmo e sereno e de toda a natureza se rejubilar em flores e beleza”22.

Nenhum dos “sábios e inteligentes” conhecia tão bem quanto Jesus todo o mal que estaria misturado com o bem nas obras do reino. Mas Ele não se ofendia tão facilmente como eles. O Amigo dos pecadores sempre foi assim. Ele se condoía pela multidão e não podia, como os fariseus, contentar-se em submetê-la a uma permanente condição de ig­norância e de devassidão. Ele se alegrava imensamente mesmo que uma única ovelha fosse conquistada; e, podemos dizer, que Ele se regozijava quando não apenas uma, mas todo o rebanho, começava a retornar ao redil. Para Ele era motivo de alegria ver os homens se arrependerem mesmo que fosse apenas durante uma única estação, pressionando para entrar no reino até com violência e impetuosidade23; pois seu amor era forte, e quando um forte amor está presente, até a sabedoria e o refina­mento deixam de ser difíceis de contentar.

Antes de concluir esse tópico, devemos observar que existe uma outra classe de cristãos, muito distinta daquela dos sábios e inteligentes, perante cujos olhos tais esforços de evangelização, como daqueles doze discípulos, não precisam de justificação. Sua tendência, ao contrário, é considerar tais esforços como a plenitude dos trabalhos do reino. O reavivamento religioso, entre as massas negligenciadas, representa para eles a soma de todas as boas obras. Eles não tomam conhecimento dos outros trabalhos de instrução, mais silenciosos e menos notáveis, que ocorrem na igreja. Segundo sua opinião, onde não existe uma óbvia emoção a igreja está morta e seu ministério é ineficiente. Deve ser lem­brado que existiam dois movimentos religiosos acontecendo nos dias no Senhor Jesus. Um deles consistia em levantar as massas da letargia da indiferença; o outro consistia no treinamento cuidadoso e preciso de homens já dedicados aos princípios e às verdades do reino divino. No

■ caso do primeiro movimento os discípulos, isto é, tanto os doze quanto

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os setenta, eram agentes; no caso do outro movimento eles eram os sujei­tos. E o último movimento, embora menos notável, e muito mais limita­do em sua extensão, era de longe mais importante que o primeiro; pois estava destinado a produzir frutos que deveriam permanecer — em rela­ção não só ao tempo presente, mas a toda a história do mundo. São muitas as verdades profundas que o grande Mestre, como se estivesse na sombra, estava então de forma silenciosa e desapercebida instilando nas mentes de um grupo seleto, isto é, dos destinatários de seus ensinos confidenciais, e que deveriam ser propagadas à luz do dia; e o som de suas vozes não cessaria até que tivesse percorrido toda a terra. Teríamos uma pobre perspectiva do reino dos céus se Cristo tivesse negligenciado seu trabalho e se dedicado inteiramente a uma vaga evangelização entre as massas.

4 ) Ao terminar a missão, os doze discípulos retornaram e contaram ao Mestre tudo o que haviam feito e ensinado. Sobre seus relatos, assim como sobre as observações do Mestre, poucos detalhes foram registrados. Entretanto, realmente encontramos esses detalhes em conexão com a última missão dos setenta. Lemos que “voltaram os setenta com alegria, dizendo: Senhor, pelo teu nome, até os demônios se nos sujeitam”24. O mesmo evangelista que registrou essas palavras nos informa que, depois de congratular os discípulos pelo seu sucesso, Jesus lhes falou com pala­vras de advertência: “Mas não vos alegreis porque se vos sujeitem os espíritos; alegrai-vos, antes, por estar o vosso nome escrito nos céus”25. Foi um aviso oportuno contra a soberba e a vaidade. E muito provável que um aviso semelhante também tenha sido dirigido aos doze quando estes retornaram. E certo que tais palavras teriam sido adequadas ao seu caso. Eles haviam estado envolvidos no mesmo trabalho emocionante, tinham sido igualmente cheios de poder para realizar milagres, e assim foram bem-sucedidos; porém eram igualmente imaturos em seu caráter e, deste modo, também tiveram dificuldade para lidar com o sucesso. E provável, portanto, que quando Jesus lhes disse no seu retorno: “Vinde vós, aqui à parte, a um lugar deserto, e repousai um pouco”26, Ele não estava preocupado apenas com os seus corpos, mas procurando, pruden­temente, proporcionar repouso às suas mentes inflamadas, assim como aos seus corpos exaustos.

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A advertência aos setenta missionários também serve como uma oportuna mensagem a todos aqueles que são demasiadamente zelosos no trabalho da evangelização, especialmente junto aos que são ignoran­tes em relação ao conhecimento e à graça. Ela sugere a p o s s ib i l i d a d e d e sua saúde espiritual ser atingida pelo mesmo zelo que os leva a procurar a salvação dos outros. Isso pode acontecer de várias maneiras. O sucesso pode tornar o evangelista vaidoso e fazer com que ele comece a despre­zar até seus próprios discípulos. Podem cair sob o domínio do diabo através da mesma alegria que sentem ao perceber que têm domínio sobre este. Podem desprezar aqueles que não tiveram tanto sucesso ou denunciá- los como deficientes em seu zelo. O eminente clérigo americano que citamos anteriormente nos oferece um relato lamentável sobre o orgu­lho, a presunção, a arrogância, a vaidade e a censura implacável que ca­racterizaram muitos dos mais eficientes promotores do reavivamento religioso de sua época27. A história pode se repetir uma vez mais, e al­guns podem deixar-se levar por uma segurança carnal em relação ao seu próprio estado espiritual e considerar impossível que qualquer coisa er­rada possa acontecer àqueles que são tão fiéis, e a quem Deus tem guar­dado tão generosamente. Esse é um erro tão óbvio quanto perigoso, pois não há dúvida de que Judas fez parte dessa missão na Galiléia. Nada sabemos em contrário: ele foi tão bem-sucedido quanto os outros discí­pulos na tarefa de expulsar os demônios. Homens que não têm a graça de Deus podem, durante algum tempo, ser empregados como agentes para a promoção da obra da graça no coração de seus semelhantes. No entanto, ser eficiente não quer dizer, necessariamente, ser bem-sucedido, de acordo com o ensino do próprio Cristo. Ele declara no Sermão da Montanha: “Muitos me dirão naquele Dia: Senhor, Senhor, não profe­tizamos nós em teu nome? E, em teu nome, não expulsamos demônios? E, em teu nome, não fizemos muitas maravilhas?” Observe a resposta que Ele diz que dará aos tais. Ele não lhes dirá: “Não duvido da veracida­de da afirmação de vocês — isso está tacitamente admitido”; mas o Senhor lhes dirá: “Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade”28.

Essas palavras solenes sugerem a necessidade da vigilância e do auto- exame; no entanto, elas não têm o propósito de desestimular ou desa-

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provar o zelo. Não devemos interpretá-las como se estivessem dizendo: “Não se preocupe em jaz er o bem, somente em ser bom”, ou “Não se preocupe com a salvação dos outros, procure a sua própria salvação”. Jesus Cristo não ensinou uma religião egoísta ou indiferente. Ele incul- cou em seus discípulos uma preocupação generosa e liberal pelo bem- estar espiritual dos homens. Para fomentar tal disposição Ele enviou os doze discípulos a essa missão experimental mesmo estando ainda relati­vamente despreparados para o trabalho, e apesar do risco de sofrerem prováveis danos espirituais aos quais a própria missão os expunha. Ape­sar de todos os perigos, Ele desejava que seus discípulos ficassem im­pregnados de entusiasmo pelo progresso do reino, tomando o devido cuidado apenas para controlar os maus hábitos, quando estes começas­sem a aparecer (aos quais os jovens são suscetíveis), através de uma pala­vra de advertência e de um oportuno retiro para um lugar onde pudes­sem estar a sós.

Seção II - As InstruçõesAs instruções que Jesus deu aos doze discípulos, quando foram en­

viados à sua primeira missão, podem ser divididas em duas partes distin­tas. A primeira, mais resumida e comum às narrativas dos três primeiros evangelistas, está relacionada com o presente; a segunda parte, muito mais extensa e peculiar à narrativa de Mateus, está relacionada principal­mente com o futuro distante. Na primeira, Cristo diz aos seus discípu­los como deviam proceder naquele momento durante o aprendizado de seu apostolado e, na última, o que deveriam fazer e suportar quando se tornassem apóstolos, em uma escala maior, ao pregar o evangelho, não apenas aos judeus mas a todas as nações.

Tem sido discutido se as palavras do discurso incluído na segunda parte das instruções apostólicas ou missionárias, conforme relato de Mateus, foram realmente pronunciadas por Jesus nessa ocasião.Tem sido enfatizado, por aqueles que adotam uma opinião contrária sobre o as­sunto, o fato de somente o primeiro evangelista relatar esse discurso em conexão com a missão experimental e a maior parte de seu conteúdo ser relatada por outros evangelistas em conexões diferentes. Em apoio a esse ponto de vista, também têm sido feitas referências à declaração, feita por

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Jesus aos seus discípulos em sua mensagem de despedida antes da cruci­ficação, de que até então Ele ainda não lhes havia falado sobre as futuras perseguições por considerar isso desnecessário enquanto Ele ainda esti­vesse em sua companhia29. Finalmente, tem sido considerado pouco pro­vável que Jesus fosse amedrontar seus inexperientes discípulos ao fazer alguma alusão a perigos não iminentes durante o período de sua missão na Galiléia. Essas dúvidas são legítimas, em vista de seu método tópico de dispor os assuntos, sem dúvida imitado por Mateus, mas não são conclusivas. Seria natural que a primeira viagem missionária dos doze homens que havia escolhido fosse assinalada por um discurso que, tal como foi registrado por Mateus, estabelecesse os deveres, perigos, encorajamentos e recompensas da vocação apostólica. Esse era o méto­do que usava, em ocasiões solenes, de falar como um profeta que via o futuro embora estando no presente e que, a partir de coisas insignifican­tes, aguardava a realização de grandes e supremos resultados. E essa mis­são na Galiléia, embora humilde e limitada quando comparada às gran­des realizações dos anos seguintes, foi realmente um evento solene. Ela foi o início de um extenso trabalho designado aos doze escolhidos que abrangeu todo o mundo em seu escopo e se propôs a estabelecer o reino de Deus na terra. Se o Sermão da Montanha foi pronunciado apropria­damente na ocasião em que a companhia apostólica foi formada, esse discurso sobre a vocação apostólica não teria sido menos apropriado quando os membros dessa mesma companhia puseram-se a trabalhar naquilo para o que haviam sido convocados. Mesmo as alusões feitas a perigos remotos, contidas nesse discurso, aparecem como uma reflexão natural e oportuna, calculadas mais para tranqüilizar do que para ame­drontar os discípulos. Devemos lembrar que a execução de João Batista havia ocorrido recentemente e que eles estavam prestes a iniciar seus trabalhos missionários dentro dos domínios do tirano sob cujo coman­do o bárbaro assassinato havia sido cometido. Não há dúvida de que esses homens humildes, que estavam prestes a assumir e repetir a mensa­gem de João Batista — “Arrependam-se” — não corriam nenhum risco de sofrer o mesmo destino; mas era natural que devessem sentir medo e também natural que seu Mestre se preocupasse com o futuro deles quando tais receios se tornassem menos imaginários; na verdade, nessas duas

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situações teria sido natural dizer: “Perigos se aproximam, mas não te­nham medo”.

Em essência, esse é o ônus da segunda parte das instruções de Cris­to aos seus doze discípulos. O dever na primeira parte, por outro lado, é apenas “não se p r e o c u p em Essas palavras, não se preocupem, ou não te­mam, representam a alma e o cerne de tudo o que foi dito, como forma de introdução ao primeiro empreendimento missionário e, podemos acrescentar, a todos os que se seguiram. Pois aqui Jesus está se dirigindo a todas as eras e a todos os tempos, dizendo à igreja qual deve ser o espírito que deve prevalecer e permanecer em todas as suas realizações missionárias, para que possam receber as suas bênçãos.

I ) O dever de, sem quaisquer cuidados, participar dessa missão, confiando apenas na providência para as necessidades da vida, foi incul- cado nos doze discípulos pelo Mestre através de termos muito fortes e cheios de entusiasmo. Eles foram instruídos a nada providenciar para sua jornada, e ir exatamente como estavam. Não deviam providenciar ouro nem prata, nem levar nenhuma moeda de cobre em sua bolsa, ne­nhuma sacola ou alforje para carregar alimentos, nenhuma mudança de trajes, nem mesmo sandálias para os pés ou um bastão para as mãos. Se por acaso já tivessem alguns desses artigos mencionados, não haveria problema; caso contrário, poderiam muito bem passar sem eles. Poderi­am ir descalços em sua missão de amor, sem mesmo a ajuda de um bastão para se apoiar ao longo de seu fatigante caminho, tendo os pés calçados somente com a preparação do evangelho da paz e apoiando seu peso nas palavras da promessa de Deus: “E a tua força será como os teus dias”30.

Não é nessas simples palavras, mas nas instruções para o caminho, que reside o seu espírito pleno de valor intrínseco e permanente. A ver­dade dessa afirmação encontra-se evidente nas próprias variações dos evangelistas ao relatar as palavras de Cristo. Uma delas, por exemplo (Marcos), nos diz que, na verdade, Jesus queria dizer aos seus discípulos: Se você tem um bastão em suas mãos e sandálias em seus pés e um manto sobre os ombros, isso bastará. Outro (Mateus) representa o se­guinte significado nas palavras de Jesus: Nada prepare para essa viagem, nem manto, sapato ou bastão31. Em espírito, essas duas versões levam à

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mesma recomendação; mas se insistirmos na exatidão legal dos termos dos procedimentos, parecerá que existe uma óbvia contradição entre eles. O que Jesus queria dizer, em qualquer forma de linguagem que usasse, era o seguinte: Vão imediatamente, da maneira que estão, e não se preo­cupem com alimento ou vestuário, ou qualquer outra necessidade do corpo; para isso confie em Deus. Suas instruções procediam do princí­pio da divisão do trabalho, confiava deveres militares aos servos do reino e a Deus o comissariado ou a intendência.

Assim entendidas, as palavras de nosso Senhor têm uma permanen­te validade, para ser conservada na mente de todos aqueles que o servem em seu reino. E, embora as circunstâncias da igreja tenham se alterado imensamente desde o dia em que essas palavras foram proferidas pela primeira vez, elas não devem ser perdidas de vista. Muitos ministros e missionários obedeceram a essas instruções quase ao pé da letra e muitos mais as têm guardado em seu espírito. Na verdade, não teria cada pobre estudante seguido essas determinações, abandonando o humilde teto de seus pais para ser treinado como ministro do evangelho, sem dinheiro no bolso para comprar alimento ou pagar taxas, trazendo no coração so­mente a simples fé e esperança da juventude, sem saber como encontrar o caminho para o trabalho pastoral, assim como Abraão nada sabia de seu caminho para a terra prometida quando deixou a sua terra? Mas, assim como Abraão, confiava que Deus, que lhe havia dito para deixar a casa de seus pais, seria seu guia, seu escudo e seu provedor. E, se aquele que assim começasse em sua carreira chegasse, por fim, a um lugar de riquezas, no qual suas necessidades seriam abundantemente atendidas, não teria sido isso a providência endossando a lei enunciada pelo Mes­tre: “Digno é o operário do seu alimento”?32

As instruções dadas aos doze discípulos, em relação às coisas tem­porais de sua primeira missão, tiveram a intenção de educá-los para seu futuro trabalho. No início dos deveres do apostolado, eles deveriam, literalmente, viver pela fé e Jesus, misericordiosamente, procurou acostumá-los a esse hábito enquanto ainda estava ao lado deles na terra. Portanto, ao enviá-los a pregar na Galiléia, Ele realmente estava dizendo: Vão e aprendam a buscar o reino de Deus com um coração simples, despreocupado com alimentos ou vestuário; pois até que possam fazê-lo

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não estarão prontos para ser meus apóstolos. Na verdade, eles tinham estado aprendendo a fazer isso assim que começaram a seguir Jesus; pois aqueles que pertenciam à sua companhia viviam, literalmente, do dia-a- dia, sem pensar no amanhã. Mas havia uma diferença entre a sua condi­ção passada e a condição que estavam prestes a vivenciar. Até esse mo­mento Jesus tinha estado com eles; agora, durante um período, estariam por sua própria conta. Antes, tinham sido como as criancinhas de uma família, sob os cuidados de seus pais, ou como pássaros recém-nascidos em um ninho, protegidos pelas asas da mãe, precisando apenas abrir bastante a boca para serem alimentados; agora haviam se tornado como meninos que deixam a casa de seu pai para servir como aprendizes, ou como as pequenas aves que deixam seu tépido ninho, onde eram prote­gidas, para treinar suas asas e procurar alimento por conta própria.

Enquanto pedia a seus discípulos que caminhassem pela fé, Jesus lhes dava essa fé como algo em que pudessem se apoiar, encorajando-os a esperar que aquilo que não pudessem prover por sua conta, Deus pro­veria através da instrumentalidade de seu povo. “E, em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, procurai saber quem nela seja digno e hospedai-vos aí até que vos retireis”33. Observamos que o Senhor estava dizendo que, em qualquer lugar, sempre seria encontrado pelo menos um homem que fosse justo e de coração bondoso, que iria receber os mensageiros do reino em sua casa e em sua mesa somente por puro amor a Deus e à verdade. Certamente, essa não era uma suposição exagerada! Não haveria sequer uma aldeia miserável, para não dizer uma cidade, que não tivesse uma pessoa digna. Mesmo a pecadora Sodoma tinha Ló vivendo dentro de seus muros, um homem capaz de receber anjos sem

Para assegurar um bom tratamento a seus mensageiros, em todas as eras, e em qualquer lugar que seu evangelho fosse pregado, Jesus disse que havia colocado uma recompensa em todos os atos de bondade que lhes fossem feitos. Esse aviso pode ser encontrado ao final do discurso proferido aos doze discípulos nessa época: “Quem vos recebe”, Ele lhes disse, “a mim me recebe; e quem me recebe a mim, recebe aquele que me enviou. Quem recebe um profeta na qualidade de profeta receberá galardão de profeta; e quem recebe um justo na qualidade de justo”. Então, com

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mais solenidade e compaixão, Ele acrescentou: "E qualquer que tiver dado só que seja um copo de água fria a um destes pequenos, em nome de discípulo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão”34. Como devia ser fácil ir à Galiléia, e até a todo o mundo, servindo a um Mestre tão compreensivo, e nestes termos!

No entanto, embora encorajando dessa forma os jovens evangelistas, Jesus não lhes permitiu partir levando a idéia de que tudo seria agradável em sua experiência. Procurou fazê-los entender que poderiam ser da mesma forma bem ou mal recebidos. Poderiam encontrar pessoas rudes ou sovinas que lhes negariam sua hospitalidade e pessoas estúpidas e indiferentes que iriam rejeitar sua mensagem; mas, mesmo nesses casos, Ele lhes assegurou que não ficariam desprovidos de consolo. Se sua pa­cífica saudação não fosse correspondida eles iriam, em qualquer circuns­tância, gozar dos proveitos de seu próprio espírito de boa vontade, pois sua paz lhes seria devolvida. Se suas palavras não fossem bem recebidas por nenhuma pessoa a quem tivessem pregado, pelo menos estariam li­vres de culpa, e poderiam sacudir o pó de suas sandálias e dizer: “O vosso sangue seja sobre a vossa cabeça; eu estou limpo e, desde agora, parto...”35. Palavras solenes, mas muito apropriadas, que não deveriam ser proferidas, especialmente por discípulos jovens e inexperientes, com orgulho, impaciência ou rancor, mas com calma, humildade e delibera­ção, como parte da mensagem de Deus aos homens. Quando enunciadas com qualquer outro espírito elas são um sinal de que o pregador tem tanta culpa quanto o ouvinte pela rejeição da mensagem. Poucos têm o direito de dizer essas palavras, pois elas exigem uma pregação verdadei­ramente fora do comum, que torne a falta dos descrentes tão grande que seria mais tolerável em Sodoma e Gomorra no dia do juízo, do que para eles. Mas tal pregação aconteceu. Assim era a pregação de Cristo e, por­tanto, era esse o temível destino que anunciou àqueles que rejeitassem as suas palavras. Também essa seria a pregação dos apóstolos; dessa forma, para sustentar sua autoridade, Jesus declarou solenemente que o castigo por desprezar as palavras dos mensageiros seria igual ao de negligenciar a sua própria palavra36.

2 ) As demais instruções, que se referem mais ao futuro que ao pre­sente, embora mais abundantes não exigem uma explicação mais prolon-

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gada. O objetivo de todas elas, como já dissemos, é não temer. Tal como o refrão de uma canção, essa exortação é repetida muitas vezes durante o discurso37. A partir desse fato, os doze apóstolos devem ter concluído que seu destino devia ter uma qualidade própria de lhes inspirar o medo. Mas Jesus não deixou que aprendessem isso através de uma simples inferência; tendo toda a história da igreja sob seus olhos, Ele lhes disse claramente: “Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos”. Em seguida, começou a explicar em detalhes, e com espantosa nitidez, as várias formas de perigo que aguardavam os mensageiros da verdade; como seriam entregues a conselhos, flagelados nas sinagogas, levados perante governantes e reis (como Félix, Festo e Herodes) e odiados por todos por causa de seu nome38. Ele explica que esse estranho tratamento era, ao mesmo tempo, inevitável pela natureza das coisas e a necessária con­seqüência da verdade divina atuando no mundo como um solvente quí­mico, que separava os homens em grupos, de acordo com o espírito que os estivessem dominando. A verdade iria dividir até os membros de uma mesma família, tornando-os dolorosamente hostis uns contra os ou­tros39; e, embora o resultado pudesse ser deplorável, seria um daqueles para o qual não existe remédio. Ofensas deveriam acontecer: “Não cuideis”, disse aos seus discípulos, horrorizados com esse quadro tene­broso, talvez esperando secretamente que seu Mestre o tivesse pintado com cores demasiado sombrias, “que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada; porque eu vim pôr em dissensão o homem con­tra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra. E, assim, os inimigos do homem serão os seus familiares”40.

Entre tais perigos, duas virtudes seriam especialmente necessárias — a precaução e a fidelidade; a primeira para que os servos de Deus não fossem eliminados precoce ou desnecessariamente; a segunda para que pudessem, enquanto vivessem, fazer realmente a obra de Deus e lutar pela verdade. Nessa época, os discípulos de Cristo não deviam sentir medo, mas ser bravos e destemidos; no entanto, embora destemidos, não deviam ser imprudentes. Essas qualidades não são fáceis de combinar pois homens escrupulosos tendem a ser impetuosos e homens prudentes a ser infiéis. Mas, essa combinação não é impossível, de outro modo não teria sido exigida, como nesse discurso. Pois foi exatamente a importân-

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cia de se cultivar virtudes aparentemente incompatíveis, como o cuidado e a fidelidade, que Jesus teve a intenção de ensinar por meio do notável provérbio-preceito: “Sede prudentes como as serpentes e símplices como as pombas”41. A serpente é o emblema da astúcia e a pomba, o da sim­plicidade. Não existem criaturas tão diferentes; no entanto, Jesus exige que seus discípulos sejam ao mesmo tempo como uma serpente na pre­caução e como uma pomba na simplicidade de seu objetivo e na pureza de seu coração. Felizes aqueles que podem ser ambas, mas se não puder­mos, sejamos, pelo menos, como as pombas. A pomba deve ter prece­dência em relação à serpente em nosso amor próprio e no desenvolvi­mento de nosso caráter. Essa ordem pode ser observada na história de todos os verdadeiros discípulos. Eles começam com uma impecável sin­ceridade mas, depois de serem enganados por um generoso entusiasmo e assim levados a algum ato de impetuosidade, aprendem a tempo as vir­tudes da serpente. Se invertermos essa ordem, como muitos fazem, e começarmos por ser prudentes e criteriosos até causar admiração, o re­sultado será que a virtude de maior valor não será apenas adiada, mas sacrificada. A pomba será devorada pela serpente e a causa da virtude e da justiça será traída pelo principio básico do instinto da preservação e das vantagens mundanas.

Ao ouvir esse anúncio de máxima moral podemos, naturalmente, desejar conhecer como ela se aplica a casos particulares. Cristo atendeu a esse desejo em relação a essa máxima profunda e fecunda: “Sede pru­dentes como as serpentes e símplices como as pombas” dando exemplos de sua aplicação. O primeiro caso a ser imaginado foi aquele dos mensa­geiros da verdade serem levados perante tribunais civis ou eclesiásticos para responder por si mesmos. Aqui, o ditado da sabedoria é: “Acautelai- vos, porém, dos homens”42, isto significa algo como: Não sejam tão simples a ponto de imaginar que todos os homens sejam bons, sinceros, justos e tolerantes. Lembrem-se de que existem lobos no mundo — homens cheios de malícia, falsidade e desonestidade, capazes de inventar as acusações mais atrozes contra vocês baseadas nas mais descaradas men­tiras. Fiquem longe de suas armadilhas, se puderem; e, se caírem em suas mãos, não esperem deles sinceridade, justiça ou generosidade”. Mas como devemos responder a esses homens? Será que a astúcia deve ser respondi-

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da com astúcia, e mentiras com mentiras? Não: aqui é a hora da simpli­cidade da pomba. A esperteza e a astúcia não trazem benefícios nessa hora; a segurança reside em confiar na orientação do céu e em dizer a verdade. “Mas, quando vos entregarem, não vos dê cuidado como ou o que haveis de falar, porque, naquela mesma hora, vos será ministrado o que haveis de dizer. Porque não sois vós quem falará, mas o Espírito de

[ vosso Pai é que fala em vós”43. O conselho dado aos apóstolos foi justi­ficado pela experiência. Que esplêndido livro poderia ter sido feito com a coleção dos discursos pronunciados pelos confessores da verdade, sob a inspiração do espírito divino! Seria uma espécie de Bíblia dos Mártires.

Em seguida, Jesus apresenta a questão dos arautos de seu Evangelho serem expostos à perseguições populares e mostra como superar esse obstáculo. Tais perseguições, muito diferentes dos procedimentos jurí­dicos, eram muito comuns na experiência apostólica e representaram um fato concreto em todas as eras críticas. O populacho ignorante e supers­ticioso, repleto de preconceitos e malícia, e instigado por homens astuciosos, exerce o papel de obstruir a causa da verdade, tumultuando, escarnecendo e atacando os mensageiros de Deus. Como, então, deveri­am agir os receptores desse vil tratamento? Por um lado, deveriam mos­trar a sabedoria da serpente evitando a tempestade da maldade da mul­tidão quando ela se apresentasse e, por outro, deveriam exibir a simplici­dade da pomba, dando maior publicidade à sua mensagem, embora cons­cientes do risco a que estavam se expondo. “Quando, pois, vos persegui­rem nesta cidade, fugi para outra”44. Ainda assim, intrépidos diante do clamor da multidão, da calúnia e da violência: “O que vos digo em tre­vas, dizei-o em luz; e o que escutais ao ouvido, pregai-o sobre os telha­dos”45.

A cada uma dessas injunções foi anexada uma razão. A fuga foi justificada pela observação: “Em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de Israel sem que venha o Filho do Homem”46. A vinda, aqui sendo aludida, refere-se à destruição de Jerusalém e à disper­são da nação judaica; seu significado é que os apóstolos teriam pouco tempo, antes da catástrofe se abater, para visitar toda a terra advertindo o povo a se salvar da condenação da geração rebelde, não podendo, por­tanto, permanecer em qualquer localidade depois de seus habitantes te-

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rem ouvido e rejeitado a sua mensagem. As almas de todos eram igual­mente preciosas e, se uma cidade não recebesse a palavra, talvez outra a recebesse47. A razão anexada a essa determinação, isto é, de dar a maior publicidade à verdade apesar de todos os possíveis perigos, é a seguinte: “Não é o discípulo mais do que o mestre, nem é o servo mais do que o seu senhor”48. Isto quer dizer: ser maltratado pela multidão ignorante e violenta é muito difícil de suportar, mas não seria mais difícil para vós do que foi para mim que, como sabeis, já experimentei a malícia popular em Nazaré e fui destinado, como ainda não sabeis, a sofrer uma experi­ência ainda mais amarga em Jerusalém. Portanto, cuidai de não esconder os vossos talentos para escapar da ira de homens cruéis, dos lobos.

Por último, os discípulos deveriam enfrentar o perigo não só de acusações, escárnio e violência, mas até de sua vida, e foram instruídos sobre como deveriam agir nessa situação extrema. A máxima: “Pruden­tes como as serpentes e símplices como as pombas” poderia ser aplicada a ambas situações. Nesse caso, a prudência da serpente significa saber o que se deve temer. Jesus lembra aos seus discípulos que existem dois tipos de morte, uma que é causada pela espada e a outra pela infidelida­de ao dever; e lhes diz que, na verdade, embora ambas sejam vícios a serem evitados, quando possível, ainda assim deve ser feita uma escolha, pois a última forma de morte é aquela que deve ser a mais temida. “E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo”. E, quando alguém está em perigo o tentador sussurra: “Salva-te a ti mes­mo, com o sacrifício dos princípios e da consciência”49. A simplicidade da pomba, na presença de perigos extremos, consiste em sua infantil confiança na vigilante providência do Pai celestial. Em linguagem sim­ples Jesus exortou os discípulos a cuidar com carinho dessa confiança. Ele lhes disse que Deus cuida até dos pássaros e lembrou que, por mais insignificantes que pensassem ser, teriam, pelo menos, mais valor que muitos pássaros, para não dizer mais que dois, cujo valor monetário era de apenas um “ceitil”. Se Deus cuida até de uma dupla de pássaros, providenciando para eles um lugar em seu mundo onde pudessem cons­truir um ninho e, com segurança, criar os seus rebentos, não iria Ele cuidar de seus discípulos quando partissem, dois a dois, para pregar a

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doutrina do reino? Claro que sim! Pois até o número de fios de cabelo de sua cabeça havia sido contado. Portanto, podiam partir sem temor, con­fiando a vida ao seu cuidado, lembrando-se também que, na pior hipó­tese, a morte não seria um mal assim tão grande, pois para o fiel havia sido reservada a coroa da vida e, para aqueles que confessassem o Filho do Homem, Ele os confessaria diante de seu Pai no céu50.

Tais foram as instruções de Jesus aos doze discípulos quando os enviou para pregar e curar. Foi um discurso raro e único que parece, atualmente, muito estranho aos ouvidos das pessoas modernas, que mal podem imaginar que tais severas determinações tenham sido feitas com seriedade e até cumpridas na íntegra. Essa é a nossa atitude em relação a este primeiro sermão missionário: é como uma montanha à qual olha­mos admirados de uma posição muito abaixo, sem sequer imaginar po­der subir até o seu cume. Entretanto, algumas pessoas nobres já fizeram essa árdua ascensão e, dentre elas, os primeiros lugares de honra devem ser reservados aos companheiros escolhidos por Jesus Cristo.

1 eskulmenoi, Mateus 9.36 — A interpretação preferida pelos estudiosos é esfoladas, molestadas. A idéia sugerida aqui é a de ovelhas cuja lã foi ferida por espinhos.

2 Mateus 9.373 Mateus 10.6,234 Marcos 6.14; Lucas 9.75 Herodes residia emTiberíades6 Lucas 9.6, kata tas kòtnas — “aldeias”7 Mateus 10.58 Mateus 15.249 João 9.7-2410 Marcos 16.1511 Lucas 9.54. Alguns imaginaram que as restrições procediam da limitação do próprio objetivo de Cristo. Mas

se seu objetivo tivesse sido limitado, como se supôs, não haveria qualquer menção a restrições e nenhuma necessi­dade delas, pois os discípulos nunca pensariam em ir até os samaritanos ou gentios para pregar e curar.

12 Mateus 10.7-813 Marcos 6.14 — “O nome de Jesus se tornara notório” (phaneron egeneto)14 João 6.1513 Esse é o nome dado, geralmente, ao reino em Mateus, diferente dos outros evangelistas que empregam a

expressão “Reino de Deus”. Não deixa de ser um fato curioso esse Evangelho em hebraico usar, dessa forma, a designação mais espiritual para o Remo.

16 Marcos 6.31-3217 Marcos 6.3318 Compare Marcos 6.30-35 com João 6.22-2519 Lucas 10.120 Veja a nona nota do capítulo 4.21 Lucas 10.17-2122 “Thoughts on Revival”, Parte I, seção iii.

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140 O Treinamento dos Doze

23 Mateus I I .1224 Lucas 10.1725 Lucas 10.2026 Marcos 6.3127 “Thoughts on Revival", Parte iv.2S Mateus 7.22-23. Veja opiniões semelhantes àquelas afirmadas acima, em Thoughts on Revival, de Edwards, Parte

ii, seção ii.29 João 16.430 Deuteronômio 33.2531 O primeiro evangelista pode ser comparado ao segundo quando põem ênfase na palavra “prover” (me ktêsêsthe).

Veja Alford, in loco32 Mateus 10.1033 Mateus 10. II34 Mateus 10.40-4235 Atos 18.636 Mateus 10.1537 Mateus 10.26,28,3138 Mateus 10.16-1839 Mateus 10.2140 Mateus 10.34-3641 Mateus 10.1642 Mateus 10.1743 Mateus 10.19-2044 Mateus 10.2345 Mateus 10.2746 Mateus 10.2347 Paulo e Barnabé agiram segundo esse princípio em Antioquia da Pisídia. Atos 13.46 4S Mateus 10.24-2549 Mateus 10.28. Tem sido muito discutido a quem isso se refere — a Deus ou a Satanás. Poderia ser a qualquer

um dos dois: a Deus como Juiz, ou a Satanás como tentador. Preferimos a segunda opção.30 Mateus 10.32-33

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9A Crise da Galiléia

Seçao I - O Milagre João 6 .I-I5 ; Mateus 14 .13 -2 1 ; Marcos 6.33-34; Lucas 9 .I I -I 7

O capítulo 6 do Evangelho de João está repleto de acontecimentos. Ele nos fala de um grande milagre, de um grande entusiasmo, de uma grande tempestade, de um grande sermão, de uma grande apostasia e de uma grande provação de fé e fidelidade sofrida pelos doze discípulos. Ele contém, na verdade, a história resumida de uma importante crise ocorrida no ministério de Jesus, e da experiência religiosa de seus discí­pulos — uma crise que, em muitos aspectos, prenunciava o grande final que iria acontecer pouco mais de um ano depois1, quando um milagre, muito mais famoso, foi sucedido por uma grande popularidade que, por sua vez, foi acompanhada por uma deserção ainda mais completa, para terminar na crucificação, através da qual o mistério do discurso de Cafarnaum foi esclarecido e sua profecia cumprida2.

Os fatos registrados por João nesse capítulo de seu Evangelho po­dem ser entendidos sob quatro títulos: o milagre no deserto, a tempesta­de no lago, o sermão na Sinagoga e o subseqüente exame meticuloso dos discípulos de Cristo. Seguindo essa ordem, propomos que eles sejam considerados em quatro seções distintas.

A cena do milagre aconteceu na margem oriental do mar da Galiléia. Lucas fixa precisamente o local como sendo nas vizinhanças de uma cidade chamada Betsaida3. Essa cidade, com certeza, não podia ser a Betsaida da margem ocidental, a cidade de André e Pedro. Mas havia, segundo parece, uma outra cidade com o mesmo nome na extremidade nordeste do lago que, para se diferenciar da primeira, tinha o nome de Betsaida Julias4. Somos informados, através de uma testemunha ocular,

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que era v i s ív e l a l o ca l iz a çã o d e s sa c i d a d e na fa lda in f e r i o r da m on ta n h a que se projetava sobre a rica planície situada na desembocadura do rio Jordão (isto é, o lugar onde as águas do curso superior do Jordão unem- se ao mar da Galiléia). O “lugar deserto”, continua o mesmo autor, tentando provar a conveniência do local como cena desse milagre, “foi ou o verde planalto que se estende sobre a colina imediatamente acima de Betsaida ou alguma parte do planalto não cultivada pela mão do homem, onde poderia ser encontrado o capim mais verde, ainda com o frescor da primavera do ano em que ocorreu esse evento, antes de desva­necer sob o sol do verão: o capim alto que, esmagado debaixo dos pés de milhares de pessoas que ali haviam se reunido, fazia como se houvesse leitos onde pudessem se reclinar”5.

A procura de repouso e privacidade, foi para esse lugar que Jesus, acompanhado por seus discípulos, se retirou após o retorno de sua mis­são. Mas não conseguiram encontrar o que buscavam. Seus movimentos eram observados e as pessoas, em bandos, dirigiam-se ao longo da praia em direção ao lugar onde deviam desembarcar. E elas corriam, como se estivessem temerosas de que fossem se retirar, de tal forma que chegaram ao seu destino muito antes deles6. A multidão que havia se reunido em volta de Jesus era muito grande. Todos os evangelistas concordam que era formada por mais de cinco mil pessoas e, como elas haviam se distri­buído em grupos de cinqüenta e de cem7 para serem milagrosamente alimentadas, torna-se mais fácil calcular o seu número e aceitar essa afir­mação, não como uma estimativa grosseira, mas como um cálculo cuja precisão é bastante aceitável.

Essa imensa assembléia dá provas da grande emoção que tomou conta das populações que viviam junto às praias do mar da Galiléia. Um entusiasmo fervoroso, uma adoração a um herói, da qual Jesus era o objeto, operava em suas mentes. Jesus era o herói do momento: o povo não conseguia suportar sua ausência, não se cansava de seu trabalho e não queria deixar de ouvir os seus ensinos (M t 15.32). Podemos consi­derar esse entusiasmo dos galileus como sendo o resultado cumulativo das próprias atividades anteriores de Cristo e, em parte, também da mis­são evangelística analisada no último capítulo deste livro8. Parece que essa contagiosa emoção havia se estendido em direção ao sul, até

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A Crise da Galiléia 143

Tiberíades, porque João relata que barcos, procedentes dessa cidade, chegaram ao “lugar onde comeram o pão”9. Aqueles que estavam nesses barcos chegaram demasiado tarde para testemunhar o milagre e partici­par da festa, mas isso não é prova de que sua incumbência fosse diferente daquela dos demais espectadores pois, devido à grande distância que os separava desse local, gastaram mais tempo para chegar e as notícias leva­ram mais tempo para alcançá-los.

O grande milagre realizado nas vizinhanças de Betsaida Julias con­sistiu em alimentar esse imenso aglomerado de seres humanos com os recursos extremamente limitados, constituídos por “cinco pães de ceva­da e dois peixinhos”10. Era, na realidade, uma estupenda transação, da qual não conseguimos sequer elaborar uma idéia; no entanto, nenhum evento da história do Evangelho é mais satisfatoriamente comprovado. Todos os evangelistas relatam esse milagre com muitas minúcias e com discrepâncias aparentemente insignificantes, mas com tantos detalhes gráficos que ninguém, a não ser testemunhas oculares, poderiam ter for­necido. Até João, que registra tão poucos milagres de Cristo, descreve esse evento com o mesmo cuidado e perícia que qualquer um de seus irmãos evangelistas, apesar de introduzi-lo em sua narrativa meramente como um prefácio ao sermão do “Pão da Vida” que é encontrado apenas em seu Evangelho.

Falando do episódio em que Jesus multiplicou o pão para alimentar mais de cinco mil pessoas, essa obra maravilhosa, tão trivialmente com­provada, parece estar sujeita a uma objeção sob outros aspectos. Ela pa­rece ter sido um milagre realizado sem uma razão suficiente. Não pode­mos dizer que ele tivesse sido urgentemente exigido pelas necessidades da multidão. Não há dúvida de que as pessoas estavam famintas e que não haviam trazido consigo nenhuma provisão para atender às necessi­dades físicas. Mas o milagre foi realizado na tarde do mesmo dia em que haviam deixado suas casas e a maioria delas poderia ter retornado dentro de algumas poucas horas. Realmente, teria sido um pouco difícil empre­ender tal jornada ao fim do dia sem ter ingerido qualquer alimento, mas essa provação, ainda que necessária, estaria longe dos limites da tolerân­cia humana. Mas esse não era o caso, pois alimentos poderiam ser en­contrados pelo caminho, sem terem que procurar muito longe, nas vilas

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e cidades vizinhas, portanto, dispersá-los do jeito como estavam não teria envolvido qualquer desconforto considerável. Isso se torna eviden­te nos termos que os discípulos empregam para oferecer a sugestão de que a multidão devia ser dispensada. Lemos: “E já o dia começava a declinar; então, chegando-se a ele os doze, disseram-lhe: Despede a mul­tidão, para que, indo aos campos e aldeias ao redor, se agasalhem e achem o que comer”11. A esse respeito, existe uma óbvia diferença entre a. primei­ra distribuição milagrosa de alimentos e a segunda, que ocorreu um pouco mais tarde na extremidade sudeste do lago. Nessa ocasião, a multidão que havia se reunido ao redor de Jesus havia passado três dias no deserto, sem nada para comer, e não existiam instalações onde pudessem obter alimento, portanto, esse milagre foi realizado para atender a considera­ções de ordem humana12. Por conseguinte, entendemos que a compai­xão foi o motivo desse milagre: “Naqueles dias, havendo mui grande multidão e não tendo o que comer, Jesus chamou a si os seus discípulos e disse-lhes: Tenho compaixão da multidão, porque há já três dias que estão comigo e não têm o que comer. E, se os deixar ir em jejum para casa, desfalecerão no caminho, porque alguns deles vieram de longe”13.

Se o nosso objetivo fosse meramente nos livrar da dificuldade de atribuir um motivo suficiente ao primeiro grande milagre de alimentar a multidão, poderíamos nos satisfazer dizendo que Jesus não precisava de nenhuma ocasião muito urgente que o induzisse a usar seu poder em benefício dos outros. Em seu próprio beneficio, Ele não usaria esse po­der, mesmo em casos de extrema necessidade, nem mesmo depois de ter jejuado durante quarenta dias. Mas, quando o bem-estar de outros estava envolvido (para não dizer a própria sobrevivência dessas pessoas), Ele dis­tribuía bênçãos milagrosas com toda a liberalidade. Ele não se pergun­tou: "Seria essa uma situação suficientemente séria para o uso do poder divino? Será que esse homem está suficientemente doente a ponto de se justificar uma milagrosa interferência nas leis da natureza para curá-lo? Será que essas pessoas que aqui se reuniram estão suficientemente fa­mintas para serem alimentadas, como seus pais o foram no deserto, com o pão vindo do céu?” Mas não iremos insistir nesse ponto, pois acredita­mos que alguma outra coisa, muito mais elevada, estava sendo premedi­tada nesse milagre e não uma simples satisfação de um apetite físico. Foi

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um milagre simbólico, didático e crítico. Ele tinha o propósito de ensinar, e também de testar, de fornecer um texto para o sermão subseqüente e de ser uma pedra de toque para experimentar o caráter daqueles que o tinham seguido com tanto entusiasmo. A festa milagrosa no deserto tinha a intenção de dizer à multidão exatamente o que a Ceia do Senhor também nos diz: “Eu, Jesus, o Filho Encarnado de Deus, sou o Pão da vida. Sou, para a sua alma, o que esse pão é para o seu corpo”. E aqueles que participaram dessa festa foram testados pela maneira como conside­raram o episódio. Aqueles que fossem espirituais veriam nela um sinal da divindade e dignidade de Cristo e um selo de sua graça salvadora; os carnais se contentariam apenas com a aparência exterior de terem se alimentado de pães a ponto de ficarem satisfeitos, e aproveitariam o acontecido para dar vazão a elevadas esperanças de felicidade temporal sob o reinado benigno daquele Profeta e Rei que havia ensejado o seu aparecimento entre eles.

Sob esse aspecto, o milagre no deserto não foi simplesmente um ato de misericórdia, mas um ato de julgamento. Jesus, em sua misericórdia, alimentou a multidão faminta a fim de poder analisá-la cuidadosamente e separar os discípulos verdadeiros dos espúrios. Havia uma necessidade muito maior para essa separação do que simplesmente fornecer alimen­to para satisfazer prementes necessidades físicas. Se toda aquela multi­dão de pessoas se revelasse como discípulos genuínos, tudo estaria bem; caso contrário, se um grande número de pessoas estivesse seguindo a Cristo levadas por uma motivação equivocada — quanto mais cedo isso se tornasse aparente, melhor. Permitir que uma multidão tão grande e heterogênea o seguisse por mais tempo, sem fazer essa separação, teria sido, da parte de Cristo, uma forma de encorajar falsas esperanças e dar origem a sérios mal-entendidos em relação à natureza de seu reino e de sua missão terrena. E não havia melhor método de separar o joio do trigo, a fim de poder identificar um grande número de discípulos fiéis, do que realizar, antes de tudo, um milagre para trazer à tona a carnalidade latente nesse conjunto de pessoas e, em seguida, pregar um sermão que não deixaria de ser ofensivo a qualquer mente carnal ou mundana.

Parece estar claramente sugerido nas narrativas do Evangelho que Jesus preferiu, por razões próprias, um método milagroso de atender à

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dificuldade que havia surgido. Nesse contexto, consideremos por exem­plo a anotação feita por João a respeito daquele tempo: “E estava próxi­ma a Páscoa dos judeus”. Seria essa uma afirmação meramente cronoló­gica? Acreditamos que não. Que outros propósitos, então, teria ela a intenção de servir? Explicar como uma multidão tão grande havia se reunido em volta de Jesus? — Tal explicação não teria sido necessária, pois a verdadeira razão dessa assembléia era o entusiasmo despertado entre as pessoas pelas pregações e pelas curas realizadas por Jesus e pelos doze discípulos. Parece que o evangelista se referiu à Páscoa que se apro­ximava não para explicar o movimento das pessoas, mas para explicar os atos e as palavras de seu Senhor que seriam relatadas em seguida. “E estava próxima a Páscoa dos judeus, e...” — em outras palavras, o signi­ficado das palavras de João seria: “Jesus estava pensando nela, embora não fosse dela participar naquele ano”. Ele pensava no cordeiro pascoal e como Ele, o verdadeiro Cordeiro Pascoal, seria antecipadamente sacri­ficado para dar vida ao mundo, e Ele deu uma expressão exterior aos profundos pensamentos de seu coração no milagre relatado, e no discur­so espiritual que a ele se seguiu14.

A posição que defendemos, a respeito da razão do milagre no deser­to, também parece estar confirmada pelo tom adotado por Jesus na con­versa que teve com os discípulos sobre como as necessidades da multi­dão poderiam ser atendidas. No curso dessa conversação, cujos frag­mentos foram conservados pelos diferentes evangelistas, duas sugestões foram apresentadas pelos discípulos. Uma delas era dispensar a multi­dão para que as pessoas pudessem, elas mesmas, procurar seus supri­mentos; e a outra consistia em eles (os discípulos) irem até a cidade mais próxima (digamos Betsaida Julias, que provavelmente não estivesse mui­to distante) para comprar quanto pão fosse necessário para, pelo menos, aliviar a fome, já que não poderiam satisfazer todo o apetite de tão gran­de multidão15. Essas duas propostas eram factíveis, caso contrário não teriam sido apresentadas, pois os doze discípulos não falavam impensa­damente, mas depois de muitas considerações, como se pode perceber pelo fato de um deles, André, já ter calculado, aproximadamente, quanto seria necessário para alimentar a multidão. E evidente que a dúvida sobre como a multidão poderia ser atendida havia estado preocupando a men-

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te dos discípulos, e as duas propostas eram o resultado dessas delibera­ções. Agora, o que queremos salientar é que não parece que Jesus tenha dispensado uma atenção muito séria a qualquer uma delas. Ele as ouviu, sem mostrar desagrado ao ver a generosa preocupação de seus discípulos pelas pessoas famintas, mas com o ar de quem está primeiramente dis­posto a perseguir uma linha de ação diferente das que foram sugeridas. Ele se comportou como um general em um conselho de guerra cuja decisão já foi tomada, mas que está disposto a ouvir o que seus subordi­nados têm a dizer. Essa não é uma simples inferência nossa, porque João realmente explica que essa era a maneira como o nosso Senhor agia nes­sas ocasiões. Depois de relatar que Jesus dirigiu a Felipe a seguinte per­gunta: “Onde compraremos pão, para estes comerem?”, o evangelista acrescenta uma observação: “Mas dizia isso para o experimentar; por­que ele bem sabia o que havia de fazer”16.

Esse, portanto, foi o propósito do milagre — mas qual foi então o seu resultado? Ele levantou, até o seu apogeu, uma maré túrgida de entu­siasmo e induziu a multidão a dar formas a um propósito insensato e perigoso — o de coroar Jesus, o realizador de maravilhas, e fazer dele seu rei, em lugar de Herodes, déspota e libertino. Diziam: “Este é, ver­dadeiramente, o profeta que devia vir ao mundo. Sabendo, pois, Jesus que haviam de vir arrebatá-lo, para o fazerem rei, tornou a retirar-se, ele só, para o monte”17. Estas são afirmações expressas contidas no quarto Evangelho e o que está nele contido também está obscuramente implíci­to nas narrativas de Mateus e de Marcos. Elas dizem como, depois do milagre no deserto, Jesus ordenou imediatamente a seus discípulos que en­trassem no barco e fossem para o outro lado18. Mas, por que tanta pres­sa, tanta urgência? Não há dúvida de que já era tarde e que não havia tempo a perder se desejassem chegar na mesma noite às suas casas em Cafarnaum. Mas, por que ir para casa, quando toda a multidão, ou pelo menos uma parte dela, ia passar a noite no deserto? Será que os discípu­los não tinham a obrigação de ficar ao seu lado, preocupando-se e cui­dando das pessoas? Mas, se aceitassem partir, não seria uma falta de responsabilidade deixar o Mestre sozinho em tal situação? Não há dúvi­da de que a relutância dos discípulos se originava dessa mesma pergunta que faziam a si mesmos e, como esse sentimento tinha uma razão muito

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apropriada, a obrigação imposta a eles pressupõe a existência de circuns­tâncias pouco comuns, como aquelas registradas por João. Em outras palavras, a explicação mais natural para o fato registrado nos resumos dos evangelistas sinópticos é que Jesus desejava livrar tanto a si como aos seus discípulos do insensato entusiasmo da multidão, um entusiasmo com o qual, sem qualquer dúvida, os discípulos haviam se simpatizado demasiadamente. Por essa razão, providenciou que atravessassem o lago durante o crepúsculo, enquanto Ele se retirava para a solidão das monta­nhas19.

Que resultado melancólico de um movimento tão promissor existe aqui! O reino havia sido proclamado e as Boas Novas haviam sido exten­sivamente bem recebidas. Para a entusiástica multidão, Jesus, o Rei Messiânico, havia se tornado objeto da mais fervorosa devoção. Porém, que infelicidade! Suas idéias sobre o reino estavam radicalmente equivo­cadas. Se colocadas em prática iriam trazer rebelião e uma imensa des­graça. Portanto, era necessário que Jesus se retirasse da companhia de seus amigos, e se ocultasse de seus próprios seguidores. Com que certeza as ervas daninhas de Satanás são semeadas junto com o trigo do Senhor! Com que facilidade o entusiasmo se converte em insensatez e prejuízos!

O resultado do milagre não pegou Jesus de surpresa. Era exatamen­te o que Ele esperava; em certo sentido, era o que Ele estava mesmo pretendendo. Havia chegado o momento em que seriam revelados os pensamentos de muitos corações, e a certeza de que o milagre iria cola­borar com essa revelação foi, pelo menos, uma das razões dele ter sido cuidadosamente executado. Ao povo, Jesus havia dado uma mesa no de­serto, fornecendo pão e peixe em abundância20, a fim de poder experimentá-los e conhecer o que traziam em seus corações21 — isto é, saber se o amavam por Ele ser quem era ou para alcançarem as vantagens mundanas que esperavam. Ele sabia de antemão que muitos o seguiam por interesse, mas desejava esclarecer esse fato perante suas próprias cons­ciências. O milagre deu-lhe essa oportunidade e permitiu-lhe dizer, sem encontrar contradições: “Na verdade, na verdade vos digo que me buscais não pelos sinais que vistes, mas porque comestes do pão e vos saciastes”22. Essa era uma mensagem própria de uma investigação que poderia, muito bem, ser colocada perante todos os seus professos seguidores, não so-

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mente naqueles tempos, mas também agora, como um exame de consci­ência, que levasse cada homem a perguntar a si mesmo: “Por que profes­so o cristianismo? Será que tenho uma fé sincera em Jesus Cristo como o Filho de Deus e Salvador do mundo, ou será por qualquer impensada submissão à tradição, respeito à própria reputação ou mesmo por apreço a qualquer vantagem mundana?”

Seção II - A TempestadeMateus 15.24-33; Marcos 6.45-52; Joao 6.16-21

“Em perigos no deserto, em perigos no mar” escreveu Paulo, ao descrever as várias dificuldades que encontrara no desenvolvimento de seu grande trabalho como apóstolo dos gentios. Tais dificuldades tam­bém são encontradas nesse momento decisivo da vida de Jesus. Ele tinha acabado de se salvar do perigoso entusiasmo manifestado pela desatina­da multidão, depois do repasto no deserto. E, agora, algumas horas mais tarde, um desastre ainda maior ameaçava desabar sobre Ele. Seus doze discípulos escolhidos, que ele havia rapidamente colocado em um barco, para que não pudessem encorajar as pessoas em seu absurdo projeto, foram colhidos por uma tempestade e estavam na iminência de se afogar, enquanto Ele permanecia, sozinho, orando na montanha. Seu plano para escapar de um perigo o havia exposto a um perigo ainda maior e parece que, como se por uma associação de infortúnios, Ele ficaria privado, de uma só vez, de todos os seus seguidores, tanto os verdadeiros como os falsos, e deixado completamente a sós, tal como mais tarde aconteceria na última grande crise. O Rei messiânico, observando daquelas alturas como um general no dia de batalha, estava na verdade se sentindo muito angustiado, como se ela estivesse sendo travada contra Ele. Mas o capi­tão da salvação estava à altura da emergência e, por mais extremo que fosse o problema naquela situação, Ele seria vitorioso no final.

O mar da Galiléia, embora seja um pequeno lençol de água, com cerca de vinte e um quilômetros de comprimento por onze de largura, está sujeito a ser visitado por repentinas rajadas de vento e chuvas, que provavelmente se devam à sua localização. Ele está situado em um pro­fundo vale de origem vulcânica, cercado por todos os lados por acentu­ados aclives de montanhas que se elevam cerca de trezentos a seiscentos

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metros acima do nível da água. A diferença de temperatura entre o cume e a base dessas montanhas é bastante considerável. Nos planaltos acima o ar é fresco e estimulante, mas nas margens do lago, que se encontram duzentos metros abaixo do nível do oceano, o clima é tropical. As tem­pestades causadas por essa disparidade de temperatura são violentas e próprias desse clima. Elas chegam varrendo as ribanceiras e, em um dado momento, a superfície do lago, antes lisa como vidro, cobre-se de ponta a ponta por espumas brancas, enquanto as ondas se elevam no ar em grandes colunas23.

Esses homens haviam enfrentado duas tempestades de vento depois de se tornarem discípulos de Jesus e, provavelmente, no mesmo ano; a primeira, que estamos considerando nesse momento, e uma outra tem­pestade anterior, por ocasião de sua visita a Gadara24. Ambas acontece­ram durante a noite e foram extremamente violentas. Quanto à primeira, somos informados que o barco foi coberto pelas ondas a ponto de quase soçobrar e os discípulos temeram por suas vidas. A segunda foi igual­mente violenta e durou um tempo bem maior. Aparentemente ela atin­giu os discípulos quando estavam na metade do caminho e depois que o crepúsculo havia se convertido na escuridão da noite. Nessa ocasião o vento soprou com força contínua até o amanhecer, durante a quarta vigília, entre as três e as seis horas da manhã. Podemos ter uma idéia da fúria das rajadas de vento pelo fato registrado de que ainda estavam a pouco mais da metade do caminho nesse mar. Ao todo supõe-se que tivessem remado o equivalente a uma distância de apenas cinco a seis quilômetros25 em diagonal desde a margem oriental até a margem oci­dental que tem aproximadamente onze quilômetros. Empregando todas as suas forças, eles haviam, durante essas horas extenuantes, feito pouco mais do que se segurar contra o vento e as ondas.

O que Jesus fazia enquanto tudo isso estava acontecendo? Na pri­meira tempestade, Ele tinha estado no mesmo barco com os seus discí­pulos, dormindo docemente depois das fadigas do dia, “embalado no berço das imperiosas ondas”. Dessa vez, estava ausente e não estava dor­mindo, mas sozinho, no alto das montanhas, e em vigília para orar, por­que Ele também tinha sua própria luta naquela noite tempestuosa, não contra os ventos que uivavam, mas contra pensamentos repletos de tris-

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teza. Naquela noite, Ele estava, por assim dizer, sentindo uma parte da agonia do Getsêmani e, com fervorosa oração e profunda meditação, pensava no sermão da paixão que pregaria no dia seguinte. Tão absorta estava sua mente com tão tristes pensamentos que, por um instante, era como se os pobres discípulos tivessem sido esquecidos até que, por fim, no despertar da aurora e olhando em direção ao mar26, Ele os viu fatiga­dos a remar contra os fortes ventos. Sem esperar sequer um momento, o Senhor apressou-se e correu para salvá-los.

Essa tempestade no mar da Galiléia, além de ser um importante fato histórico, também possui a importância de um emblema. Quando pensamos no momento em que ela ocorreu, torna-se impossível deixar de conectá-la em nossos pensamentos com os eventos adversos do dia seguinte. Pois, literalmente falando, a tempestade que caiu sobre as águas foi seguida por uma tempestade espiritual sobre a terra, igualmente vio­lenta e repentina, e não menos perigosa para as almas dos doze discípu­los do que a outra havia sido para os seus corpos. A embarcação que continha a carga preciosa dos verdadeiros discípulos de Cristo foi, então, surpreendida por uma repentina lufada de impopularidade que desceu sobre eles tal como uma rajada de vento sobre um lago cercado por montanhas, e que quase os desnorteou totalmente. A multidão incons­tante, que no dia anterior teria transformado Jesus em seu rei, abrupta­mente afastou-se dele cheia de desapontamento e repulsa, e não foi sem esforço, como bem veremos27 que os doze discípulos conseguiram man­ter a sua firmeza. Tiveram que remar fortemente contra o vento e as ondas para não serem levados precipitadamente à desgraça pelo furacão da apostasia.

Existem poucas dúvidas de que as duas tempestades — sobre o lago e sobre a terra — tão próximas uma da outra, ficariam associadas na memória dos apóstolos; e que a tempestade literal ficaria estereotipada em suas mentes como um símbolo muito expressivo de uma tempestade espiritual e de todas as semelhantes provações da fé. Os incidentes da­quela temível noite — a vigília, a tempestade, a labuta inútil em meio ao mar, a fadiga, o terror e o desespero — permaneceriam indeléveis em sua memória como a representação simbólica de todos os perigos e tri- bulações que os crentes devem enfrentar em seu caminho para o Reino

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dos céus, especialmente daqueles que se abateriam sobre eles enquanto ainda fossem imaturos na fé. A importância simbólica pode ser especial­mente percebida através de três características. A tempestade aconteceu durante a noite; na ausência de Jesus e, enquanto durou, todo o progresso ficou impedido. Tempestades no mar podem acontecer a qualquer hora do dia, mas as provações da fé sempre acontecem à noite. Se não houvesse escu­ridão não haveria provações. Se os doze discípulos tivessem entendido o discurso de Cristo em Cafarnaum, a apostasia da multidão teria lhes parecido um assunto de menor importância. Mas eles não o compreen­deram, daí a solicitude de seu Mestre para que também eles não o aban­donassem. Durante tais provações, a sensação da ausência do Senhor também é uma característica constante e das mais dolorosas. Não enxer­gamos a presença de Cristo no barco quando a tempestade ruge à noite e avançamos lentamente porque, assim acreditamos, remamos sem a aju­da de sua graça, sem a alegria de sua presença espiritual. O mesmo acon­teceu com os doze discípulos no dia seguinte, na praia. Seu Mestre, até então presente perante seus olhos, havia desaparecido da visão de seu entendimento. Eles não gozavam mais do conforto de compreender o seu significado, como acontecia antes quando se apegavam a Ele como o Senhor que tinha as palavras da vida eterna. Pior ainda, nessas provações da fé, apesar de todo o nosso esforço ao remar, não fazemos nenhum progresso, e o máximo que conseguimos é nos manter no meio do mar e afastados das margens acidentadas. Felizmente isso já é alguma coisa; na verdade, é tudo. Pois nem sempre é verdade que se não progredimos estamos caminhando para trás. Esse é um adágio que só serve para oca­siões de tempo firme. Em tempos de tempestade existe algo que é per­manecer imóvel e, então, tudo que se puder fazer será uma grande con­quista. Afinal de contas, será que não representa muito resistir à tempes­tade, manter-se longe dos rochedos, das areias e da arrebentação das ondas? Não atormente a alma de quem já se encontra suficientemente atormentado por ventos cortantes e retalhado por aforismos aparente­mente sábios sobre progresso e apostasia, indiscriminadamente aplica­dos. Ao invés de representar assim o papel dos amigos de Jó, procure lembrar às pessoas que a melhor coisa a fazer nessa situação é suportar, manter-se imóvel, apoiar-se firmemente em sua integridade moral e em

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sua profissão de fé, mantendo-se afastado das margens da imoralidade e da infidelidade; e assegure-lhes de que se conseguirem apenas remar um pouco adiante, por mais cansados que estejam seus braços, Deus virá para acalmar o vento e, sem demora, alcançarão a terra.

Além de ser um apropriado símbolo das provações da fé, a tempes­tade no lago representou uma importante lição de fé aos doze discípu­los, ajudando a prepará-los para o futuro que os aguardava. A ausência temporária do Mestre foi uma preparação para a sua ausência física. A milagrosa intervenção de Jesus durante o momento de perigo foi prepa­rada para imprimir em suas mentes a convicção de que, mesmo após a sua ascensão, Ele ainda estaria com eles nas horas de perigo. A partir dó feliz resultado de um plano, que durante algum tempo ameaçava malo­grar, eles podiam daí em diante aprender a gozar de uma calma confian­ça na direção de seu glorificado Senhor, mesmo em meio aos mais adver­sos acontecimentos. Quando a tempestade chegou, eles provavelmente concluíram que Jesus havia cometido um erro ao ordenar que atravessas­sem o lago enquanto Ele permanecia naquele local para despedir a mul­tidão. Os acontecimentos, entretanto, contrariaram esse precipitado juízo e tudo terminou bem. A experiência adquirida nesse momento lhes ensi­nou uma importante lição de vida, isto é, não concluir precipitadamente que existe uma falta de direção ou negligenciar a parte que cabe a Cristo nos infortúnios temporários, mas a ter uma sólida fé em sua sabedoria e cuidado pela sua causa e pelo seu povo, e esperar um feliz resultado de todas as perplexidades; e também de glorificar ao Senhor em meio às tribulações tendo em vista o grande livramento que certamente virá a seguir.

No entanto, por ocasião da tempestade os discípulos estavam longe de possuir uma fé tão forte. No pensamento deles não havia a menor expectativa de que Jesus viesse resgatá-los, pois quando Ele realmente chegou, pensaram se tratar de um espírito esvoaçando sobre as águas e gritaram possuídos pela agonia de um terror supersticioso. Podemos também, de passagem, observar aqui uma curiosa correspondência entre os incidentes desse momento de crise e aqueles associados aos momen­tos finais. Assim como neste episódio não tinham a experiência de ver o seu Senhor aproximar-se andando por cima das águas, no final também

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não esperavam vê-lo ressuscitado; portanto, sua reaparição inicialmente os espantou e atemorizou, ao invés de confortá-los. “E eles, espantados e atemorizados, pensavam que viam algum espirito”28. Bem, o inespera­do, em ambos os casos, tornou-se um infortúnio; e o que para a fé teria sido uma fonte de intensa alegria tornou-se, pela descrença, apenas um novo motivo de alarme.

O fato de não estar sendo esperado parece ter imposto sobre Jesus a necessidade de empregar um artifício à sua maneira de aproximar-se dos discípulos, tão abalados pela tempestade. Marcos relata que Ele “queria passar adiante deles”29, o que lhes pareceu estranho, assim entendemos, por uma delicada consideração por sua fraqueza. Ele sabia de que ma­neira iriam interpretá-lo à primeira vista, portanto desejava atrair sua atenção a partir de uma distância segura temendo confundi-los, caso aparecesse imediatamente entre eles. Ele achou necessário ser tão cuida­doso ao anunciar seu advento para salvá-los como os homens estão acos­tumados a ser cuidadosos ao comunicar suas más notícias. Primeiro apa­recer como um espectro a uma distância suficiente para ser notado, e depois revelar sua identidade, com voz familiar, pronunciando as se­guintes palavras de conforto: “Sou eu; não temais”, para obter, por fim, sua desejada recepção no barco30.

Os eventos que se seguiram à admissão de Jesus no barco denunci­aram uma nova manifestação da fraqueza da fé dos doze discípulos. “E o vento se aquietou; e, entre si, ficaram muito assombrados e maravilha­dos”31. Eles não deveriam ter se espantado tanto depois do que havia acontecido anteriormente nessas mesmas águas, especialmente depois do milagre que havia sido realizado no dia anterior. Mas a tempestade havia eliminado de suas mentes qualquer pensamento sobre essas coisas e os transformado em pessoas completamente estúpidas, “pois não ti­nham compreendido o milagre dos pães [nem o milagre de repreender a fúria da natureza]; antes, o seu coração estava endurecido”32.

Mas a revelação mais interessante sobre o estado mental dos discí­pulos no momento em que Jesus veio em seu socorro pode ser encontra­da no episódio relacionado com Pedro e mencionado no Evangelho de Mateus. Quando esse discípulo compreendeu que o suposto espectro era seu amado Mestre, ele gritou: “Senhor, se és tu, manda-me ir ter

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contigo por cima das águas”33; e, ao receber essa permissão, ele imediata­mente desceu do barco e andou sobre o mar. Isso não era uma manifes­tação de fé, mas simplesmente precipitação. Foi a reação de uma impetu­osa e precipitada natureza que acabara de sair do extremo de um total desespero para o extremo oposto de uma alegria extravagante e temerá­ria. Aquilo que nos outros discípulos assumiu a forma de uma humilde disposição de receber Jesus no barco, depois que ficaram convencidos de que era Ele que havia caminhado sobre as águas34, no caso de Pedro assumiu a forma de um desejo romântico e aventureiro de ir até o lugar onde Jesus se encontrava para recebê-lo de volta entre eles novamente. A proposição feita era igual à sua pessoa — generosa, entusiasmada e bem- intencionada, porém, imprudente.

E claro que sua proposta não podia encontrar a aprovação de Cris­to, no entanto, ele não a negou. Pelo contrário, preferiu aceder ao desejo do impulsivo discípulo convidando-o para aproximar-se dele no mar e, em seguida, permitir que sentisse sua própria fraqueza. Isso iria ensiná- lo a conhecer um pouco mais sobre si mesmo e, se possível, salvá-lo das conseqüências de um temperamento demasiadamente impetuoso e con­fiante. Mas Pedro não era homem capaz de adquirir mais sabedoria atra­vés de uma única lição, nem mesmo através de muitas lições. Ele conti­nuaria a cometer erros e a fazer tolices, apesar das admoestações e adver­tências até cair, ao final, em grave pecado ao negar o Mestre a quem tanto amava. Essa negativa, que ocorreu em um momento decisivo, era exatamente o que se poderia esperar de alguém que havia se comportado de tal maneira durante as crises menores que a precederam. O homem que disse: “Manda-me ir ter contigo”, foi o mesmo que disse: “Senhor, estou pronto a ir contigo até à prisão e à morte”. Entre os demais discí­pulos, aquele que se mostrara tão corajoso no cais, e tão temeroso entre as ondas, era o único capaz de falar corajosamente quando o perigo se mostrava distante e de agir como um covarde ao chegar o momento da provação. A cena no lago foi apenas um presságio, ou mesmo um ensaio, da queda de Pedro.

No entanto, essa cena mostrou alguma coisa além da fraqueza da fé do discípulo. Mostrou também o que é possível àqueles que crêem. Se a tendência de quem possui uma fé vacilante é afundar, a alegria de uma

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sólida fé é caminhar sobre as águas, glorificar a Deus nas tribulações e considerá-la com exaltação quando exposto aos perigos enfrentados por um mergulhador. E privilégio daqueles que são fracos na fé, mas um dever de todos os que estão cientes da fragilidade humana, orar dizendo: “Não nos induzas à tentação, mas livra-nos do mal”. Mas quando as tempestades acontecem, independentemente de nossa vontade, e quan­do o navio afunda no meio do mar, então os cristãos devem confiar na promessa: “Quando passares pelas águas, estarei contigo” e se tão-so­mente tiverem fé, serão capazes de dominar os vagalhões que os cercam como se estivessem caminhando sobre a terra firme.

Ele convida a me aproximar; eu conheço sua voz,

E, corajosamente, vou sobre as águas,

Intrépido ao encontro da tempestade.

Contra inclementes tentações estou agora determ inado;

Os vagalhões me oferecem um terreno firme,

E as ondas tornam -se firmes como rochas.

Seção III - O SERMÃOJoão 6.32-58

A tarefa que agora se nos apresenta é o estudo daquele memorável discurso proferido por Jesus na sinagoga de Cafarnaum sobre o pão da vida, que causou tanta celeuma na época e que, a partir de então, se tornou um obstáculo, uma pedra de tropeço e a causa da divisão da igreja visível que, até onde podemos julgar de suas atuais manifestações, irá permanecer até o fim do mundo. Perante uma questão tão inquietan- te como essa, relacionada com o significado desse discurso, podemos muito bem recuar e nos abstermos de nela penetrar. Porém, a própria confusão que aqui prevalece ind ica ser nosso m anifesto dever desconsiderar o clamor das interpretações conflitantes e, orando humil­demente para sermos ensinados por Deus, descobrirmos e estabelecer­mos o próprio pensamento de Cristo.

O sermão sobre o pão da vida, por mais estranho que pareça, era muito apropriado, em conteúdo e forma, às circunstâncias nas quais foi proferido. Era natural e oportuno que Jesus falasse ao povo sobre a co­mida que permanece para a vida eterna depois de ter, milagrosamente,

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providenciado alimento perecível para satisfazer às suas necessidades fí­sicas. Era até mais natural e oportuno que Ele falasse sobre esse elevado assunto usando o estilo severo, assustador e aparentemente duro que adotou para essa ocasião. A forma do pensamento estava adequada à situação. A época da Páscoa estava se aproximando, quando o cordeiro pascoal era sacrificado e comido e, se Jesus desejava realmente dizer, mas em poucas palavras: “Sou o verdadeiro Cordeiro Pascoal”, que forma mais apropriada poderia empregar se não essa: “E o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo?”. O estilo também se adaptava ao aspecto peculiar dos sentimentos do orador naquele mo­mento. Jesus estava dominado por uma disposição triste e austera quan­do pregou esse sermão. O entusiasmo insensato da multidão o havia entristecido e o desejo de forçar uma coroa sobre sua cabeça fez com que pensasse em sua cruz; pois Ele sabia que essa idólatra devoção a um Messias político, mais cedo ou mais tarde significaria a morte daquele que declinasse tal homenagem carnal. Portanto, na sinagoga de Cafarnaum, Ele falou tendo os olhos voltados para o calvário, declaran­do-se como a vida do mundo em termos que podiam ser aplicados à vítima de um sacrifício, cujo sangue é derramado e cuja carne é comida por aqueles que apresentam a oferta, sem medir palavras, mas dizendo tudo o que desejava, da maneira mais forte e intensa possível.

O tema desse discurso memorável foi introduzido muito natural­mente pela conversação que o precedeu e que teve lugar entre Jesus e pessoas recém-chegadas do outro lado do lago, que esperavam encontrá- lo em Cafarnaum, onde Ele habitualmente residia35. As suas afetuosas perguntas sobre quando havia chegado ali, Ele respondeu com uma ob­servação pouco amigável relacionada com a verdadeira razão de seu zelo e uma exortação para colocarem a alma em uma comida mais elevada do que aquela que perece36. Entendendo essa exortação como um conselho para cultivarem a piedade, as pessoas a quem ela foi dirigida pergunta­ram o que deveriam fazer para poder realizar as obras de Deus, isto é, para agradar a Deus37. Jesus, então, explicou dizendo que a grande obra daquele momento era recebê-lo como aquele que havia sido enviado por Deus38. Isso os levou a exigir alguma prova que pudesse consubstanciar essa importante alegação de ser o Messias divinamente comissionado. O

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milagre recém-realizado do outro lado do lago havia sido importante, mas não era suficiente, assim pensavam, para justificar tais arrogantes pretensões. Em tempos mais remotos, toda uma nação havia sido ali­mentada por Moisés com pão vindo do céu. O que era o recente milagre se comparado com aquele? Ele deveria mostrar um sinal que estivesse em uma escala de grandeza muito maior, se desejava que acreditassem que ali estava alguém muito mais importante que Moisés39. Jesus aceitou o desafio e, corajosamente, declarou que o maná, por mais maravilhoso que tivesse sido, não era realmente o verdadeiro pão do céu. Havia um outro pão, do qual o maná era apenas um símbolo. Como o maná, Ele também havia vindo do céu40, mas diferente dele, iria trazer a vida não a uma nação, mas a todo o mundo, em todas as épocas, e não a vida para apenas alguns poucos anos, mas a vida eterna. Essa proclamação, seme­lhante àquela sobre a maravilhosa água da vida feita à mulher de Samaria, fez despertar um desejo no coração de seus ouvintes e estes exclamaram: “Senhor, dá-nos sempre desse pão”. E Jesus lhes respondeu: “Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome; e quem crê em mim nunca terá sede”41.

Com essas palavras, Jesus enunciou de maneira sucinta a doutrina do verdadeiro pão, que Ele expôs e repetiu em seu memorável discurso em Cafarnaum. Essa doutrina, da maneira como foi exposta, estabelece o que representa o verdadeiro pão, o que ele faz e como deve ser recebido.

1 ) 0 verdadeiro pão é Aquele que aqui fala sobre ele — isto é, Jesus Cristo. “Eu sou o pão”. Essa assertiva implica, da parte do orador, a alegação de ter descido do céu; pois essa descida representa uma das propriedades pelas quais o verdadeiro pão é definido42. Em conformida­de com ela, encontramos Jesus, na seqüência de seu discurso, afirmando expressamente que Ele havia descido do céu43. Essa declaração, entendi­da em um contexto sobrenatural, foi o primeiro ponto em seu discurso que alguns ouvintes consideraram como um problema. “Murmuravam, pois, dele os judeus, porque dissera: Eu sou o pão que desceu do céu. E diziam: Não é este Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe nós conhecemos? Como, pois, diz ele: Desci do céu?”44. Era natural que murmurassem por não saberem ou não acreditarem que havia alguma coisa fora do comum na maneira como Jesus veio ao mundo. Pois a linguagem que Ele empre-

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gou não podia ser usada sem significar uma blasfêmia se proferida por um simples homem nascido da mesma maneira que os outros homens. Ela é uma linguagem adequada apenas nos lábios do ser divino que, com um propósito, havia assumido a natureza humana.

Portanto, ao se declarar como o pão que havia descido do céu, Jesus ensinou a doutrina da Encarnação. Essa solene assertiva: “Eu sou o pão da vida” é equivalente, em importância, àquela feita pelo evangelista a respeito dele, ao pronunciar as seguintes palavras: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”45.

Entretanto, não é meramente por ter encarnado que o Filho de Deus é o pão da vida eterna. O pão deve ser partido para ser comido. Aquele que encarnou deve morrer, como uma vítima oferecida em sacrifício, para que os homens possam verdadeiramente se alimentar dele. O Verbo tornando-se carne, e a carne sendo crucificada, representa a vida do mundo. Jesus continuou a declarar essa verdade especial depois de ter afirmado a verdade principal de que o pão celestial devia ser encontrado nele mesmo. Ele disse: “O pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo”46. A linguagem aqui foi modificada para acompa­nhar a nova linha de pensamento. “Eu sou” se torna “eu darei” e “pão” se transforma em “carne”.

Jesus, evidentemente, está se referido à sua morte. Seus ouvintes não o entenderam, mas não temos qualquer dúvida sobre esse assunto. Tanto o verbo “dar”, que sugere um ato de sacrifício, como o uso do tempo futuro, apontam nessa direção. Em palavras misteriosas e obscuras ditas antes desse evento, claras como o dia depois dele, o orador declara a grande verdade, que sua morte será a vida dos homens; que seu corpo despedaça­do e seu sangue derramado serão como comida e bebida para um mundo moribundo, conferindo a todos que participarem deles o dom da imorta­lidade. Ele não explica aqui como iria morrer, e porque sua morte teria tais virtudes. O discurso em Cafarnaum não menciona a cruz, não contém nenhuma teoria de expiação, pois ainda não havia chegado o tempo para tais detalhes. Ele simplesmente declara com termos fortes e universais que a carne e o sangue do Filho de Deus encarnado, separados pela morte, são a fonte da vida eterna.

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Essa menção feita por Jesus à sua carne como o pão do céu deu ori­gem a uma nova onda de murmúrios entre seus ouvintes: “Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como nos pode dar este a sua carne a comer?”47. Jesus ainda não havia dito que sua carne deveria ser comida, mas eles estavam certos de que isso era o que Ele queria dizer. Eles estavam certos e, conseqüentemente, Ele continuou dizendo, com grande soleni­dade e ênfase, que deveriam comer da sua carne e beber de seu sangue. Se não o fizessem, não haveria vida neles mesmos; porém, fazendo assim, teriam vida em toda a sua plenitude — uma vida eterna para a alma em um corpo ressuscitado. Pois sua carne era verdadeiramente comida e seu sangue, verdadeiramente bebida. Aqueles que dele se alimentassem iriam participar de sua própria vida. Ele iria permanecer neles, incorporado em seu próprio ser e eles iriam permanecer nele como o fundamento de sua vida. Iriam viver com sua segurança contra a morte, como Ele havia vivido, pelo Pai, de eternidade a eternidade. “Este, portanto”, disse o orador, revertendo na conclusão à proposição com a qual havia começado, “... é o pão [a minha carne] que desceu do céu; não é o caso de vossos pais, que comeram o maná e morreram; quem comer este pão viverá para sempre”48.

Uma terceira expressão de desaprovação, logo a seguir, levou Jesus a colocar uma pedra final sobre sua importante doutrina do pão da vida e fazer uma declaração conclusiva que deve ter parecido extremamente misteriosa e ininteligível a todos os que o ouviam: que o pão, que desceu do céu, deve ascender a ele novamente, a fim de ser, em todos os senti­dos, o Pão da vida eterna. “Isto vos escandaliza?”, perguntou Ele aos seus ouvintes, referindo-se ao que acabara de dizer a respeito de come­rem da sua carne e beberem do seu sangue: “Que seria, pois, se vísseis subir o Filho do Homem para onde primeiro estava?”49. Na verdade, essa pergunta era uma afirmação, e também uma insinuação profética, de que somente quando tivesse deixado o mundo, Ele se tornaria, em todos os sentidos e de maneira plena, a fonte da vida para os homens; porque, então, o maná da graça começaria a descer, não somente sobre o deserto de Israel, mas sobre todos os lugares estéreis da terra; e a verdade que existia nele, a doutrina de sua vida, morte e ressurreição, se tornaria verdadeiramente comida e bebida para uma multidão, não de ouvintes murmuradores, mas de crentes devotos, iluminados e agradecidos. E nin-

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guém mais precisaria pedir um sinal, pois ele poderia ser encontrado na igreja cristã, que continuaria firme na doutrina e comunhão dos apósto­los, e no partir do pão e nas orações, a melhor evidência de que Ele havia falado a verdade quando disse: “Eu sou o Pão da vida”.

2) Então, esse é o pão celestial, o próprio Deus-homem encarnado, crucificado e glorificado. Vamos agora considerar, mais atentamente, a maravilhosa virtude desse pão. Ele é o Pão da vida. Compete ao pão ser o sustento da vida, mas é uma peculiaridade desse pão divino dar a vida eterna. “Aquele que vem a mim não terá fome; e quem crê em mim nunca terá sede”50. Referindo-se a esse poder de dar a vida, Ele chamou o pão ao qual se referia de “Pão da vida” e de verdadeiro alimento, e declarou que aquele que dele comesse não morreria, mas viveria para sempre51.

Observamos que, ao recomendar esse pão milagroso aos seus ou­vintes, Jesus deu especial ênfase em seu poder de dar a vida eterna e um corpo eterno ao homem. Por quatro vezes Ele declarou em termos mui­to claros que todos os que se alimentassem desse pão da vida ressuscita­riam no último dia52. A proeminência conferida de tal modo à ressurrei­ção do corpo deve-se, em parte, ao fato de que durante o seu discurso Jesus estava desenhando um contraste entre o maná que alimentou os israelitas no deserto e o verdadeiro pão que o maná simbolizava. O con­traste era mais impressionante exatamente nesse ponto. O maná era sim­plesmente um substituto para o alimento comum, não tinha o poder de proteger contra a morte: a geração que havia sido tão milagrosamente alimentada desapareceria da terra, assim como todas as outras gerações da humanidade. Portanto, argumentou Jesus, ele não poderia ter sido o verdadeiro pão do céu, pois o verdadeiro pão deve ser capaz de destruir a morte e dotar os seus receptores com o poder de uma existência infindável. Assim sendo, o homem que dele comer não deverá morrer; ou, se morrer, deverá ressuscitar. “Vossos pais comeram o maná no de­serto e morreram. Este é o pão que desce do céu, para que o que dele comer não morra”53.

Mas a proeminência dada à ressurreição do corpo deve-se, princi­palmente, à sua importância intrínseca. Pois se os mortos não ressusci­tassem, então nossa fé seria vã e o pão da vida iria degenerar em uma mera panacéia impostora que pretende ter virtudes que não possui. E

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verdade que ele ainda poderia conceder vida espiritual àqueles que o comessem, mas que valor teria esta sem a esperança de uma vida após a morte? Não muito, de acordo com Paulo, que diz: “Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens”54. E verdade que muitos, atualmente, não concordam com a opinião do após­tolo. Esses pensam que a doutrina da vida eterna pode ser deixada fora do credo sem nenhum prejuízo — e mais ainda, com alguma vantagem positiva à fé cristã. Para eles, a vida de um cristão parece ser muito mais valiosa quando qualquer pensamento de recompensa ou castigo futuro é eliminado de sua mente. Como seria maravilhoso passar através do de­serto desse mundo alimentando-se com o maná fornecido pelos puros e sublimes ensinos de Jesus, sem se preocupar se haveria uma terra de Canaã do outro lado do]ordão! Sena mesmo muito sublime! M as, nesse caso, por que andar pelo deserto? Por que não permanecer no Egito, alimentando-se com iguarias mais palatáveis e substanciais? Os filhos de Israel não teriam deixado o lar de sua escravidão a não ser que esperas­sem alcançar a terra prometida. A esperança da imortalidade é igual­mente necessária ao cristão. Ele deve acreditar em um mundo futuro a fim de poder viver acima do atual mundo de iniqüidades. Se Cristo não pode redimir o corpo do poder da morte, então sua promessa de nos redimir da culpa e do pecado teria sido em vão. O pão da vida seria indigno desse nome a não ser que tivesse o poder de lutar contra a corrupção física e moral.

Portanto, podemos comprovar a importância conferida por Jesus, nesse discurso, à ressurreição do corpo. Ele sabia que ali se encontrava o teste crucial pelo qual o valor e a virtude do pão que Ele oferecia aos seus ouvintes deveriam ser testados. “Quando você diz que esse pão é o pão da vida, em contraste com o maná de antigamente, você está queren­do dizer que, tal como a árvore da vida no Jardim do Eden, ele irá con­ferir àqueles que o comerem a dádiva de uma abençoada imortalidade?”, “Sim, eu digo”, responderia o pregador a propósito dessa pergunta ima­ginária: “Esse pão que vos ofereço não irá simplesmente vivificar a vossa alma, levando-a a uma vida mais pura e mais elevada; revivificará o vosso corpo e fará com que o corruptível se revista da incorruptibilidade e o mortal se revista da imortalidade”.

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3) E como, então, esse maravilhoso pão poderia ser apropriado para que pudéssemos experimentar sua influência vivificante? O pão, natural­mente, deve ser comido; porém, nesse caso, o que isso significa? Em uma só palavra, significaf é . “Aquele que vem a mim não terá fome; e quem crê em mim nunca terá sede”33. Comer a carne de Cristo e beber o seu sangue e, podemos acrescentar, beber a água sobre a qual falou com a mulher junto ao poço, tudo isso significa crer nele como Ele se ofereceu aos homens no Evangelho; como o Filho de Deus que se manifestou em carne, foi crucificado, ressuscitou dos mortos e ascendeu ao céu, à sua glória; como o Profeta, o Sacerdote, o Rei e o Mediador entre Deus e os homens. Ao longo do discurso em Cafarnaum, comer e crer são palavras que aparecem alternadamente como equivalentes. Assim, em uma sen­tença, encontramos Jesus dizendo: “Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim tem a vida eterna. Eu sou o Pão da vida”56; reafirmando, pouco depois: “Eu sou o Pão vivo que desceu do céu; se alguém comer desse pão, viverá para sempre”57. Se, por acaso, alguma outra assertiva fosse necessária para justificar a identidade existente en­tre comer e crer, ela poderia ser encontrada nos ensinos dados pelo pre­gador aos seus ouvintes antes de começar a falar sobre o pão da vida: “A obra de Deus é essa: que creiais naquele que ele enviou”58. Essa sentença fornece a chave para a interpretação de todo o discurso subseqüente. “Acreditem”, disse Jesus, referindo-se à pergunta precedente: “Que fare­mos para executarmos as obras de Deus?” Em outras palavras: Acredi­tem e estarão fazendo a obra de Deus. Podemos entender que Ele está se referindo a uma pergunta que poderia ter o seguinte sentido: “Como poderemos comer esse pão da vida?” — “Acreditem; comam com fé, e assim terão comido o pão da vida”.

Acreditem, e assim terão comido: essa foi a fórmula pela qual Agos­tinho expressou seu ponto de vista sobre o significado das palavras de Cristo no discurso em Cafarnaum59. Nossa opinião é que essa expressão, além de ser concisa, também é verdadeira; mas ela não foi aceita pela unanimidade dos intérpretes. Muitos sustentam que comer e fé são coi­sas distintas e exprimem a relação existente entre elas da seguinte manei­ra: Acreditem, e assim comerão. Até Calvino fez objeções à fórmula agostiniana. Ao fazer a distinção entre seu ponto de vista e aquele sus­

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tentado pelos seguidores de Zwinglio, ele diz: "Para eles, comer é sim­plesmente acreditar. Eu digo que a carne de Cristo é comida pela crença porque ela nos é dada pela fé, e que comer é o fruto e o efeito da fé. Ou,mais claramente ainda: Para eles comer é fé — para mim o correto é

r/»60seguir por re ♦A distinção entre comer e acreditar, adotada por Calvino, parece ter

sido mais verbal do que real. Entretanto, para muitos outros teólogos, ela é totalmente diferente. Todos que sustentam a mágica doutrina da transubstanciação e da consubstanciação defendem a interpretação lite­ral do discurso de Cafarnaum, até em suas afirmações mais imperiosas. Para eles, comer a carne de Cristo e beber o seu sangue são atos da boca, acompanhados talvez por atos de fé, mas não são meramente atos de fé. A maioria deles pressupõe, como fato lógico e natural, que o discurso re­gistrado no capítulo 6 do Evangelho de João faz referência ao sacramen­to da Santa Ceia e que, somente na hipótese de tal referência, pode ser explicada a peculiar fraseologia desse discurso. Cristo falou de comer a sua carne e beber o seu sangue, e por esta razão alguns entendem que Ele tinha em mente, antecipadamente, que neste ritual espiritual que seria instituído, o pão e o vinho não deveriam simplesmente representar, mas tornar-se os elementos constituintes de seu corpo crucificado.

Embora o sermão sobre o pão da vida continue a estar envolvido em controvérsias sacramentais, qualquer expectativa de concordância em suas interpretações será totalmente desprovida de esperança. En­quanto isso, até que o alvorecer de um dia melhor desponte sobre as opiniões divididas e confusas, todo homem deverá esforçar-se para ter o seu esclarecimento. Três coisas encontram-se bastante claras em nos­sa mente. Primeiro, é incorreto dizer que o sermão proferido na sina­goga de Cafarnaum está se referindo apenas à Santa Ceia. A real situ­ação desse caso é que ambos os eventos se referem a uma terceira ques­tão, isto é, à morte de Cristo, e ambos declaram, de diferentes manei­ras, o mesmo a esse respeito. O sermão diz, com palavras simbólicas, o que a Santa Ceia diz em um ato simbólico: que Cristo crucificado é a vida dos homens e a esperança da salvação do mundo. O sermão vai mais além, pois fala da ascensão de Cristo e também de sua morte; mas existe uma razão para isso.

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Um segundo ponto, que nos parece bastante claro, é que seria totalmente desnecessário assumir uma antecipada referência mental à Santa Ceia a fim de justificar a peculiaridade da linguagem de Cristo nesse famoso discurso. Como vimos no começo, todo o discurso sur­giu naturalmente da situação então reinante. A menção feita pelo povo ao maná levou Jesus, naturalmente, a falar sobre o Pão da vida; e do pão Ele passou, também naturalmente, a falar sobre a carne e o sangue, porque Ele não poderia ser totalmente pão até que se tornasse dividi­do em carne e sangue, isto é, até que tivesse suportado a morte. Na verdade, tudo o que encontramos aqui foi realmente dito, e está relaci­onado à Santa Ceia. A Santa Ceia serve não só para interpretar o ser­mão como também para estabelecer sua credibilidade como tendo sido autenticamente proferido por Jesus. Não existe razão para duvidar de que Ele, que instituiu essa festa espiritual, também pudesse ter prega­do esse sermão espiritual.

A terceira verdade, que brilha clara como uma estrela aos nossos olhos, é que somente através da fé podemos alcançar todas as bênçãos da salvação. Os sacramentos são muito úteis, mas não são indispensáveis. Se houvesse sido vontade de Cristo deixar de institui-los, chegaríamos ao céu da mesma maneira. Mas porque Ele os instituiu, é nosso dever celebrá-los e podemos esperar receber benefícios dessa celebração. Mas os benefícios que recebermos apenas ajudarão a nossa fé, e somente se­rão recebidos pela fé. Os cristãos comem a carne e bebem o sangue do Filho do Homem em todo momento, não apenas no ato da Santa Ceia, mas ao crerem nele. Eles comem a sua carne e bebem o seu sangue à sua mesa no mesmo sentido de antigamente; talvez apenas de uma maneira mais vivida, com os seus corações estimulados a uma maior devoção pela lembrança de seu amor sacrificial e através da fé auxiliada pelos atos de ver, segurar e saborear o pão e o vinho.

Seção IV — A Escolha - “ Peneirando”João 6.66-71

O sermão sobre o Pão da vida produziu resultados decisivos. Ele transformou em aversão o entusiasmo popular por Jesus e, como uma joeira, separou os verdadeiros dos falsos discípulos como se fosse uma

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brisa selecionadora que assoprasse para longe o joio, deixando para trás apenas um pequeno resíduo de trigo. “Desde então, muitos de seus dis­cípulos tornaram para trás e já não andavam com ele”.

Esse resultado não surpreendeu Jesus. Ele já o esperava; e, em certo sentido, até o desejava, embora isso o deixasse profundamente entriste­cido. Pois enquanto seu imenso e amoroso coração almejava a salvação de todos e desejava que todos se aproximassem para ganhar a vida, Ele não queria que ninguém o procurasse por algum equívoco ou o seguisse apenas por interesse. Ele procurou discípulos que lhe fossem dados pelo Pai61, enviados pelo Pai62, ensinados pelo Pai63, sabendo que somente esses permaneceriam em sua palavra64. Ele estava ciente de que existiam, na grande massa de pessoas que recentemente o haviam seguido, muitos discípulos com uma descrição inteiramente diferente; e estava de acordo que essa multidão deveria ser escolhida. Portanto, Ele pregou esse dis­curso espiritual, apropriado para ter um sabor de vida ou morte de acor­do com a situação espiritual dos ouvintes. Da mesma forma, quando os ouvintes se ofenderam com os ensinos de sua doutrina, Ele declarou claramente qual era o seu verdadeiro motivo65, e expressou sua segurança de que somente viriam ou poderiam realmente vir a Ele aqueles a quem seu Pai tivesse ensinado e trazido66. Essas coisas Ele disse não com o propósito de provocar ou irritar, mas porque considerava que seria certo dizê-las, embora fossem criar irritação, entendendo que os verdadeiros crentes as aceitariam de boa vontade e que aqueles que se ofendessem revelariam, por meio delas, o seu verdadeiro caráter.

Não há duvida de que os discípulos apóstatas se consideraram to­talmente justificados ao se retirarem daquela associação com Jesus. De­ram as costas a Ele, imaginamos, com a mais pura indignação, dizendo em seus corações — mais ainda, provavelmente dizendo bem alto entre eles: “Quem jamais ouviu uma coisa dessas? Que absurdo! Que revoltan­te! O homem que pode assim falar ou é um tolo ou está tentando fazer seus ouvintes de tolos”. No entanto, a dureza de sua doutrina não foi a verdadeira razão que levou tantos a abandoná-lo; ela era apenas um pre­texto, o motivo mais plausível e respeitável que poderiam atribuir à sua conduta que se originava de outros motivos. A grande ofensa feita por Jesus era essa: Ele não era o homem que esperavam que fosse; não estaria

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a serviço deles para alcançar os fins que tinham em mente. Qualquer coisa que estivesse dizendo sobre o Pão da Vida, ou sobre comer a sua carne, deixava claro que Ele não seria um provedor de sua subsistência, assumindo como sua profissão o fornecimento de suprimentos ao apeti­te físico daquele grupo. Também não seria um condutor a uma época áurea de abundância e ociosidade. Estando isso esclarecido, naquilo que dependia deles, tudo estava acabado. Ele poderia oferecer seu alimento celestial a quem quisesse; eles não queriam saber de nada disso.

Profundamente atingido pela visão melancólica oferecida por tan­tos seres humanos que, deliberadamente, preferiam bens materiais à vida eterna, Jesus virou-se para os seus doze discípulos e disse: “Quereis vós também retirar-vos?”, ou mais exatamente: “Vocês não vão querer ir também, não é?”67. Essa pergunta pode ser entendida como uma expres­são de confiança nas pessoas a quem foi dirigida e um apelo à sua solida­riedade naquele momento de crise desalentadora. E embora pudesse ser esperada uma resposta negativa a essa pergunta, ela não era aguardada como um fato lógico e natural. Jesus estava muito ansioso em relação à fidelidade de seus doze discípulos. Ele os questionou, embora conscien­te de que haviam sido colocados perante circunstâncias muito difíceis e que, se realmente não o abandonassem agora, ao final da grande crise, teriam, ao menos; vencido a tentação de se escandalizarem nele.

Um pouco de reflexão será suficiente para nos esclarecer que, na verdade, os doze discípulos haviam sido colocados nessa ocasião em uma posição previamente planejada para testar, com muita severidade, a sua fé. Primeiro, o simples fato de seu Mestre estar sendo indis­criminadamente desertado por uma multidão de antigos admiradores e seguidores envolvia, para o grupo escolhido, uma tentação à apostasia. Como é poderosa a força da solidariedade! Como estamos sempre tão dispostos a acompanhar a multidão, sem nos preocupar com a direção para a qual ela caminha! E quanta coragem moral é necessária para ficar­mos sozinhos! Como era difícil testemunhar o espetáculo de centenas, ou até de milhares de pessoas, partindo com obstinado rancor, sem sen­tir o impulso de imitar o seu mau exemplo! Como era difícil evitar ser levado junto com a poderosa maré de uma adversa opinião popular! Especialmente penoso deve ter sido para os doze discípulos resistir à

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tendência da apostasia se, como era mais provável, eles tivessem se sim­patizado com o projeto acalentado pela multidão quando o entusiasmo por Jesus estava “a todo vapor”. Para eles, teria sido muito gratificante ver seu amado Mestre transformado em rei pela aclamação popular; e como seu espírito deve ter se abatido quando a bolha rompeu e os pro­váveis futuros súditos do Príncipe Messiânico foram dispersos como se pertencessem a uma multidão ociosa, e quando o reino que lhes parecia tão próximo desapareceu como se fosse produto de sua imaginação!

Uma outra circunstância difícil para a fé desses doze discípulos foi o estranho e misterioso caráter do discurso de seu Mestre na sinagoga de Cafarnaum . Esse discurso continha palavras duras, repulsivas e ininteligíveis, tanto para eles como para o restante da audiência. Disso não resta qualquer dúvida quando levamos em conta a repulsa com que receberam, algum tempo depois, a notícia de que Jesus estava destinado a ser morto68. Se faziam objeção ao fato de sua morte, como poderiam entender seu significado, especialmente quando ambos, tanto o fato como seu significado, haviam sido mencionados dentro de um estilo tão místi­co e velado como aquele que permeou o sermão sobre o Pão da vida? Portanto, embora acreditassem que seu Mestre tinha as palavras da vida eterna e percebessem que seu último discurso estava relacionado com aquele tema supremo, podemos considerar como certo que não tinham condição de melhor compreender essas palavras do que o restante da multidão, por mais que tentassem fazê-lo. Não sabiam que conexão po­deria existir entre a carne de Cristo e a vida eterna, e não entendiam como comer essa carne poderia trazer-lhes algum benefício, e até o que significava o ato de comê-la. Tinham perdido totalmente de vista o ora­dor durante o vôo de águia de seu pensamento; e devem ter observado com angústia quando as pessoas se foram, dolorosamente conscientes de que não podiam culpá-las por completo.

No entanto, embora grandemente tentados a abandonar seu M es­tre, os doze discípulos permaneceram fielmente ao seu lado. Eles havi­am atravessado com segurança essa tempestade espiritual. Mas qual seria o segredo de sua firmeza? Quais eram as âncoras que impediram o seu naufrágio? Essas questões são de interesse prático para todos que, como os apóstolos nessa crise, são tentados à apostasia pelos maus

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exemplos ou dúvidas religiosas, pelo padrão do mundo em que vivem, seja ele científico ou ignorante, refinado ou rústico, ou pelas profun­das coisas de Deus, sejam elas os mistérios da providência, os mistéri­os da revelação ou os mistérios da experiência religiosa. Podemos per­guntar, na verdade, a todos os verdadeiros cristãos, qual deles já não foi tentado de uma, ou de várias dessas maneiras, em algum momento de sua história.

Material suficiente para responder a essas perguntas pode ser en­contrado nas palavras da resposta de Simão Pedro a Jesus. Como porta- voz de todo o grupo, esse discípulo prontamente disse: “Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna, e nós temos crido e conhecido que tu és o Cristo, o Filho de Deus”69 ou, de acordo com o texto preferido pela maioria dos críticos: “Tu és o Santo de Deus”70.

Podemos inferir dessas palavras três âncoras que ajudaram os discí­pulos a sobreviver à tempestade: determinação ou sinceridade religiosa; uma clara percepção das alternativas à sua fren te; e uma confiança implícita no caráter de seu Mestre e na afeição que dedicavam a Ele.

I) Os doze discípulos, como um só corpo, eram sinceros e inteira­mente determinados na religião. Seu desejo supremo era conhecer “as palavras da vida eterna” e chegar, verdadeiramente, a alcançar essa vida. Sua preocupação não estava presa à carne que perece, mas ao alimento celestial da alma que Cristo havia, aparentemente em vão, exortado a maioria de seus ouvintes a se empenhar para conseguir. Nesse momento, eles não sabiam claramente no que consistia esse alimento mas, de acor­do com o esclarecimento mental que possuíam, oravam com sinceridade dizendo: “Senhor, dá-nos sempre desse pão”. Portanto não representou nenhum desapontamento para eles o fato de Jesus ter declinado de se tornar fornecedor de um mero alimento material: nunca haviam espera­do ou desejado que Ele o fizesse, pois tinham procurado sua companhia por expectativas completamente diferentes. Uma certa parcela de erro podia estar associada à concepção deles da missão de Jesus, mas as prin­cipais expectativas da multidão, que eram carnais, não encontravam lu­gar em seu seio. Eles não haviam se convertido e se tornado discípulos para melhorar as suas circunstâncias neste mundo, mas para obter uma porção daquilo que o mundo não podia lhes dar nem subtrair.

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O que acabamos de afirmar é verdade para todos os discípulos, menos um e, entre outras coisas, a crise que estamos atualmente analisan­do é memorável justamente por isso, ela foi a primeira ocasião em que Jesus insinuou que havia um falso discípulo entre os homens que Ele havia escolhido. Para justificar-se por fazer uma pergunta que poderia lançar uma dúvida sobre a fidelidade deles, Ele respondeu ao protesto de Pedro com essa surpreendente observação: “Não vos escolhi a vós os doze? E um de vós é um diabo?”71 como se dissesse: “Para mim é muito doloroso ter que usar essa linguagem cheia de desconfiança, mas tenho um bom motivo: existe alguém entre vós que tem pensamentos de deserção e que é capaz até de traição”. Com que tristeza de espírito Ele deve ter feito tal insinuação em meio àquela crise! Ser abandonado por uma in­constante multidão de frívolos e descuidados seguidores teria sido uma questão sem importância se Ele pudesse contar com todos os membros daquele seleto grupo de bons homens e verdadeiros amigos. Mas ter um inimigo em sua própria casa, um ser diabólico capaz de representar o papel de Satanás no pequeno círculo de companheiros íntimos, era real­mente penoso!

Mas como um homem destinado a ser traidor, e merecedor do es­tigma de demônio, conseguiu transmitir credibilidade durante aquela crise? Será que, apesar de tudo, os fatos não parecem sugerir que é possí­vel alguém ser constante sem ser sincero? Não é bem assim; a única inferência legítima é que a crise não foi suficientemente minuciosa para revelar o verdadeiro caráter de Judas. Espere até ver o final. Um pouco de religião pode ajudar um homem a atravessar muitas provações, mas existe uma prova crucial em que nada, a não ser a sinceridade, poderá per­manecer. Se os pensamentos forem ambíguos ou o coração estiver divi­dido, chegará um momento em que o homem se sentirá compelido a agir de acordo com as razões que estão mais profunda e fortemente arraigadas dentro de si. Essa observação se aplica, especialmente, a épo­cas criativas, revolucionárias ou de transição. Nos momentos de tranqüi­lidade um hipócrita pode, facilmente, transmitir respeitabilidade ao seu mundo, e nunca ser descoberto, até chegar ao mundo futuro onde seus pecados irão acompanhá-lo até o juízo final. Mas, em épocas críticas, os irresolutos encontram as conseqüências de seus pecados nessa vida. E

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verdade que alguns homens indecisos conseguem suportar melhor as tentações do que outros, e que não se vendem por tão pouco como aqueles que pertencem aos rebanhos comuns. Mas todos eles têm seu preço, e os que pecam com mais dificuldade que os outros irão, ao final, pecar mais profunda e tragicamente.

Teremos uma outra oportunidade de falar sobre o caráter e a queda de Judas. Nosso objetivo agora é simplesmente mostrar que Jesus não esperava que aqueles que fossem como Judas se mostrassem constantes. Ao referir-se a esse discípulo, da maneira como o fez, Ele anunciava a sua convicção de que ninguém, em quem o amor de Deus e a verdade não fossem o princípio mais profundo de seu ser, continuaria fiel até o fim. Na verdade, Ele estava mostrando a necessidade de uma integridade moral ou de uma santa sinceridade, para permanecerem firmes na fé.

2 ) A segunda âncora que salvou os discípulos do naufrágio nessa ocasião foi uma percepção muito clara das alternativas. “Senhor, para quem iremos nós?”, perguntou Pedro, como quem via que, para os ho­mens que tinham em vista o mesmo objetivo procurado por ele e seus irmãos, não existia nenhuma outra alternativa a não ser permanecer onde estavam. Ele havia analisado, rapidamente, todas as possíveis alternativas e foi essa a conclusão a que chegou. “A quem poderemos ir — nós que procuramos a vida eterna?” João, nosso antigo mestre, está morto e, mesmo que estivesse vivo, nos mandaria de volta a ti. Ou devemos, então, procu­rar os escribas e os fariseus? Já há muito tempo estamos em tua compa­nhia para tomar essa decisão, pois tu nos ensinaste a superficialidade, a hipocrisia, a ostentação e a essencial ausência de Deus no sistema religi­oso desses homens. Ou será que devemos acompanhar a inconstante multidão e recair na indiferença e na estupidez? Nem pensar. Ou, final­mente, será que devemos procurar os saduceus, os idólatras do material e do temporal, que dizem não haver ressurreição, nem anjos, nem espíri­tos? Deus nos livre! Estaríamos renunciando a uma esperança que nos é mais cara que a vida e sem a qual, para uma mente determinada, a vida seria um enigma, uma contradição e um peso intolerável”.

Podemos compreender a ajuda que essa clara percepção das alterna­tivas representou para Pedro e seus irmãos ao refletirmos na ajuda que nós mesmos podemos auferir da mesma fonte quando somos tentados,

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por dificuldades dogmáticas, a renunciar ao cristianismo. Pedro teria tido um momento de repouso se compreendesse que as alternativas que se lhe ofereciam eram ou permanecer com Cristo ou tornar-se um ateu, ignorando Deus e o mundo futuro e que, se abandonasse Cristo, deveria procurar a escola de alguns grandes mestres da mais completa increduli­dade. Na obra de um autor alemão muito conhecido ele descreve um sonho que retrata com horrível nitidez as conseqüências que iriam pre­cipitar-se sobre o universo se o Criador deixasse de existir. O sonho foi inventado, assim nos diz esse autor, com o intuito de amedrontar aque­les que discutem a existência de Deus com tanta frieza como se a ques­tão dissesse respeito ao unicórnio ou ao mítico monstro marinho Kraken, e também para controlar quaisquer pensamentos ateus que pudessem nascer em seu próprio íntimo. “Se alguma vez”, ele diz, “meu coração ficasse tão infeliz e desanimado por ter todos esses sentimentos que destroem a existência de Deus, eu usaria esse sonho para me aterrorizar, e assim curar meu coração e recuperar meus sentimentos perdidos”72. A partir desses benefícios que Richter espera alcançar com o exame de seu próprio sonho, alguém que estivesse tentado a renunciar ao cristianismo poderia extrair a idéia, usando sua clara percepção, que ao deixar de ser cristão deveria decidir a aceitar um credo que não reconhece a Deus, a alma, nem a vida futura.

Infelizmente, não é fácil para nós nesse momento, como o foi para Pedro, entender exatamente quais são as alternativas que se colocam à nossa frente. Poucos seriam tão perspicazes, tão precipitadamente lógi­cos ou tão francos como o falecido Dr. Strauss que, em sua última pu­blicação, The Old and the New Faith} diz claramente que deixou de ser cris­tão. Em nossos dias, é por essa razão que, embora muitos se intitulem cristãos e tenham uma teoria sobre o universo (ou Weltanschauung, como a chamam os alemães) que não lhes permite acreditar em milagres, de qualquer forma ou em qualquer esfera, aceitem um axioma pelo qual o curso da natureza não pode ser interrompido, e que não chegam ao extremo dos “socinianos” (seguidores de Faustus e Laelius Socinus que rejeitavam algumas tradicionais doutrinas que eram, em seu conceito, cristãs) que em seu conceito a respeito de Cristo, declaram que Ele é, sem restrições, o único Santo de Deus, o único moralmente impecável.

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Até homens como Renan, afirmam ser cristãos e, como Balaão, honram àquele a quem sua filosofia os compele a censurar. Nossos “modernos Balaãos” confessam que, pelo menos, Jesus foi o homem mais santo, se não o único homem absolutamente santo. Eles são obrigados a bendizer o Homem de Nazaré. São fascinados pela estrela de Belém, como eram, no Oriente, os adivinhadores que se guiavam pela estrela de Jacó, e são forçados a dizer, com efeito: “Como amaldiçoarei o que Deus não amal­diçoa? E como detestarei, quando o Senhor não detesta?... Eis que recebi mandado de abençoar; pois ele tem abençoado, e eu não o posso revo­gar”73. Outros, que não vão tão longe quanto Renan, recuam de um radical naturalismo, acreditando em um Cristo perfeito, um verdadeiro milagre moral. No entanto, assumem um cristianismo independente de dogmas e estorvado, o menos possível, por milagres, um cristianismo puramente ético que consiste, principalmente, na admiração do caráter de Cristo e de seus ensinos morais. Como professores de tal cristianismo eles se consideram discípulos exemplares de Cristo. Estes são os homens a quem o autor de Supernatural Religion menciona como possuindo a carac­terística de uma “tendência a eliminar do cristianismo, com impensada habilidade, todo elemento sobrenatural que não esteja integralmente de acordo com as suas opiniões atuais”, pretendendo “reprimir, por um momento, os lobos perseguidores da dúvida e da descrença, praticamen­te jogando a eles, pedaço por pedaço, as mesmas doutrinas que constitu­em as reivindicações do cristianismo e que devem ser totalmente consi­deradas como divina revelação”74. De tais homens dificilmente podería­mos dizer que são naturalistas por tendência e que possuem uma teoria consistente sobre o universo. No entanto, eles não levariam o naturalis­mo às suas últimas conseqüências. Ou são pouco hábeis, ou não estão propensos a perceber as alternativas e obedecer à voz da lógica que, como um severo policial, ordena: “Movam-se”. Preferem, ao contrário, sustentar um ponto de vista que reúne as várias alternativas em um único conjunto eclético de credos, como Schleiermacher — ele próprio um excelente exemplo dessa classe — e a quem Strauss se refere como tendo reduzido a pó o cristianismo e o panteísmo, deixando-os tão combinados que se torna difícil dizer onde termina o panteísmo e onde começa o cristianis­mo. Na presença de um tão difundido espírito de acomodação e transi­

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gência, recomendado pelo exemplo de muitos homens capazes e influ­entes, será necessária muita coragem para ter e sustentar uma posição definida, ou para resistir à tentação de ceder à corrente e adotar o lema: Cristianismo sem dogmas e sem milagres. Mas, daqui a pouco, talvez se torne mais fácil perceber as alternativas, quando o tempo tiver mostrado mais claramente o rumo das tendências atuais. Nesse ínterim, estamos vendo o crepúsculo antes do anoitecer, e nesse momento pensamos po­der nos abster do sol; embora ele já esteja abaixo do horizonte, o ar ainda está repleto de luz. Porém, basta esperar um pouco, e a passagem do crepúsculo para a escuridão da noite mostrará até que ponto pode-se prescindir de Cristo — o Santo que a igreja adora e confessa — como o Sol do mundo espiritual.

3) A terceira âncora, com a qual os doze discípulos foram capazes de sobreviver à tempestade, foi a confiança no caráter de seu Mestre. Eles acreditavam, na verdade sabiam, que Ele era o Santo de Deus. T i­nham estado em sua companhia tempo suficiente para chegar a conclu­sões muito decididas a seu respeito. Tinham visto os milagres que Ele realizou, ouviram-no falar com maravilhosa sabedoria sobre o reino di­vino em parábolas e sermões, tinham observado sua extraordinária ter­nura e amoroso cuidado pelos humildes e perdidos, tinham estado pre­sente em seus vários encontros com os fariseus, e tinham observado sua santa aversão à falsidade, orgulho, vaidade e tirania. Toda essa abençoada comunhão havia feito nascer confiança e respeito pelo seu amado Mes­tre, demasiadamente fortes para serem estremecidos por um simples dis­curso que continha algumas declarações de caráter incompreensível, ex­pressas através de uma linguagem questionadora e até ofensiva. O inte­lecto deles pode ter ficado perplexo, mas o coração permaneceu fiel; portanto, enquanto outros que não conheciam tão bem a Jesus partiram desgostosos, eles continuaram ao seu lado, sentindo que tal guia e amigo não podia ser abandonado por causa de uma ninharia.

“Temos crido e conhecido que tu és o Cristo”, disse Pedro. Ele cria porque conhecia. Essa confiança implícita, que os doze discípulos ti­nham em Jesus, somente é possível através de um conhecimento íntimo, pois ninguém pode confiar em um estranho. Por conseguinte, todos os que desejam alcançar o benefício dessa confiança devem estar dispostos

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a gastar algum tempo e ter o trabalho de penetrar no âmago da história do Evangelho e de seu grande tema. Não se alcança ancoragem segura com a leitura desatenta de narrativas evangélicas ao acaso, e sim através de um estudo cuidadoso, conciso e piedoso, em oração, embora isso possa levar anos para ser conseguido. Aqueles que se ressentem desse trabalho estão em perigo iminente de sofrer o destino que caiu sobre a multidão ignorante, de serem passíveis de entrar em pânico por causa de qualquer novo livro infiel, ou de se escandalizar com qualquer nova e estranha manifestação sobre o objeto da fé. Por outro lado, aqueles que realmente se dedicam a essa tarefa serão recompensados por seus esfor­ços. Embora, por algum tempo, tenham estado sacudidos pela tempes­tade, ao final, alcançarão o abrigo de um credo que não estabelecerá um compromisso desconhecido com um cristianismo escriturai e infiel, mas que engloba todos os fatos e as verdades essenciais da fé, tal como foram ensinados por Jesus no discurso de Cafarnaum e, mais tarde, transmiti­dos pelos homens que, com toda segurança, atravessaram a crise de Cafarnaum.

Possa Deus, em sua misericórdia, guiar todas as almas que agora estão no mar tempestuoso da dúvida ao porto seguro celestial!

1 João 6.4: “E a Páscoa, a festa dos judeus, estava próxima”.2 Keim, embora admitindo a realidade da crise da Galiléia, acredita que o relato feito no capítulo 6 de João não

seja histórico, embora o considere como uma das mais elaboradas composições de todo o livro. Ele encontra esse relato histórico em Mateus 16; e descobre no quarto Evangelho pontos claros de correspondência com a versão sinóptica. A declaração de Pedro, ao término do capítulo, representa simplesmente sua famosa confissão sob outra forma. Na descrição de João , o d ia b o c o r r e s p o n d e ao Satanás da versão sinóptica; somente o diabo mencionado por João está em Judas, enquanto o da visão sinóptica é mencionado nos escritos de Pedro. Keim diz que, no relato que João fez da crise, o apogeu e a queda da estrela de Jesus foram incluídos em um único capítulo e tratados como acontecimentos de um só dia. Através dos alimentos e da tempestade, Jesus alcança, rapidamente, a maior popula­ridade e também rapidamente a perde em conseqüência do duro discurso em Cafarnaum. Mas essa é uma interpre­tação absolutamente incorreta. João realmente estabelece a crise em um capítulo, mas não faz com que o entusiasmo da multidão apareça como resultado do milagre do alimento ou de qualquer outro ato. Ele começa o ministério da Galiléia (o qual ele conhece, embora não faça nenhum relato sobre ele) no ponto onde já tinha alcançado o resul­tado de transformar Jesus em um ídolo popular (veja o versículo 2), e então continua relatando a história da crise. E a história que ele nos oferece, consistente e inteligível em si mesma, como esperamos mostrar, ajuda a explicar coisas que no relato sinóptico não são claras, por exemplo, a ordem de Cristo para os discípulos partirem rapida­mente através do lago. Vide Jesu von Nazara} 2.578.

3 Lucas 9.104 Reconstruída pelo tetrarca Filipe, e referida por Josefo.

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5 Stanley, Sinai and Palestine p. 382. O “lugar deserto” é mencionado em Lucas 9.10. A “erva verde” aparece em Marcos 6.39 e em João 6.10 ( “relva”).

6 Marcos 6.337 Marcos 6.408 Vide página 104.9 João 6.2310 João 6.911 Lucas 9.1212 Marcos 8.3,413 Marcos 8.1-314 Como uma opinião sobre a visão da passagem em João 6.4 mencionada acima, veja Luthardc, Das Johan.

Evangelium, I. 80, 2. 41.15 Marcos 6.37; João 6.7. Entende-se que um denário (ou penny, na versão inglesa) era o salário de um dia de um

trabalhador (M t 20.9) e correspondia a cerca de um oitavo de onça em prata.16 João 6.6 -17 João 6.14,15. O profeta mencionado era como Moisés (Dt 18.15).18 Mateus 14.22; Marcos 1.45, Eutbeõs enankasen19 João 6.15,16. Vide p. 116, nota 2.20 Salmo 78.19,24,2521 Deuteronômio 8.222 João 6.2623 Stanley, Sinai and Palestine, p. 380.24 Mateus 8.23; Marcos 4.35; Lucas 8.2225 João 6.1926 Marcos 6.4827 Veja a Seção IV deste capítulo.28 Lucas 24.3729 Marcos 6.4830 João 6.2031 Marcos 6.5132 Marcos 6.5233 Mateus 14.2834 João 6.2135 João 6.24. Luthardt, muito apropriadamente, menciona que pelo fato de as pessoas estarem esperando Jesus

em Cafarnaum, esse lugar seria a sua residência, como também nos informam os Evangelhos sinópticos — Das Joh. Evang. 2.50.

36 Versículos 26, 2737 Versículo 2838 Versículo 2939 Versículos 30, 3 1 .0 nome de Moisés não é mencionado, mas ele está em seu pensamento.40 ho katabainon, versículo 33, refere-se artos , não está se referindo diretamente ao orador.41 João 6.32-3542 Versículo 3343 Versículos 38, 51, 58, 6244 Versículos 41, 4245 João I .I446 João 6.51. As palavras no original, representadas por aquelas que estão entre parêntesis, são de autoria duvido­

sa, mas o sentido será o mesmo quer permaneçam quer sejam apagadas. O primeiro termo, dõsõ, contém esta idéia.47 João 6.5248 João 6.53-58. No versículo 55 a leitura varia entre atèthõs e atèthês ou . No versículo 57, dia ton patera-s ign ifica

literalmente “por causa de”, porém o termo “por” traz o sentido prático. O mesmo ocorre com di’em e.49 João 6.61, 6250 João 6.3551 João 6.50, 51, 55

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52 João 6.39, 40, 44, 5453 João 6.49, 5054 I Coríntios 15.1955 João 6.3556 Versículos 47, 4857 Versículo 5158 Versículo 2959 Creâe et manducastí — Na obra In Joannis Evangelium Tract. 25. § 12.60 Calv. Institutio IV 27:5.61 João 6.3762 João 6.4463 João 6.4564 João 8.3165 João 6.36, 3766 João 6.4467 João 6.67. A partícula mê implica que se espera uma resposta negativa. Veja Winer, Neutest. Grammatik, § 57,

tradução de Moulton, p. 641.68 Mateus 16.2269 João 6.68, 6970 Veja Alford in loc. A confissão da santidade de Cristo era apropriada, porém eqüivalia a sofrer uma acusação

implícita de ter usado uma linguagem ofensiva aos sentimentos morais.71 João 6.7072 J. F. Richter, Siebenkas, 8.73 Números 23.8, 2074 Veja a obra Supernatural Religion, 1:92 (6a edição).

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10O Fermento dos Fariseus

e dos SaduceusMateus 16 .1-I2 ; Marcos 8 .I0 -2I

PA__Jsse novo conflito entre Jesus e seus oponentes teve lugar logo de­pois do segundo milagre em que Ele alimentou a multidão, semelhante ao que havia realizado nas vizinhanças de Betsaida Julias. A extensão do intervalo entre os dois milagres não pode ser determinada com preci­são1; mas é bastante significativa para admitirmos uma longa viagem, da parte de nosso Senhor e de seus discípulos, até a costa de Tiro e Sidom, cenário do encontro com a mulher siro-fenícia e, a partir daí, através da região das dez cidades (Decápolis), na margem oriental do lago da Galiléia. Também foi suficientemente longo para permitir que a causa e a fama de Jesus se recuperassem do estado de degradação a que haviam chegado depois do sermão da escolha, na sinagoga de Cafarnaum. Aquele que havia se tornado impopular, tornou-se novamente popular, de modo que ao chegar à margem sudeste do lago, Ele se viu acompanhado de milhares de pessoas, tão interessadas em ouvir sua pregação e experi­mentar seu poder de cura, que permaneceram praticamente três dias ao seu lado, quase sem se alimentarem, criando, portanto, a necessidade de um segundo repasto milagroso.

Lemos que, após o milagre realizado nessa margem do lago, Jesus despediu-se da multidão e, entrando no barco, navegou até a costa de Magdala, que ficava no lado ocidental2. Foi em sua chegada a esse local que Jesus encontrou um grupo de pessoas que o procurava acreditando ser Ele um sinal do céu. Provavelmente, essas pessoas tinham ouvido falar a respeito do recente milagre, assim como de muitos outros realiza-

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dos por Ele. Relutantes, porém, em aceitar a conclusão à qual essas ma­ravilhosas obras claramente levavam, essas pessoas pretendiam considerá- las como prova insuficiente de seu messianato e exigiam evidências ainda mais inequívocas antes de concordar com sua reivindicação. Mostre-nos um “sinal do céu”, diziam eles, querendo dizer com isso alguma coisa como o maná vindo do céu a pedido de Moisés, ou o fogo pedido por Elias, ou mesmo o trovão e a chuva pedidos por Samuel3; pois entendi­am que tais sinais somente poderiam ser realizados pelo poder de Deus, enquanto os sinais terrenos, como aqueles que Jesus havia exibido em seus milagres de cura, também poderiam ser produzidos pelo poder do demônio!4. Era um tipo de exigência muitas vezes dirigida a Jesus, em boa ou má fé5, mas os judeus estavam exigindo tais sinais — milagres de natureza singular e surpreendente, próprios para satisfazer à curiosidade supersticiosa e causar espanto a mentes amantes de prodígios — , mila­gres que eram meramente sinais e que não serviam a nenhum outro pro­pósito que não fosse exibir o poder divino; como a vara de Moisés, transformada em serpente e, depois, restaurada à sua forma original.

Todas essas exigências dos “caçadores de sinais” receberam uma recusa direta. Ele não iria condescender e realizar milagres, de qualquer natureza, para servirem como meros certificados de seu próprio messianato, ou fornecer alimento a um apetite supersticioso ou material para a diversão dos céticos. Ele sabia que aqueles que permanecessem descrentes diante de seus milagres comuns, que não eram apenas sinais, mas também obras de benevolência, não se deixariam converter à fé por nenhum meio. E ainda mais, que por mais evidências que recebessem, mais empedernidos ficariam em sua descrença. Ele considerava a própria exigência de tais sinais como a indicação de uma firme determinação por parte daqueles que o faziam por não crerem nele, mesmo que, a fim de se verem livres dessa desagradável obrigação, fosse necessário condu­zi-lo à morte. Portanto, ao recusar fornecer os sinais que buscavam, o Senhor recorria ao hábito de acompanhar essa recusa com uma palavra de censura ou de um triste presságio; como na ocasião em que Ele disse, depois de seu batismo, ainda no período inicial de seu ministério, e em sua primeira visita a Jerusalém: “Derribai este templo, e em três dias o levantarei”6.

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Na presente situação a alma de Jesus estava muito perturbada pelas renovadas exigências dos “caçadores de sinais”. “E, suspirando profundamente em seu espírito”, sabendo muito bem o que significa­vam tais demandas, em relação tanto aos que a faziam como a si próprio, Ele se dirigiu ao grupo que viera testá-lo com termos excessivamente severos e amargos — acusando as pessoas de possuírem cegueira espiri­tual, chamando-as de geração má e adúltera, referindo-se ironicamente a elas naquele momento como havia feito anteriormente7 na pregação do profeta Jonas. Ele lhes disse que, embora conhecessem os sinais do tem­po e entendessem o que significava um céu vermelho pela manhã e à tarde, estavam cegos perante nítidos sinais dos tempos que mostravam, claramente, que o Sol da Justiça havia nascido e que a terrível tempesta­de do juízo estava chegando como uma noite escura sobre a apóstata Israel, por causa de toda a sua iniqüidade. Ele aplicou a esse grupo, assim como a toda geração que representava, o epíteto de “má” para caracterizar o seu comportamento traiçoeiro, malévolo e rancoroso em relação a si próprio, e empregou o termo “adúltera” para descrevê-los, em relação a Deus, como culpados de quebrar a aliança de casamento celebrada entre eles, ao fingirem sentir um grande amor e zelo com seus lábios, porém, dando as costas ao Deus vivo em seu coração e em sua vida para sair à procura de ídolos — formas, cerimônias e sinais. Como sinal, Ele lhes contou a história do profeta Jonas, em uma alusão espiri­tual à sua morte. Isto é, querendo dizer que uma das provas mais confiáveis de que Ele era de Deus era exatamente o fato de estar sendo rejeitado e torpe e barbaramente tratado por aqueles a quem se dirigia; não podia haver pior sinal do que ser bem recebido por eles, ou seja, não poderia ser o verdadeiro Cristo quem fosse assim recebido8.

Tendo assim, livremente, expressado seu pensamento, Jesus aban­donou os caçadores de sinais e, entrando no barco, partiu novamente para a margem oriental de onde havia chegado, ansioso por se ver livre daquelas presenças tão indesejáveis. Ao descer à terra, Ele fez desse en­contro um tema de instrução para os doze discípulos. “Acautelai-vos”, disse Ele enquanto caminhavam, “do fermento dos fariseus e saduceus”. Suas palavras foram ditas abruptamente, como a fala de alguém que tivesse acabado de acordar de um sonho. Enquanto os discípulos rema-

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vam através do lago, imaginamos que Jesus tenha ficado meditando so­bre tudo o que ocorrera, refletindo tristemente sobre a descrença que predominara em sua audiência e sobre os sombrios sinais do tempo que estavam a pressagiar a desgraça que se abateria sobre si e toda a nação judaica. E agora, lembrando-se da presença dos discípulos, Ele lhes co­munica seus pensamentos sob a forma de uma advertência, prevenindo- os contra a mortal influência de um período de desgraças, como um pai que estivesse ordenando ao filho para ter cuidado com uma planta vene­nosa cujas extravagantes flores tivessem atraído o seu olhar.

Nessa advertência podemos observar as tendências dos fariseus e saduceus. Jesus não fala de duas influências, mas de uma comum às duas seitas, como se elas fossem duas espécies de um mesmo gênero, dois galhos de um só tronco9. E isso elas realmente eram. Superficialmente, os dois partidos eram muito diferentes. Um era extremamente zeloso da religião, enquanto o outro era mais “moderado”; um era rígido em ques­tões morais, o outro era licencioso; um era exclusiva e intensamente ju­daico em seus sentimentos, o outro era aberto às influências da civiliza­ção pagã. Cada uma dessas seitas exercia uma influência que lhe era pe­culiar; a dos fariseus sendo, como Cristo tinha o hábito de declarar, a da hipocrisia10; e a dos saduceus, um interesse em assuntos meramente ma­teriais e temporais que assumia, em alguns, uma forma política como a dos partidários da família de Herodes, que nos Evangelhos foram cha­mados de herodianos, e em outros a aparência exterior de uma filosofia que negava a existência do espírito e da realidade de uma vida futura e faziam dessa negação uma desculpa para a sua exclusiva devoção aos interesses da época. Mas aqui, como em toda parte, os extremos se to­cam. O “farisaísmo”, o “saduceísmo” e o “herodianismo” eram radical­mente uma coisa só, embora apresentassem pequenas diferenças. Os “re­ligiosos”, os filósofos e os políticos eram todos membros de um grande partido totalmente hostil ao reino divino. Todos eram igualmente adep­tos de pensamentos mundanos (a respeito dos fariseus está especialmen­te observado que eram avarentos11); todos se opunham a Cristo pela mesma razão fundamental, isto é, porque Ele não era desse mundo; to­dos unidos fraternalmente, e em um mesmo momento, na tentativa de atormentá-lo com exigências incrédulas e desmedidas12; e todos, ao fi­

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nal, tiveram uma participação em sua morte. Foi assim que, de uma vez por todas, tornou-se aparente que um cristão não é alguém que difere apenas superficialmente dos fariseus ou dos saduceus, mas alguém que difere radicalmente de ambos. Esta é uma verdade importante, que ainda não foi completamente entendida, pois muitos imaginam que uma cren­ça verdadeira, ao lado de uma vida correta, consiste em refugiar-se no extremo oposto de qualquer tendência cuja maléfica influência seja apa­rente. Para evitar um rigoroso e supersticioso farisaísmo, que se tornou odioso, os homens acabam caindo no ceticismo e na licenciosidade dos saduceus; ou, aterrorizados pelos excessos de infidelidade e secularismo, procuram a salvação em igrejas infalíveis e ritualistas e no renascimento de um “monasticismo” medieval. Assim, essas duas tendências estão continuamente a se autopropagar, apoiadas no princípio da ação e da reação. Uma geração ou escola indo totalmente em uma direção e outra fazendo questão de ser diferente da precedente ou, quanto possível, sua vizinha, e ambas, igualmente, muito longe da verdade.

Parece que Jesus não considerou necessário estabelecer qual era a influência comum dos saduceus e dos fariseus. Com suficiente clareza, Ele já havia indicado sua natureza na áspera resposta que dera aos caça­dores de sinais. O defeito radical das duas seitas era exatamente a incre­dulidade, isto é, a cegueira e a indiferença de coração ao divino. Eles não reconheciam a verdade e o bem quando os viam, e mesmo que os reco­nhecessem, não os amavam. Tudo que os rodeava era uma prova de que o Rei e o reino da graça estavam entre eles, no entanto estavam agora exi­gindo sinais exteriores arbitrários, “evidências externas”, no pior senti­do, de que aquele que falava como nenhum homem jamais falara, e rea­lizava maravilhas de misericórdia nunca dantes testemunhadas, não era um impostor, mas um homem sábio e bom, um profeta e o próprio Filho de Deus. O homem natural, religioso ou não, é verdadeiramente cego e indiferente — está morto! O que esses homens, que procuravam por sinais, estavam precisando não era de um novo sinal e sim de um novo coração; não de uma simples evidência, mas de uma disposição espiritual para obedecer à verdade.

O espírito de descrença, que reinava na sociedade judaica, foi descrito por Jesus como fermento, com uma referência especial à sua

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característica de propagação, pois ele se transmite de pai para filho, do rico para o pobre e do culto para o ignorante, até que toda uma geração tenha sido contaminada pela sua maligna influência. Perante seus olhos, esse era o estado de coisas que predominava em Israel. Cegueira espiritu­al e indiferença, sintomas exteriores de uma moléstia interior, isto é, de uma constante avidez por evidências, era o que Ele encontrava por todos os lados. O povo comum, os líderes da sociedade, os religiosos, os céti­cos, os cortesãos e os camponeses estavam todos cegos e, aparentemente, muito ansiosos para ver, porém sempre renovando a exigência: “Que sinal, pois, fazes tu, para que o vejamos, e creiamos em ti? Que operas tu?”

Tendo acabado de ser incomodado uma hora antes pela sinistra ação dos inimigos, Jesus em seguida viu-se à frente com um novo motivo de aborrecimento pela estupidez de seus amigos. Os discípulos haviam entendido mal, de uma forma completa e até ridícula, a mensagem de advertência que receberam. Conversando entre si, enquanto seu Mestre caminhava um pouco adiante, discutiam essa questão considerando o que palavras tão estranhas, enunciadas de maneira tão abrupta e determinada poderiam significar; e chegaram à “sábia” conclusão de que elas tinham o propósito de preveni-los para não comprarem pão de nenhuma das partes que pertenciam a qualquer uma das seitas ofensivas. Isso era um equívoco absurdo, mas, levando-se tudo em conta, não seria assim tão estranho, pois, em primeiro lugar, como já foi antes mencionado, Jesus havia intro­duzido o assunto de forma bastante inesperada e, em segundo, algum tem­po já tinha se passado desde a reunião com os caçadores de sinais, durante o qual nenhuma alusão havia sido feita àquele assunto. Como poderiam saber que durante todo esse tempo os pensamentos de seu Mestre tinham estado ocupados com os fatos que haviam acontecido no lado ocidental do lago? Em todo caso, era improvável que tal suposição ocorresse às suas mentes pois, sem dúvida, a exigência de sinais tinha lhes parecido um evento sem muitas conseqüências e, provavelmente, já o haviam esquecido tão logo viraram as costas para os homens que a fizeram. Então, finalmen­te aconteceu, antes que Jesus começasse a falar, de eles se lembrarem que, na pressa da partida, haviam se esquecido de se prevenir com um estoque de provisões para a viagem. Isso era o que eles estavam pensando a esse respeito quando Ele começou a dizer: “Adverti e acautelai-vos do fermento

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dos fariseus e saduceus”. O fato de não terem se abastecido de pão — e não as graves circunstâncias por que tinham passado com ambas as seitas — lhes trouxe tanta preocupação, a ponto de, ao ouvirem a advertência contra um tipo especial de fermento, rapidamente chegarem à seguinte conclu­são: “E porque não nos fornecemos de pão”.

Contudo, o mal-entendido por parte dos discípulos, embora sim­plório e natural em sua origem, não deixava de ser censurável. Eles não podiam ter caído nesse erro se o interesse que tinham pelas coisas espi­rituais e temporais tivesse sido proporcional à sua relativa importância. Eles haviam tratado muito levianamente o incidente que ocorrera do outro lado do lago e, com muita gravidade, sua negligência de não ter providenciado pão. Deviam ter levado mais a sério a exigência ímpia de sinais e as solenes palavras ditas pelo seu Mestre a esse respeito. Também não deveriam ter se preocupado tanto com a falta de pães estando na companhia daquele que havia, por duas vezes, alimentado milagrosa­mente multidões famintas no deserto. Seu descuido em uma direção, e seu exagerado zelo em outra, mostrou que o alimento e o vestuário ocu­pavam em sua mente um espaço muito maior que o reino de Deus e seus interesses. Se tivessem possuído mais fé e mais espiritualidade, não teri­am se exposto à pergunta censuradora de seu Mestre: "Como não compreendestes que não vos falei a respeito do pão, mas que vos guardásseis do fermento dos fariseus e saduceus?”13

No entanto, certamente Jesus não esperava que esses discípulos incipientes entendessem como Ele a importância do que havia ocorrido do outro lado do lago. Era necessário ter uma visão incomum para discernir a importância dessa exigência de um sinal; e, como veremos logo a seguir, a capacidade que os discípulos tinham de entender os sinais, como já aprendemos em relação ao que ela nos levaria a esperar, era realmente muito limitada. Na verdade, uma das principais lições a ser apreendida do assunto desse capítulo é exatamente essa: como eram diferentes os pensamentos de Cristo dos pensamentos de seus compa­nheiros, com referência ao futuro. Daqui em diante, teremos muitas oca­siões de fazer observações sobre isso à medida que caminharmos em direção à crise final. Nesse ponto, somos requisitados a destacar esse fato, de forma proeminente, pela primeira vez.

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1 A cronologia dos acontecimentos registrados em Mateus 15 e 16 em relação à Festa dos Tabernáculos mencionada em João 7, é uma importante questão. Entretanto, ela é uma daquelas sobre a qual os estudiosos têm opiniões diferentes e que, com certeza, não podemos alcançar.

2 Mateus 15.393 Veja Alford. Stier faz referência a livros apócrifos para explicar a natureza dos sinais exigidos.4 Mateus 12.24 e passagens paralelas.s João 2.18; 6.30; Mateus 12.386 João 2.197 Mateus 12.408 Pfleiderer (na obra, Die Religion, 2.447), dá uma importância tão grande a esse encontro entre Jesus e os fariseus,

que chega a ponto de atribuir a ele a semente histórica do relato da tentação. Ele considera as exigências como sendo feitas por pessoas determinadas e prontas para receber a Jesus como o Cristo se Ele lhes desse o necessário sinal milagroso; estariam assim dispostas a formar uma aliança amigável com Ele. Por outro lado, este autor repre­senta Jesus como relutante em aceitar o cetro de Messias de mãos manchadas pelo pecado, preferindo alcançar o seu trono por outro caminho. Entretanto, Pfleiderer pensa que se pode observar que Ele não era insensível a essa tentação, pelas palavras de advertência que pronunciou posteriormente a respeito do fermento dos fariseus.

9 Nesta conexão, a omissão do artigo antes do termo Saddouka no texto grego é significativa.10 Lucas I2 .In Lucas 16.1412 Em Marcos (8.15) é mencionado o “fermento de Herodes”.13 Mateus 16.2

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11A Confissão de Pedroou A Opinião Corrente e a Verdade Eterna

Mateus 16 .13-20 ; Marcos 8.27-30; Lucas 9 .I8 -2I

ÀÃ \ . partir da margem oriental do lago, Jesus seguiu sua viagem em direção ao norte, acompanhando o curso superior do rio Jordão. Ao passar por Betsaida Julias, segundo Marcos nos informa, Ele restituiu a visão a um cego. Continuando sua jornada, chegou por fim às vizinhan­ças de uma cidade de alguma importância, lindamente situada nas proxi­midades das fontes do Jordão, ao sul do monte Hermom. Essa cidade era Cesaréia de Filipe, antigamente chamada de Panéias, em homenagem a Pan, um deus pagão, adorado pelos gregos da Síria em uma caverna de calcário das redondezas, onde borbulhava a nascente das águas do Jordão. Seu nome atual havia sido dado por Filipe, tetrarca de Traconites, em honra a César Augusto que anexou a ela seu próprio nome (Cesaréia Filipe ou Cesaréia de Filipe) para diferenciá-la de outra cidade com o mesmo nome na costa do Mediterrâneo. A cidade assim chamada podia vangloriar-se de seu templo de mármore branco, construído por Herodes o Grande para o primeiro imperador romano, além de vilas e palácios, construídos por Filipe, filho de Herodes, em cujos domínios ela se situ­ava e, à qual, como acabamos de dizer, ele deu o seu novo nome.

Distante, naquela remota e isolada região, Jesus se dedicou durante algum tempo a orações particulares e conversas confidenciais com os seus discípulos sobre tópicos do mais profundo interesse. Uma das con­versas dizia respeito à sua própria pessoa. Ele introduziu o assunto fa­zendo a seguinte pergunta aos doze discípulos: “Quem dizem os ho­mens ser o Filho do Homem?” Ele fez essa pergunta, não porque preci­sasse ser informado, e menos ainda por qualquer razão de mórbida sen­

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sibilidade, como os homens vaidosos se sentem a respeito de opiniões alimentadas sobre si por seus companheiros. Ele desejava de seus discí­pulos uma exposição sobre as opiniões correntes, apenas como uma for­ma de prefácio à profissão de sua própria fé em relação à verdade eterna a seu respeito. Ele considerou que seria bom conseguir deles essa profis­são nesse momento, pois estava prestes a lhes fazer comunicados sobre outro assunto, isto é, sobre os seus sofrimentos, que sabia que certamen­te testariam a fé deles. Ele desejava dos discípulos um completo com­promisso com a doutrina de seu messianismo antes de continuar falando em termos sinceros sobre um assunto que seria mal recebido por eles, a sua morte.

A partir das respostas dos discípulos parece que seu Mestre tinha sido objeto de muita discussão entre o povo. Mas isso é simplesmente o que poderíamos esperar, pois Jesus havia se tornado uma pessoa extraor­dinariamente conhecida, e o fato de estar sendo muito comentado era uma das inevitáveis desvantagens da sua proeminência. Naqueles dias, os méritos e as afirmações do Filho do homem eram sujeitos a uma inves­tigação livre e extensa, feita com seriedade ou leviandade, com precon­ceito ou sinceridade, com decisão ou indecisão e com inteligência ou com ignorância, tal como acontece com os homens de todas as épocas. Ao se misturar com o povo, os doze discípulos ouviam muitas opiniões a respeito de seu Senhor que nunca chegavam aos ouvidos dele; estas eram às vezes amáveis e favoráveis, o que os deixava contentes; e outras vezes maldosas e desfavoráveis, que os deixava muito tristes.

As opiniões prevalecentes nas massas a respeito de Jesus — pois foi em referência a isso que Ele interrogou os discípulos1 — parecem ter sido, em sua maioria, favoráveis. Todos concordavam em considerá-lo um profeta da mais elevada estirpe e diferiam apenas sobre a qual dos maiores profetas de Israel Ele se assemelhava, ou personificava. Alguns diziam que era o próprio João Batista ressuscitado, outros, que era Elias, enquanto outros o identificavam com um ou outro dos grandes profe­tas, como Jeremias. Essas opiniões eram justificadas, em parte, por uma expectativa que na época as pessoas geralmente acalentavam do advento do Messias que seria precedido pelo retomo de um dos profetas de quem Deus havia falado a seus pais, e em parte, pela percepção de seme-

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lhanças reais ou supostas entre Jesus e esse ou aquele profeta; pois sua ternura fazia lembrar a um dos ouvintes o autor das Lamentações, seu rigor em denunciar a hipocrisia e a tirania lembrava a outro do profeta do fogo, enquanto seus discursos, cheios de parábolas, talvez fizessem um terceiro se lembrar de Ezequiel ou Daniel.

Quando refletimos sobre o elevado nível de veneração com a qual esses antigos profetas eram contemplados, não podemos deixar de con­siderar que essas divergentes opiniões sobre Jesus, correntes entre o povo judeu, implicavam em um elevado senso de sua grandeza e excelência. Para nós, que o consideramos como o verdadeiro Sol, enquanto os pro­fetas, quando muito, não são mais que lâmpadas de luz intensa, tais comparações podem muito bem parecer não apenas inadequadas, mas até ofensivas. No entanto, não devemos desprezá-las, pois nos dão o testemunho de contemporâneos compreensivos, embora mal informa­dos, sobre o significado daquele a quem adoramos como Senhor. Isola­damente analisadas, elas mostram que, segundo o julgamento de obser­vadores imparciais, Jesus era um homem de insuperável grandeza e, quan­do em conjunto, elas mostram as muitas facetas de seu caráter e sua superioridade em relação a qualquer um dos profetas, pois Ele não po­deria ter lembrado cada um desses profetas àqueles que foram testemu­nhas de suas obras e ouviram suas pregações, a não ser que abrangesse a todos em uma única pessoa. Portanto, a própria diversidade de opiniões a seu respeito mostrava que havia aparecido alguém maior do que Elias, Jeremias, Ezequiel ou Daniel.

Essas opiniões, valiosas como testemunhos da excelência de Cristo, devem ser ainda admitidas como indicadoras, até esse momento, da boa disposição existente naqueles que as acalentavam e expressavam. Em uma época em que alguns homens se consideravam, em todos os aspectos, imensamente superiores à multidão — e que não conseguiam encontrar um nome melhor para o Filho do Homem que não fosse samaritano, demônio, blasfemo, glutão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores— era algo bastante considerável acreditar que aquele que havia sido caluniado fosse um profeta digno de todas as honras, como qualquer um daqueles cujos sepulcros eram cuidadosamente polidos pelos professo­res de devoção; os mesmos que, ao mesmo tempo, depreciariam e até

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condenariam à morte o seu vivo sucessor. A multidão que sustentava uma opinião favorável a Jesus poderia ter chegado perto de um verdadei­ro discipulado, pois estava, pelo menos, muito à frente dos fariseus e saduceus, que se aproximaram possuídos de uma disposição provocado- ra exigindo sinais do céu, e a quem nenhum sinal, quer do céu ou da terra, convenceria ou aplacaria.

Como, então, Jesus recebeu o relatório de seus discípulos? Estaria Ele satisfeito com essas opiniões favoráveis e, naquelas circunstâncias, realmente gratificantes que corriam entre o povo? Ek não estava. Não esta­va contente por ter sido colocado em um nível igual ao dos maiores profetas. Na verdade, Ele não manifestou qualquer aborrecimento com aqueles que o colocaram nessa graduação. Ele pode até ter se sentido satisfeito ao ouvir que a opinião pública havia avançado tanto no cami­nho da verdadeira fé. No entanto, recusava-se a aceitar a posição que lhe estavam atribuindo. O humilde e modesto Filho do Homem era mais do que um grande profeta. Portanto, virou-se para os seus seletos discípu­los, como homens de quem esperava uma declaração mais satisfatória sobre a verdade, e propositalmente perguntou o que pensavam a seu respeito: “Mas vós quem dizeis que eu sou?”

Nesse caso, como em muitos outros, Simão, filho de Jonas, respon­deu pelo grupo. Sua pronta, definida e memorável resposta ao Mestre foi: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”2.

Jesus se sentiu satisfeito com essa opinião sobre a sua pessoa e não acusou Pedro de ter exagerado por ter ido além da opinião da multidão. Pelo contrário, Ele aprovou inteiramente o que o fervoroso discípulo havia dito e expressou sua satisfação sem conter seu apreço. Talvez o Senhor nunca tivesse falado em uma linguagem tão entusiasmada ou com tão grande demonstração de profunda emoção. Ele declarou sole­nemente que Pedro era “bem-aventurado” por causa de sua fé. Falou pela primeira vez sobre uma igreja que deveria ser fundada, professou a fé de Pedro como seu credo, prometeu dar àquele discípulo grande po­der nessa igreja, como se estivesse grato por Pedro ter sido o primeiro a traduzir em palavras essa importante verdade, e por expressá-la tão cora­josamente em meio a uma prevalecente descrença e a uma crença defeitu­osa e incipiente. E Jesus declarou, com os termos mais fortes possíveis,

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que a igreja ainda a ser fundada perduraria por todos os séculos contra todos os ataques dos poderes das trevas.

A confissão de Pedro, honestamente interpretada, parece conter es­sas duas proposições — de que Jesus era o Messias e que Ele era divino. “Tu és o Cristo”, ele disse em primeiro lugar, fazendo uma referência consciente às opiniões relatadas pelas pessoas — “Tu és o Cristo” e não simplesmente um profeta que veio para preparar o caminho para o Cris­to. Em seguida, ele acrescentou: “o Filho do Deus vivo”, para explicar o que entendia pelo termo “Cristo”. O Messias esperado pelos judeus em geral era simplesmente um homem, embora um homem muito superior, um homem ideal, dotado dos mais extraordinários dons. O Cristo do credo de Pedro era mais que um homem — era um super-homem, um ser divino. Essa é a verdade que ele procurou expressar na segunda parte de sua confissão. Ele chamou Jesus de Filho de Deus, fazendo uma óbvia referência ao nome que seu Mestre dera a si próprio, isto é, Filho do Homem. “Tu”, ele queria dizer, “és não só o que acabaste de chamar a ti mesmo e o que, apesar da modéstia de espírito, tens o hábito de te cha­mar — Filho do Homem3; tu és também o Filho de Deus, que participa da natureza divina, não menos que da natureza humana”. Finalmente, ele antecipou o epíteto “vivo” ao nome divino para expressar sua ciência de que estava fazendo uma declaração de suma importância e para dar a essa declaração um caráter deliberadamente solene. E como se tivesse dito: “Eu sei que é um assunto muito sério chamar alguém, mesmo a ti, de Filho de Deus, do Jeová que vive eternamente. Mas não recuo dessa afirmação, por mais corajosa, assustadora e até blasfema que ela possa parecer. Não posso, com qualquer outra expressão, fazer justiça a tudo que sei e sinto em relação a ti, ou transmitir a impressão deixada em minha mente pelo que testemunhei durante o tempo em que tenho te seguido como discípulo”. Foi dessa maneira que o discípulo foi forte­mente encorajado a prosseguir — apesar de seu monoteísmo judaico — com o reconhecimento da divindade de seu Senhor4.

Que a famosa confissão, proferida nas vizinhanças de Cesaréia de Filipe realmente contém “a semente”5 da doutrina da divindade de Cristo pode ser deduzido do simples fato de que Jesus ficou satisfeito com ela, pois Ele certamente afirmava ser o Filho de Deus no sentido de que isso

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não era predicado de um simples homem, mesmo de acordo com o rela­to sinóptico de seus ensinos6. Mas quando consideramos os termos pe­culiares com os quais Ele expressou a si próprio, com respeito à fé de Pedro, nos sentimos ainda mais seguros dessa conclusão. Ele disse ao discípulo: “Não foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai, que está nos céus”. Evidentemente, essas palavras implicam que a pessoa a quem Ele se dirigira tmha ouvido algo muito extraordinário, algo que não podia ter aprendido a partir da estabelecida crença tradicional de sua geração a respeito do Messias, algo novo até para o próprio Pedro e seus companheiros discípulos, se não em palavras, pelo menos em signi­ficado7, e à qual não poderia ter chegado através dos esforços desampa­rados de sua própria mente. Essa confissão é potencialmente representa­da como uma inspiração, uma revelação, um facho de luz do céu — a declaração, não de um rude pescador, mas do Espírito divino falando através de sua boca, uma verdade até então escondida e ainda vagamente compreendida por Pedro, a quem ela havia sido revelada. Tudo isso com­bina bem com a suposição de que a confissão contém não apenas um reconhecimento do messianismo de Jesus, em um sentido comum, mas uma proclamação da verdadeira doutrina relativa à pessoa do Messias — isto é, de que Ele era um ser divino manifestado em carne.

O restante da mensagem de nosso Senhor a Simão mostra que Ele atribuía à doutrina confessada por aquele discípulo um lugar de funda­mental importância na fé cristã. O objetivo dessas memoráveis declara­ções8 não é asseverar a supremacia de Pedro, como defendem os romanistas, mas declarar a suprema importância da natureza da verdade que ele confessou. Apesar de todas as dificuldades de interpretação, isso permanece bastante certo e claro para nós. Acreditamos existir uma dú­vida sobre quem ou o que era a “pedra”; alguns pensam que ela pode ter sido Pedro, enquanto outros pensam que pode ter sido a sua confissão. Este é um ponto sobre o qual estudiosos igualmente idôneos na fé e desprovidos de qualquer simpatia por dogmas papais encontram-se com opiniões divididas, e sobre o qual seria impróprio de nossa parte tentar impor qualquer preceito. Somente de uma coisa podemos estar certos: de que não é a pessoa de Pedro, mas a fé de Pedro que representa o tema fundamental na mente de Cristo. Quando Ele diz a esse discípulo: “Tu

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és Pedro”, Ele está querendo dizer: “Tu és um ‘homem-pedra’, digno do nome que te dei por antecipação na primeira vez que te encontrei, por­que, finalmente, tens os pés plantados sobre a rocha da verdade eterna”. Pela primeira vez Ele fala da igreja do porvir em conexão com a confis­são de Pedro, porque essa igreja deverá ser formada por homens que adotarão essa confissão como se fosse sua própria confissão e o reconhe­cerão como sendo o Cristo, o Filho de Deus9. Nessa mesma linha de pensamento Ele faz uma alusão às chaves do Reino dos céus porque ninguém, a não ser aqueles que homologarem a doutrina primeiramente enunciada de forma tão solene por Simão, serão admitidos dentro de seus portões. O Senhor promete a Pedro o poder das chaves, não para que pertençam somente a ele, ou a ele mais do que aos outros, mas sob a forma de uma nobre menção em recompensa pela alegria que tinha dado ao seu Senhor através da suprema energia e decisão de sua fé. Ele é grato a Pedro por acreditar, muito enfaticamente, que Ele vinha de Deus10; e mostrou sua gratidão prometendo um poder primeiro somente a ele e mais tarde a todos os seus seletos discípulos11. Finalmente, se é verdade que aqui Pedro é chamado de pedra sobre a qual a igreja seria edificada, isso deve ser da mesma forma entendido como a promessa das chaves. Pedro é chamado de alicerce da igreja somente no mesmo sentido em que todos os apóstolos também são chamados de alicerces pelo apóstolo Paulo12, isto é, como os primeiros pregadores da verdadeira fé em rela­ção a Jesus, como o Cristo, o Filho de Deus. E, se o homem que primeiro professou essa fé recebeu a honra de ter sido chamado, individualmente, de pedra, isso mostra apenas que a f é , e não o homem, representa acima de tudo o seu verdadeiro alicerce. O que faz de Simão um Petros; ou um homem como pedra, capaz de receber um alicerce sobre si, que é a verda­deira Petra (Jesus), sobre a qual a Ecclesia (igreja) deverá ser edificada.

Depois dessas observações acreditamos que seria supérfluo exami­nar detalhadamente a questão sobre a que o termo “pedra” se refere na sentença: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Ao mesmo tempo, devemos dizer que de maneira nenhuma está claro para nós que a pedra deve ser Pedro e ninguém mais, como é moda ser asseve­rado por alguns comentadores. Sobre a versão: “Tu és Pedro, um ho­mem-pedra, e sobre ti, assim como uma pedra, edificarei a minha igreja”

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é possível, e já foi admitido, atribuir um inteligível significado escriturai. Mas confessamos nossa preferência pela antiga interpretação protestan­te segundo a qual as palavras de nosso Senhor aos seus discípulos devem ser assim parafraseadas: “Tu, Simão Barjonas, é Petros, um homem de pedra, digno do nome Pedro, porque fizeste essa corajosa e boa confis­são, e sobre a verdade que agora confessaste, como uma pedra, edificarei a minha igreja e, enquanto estiver sobre esse alicerce ela permanecerá firme e jamais poderá ser vencida pelos poderes do inferno”. Nessa ver­são podemos ouvir Jesus dizer não apenas o que realmente pensava, mas o que era mais valioso para ser dito. Pois a divina verdade representa o alicerce firme e estável. Os crentes, até mesmo Pedro, podem errar e provar ser tudo, menos estáveis. Mas a verdade é eterna e nunca erra. Podemos dizer, sem considerar a sua contrapartida, que a “verdade” que não for confessada pelas pessoas enquanto vivas está morta e não repre­senta nenhuma fonte de estabilidade. Será necessária uma sincera con­vicção pessoal, ao lado de uma vida correspondente, para fazer da fé o real sentido de qualquer virtude.

Não podemos passar sobre essas memoráveis palavras de Cristo sem chamar a atenção, com uma certa admiração solene, para o estranho destino que lhes coube na história da igreja. Esse texto, no qual o Senhor da igreja declara que os poderes das trevas não prevalecerão contra ela, tem sido usado por esses mesmos poderes como instrumento de agres­são e com bastante sucesso. Que gigantesco sistema de despotismo espi­ritual e de blasfema pretensão tem sido construído sobre essas duas sen­tenças que falam da pedra e das chaves! Com a ajuda desses poderes, existe a tentativa de deturpar o Reino de Deus! Ficamos tentados a dese­jar que Jesus, sabendo de antemão o que iria acontecer, tivesse harmoni­zado de tal forma suas palavras a fim de remover essa turbulência. Mas os nossos desejos são vãos. Portanto, nenhuma forma de expressão, por mais cuidadosamente selecionada que seja, poderia evitar que a ignorân­cia humana caísse em uma concepção errônea, ou impedir homens que tenham maus objetivos de encontrar nas Escrituras aquilo que iria servir a esse propósito. Nenhum cristão pode, com ponderação, pensar que seria desejável que o autor de nossa fé adotasse um estudado e prudente estilo de discurso, intencionado não tanto a dar fiel expressão aos seus

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verdadeiros pensamentos e aos sentimentos de seu coração, mas a evitar que outros tropecem em uma sincera tolice ou em uma desculpa para a perversão da verdade. Nesse caso, a palavra falada não teria sido mais um verdadeiro reflexo da Palavra encarnada. Toda poesia, paixão e genuíno sentimento humano, que formam o caráter das palavras de Cristo, teri­am sido perdidos e nada teria permanecido a não ser prosaicos lugares comuns, como aqueles dos escribas e dos teólogos cheios de pedantis­mo. Não nos enganemos. Guardemos as preciosas palavras de nosso Mestre com toda a sua característica intensidade e a veemência de suas irrestritas assertivas; e, se homens prosaicos e insinceros fabricarem a partir delas dogmas incríveis, deixemos que respondam por si mesmos. Por que as crianças ficariam privadas de seu pão e somente os cães rece­beriam todos os cuidados?

Apenas mais uma observação antes de concluir o assunto desse ca­pítulo. O papel que encontramos Pedro desempenhando nesse incidente em Cesaréia de Filipe nos prepara para considerar o papel designado a ele em cenas importantes em Atos dos Apóstolos como historicamente digno de crédito. Por exemplo, aquele que se apresenta perante nós no capítulo 10. A escola de críticos deTübingen dizia que o livro de Atos é uma composição cheia de situações inventadas e adaptadas visando atender uma finalidade apologética; e que o plano de onde se origina esse livro tenta fazer com que Pedro aja, em sua primeira parte, o máximo possível como Paulo e, por outro lado, tenta fazer com que Paulo aja, o máximo possível, como Pedro, na segunda parte. Eles consideram a conversão do centurião romano, pela ação de Pedro, como um grande exemplo de Pedro “posando” como Paulo, isto é, como um universalista em suas opiniões sobre o cristianismo.

Então, tudo o que temos a dizer sobre o assunto é o seguinte:Todos os episódios em Atos dos Apóstolos, bem como em todos os livros da Bíblia Sagrada, são verídicos e jamais deixarão de ser a Palavra de Deus. No capítulo 10 do livro de Atos, a conduta que foi atribuída ao apósto­lo Pedro pode ser digna de crédito à luz da narrativa que estamos estu­dando. Encontramos, em ambas, o mesmo homem como destinatário de uma revelação; e, em ambas, vamos encontrá-lo como o primeiro a rece­ber, proclamar e agir de uma forma digna daquilo que ela de fato é: uma

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grande verdade cristã. Não é crível que um homem que tivesse recebido uma revelação como discípulo devesse receber outra como apóstolo1? Não seria psicologicamente provável que o homem que agora parece tão ori­ginal e audacioso, em conexão com uma grande verdade> mostrasse no­vamente os mesmos atributos de originalidade e audácia em conexão com alguma outra verdade? De nossa parte, longe de nos mostrarmos céticos em relação à histórica narrativa do livro de Atos, ficaríamos mui­to surpresos se, na história do nascimento da igreja, Pedro tivesse sido considerado como executor de um papel isento de originalidades e au- dácias. Nesse caso, ele teria se mostrado muito diferente de sua antiga personalidade.

1 Lucas 9.18, boi ochloi2 Assim está em Mateus; nos outros Evangelhos a resposta está abreviada e somente a confissão do messianismo

é mencionada. O relato de Mateus sobre esse memorável incidente é, do começo ao fim, o mais completo, um fato importante quando se considera que, de acordo com o Dr. Baur, ele é o mais antigo e mais histórico dos evangelhos.

3 Para uma exposição mais completa da opinião que temos sobre esse título, que deu origem a tantas discussões, podemos remeter os nossos leitores à obra “The Humiliation o f Christ, nota, p. 225" (Cunningham Lectures, sexta série. 2a ed.).

4 Sobre esse tópico consulte Wace, Christianity and Morality, The Boyle LecturesJo r 1874-1875, AulaV, segundo curso.5 Naturalmente, tudo o que foi deduzido ainda não estava presente na mente de Pedro.6 Por exemplo, em Mateus 11.27, embora não possamos nos alongar nesta discussão aqui.7 Com exceção do epíteto “vivo”, as palavras são encontradas em João 1.49.8 Mateus 16.18,199 Essa era a fórmula usual em que os convertidos confessavam a sua fé na era apostólica.10 João 16.2711 Mateus 18.18; João 20.2312 Efésios 2.20

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12A Primeira Lição sobre a Cruz

Seção I - O Primeiro Anúncio da Morte de Cristo Mateus 16 .21-28 ; Marcos 8 .31-38 ; Lucas 9.22-27

çW_/omente depois de um avançado período em seu ministério público— na verdade, já bem próximo do seu final — Jesus falou sobre a sua morte de uma maneira clara e inequívoca. Ele já sabia desse evento solene desde o início; e expressou aquilo que o aguardava em algumas alusões ocasionais. Essas declarações anteriores, no entanto, se escondiam por detrás de uma linguagem espiritual. Elas tinham a natureza dos enigmas, cujo significado torna-se claro após a realização do evento, mas antes é incompreensível para todos. Jesus falou de um templo que, se destruído, Ele reconstruiria novamente em três dias1; em outra ocasião, falou de uma subida do Filho do Homem, como quando a serpente de bronze foi levantada no deserto2. E em outras ocasiões, falou de uma triste sepa­ração entre o esposo e os filhos do casamento3, de dar a sua carne pela vida do mundo4, e de um sinal como aquele do profeta Jonas, que seria dado pessoalmente por Ele para uma geração má e adúltera5.

Com o tempo, depois de sua pregação em Cesaréia de Filipe, Jesus mudou a sua maneira de falar do tema de seus sofrimentos, substituindo as insinuações ocultas por afirmações simples, diretas, literais e práti­cas6. Essa mudança adaptou-se naturalmente às alteradas circunstâncias em que Ele se colocou. Os sinais dos tempos tornavam-se sombrios; nuvens de chuva se reuniam no céu; todas as coisas estavam começando a apontar em direção ao Calvário. A sua obra na Galiléia e nas províncias estava quase terminada; só lhe faltava dar testemunho da verdade na cidade santa e seus arredores; e com base no atual humor das autorida­des eclesiásticas e dos líderes da sociedade religiosa, manifestado em

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perguntas ardilosas e investigações irracionais7, e uma vigilância cons­tante dos seus movimentos, não era difícil prever que não seriam neces­sárias muitas ofensas mais, ou muito mais tempo, para transformar a antipatia e o ciúme em ódio assassino. Portanto, essa maneira simples e direta de falar sobre o que iria acontecer em breve, era natural e oportu­na. Jesus estava agora entrando no vale da sombra da morte, e falando assim Ele só estava adaptando a sua mensagem à situação.

Falar diretamente sobre a sua morte agora era não apenas natural por parte de Cristo, mas também necessário e seguro para os seus discí­pulos. Era necessário, para que eles pudessem estar preparados para o evento que estava prestes a acontecer, tanto quanto era possível, no caso de homens que, até o fim, persistiram na esperança de que o resultado pudesse ser diferente daquele que o seu Mestre adiantara. Era seguro, porque agora eles podiam falar do assunto abertamente sem sérios riscos para a sua fé. Antes que os discípulos estivessem firmados na doutrina da pessoa de Cristo, a doutrina da cruz poderia ter feito com que deban­dassem. Falar prematuramente de um Cristo a ser crucificado poderia tê-los tornado descrentes em relação à verdadt fundamental de que Jesus de Nazaré era o Cristo. Portanto, em consideração à fraqueza deles, Jesus manteve uma certa reserva com respeito aos seus sofrimentos, até que a fé dos discípulos nele como o Cristo pudesse estar suficientemen­te enraizada para suportar a pressão da tempestade que em breve apare­ceria, devido a um acontecimento totalmente inesperado, indesejado e incompreensível. Somente depois de ouvir a confissão de Pedro foi que sentiu-se satisfeito ao ver que tinha sido atingida a resistência necessária para suportar a provação.

Assim, “desde então, começou Jesus a mostrar aos seus discípulos que convinha ir a Jerusalém, e padecer muito dos anciãos, e dos principais dos sacerdotes, e dos escribas, e ser morto, e ressuscitar ao terceiro dia”.

Cada frase nesse anúncio solene requer o nosso exame minucioso.Jesus mostrou aos seus discípulos:I ) “Que convinha ir a Jerusalém”. Sim! Lá a tragédia precisava ser

encenada: era o cenário ideal para os assombrosos acontecimentos que iriam ocorrer. Era dramaticamente adequado que o Filho do Homem morresse naquela cidade considerada “santa”, mas que de fato era peca­

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minosa, que tinha obtido uma notoriedade nada invejável como assassi­na dos profetas, como a que apedrejava aqueles que Deus enviava. “Não suceda” — seria incoerente — “que morra um profeta fora de Jerusa­lém”8. Também devido à dignidade de Jesus, e ao propósito de sua mor­te, Ele deveria sofrer ali. Ele não poderia morrer em um canto obscuro ou de uma maneira obscura, mas no lugar mais público e da maneira mais formal e judicial. Ele precisava ser erguido à vista de toda a nação judaica, para que todos pudessem ver aquele que haviam traspassado, e por cujos ferimentos eles ainda poderiam ser curados. O "Cordeiro de Deus” precisava ser morto no lugar onde todos os sacrifícios legais eram oferecidos.

2 ) “E padecer muito”, ou padecer muitas coisas. Coisas demais para enumerar, dolorosas demais para descrever em detalhes; seria me­lhor omiti-las. O simples fato de que o seu adorado Mestre seria levado à morte, sem quaisquer indignidades, já seria suficientemente terrível para os discípulos; e Jesus de maneira misericordiosa lançou um véu sobre muito do que estava presente em seus próprios pensamentos. Em uma conversa posterior sobre o mesmo tema triste, quando a sua morte já estava próxima, Ele afastou um pouco o véu e mostrou-lhes algumas das “muitas coisas”. Mas mesmo nessa ocasião Ele foi muito sucinto em suas insinuações, indicando apenas por uma palavra que seria escarneci­do, injuriado e cuspido9. O Senhor não sentia prazer em falar sobre tais cenas angustiantes. Queria suportar essas indignidades, mas não queria falar sobre elas mais do que fosse absolutamente necessário.

3) “Dos anciãos, e dos principais dos sacerdotes, e dos escribas”. Não somente eles, porque os governantes gentios e o povo de Israel também ajudariam a maltratar o Filho do Homem, assim como os ecle­siásticos judeus. Mas as pessoas nomeadas aqui seriam os principais agi­tadores e os mais culpados agentes da abominável transação. Os homens que deveriam ter ensinado as pessoas a reconhecer em Jesus o ungido do Senhor, iriam incitá-los para que gritassem “Crucifiquem-no, crucifi- quern-no”, e iriam ameaçar e importunar as autoridades pagãs para per­petrar um crime para o qual eles não tinham coragem. Os anciãos reuni­dos em conselho decidiriam solenemente que Ele era merecedor da mor­te; o sumo sacerdote diria que um homem deveria morrer pelo povo,

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para que toda a nação não perecesse; os escribas instruídos na lei usari­am o seu conhecimento legal para inventar bases plausíveis para uma acusação de crime digno da pena de morte. Jesus já tinha sofrido muitos aborrecimentos menores por parte dessas pessoas; mas se aproximava a ocasião quando nada iria satisfazê-los exceto expulsar do mundo o obje­to de sua antipatia. Que tristeza para Israel os seus homens sábios, san­tos, e instruídos, não conhecerem nenhum uso para a pedra escolhida e preciosa de Deus, a não ser colocá-la de lado, cruel e desdenhosamente.

4 ) “E ser morto”. Sim, e para os seus abençoados propósitos pre­determinados por Deus. Mas Jesus não fala disso agora. Ele simples­mente afirma o fato em termos gerais na sua primeira lição sobre a dou­trina da cruz10. Nesse estágio, qualquer coisa além disso teria sido des­perdício de palavras. Qual o propósito de falar sobre a teologia da cruz, sobre o grande plano de Deus na morte que deveria acontecer por meio da culpa do homem, aos discípulos que não estavam preparados nem dispostos para sequer ouvir o trivial? E necessário esperar que se abrande o rude choque de um anúncio indesejado, antes de dizer qualquer coisa útil sobre esses temas importantes. Por isso não há aqui nenhuma pala­vra sobre a salvação por meio da morte do Filho do Homem; do Cristo crucificado pela culpa do homem assim como para tirar a culpa do ho­mem. O fato será explicado, reservando a teologia para outra ocasião, quando os ouvintes estiverem em um estado de espírito adequado para receber a instrução.

5) Finalmente, Jesus disse aos seus discípulos que Ele iria “ressusci­tar ao terceiro dia”. Para alguns, explicitar uma referência à ressurreição a esta altura parece improvável11. Para nós, ao contrário, parece eminen­temente adequado. Quando seria mais provável que Jesus dissesse aos seus discípulos que ressuscitaria logo depois de sua mòrte, a não ser na mesma ocasião em que lhes dissesse diretamente pela primeira vez que Ele iria morrer? Ele sabia como o primeiro anúncio seria desagradável para os sentimentos dos seus fiéis, e era natural que quisesse acrescentar o outro, na esperança de que quando eles compreendessem que a sua morte seria seguida, depois de um breve intervalo de três dias, pela res­surreição, as notícias seriam muito menos difíceis de suportar. Assim, depois de proferir as palavras funestas “ser morto”, Ele, com ternura

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característica, apressou-se a dizer, “e ressuscitar ao terceiro dia”. Ele poderia curar os discípulos que foram feridos por essa notícia, e aliviar a dor daqueles que receberam esse golpe12.

Os sérios comunicados feitos por Jesus estavam longe de ser bem- vindos pelos seus discípulos. Nem agora nem em qualquer ocasião pos­terior eles ouviram os prognósticos do seu Senhor ao menos com resig­nação, para não falar de aquiescência disposta ou de alegria espiritual. Eles nunca ouviram Jesus falar de sua morte sem dor; e o seu único consolo, em relação a notícias como essa, parece ter sido a esperança de que Ele tivesse uma visão excessivamente sombria da situação, e de que as suas apreensões se mostrassem infundadas. Da parte deles, não conse­guiam ver fundamentos para tão tenebrosas predições, e as suas idéias messiânicas não permitiam que tivessem a perspectiva adequada. Eles não tinham a menor idéia de que o Cristo deveria sofrer. Ao contrário, um Cristo crucificado era um escândalo e uma contradição para eles, quase tanto quanto continuou a ser para a maioria do povo judeu depois que o Senhor ascendeu à glória. Por essa razão, quanto mais firmemente criam que Jesus era o Cristo, mais desconcertante era ouvir que Ele seria levado à morte. “Como isso pode ser verdade?”, eles se perguntavam. “Como pode o Filho de Deus estar sujeito a tais indignidades? Como pode o nosso Mestre ser o Cristo, como firmemente acreditamos, vir para estabelecer o Reino divino, e para ser coroado o seu Rei com glória e honra, e ao mesmo tempo ser condenado a passar pelo destino infame de uma execução criminal?” Os doze não conseguiram responder a essas perguntas nem nessa ocasião, nem depois da ressurreição; e não devemos nos maravilhar disso, porque se a carne e o sangue não podiam revelar a doutrina da pessoa de Cristo, menos ainda podiam revelar a doutrina da sua cruz. Seria necessário um esclarecimento muito especial do céu para que eles pudessem entender os elementos mais simples da doutrina e ver, por exemplo, que nada era mais digno para o Filho de Deus do que humilhar-se e sujeitar-se à morte, até mesmo a morte de cruz; que a glória de Deus consiste não apenas em ser o maior, mas, em sendo grande, inclinar-se com amor despretensioso para suportar o fardo de suas pró­prias criaturas pecadoras; que nada poderia conduzir mais direta e segu­ramente ao Reino divino do que a graciosa auto-humilhação do Rei; que

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somente subindo à cruz o Messias poderia subir ao trono de sua glória mediadora; que só assim Ele poderia conquistar os corações humanos e tornar-se o Senhor dos sentimentos dos homens assim como dos seus destinos. Muitos na igreja não compreendem essas verdades abençoadas, mesmo na época atual: porque então deveríamos nos maravilhar de que elas estivessem ocultas dos olhos dos discípulos por algum tempo? Não vamos censurá-los por terem o véu em seus olhos; ao invés disso, vamos certificar-nos de que este véu não esteja em nossos próprios olhos.

Nessa ocasião, em Cesaréia de Filipe, os doze encontraram, em Si- mão Pedro, o mais eloqüente e enérgico intérprete de seus sentimentos. Os atos e palavras deste discípulo nessa ocasião eram extremamente ca­racterísticos. Ele tomou Jesus à parte, sabemos (e supomos que tocou-o na mão ou no manto), e começou a repreendê-lo, dizendo: “Senhor, tem compaixão de ti”, ou, mais literalmente: “Senhor, tem compaixão de ti; de modo nenhum te acontecerá isso”. Que estranha combinação do bem e do mal nesse homem! Sua linguagem é dominada pela afeição mais intensa: ele não pode suportar o pensamento de que qualquer mal sobre­venha ao seu Senhor; e como é irreverente e desrespeitoso para com aquele que acabara de reconhecer como sendo o Cristo, o Filho do Deus vivo! Como ele tenta dominar, contradizer, controlar e convencer o seu Mestre a afastar de seus pensamentos aqueles presságios sombrios do mal prestes a se manifestar! Em verdade ele precisa de punição para apren­der onde é o seu lugar, e para eliminar de sua personalidade as más características da petulância, da familiaridade indevida e da vontade pró­pria presunçosa.

Felizmente para Pedro, ele tinha um Mestre que, em seu amor fiel, não poupava o castigo quando era necessário. Jesus considerou necessá­rio corrigir Pedro e lhe fez uma repreensão não menos notável, pela severidade, do que o elogio em Cesaréia de Filipe, pela aprovação aco­lhedora e curiosamente contrastante nos termos em que foi expressa. Ele se voltou para o seu discípulo e disse severamente: "Para trás de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que são dos homens”. O mesmo discípulo que em ocasiões anteriores tinha falado por inspiração dos céus aqui fala por inspiração da pura carne e do puro sangue — da simples afeição

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natural pelo seu Senhor, e do instinto animal de autopreservação, pen­sando apenas em seus próprios interesses, não no dever. Ele, a quem Cristo havia chamado de um homem de pedra, forte na fé, um homem espiritual, aqui é chamado de ofensor, um obstáculo, uma pedra de tro­peço no caminho do seu Mestre. Pedro, o nobre confessor daquela ver­dade fundamental, por meio de cuja fé a igreja seria capaz de desafiar as potestades do inferno, aparece aqui em aliança com os poderes das tre­vas, uma boca inconsciente para a voz de Satanás, o tentador. “Para trás de mim, Satanás!” Que queda para aquele que no dia anterior mesmo havia recebido a promessa do poder das chaves! Quão rapidamente esse novato dignitário da igreja, provavelmente levado pelo orgulho ou pela vaidade, caiu na condenação do mal!

Essa repreensão memorável parece impiedosamente severa, entre­tanto consideramo-la como absolutamente necessária. A linguagem de Cristo nessa ocasião não precisa de desculpas, e ninguém pode dizer que veio de uma suposta emotividade, ou da consciência de que a inseguran­ça de sua natureza humana estivesse sussurrando a mesma sugestão que veio dos lábios de Pedro. Mesmo a dura palavra, Satanás, que é a ferroada de suas palavras, está no lugar certo. Ela descreve exatamente a qualidade do conselho dado por Simão. Esse conselho quer dizer o seguinte: “Sal­ve-se a qualquer preço; sacrifique o dever aos interesses próprios, a causa de Deus à conveniência pessoal”. Um conselho verdadeiramente satâni­co em seus princípios e em sua tendência! Porque o objetivo principal das obras de Satanás é reconhecer o interesse próprio como o principal objetivo do homem. Suas tentativas têm esta finalidade. Satanás é cha­mado de o príncipe deste mundo, porque são os interesses próprios que dominam o mundo; ele é chamado de acusador dos irmãos, porque não acredita que até mesmo os filhos de Deus tenham um motivo superior. Ele é cético, e o seu ceticismo consiste em uma descrença determinada e jocosa da realidade de qualquer objetivo principal que não seja o da vantagem pessoal. “Será que Jó, ou até mesmo Jesus, servem a Deus por nada? Satanás tenta nos fazer pensar e acreditar do seguinte modo: “Auto- sacrifício, sofrimento em favor da justiça, fidelidade à verdade mesmo que o resultado seja a morte — é tudo romance e sentimentalismo de juventude, ou hipocrisia e conversa vazia. Não existe absolutamente nada

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como a renúncia da vida inferior pela superior; todos os homens são egoístas no coração, e têm o seu preço: alguns podem resistir mais tem­po que outros, mas no final cada homem preferirá as suas próprias coisas às coisas de Deus. Um homem dará tudo o que tiver por sua vida, não se excetuando a sua integridade moral e a sua piedade”.

A sugestão feita por Pedro, como um instrumento inconsciente do espírito do mal é idêntica, em princípio, àquela feita pelo próprio Sata­nás a Jesus durante a tentação no deserto. O tentador disse naquela oca­sião, em outras palavras: “Se tu és o Filho de Deus, usa o teu poder para tua causa própria. Tu estás faminto; se tu és o Filho de Deus, dize a estas pedras que se transformem em pães. Se tu és o Filho de Deus, use as tuas prerrogativas como o favorito dos céus; lança-te desse local elevado, con­tando com a proteção contra a dor e os ferimentos, mesmo onde outros homens teriam que sofrer as conseqüências de sua imprudência. Que melhor uso podes fazer dos teus divinos poderes e privilégios do que promover tua própria vantagem e glória?” O sentimento de Pedro na presente ocasião parece ter sido o mesmo: “Se tu és o Filho de Deus, por que deverias sofrer uma morte violenta e 'infame? Tu tens o poder para salvar-te de tal destino; certamente não hesitarás em usá-lo!” O afeiçoado discípulo, na verdade, naquele momento foi um instrumento inconsci­ente empregado por Satanás para submeter Jesus a uma segunda tenta­ção, análoga à anterior no deserto da Judéia. Era o deus deste mundo que estava trabalhando em ambos os casos; aquele que, acostumado a encontrar homens muito dispostos a preferir a segurança à justiça, não podia acreditar que não iria encontrar nada assim no espírito do Filho de Deus, e por isso tentava uma vez mais encontrar uma fenda em sua armadura através da qual poderia lançar seus dardos inflamados; não renunciando à esperança até que a sua pretensa vítima estivesse na cruz, aparentemente vencida pelo mundo; mas, na realidade, o Senhor Jesus dominou tanto o mundo quanto o ímpio senhor deste mundo de trevas.

A severa linguagem que Jesus usou nessa ocasião, quando considera­mos que se dirigia a um discípulo muito amado, mostra de maneira impressionante a sua repugnância a toda forma de egoísmo. “Salva-te”, aconselha Simão. “Para trás de mim, Satanás”, responde o Senhor de Simão. Realmente Cristo não procurava agradar a si mesmo. Embora

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Ele fosse o Filho, ainda assim aprenderia obediência pelas coisas que precisava sofrer. E com esse pensamento Ele provou ser o Filho, e recebeu de seu Pai as palavras de aprovação: “Tu és o meu Filho ama­do, em quem me comprazo” — a resposta dos céus para a voz do inferno que o aconselhava a seguir um caminho de auto-satisfação. Com a mente perseverante, Jesus foi levado à cruz no final, e assim tornou-se o Autor da salvação eterna para todos aqueles que o obede­cem. Bendito seja hoje e para sempre o seu nome, que tanto se humi­lhou e foi obediente até à morte!

Seção II - TOMAR A SUA CRUZ, A LEI DO DISCIPULADOM ateus 16 .24 -28 ; M arcos 8 .34 -38 ; Lucas 9 .23 -27

Depois de um anúncio difícil, vem outro não menos difícil. O Se­nhor Jesus tinha dito aos seus discípulos que um dia deveria ser levado à morte; agora lhes revela que não só Ele pagaria um preço, mas eles tam­bém. O segundo anúncio foi naturalmente ocasionado pela maneira como o primeiro foi recebido. Pedro tinha dito, e todos tinham sentido a mes­ma coisa, “de modo nenhum te acontecerá isso”. Em outras palavras, Jesus respondeu: “Você acha? Eu digo que não apenas eu, seu Mestre, serei crucificado — pois é assim que vou morrer13 — mas vocês tam­bém, seguindo-me fielmente, certamente também terão que tomar as suas cruzes. ‘Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me”’.

O segundo anúncio não foi, como o primeiro, feito apenas para os doze. Podemos deduzir isso pelos termos do anúncio, que são ge­rais, mesmo sem sermos informados, como somos por Marcos e Lucas, que antes de fazer o anúncio Jesus chamou o povo a si, com os seus discípulos, e falou a todos14. A doutrina aqui ensinada é, portanto, para todos os cristãos, de todas as épocas: não apenas para os apósto­los, mas para os discípulos humildes; não para os sacerdotes ou prega­dores, mas também para os leigos; não para os monges que vivem nos claustros, mas para os homens que vivem e trabalham no mundo exte­rior. O Rei e cabeça da Igreja proclama aqui uma lei universal unindo todos os seus pontos, exigindo que todos carreguem uma cruz em comunhão consigo.

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Não sabemos como o segundo anúncio foi recebido por aqueles que o ouviram, e particularmente pelos doze. No entanto, podemos acreditar que para Pedro e seus irmãos esse anúncio soou como menos severo que o primeiro, e pareceu, pelo menos teoricamente, mais aceitá­vel. A experiência poderia ensiná-los que cruzes, embora desagradáveis para a carne e o sangue, eram coisas que poderiam ser encontradas na sorte de homens comuns. Mas o que tinha a ver Cristo, o Filho de Deus, com cruzes? Ele não deveria estar isento dos sofrimentos e indignidades dos mortais comuns? Se não, que utilidade tinha a sua filiação divina? Resumindo, a dificuldade para os doze provavelmente não era que o servo não devesse ser melhor do que o Mestre, mas sim que o Mestre não devesse enfrentar situações mais difíceis do que o servo.

Por outro lado, a nossa perplexidade se inclina exatamente para o lado oposto. Familiarizados com a doutrina de que Jesus morreu na cruz em nosso lugar, somos capazes de imaginar qual seria uma ocasião para que carregássemos uma cruz. Se Ele sofreu em nosso lugar — estamos prontos para perguntar — por que temos de sofrer? Precisamos ser lem­brados que os sofrimentos de Cristo, peculiares em alguns aspectos, são também comuns a todos aqueles que têm o seu Espírito; que, enquanto redentora, sua morte permanece única, como um sofrimento pela justi­ça, e é a mais alta instância de uma lei universal, segundo a qual todos os que vivem uma vida verdadeiramente devota devem passar por sofrimen­tos em um mundo falso e mau15. E pode ser observado que Jesus adotou um método muito eficaz de manter essa verdade proeminente perante as mentes de seus seguidores de todos os tempos, proclamando-a com grande ênfase na primeira ocasião em que anunciou diretamente que iria mor­rer, dando~a} na verdade; como a primeira lição sobre a doutrina da sua morte: a primeira das quatro que se encontram nos Evangelhos16. Dessa maneira, na verdade Ele declarou que somente aqueles dispostos a serem crucificados com Ele teriam a salvação através da sua morte; mais ainda, estar disposto a carregar uma cruz era indispensável para compreender corretamente a doutrina da salvação por seu intermédio. E como se, acima da porta da escola em que se ensina o mistério da redenção, Ele tivesse escrito: Não permitam que nenhum homem que não esteja disposto a negar-se a si mesmo, e tomar a sua cruz, entre aqui.

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Nessa grande lei do discipulado a cruz não significa meramente a pena externa da morte, mas todos os problemas que ocorrem àqueles que se empenham sinceramente para viver como Jesus viveu nesse mun­do, e como conseqüência desse empenho. Muitas e diversas são as aflições dos justos, variando em tipo e intensidade, de acordo com a época e as circunstâncias, e os chamados e a posição social dos indivíduos. Para o justo, que morreu não apenas pelos injustos, mas para eles, o cálice foi cheio com todos os ingredientes possíveis de vergonha e dor, misturados com o mais alto grau de amargura. Muitos dos seus mais honrados ser­vos se aproximaram de seu Mestre na maneira e medida de suas aflições por amor a Ele, e verdadeiramente beberam do seu cálice e foram batizados com o seu batismo de sangue. Mas para os cristãos, de um modo geral, as dificuldades a suportar são menos severas, as cruzes a carregar menos pesadas. Para uma pessoa, a cruz pode ser a calúnia originada de lábios mentirosos, “que dizem coisas más com arrogância e desprezo contra o justo”; para outra, a cruz pode ser o fracasso em atingir o tão almejado sucesso na vida, freqüentemente alcançado por meios pecaminosos, in­disponíveis para os homens de consciência justa; para uma terceira pes­soa, pode ser o simples isolamento e a solidão de espírito em meio a vizinhos incompatíveis e antipáticos, indispostos a viver sobriamente, corretamente e com devoção, e que não se importam com quem o faz.

A cruz, portanto, não é a mesma para todos. Mas que realmente existe uma cruz de alguma forma para todos os discípulos verdadeiros, está claramente implicado nas palavras: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me”. O significa­do claro dessas palavras é que não há como seguir a Jesus em quaisquer outros termos — uma doutrina que é claramente ensinada no Evange­lho — e, apesar disso, os cristãos espúrios não querem nela crer e che­gam a negá-la. Eles suavizam a afirmação do Senhor explicando que ela se aplica somente a algumas épocas críticas, felizmente muito diferentes da sua época; ou dizem que, se ela se referisse a todos os tempos, somen­te seria aplicável para aqueles chamados a um papel proeminente nos assuntos públicos, como formadores de opinião, pioneiros do progres­so, profetas que denunciassem os vícios da época e oráculos indesejados — uma profissão proverbialmente perigosa, como o poeta grego teste-

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munhou ao dizer: “Somente Apoio deveria profetizar, porque ele não teme a ninguém”17. Insistir em que todos aqueles que vivem devotamen­te em Cristo Jesus devem sofrer de alguma maneira é, pensam eles, ter uma visão muito sombria das maldades do mundo, ou muito alta e pre­cisa da vida cristã. A retidão que normalmente envolve uma cruz é, sob o ponto de vista de tais pessoas, tolice e fanatismo. E falar quando se deveria manter silêncio, intrometer-se em assuntos que não nos dizem respeito; em uma palavra, é ser excessivamente justo. Tais pensamentos, expressos ou não, com certeza prevalecem extensivamente na profissão religiosa comum. Os cristãos entendem bem o fato de que a fidelidade envolve uma cruz, assim como o fato de que Cristo foi crucificado so­mente porque era justo, quando sofrem como uma minoria assim como nos tempos antigos. Nos tempos de prosperidade e de paz essas verda­des perdem muito do seu significado. Assim, é possível encontrar mui­tos que acreditam na cruz que Cristo carregou por eles, mas que igno­ram a cruz que eles mesmos precisam carregar em sua comunhão com Cristo. Estão determinados a não saber nada a respeito dessa cruz. Eles não conseguem entender o que ela significa, ou de onde vem; mas se tivessem o verdadeiro espírito de auto-abnegação que Cristo exige de seus discípulos, poderiam encontrar o significado por si mesmos, em sua vida diária, em suas atividades profissionais, em seus lares, isto é, em seu próprio coração, e não teriam necessidade de procurar por este significa­do nos confins da terra, ou de construir cruzes artificiais de austeridade cética.

Jesus anexou três razões à lei da cruz, com a finalidade de tornar mais fácil a obediência, mostrando aos discípulos que, ao obedecerem àquela severa exigência, eles satisfariam seus próprios interesses. Cada razão começa com um “porque”.

A primeira razão é: “Porque qualquer que quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas qualquer que, por amor de mim, perder a sua vida a salvará”. Neste surpreendente paradoxo a palavra “vida” é usada com duplo sentido. Na primeira parte de cada sentença, significa vida natu­ral, com tudo o que a torna agradável e desfrutável; na segunda parte, significa a vida espiritual de uma alma renovada. A afirmação profunda e sugestiva pode ser deste modo expandida e parafraseada: Aquele que se

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preocupar em salvar ou preservar a sua vida natural e o seu bem-estar mundano, perderá a vida superior, a vida verdadeira; e aquele que e s t iv e r disposto a perder a sua vida natural por mim, encontrará a verdadeira vida eterna. De acordo com essa máxima, precisamos perder alguma coisa — não é possível viver sem algum tipo de sacrifício; a única per­gunta é o que deve ser sacrificado — a vida inferior ou a superior, a felicidade animal ou a bem-aventurança espiritual. Se escolhermos ter a superior, devemos estar preparados para negarmos a nós mesmos e to­mar a nossa cruz, embora a quantidade real de perda que tenhamos de suportar possa ser pequena; pois a piedade para tudo é proveitosa, por­que tem a promessa da vida que agora é e da que há de ser18. Por outro lado, se escolhermos a inferior e decidirmos tê-la de qualquer maneira, inevitavelmente perderemos a superior. A vida da alma, e todos os ines­gotáveis e incorruptíveis bens da alma — justiça, piedade, fé, caridade (amor), paciência, mansidão19 — representam o preço que devemos pa­gar pelo prazer mundano.

Esse preço é excessivamente alto: e foi isso que Jesus disse em segui­da aos seus ouvintes, como a segunda persuasão para cada um carregar sua cruz. Ele prosseguiu perguntando: “Pois que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma? Ou que daria o homem pelo resgate da sua alma?” As duas perguntas evidenciam o incomparável va­lor da alma nos dois lados de uma transação comercial. A alma, ou a vida, no verdadeiro sentido da palavra20 representa um preço muito caro a pagar, mesmo pelo mundo inteiro, não apenas por aquela pequena porção que corresponde a cada indivíduo. Aquele que ganhar o mundo a tal preço será um perdedor. Por outro lado, o mundo inteiro é muito pequeno, e representa um preço completamente inadequado e insufici­ente a pagar pelo resgate de uma alma perdida. O que um homem daria em troca por algo inestimável que perdeu tolamente em um negócio? “Com que me apresentarei ao Senhor e me inclinarei ante o Deus excelso? Virei perante ele com holocaustos, com bezerros de um ano? Agradar- se-á o Senhor de milhares de carneiros, de dez mil ribeiros de azeite? Darei o meu primogênito pela minha transgressão, o fruto do meu cor­po, pelo pecado da minha alma?”21. Não! Você não precisa dar nenhuma dessas coisas, nem nenhuma outra; nem o fruto dos seus negócios, nem

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dez milhões de reais. Você não poderia comprar de volta a sua alma, tendo-a perdido em um negócio ao trocá-la por prazeres deste mundo, nem mesmo dando tudo o que você tem neste mundo. A redenção da alma é verdadeiramente preciosa; ela não pode ser libertada da escravi­dão do pecado através de coisas corruptíveis, como a prata e o ouro; tentar obter perdão, paz e vida dessa maneira só pode tornar o seu caso ainda mais sem esperança, e garantir a sua condenação.

O apelo contido nessas solenes perguntas encontra o seu espaço, com irresistível força, naqueles que têm uma mente correta. Esses perce­bem que não existe bem material que possa se comparar ao valor de ter uma “alma. salva”, isto é, ser um cristão perdoado, justificado, e possui­dor de uma mente sã. Nem todos, entretanto, têm isto. Multidões atri­buem à sua alma um valor realmente muito pequeno. Judas vendeu a sua alma por trinta peças de prata; e muitos, que provavelmente se julgam melhores que ele, fariam o mesmo por uma vantagem material irrisória. A grande ambição de milhões é ter felicidade como animais, e não ter a bênção de homens “salvos”, de espírito nobre e santificado. “Quem nos mostrará algum bem?”, é o que eles dizem. “Dê-nos saúde, riqueza, ca­sas, terras, honras, e não nos importaremos com a justiça, seja imputada ou pessoal, nem a paz de consciência, nem a alegria no Espírito Santo. Isso tudo também pode ser bom à sua maneira, e se alguém pudesse ter essas coisas juntamente com as outras, sem problemas ou sacrifícios, talvez tudo estivesse bem; mas não consentiremos, por causa delas, em nos negar qualquer prazer ou em voluntariamente suportar qualquer dificuldade”.

O terceiro argümento a favor de tomar a cruz é extraído do segundo advento. “Porque o Filho do Homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos; e, então, dará a cada um segundo as suas obras”22. Essas palavras sugerem um contraste entre o estado presente e futuro de quem fala, e implicam em uma promessa de um contraste correspondente en­tre o presente e o futuro dos seus fiéis seguidores. Agora Jesus é o Filho do Fíomem, destinado a ser crucificado em Jerusalém dentro de algumas semanas. No final dos tempos Ele aparecerá investido da glória manifes­ta do Messias, acompanhado por um poderoso grupo de espíritos ministradores; a sua recompensa por suportar a cruz, apesar da vergonha.

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Então Ele recompensará cada homem, de acordo com o conteúdo de sua vida atual. Para os que carregam a cruz Ele garante uma coroa de justiça* para os que rejeitam a cruz Ele destinará, como lhes é devido, vergonha e desprezo eterno. Uma doutrina severa, desagradável ao pensamento moderno sob vários aspectos, especialmente nos dois a seguir: porque ela nos apresenta alternativas relacionadas à vida por vir, e porque pro­cura propagar virtudes heróicas pela esperança de recompensas, ao invés de exibir as virtudes como a sua própria recompensa. Com relação ao primeiro, a alternativa à recompensa prometida é certamente um grande mistério e responsabilidade para o espírito; mas deve-se ter a preocupa­ção de que uma alternativa esteja envolvida com qualquer doutrina séria de distinções morais ou de liberdade humana e responsabilidade. Com relação ao segundo, os cristãos não devem ter medo de degenerar na vulgaridade moral se acompanhados de Cristo. Não existe vulgaridade ou imoralidade na virtude que se sustenta pela esperança da vida eterna. Aquela esperança não é egoísta, mas simplesmente coerente. E simples­mente a crença na realidade do reino pelo qual se trabalha e se sofre; envolvendo, naturalmente, a realidade do interesse de cada cristão indi­vidualmente, não excluindo o nosso próprio. E tal fé é necessária para o heroísmo. Pois quem lutaria e sofreria por um sonho? Que patriota ar­riscaria a sua vida pela causa de seu país, se não acreditasse na restaura­ção da sua independência? E quem, a não ser um pedante, diria que a pureza do seu patriotismo estaria maculada, por que a sua esperança por toda a nação não excluía as referências a si mesmo como um cidadão individual? Da mesma maneira, é necessário que um cristão acredite no Reino da glória, e igualmente natural e apropriado é que ele estime a esperança de uma participação pessoal em suas honras e em seus êxitos. Onde não forem encontradas tal esperança e fé, pouco heroísmo cristão o será. Como disse um antigo patriarca da igreja: “Não haverá trabalho certo onde houver uma recompensa incerta”23. Os homens não podem ser heróis na dúvida ou no desespero. Eles não podem lutar pela perfei­ção e por um Reino divino se essas coisas serão algo mais do que imagi­nações devotas ou ideais ir realizáveis. Em um estado de espírito como este, eles se despreocuparão e farão da felicidade secular a sua principal

~ 24preocupaçao .

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212 O Treinamento dos Doze

1 João 2.192 João 3.143 Mateus 9.154 João 63 Mateus 16.46 “E dizia abertamente estas palavras” (parrbêsià), Marcos 8.32.7 Mateus 15, 168 Lucas 13.339 Marcos 10.34; Lucas 18.3210 A cruz nem sequer é citada aqui; mas está nos pensamentos de Cristo, como mostram as suas palavras seguin­

tes aos discípulos. O fato, sem a maneira, da morte era suficiente para a primeira lição.11 Os três evangelistas sinópticos concordam em acrescentar essa referência à ressurreição ao primeiro anúncio da

morte de Cristo. Sua concordância no conteúdo do anúncio como um todo é surpreendente, ainda que esperada, considerando-se o próprio conteúdo.

12 Pfleiderer considera a pré-insinuação por Jesus de uma restituição sobrenatural da sua pessoa como o Messias do Reino de Deus, não menos histórica que quaisquer das palavras atribuídas a Ele nos Evangelhos sinópticos. Ele só acredita que a fixação definitiva do intervalo entre a morte e a ressurreição se deve a redações posteriores — Die Religion, 2.433.

13 A cruz, embora não mencionada, estava evidentemente nos pensamentos de Cristo quando Ele falou de sua morte nesta ocasião. Veja a nota 10 deste capítulo.

14 Marcos 8.34, proskalesamenos ton ochlon; Lucas 9.23, elege de pros pantas.15 Platão teve um vislumbre dessa lei. “Os justos”, escreveu, “serão açoitados, torturados, amarrados, terão seus

olhos arrancados, e depois de muito sofrimento serão crucificados” (anaschindileuthesetai) — De Republica, livro 2.16 Veja os capítulos 17, 18, 22.17 Phoibon anthrõpois monon chren thespiõndein hos dedoiken oudena — EURJP. Phoenissa, 958, 959.18 I Timóteo 4.819 I Timóteo 6.220 A palavra traduzida como “alma’' no versículo 26 é a mesma que é traduzida como “vida” no versículo 25

(psuche). Os dois significados se mesclam aqui.21 Miquéias 6.6,722 Mateus 16.27. O versículo 28 apresenta uma dificuldade da qual não trataremos aqui.23 Nullum opus certum est merceiis incerta. Tertuiliani, De Resurrections Carnis, cap. 21. Veja também Ante-Nicene

Library, de Clark: Tertullian, 2.251.24 Pfleiderer, que é o centro de um teísmo especulativo que não reconhece nenhuma brecha milagrosa na conti­

nuidade do mundo, e que mantém a doutrina da restituição universal, a vitória final e incondicional do bem sobreo mal, em sua obra Die Religion, advoga o expresso acima em referência à qualidade moral da virtude estimulada pela Esperança Eterna. Nisso ele baseia a doutrina da imortalidade, em que a fé na realidade do reino de Deus é uma condição necessária para o heroísmo, e ele resume a esperança individual dos cristãos, como nós aqui fizemos, àquela fé. Com referência ao valor dessa esperança aos heróis da corrida, ele observa: Olhe para os verdadeiros heróis do bem no mundo, em contraste com os tagarelas vãos que procuram falar sobre a virtude: eles não têm um aspecto mais triste que alegre? Eles não falam mais das amarguras do que das alegrias da vida?” Dizendo que a causa disso é a frustração dos nobres propósitos na vida atual, ele pergunta se uma luta começada e levada adiante com a consciência da sua inutilidade tem algum sentido racional. Todo o argumento é muito merecedor de uma leitura atenta. Veja a obra, Die Religion, 2 .238, 239. Em seu trabalho Religionsphilosophie, publicado em 1878, este autor se expressa de uma maneira mais desfavorável com respeito à vida por vir, tratando o fato como duvidoso e dizendo que a fé nela não é indispensável.

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13A Transfiguração

Mateus I7 .I -I3 ; Marcos 9 .2-13; Lucas 9.28-36

AJL V transfiguração é uma daquelas passagens da história terrena do Salvador pelas quais um intérprete deveria passar em reverente silêncio. Tal silêncio teria a mesma desculpa gentilmente feita no Evangelho para as tolas palavras de Pedro a respeito das três tendas: “Não sabendo o que dizia”. Quem poderia saber o que dizer melhor do que ele? Quem seria completamente capaz de falar daquela admirável cena noturna en­tre as montanhas1 durante a qual o céu desceu à terra por alguns breves momentos, e o corpo mortal de Jesus transfigurado reluziu com brilho celestial, e os homens justos vieram e falaram com Ele sobre a sua paixão próxima, e uma voz veio da glória dizendo que Ele era o Filho amado de Deus? Isso é algo demasiadamente elevado para nós, e não estamos à altura desse espetáculo majestoso; a sua grandeza é opressora e espanto­sa; o seu mistério ultrapassa a nossa compreensão; a sua glória é indescritível. Assim, evitando qualquer especulação, questionamento curioso, investigação teológica e descrição ambiciosa com relação ao notável episódio que mencionamos, nos vemos confinados na humilde tarefa de explicar brevemente a sua importância para o próprio Senhor Jesus, e o seu ensino para os discípulos.

Para ser entendida, a “transfiguração” deve ser vista em conexão com o anúncio feito por Jesus algum tempo antes, com respeito à sua morte. Isso é evidente pelo simples fato de os três evangelistas que rela­tam o acontecimento com tanto cuidado observarem a ocasião em que ele ocorreu, com referência àquele anúncio, e a conversa que o acompa­nhou. Os três contam como, seis ou oito dias depois do anúncio2, Jesus

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chamou três dos seus discípulos — Pedro, Tiago e João — e levou-os a um alto e distante monte, e se transfigurou diante deles. Os historiado­res do Evangelho não estavam acostumados a ter cuidado com as suas indicações de tempo, e a sua pouca precisão aqui significa, na verdade: “Enquanto os comunicados e pronunciamentos anteriores com respeito à cruz eram recentes no pensamento de todos, ocorreram os admiráveis acontecimentos que vamos relatar”. A data relativa, na verdade, é um dedo apontando à conversação anterior sobre a morte, e dizendo: “Se você quer entender o que vem a seguir, lembre-se do que aconteceu antes”.

Esta conclusão, a partir da observação sobre o tempo feita por to­dos os evangelistas, se confirma plenamente por uma afirmação feita somente por Lucas, com respeito ao assunto do diálogo no monte entre Jesus e seus visitantes celestiais. “E eis que estavam falando com ele dois varões, que eram Moisés e Elias, os quais apareceram com glória e fala­vam da sua morte, a qual havia de cumprir-se em Jerusalém”3. Essa mor­te, tão diferente da deles nas suas circunstâncias e conseqüências, era o tema da conversa. Eles tinham aparecido a Jesus para conversar com Ele sobre esse assunto. Não sabemos quanto tempo durou a reunião, mas o assunto era suficientemente sugestivo e o tema interessante. Por exem­plo, havia o surpreendente contraste entre a morte de Moisés, aparente­mente imediata e indolor (a luz de seus olhos não se apagava nem a sua força natural se abatia), e a morte dolorosa e infame que Jesus suportaria. Também havia o não menos notável contraste entre a maneira como Elias deixou a terra — levado ao céu sem sequer experimentar a morte, fazendo uma triunfante saída da terra em uma carruagem de fogo, e a maneira pela qual Jesus entraria na glória — a via dolorosa da cruz. Por que razão foi esse privilégio de isenção da morte, ou da sua crueldade, concedido aos repre­sentantes da lei e dos profetas, e negado àquele que era a finalidade de ambos, tanto da lei quanto dos profetas? Nesses temas, e em outros de natureza semelhante, os dois mensageiros celestiais, iluminados pela luz celestial, podem ter tido um diálogo inteligente e solidário com o Filho do Homem, para o alívio da sua alma cansada, entristecida e solitária.

O mesmo evangelista que especifica o assunto da conversa no mon­te também registra que, antes da sua transfiguração, Jesus tinha estado em oração. Portanto, podemos ver, na honra e na glória conferidas a Ele

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A Transfiguração 215

aqui, a resposta do Pai às súplicas do seu Filho; e a partir da natureza da resposta podemos inferir a natureza da oração. Era a mesma observada mais tarde no jardim do Getsêmani. O cálice da morte estava presente no pensamento de Jesus agora, como esteve na outra ocasião; a cruz estava visível aos seus olhos espirituais; e Ele orou pedindo ânimo para beber desse cálice e coragem para o suportar. A presença dos seus três discípulos de confiança, Pedro, Tiago e João, sugere significativamente a similaridade das duas ocasiões. O Mestre levou esses discípulos consigo ao monte, como mais tarde levou-os ao jardim, porque não poderia pres­cindir de companhia e simpatia gentil enquanto caminhasse pelo vale da sombra da morte, e sentisse o horror e a solidão daquela situação.

Agora está claro como devemos ver a cena da transfiguração em relação a Jesus. Foi um auxílio à fé e à paciência especialmente concedi­do ao humilde e modesto Filho do Homem, em resposta às suas ora­ções, para consolá-lo em seu penoso caminho em direção a Jerusalém e ao Calvário. Naquela maravilhosa noite, três auxílios diferentes à sua fé foram fornecidos. O primeiro foi uma antecipação da glória com a qual Ele seria recompensado depois de sua paixão, por sua humilhação vo­luntária e obediência até a morte. Nesse momento podemos considerar que Ele tenha sentido a presença do céu, que era o seu lar antes (e o seria depois) de vir ao mundo; sua face brilhava como o sol, e seu manto era branco como a pura e inexplorada neve dos altos cumes do Hermom. “Tenha bom ânimo!”, aquele repentino fluxo de luz celestial lhe dizia: “o sofrimento terminará em breve e tu entrarás na tua alegria eterna/”

Uma segunda fonte de consolo para Jesus no monte foi a certeza de que o mistério da cruz era compreendido e apreciado pelos santos nos céus, mesmo que não o fosse pelas escurecidas mentes dos pecadores na terra. Ele precisava imensamente de tal consolo; porque entre os homens daquela época, exceto os seus discípulos, não havia ninguém com quem Ele pudesse falar sobre esse assunto com alguma esperança de obter uma resposta inteligente e solidária. Fazia apenas alguns dias que Ele havia passado pela dolorosa experiência de observar a incapacidade dos doze, mesmo do mais esperto e terno dentre eles, de compreender o mistério da sua paixão, ou mesmo de crer nela como um fato assegurado. Verda­deiramente o Filho do homem estava totalmente sozinho ao passar pelo

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vale escuro! A presença de companhias ignorantes e insensíveis servia somente para reforçar o sentimento de solidão. Quando desejou alguma companhia que pudesse entender os seus pensamentos sobre a paixão, foi obrigado, na condição de Deus, a conversar com espíritos de homens justos aperfeiçoados; pois, no que se refere a homens mortais, Ele teria que contentar-se em consumar a sua grande obra sem o conforto de ser entendido até que tudo estivesse terminado.

A conversa com o grande legislador e com o grande profeta de Israel sobre a sua morte foi, sem dúvida, um grande conforto para o espírito de Jesus. Sabemos como Ele se consolou outras vezes com o pensamento de ser entendido no céu, mesmo que não o fosse na terra. Quando os fariseus, sem coração, questionaram sua conduta ao receber pecadores, Ele imediatamente procurou seu consolo e sua defesa no fato abençoado de que haveria alegria no céu por um pecador que se arrepen­desse, mais do que por noventa e nove justos que não necessitassem de arrependimento. Quando Ele pensou em como os “pequeninos”, os fra­cos e os desamparados eram desprezados e esmagados neste mundo or­gulhoso e desumano, Ele refletiu com inexprimível satisfação que no céu os anjos sempre olhavam para o rosto do seu Pai; sim, que no céu havia anjos que cuidavam especialmente dos pequenos e, portanto, estavam totalmente capacitados a apreciar a doutrina da humilhação e da bonda­de que Ele tentou inculcar nos ambiciosos e briguentos discípulos. Cer­tamente, podemos acreditar que quando Ele olhava para a sua própria morte — a coroação e evidência de seu amor pelos pecadores — era um consolo para o seu coração pensar: “Mais além eles saberão o que vou sofrer, e compreenderão o motivo, e observarão com ansioso interesse como me movo com passos decididos, com o meu rosto firme a cami­nho de Jerusalém”. E não seria particularmente consolador ter sensível prova disso, com a visita dos dois habitantes do mundo superior, com poderes para expressar o pensamento geral de toda a comunidade dos santos glorificados, que entendiam que a presença deles no céu se devia aos méritos daquele sacrifício que Ele estava prestes a oferecer em sua própria pessoa no Calvário?

Um terceiro consolo, e o principal, para o coração de Jesus, foi a voz aprovadora do seu Pai celestial: “Este é o meu Filho amado, em quem

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me comprazo”. Aquela voz significou: “Continue como estás, devotado à morte e não fujas da cruz. Estou satisfeito contigo, porque tu não satisfazes a ti mesmo. Satisfeito contigo a cada momento; e me sinto mais satisfeito contigo quando, como no recente anúncio que fizeste aos teus discípulos, mostras que é o teu propósito salvar os outros, e não salvar-te a ti mesmo”.

Esta voz vinda da glória foi um dos três pronunciamentos do Divi­no Pai para os ouvidos do seu Filho durante a vida dele na terra. O primeiro foi ouvido no rio Jordão, depois do batismo de Jesus, e foi o mesmo de agora, excetuando o fato de que apenas Jesus o ouviu, e não os outros. O último foi ouvido em Jerusalém pouco antes da crucificação, e sua importância foi similar à das duas vezes anteriores, mas sua forma foi diferente. A alma de Jesus estava perturbada com a perspectiva da morte próxima, e então Ele orou: “Pai, salva-me desta hora; mas para isso vim a esta hora. Pai, glorifica o teu nome”. “Então”, está escrito, “veio uma voz do céu que dizia: Já o tenho glorificado [através de tua vida] e outra vez o glorificarei [através de tua morte]”. Todos os três pronunciamentos serviram para um único fim. Solicitados pelas crises na história de Cristo, quando Ele manifestou com peculiar intensidade a sua devoção pela obra à qual tinha vindo ao mundo, e a sua determina­ção em terminá-la, por pior que a tarefa pudesse ser para a carne e o sangue, esses pronunciamentos expressaram, para seu encorajamento e fortalecimento, a complacência com a qual seu Pai recompensava a sua humilhação e obediência até a morte. Em seu batismo, Ele, por assim dizer, confessou os pecados de todo o mundo; e ao submeter-se ao ritu­al, expressou o seu propósito de cumprir toda a justiça como o Redentor do pecado. Desta maneira, o Pai, então pela primeira vez, pronunciou que Ele é o seu Filho amado. Pouco antes da transfiguração, Ele havia repelido energicamente a sugestão de um emocionado discípulo, para que Ele se salvasse de sua morte, antecipadamente divulgada, como se esta fosse uma tentação do Diabo; portanto o Pai renovou a declaração, mas passou a frase da segunda para a terceira pessoa, para ser ouvido pelos discípulos que estavam presentes, especialmente por Pedro, que tinha ouvido a voz de seu próprio coração em vez de ouvir as palavras do Mestre. Finalmente, alguns dias antes de sua morte, Jesus superou uma

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tentação da mesma natureza a que Pedro o havia submetido, e que desta vez havia nascido da fraqueza sem pecado de sua própria condição hu­mana. Ele começou a sua oração expressando o desejo de ser salvo da sua hora mais amarga, mas terminou-a com o pedido “gloriftca o teu nome”. Assim o Pai uma vez mais repetiu a expressão de sua aprovação, decla­rando a satisfação pela maneira como seu Filho tinha glorificado o seu nome até agora, e a confiança de que Ele não falharia em coroar a sua carreira de obediência por meio de uma morte que glorificaria a Deus.

Sendo esse, para Jesus, o significado da visão no monte, temos agora que considerar qual foi a lição ensinada aos discípulos que estavam pre­sentes, e por meio deles aos seus irmãos e a todos os cristãos.

O ponto principal nessa conexão é a ordem anexa à voz celestial: “Escutai-o”. Esta ordem refere-se particularmente à doutrina da cruz pregada por Jesus aos doze, e tão mal recebida por eles. Esta instrução deveria ser um reforço solene e deliberado a tudo o que o Senhor lhes havia dito sobre os seus sofrimentos, e sobre a obrigação que todos os seus seguidores têm de carregar a cruz. Pedro, Tiago e João foram convi­dados a recordar tudo o que tinha saído dos lábios do Mestre sobre o assunto desagradável, e certificaram-se de que era tudo verdade e de que estava de acordo com a vontade divina. Além disso, como os discípulos tinham recebido a doutrina com murmúrios de desaprovação, a voz dos céus lhes destinou uma severa palavra de reprovação, ao dizer, em outras palavras: “Não murmurem, mas ouçam com devoção e obediência”.

Essa reprovação era ainda mais necessária, porque os discípulos ti­nham acabado de mostrar que ainda tinham o mesmo pensamento que haviam tido seis dias antes. Pelo menos Pedro ainda não estava conven­cido da necessidade de carregar a cruz. Ao readquirir a consciência de­pois do sono em que tinha caído, este discípulo observou os dois estra­nhos que estavam de partida, e exclamou: “Mestre, bom é que nós este­jamos aqui e façamos três tendas, uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias”. Ele estava disposto a desfrutar da felicidade dos céus sem qualquer processo preliminar que consistisse em carregar a cruz. Certa­mente pensou consigo mesmo: “Realmente será melhor morar aqui com os santos, do que lá em baixo entre os fariseus infiéis e ardilosos e os seres humanos miseráveis, suportando a objeção dos pecadores, e lutan-

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do contra inúmeras enfermidades que amaldiçoam a terra! Fique aqui, meu Mestre, e você poderá dizer adeus a todos aqueles presságios de sofrimentos futuros, e estará fora do alcance dos malvados sacerdotes, anciãos e escribas. Fique aqui, neste monte iluminado pelo sol, beijado pelos céus; não volte para o deprimente e sombrio vale da humilhação. Adeus, terra e cruz: sejam bem-vindos, céus e coroa!”

Não nos esqueçamos, enquanto parafraseamos as tolas palavras de Pedro, que quando ele as pronunciou, estava atordoado pelo sono e pe­los esplendores daquela cena noturna. Ainda assim, quando lhe foi con­cedida indulgência, percebe-se que a inútil sugestão era um indicador do pensamento do discípulo. Pedro estava embriagado, embora não pelo vi­nho; mas o que os homens dizem, mesmo embriagados, é característico. Havia um significado sóbrio em suas palavras sem sentido sobre as ten­das. Ele realmente queria dizer que os visitantes celestiais deveriam per­manecer, e não partir, o que estavam prestes a fazer quando ele falou4. Isso transparece a partir da conversa que ocorreu entre Jesus e os três discípulos ao descer o monte5. Pedro e seus dois companheiros pergun­taram ao Mestre: “Por que dizem, então, os escribas que é mister que Elias venha primeiro?” A pergunta não se refere à ordem dada pouco antes aos discípulos por Jesus: “A ninguém conteis a visão até que o Filho do Homem seja ressuscitado dos mortos”, mas sim à natureza passageira de toda a situação vivida no monte. Os três não estavam ape­nas desapontados, mas perplexos com o fato de que os dois personagens celestiais se parecessem tanto com anjos em sua breve estadia e em sua repentina partida. Eles tinham aceitado a noção corrente do advento de Elias antes da restauração do Reino, e com a finalidade de restaurá-lo; e realmente esperavam que essa fosse a sua vinda, por fim, em companhia de Moisés, anunciando a glória iminente, como a aparição de andorinhas nos climas tropicais é um sinal de que o verão está chegando, e de que o inverno, com suas tormentas e seus rigores, está terminando. Na verdade, enquanto o Mestre estava falando da cruz, eles estavam sonhando com coroas. Percebemos que continuaram sonhando quase até o final.

“Escutai-o”. Esta voz não se destinava somente aos três discípulos, nem mesmo aos doze, mas a todos os professos seguidores de Cristo, assim como para eles. Ela diz, em outras palavras, a cada cristão: “Ouça

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Jesus, e tente entendê-lo quando Ele fala dos mistérios dos seus sofri­mentos e da glória que virá depois — esses assuntos que até mesmo os anjos desejam examinar. Ouça Jesus quando Ele proclama o carregar a cruz como um dever que corresponde a todos os discípulos, e não ouça sugestões auto-indulgentes da carne e do sangue, ou as tentações de Sa­tanás aconselhando-lhe a preocupar-se mais com os seus próprios inte­resses ou com a autopreservação. Ouça Jesus, uma vez mais, e não se canse do mundo nem procure colocar de lado a carga antes do devido tempo. Não sonhe com tendas onde você possa descansar em segurança, como um ermitão no deserto, não tendo participação naquilo que acon­tece debaixo do sol. Faça a sua parte corajosamente, e no devido tempo você terá não uma tenda mas um templo onde morar: uma casa não feita por mãos humanas, mas eterna nos céus.

E realmente verdade que nós, que estamos neste tabernáculo — o nosso corpo — nesse mundo de sofrimentos, não podemos fazer nada exceto gemer e carregar o nosso fardo. Esta é a nossa fragilidade, e ela não é, em si mesma, pecado; nem é errado suspirar ocasionalmente e desejar que o tempo de carregar a cruz termine. Até mesmo o Senhor Jesus, sendo absolutamente santo, algumas vezes sentiu essa fragilidade da vida. Uma expressão parecida com a impaciência passou pelos seus lábios nessa mesma ocasião. Quando Ele desceu do monte e soube o que estava acontecendo em sua base, exclamou, referindo-se ao mesmo tem­po aos escribas que estavam presentes, à fraca fé dos discípulos e à tris­teza da humanidade que sofria as conseqüências da maldição: “O gera­ção incrédula e perversa! Até quando estarei eu convosco e até quando vos sofrerei?” Até mesmo o amável redentor da humanidade provavel­mente tenha se sentido tentado a ficar cansado de fazer o bem — cansa­do de encontrar a objeção de pecadores e de suportar a fraqueza espiri­tual dos discípulos. Portanto, tal cansaço, como um sentimento mo­mentâneo, não é necessariamente pecado; antes, pode ser uma parte da nossa cruz. Mas não se deve ceder a esse sentimento; Jesus não se rendeu a ele. Embora reclamasse da geração em meio a qual vivia, Ele não inter­rompeu a sua obra de amor em seu próprio benefício. Tendo aliviado o seu coração ao exprimir essa exclamação reprovadora, deu ordens para que o pobre lunático fosse trazido à sua presença para que Ele o curasse.

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A Transfiguração 221

Então, depois de realizar o seu novo milagre de misericórdia, o Senhor explicou pacientemente aos seus discípulos a causa da impotência deles para enfrentar as enfermidades dos homens, e ensinou-lhes como pode­riam ter o poder de expulsar todos os tipos de demônios e mesmo aque­les que mais obstinadamente tomavam posse de suas vítimas, por meio da fé e da oração6. Assim, Ele continuou trabalhando, ajudando os so­fredores e ensinando os ignorantes, até que chegou a hora em que pôde dizer, realmente: “Está consumado”.

1 Alguns falam do monte Hermom, embora admita-se que o cenário tradicional da transfiguração seja o monte Tabor.

meth’ hêmeras hex, Mateus e Marcos; kõsei hemerai oktõ Lucas. As duas expressões podem facilmente significar o mesmo período de tempo.

3 Lucas 9.31-32, elegort ten exodon autou.4 Lucas 9.33, en tõ iiachõrizesthai.5 Mateus 17.9-13; Marcos 9.9-136 Mateus 17.19-21; Marcos 9.28, 29. Alguns pensam que o versículo 21 em Mateus tenha sido emprestado de

Marcos pelos copistas. O texto de Marcos 9.29 é literalmente: “Esta casta não pode sair com coisa alguma, a não ser com oração”. Alguns pensam que a expressão “e jejum” seja uma interpretação, por causa do espírito cético que havia penetrado na igreja primitiva.

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14Treinando o Temperamento

ou Discurso sobre a Humildade

Seçao I - Como uma criancinha!Mateus I8 .I-I4 ; Marcos 9.33-37; 42-50 ; Lucas 9.46-48

DJL artindo do monte da Transfiguração, Jesus e os doze retornaram a Cafarnaum passando pela Galiléia. Nesta viagem em direção à sua terra, o Mestre e seus discípulos estavam em diferentes estados de espírito. Jesus estava certamente pensando em sua cruz; os discípulos, cheios de vaidade, sonhando com lugares de distinção no reino que se aproximava. A diferença de espírito se revelava na correspondente diferença de con­duta. Jesus, pela segunda vez, começou a falar sobre os seus sofrimentos pelo caminho, contando aos seus seguidores como o Filho do Homem deveria ser traíio e entregue aos homens, como o matariam, e como ao terceiro dia Ele ressuscitaria1. Os doze, por outro lado, começaram, en­quanto viajavam, a disputar quem entre eles seria o maior no Reino dos céus2. Este estranho e degradante contraste é exibido cada vez mais na história evangélica. Ciúme, disputas inflamadas por posição e primazia por parte dos discípulos, se seguiam às informações da morte dadas pelo Mestre; e assim aquilo que poderia parecer cômico se torna trágico como em uma representação dramática.

Essa disputa invisível e inoportuna mostra claramente a necessidade daquele tom autoritário ligado à voz vinda do céu, “A ele ouvi”, e quão longe os discípulos ainda estavam de submeter-se ao Senhor. Eles só ouviam Jesus quando falava de coisas aceitáveis. Ouviram com prazer quando Ele lhes assegurou de que não tardariam em ver o Filho do Homem em seu reino. Porém, mostravam-se surdos para tudo o que Ele dizia com relação ao sofrimento que deveria preceder a glória. Depois de um acesso momentâneo de tristeza, eles se esqueceram da cruz a que o

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224 O Treinamento dos Doze

Mestre havia se referido, e voltaram a sonhar com a coroa; como uma criança que se esquece da morte do pai ou da mãe, e volta a brincar. “Que ótimo”, certamente pensaram, “ficaremos todos bem quando o reino chegar!” Então, em uma transição fácil, passaram dos sonhos fúteis da glória comum para disputas inúteis sobre quem deveria ter ali os melhores lugares; porque o ciúme e a vaidade estão muito próximos um do outro. “Seremos todos igualmente recompensados no reino, ou um será maior do que o outro? A preferência mostrada por Pedro, Tiago e João ao serem escolhidos como testemunhas oculares da antecipação da glória vindoura, subentende uma primazia correspondente ao reino em si?”3. Os três discípulos certamente esperavam que sim, os demais espe­ravam que não, e assim a disputa começou. Não importava que todos ficariam muito bem juntos; a grande questão era: quem seria o maior — uma questão difícil de resolver quando a vaidade e a presunção lutam de um lado, e o ciúme e a inveja do outro.

Ao chegar a Cafarnaum, Jesus aproveitou a primeira oportunidade para advertir sobre a disputa em que os discípulos se engajaram, e esco­lheu a ocasião para fazer um sermão memorável sobre a humildade e tópicos afins, escolhidos para servir ao propósito de disciplinar o tempera­mento e a vontade deles. A tarefa à qual Ele se dirigia era, ao mesmo tempo, a mais formidável e a mais necessária de que se incumbira até agora, com respeito ao treinamento dos doze. Era a mais formidável, porque nada é mais difícil do que disciplinar a vontade humana a uma sujeição leal aos princípios universais, levando os seres humanos a reconhecer as regras da lei do amor em suas relações mútuas, a deixar o orgulho, a ambição, a vangloria, o ciúme e a inveja dos corações, mesmo tratando-se de pessoas boas. Os homens podem ter feito grandes progressos na arte da oração, na liberdade religiosa, em atividades cristãs; podem ter se mostrado fiéis em tempos de tentação, e estudantes habilidosos na doutrina cristã, e ainda assim demonstrar uma grande e evidente deficiência de tempera­mento: obstinação, interesses pessoais, preocupação com a sua própria glória, até mesmo quando procuram glorificar a Deus.

E esta necessidade se torna ainda mais patente quando considera­mos bem estes discípulos poderiam fazer como ministros do Reino, en­quanto a sua principal preocupação fosse o lugar que ocupariam nele.

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Homens cheios de paixões ambiciosas e ciúme só conseguiriam brigar entre si, levar a causa que buscavam promover à desonra, e fazer brotar em volta de todos confusão e toda obra maligna. Não é de admirar, então, que a partir desse momento Jesus tenha se dedicado, com uma seriedade peculiar, ao trabalho de expulsar dos seus discípulos o espírito do egoísmo, e temperá-los com o seu próprio espírito de mansidão, hu­mildade, e caridade. Ele sabia quanto o seu sucesso neste esforço de temperar os futuros apóstolos dependia do uso de sua própria imagem, que era e é muito forte4; e a tônica e o conteúdo do discurso que se apresenta revela a profundidade de sua expectativa. E especialmente sig­nificativo o início, a parte em que Ele faz uso de uma criança presente como um veículo de instrução; assim, a boca de uma criancinha, prova­velmente no estágio de amamentação, foi o exemplo do perfeito louvor de uma mente humilde. Sentado em meio a discípulos ambiciosos, com a pequena criança nos braços como ilustração da mensagem que estava transmitindo, Ele, que é o maior no reino, prossegue no ensino de verda­des que são mortais para o espírito de orgulho, porém mais doces que o mel para o paladar de todas as almas renovadas.

A primeira lição ensinada é esta. Para ser grande no reino, sim, para ganhar acesso completo a ele, é necessário se tornar como uma criancinha. “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no Reino dos céus. Portanto, aquele que se tornar humilde como esta criança, esse é o maior no Reino dos céus”. A característica da natureza infantil que reveste o ponto prin­cipal da comparação é a sua despretensão.

A infância precoce não sabe nada sobre essas diferenças de hierar­quia que são resultado do orgulho humano, e os prêmios cobiçados pela ambição humana. Um rei é capaz, em sua infância, de brincar sem hesi­tar com um mendigo; deste modo, afirma inconscientemente a insignifi­cância das coisas em que os homens diferem, em comparação com as coisas que são comuns a todos. Jesus requer que os seus discípulos se­jam, voluntária e deliberadamente, o que as crianças são inconsciente­mente. Elas não têm pretensão e ambição, como as crianças crescidas do mundo, mas são mansas e humildes de coração; sem considerar hierar­quias e distinções, não pensando em seu lugar no reino, mas se doando

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com simplicidade de espírito ao serviço do Rei. Neste sentido, o maior no reino, o próprio Rei, é o mais humilde dos homens. Jesus não tinha em si uma humildade na forma de autodepreciação ou auto-humilhação por causa do pecado, porque não havia pecado, defeito ou falha em seu caráter. Mas Ele é o padrão perfeito da humildade que consiste em resig­nação. Não podemos dizer que o Senhor Jesus fiz e s s e pouco de si mesmo, mas podemos dizer que não pensava em si mesmo de forma alguma. Ele pensou apenas na glória do Pai e no bem do homem. Considerações de engrandecimento pessoal não tinham lugar entre os seus motivos. Ele se esquivou com santa abominação de todos aqueles que se mostravam influenciados por tais considerações; nenhuma personalidade parece ser tão detestável aos seus olhos como a dos fariseus, cuja religião era uma exibição teatral, sempre pressupondo a presença dos expectadores; eram os que amavam os lugares de maior destaque nas festas, e os principais assentos nas sinagogas, e serem chamados pelos homens Rabi, Rabi. Jesus nunca desejou, nem recebeu para si mesmo, a honra humana. Ele não veio para ser servido, mas para servir. Ele, o maior, se humilhou a ponto de se tornar o menor. Ele veio para ser uma criança nascida em um estábulo e deitar-se em uma manjedoura; ser um homem de dores, pouco estimado pelo mundo; sim, a ponto de ser pregado em uma cruz. Através de tal fantástica auto-humilhação, Ele mostrou a sua grandeza divina.

Quanto mais elevada for a nossa posição no reino, mais nos asseme­lharemos a Jesus, tornando-nos cada vez mais humildes, como Ele. A simplicidade da infância, como Ele exibiu, é uma característica invariável de avanço espiritual, assim como sua falta é uma marca de pequenez moral. O homem moralmente pequeno, mesmo quando bem intencio­nado, é sempre pretensioso e maquinador — sempre pensa em si mes­mo, em sua honra, dignidade, reputação, mesmo quando está fazendo o bem. Este sempre estuda uma maneira de glorificar a Deus de uma for­ma que irá, ao mesmo tempo, glorificar a si mesmo. Nem mesmo o amor aos ganhos está acima do sentimento de vangloria. Os maiores no reino, por outro lado, se lançam com tal impetuosidade ao trabalho para o qual foram chamados, que não têm tempo, nem inclinação, para questi­onar que lugar obterão neste mundo ou no vindouro. Deixando as

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conseqüências para o grande governador e Senhor, e sem interesse pró­prio, entregam toda a sua alma à tarefa designada; satisfeitos por ocupar um espaço pequeno ou grande, conforme Deus designar, contanto que o Senhor seja glorificado.

Este é o verdadeiro caminho para se alcançar um lugar mais elevado no reino eterno. Devemos observar que Jesus não rejeita sumariamente a questão sobre quem é o maior no reino, negando a existência de distin­ções neste. Ele não disse nessa ocasião, nem em nenhuma outra: “E desnecessário perguntar quem é o maior no Reino dos céus: ali não exis­te uma distinção entre maiores e menores”. Ao contrário, está implícito na passagem considerada, e confirmado em outras, que não existe tal distinção. De acordo com a doutrina de Cristo, o reino celestial não tem afinidade com o radicalismo invejoso que requer que todos sejam iguais. Ali existem graus de distinção, assim como nos reinos deste mundo. A diferença entre o reino divino e todos os outros reside no princípio rela­cionado à promoção. No mundo em que vivemos, os orgulhosos e os ambiciosos alcançam os lugares de honra; no reino celestial as honras são conferidas aos humildes e àqueles que são abnegados. Aquele que na terra tiver procurado ser o último expressando um amor humilde, será grande no Reino dos céus.

A lição seguinte que Jesus ensinou aos seus discípulos foi a do dever de receber os pequenos, ou seja, não simplesmente crianças no sentido literal, mas a todos aqueles que representam uma criança — os fracos, os insignificantes, e aqueles que precisam que alguém os ajude. A criança que Ele carregava nos braços serviu como um exemplo de humildade de espírito, e em seguida como um exemplo de humildade de condição social, influência, e importância; e tendo sido apresentada naquela con­dição aos discípulos, como objeto de imitação, foi, por fim, elogiada como alguém que deveria receber um tratamento bondoso. Eles deveri­am receber as criancinhas com graça e amor, tendo o cuidado de não maltratá-las com dureza, crueldade, ou atitudes desrespeitosas. Jesus re­ceberia todo o tipo de bondade demonstrada para com as crianças, como se fosse feita a si mesmo.

Essa transição da idéia de ser como uma criança para receber tudo aquilo que a infância representa em sua fraqueza, era perfeitamente na­

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tural; porque há uma íntima ligação entre o esforço egoísta para ser grande, e um modo de agir ofensivo contra os pequenos. A rispidez e o desdém são características inseparáveis de um espírito ambicioso. Na verdade, um homem ambicioso não é necessariamente cruel em sua dis­posição, e capaz de alimentar intentos cruéis “a sangue frio”. Ás vezes, quando o demônio que o possui está quieto, a idéia de ferir uma criança ou qualquer coisa que uma criança represente, pode lhe parecer revoltan­te; e esta pessoa pode até mesmo se ressentir se lhe for imputado qual­quer desígnio de agir deste modo, ou até mesmo pela simples alusão à possibilidade de que possa pensar nisso, como sendo um insulto moral. “Pois que é teu servo, que não é mais do que um cão, para fazer tão grande coisa?”, perguntou Hazael indignado a Eliseu, quando o profeta descreveu-lhe o seu próprio futuro, dizendo que ele colocaria fogo nas fortalezas de Israel, mataria os seus jovens à espada, despedaçaria as cri­anças e rasgaria o ventre das grávidas. Naquele momento, o horror a estes crimes era verdadeiramente sincero, embora no futuro fosse culpa­do de todos eles. O profeta previu corretamente o caráter que aquele homem demonstraria, e, baseado nisso, declarou sua futura carreira de grandiosa perversidade. Eliseu viu que se tratava de um homem ambici­oso, e tudo mais aconteceu como conseqüência disso. Fingindo estar preocupado com a recuperação do rei da Síria, seu senhor, ele primeiro o mataria e, uma vez no trono, a mesma ambição que fez dele um assassi­no, o incitaria aos esquemas de conquista, em uma continuidade em que perpetraria todas as crueldades bárbaras pelas quais os tiranos orientais demonstravam ter um prazer diabólico.

Os crimes ligados à ambição, e as lamentações com que encheram a terra, são desvios morais freqüentes. Consciente da devastação causada no passado e que ainda seria produzida no futuro pelo desejo por posi­ção e poder, Jesus exclamou como quem enxerga uma visão diante de seus próprios olhos: “Ai do mundo, por causa dos escândalos”. Ai, de fato, mas não simplesmente daqueles que sofrem pela mão dos perver­sos; a maior aflição está reservada aos próprios perversos. Assim Jesus ensinou aos seus discípulos, quando acrescentou: “Mas ai daquele ho­mem por quem o escândalo vem!” Ele também não deixou os seus ou­vintes sem conhecimento sobre a natureza da condenação dos perversos.

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Ele declarou, em uma linguagem que veio de seus lábios como uma cha­ma de justa indignação, ao pensar nos males infligidos aos fracos e de­samparados: “E qualquer que escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que lhe pusessem ao pescoço uma gran­de pedra de moinho e que fosse lançado no mar”. A expressão “melhor lhe fora” significa que tal pessoa merece esta conseqüência; e está implí­cito, embora não esteja expresso, que é o que ela receberá quando a vin­gança divina finalmente a alcançar. A pedra de moinho não é uma sim­ples figura de linguagem, mas um símbolo apropriado da condenação final dos orgulhosos. Aquele que desejar alcançar as posições mais eleva­das, sem pensar no mal que infligiu ou poderá infligir aos outros, será lançado fora, não simplesmente na terra, mas nas profundezas do mar, no mais profundo abismo do inferno, com um grande peso de maldi­ções pendurado ao seu pescoço para afundá-lo e deixá-lo preso lá em­baixo, para que não suba nunca mais5: “Afundarão como o chumbo nas águas profundas!”

Sendo este o terrível destino da ambição egoísta, os sábios temeri­am e antecipariam o julgamento de Deus, julgando a si mesmos. Jesus aconselhou os seus discípulos a assim procederem, repetindo uma severa palavra pronunciada anteriormente, no Sermão da Montanha, que diz respeito a cortar os membros do corpo para não pecar6. A primeira vista esta palavra parece irrelevante aqui, porque o sujeito do discurso é a injustiça contra os outros, não a injustiça contra alguém. Mas esta rele­vância se torna evidente quando consideramos que todas as ofensas con­tra um irmão são ofensas contra nós mesmos. Este é precisamente o ponto que Cristo deseja que seus discípulos aprendam. Ele queria que entendessem que o egoísmo precisa ser contido por escrúpulos para evi­tar injustiças aos pequeninos. Nosso grande Mestre disse, com efeito: “Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti, pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que todo o teu corpo seja lançado no inferno”.

Jesus ensinou algo mais aos seus discípulos enquanto segurava a criança em seus braços. Aqueles que prejudicavam ou desprezavam os pequeninos estavam totalmente em desarmonia com o pensamento do alto. “Vede”, Ele disse, “não desprezeis algum destes pequeninos”, e

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então continuou reforçando a advertência deixando as metáforas de lado, mostrando-lhes um vislumbre do reino celestial no qual desejavam al­cançar a proeminência. “Olhem, ali! Vejam aqueles anjos de pé em volta do trono de Deus — eles são espíritos que ministram aos pequeninos! E eis que aqui estou, o Filho de Deus; vim lá do céu para salvá-los! E vejam como o Pai nos céus sorri para os anjos e para mim, por termos tanto amor e interesse por eles!”7. Que argumento eloqüente! Que apelo pode­roso! “Os habitantes do céu”, em outras palavras, “são amáveis e humil­des; vocês são egoístas e orgulhosos. Que esperança vocês podem ali­mentar de serem admitidos em um reino, cujo espírito é completamente diferente daquele que os incita? Ou melhor, vocês não ficam envergo­nhados quando testemunham este evidente contraste entre a humildade celestial e o orgulho e a pretensão de homens débeis e até mesmo insig­nificantes? Afastem, de agora em diante e para sempre, a vaidade e os pensamentos ambiciosos, e deixem a mansidão e o espírito bondoso do céu possuir seus corações”.

Na bela imagem do mundo superior, uma coisa é especialmente notável: a introdução feita por Jesus referindo-se ao seu trabalho como o Salvador dos perdidos, utilizando um argumento que tem a finalidade de reforçar a necessidade de cuidar dos pequeninos8. A referência não é irrelevante, não é originada de um argumento a fortiori. Se o Filho do Homem se importa com os perdidos, com os de posição inferior, e com os moralmente degradados, muito mais se importará com aqueles que são simplesmente pequeninos! Buscar a salvação dos maus representa um esforço muito maior do que interessar-se pelos fracos; e aquilo que Ele fez pelos primeiros, certamente não falhará em fazer pelos últimos. Ao falar de seu amor como o Salvador dos pecadores, como na parábola do bom pastor que sai em busca da ovelha perdida9, Jesus mais uma vez dirigiu a atenção dos seus discípulos ao mais sublime exemplo de humil­dade. Pois este amor mostra que não havia nenhum orgulho no Filho de Deus devido à sua grandeza ou à sua santidade. Ele era capaz de condes- cender com homens de condição humilde, e fazer-se irmão do vil. O Senhor se tornaria um com eles em compaixão e condição, para que pudessem se tornar um com Ele em caráter e privilégios. Mais uma vez, ao fazer referência ao seu próprio amor como Salvador, Jesus mostrou

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aos discípulos a verdadeira fonte daquela caridade que se preocupava com os fracos e não menosprezava os pequeninos. Ninguém que apreci­asse corretamente o seu amor ofenderia deliberadamente ou desprezaria sem compaixão qualquer irmão, mesmo que aparentemente insignifi­cante, que tivesse um lugar no coração do seu Salvador.. A caridade do Filho do Homem, aos olhos de todos os verdadeiros discípulos, envolve, com uma auréola de santidade, os mais maldosos e vis da raça humana.

Seção II - A D iscip lina d a IgrejaMateus 18.15-20

Após prevenir devidamente seus ouvintes quanto a prejudicar os pequeninos, Jesus prosseguiu (conforme o relato de suas palavras em Mateus) dizendo-lhes como deveriam agir quando não fossem os que causassem, mas os que sofressem as injustiças ou as ofensas. Nesta parte do sermão, Ele tinha em vista o futuro, mais do que o presente. Conside­rando o tempo em que o reino — ou seja, a igreja — deveria existir verdadeiramente como uma comunidade organizada, com os doze exer­cendo nela autoridade como apóstolos, Ele dá instruções sobre o exercí­cio da disciplina, visando a pureza e o bem-estar da irmandade cristã10; então confere aos doze, coletivamente, o que já havia sido concedido somente a Pedro — o poder de ligar e desligar, ou seja, infligir e remover as censuras por parte da igreja11. O Senhor lhes faz uma promessa ainda mais encorajadora; teriam a sua presença espiritual, e o poder que todos aqueles que se unissem em seu nome poderiam receber de seu Pai celestial em oração, ao se colocarem de acordo em relação aos seus desejos e propósitos12. Seu principal objetivo era assegurar, de antemão, que a comunidade chamada pelo seu nome fosse de fato santa, amorosa, e unida.

As regras aqui deixadas para guiar os apóstolos ao lidarem com os ofensores, embora simples e diretas, têm levantado muitos debates entre religiosos polêmicos interessados em sustentar diversas teorias sobre o governo da igreja13. Não diremos nada sobre estas disputas eclesiásticas, nem consideramos necessário fazer qualquer comentário expositivo so­bre as palavras de nosso Senhor, salvo uma nota explicativa sobre a frase que Ele emprega para descrever a situação de excomunhão: “Considera-o”

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(isto é, o irmão impenitente prestes a ser excluído da igreja) “como um gentio e publicano”. Estas palavras, que sem dúvida foram entendidas na ocasião em que foram pronunciadas, não são tão claras para nós agora; mas seu significado principal é suficientemente claro. A idéia é que o ofensor impenitente persistente deva se tornar para a pessoa prejudica­da, e para toda a igreja, alguém com quem não se possa compartilhar uma religião, e nem sequer a mínima convivência social. O aspecto reli­gioso da excomunhão está indicado pela expressão “como um gentio”, e o lado social está expresso na segunda parte da sentença, “e publicano”. Os pagãos eram excluídos do templo, e não participavam dos rituais religiosos judaicos. Os publicanos não eram excluídos do templo, até onde sabemos; mas eram considerados, socialmente, como párias por todos os judeus, por afetarem o patriotismo e o rigor religioso. Esta aversão indiscriminada de toda a classe não era justificável, e nem há qualquer aprovação a ela implícita aqui. Jesus se refere a esta situação simplesmente como a uma questão existente, que de forma conveniente e clara serviu para ilustrar o seu ensino. Que o impenitente ofensor deve­ria ser, para os cristãos, o que os pagãos eram, por lei, para todos os judeus — pessoas com quem não se compartilha nenhuma comunhão religiosa; e o que os publicanos eram para os fariseus por preconceito inveterado — pessoas a serem excluídas de tudo, menos do relacionamen­to social inevitável.

Qualquer que seja a obscuridade que possa estar ligada ao conjunto de regras para se conduzir à disciplina, não pode haver nenhuma dúvida quanto ao amoroso Espírito Santo que a permeia.

O espírito de amor surge na concepção da igreja que está subordi­nada a estas regras. A igreja é vista como uma comunidade na qual a preocupação de um é a preocupação de todos, e vice-versa. A partir daí, Jesus não especifica a classe de pecados que tinha em mente, se individu­al e pessoal, ou tais como aqueles provenientes de escândalos, ou seja, pecados contra a igreja como um todo. Em seu conceito de igreja tais explicações eram desnecessárias, porque a distinção citada cessa, em grande parte. Um pecado contra a consciência da comunidade inteira é uma ofensa contra cada membro individual, porque cada um zela pela honra do corpo de crentes; e por outro lado, uma ofensa que é em primeiro

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lugar individual e pessoal, torna-se uma ofensa com a qual todos estarão preocupados até que a parte prejudicada consiga trazer seu irmão à con­fissão c reconciliação. Um afastamento crônico entre dois irmãos cris­tãos será considerado, em uma igreja segundo a mente de Cristo, como um escândalo a não ser tolerado, por estar carregado por danos mortais à vida espiritual de todos.

A ordem dos procedimentos indicados nas instruções dadas por Jesus é também muito adequada ao espírito de caridade. Primeiro, reco- menda-se uma tentativa privada e restrita entre a parte ofendida e o seu irmão ofensor; se esta tentativa foi sinceramente feita e o acordo não foi alcançado, só então é que terceiros devem ser trazidos como testemu­nhas e assistentes no trabalho de reconciliação; e finalmente, e apenas como último recurso, o tema da discussão deve ser trazido a público, perante toda a igreja. Este método de procedimento dedica obviamente mais atenção ao ofensor. Ele faz com que a confissão seja o mais fácil possível para este, poupando-o da vergonha da exposição. Este também é um método que não pode ser usado, se não houver a mais pura e santa intenção da parte daquele que procura a reparação. Não deixa espaço para a loquacidade negligente do mexeriqueiro, que tem prazer em espa­lhar más notícias e falar dos defeitos do irmão e não diretamente com o irmão. Este procedimento inibe o ressentimento, conduzindo o irmão ofendido por um caminho tolerante ao lidar com seu irmão ofensor antes de chegar a uma triste situação extrema, ou seja, o afastamento completo. Ele desencoraja os intrusos e fanáticos, que se ocupam em procurar avidamente pecados na vida das outras pessoas; estes agem não começando pelo ofensor, mas indo diretamente à igreja com acusações severas, certamente baseadas em informações do tipo “ouvi dizer”, obti­das de maneiras vis.

E característico do espírito amoroso de Jesus, o Cabeça da igreja, o horror com que Ele considera, e fez os discípulos considerarem, a possi­bilidade de qualquer pessoa, quanto mais um irmão, se transformar, para seus co-irmãos, em um pagão ou em um publicano. Isto é mostrado por sua insistência em que não se deve deixar de aplicar nenhum recurso para evitar essa triste catástrofe. Quão diferente do mundo é o pensa­mento do Senhor a esse respeito, pois o mundo consegue, com perfeita

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serenidade, permitir que um grande número de companheiros seja o que os pagãos eram para os judeus e os publicanos para os fariseus — pesso­as excluídas de qualquer tipo de comunhão! Sim, e ainda podemos des­tacar quão diferente é o pensamento de Jesus daqueles que, até mesmo na igreja, tratam os irmãos com perfeita indiferença em relação à comu­nhão, e que se tornaram tão acostumados a tal prática maligna, que a consideram sem qualquer arrependimento, como totalmente comum e como a ordem natural das coisas!

Tal indiferença cruel envolve, para a igreja, um ideal muito diferente daquele que é desejado pelo seu fundador. Homens que não consideram que a comunhão eclesiástica lhes imponha qualquer obrigação de amar aos seus irmãos cristãos pensam, consciente ou inconscientemente, na igreja como um hotel, onde todos os tipos de pessoas se encontram por um curto período de tempo, sentam-se juntas à mesma mesa, e então se separam sem se conhecerem ou se importarem, mutuamente, com qual­quer coisa em relação à outra. Mas, na verdade, a igreja é uma família, cujos membros são irmãos que têm o dever de se amar com um coração puro e fervoroso. Claro que essa teoria do hotel inclui, como uma conse­qüência necessária, o desuso da disciplina. Por mais estranha que essa idéia pareça para muitos, a lei do amor é a base da disciplina da igreja. E por estar obrigado a tomar cada membro da igreja pelo braço como um irmão, que eu não apenas devo, mas sou obrigado a estar profundamente preocupado com o seu comportamento. Se um irmão em Cristo, de acordo com a posição eclesiástica, me disser: “Você deve me amar de todo o coração”, eu tenho o direito de lhe responder: “Reconheço a obrigação na teoria, mas exijo que em troca você se comporte de tal forma que eu possa lhe amar como cristão, mesmo fraco e imperfeito; e sinto que é tanto meu direito como meu dever fazer tudo o que puder para tornar-lhe uma pessoa digna desta estima fraternal, convivendo abertamente com você, levando em conta as suas ofensas. Estou dispos­to a lhe amar, mas não posso e não ouso manter uma relação amigável com os seus pecados; e se você se recusar a desistir deles, e de fato me pedir para ser participante deles por conivência, então o nosso laço fraternal chega ao fim, e estou livre de minhas obrigações”. Tal linguagem e estilo de pensamento são completamente estranhos ao patrono da teoria “do

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hotel”, relacionada à comunhão na igreja. Renunciando à obrigação de amar seus irmãos, ele ao mesmo tempo renuncia ao direito de insistir no exemplo cristão como um atributo indispensável ao membro da igreja, e se recusa a se preocupar com o comportamento de qualquer membro, a menos que possa afetá-lo pessoalmente. Todos podem pensar e agir como considerarem conveniente — ser infiéis ou crentes, filhos de Deus ou filhos de Belial: para essa pessoa é tudo igual.

A santa severidade, assim como o terno e atencioso amor, encon­tram lugar nessas orientações. Jesus solenemente sanciona a excomunhão de um pecador impenitente. “Considere-o”, disse Ele, com o tom de um juiz pronunciando a sentença de morte, “como um gentio e publicano”. Então, para investir com toda a solenidade e autoridade as censuras que a igreja aplica com justiça, Ele continua a declarar que estas trazem con­sigo conseqüências eternas; acrescentando, da maneira mais enfática, as terríveis palavras — terríveis tanto para o pecador a ser expulso quanto para aqueles que são responsáveis por sua expulsão: “Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra terá sido desligado nos céus”. As palavras po­dem ser consideradas, em certo sentido, como um alerta às autoridades eclesiásticas, para que tenham cuidado com a maneira como usarão um poder tão grande; mas mostram claramente que Cristo desejava que a sua igreja na terra fosse o mais próximo possível da igreja no céu: uma congregação santa, e não uma congregação indiscriminada de homens justos e injustos, de crentes e infiéis, de cristãos e réprobos; e por isso confia o poder das chaves àqueles que têm a responsabilidade de admi­nistrar a sua casa, autorizando-os a entregar à servidão de Satanás o pecador orgulhoso e obstinado que se recusa a ser corrigido, e dar uma satisfação às consciências ofendidas dos seus irmãos.

Tal rigor aparentemente impiedoso é, na verdade, misericordioso para todas as partes. E misericordioso aos membros fiéis da igreja, por­que remove do seu meio um membro moribundo, cuja presença arrisca a vida de todo o corpo. O pecado abertamente escandaloso não pode ser tolerado em nenhuma sociedade sem resultar em desmoralização geral; muito menos na igreja, que é uma sociedade cuja razão de ser é a cultura da virtude cristã. Mas o rigor aparentemente impiedoso é misericordioso,

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mesmo em relação aos infiéis que estão expostos a ele. Porque manter um pecador escandaloso em comunhão com a igreja é fazer com que a alma dele venha a ser condenada ao inferno, excluindo-o definitivamente do céu. Por outro lado, entregá-lo a Satanás pode significar, e espera-se que signifique, dar-lhe não mais que uma antecipação do inferno agora, para que possa se salvar, para sempre, do fogo do inferno. Foi com esta esperança que Paulo insistiu na excomunhão do incestuoso da igreja de Corinto, para que através do castigo do seu pecado carnal “o espírito seja salvo no Dia do Senhor Jesus”. E esta esperança que conforta aque­les que têm o desagradável dever de aplicar a disciplina na igreja, alivian- do-os de sua dolorosa tarefa.

Eles podem excluir os perversos da comunhão dos santos com me­nos hesitação, quando sabem que como “gentios e publicanos” os exclu­ídos estão mais perto do Reino de Deus do que estavam como membros da igreja, e quando consideram que ainda têm a permissão de buscar o bem dos ímpios, como Cristo buscou o bem de todos os excluídos de seu tempo; que ainda está em seu poder orar por eles e pregar a eles, visto que estão no pátio exterior dos gentios, embora não possam colocar em suas mãos impuras os símbolos do corpo e do sangue do Salvador.

Tais considerações, na verdade, tranqüilizariam aqueles que estão sinceramente preocupados com o caráter espiritual da igreja, e com a segurança de cada alma, quanto às muitas e consideráveis reduções no rol de membros. Não pode haver dúvida de que, se a disciplina da igreja fosse defendida com a eficiência e o rigor esperado por Cristo, tais redu­ções aconteceriam em uma escala extensiva. E de fato verdade que o processo de purificação pode ser levado a excessos, e com muitas conse­qüências nocivas. O joio pode ser confundido com o trigo, e o trigo pode ser confundido com o joio. A igreja pode se transformar em uma sociedade de fariseus, agradecendo a Deus por não serem como os ou­tros homens, ou como os pobres publicanos que ficam do lado de fora, ouvindo e orando, mas que não desfrutam da comunhão. Assim, fora dos trilhos da comunhão, podem estar não apenas os indignos, mas muitos daqueles tímidos que não ousaram se aproximar e que, como o publicano da parábola, só podiam clamar, a distância: “O Deus, tem misericórdia de mim, pecador!”; contudo estes foram justificados, e os outros não.

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Um sistema que tenha a tendência de causar tais conseqüências é um extremo a ser evitado. Mas ainda há um extremo mais pernicioso e co­mum a ser evitado: a complacência despreocupada, que permite que ove­lhas e bodes se misturem em um único rebanho, onde os bodes são, deste modo, encorajados a se considerarem ovelhas, e destituídos do maior benefício que poderiam desfrutar — o privilégio de serem tratados como “pecadores não-convertidos”, e assim chegarem ao arrependimento.

Tais misturas impróprias do divino com o imoral são fenômenos muito comuns nestes dias. E não é difícil encontrar a razão. Não é uma indiferença à moralidade porque esta não é, geralmente, uma caracterís­tica da igreja de nosso tempo. E o desejo de multiplicar os membros da igreja. As várias denominações cristãs valorizam mais a quantidade de membros do que a virtude cristã, e temem que pela disciplina possam perder um ou dois nomes de seu rol de membros. Este temor não é injustificado. Aqueles que fogem da disciplina estão sempre certos de que terão uma porta aberta e calorosas boas-vindas em algum momento ou em algum lugar. Esta é uma das maldições que nos é imposta pelo maior de todos os escândalos: a divisão religiosa. Alguém que se tornou ou que está à beira de se tornar como um pagão e um publicano para um corpo eclesiástico, tem uma boa chance de se tornar um santo ou um anjo para outro. Igrejas que competem entre si como “rivais” jogam com os propósitos da cruz, e assim uma liga quando a outra desliga. Deste modo procuram, o máximo possível, anular todas as sentenças espiritu­ais tornando-as inócuas, tanto no céu como na terra, e roubam toda a dignidade e autoridade da religião. Com razão os libertinos desejam que as divisões na igreja possam continuar, pois enquanto esta situação du­rar estarão se saindo muito bem! Em outras circunstâncias, a igreja ga­nhou a preferência das pessoas nos dias em que era universal e única; quando os pecadores contritos se entregavam ao Senhor, ao longo do lento rumo dos anos, do locus lugentíum fora do santuário, através do locus audientíum e do locus substratomm ao locusfidelium ; e deste modo doloroso aprendiam quão ruim e amargo é apartar-se do Deus vivo14.

A promessa feita àqueles que se pusessem de acordo em oração10 veio através de uma apropriada pregação, dirigida aos discípulos que disputavam quem seria o maior. Neste sentido a promessa significa:

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“Enquanto houver dissensões e invejas, vocês serão impotentes tanto como homens quanto em relação a Deus em sua conduta eclesiástica como administradores da igreja, e em suas súplicas diante do trono da graça. Mas se forem unidos de coração e mente, terão o poder de Deus, e prevalecerão; meu Pai concederá aquilo que pedirem, e eu mesmo esta­rei no meio de vocês”.

Não é necessário admitir qualquer ligação próxima entre esta pro­messa e o assunto sobre o qual Jesus falou um pouco antes. Nesta prega­ção familiar a mudança é feita de um tópico a outro durante a conversa, de uma forma fácil, tomando apenas o cuidado para que tudo que é dito seja relevante ao tema geral. A reunião que deve haver em nome de Cristo não precisa, entretanto, ser uma reunião dos líderes da igreja com a fina­lidade de tratar de assuntos eclesiásticos; pode ser uma reunião em uma igreja ou em uma casa de campo, com o exclusivo propósito de adora­ção. A promessa é válida para todas as pessoas, para todos os motivos de oração, para todos os lugares, e todas as horas; para todas as reuniões verdadeiramente cristãs, grandes e pequenas.

A promessa vale para o número mínimo necessário para que se te­nha uma reunião — mesmo para duas ou três pessoas. Este número mínimo expressa, da maneira mais forte possível, a importância da har­monia da irmandade. Jesus nos faz entender que quando dois concor­dam existe uma situação melhor e mais forte do que quando há doze ou mil divididos por inimizades e ambiciosas paixões. “Quando o Senhor recomendou unanimidade e paz aos seus discípulos, disse. ‘Se dois de vós concordarem na terra’, etc. para mostrar que as bênçãos não são concedidas com base no número de pessoas, mas na concordância dos suplicantes”16. Uma inferência óbvia é que, se quando dois concordam tornam-se fortes, então uma multidão realmente unida em seus pedidos e pensamentos pode ser considerada proporcionalmente mais forte. Não devemos imaginar que Deus tenha qualquer parcialidade a favor de uma pequena reunião, ou que haja qualquer benefício por estarmos em um pequeno número. Pequenas facções e seitas correm sempre o risco de cair neste erro, imaginando que o Senhor Jesus Cristo pensava em seu pequeno grupo quando mencionou dois ou três, e que Ele se referia ao tipo de concordância pelo qual são diferenciados — concordância em

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caprichos e sonhos. Que caricatura ridícula do significado das palavras pronunciadas pelo Senhor! A concordância que Ele requer dos seus dis­cípulos não é uma unanimidade absoluta de opinião, mas que estejam de acordo, na mente e no coração, com os propósitos que almejam, e em uma devoção não egoísta a estes fins. Quando falou de dois ou três, Ele não desejava que a sua igreja se dividisse em inúmeros fragmentos pro­porcionais às suas particularidades, e que considerassem que a sua pre­sença e bênçãos seriam garantidas. Ele não desejava que a sua igreja con­sistisse de uma coleção de “clubes” sem comunhão uns com os outros, e muito menos que fosse um “grande hotel”, recebendo e abrigando to­dos os visitantes, sem fazer quaisquer perguntas. Ele não fez a promessa que estamos agora considerando com a finalidade de estimular o secta­rismo, mas visando encorajar o cultivo de virtudes que têm sido raras na terra — fraternidade, bondade, mansidão, caridade. O que o Senhor valoriza, em resumo, não é a escassez em números que se deve à fa lta de caridade, mas a união de corações em amor humilde entre o maior nú­mero possível de pessoas.

Seção III - Perdoando as OfensasMateus 18.21-35

Uma lição sobre o perdão encerrou de forma adequada o solene discurso sobre a humildade proferido perante os discípulos inquiridores. A ligação existente entre o seu início e o seu final é bastante real embora, aparentemente, isso não seja muito visível. O temperamento vingativo, que está sendo condenado aqui, é um dos vícios alimentados por aqueles que têm espíritos ambiciosos. Um homem ambicioso, com toda certeza irá receber muitos insultos, reais ou imaginários. Ele se ofende facilmen­te e custa muito a perdoar ou esquecer o mal que lhe fizeram. Perdoar as ofensas não faz parte de seu estilo e ele se sente mais confortável quando consegue agarrar o devedor pela garganta e, com a violência de um ru­fião, exigir o devido pagamento.

A parte final do discurso foi provocada por uma pergunta apresen­tada por Pedro, o habitual porta-voz dos doze, que veio até Jesus e disse: “Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe per­doarei? Até sete?” Não sabemos através de qual associação de idéias essa

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pergunta foi se formar na mente de Pedro, e talvez nem ele soubesse, pois os mecanismos do intelecto são muitas vezes misteriosos e tendem a se revelar repentinamente em naturezas impulsivas e instáveis. Os pen­samentos surgem na mente tal qual meteoros na atmosfera superior e, da mesma forma como são subitamente concebidos, são também abrupta­mente articulados, acompanhados por gestos físicos que indicam a força com que se apossaram da alma. Será suficiente dizer que a indagação do discípulo, embora apenas sugerida, era relevante ao assunto em questão e tinha afinidades espirituais latentes com tudo o que Jesus havia dito em relação não só à humildade, como também a ofender ou a ser ofendido. Quanto a Pedro, a indagação demonstrou uma perspicaz atenção às pa­lavras de seu Mestre e uma consciente solicitude de conformar a sua atitude aos preceitos celestiais pelos quais se sentia, naquele momento, dominado e tranqüilizado.

A pergunta feita por Pedro ainda revelou uma curiosa mistura de ingenuidade e infantilidade. Ser tão zeloso a respeito do dever de perdo­ar, e até pensar em praticá-lo até sete vezes em relação ao mesmo ofensor, deixava transparecer que se tratava de um verdadeiro filho do Reino dos céus, pois somente aquele que tivesse um espírito benevolente poderia exercê-lo dessa maneira. Mas era muito simples imaginar que o perdão, repetido assim tantas vezes, poderia elim inar essa obrigação e corresponder a alguma coisa magnânima e divina. Pobre Pedro, em sua ingênua tentativa de ser magnânimo parecia-se com aquela criança que se coloca nas pontas dos pés para se fazer tão alta quanto o pai, ou sobe ao cume de uma colina para alcançar o céu.

A resposta de Jesus a essa sincera, mas indelicada conduta, estava admiravelmente apropriada para eliminar sua presunção e fazê-lo sentir como eram insignificantes e mesquinhas as dimensões de sua caridade. Fazendo eco à mensagem do profético oráculo, ela diz àqueles que gos­tariam de ser como Deus, que deviam multiplicar o perdão17. “Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete”. Meu Deus, como é rara essa caridade debaixo do sol! Os pens'amentos de Cristo não são os pen­samentos dos homens, nem sua maneira de ser é comum aos homens. Assim como o céu está acima da terra, também seus pensamentos estão acima daqueles que prevalecem neste mundo. Para muitos, longe de per­

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doar um sem número de vezes a um irmão que tenha confessado sua falta, não o perdoam nem uma única vez e agem de tal forma que pode­mos reconhecer seu retrato vividamente reproduzido na parábola do cre­dor que não tinha compaixão.

Nessa parábola, cujos mínimos detalhes estão repletos de ensinos, três coisas são especialmente dignas de nota: o contraste entre os dois devedores, o correspondente contraste entre os dois credores e a senten­ça lançada sobre aquele que, tendo recebido o perdão de seu grande débito, se recusou a perdoar a pequena soma que um outro lhe devia.

Os dois débitos são, respectivamente, de dez mil talentos e de cem denários, e mantém entre si a proporção aproximada de, digamos, um milhão para um. Essa enorme disparidade tem a finalidade de represen­tar a diferença que existe entre as fraquezas de todos os homens perante Deus e aquelas de que qualquer homem pode acusar os seus semelhan­tes. Essa representação é considerada muito justa por aqueles que co­nhecem o coração e a natureza dos homens, e a consciência dessa verda­de os ajuda imensamente a ser bondosos e indulgentes em relação aos que lhes ofendem. No entanto, a parábola parece cometer um erro ao tornar o devedor impiedoso responsável por tal volumosa dívida, pois seria impossível a qualquer homem acumular esse montante. Quem já ouviu falar de uma dívida particular que alcançasse, em moeda corrente, a quantia de milhões? Mas a dificuldade é sanada com a sugestão de que o devedor deve ser uma pessoa de elevada categoria, como a princesa que Dario estabeleceu no reino da Pérsia, ou como algum governador de província do Império Romano. Tal autoridade poderia, rapidamente, tornar-se responsável pela imensa soma aqui especificada simplesmente retendo em seu próprio benefício os rendimentos da província quando passassem por suas mãos, em vez de enviá-los ao tesouro real.

Quando nos lembramos do motivo que deu origem ao discurso ao qual essa parábola serve como conclusão, parece bastante certo que Jesus tinha em vista o caso de algum inescrupuloso ministro de estado, culpado do crime de peculato. Os discípulos haviam discutido entre si sobre quem deveria ser, abaixo do Senhor Jesus, o maior no Reino, cada um tendo a ambição de obter para si esse lugar de distinção. Entretanto, seu Mestre oferece à sua consideração o comportamento de uma grande

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autoridade preocupada não com o fiel cumprimento de seu dever, mas com o seu próprio enaltecimento. “Observem”, Ele lhes diz, em outras palavras, “o que fazem os homens que desejam ser famosos! Eles rou­bam os rendimentos de seu rei e abusam das oportunidades oferecidas por sua posição para enriquecer e, enquanto escandalosamente negligen­ciam as suas próprias obrigações, são distintamente minuciosos em rela­ção àquele que de maneira muito inocente, não por fraude mas por infe­licidade, tornou-se seu devedor”.

Assim entendida, essa parábola reproduz fielmente a culpa e o cri­me daqueles que de qualquer forma se encontram animados pelo espíri­to do orgulho e deliberadamente fazem da autopromoção o seu fim primordial, uma classe de pessoas a que, de forma alguma, faltariam representantes. Tais homens, embora sendo de fato pequenos, tornam-se grandes pecadores. Eles não só ficam privados da verdadeira e principal finalidade do homem, que é ter a glória de Deus em sua vida, como deliberadamente roubam do Supremo o que lhe é de direito, duvidam de sua soberania, negam perante Ele a própria responsabilidade sobre os atos que praticam e dizem, levados pelo espírito que os anima: “Quem é o Senhor de nossa vida?” E impossível subestimar a magnitude da culpa desses homens.

O contraste entre os dois credores não é menos impressionante que o contraste entre os dois devedores. O rei perdoa o enorme débito de seu inescrupuloso governador ao receber dele uma simples promessa de pa­gamento enquanto o último exige inexoravelmente receber a insignifi­cante dívida de provavelmente duas ou três moedas do pobre e infeliz subalterno que lhe é devedor, tapando os ouvidos à mesma súplica de adiamento que ele mesmo havia, com tanto sucesso, apresentado ao seu soberano senhor. Aqui também o caráter da parábola parece demasiada­mente forte. O grande credor parece excessivamente leniente pois, um crime como esse, praticado por um governador de província, com toda a certeza não passaria impune, e ele havia sido muito sábio ao conferir pouca importância à promessa de um futuro pagamento feita por um homem que, com ilimitada extravagância, já havia esbanjado tão prodi­giosa fortuna a ponto de não lhe restar nada! Em seguida, esse grande devedor, em seu papel de pequeno credor, parece incrivelmente desuma-

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no, pois até o mais mesquinho, ambicioso e ávido sovina, sem falar de um nobre tão importante, poderia muito bem se envergonhar de de­monstrar tamanha ansiedade por uma soma tão insignificante a ponto de agarrar pela garganta o pobre sujeito e arrastá-lo até a prisão onde deveria permanecer até que sua dívida fosse paga.

Não há dúvida de que essa representação é exagerada; no entanto, está de acordo com a verdade em suas duas partes. Deus realmente trata os seus devedores como o rei tratou o provável governador. Ele leva tempo para se irar e, com grande bondade, cuida daqueles que se arre­pendem do mal após a sua ameaça. Ele dá aos homens oportunidades suficientes para se arrependerem e, através de adiamentos providenciais, aceita promessas de regeneração, embora saiba muito bem que elas não serão cumpridas e que aqueles que prometeram continuarão pecando como antes. Foi assim que Ele lidou com o Faraó, Israel e Nínive, e é assim que Ele trata todos aqueles a quem chama para prestar contas, seja pelo arrependimento na consciência, pela visita de uma enfermidade ou pelo temor da morte, quando exclamam tomados por um sentimento de penitência: “Senhor, sê generoso para comigo, e tudo te pagarei”. Ele concede seu pedido mesmo sabendo que quando o perigo ou a disposi­ção de se arrepender tiver se afastado, a promessa de regeneração será completamente esquecida. A antiga expressão será sempre verdadeira: “Não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos retribuiu segundo as nossas iniqüidades”.

O papel desempenhado pelo impiedoso servo, desumano e abjeto, não seria totalmente fora do comum, embora uma semelhante singulari­dade esteja implícita naquela parte da historia da parábola que represen­ta os companheiros daquele implacável credor, tão chocados e preocu­pados com sua conduta a ponto de denunciá-la ao senhor comum. Não seria impossível encontrar originais desse quadro sombrio até entre os professores da religião cristã que acreditam no perdão dos pecados atra­vés do sangue de Jesus Cristo, e que esperam gozar todos os benefícios da divina misericórdia em seu nome. Na verdade, são precisamente essas pessoas que, segundo supomos, cometeram o crime da falta de clemên­cia na parábola. O credor exigente encontra seu devedor no momento em que acaba de deixar a presença do rei, depois de ter suplicado e

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recebido o perdão de sua própria dívida. Esse detalhe da história serve como uma lição que pode, sem dificuldade, ser adaptada especialmente aos crêem no Evangelho e indica a enormidade de sua culpa. Todos eles, se não foram realmente perdoados, ao menos vivem, com plena consci­ência, em um reino da graça no qual Deus assume a atitude de alguém que está desejoso de que todos se reconciliem consigo e que, com esse propósito, proclama um imerecido perdão a todos aqueles que irão recebê- lo. Nos homens que adotam essa disposição, o espírito da falta de cle­mência é particularmente agressivo. Embora vergonhoso em um pagão — a despeito do exemplo da natureza ter ensinado o dever de ser mise­ricordioso — esse rigor humano, tal como foi retratado aqui, seria total­mente abominável em um cristão. Pense só nisso! Ele se afasta da presen­ça do Rei da graça, levanta-se de uma leitura atenta do Evangelho que fala sobre aquele que recebeu publicanos e pecadores, e até mesmo o pior destes; retira-se da casa de orações onde o precioso Evangelho é estudado, sim, até da mesa da Santa Ceia, onde se celebra o amor que levou o Filho de Deus a pagar a dívida dos pecadores e vai se encontrar com um companheiro que lhe fez alguma ofensa insignificante, agarra-o pela garganta e, com toda truculência, exige uma reparação sob pena de prisão ou coisa pior, caso ela não esteja disponível no momento. Que o nosso mui bondoso Senhor não tenha que dizer, com toda justiça, a esse tipo de pessoa: “Servo malvado, perdoei-te toda aquela dívida, porque me suplicaste. Não devias tu, igualmente, ter compaixão do teu compa­nheiro, como eu também tive misericórdia de ti?” O que poderia esperar aquele perverso, que não mostrou misericórdia, a não ser uma sentença cruel que o entregasse aos seus algozes para ser mantido na prisão e ali suportar terríveis sofrimentos, sem esperança de liberdade, até que tives­se reparado a sua dívida até o último centavo?

No encerramento de seu discurso, Jesus solenemente assegurou aos seus discípulos que esse mesmo destino aguarda aqueles que alimentam um temperamento impiedoso, mesmo que os próprios discípulos sejam a parte culpada. “Assim vos fará também meu Pai celestial, se do coração não perdoardes, cada um a seu irmão, as suas ofensas”18. Palavras bastan­te severas, que estabelecem uma lei de aplicação universal, sem possibili­dade de ser atenuada, mesmo no caso de partes privilegiadas. Caso uma

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certa parcialidade fosse de algum modo admissível, é certo que os doze apóstolos iriam se beneficiar dela, mas para informar que nesse assunto não existiam considerações pessoais, essa lei foi enunciada com uma di­reta e enfática referência a todos eles. E por mais severa que a lei pudesse parecer, Jesus foi suficientemente cuidadoso para mostrar sua, cordial aprovação à aplicação da justiça com rigor “radamantino”*(N. doT.1). Com esse propósito, Ele chama Deus, o Juiz, pelo carinhoso nome de “meu Pai celestial”, como se estivesse dizendo: “O grande Deus e Rei não me parece ter sido indevidamente rigoroso ao decretar tais penalida­des contra os impiedosos. Embora sendo eu o bondoso e misericordioso Filho, aprovo inteiramente essa sentença mesmo que ela tenha sido pro­nunciada contra vocês, se o comportamento que demonstrarem o mere­cer. Não pensem que pelo fato de serem meus seletos companheiros, as violações a essa lei do amor seriam toleradas. Pelo contrário, por serem grandes no reino, em termos de privilégios, é que será especialmente esperada de sua parte uma completa obediência a essas leis fundamen­tais, e estejam cientes de que a sua desobediência será severamente casti­gada. A quem muito é dado, muito mais é exigido. Procurem, então, perdoar a cada um de seus irmãos que tenha transgredido, mas fazei-o realmente, não só na aparência, mas do fu ndo de seus corações”. Através desse grave e transparente discurso, Jesus realmente educava seus discípulos a se tornarem grandes em seu reino, grandes não em orgulho, pretensão ou presunção, mas na leal obediência às ordens de seu Rei, e particular­mente à sua lei do perdão sobre a qual Ele havia insistido com tanta freqüência e seriedade em seus ensinos19. Não podemos deixar de obser­var aqui, ao encerrar nossa exposição sobre o discurso que fala da humil­dade que, nos dias futuros, se os apóstolos não se colocassem acima das mesquinhas paixões, isso não significaria que seu Mestre teria negligen­ciado seu treinamento. Citando as palavras de um estudioso alemão: “Com uma santa determinação que se originou tanto de uma solicitude pela nova comunidade como do zelo pela causa de Deus e dos homens, e ainda pelas verdades essenciais da nova crença na graça divina e na fraternidade da humanidade, Jesus procurou retirar a sombra melancóli­ca dos sentimentos mesquinhos e pecaminosos que Ele via se infiltrando furtivamente para dentro do círculo de seus discípulos, e também

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daqueles cuja influência seria ainda mais difusa e prejudicial depois de sua partida”20. Assim sendo, humanamente falando, pode ter havido um ambiente de apreensão quando tais palavras foram expressas. Não pode­mos acreditar que todo esse zelo tivesse se manifestado em vão, e que os discípulos não o tivessem absorvido totalmente em seu íntimo”21.

Seção IV - O Imposto do Templo: Uma Ilustração do SermãoMateus 17.24-27

Essa história se parece com uma noz que tem a casca dura e seca, mas cuja semente é muito doce. Leitores superficiais não irão encontrar em seu conteúdo nada mais que uma curiosa situação relatada apenas por Mateus, não apenas por sua importância intrínseca, mas simples­mente porque, sendo ele um antigo coletor de impostos, provavelmente a tivesse apreciado sobremaneira. E a história de um peixe extraordinário que aparece na hora de pagar o imposto trazendo o dinheiro na boca. Por outro lado, podem haver até mesmo leitores piedosos que, sem a disposição de reconhecê-la, sintam-se secretamente escandalizados pelo milagre que foi relatado, não apenas por ser um afastamento da regra constantemente observada por Jesus de não utilizar seu divino poder em auxílio próprio, mas como a expressão de um jocoso sentido de contra- senso, que lembra uma daquelas grotescas figuras que encontramos nas antigas catedrais, nas quais os artesãos se divertiam ao mostrar suas ha­bilidades e promovendo o seu próprio divertimento.

Quebrando a noz da história, no lugar da semente vamos descobrir em seu interior a exibição extremamente patética de um ato de humilda­de e de humilhação do Filho do Homem que aqui nos aparece exposto à indignidade de ser cobrado pelos impostos devidos ao templo. Ele se encontrava tão despreocupado com as coisas materiais que provavelmen­te não tivesse em mãos a soma exigida, embora seu valor fosse apenas quinze centavos; no entanto, sem alegar pobreza, nem insistir que lhe fosse dispensada a regalia de sua isenção, atendeu tranqüilamente às exi­gências dos coletores, de uma maneira que, segundo admitimos, era bas­tante estranha, mas de qualquer forma singularmente humilde e pacífi­ca22. Na verdade, o presente relato nos proporciona uma admirável ilus­tração da doutrina ensinada no discurso sobre a humildade. Por anteci-

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pação, o maior do Reino nos dá um exemplo da modéstia que inculcava em seus discípulos e mostra como deveriam exercitar uma santa e amável solicitude ao evitar ofender não somente os pequenos que pertencem ao Reino, mas também aqueles que ainda não fazem parte dele. Ele não se vale de sua dignidade como Filho de Deus, embora a mensagem do céu, proferida pelos sagrados lábios, ainda esteja soando em seus ouvidos. Por­tanto, consente em ser tratado como um vassalo ou um estranho que dese­ja viver pacificamente ao lado de homens cujas maneiras Ele não aprecia, e que por Ele não sentem qualquer boa disposição, embora seguisse as nor­mas humanas em todas as coisas que eram lícitas. Resumindo, considera­mos essa curiosa cena que ocorreu em Cafarnaum (tendo como pano de fundo o monte da transfiguração!) como um frontispício histórico ao ser­mão que estamos estudando. Sentimo-nos justificados por assumir esse ponto de vista a seu respeito e por considerar que, embora tenha ocorrido antes do sermão ter sido proferido, a cena aconteceu depois do diálogo que forneceu esse texto ao pregador. Os discípulos iniciaram essa discussão ao deixarem o monte da transfiguração, enquanto a visita dos coletores de impostos aconteceu quando chegaram a Cafarnaum. E claro que Jesus sabia a respeito dessa discussão por ocasião da visita, embora ainda não os tivesse advertido expressamente contra ela. Seria um exagero admitir que o conhecimento daquilo que estava acontecendo levou-o a transformar a situação em uma ocasião para ensinar, por meio da prática, a mesma lição que pretendia inculcar através de palavras?23

Segundo acreditamos, longe de ser injustificada, essa suposição é bastante necessária a fim de tornar mais compreensível a conduta de Cristo nessa ocasião. Aqueles que, de passagem, deixam de considerar essa discussão, não estão adotando um ponto de vista adequado para analisar o episódio de Cafarnaum à sua luz natural e, inevitavelmente, cairão em um mal-entendido. Por exemplo, serão forçados a aceitar que Jesus contestou seriamente o pagamento dos impostos do templo, como se não fossem legalmente obrigatórios, ou que Ele tenha se afastado do curso natural de sua humilhação como o Filho do Homem. Mas não ocorreu nem uma coisa, nem outra. A lei de Moisés determinava que todo homem acima de vinte anos deveria pagar a soma de meio “siclo” a título de expiação de sua alma e para cobrir as despesas relacionadas ao

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serviço do tabernáculo, que era prestado a Deus para o benefício co­mum de todos os israelitas. E Jesus, sendo judeu, tinha a obrigação de obedecer a essa lei especial como qualquer outro. Também não existia qualquer indignidade peculiar, de grau ou espécie, envolvida na obedi­ência a essa lei. Não há dúvida de que representava uma grande indigni­dade para o Filho de Deus pagar impostos para a manutenção da casa que pertencia a si mesmo e a seu Pail Tudo que Ele disse a Pedro, indi­cando o contra-senso desse estado de coisas, era de uma verdade sobera­na. Mas não encontramos esse contra-senso apenas aqui; ele está presen­te em toda a experiência terrena de nosso Senhor. Sua vida, em todos os aspectos, apresentou uma analogia diferente quando comparada à vida dos filhos dos reis. Apesar de ser o Filho, aprendeu a obedecer; apesar de ser o Filho, não recebeu ensinamentos mas ensinou; apesar de ser o Filho tornou-se vassalo da lei, não apenas da lei moral mas da lei cerimonial: foi circuncidado, tomou parte no culto do templo, freqüentou as festas sagradas e ofereceu sacrifícios, embora tudo isso fosse apenas uma som­bra das coisas verdadeiras das quais Ele próprio é a essência. Certamen­te, em uma vida tão repleta de indignidades e contra-sensos — e que foi, na verdade, uma grande indignidade do começo ao fim — não represen­tava muita coisa ser obrigado a fazer um pagamento anual da soma in­significante de quinze centavos em benefício do templo! Aquele que com maravilhosa paciência suportou tamanhas afrontas, não poderia hesitar e cometer um deslize perante uma questão de tão pouco valor. Aquele que nada fez para destruir o templo e colocar um ponto final na adoração legal antes do tempo determinado, não poderia participar da política ignóbil de matar de fome seus funcionários ou deixar de suprir os fundos necessários para manter o sagrado edifício em boas condi­ções. Ele poderia dizer abertamente o que pensava sobre os abusos ecle­siásticos existentes, mas não o fez.

A verdade é que as palavras que Jesus dirigiu a Simão não eram um argumento contra o pagamento do imposto, mas explicaram o significa­do e o motivo pelo qual deveria ser pago. Elas eram uma lição para Simão e, através dele, aos outros discípulos, e não uma defesa legal con­tra as exigências do coletor de impostos. Mas em relação a essa discus­são, Jesus provavelmente deve ter adotado a maneira mais tranqüila de

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fazer com que o imposto fosse pago, como um fato natural e lógico, sem tecer comentários sobre o assunto. A imediata resposta afirmativa de Pedro aos coletores parece sugerir que Ele já tivesse agido dessa maneira anteriormente. O discípulo disse “sim” como se soubesse o que seu Mestre havia feito nos anos anteriores, e entendendo ser algo natural que naquele momento o seu procedimento fosse o mesmo. Mas, na presente circunstância, Jesus não considerou oportuno que seus discípulos consi­derassem seu comportamento em relação ao imposto como um simples procedimento lógico, pois desejava que entendessem e refletissem sobre o significado moral e o motivo de seu ato, para a sua própria orientação e instrução.

O Senhor desejava que compreendessem, em primeiro lugar, que era um contra-senso e uma humilhação para Ele pagar as obrigações do templo, semelhante àquela que sofreria o filho de um rei por ter que pagar impostos para a manutenção do palácio e da família real. Assim, não era natural que Ele tivesse que pagar, da mesma forma que não era natural que Ele se tornasse homem e, por assim dizer, deixasse para trás a sua condição real e assumisse a posição de um camponês, o que era um ato de voluntária humilhação e que correspondia apenas a um item no curso das humilhações as quais havia espontaneamente se submetido desde o seu nascimento até a sua morte e ressurreição. Ele desejava que os seus discípulos pensassem nessas coisas na esperança de que, ao medi­tar sobre elas reprovassem o orgulho, a pretensão e a arrogância que haviam dado origem àquela mesquinha discussão a respeito de posições de distinção. Na verdade, Ele lhes diria: “Se eu fosse como vocês, ávido por honrarias e inclinado a defender a minha importância, insistiria em ser tratado com respeito e responder de um modo orgulhoso a esses coletores de impostos. Por que estão me perturbando a respeito dos impostos para o templo? Por acaso não sabem quem sou? Sou Cristo, o Filho de Deus; o templo é a casa de meu Pai, e como seu Filho estou livre de todas as obrigações servis. Mas, vejam bem, não estou fazendo nada disso. Mesmo com as honras com que fui coberto no monte da transfiguração ainda frescas em minha memória, com a consciência de quem eu sou, de onde venho e para onde vou, obedecendo até o âmago de minha alma, submeti-me a ser tratado como um simples judeu, dei-

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xando minhas honrarias serem suspensas e sem fazer quaisquer exigênci­as de ser reconhecido, exceto aquelas que fossem voluntariamente de­monstradas. O mundo não me conhece, e enquanto isso não acontecer, admito que me façam, como fizeram a João, o que desejarem. Se os governantes soubessem quem eu sou teriam vergonha de me pedir os impostos do templo, mas porque me desconhecem, eu aceito e suporto todas as indignidades que são o fruto de sua ignorância”.

Jesus disse, verdadeiramente, tudo isso aos seus discípulos, primeiro advertindo sobre o fundamento sobre o qual uma recusa a pagar as “didracmas” poderia ser plausivelmente defendida e, em seguida, provi­denciando o pagamento. A forma desse pagamento também foi planeja­da por Ele para reforçar a lição. Ele não disse simplesmente a Simão: “V á e apanhe peixes para que com os recursos obtidos através de sua venda possamos satisfazer os nossos credores”. Ele lhe deu instruções como o Senhor da natureza, a quem todas as criaturas da terra e do mar estão sujeitas e a quem todos os seus movimentos são familiares, embora tenha se humilhado a ponto de precisar dos serviços de uma das mais inferiores delas. Ao evocar de sua onisciência as instruções que deu ao discípulo, Ele o fez de uma maneira que nunca tinha usado antes ou iria usar depois, isto é, arquitetou um milagre em seu próprio benefício. Entretanto, essa exceção tinha a mesma razão que a regra, portanto ser­via para comprová-la. Jesus se absteve de usar suas faculdades divinas em seu próprio benefício, a fim de não prejudicar a integridade de sua hu­milhação, para que a sua vida humana pudesse ser uma legítima e verda­deira vida de sofrimento, isenta de qualquer paliativo originado do ele­mento divino de seu ser. Mas qual foi o efeito da emissão desse clarão de conhecimento divino nas instruções que deu a Pedro? Prejudicar a inte­gridade de sua humilhação? De modo algum; apenas tornou-a clara­mente conspícua. Ele estava dizendo a Simão e a nós, que temos ouvidos para ouvir: “Observe quem pagou esse imposto e a dificuldade a que foi reduzido a fim de pagá-lo. Foi aquele que conhece todas as aves das montanhas e todos os animais que atravessam os mares!”

O outro ponto ao qual Jesus desejava fixar a atenção de seus discípu­los era a razão que o havia levado a adotar a política da submissão àquilo que era em si mesmo uma indignidade, isto é, evitar dar origem a qualquer

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ofensa: “Mas, para que não os escandalizemos”. Entendemos que nesse caso havia também outras razões para a sua conduta. Havia outras razões muito abrangentes que poderiam ser aplicadas à sua experiência de humi­lhação como um todo, e a esse pequeno item podemos acrescentar um particular, um relato completo do que seria exatamente uma resposta à grande pergunta colocada por Anselmo: Cur Deus Homo, isto é, “Por que Deus tornou-se homem?” Não desejamos entrar aqui nessa grande ques­tão e preferimos nos restringir à observação de que embora a razão que Jesus alegou a Simão para o pagamento do imposto do templo não fosse a única, ou mesmo a principal, era aquela que, para o bem dos discípulos, Ele considerou como a mais oportuna. O Senhor estava prestes a fazer aos discípulos um discurso cujo tema estava intimamente ligado a ofender e ser ofendido e desejava que todos eles, principalmente o discípulo mais impetuoso, observassem em primeiro lugar como Ele próprio havia toma­do todo cuidado para não ofender — e que lugar proeminente o desejo de evitar ofender ocupava entre todos os seus motivos.

O motivo que Cristo declarou ao pagar o imposto expressa admira­velmente a sua humildade e o seu amor. A comprovação de sua humilda­de é que não existe aqui qualquer palavra sobre ter se sentido ofendido. Seria muito fácil e plausível para Ele adotar a posição de alguém que fazia muito bem em ficar zangado! “Eu sou o Cristo, o Filho de Deus”, Ele poderia ter dito, “e através de palavras e atos já provei essa minha afirmação em centenas de milagres; no entanto, eles obstinadamente ainda se recusam a me reconhecer, a mim, um pobre peregrino sem teto. Mas, mesmo sabendo disso, exigiram o tributo, talvez mais pela intenção de me irritar e de me insultar do que propriamente de recolher o dinheiro. E com que finalidade coletam esses impostos? Para sustentar uma insti­tuição religiosa completamente decadente, para reparar um edifício con­denado à destruição, para manter sacerdotes escandalosamente ineficientes nas virtudes cardeais da integridade e da verdade e cuja própria existên­cia é uma maldição para a nação. Não posso, em sã consciência, pagar uma “didracma”, nem mesmo uma moeda, a título de contribuição para tais objetivos”.

O Senhor humilde não assumiu essa atitude, mas deu o que lhe haviam pedido sem queixas, má vontade ou injúrias, e a sua conduta

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serve como lição aos cristãos de todas as épocas e, particularmente, da nossa. Ela ensina aos filhos do reino a não reclamar porque o mundo não reconhece a sua posição ou dignidade. O mundo não o reconheceu quando Ele veio, mesmo sendo o eterno Filho de Deus, portanto não é de admirar que não reconheça os seus irmãos mais novos. O mundo não acredita no verdadeiro Reino dos céus e seus cidadãos não devem se admirar perante qualquer falta de respeito em relação a cada um deles, individualmente. A manifestação de serem filhos de Deus é uma das coisas que os cristãos aguardam cheios de esperança, pois no presente ainda não desfrutam da total condição de filhos, mas às vezes suportam fardos que deveriam ser destinados aos estranhos; ao invés de serem dis­pensados do ônus das obrigações, devem esperar a opressão, e devem se sentir agradecidos se forem colocados no mesmo nível das demais cria­turas e obter os benefícios da lei da tolerância.

Assim como a humildade de Jesus foi demonstrada por Ele não ter se sentido ofendido, da mesma forma seu amor se manifestou por sua solicitude de evitar ofender. Ele estava disposto a, se possível, se recon­ciliar com as pessoas que, em sua maioria, o haviam tratado o tempo todo como se fosse um gentio e um publicano e que, em breve, como sabia muito bem, iriam tratá-lo como um criminoso. Como o Filho de Deus se parecia com o Pai em seus atos! Como foi perseverante em manter o seu preceito, em toda a sua conduta, enquanto esteve aqui na terra! Pois qual era o seu propósito ao vir a esse mundo, qual era o seu constante empenho quando aqui chegou a não ser eliminar as ofensas e colocar um ponto final nas inimizades — reconciliar os pecadores com Deus e entre si mesmos? Para alcançar esses objetivos Ele se revestiu de carne e foi crucificado. Sua vida terrena foi toda um só exemplo — uma vida repleta de um humilde amor.

“Mas para que não os escandalizemos”, disse Jesus, usando o plural para dar a entender que queria mostrar que a sua conduta deveria ser imitada pelos doze discípulos e por todos os seus seguidores. Como a igreja e o mundo seriam felizes se isso fosse feito! Quantas ofensas pode­riam ser evitadas se o espírito conciliador do Senhor sempre inspirasse aqueles que usam o seu nome! Quantas ofensas poderiam ser eliminadas se esse espírito agora se derramasse abundantemente sobre os cristãos de

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todas as denominações e em todas as partes do mundo! Se o motivo “para que não os escandalizemos” aumentasse intensamente em todas as mentes, quantas discórdias poderiam ser sanadas, quantas uniões pode­riam acontecer! Uma igreja em âmbito nacional estabelecida moralmen­te, se não legalmente, em unidade e paz, poderia ser instituída, na pre­sente geração, em países que têm fechado as portas ao evangelho. Esta seria, certamente, uma realização a ser piedosamente almejada. Façamos votos de que isso aconteça; oremos por isso; alimentemos nosso espírito para podermos cooperar para que se torne possível; tenhamos esperança mesmo que a nossa esperança contrarie as probabilidades; mesmo apesar da crescente tendência, de todos os lados, de tentar nos fazer compla­centes na direção oposta.

Seção V - A Interdição do Homem que Expulsava Demônios: O utra Ilustração do Sermão

Marcos 9.38-41; Lucas 9.49, 50

Os discursos de nosso Senhor não eram palestras contínuas e ininterruptas a respeito de temas formalmente anunciados, como temos o hábito de ouvir; ao contrário, em sua maioria tinham algum elemento da natureza dos diálogos de Sócrates, nos quais Ele era o orador princi­pal, os discípulos tomavam parte fazendo perguntas, uma exclamação era pronunciada e um caso de consciência era apresentado. No discurso ou diálogo sobre a humildade, dois dos discípulos agiram como interlocutores, isto é, Pedro e João. Como vimos, quase ao seu final o primeiro deles faz uma pergunta a respeito do perdão às injúrias, e em seu início o outro discípulo, João, conta um fato trazido à sua lembrança pela doutrina do Mestre sobre o respeito que se deve ter aos pequeninos em seu nome, e no qual a verdade aqui estabelecida parece encontrar algum suporte. Os fatos percebidos por Jesus levaram-no a fazer algu­mas reflexões que acrescentaram interessantes ilustrações ao significado de sua doutrina. Ele estava fazendo uma demonstração valendo-se de uma classe especial de casos ou questões.

A história contada por João tinha o propósito de relatar que em certa ocasião ele e seus irmãos encontraram um desconhecido ocupado em expulsar os demônios e que o haviam proibido de fazê-lo porque,

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embora estivesse usando o nome de Jesus ao expulsar o demônio, ele não acompanhava ou não se identificava com os doze discípulos. Não está especificado em que particular ocasião isso ocorreu, mas podemos con- jeturar, com muita probabilidade, que esse incidente tenha sido uma reminiscência da missão na Galiléia, durante a qual os discípulos se de­dicaram a curar os enfermos, expulsar espíritos malignos e pregar o evan­gelho do Reino.

João, como podemos observar, não repudia o fato de ter sido con­juntamente responsável pelo arbitrário procedimento que está relatan­do, mas fala como se todos os doze tivessem agido unanimemente nessa questão. Pode ser que alguém se surpreenda ao encontrá-lo, o apóstolo do amor24, praticando uma ação tão pouco caridosa, mas essa surpresa estará fundamentada apenas em considerações superficiais sobre o seu caráter, assim como na ignorância das leis sobre o crescimento espiritu­al. Nesse momento, João ainda não é aquele que viria a ser, tão diferente de sua futura personalidade como uma laranjeira em seu segundo ano difere da mesma laranjeira em seu terceiro e último ano de crescimento. Ao final, o fruto do Espírito iria amadurecer no discípulo e se transfor­mar em algo doce e maravilhoso; mas nesse ínterim ele ainda está verde, amargo e servindo apenas para nos fazer ranger os dentes. Mesmo agora, ele é piedoso em seu espírito, meigo e profundo em sua ligação com Jesus e escrupulosamente honesto em todos os seus atos; porém mostra- se, ao mesmo tempo, fanático, intolerante e ambicioso. João já havia exercido o papel de um poderoso homem da igreja ao reprimir o desobe­diente que expulsava demônios, e muito em breve iremos vê-lo, ao lado de seu irmão, como um perseguidor que propõe implorar o fogo do céu para destruir os inimigos de seu Senhor. Ainda outra vez, iremos encontrá- lo, junto com o mesmo irmão e sua mãe, envolvido em uma ambiciosa trama para assegurar aqueles lugares de proeminência no Reino de Deus, sobre os quais os doze vinham discutindo.

Ao recusar-se a reconhecer o companheiro que expulsava demônios como um irmão, embora humilde, os discípulos caminharam em terre­no muito duvidoso e mesquinho. O teste que aplicaram era puramente exterior. Não perguntaram que espécie de homem poderia ser a pessoa que haviam interditado, bastava que não estivesse em sua companhia,

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como se todos os que pertencessem ao seu maravilhoso círculo — Judas, por exemplo — fossem bons e todos os que estivessem fora dele — sem a exceção de Nicodemos — fossem completamente descrentes em rela­ção ao Senhor Jesus Cristo! A partir de sua exibição, duas boas coisas podem ser ditas a respeito daquele a quem silenciaram; ele estava bastan­te absorto no que fazia e parecia ter a mais devotada consideração por Jesus, pois ao expulsar os demônios invocava o seu nome. Na verdade, esses não eram sinais decisivos de um discipulado, pois era possível que um homem expulsasse demônios apenas por interesses pecuniários, e usasse o nome de Cristo porque esse nome já houvesse se mostrado comprovadamente muito bom para ser invocado; mas os discípulos de­veriam, pelo menos, ter considerado esse fato como uma evidência a favor de alguém cuja conduta estavam avaliando. Julgando pelo aconte­cido, é provável que o emudecido que expulsava demônios fosse um homem sincero e honesto, cujo coração havia recebido a marca do mi­nistério de Jesus e de seus discípulos e que desejava imitar seu zelo ao praticar o bem. E até possível que fosse mais que isso — um homem possuidor de um dom espiritual maior que o dos seus censores, algum profeta provincial, que ainda não havia se tornado famoso. Em vista de tal possibilidade, como foi absurdo aquele mesquinho e ostensivo crité­rio: “Porque não nos segue!”

A título de ilustração sobre como essa maneira de julgar pode levar a um final infeliz, podemos introduzir aqui um pequeno fato ocorrido na história do célebre Sir Matthew Hale, cuja obra Contemplations é bas­tante conhecida daqueles que lêem livros de cunho espiritual. Richard Baxter relata que os bons cidadãos que viviam na mesma região do país do ilustre juiz não guardavam uma opinião muito favorável sobre seu caráter religioso depois que se aposentou da corte de justiça, e tinham a noção de que embora fosse realmente um homem de arraigada moral, ainda não fo sse convertido. Essa é uma conclusão muito séria para se chegar em relação a uma criatura e levanta uma certa curiosidade para sabermos sobre que fundamento se baseava esse juízo. O autor da obra Saint's Rest nos dá uma informação muito útil sobre esse assunto tão singular. Se­gundo as suas palavras, os piedosos moradores dos arredores de Acton classificavam o antigo juiz entre os incrédulos porque não freqüentava

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suas reuniões semanais particulares de oração! Era a velha história dos doze discípulos e o homem que expulsava demônios, sob uma nova or­dem puritana. E desnecessário dizer que Baxter não simpatizava com a opinião severa e pouco caridosa de seus irmãos menos esclarecidos, e seus conceitos traduzem o amável, benigno e caridoso espírito da matu­ridade cristã. “Eu”, ele completa depois de relatar o fato acima descrito, “que já li e ouvi suas graves expressões de preocupação com a eternida­de, e constatei seu amor por todos os homens bons e a idoneidade de sua vida, adquiri uma impressão sobre a sua piedade como sendo muito melhor que a minha”25.

Ao silenciar o homem que expulsava demônios, os doze discípulos estavam provavelmente influenciados por uma mistura de motivos — em parte ciúme e em parte escrúpulos da consciência. Imaginamos que não gostavam da idéia de alguém, que não fosse um dentre eles mesmos, usar o nome de Cristo, e desejavam o monopólio do poder conferido por esse nome para expulsar os espíritos malignos. Além disso, talvez acreditassem ser improvável, ou mesmo impossível, que alguém afastado de sua companhia pudesse ser sinceramente devotado ao seu Mestre.

Na medida em que estivessem agindo sob a influência do ciúme, a conduta em relação ao homem que expulsava demônios era moralmente idêntica à sua recente discussão sobre quem deveria ser o mais importan­te. Esse mesmo espírito de orgulho se revelou nas duas ocasiões, em diferentes estágios. Ao silenciar o homem que expulsava demônios, esta­vam exibindo uma arrogância semelhante à de pessoas que conferem à sua igreja a alegação de ser a exclusiva igreja de Cristo. Na discussão que travaram entre si, os discípulos praticaram, em pequena escala, o jogo daqueles eclesiásticos ambiciosos e interesseiros que competem por lu­gares de honra e poder. Nesse caso, os doze discípulos disseram real­mente ao homem a quem encontraram expulsando os demônios: Somos todos membros do Reino e servos do Rei, mas merecemos um lugar mais importante que o seu, mesmo que você seja um prelado assentado em um trono.

Uma vez que a intolerância dos doze devia-se a um honesto senso de escrúpulos, ela seria merecedora da mais respeitosa consideração. O apelo da consciência, quando sinceramente proferido, sempre deve ser ouvido com

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concentrada atenção, mesmo quando estiver equivocado. Enfatizamos a palavra “sinceramente” porque não podemos nos esquecer de que existe muito escrúpulo que não é sincero. Muitas vezes a consciência é usada como pretexto, por homens orgulhosos, irritadiços e obstinados, para pro­mover seus fins particulares. O orgulho, alguém já disse, falando sobre discussões doutrinárias, “é o grande inimigo da moderação. Ele faz com que os homens insistam em sua opinião para transformá-las em funda­mentos. Homens orgulhosos, que estudam profundamente algum aspecto adicional da divindade, lutam para torná-lo necessário à salvação a fim de aumentar o valor de seu mérito e esforço; e tentam fazer com que seja fundamental à religião, para que também seja fundamental à sua reputa­ção”26. Essa inteligente observação também se aplica a outras coisas além da doutrina. Pessoas obstinadas e pragmáticas irão tornar fundamental para a religião todas as coisas sobre as quais já tenham uma opinião defini­da e, se pudessem fazer tudo a seu modo, excluiriam da igreja todos aque­les que não os apóiam até nos mais minuciosos detalhes da prática do credo. Mas também existe uma consciência sincera e que é mais comum do que muitos imaginam. Existe uma certa tendência a uma cobrança intolerante, e um severo julgamento durante o estágio imaturo de toda vida fervorosa; pois a consciência de um jovem discípulo é como o fogo na madeira verde, que primeiro solta muita fumaça antes de se consumir em uma chama brilhante. E um cristão cuja consciência esteja nesse estágio deve ser tratado como aquele fogo que tarda para pegar: ele deve ser levado gradualmente a entender, isto é, até que sua consciência se livre da fumaça amarga e nebulosa e se torne uma pura, fecunda e calorosa chama de zelo temperada pela caridade.

Como os discípulos estavam desejando receber instruções, somos levados a acreditar que a consciência deles fosse escrupulosa. Disseram ao Mestre o que haviam feito para poder aprender dele se estavam certos ou errados. Essa não é a maneira de agir de homens cujo apelo da cons­ciência seja apenas um pretexto.

Essa instrução, que os discípulos sinceramente desejavam, foi-lhes transmitida por Jesus sob a forma de um julgamento claro e definido sobre esse caso, ao qual acrescentou uma razão: “Não o proibais”, Ele respondeu a João, “porque quem não é contra nós é por nós”27.

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A razão atribuída a esse conselho de tolerância lembra outra máxi­ma proferida por Jesus na ocasião em que os fariseus lançaram contra Ele a profana acusação de expulsar demônios com a ajuda de Belzebu28. Superficialmente, essas duas expressões têm um aspecto de contradição em que uma parece dizer: A grande questão não é ser decididamente contra, e a outra: A grande questão é ser decididamente a favor. Mas ambas ficam conciliadas pela verdade que lhes é subjacente — de que a questão essencial ao caráter espiritual é a predisposição do coração. Aqui Jesus está dizendo: “Se o coração de um homem estiver comigo e, se por ignorância, erro ou ausência daqueles que são declaradamente meus amigos ele parecer estar contra mim, então ele realmente será por mim”. No outro caso Ele queria dizer: “Se um homem não estiver comigo em seu coração (como no caso dos fariseus) e, pela sua ortodoxia e zelo parecer estar ao lado de Deus, e portanto ao meu lado, ele realmente estará contra mim”.

Ás palavras que acabamos de comentar, Marcos acrescenta outras pronunciadas pelo Senhor Jesus naquele momento: “Porque ninguém há que faça milagre em meu nome e possa logo falar mal de mim”. Podemos ouvir aqui a voz da sabedoria unida à da caridade. A ênfase está na palavra grega tacu que significa fácil ou prontamente. Em pri­meiro lugar, essa palavra envolve a aceitação de que o caso que está sendo considerado poderia acontecer, uma aceitação exigida pela verdade his­tórica, pois tais casos realmente aconteceram em dias posteriores. Lucas, por exemplo, fala de certos judeus vagabundos (muito bem denomina­dos em todos os sen tido s) que resolveram lan çar sobre os endemoninhados o nome do Senhor Jesus sem possuir qualquer fé pes­soal nele, mas simplesmente a título de comércio, tornando-se abominá­veis traficantes da expulsão dos demônios, a quem até os demônios ex­pressavam seu desprezo, exclamando: “Conheço a Jesus e bem sei quem é Paulo; mas vós, quem sois?”29. Nosso Senhor, sabendo de antemão que tais casos iriam acontecer, e estando familiarizado com as profundezas da depravação humana, nada podia fazer a não ser admitir a possibilida­de de o homem referido por João, que expulsava demônios, estar sendo incentivado por motivos indignos. Mas, ao fazer essa admissão, o Se­nhor tomou o cuidado de indicar que, de acordo com o seu juízo, o caso

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em questão era muito improvável e que era difícil que alguém fizesse milagres em seu nome e falasse mal dele. O Senhor também expressou que desejava que os seus discípulos ficassem de prontidão para não acre­ditar, fácil e prontamente, que qualquer homem pudesse ser culpado de tal pecado. Até que houvessem razões suficientes para pensar o contrá­rio, Ele desejava que todos considerassem a aparência exterior desse ato como um sinal de sincero amor e fé (o que poderiam fazer facilmente, pois nada havia a ser ganho pelo uso ou profissão do nome de Cristo, a não ser o desagrado daqueles que tinham o caráter e a vida de outros homens sob seu próprio poder).

Essas foram sábias e bondosas palavras proferidas por Jesus em re­ferência ao caso levado por João para seu julgamento. Seria possível ex­trair dessas palavras uma aplicação geral para a igreja de todos os tem­pos, ou seriam especialmente aplicáveis à nossa era em particular? Essa é uma questão sobre a qual devemos falar com certa desconfiança, pois, enquanto todos se curvam perante o julgamento de Jesus a respeito da conduta de seus discípulos, tal como está registrado nos Evangelhos, existe uma grande divergência entre os cristãos quanto às inferências que podem ser extraídas a partir dela nos casos em que a sua própria conduta está envolvida. Entretanto, as seguintes reflexões poderiam seguramente ser feitas.

I ) Podemos aprender, através das palavras discretas e amáveis do grande Mestre, a tomar cuidado com conclusões apressadas sobre o es­tado espiritual de um homem se nos basearmos apenas em sinais mera­mente exteriores. Não fale como a igreja de Roma: "Fora da confissão não existe possibilidade de salvação ou benevolência”, mas, ao contrário, admita que mesmo em uma comunhão nem tão sincera pode haver mui­tas pessoas desenvolvendo um verdadeiro fundamento, embora, na mai­oria das vezes, com materiais facilmente combustíveis; e mais ainda, que Cristo pode ter muitos amigos fora dos limites de todas as igrejas. Não pergunte como Natanael: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?”, mas lembre-se de que as melhores coisas podem surgir de refúgios inespera­dos. Não se esqueça de receber os estranhos, pois alguns, sem perceber, já receberam anjos. Tenha em mente que, ao aceitar a expressão “Porque não nos segue” em se tratando de ninharias e caprichos, podemos estar

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provocando a Deus por ter concedido o seu Santo Espírito àqueles a quem expulsamos da igreja com a finalidade de remover sua influência de sobre nós em vista de nosso orgulho, exclusividade e obstinação. Isto poderá transformar o nosso credo em uma prisão dentro da qual ficare­mos isolados da companhia dos santos e condenados a experimentar a humilhação de ver, através das grades de uma cela, o povo de Deus cami­nhando livremente, enquanto permanecemos presos dentro de uma ca­deia.

2 ) Em vista do veredicto: “Não lho proibais”, devemos ler, com o coração cheio de tristeza e pesar, muitas páginas da história da igreja nas quais o espírito predominante é o dos doze discípulos, ao invés do Espí­rito de seu Mestre. Podemos dizer, com toda confiança, que caso o Es­pírito de Cristo habitasse mais abundantemente sobre aqueles que levam o seu nome, muitas coisas na história teriam sido diferentes. Separatis­mo, censura, perseguições e intolerância ao inconformismo não teriam sido tão comuns, o Conventicle Acts e o Five-Mile Acts não teriam trazido vergonha aos estatutos do Parlamento Inglês; a cela de Bedford não teria tido a honra de receber o ilustre sonhador da obra Pilgrim’s Progress como prisioneiro; Baxter e Livingstone, de Ancrum, assim como milhares de outros que pensavam como eles, cujas palavras entusiasmaram multi­dões, levando-as a uma nova vida espiritual, não teriam sido expulsos de suas igrejas e de sua terra natal, e proibidos sob o risco de severas penas de pregar aquele evangelho que tanto amavam e compreendiam, e pode­riam gozar dos benefícios daquela lei de tolerância que, com tanto cari­nho, haviam transmitido a nós, seus filhos.

3) Esse estado de fracionamento da igreja sempre foi causa de des­gosto para os homens justos e bons, e muitas tentativas têm sido feitas para sanar esse mal através de projetos de união. Todas as sinceras em­preitadas que tenham em vista reparar os cismas, que desde os dias da Reforma se multiplicaram com tanta profusão a ponto de se tornar o opróbrio do Protestantismo, merecem nossa mais calorosa simpatia e nossas mais fervorosas orações. Mas não podemos fechar os olhos ao fato de que, por causa da fraqueza humana, tais projetos estariam sujei­tos ao fracasso, pois é extremamente difícil conseguir que uma comuni­dade inteira, que abriga homens de diferentes temperamentos e em dife­

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rentes estágios de crescimento cristão, adote a mesma opinião em rela­ção aos termos relacionados à comunhão. Perguntamos, então, qual se­ria o dever dos cristãos nesse ínterim? Podemos ter a resposta através das palavras judiciosas de nosso Senhor proferidas no caso do homem que expulsava demônios: Se aqueles que não estão em nossa companhia não podem ser trazidos à mesma organização eclesiástica, vamos então ad­miti-los de coração como se fossem nossos companheiros no trabalho do discipulado e aproveitar todos os caminhos legítimos e disponíveis para mostrar que prezamos infinitamente mais aqueles que verdadeiramente amam a Cristo, qualquer que seja a sua igreja, do que aqueles que estão eclesiasticamente conosco, mas que em vida e espírito não estão com Cristo, mas contra Ele. Dessa forma teremos o conforto de sentir que, embora separados dos amados irmãos, não fomos segregados por ne­nhum cisma e podemos falar sobre a divisão da igreja como um fato que não desejamos e que meramente suportamos porque nada podemos fa­zer a esse respeito.

Muitas pessoas que se dizem religiosas são culpadas neste assunto. Existem cristãos, e não poucos, que não acreditam nesses dois artigos do credo dos apóstolos: “a santa igreja universal” e “a comunhão dos san­tos”. Pouco ou nada se preocupam com aqueles que estão fora do terri­tório de sua própria comunidade religiosa, praticam exemplarmente a bondade fraternal, mas não têm o espírito da caridade. Sua igreja é o seu clube, no qual gozam do conforto de se associar com um seleto número de pessoas cujas opiniões, fantasias, distrações e políticas eclesiásticas estão totalmente de acordo com as suas e tudo que se encontra no vasto mundo exterior é considerado com fria indiferença, se não com apaixo­nada aversão ou desdém. Esta é uma das diferentes formas pela qual se manifesta o espírito da legalidade religiosa, tão prevalecente entre nós. O espírito da adoção é o verdadeiro espírito cristão, enquanto o espírito legalista é divisor, sectário, multiplica os fundamentos e transforma es­crúpulos em princípios, produzindo, dessa forma, cada vez mais novos “clubes” e seitas religiosas. Não há dúvida de que um clube, eclesiástico ou outro qualquer, é uma coisa muito agradável em termos de luxo, mas devemos nos lembrar que, além do clube, incluindo-se todos os clubes, existe uma grande comunidade cristã. Esse fato deve ser mais e mais

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reconhecido para que a vida da igreja não se torne uma simples tolice. Duas coisas devem acontecer para ficarmos a salvo dessa fatalidade. Ou as pessoas religiosas superarem seu excessivo amor pela mera denominação do companheirismo de clube, que exige uma absoluta uniformidade de opiniões e de práticas, ou uma espécie de Conselho Anfictiônico* (N. do T.2) deverá ser colocado em ação para compensar o sectarismo, através do qual todos os sectários participantes encontrarão um lugar comum para discutir grandes questões da religião universal que abrange a moral, as missões, a educação e a defesa das verdades essenciais.Tal conselho (que poderíamos considerar utópico) teria em sua constituição muitas ques­tões em aberto. No antigo conselho grego os homens não eram conheci­dos como atenienses ou espartanos, mas apenas como gregos, e em nos­sa moderna utopia seriam conhecidos apenas como cristãos e não como episcopais, presbiterianos, independentes, clérigos ou dissidentes. Na verdade, ele formaria um único corpo, como a Evangelical Alliance, de ori­gem recente, criada pelo anseio de uma expressão mais visível do senti­mento de universalismo. No entanto seria diferente deste, amador, eleito e patrocinado (até certo ponto) por pessoas alienadas de todas as orga­nizações eclesiásticas existentes, e dispostas a fazer uma substituição e colocá-lo no lugar de uma nova igreja; mas seria constituído por repre­sentantes eleitos regularmente e devidamente autorizados pelas diferen­tes seções da igreja30.

Desejamos fazer apenas uma outra observação sobre esse clube teó­rico da comunhão da igreja. Caso algum dia ele se concretize irá, no mínimo, assegurar um objetivo, dividir os cristãos em pequenos grupos com a certeza de que poderão se reunir em dois ou três! Infelizmente, ele não poderá proporcionar ao mesmo tempo as bênçãos prometidas aos seus dois ou três membros. O Espírito de Jesus não está presente nos círculos sociais formados por homens rebeldes e obstinados, mas na grande comunidade dos santos e, especialmente, no coração daqueles cujo amor à organização em sua integralidade é maior do que o amor a qualquer de suas partes, inclusive àquela a que pertencem. A estes o Senhor, e Cabeça da igreja, cumpre a sua promessa, enriquecendo-os com magnânimas e heróicas graças, fazendo com que elevem-se como cedros acima do nível geral do caráter contemporâneo, dotando-os de

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uma força moral que continuará a exercer sua crescente influência muito tempo depois de as discussões de sua época, e os homens que se deleita­vam com elas, tiverem caído no esquecimento.

' Mateus 17.22, 23; Marcos 9.30-32; Lucas 9.44, 452 Marcos 9.333 Os três discípulos foram proibidos de contar o que tinham visto no monte sagrado. A proibição provavelmente

não se referia aos seus irmãos. Mesmo se fosse, eles devem ter achado muito d ifí c i l manter silêncio sobre tão admirável cena.

4 Marcos 9.49. As palavras “e cada um será salgado com fogo” são uma referência a Levítico 2.13, introduzida para explicar a expressão. Para comentários sobre esta passagem veja a nota no final da seção 3 do presente capítulo.

3 Mulos onikos, pedra de moinho girado por um jumento, maior do que a pedra pertencente a um moinho manual, escolhida para assegurar que os maus afundariam para jamais se levantar. Como as palavras de Cristo se cumprem em todos os tempos! Pense nas “atrocidades bulgarianas” de 1876, os massacres provocados na Inglaterra, o desti­no certo que aguarda a Turquia em um futuro próximo!

6 Mateus 18.8,9; compare vs. 29, 307 Mateus 18.10-148 A passagem em Mateus 18.2 não se encontra nos textos mais aceitos, e é considerada por alguns estudiosos

como uma interpolação inserida a partir de Lucas 19.10. A parábola do bom pastor é considerada por alguns como uma outra linha de raciocínio. Quanto ao primeiro ponto, concordamos com Alford ao pensar que o versículo 11 não pode ter sido interpolado a partir de Lucas, “primeiro pela falta de qualquer razão suficiente (aparente ou superficial) para a inserção; segundo, pela omissão quase unânime do termo em Lucas, que teria adaptado o termo do versículo 12”. Não afirmamos que isso deveria formar uma parte do texto em uma edição crítica do Novo Testamento Grego, mas é perfeitamente fidedigno que Cristo tenha expressado tal sentimento nessa ocasião. O pensamento alemão sobre a conexão, embora possa parecer desencontrado, é aceitável na narrativa. Por uma razão similar, é perfeitamente provável que a parábola do bom pastor tenha sido proferida naquela época. Era necessário tanto reprimir o espírito ambicioso dos discípulos quanto repreender os ataques dos críticos fariseus.

9 Mateus 18.12-1310 Mateus 18.15-17. Keim vê todo o discurso (que ele considera substancialmente uma declaração contínua

como registrado em Mateus 18, com seu suplemento nos outros evangelistas) referido por Jesus para servir ao propósito de organizar os discípulos em uma comunidade religiosa ( Gemeinde) tendo em vista a sua morte. Keim chama esta parte do trabalho de a última missão de Cristo na Galiléia, e a representa de acordo com a sabedoria e o amor que Cristo dedicou à sua missão. Vide Gescbicbte Jesu, 2. 605.

11 Versículo 1812 Versículos 19, 2013 As pessoas que se sentirem curiosas sobre estas controvérsias encontrarão abundantes informações na obra de

Gillespie, Aarons Rod Blossoming.14 Veja a obra de Bingham, Origents Ecclesiastics para um relato da antiga disciplina da igreja.15 Mateus 18 .19 ,2016 Cipriano, De Unitate Ecclesice.17 Isaías 55.718 As palavras remanescentes, “as suas ofensas”, são provavelmente uma ênfase.19 Veja Mateus 6.14.20 Keim, Geschichte Jesu, 2. 62.21 Marcos 9.49,50. Esta passagem, característica de Marcos, que sem dúvida constitui uma parte autêntica do

discurso sobre a humildade, é difícil de ser interpretada. Porém, não iremos encontrar muita dificuldade em chegar até os principais conceitos nela contidos, embora tenhamos algum receio a respeito da sua precisa exposição. Eles são os seguintes:

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I. A necessidade de um processo mais ou menos doloroso de purificação para alcançar a salvação.II. A necessidade de um cuidado constante para que o sal da graça, de que já dispomos, não se torne insípido.III. A integral influência do sal da graça enquanto ainda não perdeu o seu sabor ao manter um estado de mútua

concórdia entre os cristãos.O primeiro pensamento é expresso pelas palavras: “Porque cada um será salgado com fogo”, sendo que essa

forma de expressão está naturalmente determinada pela referência anterior ao fogo do inferno. Alguns interpretaram erroneamente o seu significado como: Coloque-se no fogo do purgatório para poder escapar do fogo da pena. Será inevitável alguma forma de se salgar pelo fogo, e podemos escolher aquela que leva à salvação. O terceiro pensamen­to acima está nas palavras: “Tende sal em vós mesmos e paz, uns com os outros”. O sal mencionado corresponde a uma severa disciplina que luta contra as paixões malignas do coração e que resolutamente amputa todo membro que ofende. Esse sal existe quando são eliminadas todas as ocasiões de contenda que se originam de pensamentos ambiciosos, vaidosos e desejos obstinados.

22 Acreditamos que Jesus realmente realizou alguns milagres que revelavam um certo humor, não por leviandade, mas por uma santa determinação, tais como a maldição da figueira, a cura da cegueira através da compressa de barro sobre os olhos, como uma sátira aos guias cegos, e o que vemos aqui expressa um sentido de contra-senso entre a condição exterior e a dignidade intrínseca do Filho de Deus. Mas o Dr. Farrar tem dúvidas sobre este milagre. Ele pensa que a tradução das palavras de nosso Senhor a respeito do peixe poderia ser: “Ao abrir sua boca tu irás conseguir ou obter um estáter”, já que o uso do verbo é bastante clássico e sugere a possibilidade de algum detalhe essencial ter sido omitido ou deixado sem explicação — The Life o f Christ, 2. 46.

23 Solicitamos uma atenção especial de nossos leitores à conexão indicada acima, pois, por falta de um certo entendimento o incidente agora sob consideração recebeu uma justiça limitada. Weizsãcker, por exemplo, que não é um crítico muito exigente, afirma que o incidente em questão não tem qualquer conexão com o conjunto de incidentes entre os quais ocorreu, e diz que ele foi introduzido por Mateus por ter ocorrido em Cafarnaum, ou porque se não o fizesse nesse momento o episódio correria o risco de ser completamente esquecido — Vide Untersuchungen über die evangelische Gescbichte} p. 73.

24 A escola de críticos deTübingen considera essa designação sem qualquer fundamento e afirma que o verdadei­ro caráter de João deve ser aprendido a partir dos Evangelhos sinópticos e do Livro do Apocalipse. Nesse parágrafo, assim como em outras passagens (veja o próximo capítulo) nosso objetivo foi oferecer uma prova admissível de que seria psicologicamente possível que João pudesse ser tanto o filho do trovão, quanto o apóstolo do amor.

25 Reliquia Baxterianez, Parte 3. p. 47.26 Thomas Fuller, Holy State, bk. 3. c. 20.27 Marcos 9.39, 40 (o versículo 40 traz um complemento em relação ao registro de Lucas. Quem não é contra

nós é por nós).28 Mateus 12.3029 Atos 19.1330 Nos últimos anos surgiu o fenômeno do “Pan-presbiterianismo”. Alguns temem que esse movimento não

servirá à causa de Cristo de forma universal e que, ao contrário, irá adotar uma direção puramente retrógrada para servir ao propósito daqueles que desejam vincular as igrejas da Reforma ao século dezessete. Nosso “Conselho Anfictiônico” ainda é, como a República de Platão, in nubibus. Talvez seja necessário que a desintegração caminhe mais adiante antes da chegada da era da reconstrução. Ou será que ela vai chegar algum dia? O que se pode fazer pelo cristianismo universal?

*N. doT.1. Rhadamantus, filho de Zeus e de Europa, é uma figura da mitologia grega que representa um juiz inflexível e rigoroso na aplicação das penas.

*N. doT.2. Na Grécia antiga, representava o conselho de representantes dos estados confederados que se reunia regularmente para deliberar sobre assuntos de interesse geral.

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15Os Filhos do Trovão

Lucas 9 .51-56

O discurso eloqüente sobre a humildade aparece como o último ato do ministério de nosso Senhor na Galiléia. Logo após terminar suas narrativas do discurso, os dois primeiros evangelistas começaram a falar do que podemos considerar como sendo a última partida de Jesus de sua província de origem para o sul. “E aconteceu que”, disse Mateus, “con­cluindo Jesus esses discursos, saiu da Galiléia e dirigiu-se aos confins da Judéia, além do Jordão”1. Sobre essa jornada, nem Mateus nem Marcos dão muitos detalhes: eles nem ao menos mencionam a visita de Cristo a Jerusalém para a Festa da Dedicação no inverno, sobre a qual João faz referência2, pela qual sabemos que a partida para a Galiléia se passou pelo menos quatro meses antes da crucificação. A jornada, porém, não ficou sem os seus interessantes incidentes, como vemos em Lucas, que preservou muitos deles em seu Evangelho3.

Um desses incidentes está registrado na passagem citada acima. Considerando as palavras que o evangelista usou na introdução, sua nar­rativa obviamente se refere à mesma jornada da Galiléia para o sul, de que Mateus e Marcos falam em passagens já citadas. A jornada via Samaria é destacada aqui por Lucas, e ocorreu “completando-se os dias4 para a sua assunção [de Jesus]”, ou seja, em direção ao fim da sua vida. Assim, a peculiar expressão, “manifestou o firme propósito de ir a Jerusalém”, aponta claramente para uma transferência final da cena do ministério de Cristo do norte para o sul. Isso não se refere meramente à direção geo­gráfica em que Ele estava indo, mas também, principalmente ao estado de espírito com que Ele fazia a jornada. Ele foi em direção a Jerusalém,

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sentindo que a partir daquele momento seu dever estava nela. Como uma vítima autoconsagrada à morte, seu semblante manifestava um so­lene, imponente e dignificante aspecto, expressivo do grandioso e eleva­do propósito pelo qual sua alma se regozijava.

Era natural que Lucas, o companheiro de Paulo e evangelista para os gentios, devesse preservar cuidadosamente este episódio da última jornada de Jesus para a Judeia, passando por Samaria. Isso serviu extra­ordinariamente ao propósito que ele tinha em vista como um todo, ao compilar seu Evangelho — a saber, de ilustrar a universalidade da dispen- sação cristã; e, portanto, ele a reuniu em um canto, para que não se perdesse. E colocou-a em um lugar bem apropriado, logo depois do episódio da expulsão de demônios, para não falar da ligação associada ao nome de João — este foi narrador em um caso e ator no outro. Este incidente, assim como o outro registrado logo antes, mostra um con­traste surpreendente entre o espírito severo dos discípulos e o dócil e benigno espírito do Mestre. Este contraste forma o interesse moral da história.

O fato principal da história foi este: os habitantes de uma certa aldeia samaritana, em que Jesus e seus companheiros chegaram depois de uma jornada de um dia, foram solicitados a dar-lhes pousada para a noite, porém recusaram-se a fazê-lo. Tiago e João foram até seu Mestre, e propuseram que os habitantes ofensores fossem consumidos pelo fogo do céu.

Esta era uma proposta estranha vinda de homens que eram discípu­los de Jesus, e especialmente de alguém como João, que havia estado na companhia do Mestre no momento do encontro com a mulher perto do poço, onde ouviu as palavras entusiasmadas com que Ele falou da glori­osa era que estava alvorecendo5. Isso mostra como os melhores são len­tos em aprender a doutrina celestial e a prática da caridade. Quão mara­vilhoso é pensar neste mesmo João, um ou dois anos depois dessa suges­tão selvagem, descendo de Jerusalém e pregando o evangelho de Jesus crucificado em “muitas aldeias dos samaritanos”6, possivelmente nas mesmas aldeias que ele desejou ver destruídas!

Tais são os contrastes que o crescimento na graça traz. No estágio inicial da vida cristã, cujas principais características são presunção, cen-

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Os FUhos do Trovão 267

sura, falta de escrúpulos, intolerância, zelo passional cego, João faria o papel de uma cópia de Elias; porém em sua maturidade espiritual, o sol de verão pentecostal produziu seus efeitos em sua alma, o doce fruto do Espírito — amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança. Tal contraste do mesmo caráter em diferentes períodos, apesar de surpreendentes, são perfeitamente naturais. Em meio a todas as mudanças, os elementos da moral permanecem os mesmos. O suco da maçã madura é o mesmo que estava na fruta verde, adicionado de luz e calor do sol. O zelo passional do filho do trovão não desapare­ceu da natureza de João depois de ele ter se tornado um apóstolo; ape­nas foi temperado pela luz da sabedoria e suavizado pelo calor do amor. Ele nem mesmo deixou de odiar, porém tornou-se um indivíduo indiscriminadamente amável, cuja caridade não fazia distinção entre o bem e o mal. No final, João era o que foi no início; um homem capaz de odiar intensamente e também de amar intensamente. Mas em seus últi­mos anos, ele sabia melhor o que odiar — os objetos do seu ódio eram hipocrisia, apostasia e insinceridade laodiceana7; não daquela velha ma­neira, com mera brutalidade ignorante e grosseria vulgar. Ele então po­dia distinguir entre sabedoria e fraqueza, malícia e preconceito; e en­quanto cultivava forte antipatia por algumas características, sentia pai­xão por outras.

Alguns podem imaginar como um homem, depois de alegrar-se, abandona um propósito tão sublime, e age da forma que Tiago e João agiram; como João poderia ser o discípulo que Jesus amava? Para enten­der isso, deve-se lembrar que Jesus, ao contrário da maioria dos homens, poderia amar um discípulo não apenas pelo que ele era, mas pelo que se tornaria. Ele poderia olhar com complacência até mesmo para as uvas azedas da estação, em nome das frutas saborosas nas quais se converteri­am ao amadurecerem. Assim, não devemos nos esquecer que João, mes­mo possuído pelo ressentimento, foi animado por um espírito mais puro e mais santo.

Junto com a fumaça da paixão carnal havia um fogo divino em seu coração. Ele amava Jesus tão intensamente quanto odiava os samaritanos; foi a sua ligação devota ao seu Mestre que fez com que se ofendesse com tanta falta de civilidade. Em seu frágil amor pelo amado de sua alma,

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sentia-se belo como uma mãe transbordando de ternura no seio de sua família; embora em seu ódio ele fosse terrível como a mesma mãe pode­ria ser em sua hostilidade contra os inimigos de sua família. Através deste exemplo alguns podem comparar a natureza de João à natureza feminina, tanto em suas virtudes como em seus defeitos; e como a natureza femini­na, poderia tanto ser intensamente doce como intensamente amarga8.

Passando agora de comentários pessoais sobre João à proposta destrutiva emanada por ele e seu irmão, devemos ter o cuidado de considerá-la à luz de uma mera ebulição imprudente de temperamento, conseqüente da recusa de hospitalidade. Sem dúvida os dois irmãos e todos os seus companheiros discípulos estavam irritados com a inespe­rada incivilidade, e ninguém se surpreenderia se isso os tivesse deixado de mau humor. Homens fatigados ficam facilmente irritados, e não era agradável ser obrigado a andar a pé até outra aldeia depois do cansaço de um dia de jornada. Mas temos uma opinião muito boa sobre os doze para imaginar que algum deles fosse capaz de vingar a grosseria com um assassinato.

O estilo selvagem de Tiago e João não é nem mesmo rapidamente explicado pela lembrança de que os grosseiros habitantes eram samaritanos, e que eles eram judeus. A hostilidade crônica entre as duas raças tinha, inquestionavelmente, sua própria influência na produção de rancor de ambos os lados. A nacionalidade dos viajantes era uma, se não a única, razão por que os habitantes recusaram-se a recebê-los. Eles eram judeus galileus descendo em direção a Jerusalém, e isso era o bastante. Então os doze, como judeus, estavam tão preparados para receber ofensas quanto os habitantes samaritanos estavam preparados para dá-las. A poeira do ódio nacional estava guardada em seus corações; e uma faísca, uma pala­vra rude ou gesto insolente, era o suficiente para causar uma explosão. Embora estivessem com Jesus há algum tempo, ainda havia neles muito mais do velho homem judeu do que do novo homem cristão. Se fossem deixados à mercê de sua própria vontade, provavelmente teriam evitado todo o território samaritano e, como o resto dos seus compatriotas, feito o caminho para Jerusalém cruzando pelo leste do Jordão. Entre pessoas tão afetadas em relação às outras, as ofensas certamente apare­cem.

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Mas havia algo mais do que sentimento de facção trabalhando na mente dos dois discípulos. Havia consciência em sua discussão, assim como irritação e inimizades hereditárias. Isso é evidente, tanto na forma deli­berada com que fizeram sua proposta a Jesus, como pelo motivo com que tentaram justificá-la. Eles foram ao seu Mestre, e disseram: “Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma?”, não manten­do nenhuma dúvida aparente de obter sua aprovação, e de conseguir imediatamente o fogo requisitado do céu para a execução do seu intento. Então citaram o precedente de Elias, que recusando-se a fazer qualquer acordo com o rei idólatra de Samaria, invocou fogo do céu para consu­mir os mensageiros dele, como sinal do descontentamento divino9. O motivo consciente pelo qual haviam agido era evidentemente sincero, embora mal-informado, e não estava de acordo com a honra do seu Deus. Assim como o profeta do fogo estava indignado com a conduta do rei Acazias ao enviar mensageiros em nome de Baal-Zebube, deus de Ecrom, para perguntar se ele se recuperaria da doença com a qual foi afligido10, também os filhos do trovão estavam indignados por causa dos habitantes do mesmo território ímpio sobre o qual Acazias havia gover­nado, por presumirem que estivessem insultando seu reverenciado Mes­tre ao recusar-lhe um favor do qual deveriam se sentir orgulhosos por terem a oportunidade de lhe oferecer.

Os dois irmãos pensaram que haviam feito bem ao ficarem nervo­sos; e se estavam dispostos a defender sua conduta depois de terem sido condenados por Jesus — o que não pareciam estar — provavelmente fizeram uma defesa destituída de plausibilidade. Considere quem eram estes samaritanos: pertenciam a uma raça bastarda resultante de assírios pagãos, cuja presença na terra era uma humilhação, e de israelitas dege­nerados, inferiores e indignos de se chamarem israelitas. Seus ancestrais foram inimigos amargos de Judá nos dias de Neemias, maliciosamente obstruindo a reconstrução dos muros de Sião, em vez de ajudarem os exilados na hora da necessidade, como bons vizinhos deveriam ter feito. Então, se era injusto responsabilizar a geração presente pelos pecados das gerações passadas, qual era o caráter dos samaritanos vivos nos dias de Jesus? Eles não eram hereges blasfemadores, que rejeitaram todas as Escrituras do Antigo Testamento, salvo os cinco livros de Moisés? Não

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270 O Treinamento dos Doze

adoravam no templo rival de Gerizim11, que fora edificado por seus pais, com ímpia arrogância em desrespeito ao verdadeiro templo de Deus na cidade santa? E, finalmente, esses habitantes não demonstraram sua sim­patia por todas as iniqüidades desse povo, repetindo todas elas em um único ato ao se recusarem a honrar aquele que era maior até mesmo do que o verdadeiro templo, e digno não apenas de receber simples cortesia, mas até mesmo adoração divina?

Cruéis atormentadores e zelotes furiosos, munidos com tamanhas promessas plausíveis têm estado sempre confiantes, como os dois discí­pulos, de terem feito a obra de Deus. E próprio da natureza fanática fazer com que os homens possuídos por ela acreditem que o Onipotente não apenas aprova, mas compartilha dessas paixões selvagens, e se imagi­nem detentores de uma carta branca para lançar trovões do Altíssimo con­tra todos aqueles que forem favoráveis a tudo o que a sua consciência tirana não aprove. Que mundo seria o nosso se de fato fosse assim!

Cada vigoroso oficial medíocre

U saria o céu de Deus para lançar trovões; nada mais do que trovões.

Graças a Deus isso não é fato! O O nipotente às vezes troveja, mas não da

m aneira que esses oficiais medíocres desejariam.

O céu m isericordioso!

Tu, com o teu agudo e poderoso raio,

Parte o carvalho rijo e vigoroso,

E não a tenra murta.

Jesus, mesmo sendo gentil, também trovejava; mas Ele reservava os trovões para outros aspectos, em vez de direcioná-los a pobres, ignoran­tes e preconceituosos samaritanos. Seu zelo era dirigido aos pecados, aos poderosos ímpios, e aos pecadores privilegiados e presunçosos; e não contra os pobres e obscuros pecadores vulgares. Ele explodiu de indig­nação ao ver a casa de seu Pai transformada em um covil de ladrões por aqueles que deveriam conhecê-lo. Porém, teve compaixão daqueles que, como a mulher junto ao poço, não conheciam a quem adoravam, e bus­

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Os Filhos do Trovão 271

cavam cegamente a Deus em uma escuridão semipagã. Seu espírito se inflamava com o espetáculo de ostentação ortodoxa e piedade aliadas a um comportamento inteiramente mundano. Ele não agiu como os fariseus, inflamados de ira hipócrita contra publicanos irreligiosos, que não tinham permissão para adorar, nem como aqueles que, como os hereges samaritanos, não adoravam no lugar certo. O zelo como o de Jesus despeja seus raios sobre os carvalhos orgulhosos e poupa os humil­des arbustos! Mas tal zelo é politicamente perigoso e, portanto, será sempre raro.

O Mestre, por quem os dois discípulos desejavam invocar o fogo consumidor do céu, não perdeu tempo em demonstrar sua absoluta re­jeição à monstruosa proposta. Ele os repreendeu. De acordo com a anti­ga versão em inglês, Ele disse: “Vós não sabeis de que tipo de espírito sois”12. Houve dúvidas sobre a precisão do termo tipo, e por esta razão foi omitido em uma versão revisada; mas mesmo com este termo a afir­mação é verdadeira.

Esta afirmação era verdadeira em mais de um sentido. O espírito de Tiago e João não era, em primeiro lugar, da maneira que imaginavam. Pensaram que estivessem agindo com zelo pela glória do seu Deus, e em parte isso era verdade. Mas a chama de seu zelo não era pura: estava mis­turada com a amarga fumaça das paixões carnais, da ira, do orgulho, e do egoísmo. Então, mais uma vez, o espírito deles não era como o dos apóstolos do evangelho, que se tornaram proclamadores de uma nova era de graça. Eles foram escolhidos para pregar uma mensagem de mise­ricórdia a toda criatura, até mesmo aos principais pecadores; para falar de um amor que não sofreu para ser vencedor do mal, mas procurou vencer o mal com o bem; para fundar um reino composto por cidadãos de todas as nações, onde não seriam nem samaritanos nem judeus, mas Cristo seria tudo em todos. Que obra a ser realizada por homens cheios de um espírito ardente — “filhos do trovão!” Obviamente, uma grande mu­dança deve ter acontecido no interior deles para adequá-los à elevada voca­ção a que foram chamados. O espírito deTiago e João não era, é claro, o do Mestre. Ele “não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá- las”13. Para ver a diferença entre a mente dos discípulos e a de Jesus, colo­que esta cena lado a lado com aquela outra que aconteceu em solo

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samaritano — o encontro à beira do poço. Sabemos o que vimos aqui; mas o que vemos lá? O Filho do Homem, como um judeu, conversando e tratando com uma samaritana, procurando assim abolir a inimizade habitual e inveterada, enraizada entre os homens; como o amigo dos pecadores procurando restaurar a pobre, errante e culpada criatura para Deus e para a santidade; como o Cristo anunciando o fim de uma velha era, em que a verdadeira adoração ao próprio Deus era ritualista, exclusivista e local, e o advento de uma nova religião caracterizada pelos atributos da espiritualidade e universalidade. E vemos Jesus regozijando-se entusiasti­camente com a sua obra. Considerava a sua própria comida e bebida reve­lar aos homens um só Deus e Pai, um salvador, uma vida para todos sem distinção; para regenerar o caráter individual, a sociedade e a religião; para destruir todas as barreiras que separam os homens de Deus e dos seus semelhantes, e assim se tornar o grande reconciliador e pacificador.

Pensando nesta obra ilustrada pela conversão da mulher à beira do poço, Ele fala aos seus discípulos — impressionados e arredios — como quem percebe no leste do horizonte os primeiros suaves traços de luz anunciando o advento de um novo dia glorioso e, de um modo geral, os campos do mundo, plantações amarelas de grãos prontos para a ceifa. E como se Ele dissesse: “Está se aproximando rapidamente a tão esperada e abençoada era, depois de uma longa noite de trevas espirituais; o novo mundo está prestes a começar: levantem os olhos e vejam os campos das terras gentílicas, e vejam como já estão brancos para a ceifa!”

Na ocasião do encontro perto do poço, os discípulos que estavam com Jesus não entenderam nem se simpatizaram com os seus elevados pensamentos e esperanças. A perspectiva brilhante em que seus olhos se fixaram não fazia parte do horizonte deles. Para eles, assim como para as crianças, o mundo ainda era pequeno, um vale estreito cercado por mon­tanhas de todos os lados; enquanto seu Mestre, do alto da montanha enxergava muitos vales além, nos quais Ele estava interessado, e de onde acreditava que muitas almas encontrariam seu caminho para o Reino eterno14. Para os discípulos Deus ainda era apenas o Deus dos judeus; a salvação era dos judeus para os judeus. Eles conheciam apenas um canal para a graça — as ordenanças judaicas; apenas um caminho para o céu — aquele que passava por Jerusalém.

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Os Filhos do Trovão 273

Até a época em que se passa a cena, os discípulos, em vez de progre­direm, pareciam ter regredido. Velhos e maus sentimentos pareciam mais intensos, em vez de serem substituídos por outros mais novos e melho­res. Eles agora não são simplesmente hostis, mas estão em um antagonis­mo direto em relação à mente do seu Deus; não apenas indiferentes ou céticos à salvação dos samaritanos, mas inclinados à destruição deles. A aversão e o preconceito se transformaram em um ataque de ódio e inimi­zade.

Sim, até aquele momento. Os defeitos se tornam aparentes e detes­táveis até que comecem a ser corrigidos. Não haverá melhora até que o Cordeiro tenha sido imolado para tirar o pecado, abolir a inimizade e fazer dos dois um novo homem. E este conhecimento que faz com que Jesus mantenha seu rosto tão firme em direção a Jerusalém. Ele está ansioso para tomar o cálice do sofrimento e ser batizado com o batismo de sangue, porque sabe que só assim poderá terminar a obra da qual Ele falou em uma linguagem tão profunda aos discípulos, na ocasião anteri­or. Todo o ódio de seus devotos seguidores contra os samaritanos faz com que seus passos se acelerem em seu caminho para a cruz, dizendo a si mesmo tristemente enquanto avança: “Devo me apressar, pois estas coisas não terão fim até que eu seja levantado da terra”.

1 Mateus 19.1, 2; Marcos 10.12 João 10.22, 233 A jornada por Samaria, com todos os incidentes adicionais, incluiu a missão dos setenta. Os críticos de

Tübingen consideram-na como uma invenção do terceiro evangelista, escolhida para promover a causa do universalismo. Mas tal jornada foi um fato, assim como tudo o que se relaciona a ela; e é provavelmente tão intrínseca quanto as conversas de Cristo com publicanos e pecadores, que eram igualmente incomuns e igualmente universalistas em princípios e tendências. Admite-se abertamente que o universalismo pronunciado por Lucas explique estes incidentes, encontrando um lugar em seu Evangelho, embora não apareça em Mateus e Marcos.

4 en to sumplfrousthaí.5 Joao 46 Atos 87 Veja os capítulos 2 e 3 do Livro de Apocalipse, normalmente considerados como os últimos escritos de João

(Reuss, entretanto, afirma na obra Théologie Ckrêtienne, que eram escritos iniciais). Baur e a escola de Tübingen geralmente sustentam que em Apocalipse (que reconhecem como um trabalho do apóstolo João) a velha rigidez aparece carregada de amarga hostilidade contra o apóstolo Paulo, supondo que as seguintes palavras, dirigidas à igreja de Efeso, lhe diziam respeito: “Puseste à prova os que dizem ser apóstolos e o não são e tu os achaste mentirosos”. Esta passagem, e a discussão entre Pedro e Paulo em Antioquia (G1 2), são os principais argumentos citados por esta escola ao defender sua famosa hipótese de conflito.

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8 Conforme as notas sobre João na seção V do capítulo 14 deste livro.9 As palavras hõs kai Elias epoiêse têm uma leitura duvidosa. Entretanto, é evidente que os dois discípulos deveriam

ter Elias em mente quando fizeram a sua proposta.10 2 Reis In O Templo foi destruído cem anos antes de Cristo por Hircano, o sumo sacerdote — Josefo, Antiq. Jud. 13.9-112 Lucas 9.5513 As palavras citadas são consideradas pelos críticos como um realce; mas como aquelas citadas na nota anteri­

or, são verdadeiras e apropriadas.14 Este pensamento foi sugerido por uma passagem da obra de Richter, Flegeljahre.

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16Na Peréia

ou A Doutrina do Auto-Sacrifíclo

Seção I - Conselhos de Perfeição Mateus 19 .1-26 ; Marcos I0 .I-27 ; Lucas 18 .15 - 27

A ........................A Vpós sua última partida da Galiléia, Jesus encontrou um novo lugar para morar e trabalhar, durante o tempo que lhe restava neste mundo, na região que fica a leste do Jordão, na parte baixa de seu curso. Ele “saiu da Galiléia e dirigiu-se aos confins da Judéia, além do Jordão”1. Podemos dizer que Ele concluiu o seu ministério onde começou, curando enfer­midades e ensinando as maiores doutrinas do reino, no local que teste­munhou sua consagração do batismo ao seu trabalho sagrado, e onde fez os seus primeiros discípulos2.

Esta visita de Jesus a Peréia, perto do final de sua carreira, é, de fato, muito interessante e significativa em si mesma, excetuando-se os inci­dentes que a acompanharam. Foi evidentemente mencionada por João que, com tanto cuidado quanto os dois primeiros evangelistas, fala sobre a visita. Porém, de um modo diferente destes, não dá detalhes a respeito dela. Os termos pelos quais ele faz alusão a tal evento são peculiares. Tendo explicado brevemente como Jesus provocou o rancor dos judeus em Jerusalém durante a Festa da Dedicação, ele prossegue dizendo: “Pro­curavam, pois, prendê-lo outra vez, mas ele escapou de suas mãos, e retirou-se outra vez para além do Jordão, para o lugar onde João tinha primeiramente batizado, e ali ficou”3. A palavra “de novo” e a referência a João Batista são indicativos de reflexão e recordação — janelas que nos permitem enxergar através do coração de João. Ele está pensando com emoção em suas experiências pessoais ligadas à primeira visita de Jesus àquelas regiões sagradas, de seu primeiro encontro com o amado Mes­

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tre, do nome espiritual que foi dado ao Senhor por João Batista, “O Cordeiro de Deus”, incompreendido pelos discípulos naquela ocasião, mas que seria, agora, exposto pelos fatos que lhe sucederiam; e para o evangelista que estava redigindo o seu Evangelho, tudo estava claro como o dia refletido na luz brilhante da cruz.

Era muito difícil que o discípulo a quem Jesus amava pudesse fazer outra coisa senão pensar na primeira visita, mesmo enquanto falava da segunda. Até a multidão, como ele escreve, remeteu-se mentalmente à oca­sião anterior enquanto seguia a Jesus nesta. Eles se lembraram do que João, precursor de Jesus, havia dito a respeito de alguém dentre eles, cujo nome não conheciam, e que era muito maior do que ele mesmo; obser­varam que suas afirmações, por mais improváveis que pudessem parecer naquele momento, foram comprovadas pelos fatos, e ficou comprovado que o próprio João, através dos milagres de Cristo (senão pelos seus pró­prios), era um verdadeiro profeta. “João”, disseram uns aos outros, “não fez sinal algum, mas tudo quanto João disse deste era verdade”4.

Se por ocasião da segunda visita, o discípulo João e até as pessoas comuns pensaram na primeira visita de Jesus a Peréia, podemos ter a certeza de que o próprio Senhor Jesus também o fez. Ele tinha as suas próprias razões, acredite, para voltar àqueles santos lugares. Cremos que a sua jornada até o Jordão foi uma peregrinação pelo solo sagrado no qual Ele não poderia colocar os pés sem que sentisse uma profunda emoção. Pois ali fica a sua Betei, onde Ele tinha feito um solene voto batismal, não como Jacó, de dar o dízimo de seus ganhos, mas de entre­gar a si mesmo, corpo e alma, como um sacrifício a seu Pai, na vida e na morte; ali o Espírito havia descido sobre Ele como uma pomba; ali Ele tinha ouvido a voz celestial de aprovação e encorajamento, a recompensa de sua total rendição pessoal à santa vontade de seu Pai. Todas as recor­dações do lugar onde comoventes momentos de obrigações solenes ins­piravam esperanças sagradas, e impeliam-no à grande consumação de sua vida de trabalho; o Senhor estava sendo impelido por seu batismo, por seus votos, pela descida do Espírito e pela voz que veio do céu para coroar sua obra de amor, a beber do cálice do sofrimento e da morte para a redenção dos homens. A estas vozes do passado Ele abria espon­taneamente os seus ouvidos, e com boa vontade. Desejava ouvi-las, para

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Na Peréia 277

que por seus timbres abençoados o seu espírito pudesse ser fortalecido e solenizado para a agonia que estava prestes a vir.

Enquanto descansava em Peréia, por esses motivos pessoais, Ele poderia meditar sobre o passado e o futuro e ligar memórias sagradas a solenes antecipações. Jesus não viveu lá, de maneira nenhuma, uma vida de reclusão e meditação solitária. Ao contrário, durante sua temporada de peregrinações por aquele lugar, Ele estava freqüentemente ocupado curando os enfermos e ensinando a multidão “segundo o seu costume” (Lucas 4.16; e também assim como afirma Marcos, com uma referência mental ao ministério passado na Galiléia). Respondia perguntas, recebia visitas, concedia favores: “E muitos iam ter com ele” por vários motivos. Os fariseus vieram a Ele fazendo perguntas embaraçosas sobre casamen­to e divórcio, esperando apanhá-lo em uma armadilha e fazê-lo expres­sar uma opinião que pudesse torná-lo impopular a algum grupo ou es­cola, como por exemplo a de H illel ou a de Shammai5, não se importan­do com nenhuma delas. Um jovem rico com um dos mais honráveis intentos, veio a Jesus inquirir como poderia obter a vida eterna. Mães vieram com seus pequeninos suplicando a sua bênção para estes, consi­derando o grande valor de serem abençoadas pelo Senhor, não temendo uma negativa; e mensageiros vieram com tristes notícias de seus amigos que o consideravam o seu conforto em tempos difíceis6.

Embora estivesse muito ocupado em meio a uma multidão aglome­rada, Jesus planejou ter algumas horas de descanso com os seus discípu­los escolhidos, durante as quais ensinou-lhes algumas novas lições sobre a doutrina do Reino de Deus. O tema dessas lições era o sacrifício por amor ao reino — um tema compatível com o lugar, a hora, a situação e o humor do professor. O contexto sugerido para este tópico surgiu com entrevistas que Jesus havia tido com os fariseus e com o jovem rico. Essas entrevistas, naturalmente, levaram-no a falar a seus discípulos sobre o assunto do auto-sacrifício sob dois aspectos especiais: abstinência do casamento e renúncia à propriedade. Entretanto, Ele não confinou seu discurso a esses dois pontos, mas continuou estabelecendo recompensas para o sacrifício pessoal de várias formas e o espírito no qual todos os sacrifícios deveriam ser feitos, para que pudessem ter valor aos olhos de Deus.

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Lemos que “chegaram ao pé dele os fariseus, tentando-o e dizendo- lhe: E lícito ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo?”. Je­sus respondeu essa pergunta utilizando-se do princípio primitivo de que o divórcio era justificado somente pela infidelidade conjugal e explicou que qualquer coisa contrária à lei de Moisés era simplesmente uma aco­modação à dureza dos corações dos homens. Os discípulos ouviram esta resposta e fizeram suas observações a respeito. Eles disseram a Jesus: “Se assim é a condição do homem relativamente à mulher, não convém ca­sar”. A visão anunciada pelo Mestre — que não levava em consideração a incompatibilidade de gênios, perda involuntária do amor, incompati­bilidade de hábitos, diferenças de religião, dissensões entre parentes, pe­didos de separação — pareceu muito rigorosa até para os discípulos; e eles pensaram que seria bom um homem pensar bem nisso tudo antes de se comprometer com um relacionamento para a vida toda, com tais pos­sibilidades à sua frente, e perguntar-se se não seria melhor, no geral, afastar-se de tal mar de problemas abstendo-se totalmente do matrimô­nio.

A observação improvisada dos discípulos, vista em conexão com seus prováveis motivos, não era muito sábia; contudo, deve-se observar que Jesus não a desaprovou completamente. Alguns entendem que Ele falou até com certa simpatia pelo celibato — como se abster-se do casamento fosse o melhor e mais sábio caminho — pois para muitos o padrão do Senhor para o casamento era impraticável. “Ele, porém, lhes disse: Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido”. Então prosseguiu enumerando os casos em que, por algum motivo, os homens continuavam solteiros, e falou com aparente aprovação sobre aqueles que voluntariamente e por altos e sagrados motivos, recusaram-se ao con­forto do relacionamento familiar: “Há eunucos que se castraram a si mes­mos por causa do Reino dos céus”. O Senhor finalmente fez com que seus discípulos entendessem que tais pessoas existem para serem imitadas por todos os que se sintam chamados e que sintam-se capazes de fazê-lo. “Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido”, entendemos que Ele o disse prevendo que muitos homens poderiam não recebê-la, mas poderiam mais facilmente suportar todas as possíveis difi­culdades da vida conjugal, até na visão estrita das obrigações conjugais. Ou

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então alguns poderiam optar por preservar a castidade perfeita não se ca­sando, fazendo de si mesmo um eunuco pelo Reino dos céus, não como se somente escapasse de problemas, mas para estar livre de descuidos e ser capaz de servir ao Reino sem distrações.

A outra forma de sacrifício pessoal — a renúncia à propriedade — que tornou-se tema de comentário entre Jesus e os seus discípulos, era conseqüência da entrevista do jovem que veio perguntar sobre a vida eter­na. Jesus, lendo o coração do ansioso inquiridor e percebendo que ele amava mais os seus bens terrenos do que seria consistente com a liberdade espiritual, além da completa unilateralidade de sua mente, concluiu seus conselhos ao jovem dizendo-lhe: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; e vem e segue-me”. O jovem retornou pesaroso ao seu caminho, pois desejava a vida eterna mas não esperava ter de pagar tal preço para alcançá-la. Jesus procedeu de ma­neira a fazer desse caso um tema para reflexão, para a instrução dos doze. Nas observações que fez, Ele não disse expressamente que era necessário desfazer-se das propriedades para alcançar a salvação, mas falou de uma maneira que aos discípulos pareceu implicar nisso. Olhando ao redor Ele comentou primeiro: “Em verdade vos digo que é difícil entrar um rico no Reino dos céus!” Os discípulos ficaram estupefatos ao ouvir tão severa afirmação, mas de alguma maneira Ele a suavizou alterando delicadamente a forma de expressão: “Filhos”, Ele disse, “quão difícil é, para os que confiam nas riquezas, entrar no Reino de Deus!”7, explicando que o que deveria ser renunciado para se obter a salvação não era o dinheiro, mas o desordenado amor ao dinheiro. Então o Senhor acrescentou uma terceirateftexão que, pot sm austmàíiàe, mm ào que eancAou dasegunda: “E mais fácil”, Ele declarou, “passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no Reino de Deus”. Aquela assertiva, interpretada literalmente, somava-se à declaração interpretada como se a salvação de um rico fosse uma impossibilidade, e parecia ensinar por sim­ples implicação que o único meio de um rico entrar no céu é deixar de ser rico e tornar-se pobre por uma renúncia voluntária às suas propriedades. Assim, parece ter sido esta a impressão formada na mente dos discípulos, pois lemos que estavam sobremodo espantados, chegando a dizer entre si: “Quem poderá, pois, salvar-se?”8

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Há uma necessidade vital de se entender o que o nosso Senhor realmente pretendia ensinar sobre casamento e dinheiro. A questão diz respeito não somente à vida por vir, mas a todo o caráter de nossa vida presente. Pois mesmo que a vida do homem na terra não consista mera­mente de posses e relações familiares, estas ocupam um lugar muito pro­eminente na vida de cada ser humano. As relações familiares são essenci­ais para a existência da sociedade e sem as riquezas não poderia existir civilização. Teria Jesus desaprovado ou tratado com inferioridade essas coisas, que seriam no mínimo desfavoráveis, senão incompatíveis, com os interesses do Reino divino, e as aspirações dos seus cidadãos?

Esta questão foi, até o tempo da Reforma, para a maioria, respondi­da pela igreja visível de forma afirmativa. Em um período recente a idéia que começou a ser apreciada é que Jesus pretendia ensinar sobre uma superioridade intrínseca, no sentido da virtude cristã, de uma vida de celibato e pobreza voluntária acima daquela de um homem casado e possuidor de propriedades. A abstinência de casamento e a renúncia às posses terrenas passaram a ser consideradas, por alguns, como requisitos essenciais para as grandes conquistas cristãs. Alguns entendem que elas eram degraus da escada por onde os cristãos alcançam níveis mais eleva­dos de graça do que aqueles que seriam conquistados por homens envol­vidos em cuidados e laços familiares terrenos. Entendem que, na realida­de, elas não são necessárias à salvação — para se obter, por assim dizer, uma simples admissão no céu — mas para obter-se um acesso abundan­te. Seriam provas de virtude a serem suportadas pelos candidatos a rece­ber as honras na cidade de Deus. Seriam as condições indispensáveis para se alcançar os degraus mais elevados da fecundidade espiritual. Um cristão casado ou rico poderia produzir trinta grãos por semente; mas somente aqueles que negassem a si mesmos os prazeres da riqueza e do matrimônio poderiam produzir sessenta grãos ou uma centena de grãos por semente. Mas embora essas virtudes de abstinência não devessem ser exigidas de todos, deveriam ser recomendadas como “conselhos de per­feição” para aqueles que não se contentassem em estar em um lugar cristão comum; estes poderiam ser elevados ao ápice heróico da excelên­cia e desprezar uma admissão simples no reino divino, desejando ocupar ali os primeiros lugares.

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Este pensamento é agora tão antiquado que é difícil acreditar ter ele, alguma vez, prevalecido. Entretanto, como prova de que esta não é uma invenção de nossa parte, considere duas breves citações do distinto bispo e mártir do século III, Cipriano de Cartago, que são amostras daquilo que pode ser encontrado nos patriarcas da igreja. Uma citação proclama a virtude superior da virgindade voluntária nos seguintes ter­mos: “Estreito e apertado é o caminho que conduz à vida; o caminho que leva à glória é penoso e requer empenho (é mais estreito do que a via mais estreita que se possa imaginar). Por este caminho vão mártires, virgens, e todos os justos. Os primeiros são aqueles que produzem, por sua alta fecundidade, os cem grãos por semente; em segundo lugar vêm aqueles que produzem sessenta grãos por semente (sim, virgens)”9. Em­bora a segunda citação atribua, como a primeira, um mérito superior à virgindade, indica o caráter opcional daquela virtude considerada como de elevada categoria. Referindo-se às palavras de Cristo: “Há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do Reino dos céüs”, Cipriano diz: “Isto o Senhor não ordena, mas exorta; Ele não impõe o jugo da neces­sidade, que a livre escolha da vontade poderia substituir. Mas enquanto Ele diz (Jo 14.2) que existem muitas mansões na casa de seu Pai, salienta aqui os aposentos no alojamento da melhor mansão (melioris habítaculí hospitiay Busquem, ó virgens, estas melhores mansões. Crucificando Çcastrantes) os desejos da carne, para obterem para si a recompensa de uma maior graça nas moradas celestiais”10.

Interpretações semelhantes foram alimentadas naquele início dos tempos, a respeito do significado das palavras de Cristo para os jovens. Os resultados inevitáveis de tais interpretações ao longo de tempo foram as instituições monásticas e o celibato do clero. A conexão direta entre uma interpretação ascética do conselho dado por Jesus ao jovem rico que perguntou sobre a vida eterna, e o advento do monasticismo é algo claro na história de Antônio, o pai do sistema monástico. Conta-se que, indo à igreja em uma ocasião em que a passagem do Evangelho referente ao jovem rico estava sendo lida antes da assembléia, ele, então também jovem, recebeu-as como palavras que lhe foram enviadas dos céus. Sain­do da igreja, começou imediatamente a repartir as suas propriedades, a sua grande, fértil e bela terra, que havia herdado de seus pais, reservando

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apenas uma pequena parte de sua propriedade em benefício de sua irmã. Não muito tempo depois, ele também se desfez desta parte, e colocou sua irmã para ser educada por uma sociedade de virgens pias; e, estabele- cendo-se nas proximidades da mansão paterna, deu início a uma vida de rígido ascetismo11.

A teoria ascética da virtude cristã que logo começou a prevalecer na igreja foi totalmente testada pelo tempo e mostrou ser, comprovadamente, um erro enorme e extremamente prejudicial. O veredicto da história é conclusivo, e retornar a um erro tão grande e patente, como alguns se mostram dispostos a fazer, é completa tolice. A essa altura, as visões daqueles que encontrariam o beau-ideal da vida cristã trancafiados em um mosteiro, dificilmente parecem dignas de uma séria refutação. Ela pode, entretanto, ser rapidamente útil para mostrarmos os principais erros da teoria monástica relacionada à moral; e, mais ainda, é uma oportunidade de, ao mesmo tempo, explicarmos o verdadeiro significado das palavras de nosso Senhor aos seus discípulos.

Então, em primeiro lugar, esta teoria está baseada em uma pré-su- posição errônea — por exemplo, de que a abstinência de coisas legais é, intrinsecamente, um tipo maior de virtude do que a temperança ao usá- las. Isto não é verdade. A abstinência é a virtude dos fracos, a temperan­ça é a virtude dos fortes. A abstinência é certamente o modo mais seguro para aqueles que estão propensos à afeição desordenada, mas ela compra a segurança ao preço da cultura moral; por isso remove-nos daquelas tentações ligadas às relações familiares e posses terrenas, através das quais o caráter, mesmo posto em perigo, é ao mesmo tempo desenvolvido e fortalecido. A abstinência é também inferior à temperança pela falta de um tom saudável. Ela tende inevitavelmente à morbidez, à distorção e ao exagero. As virtudes ascéticas costumavam ser chamadas de angelicais pe- los seus admiradores. Elas, certamente, são angelicais no sentido negati­vo por serem desumanas e não naturais. A abstinência ascética é o fan­tasma ou o espírito desencarnado da moralidade, enquanto a temperan­ça é a sua alma encarnada em uma vida humana genuína que vive em meio a relações terrenas, ocupações e divertimentos. A abstinência é ain­da inferior à temperança no que diz respeito ao que parece ser seu ponto mais forte — o sacrifício pessoal. Existe algo moralmente sublime, sem

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dúvida, no espetáculo proporcionado por um homem que possui rique­zas, que é bem nascido, de alto posto, com uma c o n d i ç ã o doméstica feliz, e que deixa o seu posto, seu trabalho, esposa, filhos para trás e vai para os desertos do Sinai e do Egito com a finalidade de passar os seus dias como um monge ou um eremita12. A difícil decisão, o domínio absoluto da vontade sobre as afeições naturais, exibidas em tal conduta, é muito imponente. Contudo, quão pobre é um caráter como este quan­do comparado ao de Abraão, o pai dos fiéis e modelo de temperança e da singularidade de pensamento; que era capaz de usar o mundo, do qual possuía uma grande porção, sem abusar dele. Que manteve sua riqueza e suas propriedades, e nunca se tornou escravo delas, e estava pronto, às ordens de Deus, para desfazer-se de seus amigos e de sua terra natal, mesmo tendo um único filho! Então o correto é viver, mesmo sendo herdeiros de todas as coisas, mantendo a nossa liberdade espiritu­al livre e desimpedida, jamais enfraquecida; desfrutando a vida, porém prontos a atender ao chamado do dever, sacrificando, se necessário, os prazeres que nos sejam mais agradáveis na vida: esta é a verdadeira virtu­de cristã, a mais elevada vida cristã para aqueles que desejam ser perfei­tos. Que vários como Abraão vivam entre os homens ricos de nossos dias, e não haverá receio de a igreja voltar à Idade Média. Portanto, existe a doutrina que diz não ser possível que os ricos vivam uma vida cristã verdadeira, exceto desfazendo-se totalmente das suas proprieda­des. Tal doutrina só pode ganhar crédito entre os sérios, quando os ricos, como uma classe, são absolutamente dados à luxúria, vãos, egoístas e orgulhosos.

A teoria ascética também se fundamenta em um erro de interpreta­ção das palavras de Cristo. Estas não afirmam ou necessariamente impli­cam em alguma superioridade intrínseca do celibato ou da pobreza vo­luntária, sobre as condições às quais elas são opostas. Elas só implicam, sob certas circunstâncias, que o estado de solteiro sem posses traz a facilidade peculiar de atender, sem distração, aos interesses do Reino de Deus. Isso, certamente, é verdade. Ás vezes é mais d i f í c i l estar completa­mente a serviço de Cristo como uma pessoa casada do que como uma pessoa solteira; o mesmo ocorre no caso de um homem rico e um ho­mem pobre. Isso é especialmente verdadeiro em tempos de dificuldade e

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perigo, quando os homens devem estar totalmente do lado de Cristo, ou preparados para sacrificar tudo por amor a Ele. Quanto menos alguém tiver que sacrificar em tal situação, mais facilidade terá para carregar a sua cruz e portar-se com heroísmo. E aquele que não tiver família para abandonar, nem interesses terrenos para distrair-lhe, poderá se conside­rar feliz em meio a tal crise. O caráter pessoal pode sofrer por causa de tal isolamento: pode perder a genialidade, a doçura e a graça, e ser con­tagiado por alguma aspereza desumana; mesmo assim será mais provável que as tarefas individuais requisitadas sejam cuidadosa e completamente cumpridas. A este respeito, deve ser dito com verdade que “a esperança desesperada na batalha, assim como a causa da cristandade, devem exis­tir em homens que não têm relações domésticas com que tenham que dividir suas devoções, que não deixarão esposa ou filhos para lamentar as suas perdas”13. Contudo, esta declaração não pode ser considerada sem qualquer qualificação. Por isso não é impossível que cristãos casa­dos e ricos procurem desesperadamente assumir os seus lugares: muitos têm feito isso, e aqueles que o fazem são os maiores heróis de todos. A vantagem não está necessária e invariavelmente do lado daqueles que não têm qualquer compromisso com aquilo que poderia trazer-lhes embara­ços, nem mesmo em tempos de guerra; e em tempos de paz a vantagem está precisamente do outro lado. Tanto os monges como os soldados são aqueles que dão início a terríveis situações de degeneração e corrupção, quando não há grandes tarefas para fazerem. Homens que em situações de emergência se mostram capazes — em conseqüência de sua liberdade de todos os embaraços domésticos e seculares — de elevarem-se até um patamar quase sobre-humano de autonegação, podem, em outros momen­tos, naufragar nas profundezas da auto-indulgência, da indolência e da sensualidade, que são raramente vistas naqueles que desfrutam da influên­cia protetora dos laços familiares e dos compromissos profissionais14.

Mas, para não insistir mais sobre isso e, francamente, dizer tudo o que pode ser dito a favor dos solteiros e daqueles em estado despojado, em relação ao serviço do Reino, em certas circunstâncias, nos preocupa­mos em manter claro que em nenhum lugar no Evangelho encontramos a doutrina ensinada de que tal estado seja, em-si mesmo, essencialmente virtuoso. E absurdo dizer, como Renan15, que o monge é, em certo sen­

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tido, o único cristão verdadeiro. O tipo natural do cristão não é o mon­ge, mas o soldado; ambos são freqüentemente colocados na mesma po­sição em relação ao casamento e aos laços de propriedade, mas por ra­zões totalmente diferentes. A senha para a ética cristã não é devotísmo, mas devoção. A devoção sacrificial ao Reino é uma virtude fundamental requi­sitada de todos os cidadãos, e toda palavra severa envolvendo sacrifício pessoal deve ser interpretada, daqui por diante, sob este contexto. “Dei­xa os mortos sepultar os seus mortos”; “Ninguém que lança mão do arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus”; “Se alguém vier a mim e não aborrecer a seu pai, e mãe... não pode ser meu discípulo”; “Vai, vende tudo o que tens... e terás um tesouro no céu; e vem e segue- me” — estas e várias outras expressões de importância semelhante signi­ficam uma única coisa: o Reino deve estar em primeiro lugar, e todas as outras coisas em segundo; e quando o interesse do estado sagrado demandá-lo, todos devem demonstrar prontidão militar em deixar tudo e adequar-se aos padrões. Essencialmente a mesma idéia é a chave do significado de uma difícil parábola dita para “os apóstolos”, e registrada no Evangelho de Lucas, a qual podemos chamar de parábola do serviço extra16. A intenção deste pensamento mostra que o serviço do reino é muito exigente, envolvendo não somente dura labuta no campo durante o dia, mas deveres extras à noite quando o trabalhador exausto felizmen­te descansaria, não tendo horas fixas de trabalho, oito, dez ou doze; o Reino reivindica para si o direito de convocar ao trabalho a qualquer hora dentre todas as vinte e quatro, como no caso dos soldados em tempo de guerra, ou dos trabalhos de uma fazenda em tempo de colhei­ta. E o serviço extra, ou deveres extraordinários, não são isolamentos monásticos, mas demandas extraordinárias em emergências incomuns, chamando homens exaustos pela idade ou por esforço extra a ainda fazer mais esforços e sacrifícios.

Em terceiro lugar, a teoria em consideração é culpada de um erro de lógica. Na suposição de que a abstinência é necessária e intrinsecamente uma virtude maior que a temperança, é ilógico falar dela como sendo opcional. Naquele caso, nosso Senhor não teria dado conselhos, mas ordens. Nenhum homem tem a liberdade de escolher se será um bom cristão ou um indiferente, nem é desculpado por não praticar certas

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virtudes, meramente por serem difíceis. É dever de todos lutar pela per­feição; e se o celibato e a pobreza são necessários à perfeição, então todos os que professam devoção deveriam renunciar ao matrimônio e às propriedades. A igreja de Roma, de uma forma consistente com a sua própria teoria moral, proíbe que seus sacerdotes se casem. Mas por que parar aí? Certamente o que é bom para os sacerdotes é bom para as pessoas em geral.

A razão pela qual a proibição não é levada adiante é, obviamente, a lei da natureza e os requisitos da sociedade que a tornam impraticável. E isso nos traz a uma última objeção à teoria ascética, a saber, que, se for consistentemente cumprida levará ao absurdo e envolverá a destruição da sociedade e da raça humana. Uma teoria que envolve tais conseqüên­cias não pode ser verdadeira. O reino da graça e o reino da natureza não são mutuamente destrutivos. Um único Deus é o soberano de ambos; e todas as coisas pertencentes ao remo mais baixo (terreno) — todas as relações de vida, todas as faculdades, paixões, apetites de nossa natureza, todas as posses materiais — são capazes de tornarem-se subservientes aos interesses do Reino maior (o celestial), e de contribuir para o nosso crescimento em graça e santidade.

A grande dificuldade prática é dar ao Reino de Deus e à sua justiça os seus devidos lugares de supremacia, e manter todas as outras coisas em estrita subordinação. O objeto daquelas severas expressões pronunci­adas por Jesus na Peréia era fixar a atenção dos discípulos e de todos nesta dificuldade. O Senhor disse enfaticamente que os homens compe­lidos pelos cuidados das famílias e confortos das riquezas deveriam levar a sério os seus perigos; e conscientes de seu próprio desamparo, poderi­am procurar pela graça de Deus para fazer aquilo que pensavam ser difícil, porém não impossível. Isso significa preocupar-se e dedicar-se às coisas do Senhor como se fossem solteiros, embora sejam casados; e que os ricos sejam humildes em seus pensamentos, livres em espírito e devo­tados em seus corações ao serviço de Cristo.

Uma palavra deve ser adequadamente dita aqui sobre a bela ocasião em que algumas criancinhas foram trazidas a Jesus para receberem a sua bênção. Quem poderia, depois de ler aquela história, acreditar que a sua intenção fosse ensinar uma teoria monástica relacionada à moral? Em

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que hora oportuna aquelas mães foram a Ele buscando uma bênção para os seus pequeninos, depois que o Senhor havia pronunciado palavras que poderiam ser, como de fato foram, erroneamente interpretadas nos séculos que se seguiram, como uma depreciação das relações familiares! Tal visita deu a Ele a oportunidade de manifestar o seu protesto, por antecipação, contra a falta de compreensão em relação ao seu ensino, E a interferência oficiosa dos doze para manter afastadas do Mestre as mães e seus rebentos somente tornou o protesto mais enfático. Os discípulos pareciam ter extraído, das palavras que Jesus tinha acabado de dizer refe­rente à abstenção do casamento por amor ao reino, a impressão de que o ascetismo acabara de nascer. “Ele não se importa”, provavelmente pen­saram, “com vocês mães e seus filhos. Todos os seus pensamentos são para o Reino dos céus, onde ninguém se casa nem é dado em casamento: retirem-se daqui e não o importunem”. O Senhor não agradeceu aos seus discípulos por guardarem a sua pessoa de intrusos como um bando de policiais superzelosos. “Jesus, porém, vendo isso, indignou-se e disse- lhes: Deixai vir os pequeninos a mim e não os impeçais, porque dos tais é o Reino de Deus”17.

Seção II - As Recompensas do Sacrifício PessoalM ateus 19 .27 -30 ; M arcos 10 .28-31 ; Lucas 18 .28 -30

As observações de Jesus sobre a tentação dos ricos, que pareciam tão desencorajadoras para os outros discípulos, tiveram um efeito dife­rente na mente de Pedro. Elas o levaram a pensar na autocomplacência como um contraste apresentado por sua própria conduta e pela de seus irmãos, em relação à conduta do jovem que veio perguntar sobre a vida eterna. “Nós”, provavelmente pensava consigo mesmo, “temos feito o que o jovem não pôde fazer e que, de acordo com a afirmação que o Mestre acaba de fazer, os ricos consideram muito difícil: deixamos tudo para seguir Jesus. Certamente um ato tão difícil e tão raro deve ser de muito mérito”. E com sua franqueza característica, assim que pensava, falava. “Eis que”, disse ele com um toque de irreverência em sua voz e maneira, “nós deixamos tudo e te seguimos; que receberemos?”

A esta pergunta de Pedro, Jesus deu, à primeira vista, uma resposta cheia de encorajamento e de advertência para os doze e para todos aqueles

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que professam ser servos de Deus. Primeiro, com referência ao conteúdo da pergunta de Pedro, Ele estabeleceu, em uma linguagem entusiasmada, as grandes recompensas que estavam reservadas para ele e para os seus irmãos; e não somente para eles, mas para todos os que fizerem sacrifíci­os pelo Reino. Então, com referência ao auto-satisfeito ou ao espírito calculista que ao menos em parte tinha induzido à pergunta, Ele acres­centou uma reflexão moral com uma parábola ilustrativa anexa, comuni­cando a idéia de que as recompensas no Reino de Deus não eram deter­minadas meramente pelo sacrifício ou ainda pelo valor deste. Muitos que fossem os primeiros nesse aspecto poderiam ser os últimos no ver­dadeiro mérito, por falta de um outro elemento que formava um ingre­diente essencial no cálculo, isto é, a motivação correta; e é possível que houves­se outros que fossem os últimos naquele requisito porém os primeiros a serem recompensados pela virtude do espírito com que eram animados. Devemos considerar estas duas partes na seqüência da resposta. Nosso tema presente trata das recompensas do sacrifício pessoal pelo Reino dos céus.

A primeira coisa que impacta aqueles que pensam nessas recompen­sas é a total desproporção entre elas e os sacrifícios feitos. Os doze ti­nham abandonado seus barcos e redes de pesca e estavam prestes a ser recompensados com tronos; e a todos aqueles que haviam abandonado alguma coisa pelo Reino, não importa o que fosse, havia sido prometido cem vezes mais como retorno na vida presente, e no porvir a vida eterna.

Essas promessas impressionantes ilustram a generosidade do Mes­tre a quem os cristãos servem. Quão fácil teria sido para Jesus depreciar os sacrifícios de seus seguidores e até tornar as suas glórias em ridículo! O Senhor poderia ter dito: “Vocês abandonaram tudo! Qual era o valor daquilo que vocês possuíam? Se o jovem rico tivesse se desfeito de todas as suas posses como eu o aconselhei, ele poderia ter tido alguma coisa de que se gabar; mas no caso de pobres pescadores como vocês, qualquer sacrifício que tenham feito raramente mereceria qualquer menção”. Mas tais palavras não poderiam ter sido pronunciadas pelos lábios de Cristo. Nunca seria sua intenção desdenhar de pequenas coisas ou desprezar os serviços que lhe fossem prestados, como tendo uma visão diminuída de suas próprias obrigações. Em vez disso Ele amava fazer de si mesmo um devedor a seus servos, ao generosamente exagerar no valor de suas boas

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obras, prometendo-lhes, como um retorno adequado, recompensas imen­samente maiores do que de fato mereceriam. Foi assim que Ele agiu neste caso. Mesmo sendo aquilo que os discípulos tinham de pouco valor, Ele ainda se lembrava que isso era tudo o que possuíam; e com apaixonada seriedade, “verdadeiramente” cheio de ternura e sentimentos de gratidão, Ele lhes prometeu tronos como se realmente os merecessem!

Crer nessas grandes e preciosas promessas tornariam os sacrifícios mais fáceis. Quem não abandonaria um barco de pesca por um trono? Que comerciante ou investidor desprezaria um investimento que traria, como retorno, não cinco por cento, ou cem por cento, mas cem por um?

As promessas feitas por Jesus tinham um outro excelente efeito quan­do seriamente consideradas. Elas tendiam à humildade. Sua grande mag­nitude tem um efeito sóbrio na mente. Nem o mais vão seria capaz de fingir que suas boas obras mereceriam ser recompensadas com tronos, e seus sacrifícios recompensados a cem por um. Neste ponto, todos de­vem estar contentes por serem devedores à graça de Deus, e toda conver­sa sobre “méritos” está fora de questão. Esta é uma das razões pelas quais as recompensas do Reino dos céus são tão grandes. Deus derrama as suas dádivas para glorificar o doador, e tornar humildes aqueles que as recebem.

Até agora analisamos as recompensas em geral. Olhando agora mais estritamente para as promessas feitas aos doze, observamos que estas, superficialmente, poderiam despertar ou até mesmo gerar falsas expecta­tivas. A despeito do verdadeiro significado das promessas, há pouca dú­vida quanto ao significado que os discípulos lhes atribuiriam naquele tempo. A “regeneração” e os “tronos” dos quais o seu Mestre havia falado poderiam antes trazer às suas imaginações a imagem de um reino de Israel restaurado — no mesmo sentido em que os homens conversa­vam sobre a Itália restaurada — sem o jugo de uma dominação estran­geira; tribos alienadas reconciliadas e reunidas sob o comando de Jesus, proclamando-o com entusiasmo popular como seu heróico Rei. E eles mesmos, sendo os homens que tinham primeiro acreditado em suas pre­tensões reais, compartilhariam sua fortuna, recebidas por sua fidelidade, tornando-se governadores provinciais; cada um dos doze governaria uma tribo separadamente. Essas idéias românticas nunca se realizaram; e na­

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turalmente perguntamos: Por que Jesus, sabendo disso, expressou-se com uma linguagem que poderia encorajar tais fantasias sem fundamento? A resposta é: Ele poderia não atingir a finalidade desejada, que era inspirar os seus discípulos com esperança, sem expressar as suas promessas em termos que envolvessem o risco de ilusão. Se fosse escolhida uma lingua­gem que evitasse toda a possibilidade de interpretação errônea, o discur­so não teria tido nenhuma influência inspiradora. Para que a promessa tenha o seu impacto, ela deve ser como um arco-íris; brilhante em sua coloração e sólido e substancial em sua aparência. Esta observação não se aplica somente à promessa particular que estamos considerando neste momento, mas a quase todas as promessas de Deus nas Escrituras ou na natureza. Para nos estimular, as promessas devem nos transmitir grande incentivo, trazendo à nossa mente aquilo que no momento parece im­possível de se cumprir18. O arco-íris é pintado em tais cores para nos guiar, irresistivelmente, como crianças que somos, e então tendo servido àquele fim, sua missão terá se cumprido. Quando tudo isso acontece, estamos prontos para pensar que fomos enganados. Mas ao recebermos as bênçãos já não pensamos mais desse modo. As bênçãos de Deus po­dem chegar de formas diferentes do que esperamos, porém serão sempre o melhor para cada um de nós. As promessas de Deus nunca são ilusóri­as, embora assim possam parecer para alguns. Tal foi a experiência dos doze em relação às brilhantes promessas de tronos. Eles não receberam o que esperavam; mas receberam algo análogo; algo que, mais tarde, para os seus maduros julgamentos espirituais, pareceu bem maior e mais sa­tisfatório que aquilo que haviam estabelecido primeiramente em seus corações19.

O que, então, era isso? Era glória, honra e poder reais no Reino de Deus, conferidos aos doze como a recompensa pelos seus sacrifícios, parcialmente nesta vida e perfeitamente na vida vindoura. No aspecto em que a promessa se referia a esta vida presente, o evento mostra a influência legislativa judicial dos companheiros de Jesus como apóstolos e fundadores da igreja cristã. Os doze, como os primeiros pregadores do Evangelho, treinados pelo Senhor para este fim, ocupavam na igreja uma posição que não poderia ser preenchida por mais ninguém que viesse depois deles. As chaves do Reino dos céus foram colocadas em suas

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mãos. Eles eram as pedras fundamentais sobre as quais as paredes da igreja foram construídas. Eles se sentaram, por assim dizer, em tronos episcopais, julgando, guiando, regendo as doze tribos do verdadeiro Is­rael de Deus, a comunidade santa que incluía todos aqueles que tinham fé em Cristo. Os doze apóstolos exerceram tal influência soberana du­rante toda a sua vida; sim, e ainda continuam a exercê-la. As palavras deles eram, e ainda são, lei; o exemplo deles tem servido como um sus- tentáculo para a igreja durante todos estes séculos. Tanto de suas epísto­las como das exposições inspiradas nas férteis palavras de seu Mestre, a igreja derivou o sistema de doutrina abrangido por sua crença. Tudo o que resta de suas formas escritas do sagrado cânone e todas as suas palavras registradas são tidas como fiéis “palavras de Deus”. Com certe­za aqui estão o poder e a autoridade à altura da realeza que representam! A realidade da soberania está aqui, embora as armadilhas da realeza, que atrapalham o olho vulgar, estejam à espreita. Os apóstolos de Jesus eram príncipes de verdade, porém não usavam vestes principescas; a eles foi destinado o exercício de uma das mais extensivas funções que jamais recaiu sobre qualquer um dos vários monarcas de Israel, sem falar dos governadores de cada uma das tribos.

A promessa para os doze tinha, sem dúvida, uma referência às suas posições na igreja no céu, bem como na igreja na terra. Não sabemos o que eles seriam no reino eterno, assim como não sabemos o que cada um de nós será; nossas noções sobre o céu são obscuras. Acreditamos, entre­tanto, fundamentados nas claras afirmações das Escrituras, que no céu os homens não estarão no mesmo nível em que estão na terra. O radica­lism o não é a lei da comunidade sobrenatural, assim como não é a lei de qualquer sociedade bem organizada do mundo. O Reino da glória será o Reino da graça aperfeiçoado; a regeneração começou aqui, e foi trazida ao seu final e completo desenvolvimento. Mas a regeneração, em seu estado de imperfeição, é uma tentativa de organizar os homens em uma sociedade que se baseia na posse da vida espiritual, e o reino inclui todos aqueles que são novas criaturas em Cristo Jesus; o lugar mais elevado está designado àqueles que têm atingido a estatura mais elevada como ho­mens espirituais. Este ideal nunca esteve tão perto de sua realização. A igreja “visível”, o produto da tentativa de realizar isso, é e sempre será, a

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mais desapontadora encarnação, em um formato exterior visível, da ci­dade ideal de Deus. A ambição, o egoísmo, a sabedoria do mundo, e as artes sociais têm, muito freqüentemente, direcionado os tronos aos fal­sos apóstolos que nunca abandonaram nada por amor a Cristo. Por esta razão ainda olhamos para frente e para cima com olhos que desejam a verdadeira cidade de Deus, que deverá, muito em breve, exceder as nos­sas expectativas mais elevadas, que não são satisfeitas pela igreja visível. Naquela sociedade ideal prevalecerá a ordem moral perfeita. Ali todo homem deverá estar em seu próprio lugar; nenhum homem vil deverá estar em lugares altos, nenhuma alma nobre deverá ser fadada à obstru­ção, obscuridade e negligência; porém as mais nobres serão as mais altas e as primeiras, mesmo que agora sejam as mais baixas e as últimas. “Lá existirá glória, e ninguém será elogiado por engano ou adulação; a verda­deira honra será negada a quem não for digno dela; nenhum indigno deverá, com ambição, procurá-la onde ninguém além dos dignos terá permissão de estar”20.

Entre os mais nobres da comunidade sobrenatural estarão os doze homens que formam o grupo daqueles que confiaram a sua vida ao Filho do homem, que foram seus companheiros em suas peregrinações e tentações. Provavelmente haverá no céu muitos maiores do que eles em intelecto e em outras qualidades; mas os maiores lhes concederão pron­tamente o lugar de honra como os primeiros a crerem em Jesus, os ami­gos pessoais do Homem de Dores, e os vasos escolhidos que levaram o seu nome às nações e que, em certo sentido, abriram o Reino dos céus para todos aqueles que creram21.

Entendemos tal aspecto como sendo o resumo da promessa feita aos apóstolos, como líderes daqueles que estão vestidos de branco, o grupo dos mártires e confessores que sofreram por amor a Cristo. Deve­mos observar a seguir que a promessa geral foi feita a todos os que têm fé. Marcos diz: “Ninguém há, que tenha deixado casa, ou pais, ou ir­mãos, ou mulher, ou filhos pelo Reino de Deus e não haja de receber muito mais neste mundo e, na idade vindoura, a vida eterna”.

Esta promessa, de forma semelhante à promessa especial feita aos doze, também tinha uma dupla referência. O temor e a obediência a Deus são representados como proveitosos para ambos os mundos. No

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mundo por vir, os homens que fizerem sacrifícios por Cristo na terra, receberão a vida eterna; no presente, eles devem receber, junto com per­seguições, cem vezes aquilo que sacrificaram. Assim, a vida eterna deve ser entendida como uma preciosa recompensa que antecede outras no porvir. Todos aqueles que forem fiéis terão a vida eterna. O que pode nos parecer o máximo ali será apenas o início das bênçãos! Oh, quão aben­çoado e assegurado está na palavra de Cristo que existe algo como a vida eterna, alcançável em quaisquer termos! Podemos desempenhar bem nos­sa tarefa como servos de Deus, lutando pela verdade e pela boa consci­ência, e combatendo o bom combate da fé; e assim fazendo, poderemos ganhar tais prêmios. “Uma esperança tão grande e divina é capaz de suportar todo o tipo de provações”. Para recebermos a coroa de uma incorruptível vida de bem-aventuranças, não podemos julgar como uma demanda irracional a exigência do Senhor, que quer que sejamos fiéis até à morte. A vida sacrificada nestes termos é semelhante a um rio esvazi­ando-se no oceano, ou à estrela da manhã que se esvai na luz perfeita do dia. Devemos permanecer firmes na abençoada esperança estabelecida diante de nós aqui, e através de sua poderosa influência sermos transfor­mados em heróis morais! Hoje temos apenas uma crença simplória na vida por vir. Nossos olhos estão obscurecidos e não podemos ver a terra que está distante de nós. Alguns dentre nós têm se tornado tão filosófi­cos a ponto de pensar que podemos viver sem a recompensa futura pro­metida por Jesus, e assim brincam de heróis aceitando princípios ateístas. Isso continua a ser visto. Os registros da vida dos mártires nos contam que muitos homens têm sido capazes de alcançar a vida eterna em que sinceramente creram. Até esta data não ouvimos nada sobre grandes atos de heroísmo ou sacrifícios feitos por descrentes. O martirológio do ceticis­mo ainda não foi escrito22.

A parte da promessa de Cristo que diz respeito ao porvir deve ser considerada com confiança; mas a outra parte, que se refere à vida pre­sente, admite ser testada pela observação. A questão, portanto, pode ser colocada do seguinte modo: E de fato verdade que os sacrifícios são recompensados em uma medida cem vezes maior — isto é, de uma for­ma multiplicada23 — de alguma forma neste mundo? A esta questão podemos responder, em primeiro lugar, que a promessa será cumprida com

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bondade e com a regularidade de uma lei, se não confinarmos nossa visão à vida individual, mas incluirmos gerações sucessivas. Quando a pro­vidência tem tempo de trabalhar e gerar os seus resultados, o humilde herda a terra — no mínimo, por seus herdeiros e representantes — e se deleita na abundância de paz. A causa em estudo por fim conquista o respeito do mundo, e recebe dele as recompensas que podem ser conce­didas. As palavras do profeta são então cumpridas: “Até mesmo os fi­lhos da tua orfandade dirão aos teus ouvidos: M ui estreito é para mim este lugar; aparta-te de mim, para que possa habitar nele”24. E novamen­te: “Levanta em redor os olhos e vê; todos estes já se ajuntaram e vêm a ti; teus filhos virão de longe, e tuas filhas se criarão ao teu lado. Então, o verás e serás iluminado, e o teu coração estremecerá e se alargará; porque a abundância do mar se tornará a ti, e as riquezas das nações a ti virão... E mamarás o leite das nações e te alimentarás aos peitos dos reis; e saberás que eu sou o Senhor, o teu Salvador, e o teu redentor, e o possan­te de Jacó. Por cobre trarei ouro, e por ferro trarei prata, e, por madeira, bronze, e, por pedras, ferro; e farei pacíficos os teus inspetores e justos, os teus exatores”25. Estas promessas proféticas, por mais extravagantes que possam parecer, têm se cumprido repetidamente ao longo da histó­ria da igreja: nos primeiros tempos, na época de Constantino, depois que as fogueiras da perseguição, acesas pelos pagãos que zelavam por antigas superstições e idolatrias, finalmente acabaram26; na Grã Bretanha protestante, uma vez famosa pelos homens que estavam prontos a per­der tudo, e que de fato perderam muito, por amor a Cristo, se transfor­mando na princesa dos mares e herdeira da riqueza do mundo; no novo mundo do outro lado do Atlântico, com sua grande, poderosa e populo­sa nação, rivalizando com a Inglaterra em riqueza e força, que cresceu a partir de um pequeno grupo de puritanos exilados que amavam a liber­dade religiosa mais do que o país, e buscaram refúgio contra o despotis­mo no selvagem deserto do inexplorado continente.

Ainda deve ser confessado que, tomando estrita e literalmente a promessa de Cristo, não se pode garantir que ela traga a bondade em todas as circunstâncias. Multidões de servos de Deus tiveram o que o mundo poderia considerar como uma situação miserável. Então a pro­messa simples e absolutamente fracassou no caso deles? Não; pois em

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segundo lugar, a promessa pode ser cumprida de mais de uma maneira. Há bênçãos, por exemplo, que podem ser multiplicadas por cem, sem que a sua aparência exterior o anuncie, simplesmente por meio da renúncia a algo por amor a Cristo. O que quer que seja sacrificado pela verdade, o que quer que estejamos dispostos a abandonar por amor a Cristo, torna- se, a partir deste momento, incomensuravelmente aumentado em valor. Pais e mães, e todos os amigos terrenos tornam-se extremamente queri­dos ao coração quando aprendemos a dizer: “Cristo é o primeiro e estas coisas ou pessoas deverão vir em segundo lugar”. Isaque valia mais do que uma centena de filhos para Abraão quando este o recobrou dos mortos. Ou, para desenhar uma ilustração de outro modo, pense em João Bunyan na cadeia, remoendo-se por sua pobre filha cega, que dei­xou para trás em sua casa. “Minha pobre filha, pensei eu”, ele descreve seus sentimentos em seu inimitável livro Graça Abundante, “quão triste é a tua porção neste mundo! Serás maltratada, pedirás esmolas; passarás fome, frio, nudez e milhares de outras calamidades! Embora eu não possa se­quer pensar nisso, o vento soprará sobre ti. Porém, mesmo assim devo confiar-lhe a Deus, pois tudo indica que logo vos deixarei. Ô! Eu vi que era como um homem que estava derrubando a sua casa sobre as cabeças de sua esposa e filhos; contudo ainda pensei naqueles bois que estavam prestes a puxar a carroça que carregaria a arca de Deus para outro país, deixando seus bezerros para trás”. Se a faculdade de desfrutar for, como de fato é, a medida da verdadeira posse, aqui está um caso onde abando­nar esposa e filhos seria o mesmo que multiplicá-los por cem, e no valor multiplicado das coisas renunciadas encontrar um rico consolo pelos sacrifícios e perseguições. O monólogo do prisioneiro de Bedford é a própria poesia da afeição natural. Que patética é aquela alusão aos bois! Que profundidade de sentimentos delicados ela revela! O poder para se sentir deste modo é a recompensa pelo sacrifício pessoal; o poder de amar deste modo é a recompensa por “deixarmos” os nossos parentes por amor a Cristo. Você não poderá encontrar nenhum amor parecido entre aqueles que fazem da afeição natural uma desculpa para a infideli­dade moral, considerando que a frase a seguir seja uma defesa suficiente para a deslealdade aos interesses do Reino de Deus, a saber: “Tenho uma esposa e uma família para cuidar”.

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Com a devida espiritualização, então, vemos que aquele sentido vá­lido pode apontar para a forte expressão: “cem vezes mais”. E a partir das observações feitas há pouco, veremos adiante porque as “persegui­ções” não eram consideradas como perda, mas sim como uma parte do ganho. A verdade é que as cem vezes mais são entendidas, não a despeito das perseguições, mas em grande parte por causa delas. As perseguições são o sal com que as coisas sacrificadas são salgadas, o condimento que realça o sabor delas. Ou, colocando o problema aritmeticamente, as per­seguições são o fator pelo qual os benefícios terrenos que abandonamos por amor a Deus são multiplicados por cem, se não em quantidade, no mínimo em virtude.

Tais são as recompensas recebidas por aqueles que sacrificam algo por amor a Cristo. Seus sacrifícios são sementes semeadas em meio a lágrimas, que eles mais tarde colhem em uma grandiosa colheita, em gozo. Mas o que será então daqueles que não fizeram nenhum sacrifício ou que não receberam nenhum ferimento na batalha? Se isto não aconte­ceu por falta de vontade, mas por falta de oportunidade, então deverão compartilhar as recompensas. A lei de Davi tem o seu lugar no Reino de Deus. Ele considerava que aqueles que pelejavam em batalha deveriam participar, de forma justa, da divisão dos despojos. Todos precisam en­xergar que não deve haver covardia, indolência ou auto-indulgência. Aque­les que agirem dessa forma errônea, não querendo envolver-se em qual­quer problema, não correndo riscos, ou até mesmo não resistindo à pe­caminosa luxúria por amor ao Reino de Deus, não poderão esperar en­contrar ali, no final, um lugar para si.

Seção III - Os P rim eiros que se Tornarão os Últimos e os Ú ltimos que se Tornarão os P rim eiros

M ateus 19 .30; 2 0 .1 -20 ; M arcos 10.31

Tendo declarado as recompensas pelo sacrifício, Jesus passou a mostrar a possibilidade do confisco ou da perda parcial procedente da indulgência para com os sentimentos indignos, quer por motivos de atos de auto-abnegação ou pensamentos de auto complacência sobre atos já praticados. “Porém”, Ele disse em tom de advertência, como se estivesse com um dedo em riste, “muitos primeiros serão os derradeiros, e muitos

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derradeiros serão os primeiros”. Então, para explicar essa profunda ob­servação, Ele proferiu a parábola que só foi registrada no Evangelho de Mateus.

A explicação, em alguns aspectos, é mais difícil do que o próprio tópico a ser explicado, e traz à tona as mais diversas interpretações. Con­tudo, o principal objetivo de sua parábola parece suficientemente claro. Esta parábola não tinha, como supuseram alguns, a finalidade de ensinar que todos compartilhariam igualmente o Reino eterno, o que não é so­mente irrelevante para a conexão de pensamentos, mas uma inverdade. A parábola também não tencionava proclamar a grande verdade evangélica de que a salvação é pela graça e não por méritos, embora possa ser muito apropriado, ao pregar, aproveitar a ocasião para discursar sobre esta dou­trina fundamental. O grande e maravilhoso pensamento estabelecido, ao que nos parece, é que ao avaliar o trabalho de cada um, o Senhor divino a quem todos servem leva em consideração não meramente a quantida­de, mas a qualidade; ou seja, o espírito com que o trabalho é realizado.

Fica claro que esta visão é correta quando fazemos uma ampla pes­quisa sobre todo o ensino de Jesus quanto ao importante tema do trabalho e das recompensas no Reino de Deus. Entendemos que a relação entre os dois tópicos é fixada pela lei da justiça, e as fantasias são inteiramente excluídas; e assim, se em algum caso o primeiro no trabalho for o último em recompensas, deverão existir razões muito boas para isto.

Existem ao todo três parábolas nos Evangelhos sobre o referido assunto, cada uma estabelecendo uma idéia distinta, e no caso de nossa interpretação da mencionada parábola especialmente considerada ser correta, todas elas, combinadas, apresentam uma exaustiva visão do tó­pico a que estão relacionadas. Elas são a parábola dos talentos27, a das minas28, e aquela que estamos considerando, conhecida como a parábola “dos trabalhadores da vinha”.

Para vermos como essas parábolas são distintas umas das outras e mutuamente complementares, é necessário ter em vista os princípios nos quais o valor do trabalho deve ser determinado. Três coisas devem ser levadas em consideração para formar uma justa estimativa dos trabalhos dos homens, a saber, a quantidade do trabalho feito, a habilidade do trabalhador e o motivo. Deixando de fora, por enquanto, o motivo: quan­

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do a habilidade é igual, a quantidade determina o mérito relativo; e quando a habilidade varia, então não é o valor absoluto, mas a relação da quali­dade com a habilidade que deve determinar o valor.

As parábolas das minas e dos talentos são designadas para ilustrar, res­pectivamente, essas duas proposições. Na parábola das minas, a habilidade é a mesma; cada servo recebe uma mina, mas a quantidade de trabalho feito varia. Um servo com a sua mina ganha dez minas, enquanto um outro com o mesmo montante ganha somente cinco. Então, pela regra acima, o segun­do não deveria ser recompensado como o primeiro, porque não fez tanto quanto o outro. De acordo com isso, na parábola é feita uma distinção, com relação à recompensa dada aos dois servos, e à maneira pela qual eles são respectivamente mencionados pelo seu empregador. O primeiro ganha dez cidades para governar e, adicionalmente, as seguintes palavras de elogio: “Bem está, servo bom, porque no mínimo foste fiel, sobre dez cidades terás a auto­ridade”. O segundo, por outro lado, ganha somente cinco cidades, e o que é ainda mais notável, nenhum elogio. O seu mestre lhe diz secamente: “Sê tu também sobre cinco cidades”. Ele tinha feito algo considerável em compara­ção com os desocupados e, portanto, o seu serviço é reconhecido e propor­cionalmente recompensado. Mas ele não é elogiado como um bom e fiel servo; o elogio é retido, simplesmente porque não era merecido; porque ele não tinha feito o que poderia, mas somente a metade do que era possível, considerando o trabalho do primeiro servo como a medida da possibilidade.

Na parábola dos talentos as condições são diferentes. Lá o volume de trabalho feito varia, como na parábola das minas, mas a habilidade varia na mesma proporção, assim como a relação entre os dois é a mes­ma, no caso de ambos os servos que puseram os seus talentos em uso. Um recebe cinco e ganha cinco, o outro recebe dois e ganha dois. De acordo com a nossa regra esses dois deveriam ser iguais em mérito; e são representados assim na parábola. A mesma recompensa é destinada a cada um, e ambos são elogiados nos mesmos termos; as palavras do mestre em ambos os casos são: “Bem está, bom e fiel servo. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor”.

Então, fica estabelecido o caso, quando levamos em consideração somente os dois elementos, a habilidade para trabalhar e a quantidade de trabalho a ser feito; ou quando combinamos ambos em um só, o

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elemento do zelo. Mas há mais do que zelo a ser considerado, pelo menos no Reino de Deus. Neste mundo os homens são freqüente­mente elogiados por sua diligência, independentemente de seus moti­vos; e nem sempre é necessário ser zeloso para ganhar o aplauso vulgar. Se alguém faz algo que parece grande e liberal, os homens o elogiarão sem lhe perguntar se foi uma grande coisa, um ato heróico envolvendo sacrifício pessoal, ou somente um ato respeitável, mesmo que não se trate necessariamente de um ato de honestidade ou devoção. Mas na visão de Deus muitas coisas grandes são pequeninas, e muitas coisas pequeninas são muito grandes. A razão é que Ele vê o coração e as intenções ali escondidas, e julga a corrente pela fonte. Quantidade não é nada para Ele, a menos que exista zelo; e zelo não é nada para Ele, a menos que seja purgado de toda a vangloria e busca de ganhos pessoais egoístas — uma fonte pura de bons impulsos; isenta de toda a fumaça das paixões carnais — uma chama pura de devoção nascida no céu. Motivos corretos beneficiam a todos; motivos errados prejudicam a todos.

A parábola proferida por Jesus em Peréia tem a finalidade de enfatizar esta verdade, e insistir na necessidade de motivos e emoções corretos em conexão com trabalhos e sacrifícios. Ela ensina que uma pequena quan­tidade de trabalho feito com um espírito certo é de maior valor que uma grande quantidade feita com um espírito errado, por maior que tenha sido o zelo em sua execução. Uma hora de trabalho feita por homens que não barganham é de maior valor que doze horas de trabalho feitas por homens que suportaram o calor e a carga do dia, mas que conside­ram os seus feitos com autocomplacência. Colocando de uma forma didática, a lição da parábola é a seguinte: trabalhem, não como mercená­rios que apenas buscam os maiores ganhos possíveis, nem como os fariseus que exigem tudo com arrogância, exigindo os salários a que se julgam habilitados; trabalhem humildemente considerando-se, na melhor hipó­tese, servos inúteis; generosamente, como homens superiores ao cálculo egoísta de vantagens; confiadamente, como homens que confiam na ge­nerosidade do grande Empregador, considerando-o como alguém de quem não é necessário proteger-se através do estabelecimento de um contrato ou de uma rápida barganha.

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Nesta interpretação é estabelecido que o espírito do primeiro e do último a entrar na vinha eram, respectivamente, conforme o que acabamos de comentar; e a suposição é justificada pela maneira pela qual os partici­pantes são descritos. O espírito com que os últimos trabalharam pode ser inferido pelo fato de não terem feito nenhuma barganha; e o temperamen­to dos primeiros é manifestado por suas próprias palavras no final do dia: “Estes derradeiros”, disseram eles, “trabalharam só uma hora, e tu os igua- laste conosco, que suportamos a fadiga e a calma calor do dia”. Esta é a linguagem da inveja, do ciúme e da auto-estima exagerada, e é parte da conduta desses trabalhadores no início de um dia de trabalho; pensam entrar na vinha como contratados, tendo feito uma barganha, e só concor­dando em trabalhar por um pagamento previamente estipulado.

Os primeiros e os últimos, então, representam duas classes entre os professos servos de Deus. Os primeiros representam os calculistas e autocomplacentes; os últimos representam os humildes, abnegados, ge­nerosos e confiáveis. Os primeiros são os “Jacós”, labutando em benefí­cio de si mesmos, capazes de falar por si mesmos: “Assim fui: de dia a seca me consumiu, e à noite o frio; e assim o sono partiu de meus olhos”. Estes são zelosos por seus próprios interesses, garantindo que até mes­mo a sua religião lhes assegure uma boa barganha, confiando pouco na graça e na generosidade gratuitas do grande Senhor. Já os últimos são homens parecidos com Abraão, não por seus trabalhos tardios, mas pela magnanimidade de sua fé, entrando na vinha sem barganhar, assim como Abraão deixou a casa de seus pais, sem saber para onde estava indo, mas sabendo somente que Deus lhe havia dito: “Sai-te da tua terra... para a terra que eu te mostrarei”. Os primeiros são os “Simãos”, honrados, respeitáveis, exemplares, porém duros, prosaicos, sem genialidade nem cortesia; os últimos são as mulheres com vasos de alabastro, as quais por um longo tempo têm sido ociosas, sem objetivos, viciadas, sem propósi­tos na vida; mas, por fim, com lágrimas amargas de dor por causa de um passado inútil, começam uma nova vida com honestidade e empenho para redimir o tempo perdido pela devoção apaixonada com que agora servem ao Senhor e Salvador. Os primeiros, uma vez mais são os irmãos mais velhos, que permanecem na casa de seus pais, e nunca transgridem nenhum dos mandamentos e não têm misericórdia daqueles que o fa-

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zem; os últimos são os pródigos que deixam a casa de seus pais e gastam as suas posses em uma vida dissoluta, mas ao final voltam aos seus sen­tidos, e dizem: “Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai”; e encontrando- o, exclamam: “Pai, pequei contra o céu e perante ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me como um dos teus trabalhadores”.

As duas classes diferindo assim em pensamento são tratadas na pa­rábola, precisamente, como deveriam ser. Os últimos se tornam os pri­meiros e os primeiros se tornam os últimos. Os últimos são pagos pri­meiro, para mostrar o prazer que o mestre tem em recompensá-los. Eles também são pagos a uma taxa bem mais elevada; recebem, por uma hora de trabalho, a mesma soma que outros recebem por doze; assim são pagos à taxa de doze por um. Eles são tratados, de fato, como se fossem o filho pródigo a quem o pai fez a festa; enquanto os “primeiros” são tratados como se fossem o irmão mais velho, cujo serviço era reconheci­do, mas que reclamou dizendo que seu pai nunca lhe havia concedido sequer um cabrito para fazer um festa com os seus amigos. Aqueles que se julgavam indignos de ser alguma coisa além de servos contratados, e muitos inaproveitáveis em capacidade, são tratados como se fossem fi­lhos; e aqueles que se julgam mais merecedores são tratados com frieza e distância, apenas como empregados contratados.

Passando agora da parábola para o aforismo, vemos que ela tem a finalidade de ilustrar que freqüentemente ocorre àqueles que são como os primeiros em habilidade, zelo e extensão de serviço, ter os últimos lugares em termos de recompensa. “Muitos primeiros serão derradeiros, e muitos derradeiros serão primeiros”. A afirmação sugere que a auto- estima é um pecado que facilmente ataca os homens que estão em posi­ções de destaque como os doze, isto é, homens que tenham feito sacrifí­cios pelo Reino de Deus. Então, a observação prova que isto é um fato; e mais adiante nos ensina que existem certas circunstâncias sob as quais os laboriosos e abnegados estão especialmente sujeitos a cair no pecado da “justiça própria”, ou seja, tendem a querer que os seus conceitos sobre justiça sejam aplicados em vez de aceitarem com mansidão e resig­nação a justiça perfeita do Senhor. Isso servirá para ilustrar as palavras profundas e, à primeira vista, até mesmo obscuras, proferidas por Jesus, desde que indiquemos aqui quais são essas circunstâncias.

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1) Aqueles que fazem sacrifícios por amor a Cristo estão em perigo de cair em um estado mental de “justiça própria”, quando o espírito de abnegação se manifesta em atos raros e ocasionais, em vez de manifestar- se em forma de hábito. Neste caso os cristãos se elevam de modo emer­gente, e esta elevação de espírito está muito acima do nível comum de seus sentimentos morais; então, embora quando faziam os seus sacrifíci­os pudessem ter se comportado heroicamente, mais tarde são capazes de reverter a autocomplacência de seus nobres feitos, assim como um velho soldado que volta às suas batalhas e, como Pedro, ousa perguntar com um orgulho consciente do mérito por ter abandonado tudo: “O que receberemos” por isso? Este é verdadeiramente um estado mental a ser temido. Uma sociedade na qual o orgulho espiritual e a autocomplacência prevalecem está em um mau caminho. Uma pessoa que tenha a visão profética acerca das leis morais do universo pode predizer o que aconte­cerá. A comunidade religiosa que se julga superior buscará, gradualmen­te, dádivas e graças; e algumas outras comunidades religiosas que esta primeira desprezava, avançarão gradualmente. A longo prazo ficará mani­festo a todos os homens, que as posições se inverteram.

2) Existe um grande perigo de degeneração de espírito naqueles que fazem sacrifícios pelo Reino de Deus, quando qualquer espécie de serviço em particular torna-se muito exigida, e por esta razão passa a ser conside­rada em um nível de estima mais elevado. Tome como um exemplo a resis­tência a torturas físicas e à morte em tempos de perseguição. E bem sabido com que grande admiração os mártires e confessores eram considerados na igreja dos primeiros séculos. Aqueles que sofriam o martírio eram qua­se endeusados pelo entusiasmo popular: o aniversário tanto da morte quanto do nascimento deles29 eram observados com solenidades religiosas, oca­sião em que seus feitos e sofrimentos neste mundo eram encenados com fervorosa admiração com elogios extravagantes. Até os confessores que tinham sofrido, mas que não morreram por Cristo, eram vistos como mem­bros de uma ordem superior de seres, separados por um imenso abismo do grupo comum de cristãos que não foram provados. Eles eram considera­dos absolutamente santos, como seres que possuíam uma auréola de glória em torno de suas cabeças, tendo poder junto a Deus, e o povo chegava a crer que tivessem a autoridade de condenar ou absolver em um nível mais

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elevado do que as autoridades eclesiásticas regulares. Esta suposta absolvi­ção através deles era ansiosamente procurada pelos relapsos; a admissão à sua comunhão era considerada como uma porta aberta pela qual os peca­dores podiam retornar à comunhão da igreja. Eles apenas precisavam dizer ao pecador: “Vá em paz”, e até os bispos deveriam recebê-los. Os bispos se juntavam à população nesta homenagem idólatra àqueles que sofreram por amor a Cristo. Eles estimavam e lisonjeavam os confessores, em parte por admiração honesta, e em parte por política, para induzir outros a imitarem os seus exemplos, e alimentar a virtude da firmeza, tão necessária em tempos de sofrimento.

Este estado de sentimento na igreja era obviamente cheio de grande perigo para as almas daqueles que enfrentavam sofrimentos pela verda­de, como que tentando-os ao fanatismo, à vaidade, ao orgulho espiritual e à presunção. Nenhum deles era isento à tentação. Muitos tomaram exclusivamente para si todos os louvores que receberam, como se os ti­vessem alcançado por virtude própria; e assim julgaram-se pessoas de grande capacidade e mérito. Os soldados que os generais haviam lisonje- ado com a finalidade de torná-los corajosos, começaram a agir como se fossem os mestres. Assim chegavam, por exemplo, a escrever com ousa­dia na extravagância de seus vãos pensamentos àqueles que no passado tinham sido ofensores ou perseguidores, cartas como a seguinte: “Todos os confessores para Cipriano, o bispo: Saiba que temos garantido a paz a todos aqueles a quem você tem em conta pelos erros que praticaram: temos observado como eles têm se comportado desde que cometeram os seus crimes; e esperamos que você divulgue a nossa decisão aos de­mais bispos. Desejamos que você mantenha a paz com os santos márti­res”30. Assim se cumpria nesses confessores a palavra: "Muitos primei­ros serão derradeiros, e muitos derradeiros serão primeiros”. Mesmo sen­do os primeiros no sofrimento pela verdade e pela reputação de santidade, tornaram-se os últimos no julgamento daquele que esquadrinha os cora­ções. Dessa forma, entregaram seus corpos para serem açoitados, mutila­dos, queimados e isso lhes serviu para pouco, ou mesmo para nada.31

3) Os primeiros correm perigo de se tornarem os últimos quando a abnegação é reduzida a um sistema, e praticam o ascetismo, não por amor a Deus, mas a si mesmos. E ninguém negará que quando o assunto

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for o valor da abnegação, a austeridade ascética é colocada no primeiro lugar. Mas seu direito a esta posição está sujeito a discussão, quando se trata do valor espiritual intrínseco e do Reino de Deus. Até em relação ao problema fundamental de se livrar de si mesmo, ele pode ser não o primeiro, mas o último. A abnegação do ascético é, de alguma maneira, uma auto-afirmação sutil. O verdadeiro sacrifício cristão significa sofri­mento, submeter-se a perdas, não por amor próprio, mas por amor a Cristo e à verdade, em um tempo em que a verdade não pode ser mantida sem sacrifício. Mas o sacrifício dos ascéticos não é desse tipo. E total­mente apoiado por seu amor-próprio, para seu próprio crédito e supos­to benefício espiritual. Ele pratica a abnegação conforme o estilo de um avarento, que é um abstêmio total de todas as luxúrias, e até queixa-se das necessidades da vida porque tem uma paixão por acumular bens e capital. Como o avarento, julga-se rico; e ambos, o ascético e o avarento, são igualmente pobres: o avarento porque com toda a sua riqueza não pode desfazer-se de suas moedas em troca de comodidades agradáveis; o ascético, por causa de suas moedas, suas assim chamadas “boas obras” — dolorosos atos de abstinência que não passam de falsificações — porque não são aceitas no Reino dos céus. Todas as obras que os ascéticos fazem para salvar suas almas não são nada mais do que atitudes tolas e desprezíveis que serão queimadas; e se forem salvos, o serão como que pelo fogo.

Relembrando agora, por um momento, as três classes de casos nos quais os primeiros estão em perigo de tornarem-se os últimos, compreendemos que a palavra “muitos” não é um exagero. Conside­re, por exemplo, quanto da obra realizada pçn^cristãos professos per­tencem a uma ou outra dessas categorias: esforços espasmódicos oca­sionais; boas obras de liberalidade e filantropia, que estão na moda e em alta consideração no mundo religioso; e bons trabalhos que são realizados, não tanto por interesse nos trabalhos em si, mas d irigi­dos a refletir positivamente sobre os interesses religiosos daqueles que os realizam. M uitos são chamados a trabalhar na vinha de Deus e muitos estão, de fato, trabalhando. Mas poucos são escolhidos; poucos são os melhores; poucos trabalham para Deus no espírito dos preceitos ensinados por Jesus.

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Mas embora existam poucos trabalhadores como estes, é importan­te ressaltar que eles existem. Jesus não disse que todos os primeiros se transformarão em últimos, nem que todos aqueles que estão em último lugar passarão a ser os primeiros: Sua palavra é muitos. Existem numero­sas exceções à regra em ambas as partes. Nem todos aqueles que supor­tam o calor e a carga do dia são mercenários e cheios de sua própria justiça. Não; o Senhor sempre teve em sua vinha espiritual um nobre grupo de trabalhadores. Se algum deles tivesse a oportunidade de se gloriar, o faria por conta da duração, dificuldade e eficiência de seus serviços, contudo sem alimentar pensamentos autocomplacentes, nem se mostraria indulgente calculando quanto deveria receber a mais que os outros. Pense em missionários devotados que se dispuseram a trabalhar em terras pagãs; em reformistas heróicos como Lutero, Calvino, Knox e Latimer; homens eminentes de nossos dias, já tirados de nosso convívio. Você pode imaginar tais homens conversando, na vinha, com aqueles que trabalharam antes deles? Verdadeiramente, não! Durante a sua vida, cada um deles teve pensamentos modestos sobre si mesmo e sobre os serviços que prestaram à obra de Deus. E ao final de seus dias, os seus trabalhos lhes pareceram pequenos e jamais merecedores da grande re­compensa da vida eterna. Estes primeiros certamente não se transforma­rão em últimos.

Entendendo que existirão alguns primeiros que não se tornarão úl­timos, também existirão alguns últimos que não se tornarão os primei­ros. Se fosse de outra maneira, se ser o último em tempo de trabalho, em zelo e devoção dissse ao homem uma vantagem, estaríamos diante da ruína dos interesses do Reino de Deus. Seria, de fato e com efeito, pre­miar a indolência, encorajando os homens a permanecerem o dia todo ociosos, ou a servirem o demônio até a décima primeira hora; e então, em sua velhice, tentar entrar na vinha e dar ao Senhor uma pobre hora de trabalho, quando seus membros estivessem doloridos e seu físico fraco e cambaleante. Não existe tal lei desmoralizante no Reino dos céus. Em igualdade de condições, quanto mais tempo e com mais qualidade um homem servir a Deus, e quanto mais cedo começar e trabalhar com o máximo empenho possível, melhor será para ele no porvir. Se aqueles que começam tarde são graciosamente tratados, é importante saber que

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isso não se deve ao seu próprio atraso. Terem permanecido ociosos por um longo período não é um elogio, mas um pecado; não é um caso de congratulações, mas de profunda humilhação. Se é errado aqueles que têm servido por muito tempo ao Senhor se gloriarem, certamente é ain­da mais impróprio, e até ridículo, alguém se orgulhar por servi-lo pouco, como um trabalhador de última hora. Se os primeiros não têm motivos para se gloriar nem para desejarem ser tratados conforme a sua própria justiça, menos ainda os últimos.

1 Mateus X9.I2 Veja o capítulo I3 João 10.39-404 João 10.415 A questão do divórcio era motivo de disputa entre estas duas escolas, uma mais permissiva e outra mais estrita,

respectivamente.6 João 117 Marcos 10.24. Contudo, a leitura aqui precisa ser bem. analisada; algumas cópias trazem um texto que pode ser

entendido como: “Quão difícil é entrar no reino de Deus” (pos duskolon estin eis ten basileian tou theou eiselthein). Alford considera esta leitura como um erro de algum copista, por causa da semelhança na parte final com estin e cbremasin (as palavras omitidas foram touspepoithotas epi chremasin). A leitura abreviada é adotada porTischendorf (8a edição), e por Westcott e Hort em sua valiosa edição do Novo Testamento Grego. Os revisores dão preferência ao texto antigo.

8 Marcos 10.23-279 De Disciplina et Habitu Virginum, sub finem (Clarks Ante-Nicene Library, Cyprian, 1.333).10 Ex eodem libre11 Vita S. Antonii (Athanasii). Veja também a obra de Neander, Church History, edição de Clark, 2.308.12 Temos em vista, aqui, Nilo de Constantinopla. Veja a obra de IsaacTaylor, Logic in Theology, pg. 130.13 Robertson de Brighton. Sermons, serie 3.: On Marriage and Celibacy.14 Para conhecer o terrível quadro de corrupção que prevalecia nos mosteiros em seus primórdios, veja a obra de

IsaacTaylor, Ancient Christianity.15 Vie âe Jésus, pg 328.16 Lucas I7 .7 -I017 Marcos 10.14. Para conhecer uma admirável defesa da interpretação anti-ascética das palavras de Cristo ao

jovem rico, veja o tratado de Clemente de Alexandria, Quis dives salvetur.18 Veja um admirável sermão do Rev. F. W. Robertson sobre este assunto na terceira série de sua obra intitulada

Sermons. Tema — A Ilusão da Vida.19 A questão: “Qual era a doutrina de Cristo a respeito do reino em sua forma futura e final?” é uma das mais

difíceis em todo o conjunto de estudos sobre o Evangelho. Alguns têm argumentado que tal doutrina é ambígua, inconsistente por si só, e variável; apocalíptica e voltada aos sentidos, ideal e espiritual. Pfleiderer argumenta que o Remo, conforme expresso pelo Senhor Jesus Cristo, era tanto interiormente espiritual, quanto exteriormente volta­do aos sentidos, chegando a ser puramente humano e religioso, além de judaico-teocrático. Não faz parte do escopo desta obra descer a detalhes sobre este assunto.

20 Agostinho, A Cidade de Deus, 22.30.21 A ordem superior dos doze no Reino eterno é reconhecida em Apocalipse 21.14. “E o muro da cidade tinha

doze fundamentos e, neles, os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro”.

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22 Alguns se referem ao budismo como um sistema que produz o heroísmo moral sem ter uma esperança como o seu motivo. Mas o budismo procura, sim, apresentar uma esperança eterna. Mesmo significando aniquilação, o termo Nirvana era para Buda algo que lhe trazia uma esperança, semelhante àquela que os cristãos têm em relação ao céu e à vida eterna. O dogma da transmigração tornava a vida tão terrível, que a aniquilação poderia ser considerada como uma bênção, e até mesmo um favor. Daí pode-se concluir que o Nirvana não é, como a aniquilação para os materialistas, uma questão de necessidades físicas sem considerar o caráter: é a mais elevada recompensa da virtude.

23 pollaplasiona. Lucas 18.30.24 Isaías 49.202:1 Isaías 60.4,5,16,1726 Veja o sermão de Paulino deTiro na consagração de sua igreja, que foi reconstruída, como muitas outras, após

a última perseguição. As igrejas haviam sido destruídas por causa do edito de Diocleciano. Eusébio, Hist. Ed. 10.4.27 Mateus 25 .14-3028 Lucas 19.12-2829 A festividade dedicada a um mártir era chamada de natalitia.30 Cave, Primitive Christianity, parte 3, cap. 5. Para conhecer o original, veja Cipriani, Opera, Clark’s Ante-Nicene

Library, Cyprian, 1.54.31 A virtude ora em questão é a de ofertar com liberalidade às missões e aos trabalhos filantrópicos de vários

tipos. A mesma degeneração de motivos pode ocorrer em relação a ofertar e os sofrimentos nos dias do início da igreja. Os primeiros em nossas listas de contribuição poderão vir a ser os últimos no Livro da Vida.

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17Os Filhos de Zebedeu de Novo

ou Segunda Liçao sobre a Doutrina da Cruz

Mateus 20 .17-28 ; Marcos 10.32-45; Lucas 18 .3 1-34

O incidente registrado nessas passagens dos Evangelhos de Mateus e Marcos, aconteceu quando Jesus e seus discípulos estavam subindo para Jerusalém pela última vez. Faziam sua jornada via Jericó, em uma região do deserto de Efraim, para onde se retiraram depois do milagre da ressurreição de Lázaro1. O ambicioso pedido dos dois filhos de Zebedeu, por lugares importantes de honra no reino, foi feito, portanto, pouco mais de uma semana antes de Jesus ser crucificado. Não faziam a mínima idéia do que estava por vir! Mas não foi por falta de aviso. Pouco antes de fazerem seu pedido, Jesus, pela terceira vez, anunciou explicita­mente a -çtoximidade de sua morte, indicando ci ue o acontecimento es­taria ligado a esta atual visita a Jerusalém. Acrescentou outros detalhes com relação aos seus últimos sofrimentos, não especificados antes que fosse conveniente chamar a atenção a eles. Portanto, sua morte deveria ser o resultado de um processo judicial, e Ele deveria ser entregue pelas autoridades judaicas aos gentios, para ser zombado, açoitado e crucifica­do2.

Depois de registrar os termos do terceiro anúncio de Cristo, Lucas acrescenta, em relação aos discípulos: “E eles nada disso entendiam, e esta palavra lhes era encoberta, não percebendo o que se lhes dizia”3. A verdade dessa afirmação é suficientemente visível a partir da cena que se seguiu, não registrada por Lucas, e é também a causa do fato declarado. Como podemos perceber, os discípulos estavam pensando em outras questões enquanto Jesus lhes falava de seus sofrimentos, que cada vez mais se aproximavam. Eles estavam sonhando com os tronos que haviam

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sido prometidos em Peréia e, portanto, não eram capazes de entrar nos pensamentos do Mestre, que eram totalmente diferentes dos pensamen­tos deles. Suas mentes estavam completamente possuídas por expectati­vas românticas, suas cabeças estavam tontas pelo vinho borbulhante de esperanças vãs; e à medida que se aproximavam da cidade santa, sua firme convicção era “que logo se havia de manifestar o Reino de Deus”4.

Enquanto todos os discípulos estavam esperando ansiosamente pelos seus tronos, Tiago e João cobiçavam as posições mais elevadas, elaborando um esquema para assegurá-las, e então ganhar a disputa de quem seria o maior. Estes foram os dois discípulos que mais se ressen­tiram com a grosseria dos habitantes de Samaria. Assim, os maiores fanáticos entre os doze foram os mais ambiciosos, uma característica que não surpreenderia os estudiosos da natureza humana. Na ocasião anterior, eles perguntaram a Jesus se podiam pedir fogo do céu para consumir seus adversários; na presente ocasião eles pedem um favor do céu em detrimento de seus companheiros. Os dois pedidos não são muito diferentes.

Ao maquinar e executar seus planos, os dois irmãos contaram com a participação de sua mãe, cuja presença não é explicada, mas pode ter sido devido ao fato de ela ter-se tornado uma assistente de Jesus em sua viuvez5, ou a um encontro acidental com Ele e seus discípulos na junção das estradas convergentes em Jerusalém, para onde todos agora se dirigi­am para celebrar a festa. Salomé era a atriz principal da cena, e deve-se admitir que ela desempenhou bem o seu papel. Ajoelhando-se perante Jesus, como se estivesse fazendo uma homenagem a um rei, ela demons­trou seu humilde desejo de fazer um pedido; e Jesus perguntou-lhe gen­tilmente: “Que queres? Ela respondeu: Dize que estes meus dois filhos se assentem um à tua direita e outro à tua esquerda, no teu Reino”.

A origem desse pedido certamente não era a inspiração do Espírito Santo, era o resultado de um esquema no qual não se esperaria que os companheiros de Jesus estivessem envolvidos. E até hoje esse tipo de maquinação é tão real na natureza humana e se revela em todas as épo­cas, que não podemos senão sentir que não se trata de nenhum mito, mas sim de uma parte genuína da história. Sabemos que em todos os tempos nos círculos religiosos de alta reputação, entusiasmo, devoção e

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santidade, encontram-se também pessoas que apresentam um espírito mundano; e não temos o direito de erguer as nossas mãos com espanto quando vemos isto aparecendo até mesmo no círculo mais próximo a Jesus. Os doze não eram mais do que cristãos imaturos, e devemos dar- lhes tempo para se santificarem, assim como os outros. Por isso, não nos escandalizamos com a conduta desses homens, nem ocultamos o seu verdadeiro caráter com a finalidade de pouparmos a sua reputação. Não ficamos surpresos com o comportamento dos dois filhos de Zebedeu, e ainda dizemos claramente que seu pedido era tolo e revoltante: indicava, ao mesmo tempo, uma presunção ousada, uma estupidez grosseira, e um forte egoísmo.

Era um pedido irreverente e presunçoso porque virtualmente pedia a Jesus, seu Senhor, que se tornasse instrumento de sua ambição e vaida­de. Imaginando que Jesus concederia a simples solicitação, talvez pen­sando que Ele não teria coragem de recusar um pedido vindo de uma suplicante do sexo feminino, que como uma viúva era objeto de compai­xão, e como alguém que contribuía em sua obra tivesse o direito de reivindicar a sua gratidão. Eles suplicaram um favor que Jesus não pode­ria conceder sem ser infiel a seu caráter e a seu ensino habitual, como exemplificado no discurso sobre a humildade na casa em Cafarnaum. Ao fazerem tal pedido, eles se tornaram culpados de direta e desrespeitosa presunção, mais característica de um espírito ambicioso, que é totalmen­te desprovido de delicadeza, pressionando a situação a seu favor, indife­rentes às conseqüências que a ofensa possa trazer, sem perceber como ela fere a sensibilidade de outros.

O pedido dos dois irmãos era tanto ignorante como presunçoso. A idéia sobre o reino, implícita no pedido, estava muito distante da verda­de e da realidade. Tiago e João não só pensavam no Reino que viria como um reino deste mundo, mas pensavam nele com mediocridade, mesmo ouvindo a palavra do Senhor Jesus. Por isso, a situação daqueles homens era corrupta e doente, até mesmo se pensarmos em termos se­culares, em que os lugares da mais alta distinção podem ser obtidos por solicitação e favor, e não apenas considerando se os candidatos são capa­zes de assumir as responsabilidades da posição. Quando a influência da família ou a arte palaciana é a trilha para o poder, cada patriota tem

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motivo para reclamar. Que absurda, então, a idéia de que a promoção pode substituir aquilo que é divino, o ideal de reino perfeito, pelos mei­os que são inadmissíveis em qualquer reino secular bem regulado! Ali­mentar tal idéia é, de fato, rebaixar e desonrar o Reino de Deus, ao compará-lo com um déspota sem princípios, que tem mais estima por bajuladores do que por homens honestos; e caricaturar o reino asseme­lhando-o às nações mais mal governadas da terra, tais como aquelas que são governadas com autoritarismo ou por governantes semelhantes a Nero.

O pedido dos irmãos também era intensamente egoísta. Era mes­quinho em relação aos seus companheiros discípulos; pois era uma ten­tativa de superá-los de uma forma enganosa que produz danos — como todas as tentativas dessa natureza — trazendo a perturbação da paz do círculo familiar, dando origem a uma detestável amargura entre seus membros. “Quando os dez ouviram isso, indignaram-se”. Não é de ad­mirar. Se Tiago e João não previram tal efeito, fica comprovado que estavam totalmente tomados por seus próprios pensamentos egoístas; e se o previram, e apesar disso não se desviaram de um curso de ação que certamente causaria ofensa, o egoísmo deles se tornou ainda mais indesculpável e cruel.

Mas o pedido dos dois discípulos era egoísta em uma visão mais ampla, isto é, em relação aos interesses públicos do Reino dos céus. Na prática, estavam dizendo o seguinte: “Nos conceda os lugares de honra e poder, aconteça o que acontecer; mesmo que isto signifique infelicida­de universal, deslealdade, desordem, desastre, e uma confusão caótica”. Estes são os efeitos da promoção através de favor em vez do mérito, tanto na igreja como no estado; e as nações sofrerão as conseqüências de tudo isso, mais cedo ou mais tarde. E verdade que Tiago e João nunca sonharam com um desastre como resultado do seu pedido ser aceito. Nenhum interesseiro ou lobista prevê resultados malignos por causa da sua promoção. Mas isso não faz com que sejam menos egoístas. Apenas mostra que além de serem egoístas, são vaidosos e vãos.

A resposta de Jesus a este pedido ambicioso, considerando seu cará­ter, foi simplesmente tranqüila. Apesar da presunção insultante, da petu­lância, do egoísmo e da vaidade dos dois discípulos, a resposta de Jesus

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demonstrou seu espírito manso, paciente e santo. Ele não proferiu uma palavra de repreensão direta, mas lidou com Tiago e João como um pai Yvta eomumÇ&vo que íaz, um "pedido \memAo. kV>s\£riàc>-sç. de enVvCA sobre faltas graves trazidas à luz pelo pedido deles, Jesus levou em con­sideração apenas o aspecto menos culpável — a ignorância deles. “Não sabeis”, Ele disse calmamente, “o que pedis”; e mesmo este comentário foi feito com mais compaixão do que como uma forma de culpá-los. Jesus se apiedou dos homens que lhe fizeram petições cuja realização, como Ele bem sabia, implicava em experiências dolorosas das quais eles nem faziam idéia. Foi neste espírito que Jesus fez a pergunta esclarecedora: “Podeis vós beber o cálice que eu hei de beber e ser batizados com o batismo com que eu sou batizado?”6

Mas havia mais que compaixão ou correção nesta pergunta, e até mesmo instruções concernentes ao verdadeiro caminho para se obter promoções no Reino de Deus. De forma interrogativa Jesus ensinou aos seus discípulos que o avanço no seu reino não é alcançado por meio de favores, nem obtido através de solicitações; mas que o caminho para os tronos é a via dolorosa da cruz; que os dignos de palmas nas regiões da glória serão aqueles que passarem por grandes tribulações; e os príncipes do reino serão aqueles que beberem mais do seu cálice de tristeza; e que para aqueles que se recusarem a bebê-lo, os egoístas, auto-indulgentes, ambiciosos, vaidosos, não haverá lugar nenhum no reino, muito menos lugares de honra à sua direita ou esquerda.

A pergunta inicial feita por Jesus a Tiago e João não os surpreendeu. Imediata e firmemente responderam: “Podemos”. Será que eles realmente le­varam em conta o cálice e o batismo de sofrimento e deliberadamente decidi­ram pagar o alto preço da cobiçada recompensa? O fogo sagrado do espírito de martírio já havia chegado e iluminado os seus corações? Alguém ficaria feliz em pensar que sim, mas tememos que não haja nada que justifique tão favorável opinião. E muito mais provável que na impaciência de conseguir o objeto de sua ambição, os dois irmãos estivessem prontos a prometer qualquer coisa, e que, de fato, nem sabiam ou se importavam com o que estavam prometendo. A declaração confiante dos dois irmãos traz uma suspeita semelhança com a bravata proferida por Pedro alguns dias depois: “Ainda que todos se escanda­lizem em ti, eu nunca me escandalizarei”.

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Entretanto, no caso dos filhos de Zebedeu, Jesus preferiu, como no caso de Pedro, não colocar em dúvida o heroísmo professado tão osten­sivamente, mas adotou o caminho de admitir que eles não só eram capa­zes, mas também desejosos, favoráveis e ansiosos por participar dos seus sofrimentos. Com o ar de um rei que cede aos favoritos o privilégio de tomar da taça de vinho real e de se lavar no jarro real, Ele replicou: “Em verdade vós bebereis o cálice que eu beber e sereis batizados com o batis­mo com que eu sou batizado”. Entretanto, o favor que o Rei concedia parecia estranho! Se os dois irmãos tivessem entendido o sentido das palavras, poderiam ter imaginado que seu Mestre estava se divertindo em um acesso de ironia às suas custas. De jeito nenhum. Jesus não estava zombando de seus discípulos quando disse isso, como se lhes oferecesse uma pedra em vez de pão. Ele estava falando sério, e prometendo o que queria conceder, e que, quando a hora da concessão chegasse — porque chegaria— eles mesmos considerariam um privilégio real; porque todos os apóstolos concordaram com Pedro que eles sendo considerados um escárnio pelo nome de Cristo seriam considerados felizes, e que o espí­rito da glória e de Deus repousaria sobre eles. Esse, acreditamos, era o pensamento de Tiago quando Herodes o matou com a espada do perse­guidor; sabemos que esse era o pensamento de João quando estava na ilha de Patmos “por causa da palavra de Deus e pelo testemunho de Jesus Cristo”.

Tendo prometido um favor não cobiçado pelos dois discípulos, Je­sus explicou que o favor que eles cobiçavam não estava incondicional­mente à sua disposição: “Mas o assentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me pertence dá-lo, mas é para aqueles para quem meu Pai o tem preparado”. Alguns entendem que aVersão Autorizada em inglês sugere a idéia de que a concessão de recompensas no reino não está totalmente nas mãos de Cristo. Porém, isso não era exatamente o que o Senhor queria dizer; mas em vez disso, que é uma prerrogativa de Cristo designar aos cidadãos seus lugares no Reino, contudo Ele não dispõe de posições por partidarismo ou patrocínio, ou de outra forma, senão de acordo com princípios prefixados de justiça e a ordenação soberana de seu Pai. Suas palavras, parafraseadas, significam: “Eu posso dizer a qual­quer um: Venha, beba do meu cálice, pois não há risco de dano proveni-

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ente de favoritismo nessa direção. Mas lá os meus favores devem termi­nar. Não posso dizer a ninguém: Venha, sente-se ao meu lado no trono; cada homem deve assumir o lugar preparado para si, e para o qual está pronto”.

Assim explicada, esta expressão solene de nosso Senhor não for­nece espaço para uma inferência que a primeira vista parece sugerir que alguém deva provar do cálice, caso contrário perderá a coroa; ou pelo menos, que não há conexão entre a medida com que um discípulo deve ter tido comunhão com a cruz de Cristo, e o lugar que lhe será designado no Reino eterno. Pela pergunta fica evidente que Jesus não tinha a intenção de ensinar esta doutrina. Ele havia feito a pergunta pouco antes de fazer a afirmação agora levada em consideração, o que implica uma seqüência natural entre o cálice e o trono, o sofrimento e a glória. O sacrifício e a grande recompensa tão intimamente associa­dos à promessa feita aos doze na Peréia, estão desassociados aqui, sim­plesmente com o propósito de assinalar o rigor com que todas as in­fluências corruptas estão excluídas do Reino dos céus. Não há dúvida de que aqueles a quem foi outorgado em alto grau o benefício de se­rem companheiros de Jesus na tribulação, deverão ser premiados com uma grande promoção no Reino eterno. Esta afirmação não compro­mete a soberania do Pai e Senhor de todos; ao contrário, contribui para o seu estabelecimento. Não há argumento melhor para defender a doutrina da eleição que a simples verdade de que o sofrimento é a educação para o céu. O que aparece com mais visibilidade na mão soberana de Deus do que no encontro das cruzes? Se as cruzes nos deixassem sozinhos, nós as deixaríamos sozinhas. Não escolhemos o cálice amargo e o batismo sangrento: fomos escolhidos para eles, e neles. Deus coloca os homens na luta da cruz; e se alguém vai à glória por este caminho, como tantos soldados que foram impelidos a ir, a glória poderá ser considerada como algo que não aspiraram.

A ligação categórica entre sofrimento e glória serve para defender, assim como estabelecer, a doutrina da eleição. Vista em relação ao mun­do vindouro, esta doutrina parece colocar Deus em uma posição de par­cialidade, e é certamente misteriosa. Mas olhe para a eleição em relação à vida presente. Nesta visão é um privilégio pelo qual os eleitos não estão

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aptos a serem invejados. Porque os eleitos não são os felizes e prósperos, mas os trabalhadores e sofredores7. De fato, eles são eleitos não por méritos próprios, mas pelo amor de Deus, para serem pioneiros de Deus no severo e cruel trabalho de sair do deserto para um campo frutífero; para ser o sal, o fermento e a luz do mundo, recebendo pela maioria de seus serviços prestados pequenos agradecimentos, e tendo sempre como recompensa a parte que cabe aos indigentes, aflitos e atormentados. Desse modo, no final, a eleição é um favor para os não eleitos: é o método escolhido por Deus para beneficiar os homens em geral; e qualquer benefício especial que possa estar reservado para o eleito é bem merecido, e não deveria ser invejado. Alguém tem inveja da perspectiva deles? E possível ser um par­ticipante da sua futura alegria se desejar ser companheiro de seres tão desamparados, e participar das suas tribulações agora.

Não é necessário explicar que ao proferir estas palavras Jesus não que­ria negar a utilidade da oração, e dizer: “Você pode pedir um lugar no Reino divino e não conseguir; tudo vai depender daquilo que Deus tem planejado”. Ele só desejou que os dois discípulos e todos os demais enten­dessem que para obter os seus pedidos, deveriam saber o que estavam pedindo, e aceitar como resposta às suas orações tudo o que estivesse en­volvido, tanto no presente como no futuro. Esta condição é sempre vista superficialmente. No caso de muitos, uma oração ousada, ambiciosa, até mesmo pedindo bênçãos espirituais, é feita por fiéis que não têm idéia do que envolveria a resposta; e, se tivessem, desejariam que suas orações não fossem atendidas. Cristãos imaturos pedem, por exemplo, para serem cada vez mais santos. Mas será que conhecem as dúvidas, tentações, e os severos julgamentos que sofrem, de todos os tipos, para se tornarem grandes san­tos? Outros anseiam por uma completa certeza do amor de Deus; desejam estar totalmente convencidos de sua eleição. Será que estão dispostos a ser privados da luz do sol da prosperidade, será que na noite escura da tristeza poderão enxergar as estrelas do céu? Ah! são poucos os que sabem o que pedem! O, como precisamos ser ensinados a orar pelas coisas certas, com uma mente inteligente e com o espírito certo!

Tendo dito o que era necessário a Tiago e João, Jesus então dirigiu uma palavra oportuna aos seus discípulos, ensinando-lhes a humildade. Mais apropriadamente, ainda que os dez fossem a parte ofendida, e não

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ofensora, o mesmo espírito ambicioso estaria neles, caso contrário não teriam se ofendido e se ressentido tanto com a injustiça. O orgulho e o egoísmo podem desgastar e entristecer os humildes e submissos, mas provocam ressentimento apenas nos orgulhosos e egoístas; e a melhor forma de ser invulnerável a ataques dos sentimentos malignos dos ou­tros homens é expulsar emoções similares de nossos corações. “Que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus”; então não fareis nada por discórdia ou vangloria.

“E quando os dez ouviram isso”, lemos, “indignaram-se contra os dois irmãos”. Sem dúvida a cena que se seguiu foi muito estarrecedora; e é muito desapontador assistir tais cenas onde alguém pode ter olhado para ver com perfeição o espetáculo divino de dois irmãos vivendo jun­tos em unidade. Mas a sociedade de Jesus era real, não a criação imaginá­ria de um escritor de romances; e em todas as sociedades humanas reais, nos lares felizes, nas mais seletas comunidades, sejam científicas, literári­as, ou artísticas e até nas igrejas cristãs, se levantaram tempestades uma vez ou outra. E devemos agradecer aos doze até mesmo por suas tolices, pois deram ao Mestre uma oportunidade de proferir as sublimes pala­vras registradas aqui, que nos iluminam vindas do céu sereno do evange­lho, como estrelas passando pelas nuvens tempestuosas da emoção hu­mana — palavras evidentemente de um ser divino, embora vindas do íntimo de uma impressionante humildade.

A maneira como Jesus se dirigiu aos seus exasperados discípulos era muito terna e moderada. Ele agrupou todos à sua volta, os dois e os dez, os ofensores e os ofendidos — como um pai deve reunir seus filhos para receberem admoestações — e lhes falava com a calma e solenidade de quem está prestes a encontrar a morte. Ao longo de toda a cena da morte, a influência da solenidade se manifesta no espírito do Salvador. Pois Ele fala da proximidade dos seus sofrimentos em uma linguagem que nos lembra a noite da sua traição, descrevendo sua morte através do poético nome sacramental “meu cálice”, e pela primeira vez revela o segredo da sua vida na terra — o grande propósito pelo qual Ele está prestes a morrer.

Quanto à importância moral, a doutrina de Jesus nesta época era uma repetição do seu ensino em Cafarnaum, quando Ele escolheu uma criancinha

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como lição. Então Ele disse, “aquele que se tornar humilde como esta criança, esse é o maior no Reino dos céus”, e agora, “todo aquele que quiser, entre vós, fazer-se grande, que seja vosso serviçal”. No discurso anterior seu exemplo e lição eram uma criança; agora é um escravo ou servo, uma figura que sofria desprezo e ocupava uma posição de inferiori­dade. Agora, assim como anteriormente, Ele cita seu próprio exemplo para reforçar o seu preceito, estimulando seus discípulos a procurarem a diferença em um caminho de amor solitário, representando o Filho do Homem que não veio para ser servido, mas para servir, a ponto de dar a sua vida em resgate de muitos. Ele também adverte que o Filho do Ho­mem veio como um pastor, para resgatar e salvar o que se havia perdido.

A única nova característica da lição que Jesus deu aos seus discípu­los nesta época foi o contraste entre o seu Reino e os reinos da terra, com respeito à maneira de adquirir domínio, e a ela voltou a sua atenção, como forma de introdução à doutrina prestes a ser comunicada. Ele disse: “Bem sabeis que pelos príncipes dos gentios são estes dominados e que os grandes [governadores de províncias, freqüentemente mais tirâ­nicos do que seus superiores] exercem autoridade sobre eles. Não será assim entre vós”. Aqui há uma alusão a outro contraste além do princi­pal mencionado, isto é, entre o domínio cruel tirânico dos dominadores terrenos e o domínio suave do amor, que é o único permitido no Reino de Deus. Mas o principal propósito das palavras citadas é apontar a diferença entre a forma de adquirir e a maneira de usar o poder. A idéia expressa por Jesus é a seguinte: os reinos terrenos são governados por uma classe de pessoas que possuem uma ordem hereditária — a aristo­cracia, os nobres ou príncipes. A classe governante envolve aqueles cujo direito de nascença é governar, e cujo motivo de orgulho é nunca estar em uma posição servil, mas sempre ser servido. Em meu reino, por outro lado, um homem se torna grande e um governante, ao ser, primeiro, servo daqueles a quem deve governar. Em outros domínios, aqueles que comandam têm o privilégio de serem servidos por seus comandados; na comunidade divina, os que comandam são aqueles que consideram ser­vir o próximo um privilégio.

Ao traçar este contraste, Jesus não tinha, é claro, nenhuma intenção de ensinar política, e nenhuma intenção de reconhecer ou colocar em

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questão o direito pelo qual os príncipes comandam os seus concidadãos. Ele falou das coisas como eram, e seus ouvintes o sabiam, pois participa­vam da vida secular, especialmente no Império Romano. Se qualquer inferência política pudesse ser extraída das suas palavras, não seria a fa­vor do absolutismo e do privilégio hereditário, mas a favor de se ter o poder nas mãos daqueles que fizeram jus por merecê-lo, pertencendo à classe governamental por nascimento ou não. Aquilo que é benéfico ao reino divino não pode ser prejudicial às comunidades seculares. Alguém poderia dizer que os verdadeiros interesses de um reino terreno deveri­am ser promovidos através de um governo que o regesse, o quanto pos­sível, de acordo com as leis do reino que não podem ser mudadas. Os tronos e coroas podem, para evitar disputas, ser transmitidos por suces­são hereditária, independentemente de méritos pessoais; mas na realida­de o poder deveria estar nas mãos dos mais capazes, dos mais sábios, e dos mais dedicados aos interesses públicos.

Tendo explicado por meio do contraste o grande princípio do reino espiritual — que aquele que nele governa deve primeiramente servir — Jesus prosseguiu com a finalidade de reforçar a doutrina, fazendo uma referência ao seu próprio exemplo. Ele disse aos doze: “Todo aquele que quiser, entre vós, fazer-se grande, que seja vosso serviçal”; e então acres­centou as outras palavras memoráveis: “como o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e para dar a sua vida em resgate de muitos”.

Estas palavras foram ditas por Jesus como alguém que reivindicava ser um rei, e aspirava ser o primeiro em um grande e poderoso reino. No final da frase, devemos supor mentalmente a sentença — que não foi dita simplesmente porque estava implícita na conexão do pensamento — “tão preocupado em ganhar um reino”. Nosso Deus se colocou aqui não simplesmente como um exemplo de humildade, mas como alguém cuja situação ilustra a verdade de que o caminho para o poder no mundo espiritual é o serviço; e declarando que Ele não veio para ser servido, mas para servir. Ele não expressa toda a verdade, mas apenas o fato presente. A verdade completa era que Ele veio para servir em primeiro lugar, que em troca pode ser servido por pessoas dispostas, consagradas, que o reconheçam como soberano. O ponto para o qual Ele deseja chamar a

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atenção dos seus discípulos é o caminho peculiar que Ele toma para obter a sua coroa. E o que Ele diz em outras palavras é: “Eu sou um Rei, e espero ter um reino; Tiago e João não estavam enganados a este respei­to. Mas obterei meu reino de forma diferente daquela pela qual os prín­cipes seculares adquirem seus reinos. Eles conseguem seus tronos por sucessão, Eu consigo o meu por mérito pessoal. Eles asseguram o seu reino por direito de nascimento, Eu espero assegurar o meu através do trabalho. Eles herdam seus súditos, Eu compro os meus à vista, e o pagamento é a minha própria vida.

Não sabemos o que os doze pensaram a respeito desse novo plano para conseguir domínio e um reino, e especialmente que idéias as pala­vras conclusivas do Mestre insinuavam às suas mentes quando proferi­das. Entretanto, temos certeza de que eles não compreenderam aquela palavra; e não é de admirar, porque o pensamento de Jesus era muito profundo. Quem pode entendê-lo em profundidade mesmo agora? Aqui vemos significativamente através de um espelho, em enigmas.

Esta memorável palavra tem sido o assunto de muitas disputas du­vidosas entre teólogos, então não podemos esperar que qualquer coisa que possamos dizer coloque um ponto final na controvérsia. A palavra é um poço profundo que nunca foi nem mesmo sondado, e provavelmente nunca será. Produzida calmamente como uma ilustração para reforçar um preceito moral, ela abre uma região do pensamento que nos leva bem longe, para o instante imediato em que ela foi proferida. Levanta ques­tões em nossas mentes, porém não traz as respostas. E ainda há, no Novo Testamento, pouco sobre o assunto da morte de Cristo que não possa ser compreendido dentro dos limites de sua importância.

Em primeiro lugar, deixe-nos dizer que não nos simpatizamos com aquela escola de críticos teológicos que põe em questão a autenticidade dessa palavra8. E estranho observar como alguns são hesitantes em reco­nhecer Cristo como a fonte original dos grandes pensamentos que se tornaram elementos essenciais à fé da igreja. Esta idéia da morte de Cristo como um resgate está presente nesta discussão. Com quem ela teve sua origem? Será que a mente de Cristo não era suficientemente original para concebê-la, de maneira que ela devesse ser assumida por outra pessoa? Outro fato deve ser considerado ligado a esta declaração, e

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à semelhança expressa na instituição da Santa Ceia. Depois que Jesus começou a insistir muito no propósito — acompanhado por profunda emoção — de que Ele deveria morrer, era inevitável que a sua mente voltasse a atenção à tarefa de se dedicar ao cruel e prosaico fato com significados poéticos e espirituais. Até o momento falamos de Jesus sim­plesmente como um homem de maravilhosa capacidade espiritual, cuja mente era capaz de fazer frente à morte e tirar desta a característica de ser uma fatalidade, e cercá-la de beleza, e revestir seu esqueleto com a carne e o sangue de um atrativo sistema repleto de significados espirituais.

Considerando, então, esta preciosa frase como inquestionavelmente autêntica, o que Cristo queria ensinar através dela? Primeiro, pelo menos de maneira geral, havia uma ligação causai entre sua ação de sacrificar a sua vida e o resultado desejado, ou seja, a soberania espiritual. E sem ter nenhuma preocupação com o termo resgate; mesmo admitindo-o por um momento fora do texto, podemos ver por nós mesmos que existe tal ligação. Por mais original que fosse o método adotado por Jesus para obter um reino — e quando comparado com outros métodos de con­quistar reinos, isto é, por herança (a maneira mais respeitável) ou pela espada (a mais baixa de todas), ou ainda pagando uma quantia em di­nheiro, como nos últimos dias do Império Romano, sua originalidade está acima de discussão — por mais novo que fosse este método de Jesus, provou ser muito bem-sucedido. A situação mostrou que deve haver uma conexão entre as duas coisas — a morte na cruz e a soberania das almas. Milhares de seres humanos, sim, milhões, de todas as eras, disseram amém com todo o seu coração à doxologia de João no Apoca­lipse: “Jesus Cristo, que é a fiel testemunha, o primogênito dos mortos e o príncipe dos reis da terra. Aquele que nos ama, e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados, e nos fez reis e sacerdotes para Deus e seu Pai, a ele, glória e poder para todo o sempre. Amém!”. Sem dúvida este resul­tado da sua autodevoção estava presente na mente de Jesus quando pro­feriu as palavras diante de nós, e ao proferi-las Ele pretendia enfatizar o poder do amor divino no auto-sacrifício: assegurar seu domínio sobre os corações humanos, e ganhar para o Rei do Reino eterno um tipo de soberania não alcançável de outra forma que não fosse humilhar-se para tomar a forma de um servo. Alguns asseguram que ganhar este poder foi

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o único propósito da Encarnação. Não concordamos com esta visão, mas não hesitamos em considerar o alcance de tal poder moral pelo auto-sacrifício como um propósito da Encarnação.

O Filho de Deus desejava afastar-nos da autopiedade e da auto- adoração, libertar-nos da escravidão do pecado pelo poder do seu amor, para que pudéssemos reconhecer que somos dele, e nos dedicar, agrade­cidos, à sua obra.

Mas ainda há mais no texto do que encontramos até agora. Pois Jesus não diz simplesmente que está prestes a sacrificar a sua vida por muitos, mas que está prestes a sacrificá-la como um tipo de resgate. A questão é: O que devemos entender da forma em que a morte é expressa? Agora pode-se assumir que a palavra “resgate” tenha sido usada por Jesus em um sentido parecido com o uso no Antigo Testamento. O ter­mo grego ( lutron) é empregado na Septuaginta como o equivalente do termo hebraico (cõpher), cujo significado é muito discutido, mas que tem o sentido geral de cobertura. Como a idéia de cobertura pode ser usada tanto no sentido de proteção como no sentido exato de cobrir uma superfície — assim como uma moeda pode cobrir outra equivalente — existe uma discussão e alguns ainda podem permanecer com alguma dúvida9. O interesse teológico da questão é esse; que se aceitamos a pa­lavra no sentido geral de proteção, então o resgate não é oferecido ou aceito como um equivalente legal para as pessoas ou coisas redimidas, mas simplesmente como algo de valor que é recebido por uma questão de favor. Mas deixando este ponto de lado, o que nos preocupa neste texto é o pensamento mais amplo de que a vida de Cristo é dada e aceita pela vida de muitos, como um equivalente exato ou de maior valor. Jesus representa sua morte voluntária como um meio de livrar da morte as almas de muitos; porém a razão ou modo exato não é claramente expres­so. Um teólogo alemão, que combate energicamente a teoria da satisfa­ção de Anselmo, encontrou na palavra três pensamentos: Primeiro, o res­gate é oferecido como um presente a Deus, não ao diabo. Jesus, tendo indubitavelmente a série de pensamentos do Salmo 49 em sua mente, fala de dedicar a sua vida a Deus na busca da sua vocação, não de se sujeitar ao poder do pecado ou do diabo. Segundo, Jesus não apenas pres­supõe que nenhum homem pode oferecer nem por si mesmo nem por

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outros um presente valioso para Deus capaz de precavê-lo da morte, como o salmista declara; mas assegura que, de acordo com esta visão, ofereceu um serviço no lugar de muitos, onde ninguém poderia se sub­meter nem por si mesmo nem por outrem. Terceiro, Jesus, tendo em men­te, sem dúvida, também as palavras de Eliú no livro de Jó acerca de um anjo, um entre mil, que possa ter o valor necessário para resgatar um homem da morte, distingue a si mesmo da massa de homens destinada à morte. O Senhor mostra que não está sujeito ao domínio natural da morte, e expressa a sua morte como um ato voluntário em que Ele entre­ga sua vida a Deus, como no texto registrado em João I0 .I7 -I8 10. Ao extrair tanto da expressão não a submetemos a excessivo rigor. A suposi­ção de que haja uma referência mental aos textos do Antigo Testamento, especialmente ao Salmo 49 e ao capítulo 33 de Jó, como também ao resgate dos filhos de sexo masculino dos israelitas mediante o pagamen­to de meio siclo, parece razoável; e à luz dessas passagens não seria ir longe demais extrair das palavras de nosso Senhor estas três idéias: O resgate é entregue a Deus (Salmo 49.7, “Ou dar a Deus o resgate dele”); é oferecido pela vida de homens destinados a morrer; e está disponível para tal propósito porque o que é oferecido é a vida de um ser excepcio­nal, um entre mil, não um irmão mortal também destinado a morrer, mas alguém superior a um anjo, assumindo a forma de carne dispondo- se, espontaneamente, a morrer pelos pecadores. Portanto, além da verda­de expressa de uma forma abrangente, o texto contém a informação de que ao morrer por amor e em auto-sacrifício, o Filho do Homem des­perta em muitos um sentimento de grata devoção que o leva a um trono, o mais especial de todos. Além disso, por meio de sua morte Ele coloca aqueles que estavam destinados à morte — como punição pelos pecados que praticaram — em um relacionamento diferente com Deus, de for­ma que estes já não são mais criminosos, mas filhos de Deus, herdeiros da vida eterna, membros da nação santa, desfrutando todos os seus pri­vilégios, libertos pela vida do próprio Rei, como o meio siclo que era oferecido como o preço da redenção.

Essas poucas informações devem bastar para uma indicação do pro­vável significado da frase autobiográfica em que Jesus transmitiu aos seus discípulos a segunda lição sobre a doutrina da cruz11. Concluímos esse

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capítulo com duas reflexões adicionais sobre esta doutrina. Quando dis­se que não veio para ser servido, mas para servir, Jesus se referia não apenas à sua morte, mas a toda a sua vida. A declaração é um resumo, em uma única sentença, de toda a sua história terrena. A referência à sua morte tem a força de um superlativo. Ele veio para servir, até o ponto de dar a sua vida como um resgate. Então esta frase, transmitindo uma mensagem de completa humildade revela, ao mesmo tempo, a consciên­cia de sua dignidade sobre-humana. Jesus foi mais que um homem. Se Ele tivesse sido apenas um homem, e não Deus, a sua linguagem não teria sido humilde, mas presunçosa. Por que o filho de um carpinteiro diria, sobre si mesmo, que não veio para ser servido? Sua posição e ocu­pação servis foram uma questão de escolha para alguém como Ele, que era, simultaneamente Deus e homem. A afirmação que está diante de nós é racional e humilde, e só poderia vir de alguém que, sendo em forma de Deus, assumiu espontaneamente a forma de um servo, e se tornou obediente até à morte para a nossa salvação.

1 João 11.542 Mateus 20.17-19. A passagem em Marcos 10.34 acrescenta o cuspir à lista de indignidades.3 Lucas 18.344 Lucas 19 .115 Salomé foi uma das mulheres que seguiram a Cristo na Galiléia, e o serviu. Marcos 15.41.6 Existe uma discussão a respeito da segunda oração, e por esta razão foi omitida na Versão Revisada em inglês.7 O manuscrito de Eurípedes pode ser apropriado aqui para os verdadeiros filhos de Deus — o seu significado

seria: Nunca ouvi dizer que filhos nascidos de mortais de paternidade divina fossem felizes.Out'epi kerkisin oute logois pkatin aion’ eutuchias meteckein theothen tekna thnatois (loni 510).8 Baur expressa dúvidas em sua obra Neutestamentliche Tbeologie, p. 100. Keim, por outro lado, defende a autenticida­

de.9 Ritschl segue a visão antiga (vide a obra Lebre von der Rechtfertigung, 2. 80), e Hofmann segue a outra (vide a obra

Schriftbeweis).10 Ritschl, Lebre von der Rechtfertigung, 2.84.11 Veja a seção II do capítulo 12.

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18A Unção em Betâniaou A Terceira Lição da Doutrina da Cruz

Mateus 26 .6-13 ; Marcos 14.3-9; João I2 .I-8

AJ L J l . tocante história da unção de Jesus feita por Maria em Betânia compõe parte do prefácio da história da paixão, como registrado nos evangelhos sinópticos. O prefácio, contado quase totalmente por Mateus, inclui quatro particularidades: primeira, uma afirmativa feita por Jesus a seus discípulos dois dias antes da Páscoa referente à sua traição; segunda, um encontro dos sacerdotes em Jerusalém para conferenciar quando e como Jesus deveria ser condenado à morte; terceira, a unção feita por Maria; quarta, a correspondência secreta entre Judas e os sacerdotes. No prefácio de Marcos a primeira dessas quatro particularidades é omitida; em Lucas, são omitidas tanto a primeira como a terceira.

Os quatro fatos relacionados pelo primeiro evangelista tinham em comum que todos eram sinais, cujos cumprimentos foram preditos mui­to tempo antes. Jesus agora diz, não que o Filho deve ser traído, mas que o Filho é traído para ser crucificado. As autoridades eclesiásticas de Israel reúnem-se em conclaves solenes, não para discutir o que deveria ser feito com o objeto de seu descontentamento — pois isso já havia sido deter­minado — e sim, como o ato das trevas pode ser realizado de forma sorrateira e segura. A vítima foi ungida por uma mão cordial para o sacrifico que se aproximava. E, finalmente, um instrumento foi encon­trado para atenuar a perplexidade dos sacerdotes, e preparar caminho, de uma maneira inesperada, para a consumação de seu cruel propósito.

O conjunto de incidentes, na introdução dessa trágica história de crucificação, é surpreendentemente dramático em seu efeito. Primeira­mente vem o Sinédrio em Jerusalém conspirando contra a vida do Justo.

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Depois, Maria, em Betânia, com seu inefável amor quebrando seu vaso de alabastro e derramando o seu conteúdo na cabeça e nos pés de seu adorado Senhor, Por fim vem Judas, oferecendo-se para vender seu Mes­tre por menos do que Maria investiu em seu ato de amor e adoração. Ódio e mesquinhez em cada uma das mãos e o verdadeiro amor, no centro1.

Essa memorável transação de Maria com seu ungüento pertence à história da paixão, em virtude da interpretação expressada por Jesus, que a esta atribui uma figura de prelúdio lírico à grande tragédia ocorrida no Calvário. E pertence à história dos doze discípulos, por causa da desfa­vorável construção ali demonstrada. Todos os discípulos parecem desa­provar tal ato, a única diferença entre Judas e o restante é que este desa­prova de maneira hipócrita, enquanto seus companheiros foram hones­tos em seus julgamentos e motivos. Todos eles prestaram um ótimo ser­viço a Maria ao apontarem os defeitos, pois assim ela teve em Jesus o seus maior defensor, e eles mesmos, mais tarde, também a elogiaram. Sua censura fez com que o Senhor pronunciasse uma afirmação extraordiná­ria, de que, onde quer que o evangelho fosse pregado, no mundo inteiro, a atitude de Maria seria mencionada como seu próprio memorial. Quando os discípulos se tornaram apóstolos, entenderam que colaboraram para o cumprimento dessa profecia. Os discípulos se sentiram presos ao man­damento virtual de seu Mestre, assim como pela reação generosa de seus próprios corações, e se dispuseram a corrigir as ações errôneas tomadas contra Maria, no passado, contando aos homens a história de seu verda­deiro amor. Através de seus lábios, a tocante narrativa converteu-se, no momento devido, em registros evangélicos para serem lidos com emoção e prazer pelos verdadeiros cristãos até o final dos tempos. Verdadeira­mente alguém pode se sentir feliz ao sofrer oposição por algum tempo, e ser defendido pelo Senhor Jesus de maneira tão cortês, recebendo mais tarde magnânimas retratações como as de seus apóstolos!

Ao considerarmos quem se manifesta em defesa de Maria, devemos nos satisfazer com o fato de tal defesa não ter sido meramente generosa, mas absolutamente justa. E certamente foi uma defesa surpreendente! Verdadeiramente parece que enquanto os discípulos chegaram ao extre­mo da acusação de culpa, seu Senhor foi ao outro extremo, elogiando-a;

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é como se, ao elogiar a mulher de Betânia, Ele nada mais estivesse fazen­do do que repetir a extravagância dela, porém de uma outra forma. Daí, sentimo-nos tentados a perguntar: A ação dela, então, foi tão preemi- nente e louvável a ponto de merecer estar associada ao evangelho para sempre? Assim, pensando na explicação da atitude de Jesus, algumas questões podem ser sugeridas: Houve, realmente, alguma diferença nos pensamentos de Maria em relação à morte e ao sepultamento do Senhor enquanto ela está realizando tal ato de adoração? Será que Jesus não está atribuindo a ela seus próprios sentimentos, envolvendo seu feito em um significado poético ideal, que não está totalmente expresso na adoração, mas em seus próprios pensamentos? E, caso seja assim, podemos aprovar o julgamento que Ele proferiu, ou devemos, baseados na questão do mérito essencial do ato de Maria, expressar nosso voto a favor dos doze contra seu Mestre?

De nossa parte, nos posicionamos cordialmente ao lado de Cristo nesta questão; e ao fazê-lo, admitimos duas situações. Em primeiro lu­gar, admitimos que Maria não pensou em embalsamar, literalmente, o corpo de Jesus, e possivelmente, não estava pensando em sua morte ao ungi-lo com aquele ungüento tão precioso. Também podemos entender que a sua ação foi simplesmente uma honra festiva àquele a quem ela amava indescritivelmente, e que poderia ter sido realizada em qualquer outro período2. Admitimos, também, que teria sido uma extravagância falar do ato de Maria, apesar de nobre, e relacioná-lo à pregação do evangelho em qualquer lugar do mundo, e em todas as épocas, apenas para elogiá-la; podemos compreender que esta menção é feita especial­mente para o bem do evangelho; isso significa dizer que este relato ajuda a expor a natureza do evangelho. Em outras palavras, a quebra do vaso de alabastro que continha aquele ungüento deve ser empregada como um símbolo do ato de amor realizado por Jesus ao morrer na cruz por nós.

E assim que de fato acreditamos. Onde quer que o evangelho seja verdadeiramente pregado, a história da unção deve, certamente, ser elo­giada como uma das melhores ilustrações do espírito que moveu Jesus a abrir mão de sua vida, como também do espírito do cristianismo que se manifesta na vida dos que crêem com sinceridade. A quebra do vaso de ungüento é um belo símbolo do amor que Cristo sente por nós e do

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amor que devemos sentir por Ele. Assim como Maria quebrou seu vaso de alabastro e despejou seu conteúdo precioso, o Senhor Jesus Cristo permitiu que seu corpo fosse “quebrado” e derramou o seu precioso sangue; assim, os cristãos devem derramar os seus corações diante de seu Senhor, sem poupar a sua própria vida em relação a Ele. A morte de Cristo foi a quebra do vaso de alabastro por nós; e a nossa vida deve ser a quebra de um vaso de alabastro para Ele.

Essa relação de afinidade espiritual entre o ato de M aria e o próprio ato da morte de Jesus é o fator essencial para tudo que é enigmático na linguagem que Jesus emprega ao se referir ao ato de Maria. Isto explica, por exemplo, a maneira notável com que Ele se refere ao Evangelho em conexão com esta importante situação. O Senhor citou a expressão: “este Evangelho”, como se já tivesse sido mencionada anteriormente; e, além disso, como se o ato da unção representasse o próprio Evangelho. E assim o era de uma forma figurada. O ato realizado por Maria natural­mente levou o pensamento do Senhor Jesus ao ato que Ele mesmo pra­ticaria, em breve, em benefício da humanidade. “E então”, Jesus pode ter pensado consigo mesmo, “naquele vaso quebrado e óleo derramado está pressagiada a minha morte; e no motivo oculto e particular de que pro­cede tal motivação está o espírito eterno pelo qual me ofereço como um sacrifício”. Entendemos que o Senhor desejou expressar este pensamen­to quando utilizou a expressão “este Evangelho;” e ao considerar daque­le modo o ato de Maria, Ele estava, na verdade, ensinando a seus discí­pulos a terceira lição sobre a doutrina da cruz.

Com base nessa mesma relação de afinidade espiritual, percebemos claramente o verdadeiro significado da afirmação feita por Jesus referen­te ao ato de Maria: “Ora, derramando ela este ungüento sobre o meu corpo, fê-lo preparando-me para o meu sepultamento”. Esta foi uma explicação espiritual e poética para um dos maiores feitos poéticos; e como tal, não foi apenas bela, mas também verdadeira. A unção em Betânia tem ajudado a preservar — ou a “embalsamar”, por assim dizer — o verdadeiro significado da morte do Salvador. Ela tem nos provido de um ato simbólico que nos faz entender a morte do Senhor; e tem espalhado ao redor da cruz um precioso aroma imperecível de amor altruístico; ornamentou a sepultura do Salvador com flores que nunca murcharão, e

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construiu tanto para Jesus quanto para Maria, um memorial de pedra que permanecerá por todas as gerações. Portanto, a afirmação do Se­nhor foi absolutamente apropriada ao dizer que Ela o fez para o sepul- tamento dele. E que insensatez considerar como inadequada uma obra capaz de prestar um serviço tão importante para o Evangelho, conside­rando-a dispendiosa e inútil?

Aqueles que estiverem convencidos de que a afinidade espiritual realmente existe, concordarão com estas questões, respondendo-as de uma forma afirmativa. O que temos que fazer, portanto, é nos aprofundar detalhadamente nestas questões para mostrarmos que a nossa afirmativa está bem fundamentada.

Existem três pontos de semelhança notáveis entre o “bom traba­lho” de Maria ao ungir Jesus, e o bom trabalho realizado pelo próprio Senhor Jesus ao morrer crucificado.

Primeiramente, existiu uma semelhança em relação aos motivos. Maria realizou o seu bom trabalho exclusivamente por amor. Ela amava Jesus com todo o seu coração, pelo que Ele era, pelo que Ele tinha feito pela sua família, e pelas palavras de instrução que ela ouviu de seus lábi­os quando Ele a visitou. Ela tinha tanto amor em seu coração pelo seu amigo e benfeitor que não encontrava palavras para expressá-lo. Ela de­veria fazer algo para aliviar suas emoções reprimidas: deveria quebrar o seu vaso de alabastro e derramar o ungüento sobre Jesus, ou, caso con­trário, seu coração se quebraria.

Aqui, o ato de Maria se assemelha, de certa forma, ao ato de Jesus ao morrer na cruz, e ao vir a esse mundo para fazer a obra da salvação. Pois somente um amor como aquele que Maria sentia por Ele, porém mais profundo e forte, poderia tê-lo levado a sacrificar-se por nós. O simples fato de Cristo tornar-se um homem, e sofrer o que foi registrado a seu respeito é: Ele amou os pecadores. Após estudarem exaustivamente a filosofia da redenção, os teólogos refletiram sobre esta explicação e a consideraram como a mais satisfatória que poderiam dar. Jesus amava tanto os pecadores que abriu mão de sua vida a favor deles; e não pode­mos afirmar simplesmente que Ele os amava tanto que precisaria vir ao mundo para morrer por eles. Como Neemias, o judeu patriota que esta­va vivendo na corte do rei persa, o Senhor Jesus Cristo não poderia

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permanecer na corte do céu enquanto seus irmãos, tão distantes, na terra, estivessem em uma situação tão má; Ele deveria “pedir permissão” para vir socorrê-los3. Ou, como Maria, Ele deveria munir-se com um vaso de alabastro — um corpo humano — completá-lo com a fina essência da alma humana, e derramar a sua alma na cruz para a nossa salvação. O espírito de Jesus, sim, realmente o Espírito do Deus eterno, é o Espírito que estava presente na vida de Maria e de Neemias, e de todos aqueles que são parecidos com eles. Com reverência devemos afir­mar que este é o Espírito de Deus e de Jesus; e às vezes torna-se necessá­rio colocarmos a questão da forma contrária. De certa maneira, somos relutantes em aceitar que o amor é uma realidade para Deus. Quase nos esquivamos — como se fosse uma impiedade — de atribuir ao ser divi­no os atributos que julgamos serem os mais nobres e heróicos do caráter humano. A partir daí, entendemos o valor prático da sanção dada aqui por Jesus à associação da unção em Betânia com a crucificação no Calvário. O Senhor, com efeito, nos diz por meio da crucificação: Não tenham medo de considerar minha morte um ato semelhante ao de Maria, um ato de pureza, de amor devoto. Que o aroma de seu ungüento esteja em torno da minha cruz, ajudando a todos a discernir o doce sabor de meu sacrifício. Entre suas especulações e teorias sobre o grandioso tema da redenção, tenham o cuidado de não fracassar por não enxergar em minha morte o meu coração apaixonado, e o coração apaixonado de meu Pai, que foram assim revelados4.

A “boa obra” de Maria é comparada à “boa obra” de Cristo em seu caráter auto-sacrificial. Não foi sem esforço e sacrifício que aquela devo­ta mulher prestou sua famosa homenagem. Todos os evangelistas fazem menção particular do alto preço e da preciosidade do ungüento. Marcos e João representam os discípulos murmurando sobre seu valor: algo em torno de trezentos denáríos; esta quantia seria o equivalente ao salário de um homem que trabalhou durante todo o ano pela quantia e moeda vigente de um denário por dia. Era de fato um montante considerável; entretanto, o que vale a pena ser notado, particularmente, é a grandeza do montante para Maria. Isso fica claro através das próprias palavras do Senhor Jesus Cristo, como mencionado pelo segundo evangelista, que transmitem o sentido de que ela fez o que pôde. Ele defendeu a conduta

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dela com bondade, contra a severa censura de seus discípulos. Foi o mesmo comentário que Ele fez um ou dois dias depois em Jerusalém, sobre uma viúva pobre que lançou duas moedas no tesouro do Templo; e assim entendemos que Maria tenha despendido todos os seus recursos naquele tributo único de respeito àquEle a quem a sua alma amava. Toda a sua economia, todo o seu pequeno tesouro, foi dado em troca daquele vaso de alabastro, cujo conteúdo precioso ela derramou sobre o corpo de seu Salvador. Seu amor não era comum: era nobre, heróico, de uma devoção auto-sacrificial, e fez com que ela chegasse ao extremo por aqueEle a quem amava.

Aqui, a mulher de Betânia assemelhou-se ao Filho do Homem. Ele também fez o que pôde. Ele sofreu voluntariamente tudo o que foi pos­sível que um ser santo sofresse no caminho da humilhação; tentação, tristeza, sofrimento, tornando-se até mesmo “pecado” e “maldição”. Durante toda a sua vida na terra, Ele escrupulosamente se absteve de fazer qualquer coisa pela qual o seu cálice de aflição estivesse em uma medida menor do que completamente cheio. Negou a si mesmo todas as vantagens de poder e privilégio divinos; esvaziou-se; tornou-se pobre; tornou-se, de todas as maneiras, como seus irmãos pecadores, para po­

der q u a ííf ica r -s e c o m o o m is e r i c o r d io s o e c o n f iá v e lS u m o S a cerd o te pa ra eles em todas as coisas pertinentes a Deus. O seu amor lhe impôs os sacrifícios que viveu durante a sua vida e morte.

O amor, ao impor sacrifícios, traz como compensação a capacidade de suportá-los. Não é apenas o destino do amor, mas o seu prazer, su­portar as provações e levar os fardos daqueles a quem amamos. E não se satisfaz enquanto não encontrar uma oportunidade de se envolver em algum serviço que demande preço, trabalho e dor. O amor se mostra fervorosamente anelante por aquilo de que o egoísmo se esquiva. Tais reflexões, acreditamos, são aplicáveis a Maria. Em virtude do amor que ela sentia por Jesus, foi mais fácil agir como agiu do que se abster. Po­rém, a ansiedade e a prontidão do amor para sacrificar-se estão mais claramente exemplificadas no caso do próprio Senhor Jesus. Foi mesmo prazeroso para Ele sofrer pela nossa redenção. Longe de procurar evitar a cruz, Ele se mostrou disposto e ansioso por ela com fervoroso e since­ro desejo; e ao aproximar-se a hora de sua morte, referiu-se a ela como

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sendo a hora de sua glorificação. Ele não se preocupou em alcançar a nossa salvação pagando por ela o menor preço possível. Entendemos que o que Ele sentia poderia ser expresso através das seguintes palavras: “Quanto mais eu sofrer, melhor: mais profundamente me identificarei com os meus irmãos; e assim mais satisfeitos estarão os anseios e expres­sões de ajuda, de levar fardos, e de comunhão do meu amor”. Sim: Jesus queria fazer mais do que pagar o menor preço aceitável possível pelo resgate dos pecadores. Ele tinha que fazer justiça ao seu próprio coração; Ele tinha de expressar, adequadamente, sua profunda compaixão; e ne­nhum ato de dimensões calculadas ou limitadas poderia esgotar o con­teúdo daquilo que possuía dimensões incomensuráveis. O sofrimento me­dido, em especial quando suportado por tão grandioso personagem, pode satisfazer a justiça divina, mas não o amor divino.

Uma terceira característica que fez da boa obra de Maria um emble­ma do Salvador foi sua magnificência. Isso também pode ser notado no gasto ligado ao ato da unção, que não envolveu somente o sacrifício pela pessoa que ela considerava, mas que foi extremamente liberal em relação ao propósito que estava à mão. A quantidade de óleo utilizada, de acor­do com João, não foi inferior a 453 gramas. Isso foi muito mais do que o necessário. A unção pareceu um desperdício ou uma extravagância, mesmo admitindo que a unção em si tenha sido correta ou adequada. As Escrituras não registram que os discípulos tenham discordado da ceri­mônia em si; mas entendemos que consideraram a quantidade de un­güento um desperdício. Podemos imaginá-los dizendo: “Certamente uma menor quantidade de óleo teria o mesmo efeito; pelo menos a maior parte, se não o ungüento em sua totalidade, deveria ter sido utilizado para outros fins. Isso simplesmente não faz sentido, é um gasto pródigo”.

O que dizer dos discípulos de coração pequeno parecerem tão pró­digos, se não fosse a opulenta magnificência do amor, que, mesmo se um filósofo pagão pudesse contar, não considera quanto isto ou aquilo pode ser feito e, sim, com que beleza e graça pode ser feito5. E o que lhes pareceu uma perda despropositada serviu, pelo menos, para um bom propósito. Simbolizou uma característica semelhante à do bom trabalho de Cristo como o Salvador dos pecadores. Ele realizou a sua obra com magnificência, sem restringir a salvação. Ele realizou a redenção de “mui­

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tos” através de meios que eram adequados para salvar a todos. “Nele alcançamos a plena redenção.” Ele não mediu seu sangue de acordo com a proporção de pessoas a serem salvas, nem limitou a sua compaixão como amigo apenas aos pecadores eleitos. Ele derramou as suas lágrimas amargas pelas almas condenadas; Ele derramou o seu sangue sem medi­da, e sem qualquer consideração a números, e ofereceu um sacrifício que foi suficiente para expiar os pecados do mundo. O Senhor não se mos­trou indiferente a este atributo de eficiência universal de sua salvação. Ao contrário, Ele parece ter pensado nisso no momento em que autorizou a associação do ato de Maria à pregação do evangelho. Ele fala do evange­lho — que consiste na proclamação de sua obra de amor, ao morrer pelos pecadores — como o evangelho que deve ser proclamado ao mun­do inteiro, evidentemente desejando que, como o cheiro do ungüento de Maria encheu a sala em que os convidados estavam, o aroma de seu sacrifício fosse difundido como uma atmosfera de saúde e salvação por todas as nações.

Podemos dizer, então, que ao defender Maria contra a acusação de desperdício, Jesus estava, ao mesmo tempo, defendendo a si mesmo, res­pondendo, de antemão, a questões do tipo: Por que prantear pela conde­nada Jerusalém? Por que sentir compaixão de almas que estão condena­das à morte? Por que incomodar ao Senhor por homens e mulheres que não foram escolhidos para a salvação? Por que ordenar que o evangelho seja pregado a todo ser humano, com uma ênfase que parece afirmar o seu desejo de que todos sejam salvos, quando Ele sabe que somente um número específico acreditará em tal relato? Por que não limitar sua com­paixão e preocupação àqueles que realmente devem ser beneficiados por estas? Por que não restringir o seu amor àqueles que fazem parte da aliança? Por que permitir a inundação dos diques como um rio em plena cheia?6

Tais questões denunciam ignorância sobre as condições sob as quais os escolhidos são salvos. Cristo não poderia salvar apenas alguns, a me­nos que tivesse, de coração, o desejo de salvar a todos, e tal ansiedade faz parte da justiça que Ele era responsável por cumprir. O resumo do dever consiste, portanto, em amar a Deus de maneira suprema, e o próximo como a si mesmo; e “próximo” significa, tanto para Cristo como para

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nós mesmos, todo aquele que necessita de ajuda, e aquele a quem pode­mos ajudar. Mas para não nos determos neste ponto, observamos que tais questões demonstram ignorância em relação à natureza do amor. A magnificência, inadequadamente chamada por alguns de extravagância grotesca e perda, é um atributo invariável do verdadeiro amor. Davi reco­nhece esta verdade quando escolhe a profusa unção de Arão com o óleo da unção, em sua consagração a sumo sacerdote, como um símbolo do amor fraternal7. Nesta unção também houve uma “perda”, semelhante àquela que aconteceu em Betânia. Pois o óleo não foi “borrifado” na cabeça de Arão, embora isso pudesse ter sido suficiente para uma sim­ples cerimônia. O vaso foi esvaziado sobre a cabeça do sumo sacerdote, e seu conteúdo escorreu pela barba e pelas bordas do manto sacerdotal. Nesta perda encontra-se, para Davi, o ponto de semelhança. Esta foi uma figura que chocou o seu pensamento pois, de certa forma, ele tam­bém foi um homem pródigo em seu caminho. Davi tinha amado a Deus de uma maneira que o expunha a ser acusado de extravagância. Ele havia dançado na presença do Senhor, por exemplo, quando a arca foi trazida, carregada em carros de bois, da casa de Obede-Edom a Jerusalém, es­quecendo-se de sua dignidade e excedendo os limites da moderação. E — aparentemente, sem desculpas para alguns — tal demonstração dos senti­mentos de seu coração não teria servido para o propósito de uma soleni­dade religiosa8.

Davi, Maria, todas as pessoas fiéis, profetas, apóstolos, discípulos, mártires, pertencem a uma única companhia e sofrem a mesma acusa­ção. Devem continuar lutando para serem acusados de esbanjar afeto, perdão, trabalho e lágrimas; todos devem viver de forma a serem acusa­dos de extravagância, pois este é, para eles, o maior elogio. Davi dança e M ical zomba; os profetas derramam seus corações pelos pecados e pela miséria de seu povo, e tais pessoas abusam de sua dor; muitas “Marias” quebram os seus vasos de alabastro, e discípulos frios fazem oposição a este “desperdício”; os homens e as mulheres de Deus sacrificam tudo o que possuem por suas convicções religiosas, e o mundo os chama de tolos pela dor que sofrem, e os filósofos supostamente os alertam a não se tornarem “mártires por engano”; Jesus pranteia pelos pecadores que não o procuram para serem salvos, e os ingratos e maus perguntam: Por

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que derramar lágrimas pelos vasos da ira que estão destinados à destrui­ção?

Percebemos então que o bom ato de M aria foi um símbolo adequa­do e digno do bom ato de Jesus Cristo de morrer na cruz. Agora temos o dever de mostrar que a própria Maria, por seu importante ato, deve ser apresentada como um modelo do cristianismo. Três aspectos de seu ca­ráter tornam-na digna dessa honrosa menção.

O primeiro deles é o seu fervoroso apego ao Senhor Jesus Cristo. O ponto mais proeminente no caráter de M aria foi a sua capacidade de amar, a sua devoção. Foi esta virtude, como manifestada em seu ato, que trouxe à tona a admiração de Jesus. Ele ficou tão satisfeito com o nobre ato de amor que elogiou e destacou Maria imediatamente, como um rei que concederia uma condecoração pela bravura ou por alguma proeza de um soldado no campo de batalha. “Veja”, Ele disse em outras pala­vras, “aqui está o que eu entendo por cristianismo: uma devoção desin­teressada e espontânea a mim como o Salvador dos pecadores, e como o Soberano do reino da verdade e da justiça. Então, onde quer que o evan­gelho venha a ser pregado, determino que seja relatado o feito desta mulher, não simplesmente como um memorial a ela, e sim, para mostrar o que eu espero de todos aqueles que crêem em mim”.

Ao elogiar M aria desse modo, Jesus nos faz entender que a devoção é a principal virtude do cristianismo. O Senhor aqui proclama a doutri­na que mais tarde seria ensinada pelo apóstolo que, embora sendo o último a ser chamado, se tornaria o primeiro a compreender o pensa­mento do Senhor Jesus Cristo com mais profundidade do que todos os outros — o apóstolo Paulo. Naquele brilhante elogio sobre a caridade, bem conhecido por todos os leitores de suas epístolas, ele mostra que a eloqüência, o conhecimento, a fé, o dom de línguas e o dom da profecia seriam inúteis sem ela, como a virtude suprema. A caridade nada mais é do que a interpretação geral do elogio pronunciado à mulher de Betânia. A história da unção e o décimo terceiro capítulo da Primeira Epístola aos Coríntios devem ser lidos juntos, trazendo assim um grande benefí­cio à nossa vida espiritual.

Ao fazer do amor o teste e a medida da excelência, o Senhor Jesus, Paulo e o restante dos apóstolos (aqueles que ao menos compartilhavam

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os mesmos pensamentos do Mestre), distinguiram-se amplamente do mundo religioso e não-religioso. Fariseus, saduceus, religiosos escrupu­losos e inescrupulosos homens sem religião estão de acordo na antipatia que sentem, de maneira ardente, contra aqueles que são entusiasmados, de nobre devoção, até mesmo em causas mais nobres. São espertos e prudentes, e sua filosofia pode ser incorporada a máximas como estas: “Não seja tão amplo em seus sentimentos, tão caloroso em sua simpatia, tão severo em seu senso de dever; nunca permita que seu coração seja melhor do que os seus pensamentos, nem os domine. Também não per­mita que os seus princípios interfiram em seus interesses”. Também é amplamente difundido o descaso para com a seriedade, ém especial no que se refere ao bem, explicitado pelo fato de que todas as nações possu­em seus próprios provérbios contra esse entusiasmo. Os gregos têm seu dito (meden agan) assim como os latinos (Ne quid nimis)9; e desse modo expressam em sua língua o ceticismo tanto em relação àqueles que fazem provérbios como àqueles que os utilizam referindo-se à sabedoria, como se esta não pudesse se mostrar entusiasmada por qualquer coisa. O mun­do é prosaico, e não poético em termos de temperamento — é prudente, não impulsivo; tem aversão à excentricidade, quer no bem, quer no mal; prefere um nível morno de mediocridade, moderação e autopossessão; seu homem modelo é aquele que jamais se esquece de si próprio, seja afogando-se em sua tolice ou perversidade, seja vangloriando-se na vile- za, no orgulho, no egoísmo, na covardia e na vaidade, mesmo julgando que está defendendo uma causa nobre.

Por ocasião da unção, os doze eram como o mundo em seu tempe­ramento; parecem ter considerado M aria como um ser romântico, qui­xotesco e louco, e seu ato como absurdo e indefensável. Eles não se opuseram, é claro, ao amor que ela sentia por Jesus; porém consideraram sua manifestação como tola, pois entendiam que o dinheiro gasto com o ungüento poderia ter sido aplicado em um propósito melhor — por exem­plo, no auxílio aos menos favorecidos — e poderiam pensar que estavam corretos, pois o próprio Senhor Jesus disse que todas as ações filantrópi­cas seriam consideradas como atos de bondade praticados a favor dele mesmo. E, a princípio, alguém poderia pensar e afirmar que eles, de certa forma, tiveram razão e foram muito sábios, sem se mostrarem me-

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nos devotos do que Maria. Entretanto, observe o comportamento deles no dia da crucificação do Senhor, e veja a diferença entre eles e Maria. Ela amava ao Senhor tão fervorosamente, que não mediu conseqüências nem gastos; eles o amavam com tanta frieza, que davam lugar ao medo em seus corações; então, enquanto Maria gastou as suas economias com o seu ungüento, eles desertaram seu Mestre, e fugiram com a finalidade de salvar a própria vida. Por esse motivo, podemos notar — apesar de extravagâncias ocasionais, sejam aparentes sejam reais — que o espírito de maior sabedoria e nobreza é aquele que nos torna incapazes de calcular os nossos ganhos pessoais, e que nos torna imunes às tentações que surgem desses pensamentos. Um Lutero ousado e audacioso, porém he­róico, vale mais do que mil homens como Erasmo, indiscutivelmente sábio, porém frio, sem paixão, tímido e servo do tempo. O conhecimen­to é ótimo, porém a ação é melhor ainda; e o poder de realizar atos nobres vem do amor.

Quão grande é a devota M aria na comparação com os discípulos, que tinham o coração frio! Ela realiza feitos nobres, e eles a criticam. A crítica é uma pobre obra para um ser humano, especialmente quando predomina na tentativa de encontrar falhas. O amor não se preocupa com tais ocupações; isso é muito insignificante para a sua mente genero­sa: Caso haja espaço para elogios, o amor os fará de maneira incomensu- rável; mas caso haja críticas e culpa, o amor preferirá ficar em silêncio. Observe novamente como o amor de Maria se torna um substituto da presciência. Ela não sabe que Jesus está prestes a morrer, porém age como se soubesse. As pessoas que se comportam como Maria estão de acordo com o caráter e as intenções do Senhor Deus; o instinto de amor e a inspiração do Deus de amor, ensinam as pessoas a fazer aquilo que é certo na hora certa; este é o maior feito da verdadeira sabedoria. Por outro lado vemos, no caso dos discípulos, como a frieza em seus corações consome o conhecimento e os torna homens estúpidos. Eles haviam recebido mais informações sobre o futuro do que Maria. Se não soubes­sem que Jesus estava prestes a ser morto, deveriam tê-lo percebido atra­vés de muitas indicações e até mesmo através de informações óbvias que lhes foram transmitidas. Mas imagine! Eles se esqueceram de tudo isso. E por quê? Pelos mesmos motivos que os tornaram homens tão desatentos

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às coisas pertinentes ao próximo. Os doze preocupavam-se demais com os seus próprios interesses. Suas mentes estavam cheias de seus sonhos vazios de ambições humanas e terrenas, e as palavras do Mestre foram esquecidas quase no mesmo momento em que foram proferidas, o que tornou necessário que o Senhor lhes dissesse, de maneira emocionante e reprovadora: “Sempre tendes convosco os pobres, mas a mim não me haveis de ter sempre”. Homens que têm essa disposição mental nunca entendem as épocas, a ponto de saber o que Israel deveria fazer, ou apro­var a conduta daqueles que o soubessem.

Uma segunda qualidade admirável no caráter de Maria foi a liberdade de seu espirito. Ela não estava presa a métodos e regras para realizar boas obras. A julgar por sua linguagem, os discípulos parecem ter sido gran­des metódicos, e servis em sua aderência a certos estereótipos de ação. “Este ungüento”, eles afirmaram, “podia vender-se por grande preço e dar-se o dinheiro aos pobres”. Eles entendiam que a caridade para com os pobres é um dever muito importante; sabiam que seu Mestre sempre fazia referências a isso; e eles faziam essas obras. “Caridade”, no sentido de dar esmolas10, era uma atividade em que tinham prazer. Quando Judas traiu o seu Senhor, eles imaginaram que ele teria saído para distribuir aos pobres o que restou do jantar. Parece que as muitas idéias que ti­nham sobre as boas obras eram repletas de métodos. As boas obras para eles não parecem ser extensivas aos vários tipos de feitos nobres. A frase é técnica e limitada, em sua aplicação, a um círculo confinado de ações expressa e obviamente religiosas, e de natureza benevolente.

Mas não era assim com Maria. Ela sabia, mais que qualquer um, como fazer o bem. Ela era capaz de inventar, sozinha, maneiras que considerava adequadas. Era original, criativa, sem imitações submissas. Era uma mulher tão original quanto destemida. Maria não é apenas capaz de imaginar maneiras de fazer o bem de acordo com os conceitos e práticas comuns, mas possui coragem para colocar em prática as suas próprias concepções. Ela não tem medo “do público”. Não perguntava a si mesma: O que os doze pensariam disso? Com a mente livre e despreo­cupada, ela planeja e prontamente executa as suas idéias e planos.

Por essa liberdade, foi atribuído a Maria tão grande coração. O amor a tornou original no pensamento e na conduta. As pessoas sem coração

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não podem ser originais como ela. Elas podem viciar-se em praticar boas obras por algum motivo; o que as torna escravas a praticar tais atos de maneira mecânica. Elas são instigadas a tais práticas por alguém em quem confiam; ou, simplesmente, por costume ou por estar na moda; e assim, nunca fazem o bem que não esteja em voga. Porém Maria não precisava de conselheiro: ela escutava seu próprio coração. O amor lhe dizia, de maneira infalível, qual era a responsabilidade daquele instante; que a sua tarefa naquele momento não era dar esmolas, e sim ungir a pessoa do Grande Sacerdote.

Aprendemos através deste exemplo de M aria que o amor não é infe­rior à necessidade, a mãe da invenção. Um grande coração tem muito mais a ver com a originalidade espiritual do que com uma mente inteli­gente. O que é preciso para lotar a igreja com pregadores originais, ofertantes originais e cooperadores originais para todos os trabalhos da obra cristã, não são mais cérebros, treinamento ou oportunidades, e sim, acima de tudo, mais coração. Quando existe pouco amor em uma comuni­dade cristã, a situação é a mesma de um rio em uma época de seca, que se mantém longe de seus limites, como também não ocupa a extensão de seu leito, deixando leitos de cascalho ou areia e secando ambos os lados da corrente. Entretanto, quando o amor de Deus é derramado nos cora­ções de seus membros, a igreja torna-se como o mesmo rio em um perío­do de chuvas. A corrente começa a crescer, o leito de cascalho gradual­mente desaparece, e a inundação não somente enche seus canais, como também transborda pot seus limites, e se espalha pelos prados. Novos métodos para se fazer o 'bem sao entao tentados, e novas formas para se fazer o bem são então alcançadas; novas canções são compostas e canta­das; novas formas de expressão para verdades antigas são inventadas, não por mera inovação, e sim pelo poder criativo de uma nova vida espiritual.

Foi o amor que tornou Maria livre do medo e da escravidão dos costumes mecânicos. “O amor”, diz aquele que conhece bem o poder do amor, “lança fora o medo”. O amor torna as mulheres sensíveis, corajosas — até mais corajosas que alguns homens. Pode nos ensinar a desconsiderar aquilo que chamam de “opinião pública”, perante a qual toda a humanidade se curva. Foi o amor que tornou Pedro e João tão corajosos diante do Sinédrio. Eles estiveram com Jesus tempo suficiente

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para amá-lo mais que a própria vida, e então não se intimidaram frente aos poderosos da época. Foi o amor que tornou o próprio Senhor Jesus indiferente à censura, desprezando as restrições convencionais na conti­nuação de sua obra. Seu coração era tão devotado à sua missão filantró­pica que Ele estabeleceu um desafio frente à desaprovação do mundo; provavelmente, nem sequer tenha pensado muito sobre isso, exceto quando tentaram censurar as suas Boas Novas. E o amor faz por todos o mesmo que fez por Maria, por Jesus e pelos apóstolos nos dias que se seguiram. Onde quer que o amor exista de maneira liberal, acaba com a timidez, com a desconfiança e com a tolice que acompanha tais características, e traz consigo um caráter poderoso e uma mente saudável. E ao coroar o elogio, podemos adicionar que embora nos torne corajosos, o amor não nos torna imprudentes. Alguns homens são corajosos por que são egoís­tas demais para se dar conta dos sentimentos de outras pessoas. Aqueles que são corajosos, através do amor, podem ousar realizar atos onde pos­sivelmente se encontrarão falhas; porém, são sempre ansiosos, na medida do possível, para agradar o próximo e para evitar ofensas.

Há mais um ponto a ser considerado. A liberdade que emana do amor nunca pode ser perigosa. Atualmente, muitas pessoas estão alar­madas em relação ao progresso no ensino da teologia nas escolas. E a tolerância que consiste na indiferença cética à verdade cristã universal justi­fica nossos sentimentos de ciúme. Mas, por outro lado, não se pode considerar com exagero a tolerância e a liberdade que se devem ao amor consumado por Cristo, e todos os grandes interesses de seu Reino. O espírito de caridade pode, de fato, lidar com questões comparativamente simples, coisas que os homens com mente austera condenam, mas que são de vital importância. Através do espírito de caridade podemos estar dispostos a realizar atos que os homens mais apaixonados pelos usos e costumes da época, e não pela liberdade, venham a considerar inovações devassas. Porém, os danos causados serão mais imaginários do que reais; e mesmo que não fosse assim, as “Marias impulsivas” nunca serão tão numerosas na igreja a ponto de não poderem ser seguramente toleradas. Sempre existe um número suficiente de discípulos prosaicos, amantes da “ordem” estabelecida, que desejam manter seus irmãos extravagantes de acordo com os seus princípios.

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Finalmente, a nobreza do espírito de Maria não foi menos marcante do que a sua liberdade. Não houve manchas de utilitarismo vulgar em sua personalidade. Ela pensou habitualmente não sobre a utilidade ime­diata, óbvia e material, e sim na utilidade honorável, amável e moral­mente bela. E, dificilmente, homens práticos a tachariam como românti­ca, sentimental ou sonhadora; uma pessoa mais justa, apreciativa e que estime as outras a teria representado como uma mulher cujas virtudes foram heróicas e nobres, e não comerciais. Jesus sinalizou o ponto sali­ente no caráter de Maria pelo epíteto que utilizou ao descrever o seu ato. Ele não o classificou como um trabalho útil, e sim como um bom traba­lho; ou, melhor ainda, como um trabalho nobre.

Contudo, ao caracterizar o ato de Maria como nobre, não estamos desmerecendo a sua utilidade. De certa forma, todos os bons atos são úteis em determinadas ocasiões. Todas as coisas belas e nobres — pensa­mentos, palavras, atos — por fim contribuem para o benefício do mundo. Tais atos como os de Maria — que vêm das melhores e mais nobres intenções — nem sempre são aparentes ou apreciáveis. Se formos utilizar o que é certo de maneira imediata, óbvia e vulgar, teremos que excluir não somente a unção em Betânia, como também todos os excelentes poemas e obras de arte, todos os sacrifícios das vantagens materiais em benefício da verdade e do dever; todas as coisas que não tendem, de fato, a aumentar diretamente a riqueza e o conforto, e sim ajudam simples­mente a condenar o mundo à vulgaridade, dando-nos lampejos da terra distante da beleza e da bondade, levando em consideração o que tão fracamente sonhamos, e nos coloca em contato com o divino e o eterno, e faz da terra um clássico campo de batalhas, um campo onde os heróis lutam e onde os seus ossos são enterrados, e onde os símbolos de pedra celebram o seu valor.

Por essa nobreza de espírito, Maria demonstrou de modo preemi- nente ser cristã. O cristianismo decerto é genial. Seu conselho é: “Tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai”. Todas estas virtudes são enfaticamente úteis; mas não nos referimos somente à sua utilidade. No entanto, somos incitados a pensar não apenas nelas, mas em nossa pró­

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pria condição diante delas; e isso por uma boa razão. Para sermos úteis, devemos almejar algo maior que a utilidade; igualmente, para sermos felizes, devemos almejar algo acima da felicidade. Devemos agir de acor­do com uma consciência limpa e um coração amoroso e puro — esta deve ser a regra de nossa vida. E assim poderemos ter a certeza de que tudo o que fizermos estará baseado em uma conduta correta, quer percebamos quer não; ao passo que, se calcularmos ou dirigirmos as nossas ações, poderemos deixar de realizar atos melhores e mais nobres, somente por­que as regras em nossa vida não estão tão claras. A devoção heróica do mártir é algo supremo e útil para o mundo; porém, são necessários sécu­los para desenvolver os benefícios do martírio; e se todos os homens seguirem as máximas de sua filosofia e agirem, não haverá mais mártires. O utilitarismo tende a ser um ornamento e um oportunismo; é a morte do heroísmo e do auto-sacrifício; é mover-se pela visão e não pela fé; é olhar somente para o presente e esquecer-se do futuro; é fazer com que a prudência se sente no trono da consciência; é produzir, não grandes personalidades, mas na melhor hipótese, intrometidos insignificantes. Fazendo tais considerações, não nos surpreendemos ao encontrar o ter­mo “utilidade” com tanta freqüência no vocabulário religioso de nossos dias, o que não acontece no Novo Testamento11.

Quatro observações podem adequar-se a essas meditações no me­morável episódio de Betânia.

1) Em todos os atributos do caráter enumerados até aqui, M aria foi um modelo de genuína piedade evangélica. O espírito evangélico é um espírito de amor nobre e de destemida liberdade. Fixar padrões e métodos na religião é uma imitação do verdadeiro evangelismo que chega a ser escrava do passado pela tradição. O verdadeiro nome para essa tendência é legalismo.

2) A partir da defesa que Cristo fez de Maria, aprendemos que a censura não é uma evidência infalível de estarmos errados. Um homem tido como culpado por ter feito algo que foi considerado incorreto tem neste fato a única razão possível para que seja censurado. Mas, na verda­de, ele apenas fez algo fora do comum; em todas as coisas fora do co­mum é possível encontrar falhas — tanto algo raramente bom, quanto algo raramente ruim. Assim acontece com a observação de Paulo, quan­do o apóstolo diz que não existe lei contra o amor e semelhantes graças.

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De fato, tais virtudes são tratadas como se fossem ilegais e criminosas sempre que excedem a pequena medida em que, por exemplo, os metais preciosos são encontrados no mundo. Acaso o Senhor, ao trazer em si todas as graças celestiais, não foi desprezado e assassinado pelo mundo como uma pessoa que não poderia ser tolerada? Felizmente, algumas vezes o mundo demonstra uma opinião mais justa (embora freqüente­mente tardia) a respeito daqueles que sofreram de maneira injusta. Os bárbaros da ilha de Malta, que, ao virem uma víbora agarrada na mão de Paulo pensaram que ele fosse um assassino, mudaram de opinião quan­do ele se livrou do animal, ileso, e exclamaram que ele era um deus. Assim, devemos aprender a máxima da prudência, não para sermos tão rápidos ao criticar, mas se quisermos ter o crédito pela perspicácia e consistência. Mas devemos nos disciplinar a ser mais prudentes ao julgar por considerações gerais. Devemos alimentar a reverência ao caráter e à personalidade de todos os seres inteligentes e responsáveis, e estar sob constante temor de cometer erros, e de chamar o bom de ruim e o ruim de bom. Nas palavras de um antigo filósofo: “Devemos sempre ser mui­to cuidadosos ao culpar ou elogiar um homem, para não falarmos de uma forma inadequada. Para isso, é necessário aprendermos a discrimi­nar entre o homem bom e o homem mau. Para Deus, é um desprazer quando alguém o culpa de algo, ou deixa de elogiá-lo. Não imagine que pedras e paus, que pássaros e serpentes, sejam santos, e que os homens não o sejam. Porque dentre todas as coisas na terra, a mais sagrada é um homem bom, e a mais detestável é um homem mau”12.

3) Se não pudermos ser cristãos como Maria, não sejamos discípu­los como Judas. Alguns podem pensar que seria desejável que todos fossem como a mulher de Betânia; considerando de forma plausível a fraqueza da natureza humana, é necessário que as escolas românticas, impulsivas e espirituais dos cristãos sejam mantidas sob verificação por uma outra escola mais prosaica, conservadora e, digamos, de caráter ple­beu. Enquanto isso, talvez admitamos que haja alguns poucos cristãos como Maria na igreja, e que ajudam a preservar a religião da degeneração em aspereza, vulgaridade e formalismo. Seja como for, a igreja certa­mente não necessita de pessoas como Judas. Judas e Maria! Esses dois representam os dois extremos do caráter humano. Um exemplifica o

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lado odioso de todas as coisas; o outro, o lado santo. Caracteres tão diferentes nos fazem acreditar no paraíso e no inferno. Cada um vai para o seu próprio local: Maria “à terra da lealdade”; Judas à terra da falsida­de, pois vendeu a sua consciência e o seu Deus por dinheiro.

4) Vale a pena notarmos quão natural e apropriadamente Jesus, em sua magnânima defesa à obra generosa e espontânea de Maria, eleva-se à altura completa da presciência profética e antecipa uma difusão mundial de seu Evangelho: “... onde quer que este evangelho for pregado, em todo o mundo, também será referido o que ela fez para memória sua” (M t 26.13). Tal evangelho não poderia ser considerado menos do que mun­dial em simpatia, e ninguém que tenha entendido tanto o evangelho quanto o seu Autor poderia deixar de ter o desejo de ir por todo o mundo e pregá-lo a todas as criaturas. Esse toque universalista na pala­vra proferida pelo Senhor Jesus Cristo naquela época, longe de nos pegar de surpresa, parece ser uma questão que faz parte do evangelho. Até mesmo os críticos da escola naturalista admitem a sua genuinidade. “Esta palavra proferida em Betânia”, afirma um dos mais considerados escri­tores dessa frágil escola naturalista, “é uma palavra solitária, a única que é praticamente confiável, relativa ao último período da vida de Cristo, relacionada à carreira mundial, que Jesus viu se abrindo para si mesmo e para a sua causa”13. E se, então, os doze permaneceram com um pensa­mento mais próximo ao de Judas até o final, não foi por causa da falta do elemento universal no ensino de seu Mestre, e sim simplesmente porque permaneceram incapazes de apreciar o ato de Maria, e de entender o evan­gelho do qual este ato era um símbolo, como lhes foi mostrado na ocasião. Não cremos que eles tenham continuado da mesma maneira; e a melhor evidência disso é o fato de a história de Maria de Betânia ter alcançado um lugar nos registros evangélicos.

1 Sobre a aparente discrepância entre os evangelistas sinópticos e João, na época, em todos os outros pontos pertencentes à harmonia, veja especialmente os comentários de Alford e Stier.

2 É natural ligar a unção à ressurreição de Lázaro, encontrando na gratidão pela ressurreição de um irmão, o motivo desse ato de amor. Alguns chegam a sugerir (sem base bíblica) que o ungüento pode ter sido comprado parao sepultamento de Lázaro.

3 Veja Neemias I e 2. Como Maria, Neemias pode ser mencionado onde quer que o evangelho seja pregado, para ilustrar os sentimentos do Redentor e interpretar os seus pensamentos.

4 Existe entre os teólogos uma tendência de um hábito ultra-acadêmico do pensamento, que consiste em tratar

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tudo aquilo que é fa la do sobre o amor em con ex ã o c o m a expiação c o m o a lgo sentimental; ou, quando muito, como disponível apenas para propósitos populares, e para representar o aspecto judicial da expiação, separadamente da validade científica. Assim, um trabalho moderno relacionado à História das Doutrinas (Shedd) afirma: “Todo o desenvolvimento científico verdadeiro da doutrina da expiação é muito claro e deve se afastar da idéia de justiça divina. Essa concepção é primária na representação bíblica desta doutrina”. Esse autor é apaixonado pelas “sotereologias” que têm pretensões científicas. Ele idolatra Anselmo como o autor da “primeira metafísica da doutrina cristã da expiação”, e o primeiro a desafiar a doutrina da satisfação vicária, “ambas como uma necessidade racional e racionalidade científica”. Anselmo certamente considera a paixão como um argumento primordial à redenção, a seu limite extremo. Ele visou demonstrar não somente a necessidade hipotética de uma expiação para a salvação, como também uma necessidade absoluta. Esse homem disse que um certo número de pecadores deveria ser salvo para preencher o espaço deixado pelos anjos caídos, pois “é indubitável que a natureza racional, que é ou será feliz pela co n tem p la çã o d e Deus, como previsto pelo próprio Deus, tenha um certo número racional e perfeito, que não pode ser maior nem menor do que o estabelecido” ( CurDeus Homo, I c. 16). Feliz é aquele que foge de tal ciência relacionada à sala do jantar em Betânia! Deixemos o augusto atributo da grandiosa justiça obter seu lugar na teologia da expiação, mas não deixemos o “amor” ser banido da teologia dos sermões populares. A morte de Cristo satisfez tanto a justiça divina como o amor divino, e a glória do evangelho consiste em que o mesmo evento satisfez ambos.

5 Veja o capítulo 3.6 Sobre o aparente desperdício relacionado à redenção, existem boas observações nos escritos de Andrew Fuller

e especialmente na obra Three Conversations on Particular Redemption, Este autor afirma: “Isso está de acordo- com a co n d u ta ge ra l d e D eus ao p a rtã ha r seu s fa vo r es c o m um t ip o d e profusão que, à m en te d o s h o m en s q u e enxergam somente uma ou duas finalidades a serem satisfeitas, pode aparentar perda”.

7 Saimo 1338 2 Samuel 69 O provérbio escocês que tem o mesmo efeito é “Nae owers are guid”.10 Não podemos considerar como uma melhoria a exclusão da palavra caridade da Versão Revisada em inglês. O

motivo é suficientemente óbvio, pelo fato de esta palavra ser freqüentemente empregada com o sentido de dar esmolas. Porém, ela possui um outro sentido bem compreendido, que é o “amor universal”. Além disso, é uma palavra muito importante em nosso vocabulário religioso para ser abandonada. O efeito dessa omissão no estilo da Versão Revisada em inglês é, muitas vezes, bastante infeliz. Assim, em 2 Pedro 1.7: “Ao amor fraternal, a caridade” (na versão A.V em inglês), temos “Ao vosso amor, o amor fraternal” (na Versão Revisada em inglês). Observe a perda de conteúdo e significado.

11 Sobre os defeitos da moralidade do utilitarismo veja a obra de Sir James Macintosh, Dissertation, sob os cuidados de Jeremy Bentham.

12 Da obra de Platão, Minos.13 Keim, Geschichte Jesu, 3. 224.

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João 12.20-23

FJ_Jssa narrativa apresenta interessantes pontos de afinidade com os docapítulo 4 do Evangelho de João — a história da mulher junto à fonte. Nos dois, Jesus entra em contato com pessoas que não fazem parte do judaísmo; em ambos Ele se vale da oportunidade para proferir, com fervorosa linguagem, uma palavra sobre uma época que havia de vir, e que de fato havia chegado, em que seriam introduzidos em uma gloriosa nova era relacionada ao Reino de Deus. Em ambas, Ele expressa da ma­neira mais enfática possível a sua dedicação em fazer a vontade do Se­nhor, a certeza da futura propagação do evangelho e a recompensa pes­soal em glória1. Em ambos, destacando por exemplo mais um ponto de semelhança entre as narrativas, o Senhor emprega metáforas agrícolas para explicar os seus pensamentos. Na primeira narrativa toma empres­tada a figura do processo de colheita; na outra, a da semeadura.

No entanto, além das semelhanças, diferenças marcantes também são notadas nas duas passagens relacionadas à vida do Senhor Jesus Cris­to. O mais surpreendente é que, enquanto na primeira ocasião há apenas entusiasmo, alegria e esperança no coração do Salvador, na ocasião pre­sente esses sentimentos são misturados com uma profunda tristeza. Sua alma não está apenas entusiasmada com a perspectiva da glória iminente, m as ta m b ém p r e o c u p a d a c o m o desastre im in en te . A razão é a proximi­dade de sua morte; dali a três dias o Senhor seria levantado na cruz, e por ser ao mesmo tempo Deus e homem, sua natureza e sensibilidade humana se ressentem da dose amarga de sofrimento que o aguardava.

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Porém, à medida que se percebe a presença de uma nova emoção aqui, é possível notar que esta não produz mudanças nas emoções manifestadas por Jesus em relação ao seu diálogo com a mulher samaritana. Pelo contrá­rio, a morte iminente apenas traz ao Salvador os meios necessários para que dê mais intensidade à expressão de sua devoção, fé e esperança. Ante­riormente, o Senhor dissera que, para Ele, fazer a vontade do Pai era mais importante até mesmo do que se alimentar fisicamente; e agora afirma que é mais importante do que a própria vida2. No início, o Senhor menciona um vasto campo, branco e pronto para a colheita, nas extensas terras dos gentios; agora, Ele não somente continua a enxergar esses campos, a des­peito de sua morte iminente, mas também os considera como o efeito de sua morte. Um mundo repleto de grãos dourados que se originam de um grão de trigo lançado ao solo, e que se tornam frutíferos através de sua morte3. Na fonte de Sicar, Ele havia falado da recompensa que o aguardava como Senhor e daquela que aguardava aqueles que fossem os seus cooperadores na obra do Reino de Deus, quer trabalhassem na semeadura quer na co­lheita. Aqui, a morte é tragada pela vitória através do poder da esperança em sua promessa. Sofrer é entrar na glória; ser crucificado é ser exaltado ao céu; o Senhor voltaria a sentar em seu trono, de onde novamente domina­ria o universo4.

Segundo os evangelistas, os homens que desejavam ver Jesus enquanto estava em um dos átrios do Templo eram gregos. De onde vinham — se do norte ou do sul, do leste ou do oeste — não se sabe ao certo. Mas evidentemente desejavam entrar no Reino de Deus. Aqueles homens já haviam feito algum esforço para entrar no Reino de Deus. Presume-se que, no mínimo, tenham deixado o paganismo e abraçado a crença no Deus único e verdadeiro de acordo com os ensinos dos judeus, e que tenham ido a Jerusalém para celebrar a Páscoa como judeus convertidos5. Mas tudo indica que ainda não tinham encontrado o descanso para suas almas. Ha­via algo mais a se conhecer a respeito de Deus, e sentiam que isso ainda não lhes fora revelado. E assim esperavam que Jesus, cujo nome e fama se tornaram de algum modo conhecidos por eles, viesse a lhes ensinar aquilo que não conheciam. E assim, quando tiveram a oportunidade de comuni- car-se com um de seus seguidores, expressaram, respeitosamente, o desejo que tinham de conhecer o seu Mestre: “Senhor, queremos ver Jesus”. Para

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eles, talvez essas palavras não fossem mais do que a expressão de um curi­oso desejo de contemplar, ainda que rapidamente, aquEle que considera­vam ser um homem notável. Porém, tal interpretação desse pedido é exclu­ída pela profunda emoção que despertou em Jesus. A simples curiosidade, vinda provavelmente da ociosidade, não teria tocado a alma do Senhor daquela maneira. Portanto, a noção de que esses gregos fossem meros estranhos curiosos é totalmente inconsistente com a conexão em que a história é apresentada. João traz a presente narrativa imediatamente após a citação de uma reflexão feita pelos fariseus a respeito da popularidade alcançada por Jesus em virtude da ressurreição de Lázaro. Disseram os fariseus entre si: “Vedes que nada aproveitais? Eis que todos vão após ele”. E como se o evangelista lhes respondesse: “Sim, isso é verdade! E isso ocorre em uma medida que vocês nem sequer sonham. Aquele a quem vocês odeiam está começando a ser buscado até mesmo por gentios que vêm de longe, conforme a própria história está mostrando e ainda mostrará”.

E correto, então, considerarmos esses gregos forasteiros como sin­ceros seguidores do Senhor. Eles estavam buscando a Deus com sinceri­dade. Eram genuínos descendentes espirituais de seus ilustres patrícios Sócrates e Platão, de quem as declarações, quer escritas quer faladas, foram uma longa oração em busca da luz e da verdade, um profundo e inconsciente suspiro por ver Jesus, ao menos de relance. Queriam ver o Salvador, não apenas com os olhos físicos, mas, acima de tudo, com os olhos espirituais.

A parte desempenhada pelos dois discípulos na narrativa, em cone­xão com o memorável acontecimento, requer uma breve explicação. Fili­pe e André tiveram a honra de ser os mediadores na comunicação entre os representantes do mundo dos gentios e o Senhor, que veio para cum­prir o propósito de ser o Salvador de todos as nações. Os gregos devotos dirigiram-se primeiro a Filipe que, por sua vez, chamou seu irmão André para fazer a consulta ao Senhor. Não sabemos como Filipe foi escolhido para ser o portador da solicitação desses gentios.

Alguns têm se referido ao fato de o nome Filipe ser de origem gre­ga, crendo, ainda, ser possível que ele tenha tido amigos gregos, e possi­velmente até conhecesse essas pessoas que o procuraram nessa ocasião. Pode ser que exista algo de verdade nessas conjecturas, porém é mais

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importante lembrar que os gregos se sentiram felizes por tê-lo como seu interlocutor. O próprio Filipe era um inquiridor e certamente simpati­zava com outros que tivessem essa mesma atitude e disposição mental. A primeira vez que Filipe surge nos registros bíblicos foi expressando a sua fé em Jesus, como alguém que cuidadosamente procurou a verdade e que, por fim, encontrando aquilo que buscava, lutou para que outros viessem a participar desta grande bênção. “Filipe achou Natanael e dis­se-lhe: Havemos achado aquele de quem Moisés escreveu na Lei e de quem escreveram os Profetas: Jesus de Nazaré, filho de José”. A precisão e a plenitude desta confissão expressam uma pesquisa cuidadosa e cons­ciente. E Filipe ainda possuía um temperamento inquiridor. Dois ou três dias depois de seu encontro com os gregos, Filipe fez o mais impor­tante dos pedidos: “Senhor, mostra-nos o Pai, o que nos basta”.

Mas por que então este simpático discípulo não transmitiu o pedi­do sozinho e diretamente a Jesus? Por que levou André consigo, como se temesse desempenhar sozinho essa missão? Porque os suplicantes eram gregos e gentios. Uma coisa é apresentar a Jesus um judeu devoto como Natanael; outra, muito diferente, seria apresentá-lo a gentios, por mais devotos que fossem. Entendemos que Filipe se sentiu contente por saber que o Mestre estava sendo buscado desse modo e por tais pessoas, mas que não tinha certeza se deveria agir de acordo com o seu ímpeto inicial. Ele hesita, no entanto sente-se bastante animado diante daquilo que sente ser algo novo, um evento significativo, o início de uma revolução religiosa6. Sua inclinação é ser o intercessor ou o interlocutor dos gregos, mas parece ter dúvidas sobre o seu próprio julgamento e, antes de agir, fala do acontecido com seu irmão-discípulo André, a fim discutir o im­pacto de tal atitude. Após consultar André, ambos foram até o Mestre e contaram o que estava acontecendo. Filipe e André sentiram-se comple­tamente seguros ao relatar o caso ao Senhor, confiando que Ele faria o que melhor lhe parecesse. A partir da narrativa do evangelista, aprende­mos que a comunicação dos dois discípulos tocou a alma do Senhor Jesus. As manifestações de aceitação ou de susceptibilidade espiritual por parte daqueles que não faziam parte da comunidade de Israel sem­pre moveram profundamente os sentimentos do Senhor. A mente aberta dos habitantes de Sicar, a fé singela do centurião romano, a fé perspicaz

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da mulher siro-fenícia, a gratidão do leproso samaritano tocaram o Se­nhor de modo profundo. Tais exibições de caráter espiritual vindas de pessoas que ninguém consideraria capazes, chegaram à sua alma como a suave melodia de uma harpa eólia, pois eram puras e doces manifesta­ções de fé, esperança, alegria e caridade. E, porque não dizer, às vezes também expressavam amargura através de tons de desapontamento e tris­teza, como o ruído do vento de outono passando pelos pinheiros esco­ceses, nas ocasiões em que o Senhor pensava na incredulidade e na con­dição espiritualmente morta do povo escolhido, por quem Ele havia feito tanto7. O coração do Senhor jamais havia ficado tão profundamen­te afetado quanto naquela ocasião. E não é de se admirar/ Que visão poderia ser mais tocante do que a de um ser humano buscando a Deus, a fonte da luz e da vida! Por isso, a espontaneidade daqueles gregos foi tão linda. E motivo de gratidão quando — em um mundo tão materia­lista e descrente — uma ou outra pessoa, aqui ou acolá, responde ao chamado de Deus e recebe uma palavra divina que lhe foi dirigida. No entanto, aqui observamos um raro espetáculo de homens que se apresen­tam sem terem sido convocados: eles não foram buscados por Cristo, para que aceitassem aquEle que se oferece para ser o seu Senhor e Salva­dor. Mas, buscando-o, pediram o que consideraram um imenso favor: serem admitidos em sua presença, para que pudessem oferecer-lhe suas sinceras homenagens, e ouvi-lo pronunciar palavras de vida eterna. Esses homens vieram, também, dos lugares mais diferentes e inesperados e, o que é ainda mais digno de nota, em um dos momentos mais críticos da história da humanidade. Jesus está prestes a ser rejeitado por seu próprio povo, que o entregará para ser crucificado. Alguns fecharam os olhos e os ouvidos, e endureceram os seus corações da maneira mais obstinada a Ele e aos seus ensinos; outros, mesmo reconhecendo os méritos do Se­nhor, ocultaram as suas convicções de modo torpe e desalmado, temen­do as conseqüências de professar publicamente a sua fé.

A profecia de Isaías se cumpriu nessa amarga experiência: “Quem deu crédito à nossa pregação? E a quem se manifestou o braço do Senhor?” Farisaísmo, saduceísmo, ignorância, indiferença, leviandade, covardia; o Salvador foi confrontado por todos os lados. Que alívio, em meio a tantas contradições, estupidez e insensibilidade, foi a intimação que re­

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cebeu na décima primeira hora. “Aqui estão alguns gregos interessados no Senhor e que desejam vê-lo!” Tais palavras soaram como música aos seus ouvidos; as notícias trouxeram um avivamento ao seu espírito ferido e sobrecarregado, como um peregrino no deserto arenoso que avista um oásis. E no auge de sua alegria, o Senhor exclamou: “E chegada a hora em que o Filho do Homem há de ser glorificado”. Rejeitado por seu próprio povo, o Senhor Jesus é consolado pela garantia inspiradora de que o mun­do crerá nEle, e que Ele será aceito pelas nações mais remotas, tornando- se, para estas, o seu Salvador, o desejado das nações.

Os pensamentos de Jesus naquele momento eram tão profundos quanto as suas intensas emoções. Devemos observar de uma forma espe­cial o primeiro pensamento que o Senhor expressou através das seguin­tes palavras: “Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto”. O Senhor fala aqui com a solenidade de quem sabe que está anunciando aos seus ouvintes uma nova e estranha verdade. Seu objetivo é tornar esta verdade compreensível, e fazer com que os seus discípulos creiam que a sua morte e o crescimento de sua obra estão ligados. Ele salienta que este fato é o mesmo no caso do grão; o Senhor queria que os seus discípulos compreendessem que a lei do crescimento, não apenas a despeito da morte, mas em virtude desta, se mostraria igualmente verdadeira em seu próprio caso. “O grão de trigo, ao morrer, torna-se frutífero; da mesma forma, Eu preciso morrer para tornar-me, em grande escala, o objeto de fé das pessoas e a fonte da vida de cada uma delas. Durante a minha vida na terra, pode parecer que não tive um imenso sucesso. Poucos creram em mim, muitos não creram, e os descrentes estão prestes a coroar a sua incredulidade entregando-me à morte. Mas a minha morte, longe de ser o que pensam (a minha derrota e destruição), será apenas o início de minha glorificação. Depois que eu tiver sido crucificado, o mundo co­meçará a crer amplamente em mim como o Senhor e Salvador da huma­nidade.”

Tendo, através da analogia do grão de trigo, estabelecido a morte como a condição da frutificação, Jesus, em uma palavra dita a seguir, proclamou a importância de sua própria crucificação em relação ao seu poder. “E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim”. Jesus

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usa a expressão “levantado da terra” com um duplo sentido. Em parte, v como dizem os evangelistas, em alusão à maneira como foi morto e, em parte, como uma referência à sua ascensão ao céu. E ele queria dizer que, através de sua cruz, atrairia a si o olhar e o coração dos homens. E por mais estranha que tal afirmação possa ter parecido antes do fato, tudo aconteceu conforme o Salvador tinha previsto. A cruz, que havia sido anteriormente um símbolo da vergonha, tornou-se, de fato, uma fonte de glória; o sinal de fraqueza tornou-se um instrumento de poder moral. O Cristo crucificado, embora fosse uma pedra de tropeço para os judeus incrédulos, e uma loucura para os filósofos gregos, tornou-se, para mi­lhões de pessoas em todas as épocas, o poder e a sabedoria de Deus. Por sua humilhação voluntária e por suportar o sofrimento com mansidão, o Filho de Deus trouxe a si homens com a mais sincera fé, e um amor verdadeiro e reverente.

A grandeza dos desejos e das expectativas de Cristo é notável. Ele fala de “muitos frutos” e de levar “todos os homens” a si. Obviamente não temos nesta obra a intenção de expressar uma definição exata da redenção. Jesus fala como alguém que expressa, com toda a plenitude de seu coração, a sua mais elevada e santa esperança. E devemos aprender, com suas fervorosas palavras, se não o significado teológico completo da expiação, ao menos a amplitude dos bons votos do Senhor que fez a expia­ção. O Senhor deseja que todos os homens creiam nEle e sejam salvos. Ele se lamenta com profunda melancolia a respeito do número reduzido de crentes entre os judeus; e assim se volta aos gentios com um desejo grandioso e inexprimível de salvá-los, aguardando uma melhor recepção por parte destes. Quanto maior o número de seguidores, em qualquer época e em qualquer lugar, mais prazer o Senhor sente, e certamente não contempla com indiferença a enorme incredulidade que ainda prevalece em todas as partes do mundo. O coração do Salvador está voltado à completa expulsão do “príncipe deste mundo” do domínio que este usurpou, para que Ele reine pessoalmente sobre todos os reinos da terra.

A narrativa contém aplicações endereçadas aos seus discípulos em conexão com a lei da frutificação através da morte, dizendo, com efeito, que esta se aplica tanto a Ele como aos seus discípulos8. Isso parece, à primeira vista, surpreendente, a ponto de sermos tentados a pensar que

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os textos aos quais são feitas alusões são trazidos pelo evangelista, a partir de sua verdadeira conexão histórica. Observamos que o Senhor Jesus Cristo, em todos os casos onde é possível em seus ensinos, leva os seus discípulos a uma participação consigo. Ele não insiste nos aspectos da verdade que são peculiares a si mesmo, mas naqueles que são comuns a Ele e aos seus seguidores. Caso haja algum ponto de contato, ou algum sentido no qual aquilo que o Senhor declara sobre si mesmo se mostre como algo também verdadeiro em relação àqueles que nEle crêem, o Senhor passa a dar ênfase a este ponto de contato, ou característica, transformando-o em uma importante discussão. Foi assim que Ele fez naquele encontro à beira da fonte; aquela foi a primeira vez em que anunciou aos seus discípulos que em breve seria morto. E nesta passa­gem o Senhor faz o mesmo. Aqui Ele também reafirma a comunhão que tem com os seus seguidores no tocante à necessidade da morte como uma condição para a frutificação. E a comunhão que está sendo mencio­nada não é um conceito forçado e nem artificial: trata-se de uma grande realidade prática. O princípio estabelece que à medida que um homem se torna participante do sofrimento de Cristo em seu estado de humi­lhação, também será participante da glória, da honra e do poder que pertencem ao estado de exaltação do Senhor. Este princípio se mantém verdadeiro também nesta vida. Carregarmos a cruz e suportarmos a morte é a condição para a frutificação, tanto no sentido da própria santificação pessoal quanto no sentido de se prestar um efetivo serviço ao Reino de Deus. A longo prazo, a medida do poder de um homem é a medida em que este é batizado na morte de Cristo. Devemos completar a medida das aflições de Cristo em nossa carne, a favor de seu corpo, que é a Igreja, se quisermos ser instrumentos honrados do avanço da maravilhosa obra que o Senhor ansiava realizar no mundo, e em benefício da qual estava dispos­to a ser como o grão de trigo que, caindo na terra, morre.

Por mais notável que esta declaração possa soar, não deve ser consi­derada entre aquelas que contêm uma contribuição distinta à doutrina da cruz. Ali não estão contidos nenhuma visão ou princípio que possam ser considerados novos, mas as antigas visões são reafirmadas, ou seja, aquelas que foram ensinadas em uma combinação da primeira e da se­gunda lição — a morte como uma condição de vida9 e poder10. A palavra

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utilizada no texto original para representar o grão de trigo não nos mos­tra um novo aspecto da morte de Cristo, mas ajuda neste raciocínio ao trazer uma analogia familiar que facilita o entendimento da morte como um meio de crescimento. O principal objetivo do capítulo anterior é mostrar o início do universalismo cristão que Jesus antecipou ao falar da unção que Maria lhe fez, e servir como uma introdução ao capítulo que vem a seguir, que trata da condenação de Jerusalém.

1 João 4.34-36. O versículo 34 expressa a dedicação do Senhor Jesus Cristo em realizar a obra da salvação. O versículo 35 expressa a sua ampla visão, ao tornar visíveis e presentes as coisas que ainda são invisíveis e futuras. No versículo 36 o Senhor expressa que haverá uma grande recompensa para os semeadores e para os ceifeiros.

2 João 12.283 Versículo 244 Versículos 23, 323 Esta é a inferência natural, mesmo no caso da versão autorizada em inglês, e que é mantida na versão corrigida

neste idioma: “Havia certos gregos dentre estes que vieram para adorar”. De acordo com um estudioso norueguês, o Dr. Field, em sua obra Otium Norvicense, parte 3, uma tradução mais precisa seria: “Havia certos gregos dentre aqueles gregos...”, etc. (ek tõn anabainontõn} e não en pois.).

6 Luthardt ÇDas John Evan. I .I02 ) pensa que esta hesitação é uma característica de Filipe, e contrasta com a prontidão de André, exibida aqui e também em João 6.9. Consideramos isso possível. Os homens que são acostu­mados a pensar e esquadrinhar pensamentos e situações não se mostram, freqüentemente, prontos para agir.

7 João 12.37-43. A leitura atenta do próximo capítulo desta obra pode ajudar o leitor a compreender a emoção sentida pelo Senhor Jesus Cristo ao receber o pedido desses estrangeiros gregos.

8 João 12.25, 269 João 16.25; confira João 12.2510 Mateus 20.28; confira João 12.24

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20Ó Jerusalém, Jerusalém!

ou O Discurso sobre as Últimas Coisas

Mateus 2 1 — 25, Marcos I I — 13; Lucas 19.29-48; 20— 21

J esus passou os poucos dias entre a unção e a Páscoa em visitas diárias a Jerusalém, sempre na companhia de seus discípulos, retornando à noi­te para Betânia. Durante esses dias, Jesus falou muito, tanto em público como em particular, sobre temas relacionados aos seus sentimentos e à situação: o pecado da nação judaica — especialmente de seus líderes religiosos — a condenação de Jerusalém e o fim do mundo. Suas pala­vras durante estes últimos dias estão registradas em cinco capítulos do Evangelho de Mateus — uma prova de que elas provocaram sentimentos profundos na mente dos doze.

Tão proeminente quanto as demais declarações que formam o tes­temunho agonizante do “Profeta de Nazaré” está a grande exortação que fez contra os escribas e fariseus de Jerusalém. Esse duro discurso foi precedido por vários encontros entre o Pregador e seus inveterados ini­migos, que eram como as discussões preliminares que formam o prelú­dio de um grande conflito. Nessas dissensões triviais, Jesus sempre se saiu vitorioso, deixando os seus oponentes confusos. Eles questionaram a autoridade do Senhor ao posicionar-se como um reformador, limpan­do dos limites do Templo todos os comerciantes, silenciando-os ao per­guntar a opinião que tinham a respeito da missão de João, e falando-lhes as parábolas dos Dois Filhos, da Vinha e da Pedra Rejeitada1, em que enxerga­ram claramente que a hipocrisia apresentada como oponentes injustos causaria enormes danos. Eles tentaram fazer com que o Senhor caísse em uma armadilha ao formularem uma pergunta sem resposta a respeito do tributo pago ao governo romano; mas Jesus se desvencilhou deles

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com notável facilidade, simplesmente pedindo uma moeda, apontando para a imagem do imperador que nela estava cunhada, e lhes perguntan­do: “De quem é esta efígie e inscrição? Responderam. De César. Então, lhes disse. Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”2. Sendo vencidos por duas vezes, os fariseus (com seus amigos herodianos) deram lugar aos seus usuais opositores saduceus, mas no momento aliados, que tentavam fazer com que Jesus expressasse alguma contradição na questão da ressurreição, o que lhe traria um grande em­baraço3. Percebendo o fracasso dos saduceus, a brigada farisaica retor­nou ao ataque e pelos lábios de um doutor da lei ainda não completa­mente pervertido inquiriu: “Qual é o grande mandamento na lei?” Jesus deu a esta indagação uma resposta direta e séria, resumindo toda a lei em dois mandamentos: o dever de amar a Deus e aos homens. Isso satisfez completamente o seu interlocutor. Então, sem esperar por mais desafios, o Senhor tocou a trombeta em um sinal de ataque, e perguntou: “Que pensais vós do Cristo? De quem é filho?”, e aproveitando a ocasião gera­da pela resposta, citou o versículo inicial do Salmo marcial de Davi, solicitando que o reconciliassem com a resposta que deram4. Aparente­mente lutando contra os fariseus com as próprias armas deles, e arman­do um simples quebra-cabeça teológico, Jesus estava, na realidade, lembrando-lhes quem Ele era e é, e fazendo com que os fariseus se lem­brassem da destruição já predita para aqueles que se posicionassem con­tra o Ungido do Senhor.

Assim, aquEle que era simultaneamente Filho e Senhor de Davi passou a cumprir a profecia, tornando os homens que se sentaram no lugar de Moisés o estrado de seus pés. E isso foi feito ao proferir-lhes um discurso no qual, para mudar a figura, os fariseus foram expostos ao ridículo e tornaram-se para todas as gerações seguintes um provérbio graças ao seu fracasso moral. Uma sentença é pronunciada a respeito do caráter inexoravelmente severo dos fariseus (embora tal caráter fosse até mesmo justificável sob alguns aspectos); esta sentença é aprovada pela consciência de todos os verdadeiros cristãos5. Esse discurso antifarisaico deve ser lembrado como o testemunho final, decisivo e abrangente de Jesus contra a forma mais condenatória e mortal de malignidade exis­tente naquela época, ou, ainda, que é capaz de prevalecer em todos os

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F tempos — a hipocrisia religiosa; e como tal ela é uma parte necessária no testemunho do Justo em defesa da verdade, a qual se espera que os discí­pulos digam amém sem vacilar. O espírito de ressentimento moral é tão essencial na ética cristã quanto o espírito de misericórdia. Ninguém que considere a polêmica antifarisaica da história do evangelho como um escândalo do qual se deve ter vergonha ou como uma mácula a ser per­doada, ou ainda como algo que, embora necessário naquela época, deva­mos agora tratar com negligência — uma prática muito comum no mun­do religioso —, deve ter mais simpatia pelo homem que crucificou o Senhor do que pelo próprio Senhor. Bem-aventurados aqueles que não sentem vergonha das palavras de Cristo, por mais severas que sejam; aqueles que, longe de tropeçar naquelas expressões proféticas mais ousa­das, encontraram nelas um auxílio para a fé em um momento de crise de sua história religiosa, como evidenciando uma identidade entre os senti­mentos morais do Fundador da fé e aqueles que a Ele pertencem: a comunidade cristã em geral. Isso nos ajuda a enxergar que os erros dos fariseus jamais seriam aceitáveis no cristianismo, e nem mesmo em uma moderna reprodução de um sistema religioso que Jesus jamais toleraria e nem aceitaria. E bem-aventurada é a igreja que tem práticas religiosas que dão efeito às palavras de advertência de Cristo expressas no início de seu discurso contra a ambição clerical, que é a fonte da tirania e da hipocrisia espiritual que está sendo denunciada.

Toda igreja precisa estar vigilante contra esse espírito maligno. O governo da religião judaica, teoricamente teocrático, degradou-se final­mente em um mbinismo; e é bem possível para uma igreja que tem como lema: “Um é seu Mestre, o Cristo”, cair em um estado de sujeição abjeta ao poder dos eclesiásticos ambiciosos.

Sem admitir sequer por um momento que haja qualquer coisa pelo que se desculpar nessas denúncias contra a hipocrisia, devemos, no en­tanto, atentar para a opinião que alguns críticos recentes da escola cética têm a respeito delas. Esses homens alegam que esses discursos são pro­nunciamentos precipitados e desqualificados de um jovem, cujo espírito se tornou endurecido pelos anos e pela experiência do mundo; seu tem­peramento era poético e, portanto, irritável, impaciente e pouco prático. Chegam a dizer que a sua índole era a de um judeu melancólico e pro-

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penso à amargura em relação às controvérsias. É preciso entender que, nessa época, provocado por uma oposição perseverante, o Senhor deixou de lado a sua habitual serenidade, e em uma demonstração de poder amal­diçoou uma figueira. Pensam que Ele havia se mostrado indiferente às conseqüências, e alguns entendem que parecia até mesmo buscar tais rea­ções; então, cansado do conflito, teria procurado uma linguagem violenta para precipitar uma crise, e provocar seus inimigos a matá-lo6.

Essas blasfêmias contra o Filho do Homem são tão infundadas quanto injuriosas. Os últimos dias de Jesus foram certamente cheios de intensa emoção, mas para uma mente sincera nenhum traço de paixão é visível em sua conduta. Todos os seus pronunciamentos registrados du­rante aqueles dias estão em um tom elevado, adequados àquele cuja alma estava animada pelos sentimentos mais sublimes. Cada sentença é elo­qüente, toda palavra tem algo a dizer; mas tudo é natural, e apropriado à situação. Mesmo quando começam os duros ataques contra os líderes religiosos de Israel, os lemos surpresos, mas não chocados. Sentimos que o narrador tem o direito de usar tal linguagem, que o que Ele diz é verdade, e que tudo é dito com autoridade e dignidade elevadas, como é próprio do Rei Messiânico. Quando o narrador chega ao fim, respira­mos livremente, cientes de que uma tarefa delicada, embora necessária, foi executada com não menos sabedoria do que fidelidade. Um aborre­cimento profundo e não disfarçado é expresso em cada frase. Seria difí­cil para cada homem comum, sim, mesmo para um homem extraordiná­rio, deixar de nutrir um sentimento isento de alguma mistura desse ódio que não operou a justiça de Deus. Porém mesmo entre as repreensões do ser divino a fraqueza da paixão não encontra lugar: o seu aborrecimento pode ser profundo, mas também é sempre calmo; e desafiamos os incré­dulos a mostrar, em sua fala, uma única característica incoerente com o fato do narrador ser divino. Ainda mais, deixando de fora a divindade de Cristo, e examinando as suas palavras com uma liberdade adquirida pela reverência, não podemos localizar nelas nenhum traço de um homem levado, impetuosamente, por um ataque de ira. Não encontramos, após uma busca muito rigorosa, nenhuma expressão solta, nenhum exagero inflamado, mas, antes, um estilo notável por precisão e exatidão artísti­cas. Os retratos do rabi ostentador, que busca posição e ama os títulos;

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do hipócrita, que faz longas orações e devora a casa das viúvas; do zelote, que se coloca em dificuldades infinitas para fazer prosélitos, apenas para tornar os seus convertidos homens piores em vez de melhores; dos escribas que ensinam que o ouro do Templo é algo mais sagrado e digno do que o próprio Templo, e por essa razão deve-se então jurar por este ouro e não pelo Templo; do grupo dos fariseus, cuja consciência é rigorosa ou branda de acordo com a sua conveniência; dos sepulcros caiados, boni­tos por fora, mas cheios de ossos de homens mortos por dentro; dos homens cuja piedade se manifesta através de matar os profetas e enfeitar os sepulcros dos profetas mortos por seus pais — são retratos morais que não suportarão a inspeção mais minuciosa da crítica. Não são feitos por nenhum homem irritado ou derrotado, sentindo dolorosamente e res­sentindo profundamente a malícia de seus adversários, mas por alguém que alcançou uma vitória tão completa, que pode zombar de seus inimi­gos, e em todos os acontecimentos não corre o risco de perder o autocontrole.

Tanto o alvo do discurso como o seu estilo são uma defesa suficien­te contra a acusação de se ter uma personalidade amarga. O objetivo direto do narrador não era expor os guias cegos de Israel, mas guardar da desilusão as pessoas a quem eles estavam levando à ruína. O público era formado pelos discípulos e pela multidão que o ouvia alegremente. Pro­vavelmente muitos dos guias cegos estivessem presentes; e não faria ne­nhuma diferença a Jesus se eles estivessem ou não, porque o Senhor não tinha duas maneiras de falar a respeito dos homens — uma diante deles, e outra pelas costas. Diz-se que Demóstenes — o grande orador ateniense, e adversário público de Filipe da Macedonia — fracassou completamente na presença desse rei em sua primeira oportunidade como embaixador de sua cidade natal. Mas alguém maior que Demóstenes estava ali, cuja sinceridade e coragem são tão extraordinárias quanto sua sabedoria e eloqüência, e que pode dizer tudo o que pensa dos líderes religiosos do povo aos seus próprios ouvidos. Todavia, neste momento, os destinatá­rios formais da mensagem não eram os líderes do povo, mas o próprio povo; e é digno de observação como o narrador foi cuidadosamente minucioso nas palavras que lhes entregou. Ele lhes disse que não se opu­nha tanto ao ensino de seus guias, mas à vida deles: poderiam seguir seus

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preceitos com relativa impunidade, mas seguir o exemplo daqueles ho­mens seria fatal. Quantos reformadores nas mesmas circunstâncias te­riam juntado a doutrina e a prática em uma denúncia indiscriminada! Tal moderação não é um atributo de um homem enfurecido.

Mas a melhor indicação de todas em relação ao espírito do narrador é a maneira como o seu discurso termina: “O Jerusalém, Jerusalém!” Estranho final para alguém cheio de uma paixão enfurecida! O Jesus, Jesus! Como te elevastes acima dos pensamentos e sentimentos insignifi­cantes dos homens comuns! Quem pode penetrar nas profundezas de teu coração? Que ondas poderosas de justiça, verdade, piedade e pesar rolam em teu peito!

Tendo pronunciado aquele penetrante brado de tristeza, Jesus dei­xou o Templo para, até onde sabemos, nunca mais voltar. Suas últimas palavras para o povo de Jerusalém foram: “Declaro-vos, pois, que, desde agora, já não me vereis, até que venhais a dizer: Bendito o que vem em nome do Senhor!” No caminho da cidade de Betânia, perto do monte das Oliveiras, o rejeitado Salvador fez novamente alusão a seu futuro destino. Os discípulos despreocupados chamaram a sua atenção para a beleza das edificações do Templo, que neste momento poderiam ser vis­tas com clareza. Com um estado de espírito muito solene e triste por admirarem a mera arquitetura, o Senhor lhes respondeu no espírito de um profeta: “Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derribada”7.

Chegando ao monte das Oliveiras, o grupo se assentou para olhar o grande edifício sobre o qual estavam conversando. Que pensamentos e sentimentos diferentes sugeridos pelo mesmo objeto para a mente dos espectadores! Os doze contemplam aquilo que lhes rodeia com um olhar meramente exterior; seu Mestre contempla todas as coisas com um olhar interior, peculiar à profecia. Eles não vêem nada diante si além das pe­dras bonitas; ele vê a profanação no interior, comerciantes gananciosos dentro dos recintos sagrados, religião tão pervertida pela ostentação, a ponto de fazer com que uma pobre viúva coloque as suas duas moedinhas no tesouro, em uma simplicidade pia, uma exceção rara e prazerosa. Os discípulos pensam apenas no presente. Jesus olha além, para um destino que se aproxima, terrível de contemplar. Mas sem dúvida também olha

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para trás, para a longa e variável história pela qual a casa de Deus passou; ela esteve vulnerável, e agora está poluída. Os discípulos estão exultantes, cheios de orgulho ao olharem para essa estrutura nacional, a glória de seu país, e estão felizes como os homens descuidados estão habituados a ser; o coração de Jesus pesa com a tristeza trazida pela sabedoria e pela presciência, e por saber que a aceitação de seu amor os teria salvado, mas que não pode fazer nada naquele momento além de lamentar e procla­mar as terríveis palavras de condenação.

Contudo, mesmo com toda a sua imprudência, os doze não pode­riam esquecer das predições sombrias de seu Mestre. Aquelas estranhas palavras perseguiram suas mentes, e os tornaram curiosos para saber mais. Então foram a Jesus, ao menos alguns deles — Marcos menciona Pedro,Tiago, João e André8 — e fizeram duas perguntas: quando Jerusa­lém seria destruída, e quais seriam os sinais de sua vinda e do fim do mundo. Os dois eventos a que se referiram nas perguntas — o fim de Jerusalém e o fim do mundo — foram considerados como eventos que lhes seriam contemporâneos. Foi um erro natural e de modo algum úni­co. Julgamentos locais e parciais são desse modo costumeiramente con­fundidos com o julgamento universal na imaginação dos homens; e a partir daí quase toda calamidade que inspira espanto, leva às expectativas do dia final. Por essa razão Lutero, com a mente turbada pela sombra escura da tribulação presente, observou: “O mundo não pode durar muito tempo, talvez cem anos no máximo. No fim haverá grandes alterações e comoções, e já há grandes comoções entre os homens. Os homens da lei nunca tiveram tanta ocupação como agora. Há dissensões veementes em nossas famílias, e discórdias na igreja”9. Nos tempos apostólicos, os cristãos esperavam a vinda imediata de Cristo com tanta confiança e fervor, que alguns até negligenciaram seus negócios seculares, exatamen­te como no final do século X as pessoas deixaram que as igrejas caíssem em abandono porque supunham que o fim do mundo estava próximo.

Na realidade, os julgamentos de Jerusalém e do mundo em geral deveriam estar separados por um longo intervalo. Portanto, Jesus tratou as duas coisas distintamente em seu discurso profético, e deu respostas separadas para as duas perguntas que os discípulos haviam agrupado em uma, e que tratava em primeiro lugar do fim do mundo10.

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A resposta que ele deu a esta pergunta foi geral e negativa. Ele não fixa uma data, mas deu um fato como sinal: o fim não virá até que tais e tais coisas tenham acontecido. Em seguida o Senhor especifica seis anteceden­tes do fim em sucessão, sendo o primeiro o aparecimento dos falsos cristos11. Sobre isso Ele assegurou aos seus discípulos que haveria muitos enganan­do a muitos; e mais, que vários messias enganadores apareceriam mesmo antes da destruição de Jerusalém, impondo-se e aproveitando-se do desejo geral por libertação, assim como os médicos charlatões fazem em relação às doenças físicas. Infelizmente, em tais momentos é muito fácil ter êxito em enganar a muitos. Mas entre os seus ludibriados não foi encontrado nenhum daqueles que haviam sido previamente instruídos pelo verdadeiro Cristo, para que considerassem o aparecimento dos falsos cristos mera­mente como um dos sinais de um tempo de iniqüidade. Os enganadores dos outros eram para esses uma defesa contra o próprio engano.

O segundo antecedente seria: “guerras e rumores de guerras”. Na­ção deve se levantar contra nação, com tempos de insurreição e dissolu­ção; declínios e quedas de impérios, e surgimentos de novos reinos sobre as ruínas dos antigos. Este segundo sinal seria acompanhado por um terceiro, em forma de comoções no mundo físico, e que seriam emble­mas daqueles de natureza política. Fomes, terremotos, pestes, etc., ocor­reriam em diversos lugares12.

Contudo, essas coisas, embora terríveis, seriam apenas o princípio de dores; o fim não viria até que esses sinais tivessem se repetido por várias vezes. Ninguém poderia dizer a partir da ocorrência desses fenô­menos que o fim se daria naquele momento; se poderia apenas inferir que ainda não era o f im 13.

A seguir viriam as perseguições, com todos os fenômenos morais e sociais dos tempos de perseguição14. Os cristãos devem sofrer um trata­mento odioso entre as nações por causa do nome que trazem, e como os supostos autores de todos os desastres que acontecem ao povo entre os quais vivem. Chegaria a época em que, se Roma fosse inundada por seus rios, se o Nilo não transbordasse, irrigando assim os campos que estão às suas margens, se a seca, os terremotos, a fome, ou as pragas visitassem a terra, o clamor da multidão imediatamente seria: “Lancemos os cris­tãos aos leões!”

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Juntamente com as perseguições, como o quinto antecedente do fim, viria a situação em que a igreja seria “peneirada”15. Muitos seriam destruídos ou se tornariam traidores; então surgiriam variadas animosi- dades, cismas e heresias, e cada uma seria denominada de acordo com o seu próprio falso profeta. A preponderância desses males na igreja pro­duziria uma grande decadência espiritual. “E, por se multiplicar a ini­qüidade, o amor de muitos se esfriará.”16

O último fato que deveria acontecer antes do fim é a evangelização do mundo17. Após esta, finalmente o fim chegaria. Por esse sinal pode­mos supor que o mundo ainda vai durar um bom tempo; pois, de acordo com a lei da probabilidade histórica, levaria muito tempo para que o evangelho fosse pregado como um testemunho a todos os homens. Cris­tãos fervorosos ou estudiosos entusiastas da profecia que pensam de uma forma diferente devem lembrar que enviar alguns missionários a um país pagão não satisfaz a condição prescrita. O evangelho não tem sido pregado às nações para testemunho, isto é, para formar uma base de juízo moral, como tem sido pregado a todas as pessoas na cristandade. Isso ainda não foi feito em todas as nações, e no ritmo atual de progres­são não é provável que seja realizado nos próximos séculos.

Tendo rapidamente esboçado as linhas gerais dos eventos que de­vem preceder o fim do mundo, Jesus se dirige à pergunta mais especial que estava relacionada à destruição de Jerusalém. Ele poderia então falar sobre este assunto com mais liberdade, depois de ter se preservado con­tra a noção de que a destruição da cidade santa seria o sinal de sua própria e imediata vinda final. O Senhor começou a sua frase dizendo: “Quando, pois” — esta fórmula introdutória tinha a intenção de respon­der, naquele instante, a primeira pergunta dos discípulos. “Quando, pois, virdes que a abominação da desolação, de que falou o profeta Daniel, está no lugar santo (quem lê, que entenda), então, os que estiverem na Judéia, que fujam para os montes.” Entendemos que a abominação da desolação seria o exército romano com suas águias — algo abominável para os judeus e desolador para a terra. Quando as águias aparecessem, todos deveriam fugir para salvar a própria vida; a resistência seria vã, a persistência e a coragem totalmente inúteis. A calamidade seria tão re­pentina que não haveria tempo para salvar nada. Seria como quando

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uma casa pega fogo; as pessoas se alegrariam por escapar com vida18. Seria um terrível tempo de tribulação, sem qualquer paralelo antes ou depois daqueles dias19. Uma desgraça para as pobres mães que tivessem filhos pequenos ou que estivessem grávidas naqueles dias horríveis! Que atrocidades e crueldades os aguardavam! As calamidades que estavam chegando não poupariam ninguém, nem mesmo os cristãos. Eles só en­contrariam segurança fugindo, e teriam motivo de serem gratos por es­caparem vivos. Mas a sua fuga, embora inevitável, seria mais ou menos grave, de acordo com as circunstâncias; e eles deveriam orar por aquilo que pudesse parecer pequenos atos de misericórdia, mesmo por alívios como o de não ter de fugir para as montanhas no inverno, ocasião em que enfrentariam um frio extremo e um total desconforto, ou no sábado, o dia de descanso e paz20.

Depois de dar este breve, porém vivido, panorama dos dias terríveis que se aproximavam, intoleráveis para os homens mortais, se não fossem abreviados “por causa dos escolhidos”, o Senhor Jesus repetiu sua men­sagem de advertência contra o engano, como se temesse que os seus discípulos, distraídos por tais calamidades, pudessem pensar: “Certa­mente agora é o fim”, Ele lhes disse q u e a violência seria seguida pela apostasia e falsidade, uma prova tão grande quanto a própria destruição de Jerusalém. Falsos mestres deveriam surgir. Estes seriam tão verossí­meis que quase poderiam enganar os próprios escolhidos. O Diabo apa­receria como um anjo de luz; no deserto como um monge, nos santuá­rios como um objeto de adoração supersticiosa. No entanto, por mais que os homens possam fingir, o Cristo não estaria ali; nem o seu apare­cimento aconteceria nesse momento, nem em nenhuma hora fixa calcu­lável, mas repentinamente, inesperadamente, como a luz do relâmpago no céu. Quando a corrupção moral atingisse o seu patamar mais eleva­do, então viria o juízo21.

Na parte seguinte do discurso, o fim do mundo parece ser trazido a uma proximidade imediata da destruição da cidade santa22. Se um longo período fosse interposto, a perspectiva da figura profética pareceria erra­da. As montanhas distantes do mundo eterno e por vir, visível além e acima dos montes próximos do tempo no primeiro plano, requerem uma fraca névoa azulada, que ajuda o olho a perceber quão longe estão.

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Este ponto que mencionamos em nosso texto, e que não foi amplamente detalhado na narrativa de Mateus, é apresentado por Lucas, que inter­preta a tribulação Çthlipsis) de modo a incluir a subseqüente dispersão de Israel entre as nações, indicando que ela teria uma longa duração23. A frase que ele emprega para denotar este período é significativa, e sugere a idéia de longa duração. Ele se refere aos “tempos dos gentios” (kairoi ethnõn). A expressão se refere ao tempo em que os gentios deveriam ter a sua oportunidade de desfrutar da graça divina, correspondendo ao tem­po da bondosa visitação desfrutada pelos judeus referida por Jesus em seu lamento sobre Jerusalém24. Não há motivo para supor que Lucas tenha acrescentado essas frases; elas trazem em si o selo de autenticida­de. Mas se presumirmos, como somos autorizados a fazer, que não foi Lucas, o universalista paulino, mas o próprio Senhor Jesus quem falou de um tempo de uma visitação bondosa dos gentios, então segue-se que em seu discurso escatológico, o Senhor deu claros indícios de um longo período durante o qual o seu evangelho deveria ser pregado no mundo. E Ele assim fez em outras ocasiões, como na parábola do administrador infiel, na qual declarou que a vinha deveria ser tomada dos ocupantes atuais, e entregue a outros que produziriam frutos25. Pois seria incrível que Jesus falasse de um tempo dos gentios análogo à visitação bondosa desfrutada pelos judeus, que durasse apenas pouco mais de trinta anos. O kaírós judeu durou milhares de anos: por esta razão, dignificar o perí­odo de uma única geração com o nome de um tempo de visitação bon­dosa não seria mais do que zombar dos pobres gentios.

A parábola da figueira, empregada por Jesus para indicar a clara ligação entre os sinais anteriores e o grande evento que se seguiria, parece a princípio excluir a idéia de uma duração prolongada. Mas analisando uma segunda vez, concluiremos que este não é o caso. O ponto principal da parábola reside na comparação dos sinais dos tempos com os primei­ros brotos da figueira. Essa comparação implica que o juízo final não é o que está às portas. O último dia é a época da colheita; mas, dos primei­ros brotos do início do verão até a colheita, há um longo intervalo. A parábola mais adiante sugere a maneira correta de se entender a declara­ção: “Não passará esta geração sem que todas essas coisas aconteçam”. O Senhor Jesus Cristo não quer dizer que a geração que vivia naquela

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época testemunharia o fim, mas que naquela geração todas as coisas que formam o estágio incipiente do desenvolvimento iriam aparecer. Era o tempo do princípio, dos renovos e brotos, não dos frutos e da colheita. Naquela geração houve o princípio do cristianismo e do mundo novo que ele iria criar, e também o fim do mundo judaico, do qual o símbolo era uma figueira coberta de folhas, mas sem flores ou frutos, como aque­la que Jesus mesmo havia amaldiçoado, através de uma profecia viva sobre o futuro de Israel. Os brotos da maioria dos tópicos relacionados à história da igreja apareceram naquela época: a pregação do evangelho, as tendências anticristãs, as perseguições, heresias, cismas e apostasias. Todas essas coisas, porém, tinham de crescer e atingir o ápice antes que viesse o fim. Nenhum homem poderia dizer quanto tempo o desenvol­vimento levaria, nem mesmo o Senhor Jesus em sua natureza humana16. Trata-se de um assunto confidencial e reservado doTodo-Poderoso, sobre o qual ninguém deveria desejar indagar ou mesmo opinar.

Esta declaração, de que o tempo do fim é conhecido somente por Deus, exclui a idéia de que ele possa ser calculado, ou que alguma data seja expressa nas Escrituras com este propósito. Se tal data pudesse ser descoberta, então o segredo estaria virtualmente revelado. Portanto, con­sideramos os cálculos dos estudiosos da profecia a respeito dos tempos e estações como suposições aleatórias indignas de uma atenção séria. O dia do fim do mundo precisa ser escondido pelos propósitos da provi­dência tanto quanto o dia da morte dos indivíduos. E não temos dúvida de que Deus tem guardado seu segredo, embora alguns imaginem que possam fazer previsão sobre isso a partir de números proféticos como os astrólogos estavam habituados a tentar determinar o curso da vida das pessoas a partir da posição das estrelas.

Embora o discurso profético de Jesus não revelasse nada quanto às épocas, era de suprema importância. O Senhor ensinou efetivamente duas lições; uma especialmente para o benefício dos doze, e a outra para todos os cristãos de todas as épocas. A lição para os doze era que eles poderiam tirar de seus pensamentos todas as esperanças otimistas de uma restauração do reino de Israel. Não deveriam esperar pela recons­trução, mas pela dissolução e dispersão; este era o destino melancólico de Israel.

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A lição geral para todos neste discurso é: “Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o senhor da casa”. O chamado para a vigilância é basea­do em nossa ignorância do tempo do fim, e no fato de que, embora o fim possa estar demorando muito, ele virá repentinamente, como um ladrão à noite. A importância de vigiar e esperar foi ilustrada pelo Senhor Jesus através de duas parábolas, a do bom e do mau servo e a das dez virgens27. Ambas as parábolas retratam a conduta diversa dos servos professos de Deus duran­te o período de espera. Aprendemos que o efeito sobre alguns consiste em torná-los negligentes, mesmo sendo servos oculares e trabalhadores ade­quados, que precisam de supervisão e do estímulo de eventos extraordiná­rios. Outros, novamente, são firmes, constantes, habitualmente fiéis, tra­balhando bem quando o mestre está ausente ou quando estão sob o seu olhar. O tratamento de ambos na volta do mestre corresponde a seu res­pectivo comportamento; uma classe é recompensada, e a outra é punida. Tal é a essência da parábola do servo bom e do servo mau. Lucas oferece um importante apêndice, que retrata a conduta de pessoas que estão investidas de autoridade na casa do senhor que está fisicamente ausente28. Enquanto os servos comuns são em sua maior parte negligentes, os servos investidos de autoridade geralmente agem como tiranos sobre os seus com­panheiros. Isso é exatamente o que os dignitários da igreja fizeram em épocas posteriores; e o fato de Jesus contemplar tal estado de coisas, exi­gindo da natureza do caso o intervalo de séculos para ser cumprido, é uma outra prova de que seu discurso e seu olhar profético cobriam uma vasta extensão de tempo. Uma outra observação é sugerida pela grande recom­pensa prometida para aqueles que não abusarem de sua autoridade. “Em verdade vos digo que o porá sobre todos os seus bens”. A grandeza da recompensa indica uma expectativa de que a fidelidade será rara entre os mordomos da casa. Na verdade, o Cabeça da igreja enxergou a prevalência de um espírito negligente entre todos os seus servos, tanto nos de nível comum quanto nos de nível elevado; pois Ele retrata o Senhor da casa como alguém que está tão satisfeito com a conduta dos fiéis, que se cinge para servi-los enquanto se sentam à mesa29. Será que esta preocupação não foi bem justificada pelos eventos?

A parábola da dez virgens, familiar a todos e repleta de instrução, nos ensina essa lição peculiar, de que vigiar não implica uma ansiedade

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ininterrupta e em um pensamento constante a respeito do futuro, mas uma atenção tranqüila, uma atenção firme ao dever atual. Enquanto o noivo demorava, todas as virgens, as prudentes e as loucas igualmente, cochilaram e dormiram; as prudentes diferenciavam-se de suas irmãs por terem todas as coisas prontas para um chamado repentino. Esta é uma representação sóbria e sensata do dever de esperar por alguém que entende o que é possível; pois, em um certo sentido, o adormecer da mente em referência à eternidade é tão necessário quanto o sono físico é para o corpo. O pensamento constante sobre as grandes realidades do futuro iriam apenas resultar em fraqueza, distração e loucura, ou ainda em desordem, ociosidade e agitação; como emTessalônica, onde a con­duta de muitos que vigiavam em um sentido errôneo, fez com que se tornasse necessário que Paulo lhes desse um conselho saudável para que ficassem quietos, trabalhassem e comessem o pão adquirido através do trabalho de suas próprias mãos30.

O grande discurso profético termina com uma representação sole­ne do juízo final do mundo, quando toda a humanidade deverá ser congregada para ser julgada ou pelo evangelho histórico que lhes foi pregado como um testemunho, ou por seu grande princípio ético, a lei da caridade escrita em seus corações. E então aqueles que amaram e serviram pessoalmente a Cristo, ou a seus representantes — os pobres, os destituídos, os sofredores — serão recebidos no reino dos benditos, en­quanto aqueles que agiram perversamente serão enviados a fazer compa­nhia ao Diabo e aos seus anjos.

1 Mateus 21.23-462 Mateus 22.15-223 Mateus 22.23-334 Mateus 22.41-455 Mateus 236 Veja a obra de Renan, Vie de Jésus, capítulo 19. Keim também pensa que havia algo errado no temperamento de

Cristo (o que, diga-se de passagem, é uma blasfêmia!), embora admitindo que suas “falhas'’ eram enfermidades que surgiam de suas virtudes. Ele especifica dois defeitos. Veemência, como mostrado em suas denúncias contra os fariseus; e Dureza, um r i g o r desumano, mostrado no tratamento para com a sua mãe (Jo 2), a João Batista (M t 11) e à mulher siro-fenícia (M t 15.21). Este autor considera que estas são faltas de uma alma nobre devotada ao dever mas, ao mesmo tempo, atitudes de um temperamento colérico, como é próprio de um verdadeiro judeu de nascença. Veja Geschichte Jesu, 3.649.

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7 Mateus 24.1, 28 Marcos 13.39 Veja a obra Table Talk, de Lutero, edição de Bohn, p. 325.10 Mateus 24.4-14. O discurso escatológico proferido no monte das Oliveiras é reconhecidamente difícil de

interpretar. Keim observa que as perplexidades são igualmente grandes, seja ao lidarmos com isso criticamente ou não, seja ao crer ou negar sua autenticidade (vide Geschichte, 3, 193). Duas perguntas importantes surgem com referência ao discurso: I ) O fim de Jerusalém e o fim do mundo são realmente mantidos separados no discurso, conforme o compreendemos? 2 ) Admitindo que os discípulos e evangelistas tenham confundido os dois, podería­mos crer que Jesus também os confundiu? (Claro que não! Isso seria impossível!) Alguns menos avisados poderiam perguntar: O Senhor não contava com um longo futuro para o seu evangelho? Se o Senhor contava com isso, e contudo nenhum reconhecimento do fato é encontrado no discurso escatológico como o temos, então a inferência seria de que o discurso em alguns aspectos não é relatado de modo exato. Essa exposição é suficiente para expressar a nossa opinião.

11 Mateus 24.512 Versículos 6, 713 Versículo 814 Versículo 915 Mateus 24.1016 Versículo 1217 Versículo 1418 Mateus 24.17, 1819 Versículo 2120 Versículos 19, 20. Keim ÇGeschichte, 3, 199) considera improvável que o Senhor Jesus Cristo falasse assim do

sábado, e pensa que a linguagem evidencia se tratar de um autor judaico. Esta é uma crítica muito minuciosa e muito “alemã”.

21 Versículos 23-2822 Mateus 24.2923 Lucas 21.2424 Lucas 19.44, ton kairon tês espiskopês sou . Para o uso do verbo episkeptomai, no sentido de visitar bondosamente, vide

Lucas 1.78.25 Mateus 21.4126 Marcos 13.32. A opinião de Colani é que Jesus alegou ignorância em resposta direta à pergunta original dos

discípulos, sobre quando aconteceriam aqueles episódios (relacionados à destruição de Jerusalém). Colani pensa que os fatos reais ligados ao discurso escatológico podem ser reduzidos ao seguinte: Os discípulos estariam pergun­tando: Quando ocorrerá a destruição do templo? Jesus (como humano) teria respondido: Eu não sei, ninguém sabe, e acrescentou alguns conselhos simples a respeito da vigilância. Todo o restante do discurso seria uma interpolação, refletindo o credo apocalíptico dos cristãos “judaicos”. Este seria um método excessivamente simplista para se resolver a questão. Vide Jésus Cbrist et les Croyances Messianiques de Son Temps, 2ième ed. p. 203-209.

27 Mateus 24.45-51; 25 .I -I328 Lucas 12.41-4829 Lucas 12.3730 2Tessalonicenses 3.12

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210 Mestre Servindoou, Uma Outra Liçâo de Humildade

Seçao I - A Cerimônia de Lavar os Pés João I3 .I -I I

A,A \xé este ponto, o quarto evangelista falou muito pouco, de fato, sobre a relação especial de Jesus e os doze apóstolos. Agora, ele sem dúvida compensa abundantemente qualquer aparente deficiência em sua narrativa. A terceira parte de seu Evangelho, que se inicia aqui, ocupa-se — com exceção de dois capítulos que se referem à história da morte — inteiramente com a ternura, com o relacionamento do Senhor Jesus com “os seus”, desde a noite anterior à sua morte até a ocasião quando partiu deste mundo deixando-os para trás! O décimo terceiro e os quatro capí­tulos seguintes relacionam cenas e discursos das últimas horas passadas entre o Salvador e seus discípulos, antes de ser traído e entregue nas mãos de seus inimigos. Ele concluiu sua palavra final para o mundo exterior e se retirou do seio de sua própria família; e aqui somos privile­giados por vê-lo entre seus filhos espirituais, e por ouvir as suas palavras de despedida a eles, nas horas que antecediam a sua morte. Cabe a nós entrar no cenáculo com profunda reverência. “Tira os teus sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa.”

A primeira coisa que notamos, ao entrar, é Jesus lavando os pés de seus discípulos. Que espetáculo maravilhoso! E o evangelista, ao narrar o acontecido, teve o cuidado de ressaltar o seu grande impacto pela maneira como o introduz. Ele colocou o belo retrato sob o melhor foco para que fosse visto de modo proveitoso. O prefácio da história pode parecer um pouco confuso para os expositores, e as sentenças envolvidas e o sentido são um tanto obscuros. Muitos pensamentos e sentimentos

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povoam a mente do apóstolo quando ele faz o relato da notoriedade daquela noite memorável; e, por assim dizer, eles lutavam entre si para falar e se expressar. Contudo, não é tão difícil decifrar o significado dessas sentenças iniciais. Na primeira, João chama a atenção para a ter­nura com que Jesus considerava seus discípulos na véspera de sua cruci­ficação, em vista de sua partida da terra rumo ao céu. “Ora, antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai” — como Ele se sentiu em tal momento em relação àqueles que foram seus companheiros durante os anos de seu ministério público, e a quem Ele dentro em breve deixaria? Ele os amou “até ao fim”. Não se envolvendo de forma egoísta com o seu próprio sofrimento ou com a perspectiva de suas subseqüentes alegrias, Ele ain­da encontrou um lugar em seu coração para os seus seguidores. Seu amor lhes era estendido com um extraordinário fervor, e toda a sua preo­cupação se dava pela percepção e pelo exemplo, pelas palavras de confor­to, exortações e instruções, para prepará-los para os futuros deveres e provas, como demonstra amplamente a narrativa que aqui se inicia.

O segundo versículo do prefácio alude secundariamente ao fato que serviu como uma indicação da constância de Jesus: “Tendo já o diabo posto no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que traísse a Jesus”. João diz que Jesus amou a todos os seus discípulos até o fim, embora nem todos eles o amassem. Um deles, neste exato momento, considerou seu propósito diabólico de trair ao seu Senhor. E mesmo assim, o Senhor ainda o amava, dignando-se a lavar-lhe os pés; esforçando-se para, se possível, superar seu mal com o bem.

O objetivo do evangelista na última sentença do seu prefácio é mos­trar, através da comparação, quão magnífica condescendência havia no Salvador a ponto de lavar os pés de cada um dos discípulos. “Jesus, sabendo que” — essas coisas eram verdadeiras para Ele — “o Pai tinha depositado nas suas mãos todas as coisas” — poder soberano sobre toda a carne, “e que havia saído de Deus” — um ser divino por natureza, e designado às honras divinas, “e que ia para Deus”, para obter o regozijo de tais honras — como foi aqui relatado. Ele, o Ser augusto que possuía tal dignidade intrínseca, tal nível de consciência, tais expectativas — “le­vantou-se da ceia, tirou as vestes e, tomando uma toalha, cingiu-se. De­

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pois, pôs água numa bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugar-lhos com a toalha com que estava cingido”.

A ocasião em que tudo isso ocorreu parece ter sido o início da refeição noturna. As palavras do evangelista, que são interpretadas na versão em inglês como “ao final da ceia”, podem ser traduzidas como tendo começado a ceia, ou melhor, tendo chegado a hora da ceia1; e pela seqüência da narrativa é evidente que é nesse sentido que devem ser com­preendidas aqui. A ceia ainda estava transcorrendo quando Jesus intro­duziu o assunto do traidor, o que fez não apenas depois de ter lavado os pés de seus discípulos, mas também depois de ter retomado seu lugar à mesa, e dado uma explicação do que havia acabado de fazer2.

Tal explicação será particularmente considerada depois; mas no mo­mento demonstra que a ocasião da lavagem dos pés ocorreu por causa de algum mau comportamento da parte dos discípulos. Julgamos que Jesus teve de dignar-se porque seus discípulos não o fariam. Essa impressão é confirmada por uma declaração no Evangelho de Lucas de que nesta mesma noite havia surgido uma discussão em meio aos doze, sobre qual deles deveria ser considerado o maior. Não sabemos por que motivo surgiu tal discussão, mas é possível que a antiga desavença sobre a posi­ção tenha sido reavivada pelas palavras de Jesus quando estavam prestes a se sentar para participar da refeição: “Desejei muito comer convosco esta Páscoa, antes que padeça, porque vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no Reino de Deus”3. A alusão ao Reino foi o suficiente para atear fogo à imaginação dos discípulos e despertar anti­gos sonhos relativos a tronos e seus próprios feudos; neste ponto, a pas­sagem a desavenças e inveja era uma transição natural e fácil. E assim, podemos imaginar como, mesmo antes da ceia ter começado, a conversa dos irmãos havia se tornado turbulenta e calorosa. A questão em disputa pode ter sido a ordem em que deveriam tomar lugar à mesa, ou quem deveria servir na ocasião e lavar os pés dos companheiros. Qualquer uma dessas suposições pode ter influenciado o fato relatado por Lucas; pois não são necessários muitos motivos para fazer com que as crianças discu­tam.

O recurso empregado por Jesus para desviar a mente de seus discí­pulos dos temas não edificantes da conversação e para expulsar as pai­

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xões ambiciosas de dentro deles foi tremendamente eficaz. As cenas pre­liminares da lavagem dos pés devem ter realmente mudado o curso dos sentimentos. Os espectadores devem ter olhado e se admirado de ver como o Mestre do banquete se levantou do seu lugar, tirou suas vestes e cingiu-se com uma toalha, deitou água em uma bacia, fazendo tudo com o máximo domínio próprio, compostura e deliberação!

Por qual deles Jesus começou não temos informação; mas sabemos, como poderíamos imaginar sem que nos dissessem, quem foi o primeiro a dizer o que pensava sobre aquele procedimento singular. Quando che­gou a vez de Pedro, ele havia se recuperado da estupefação, sob a influ­ência de quem primeiro havia se submetido pacificamente à vontade de seu Senhor, para ser capaz de refletir sobre a inconveniência de tal inver­são da relação correta entre o Mestre e seus servos. E assim, quando Jesus se aproximou dele, esse discípulo sincero perguntou espantado: “Senhor, tu lavas-me os pés a mim?” Seu espírito se encheu de rebeldia contra tal proposta, como uma injúria à dignidade de seu amado Se­nhor, e como um ultraje a seu próprio senso de reverência. Este impulso de aversão instintiva não foi, de modo algum, desonroso para- Pedro, e evidentemente não foi considerado com desaprovação por seu Mestre. A resposta de Jesus à sua objeção é de tom claramente respeitoso: “O que eu faço”, Ele disse, “não o sabes tu, agora, mas tu o saberás depois”, virtualmente admitindo que o procedimento em questão precisava de uma explicação, e que a oposição de Pedro era, em primeiro lugar, per­feitamente natural. “Eu reconheço”, Ele quis dizer, “que meu ato pre­sente é uma ofensa aos sentimentos de reverência que vocês honestamen­te dedicam à minha pessoa. Todavia, que seja assim. Faço isso por razões que vocês não compreendem agora, mas que compreenderão em breve”.

Tendo Pedro ficado satisfeito com esta resposta apologética, sua conduta teria sido inteiramente livre de censura. Mas ele não estava sa­tisfeito, e persistiu na oposição depois de Jesus ter claramente anunciado sua vontade, e exclamou veemente e obstinadamente: “Nunca me lavarás os pés”. O tom aqui muda por completo. A primeira palavra de Pedro foi a expressão da sincera reverência; a segunda foi simplesmente a lin­guagem de uma irreverência não mitigada e de evidente desobediência. Ele rudemente contradiz seu Mestre e, ao mesmo tempo, podemos acres­

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centar, contradiz a si próprio. Seu comportamento nesta ocasião apre­senta uma estranha mistura de opostos morais: degradação e desejo de que fosse feita a sua vontade; humildade e orgulho; respeito e desrespei­to em relação a Jesus, com quem ele fala tanto como alguém cujas correi­as das sandálias não é digno de desatar, quanto logo a seguir como al­guém a quem ele pode ditar ordens. Que homem estranho! Mas, de fato, todos nós somos estranhos!

Pelo fato de Pedro ter mudado seu tom, Jesus achou necessário alte­rar seu tom também, da brandura apologética da primeira resposta para a autoridade severa. “Se eu te não lavar”, Ele disse gravemente, “não tens parte comigo”; significando: “Assumiste uma posição muito séria, Si- mão Pedro, o assunto em questão é simples: Você será ou não admitido no meu Reino — para ser um verdadeiro discípulo e para ter a recompen­sa de um verdadeiro discípulo?”

A partir de uma visão superficial, é difícil notar como esta poderia ser a condição da pergunta. Pode ser tentador pensar que Jesus foi indul­gente demais, com o propósito de intimidar um discípulo rebelde para que este viesse a fazer a sua vontade. Se rejeitamos este método de inter­pretação como incompatível com o caráter do locutor e a seriedade da ocasião, somos novamente levados a questionar: O que a palavra “lavar” significa nesta declaração? Evidentemente, significa mais do que imagi­namos a princípio, mais do que o mero ato literal de lavar os pés, e deve ser considerada como um símbolo da purificação da alma em relação ao pecado, ou ainda mais amplamente, e em nossa opinião mais correta­mente, representa todos os ensinos de Cristo e a obra que seria comprometida pela consistente execução do principio no qual a oposição de Pedro, de ter seus pés lavados por Jesus, era baseada. Qualquer que fosse a suposição, a declaração de Jesus permaneceria verdadeira; no caso anterior obviamente; no posterior nem tão obviamente, mas não menos real, como continuaremos a mostrar.

Observe, então, o que estava envolvido na atitude assumida por Pedro. Ele virtualmente tomou esta posição em virtude de duas posições: ele não admitiria nada que parecesse inconsistente com a dignidade pessoal de seu Senhor, e adotaria como regra de conduta, de preferência, seu próprio julgamento em vez da vontade de Cristo; uma posição estava representada na pergunta: “Tu lavas-me os pés a mim?” E a outra na

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decisão: "Nunca me lavarás os pés”. Em outras palavras, a posição to­mada por esse discípulo comprometeu toda a essência do cristianismo, o primeiro princípio afastava toda a condição e experiência de Cristo em relação à humilhação; e o segundo certamente enfraquecia o alicerce de seu senhorio.

Um momento de reflexão pode mostrar que não se trata de um exagero da nossa parte. Observe primeiro a objeção feita ao ato de lavar os pés considerando a reverência. Se Cristo não pudesse lavar os pés de seus discípulos por tal ato ser inferior à sua dignidade, então com igual razão uma objeção pode ser feita contra qualquer ato que envolva a auto- humilhação. Aquele que disse: Nunca me lavarás os pés, porque tal ato não é digno de ti, deveria ter dito: Tu não deverias lavar a minha alma, ou fazer qualquer coisa a favor deste benefício, porque isso envolve experiên­cias humilhantes. Por que, então, criar uma dificuldade em relação a uma questão superficial de um detalhe? V á direto ao ponto da questão, de uma só vez, e pergunte: “O Eterno Filho de Deus deveria se tornar carne, e viver entre nós? Ele que estava na forma de Deus deveria tirar seu manto sagrado, e cingir-se com a toalha da humanidade, para realizar trabalhos humilhantes a favor de suas próprias criaturas? Deveria o Santíssimo se tornar amaldiçoado por sofrer a crucificação? Deveria o Divino degradar a si próprio tornando-se próximo dos depravados fi­lhos de Adão? Deveria o Justo derramar o seu sangue — a sua vida — em uma bacia, tornando-se uma fonte onde os injustos podem ser purifica­dos da culpa e da iniqüidade?” Em resumo, a encarnação, a expiação e toda a experiência terrena da tentação de Cristo, as dificuldades, as injú­rias e as dores, não teriam efeito na vida do discípulo que rejeitasse ter seus pés lavados por Jesus.

O senhorio de Cristo também está bastante claro para que um dis­cípulo pudesse lhe dar ordens, dizendo: “Nunca me lavarás os pés”. Se Pedro quis se referir a algo mais por meio dessas palavras além de de­monstrar um capricho e um forte temperamento, poderia estar dizendo o seguinte: ele não se submeteria à operação proposta, porque seus sen­timentos morais e seu julgamento apontavam-na como sendo errada. Ele tirou suas próprias conclusões e idéias da suprema regra de conduta. Agora, em primeiro lugar nesta posição, o princípio da obediência foi com­

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prometido, o que exige que a vontade do Senhor — uma vez conhecida, quer entendamos quer não a sua razão, e percebamos ou não a sua bene­volência— seja considerada suprema. E então, existem outras coisas mui­to mais importantes do que a cerimônia de lavar os pés, às quais uma objeção pode ser feita pela razão ou pela consciência com igual plausibilidade. Por exemplo, Cristo nos diz que aqueles que desejassem ser seus discípulos, e entrar no seu Reino, deveriam estar dispostos a compartilhar as posses terrenas, mesmo com os mais próximos e queri­dos amigos. Para muitos homens isto pode parecer irracional; e de acor­do com os princípios de Pedro, deveriam dizer: “Eu jamais farei tal coisa”. Ou novamente, Cristo diz que devemos nascer de novo e comer a sua carne e beber o seu sangue. Para mim, essas doutrinas podem parecer incompreensíveis e até absurdas; e assim sendo, de acordo com o princí­pio de Pedro, devo dar minhas costas ao Grande Mestre e dizer: “Não permitirei que alguém que dá este tipo de ordens seja o meu Mestre”. Mais uma vez Cristo nos diz que devemos colocar o Reino de Deus em primeiro lugar em nossos pensamentos, e eliminar dos nossos corações a preocupação com o amanhã. Para mim, isso pode parecer, em meu esta­do presente, simplesmente impossível; e, por esta razão, de acordo com o princípio de Pedro, devo considerar esta exigência moral como sendo utópica embora bela, sem sequer tentar sujeitar-me seriamente a ela.

Agora que sabemos para onde a recusa de Pedro tende a se inclinar, podemos ver que Jesus expressou a simples verdade quando disse: “Se eu te não lavar, não tens parte comigo”. Observe tal recusa como uma obje­ção à humilhação do próprio Cristo. Se Cristo não pode se humilhar, então, em primeiro lugar, Ele não pode ter parte conosco. O Filho de Deus está proibido, em consideração à sua dignidade, de se tornar algo parecido com seus irmãos, ou mesmo de reconhecê-los como seus irmãos.

A grande lei paternal, pela qual o Santificador é identificado com aqueles que devem ser santificados, é anulada, e todas as suas conseqüên­cias são invalidadas. E como se um grande abismo intransponível sepa­rasse o ser divino de suas criaturas. Ele poderia ficar próximo à costa e avidamente contemplar seu estado de desolação e abandono; mas Ele não deveria, e não ousaria — sua majestade proibiria — aproximar-se deles e estender a mão para ajudá-los.

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Mas se o Filho de Deus não pudesse ter parte conosco, então, em segundo lugar, não poderíamos ter parte com Ele. Não poderíamos com­partilhar sua comunhão com o Pai, se Ele não tivesse vindo falar dEle. Não poderíamos receber seus atos de benevolência fraternal. Ele não poderia nos livrar da maldição da lei ou do medo da morte. Ele não poderia nos socorrer quando fôssemos tentados. Ele não poderia lavar os nossos pés. E, sendo assim, não poderia purificar as nossas almas, o que seria uma questão muito mais séria. Se não houvesse uma fonte aberta para o pecado na natureza humana do Emanuel, os pecadores permaneceriam impuros. Pois se Deus se mantivesse à distância, não seria possível que a alma humana fosse purificada. Um Deus cuja majes­tade poderosa o mantivesse afastado dos pecadores não poderia perdoá- los efetivamente, e menos ainda santificá-los. O amor, por si só, é uma virtude santificadora. E será que existiria lugar para o amor em um Ser que não pudesse se humilhar a ponto de tornar-se um servo?

Veja agora a recusa de Pedro como uma resistência à vontade de Cristo. De acordo com este ponto de vista também é justificada a frase: “Não tens parte comigo”. Aqui a salvação foi excluída; porque se Jesus não fosse o Senhor, também não seria o nosso Salvador4. Aqui seria excluída a comunhão; porque Jesus não tem comunhão com aqueles que querem fazer apenas aquilo que pensam ou aquilo que lhes agrada. Sua própria atitude em relação ao Pai era "não se faça a minha vontade, mas a tua”; e Jesus, por sua vez, exige que os seus discípulos também tenham, em relação a Ele, a mesma atitude que Ele demonstrou em relação ao Pai. Jesus será o Autor da salvação eterna somente para aqueles que lhe obede­cerem. Ele nem sempre nos terá como servos, obedecendo cegamente a um Senhor cuja vontade não compreendemos. Seu objetivo é nos desen­volver ao máximo à posição de amigos5, fazendo a sua vontade de modo inteligente e com liberdade — não concordando de maneira mecânica com mandamentos exteriores, mas como sendo uma lei para nós mes­mos. Mas somente podemos atingir essa elevada posição começando a obedecer-lhe como um servo. Devemos permitir que nos seja feito aqui­lo que agora não conhecemos nem compreendemos, para que possamos vir a conhecer, daqui por diante, a filosofia do nosso dever para com o nosso Senhor, e o tratamento de nosso Senhor para conosco. E a perfei­

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ção da obediência reside em fazer aquilo que a reverência pouco esclarecida considera peculiarmente difícil, isto é, permitir que o Senhor troque de lugar conosco, e se lhe parecer bem, que se humilhe assumindo a forma de servo.

Portanto foi algo sério dizer: “Nunca me lavarás os pés”. Mas Pedro não estava ciente da seriedade de tal declaração. Ele não sabia o que havia dito, ou o que havia feito. Havia precipitadamente adotado uma posição cuja base e conseqüências não havia considerado. E seu coração estava certo, embora sua atitude fosse errada. E assim, a severa declara­ção de Jesus logo o trouxe de volta à razão, ou a pensar o contrário, na direção oposta. A idéia de ser separado da compaixão e da proteção de seu querido Mestre, em virtude de sua desobediência, o levou a temer o oposto extremo da submissão exagerada; e é como se Pedro a seguir tivesse dito: “Se minha comunhão contigo depende do ato de meus pés serem lavados, então, Senhor, lave meu corpo todo — as mãos, a cabeça, os pés e tudo mais”. Que impressionante! Pedro falou como uma crian­ça, em cujo coração há muita tolice, mas também muita afeição, e que pode ser sempre dirigida pelos laços de amor! Existe ainda uma triste falta de equilíbrio no caráter desse discípulo: ele se movimenta como um pêndulo, de um extremo a outro; e será necessário algum tempo até que se estabeleça um equilíbrio harmônico de todas as partes do seu ser — intelecto, vontade, coração e consciência. Mas a raiz do problema está nele: em seu âmago, ele é honrado; e depois de findos os seus erros, ele logo se tornará um homem sábio. Ele se tornará puro, e não precisará mais ter os seus pés lavados. O próprio Senhor Jesus o admitiu em rela­ção a ele e a todos os seus irmãos discípulos — exceto um, que é impuro por inteiro.

Seção II - A ExplicaçãoJoão 13.12-20

Quando a resistência de Pedro foi superada, a cerimônia da lavagem dos pés prosseguiu sem interrupção. Quando o processo chegou ao final, Jesus colocou novamente sua veste superior, retomou seu assento à mesa, e explicou brevemente a seus discípulos o significado do ato realizado. “Entendeis”, inquiriu Ele, “o que vos tenho feito?” E então, respondendo

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a sua própria pergunta, continuou dizendo: “Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, porque eu o sou. Ora, se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também”.

Foi uma outra lição de humildade que Jesus estava dando aos “seus”— uma lição muito parecida com as anteriores registradas nos Evange­lhos sinópticos. O Cristo de João ensina a mesma doutrina do Cristo dos três primeiros evangelistas. Os doze, conforme descrito no quarto Evangelho, são exatamente como podemos verificar em Mateus, Marcos e Lucas: avidamente necessitados de aprender a mansidão e a benevolên­cia fraternal; e aqui Jesus lhes ensina essas virtudes do mesmo modo como em todas as outras passagens — pelo preceito e pelo exemplo, por atos simbólicos, e palavras adicionais de interpretação. Certa vez Ele deu o exemplo de uma criancinha para envergonhá-los quanto às paixões da ambição; aqui Ele repreende o orgulho, tornando-se o servo da famí­lia. Em uma outra ocasião, Ele silenciou uma discussão entre os discípu­los advertindo-os através de seu próprio exemplo de humilhação, ao vir do céu para ser um ministro das necessidades dos homens na vida e na morte; aqui Ele conclui com o mesmo final, expressando o espírito e o objetivo de todo o seu ministério terreno, em um ato representativo, típico de condescendência.

Esta lição, como no caso de todas as demais, foi ensinada por Jesus com a autoridade de quem pode ditar a lei. Quando estava desempe­nhando o papel de servo, Ele estava afirmando a sua soberania. Ao con­cluir a reunião, Ele lembrou os seus discípulos dos títulos que costuma­vam atribuir-lhe, e de um modo marcante e enfático, Ele os aceita como de direito. Jesus lhes diz distintamente que é de fato o Mestre de cada um deles, cuja doutrina devem aprender, e seu Senhor, cuja vontade têm o dever de obedecer. Sua humildade, portanto, não deverá estar relacio­nada à ignorância sobre quem e o que Ele é. Jesus sabe muito bem quem é, de onde veio, e para onde vai; sua humildade é a de um Rei, sim, de um ser divino. O padrão de humildade e mansidão é simultaneamente o que determina a si próprio como padrão para os seus seguidores, e exige que eles fixem a sua atenção em seu comportamento, e que se esforcem para imitá-lo.

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Ao fazer esta exigência Jesus é completamente sincero. Ele não foi menos sincero ao requerer que seus discípulos lavassem os pés uns dos outros, enfatizando desse modo que Ele próprio deveria lavar os pés de todos eles. Ao dizer a Pedro em palavras expressas: “Se eu te não lavar, não tens parte comigo”, Ele está dizendo a todos, embora sem palavras: “Se não lavarem os pés uns dos outros, caso se recusem a servir uns aos outros em amor, também não terão parte comigo”. Esta é uma declara­ção severa; porque se é difícil acreditar na humilhação de Cristo, é ainda mais difícil humilharmo-nos a nós mesmos. Conseqüentemente, a des­peito da freqüência e da urgência com que o Salvador declara que deve­mos ter habitando em nós o mesmo espírito que Ele manifestou em sua humilhação por nós — dando origem em nossa vida a uma conduta análo­ga à sua — até mesmo os discípulos sinceros estão muitas vezes, embora provavelmente de uma forma parcialmente inconsciente, inventando des­culpas por considerar o exemplo do seu Senhor como totalmente inimitável, e como conseqüência não seguem o seu exemplo da maneira que Ele espera. Mesmo o argumento aparentemente sem resposta em­pregado por Jesus para reforçar a imitação, não escapa da crítica secreta. “Na verdade, na verdade vos digo”, disse Ele, “que não é o servo maior do que o seu senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou”. Nós dizemos: “Pode ser mais benéfico para o servo humilhar a si pró­prio do que para o Mestre, mas em alguns aspectos isso também pode ser mais difícil. O Mestre pode se dispor a condescender: sua ação não será mal interpretada, mas será considerada pelo que de fato é. Porém a opinião geral é que o servo não pode se dispor a humilhar-se: ele deve ser reconhecido, e aparentar a melhor condição possível para se tornar im­portante”.

O Grande Mestre sabia muito bem como os homens seriam lentos para aprender a lição que Ele havia acabado de ensinar aos seus discípu­los. Assim sendo, Ele somou à sua explicação da cerimônia da lavagem dos pés a seguinte reflexão: “Se sabeis essas coisas, bem-aventurados sois se as fizerdes”, sugerindo a raridade e a dificuldade de tal elevada moralidade como Ele estava enfatizando, e declarando a bem-aventurança dos poucos que conseguiram alcançá-la. E certamente a reflexão é justa! A moralidade aqui empregada não é de fato rara? As virtudes não são

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incentivadas pelos mais elevados e difíceis atos de dignidade e caridade? Quem sonha com o fato de intitulá-las como fáceis? Como são contrá­rias às tendências naturais do coração humano! Como estão distantes do espírito de sociedade! Será que esta é a maneira de os homens se conten­tarem com os lugares mais humildes e procurarem a sua felicidade no serviço ao próximo? Será que o espírito que está em nós não é dado à inveja, não luta ambiciosamente por posições de influência e considera uma grande felicidade ser servido e estar isento do enfado das penosas tarefas servis? O mundo em si não luta por uma virtude semelhante à de Cristo; ao contrário, exagera as suas dificuldades, e a considera como utópica e impraticável — meramente um belo, porém inatingível ideal.

Para o discípulo sincero de Jesus, nenhuma prova é necessária para convencê-lo da dificuldade da tarefa que lhe foi designada pelo seu Se­nhor. Ele sabe por uma amarga experiência como a conduta fica atrás do conhecimento, e como é difícil traduzir a admiração da bondade sobre­natural em sua imitação. Sua mente está familiarizada com a doutrina e com a vida do Salvador; ele leu e releu a história do evangelho, terna e vagarosamente, observando os menores detalhes; seu coração ardeu quan­do seguiu os passos do Bem-Aventurado em sua caminhada na terra, sempre com a intenção de fazer o bem: mais doces para seus ouvidos do que o melhor poema lírico são as histórias da mulher à beira do poço, do pecador na casa de Simão e de Zaqueu, o publicano; os acontecimentos tocantes da criancinha considerada como um padrão de humildade, e do Mestre lavando os pés dos discípulos dados à discussão, e das extraordi­nárias parábolas da ovelha perdida, do filho pródigo e do bom samaritano. Mas quando ele tem que parar de ler, fechar o seu Novo Testamento e seguir rumo ao mundo rude e infiel, e ser um homem c r is tã o , fazendo as coisas que conhece tão bem, e quando considera a si mesmo como aben­çoado pelo conhecimento, que declínio! E como deixar o Éden e cair em um estado de simples pecado e miséria. E quanto mais ele viver, e mais se misturar com as relações da vida e compromissos, mais parecerá degene­rar-se em relação ao padrão do evangelho. Até este ponto ele está quase envergonhado de pensar ou falar das maravilhas da santidade exibidas na Palavra de Deus, e sente-se tentado a adotar um tom mais baixo e mais mundano, por consideração à sinceridade, e com receio de se tornar um

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mero hipócrita sentimental como Judas, que beijou seu Mestre no exato momento em que o estava traindo. Em proporção à dificuldade e à rari­dade da virtude determinada está a felicidade daqueles que foram habi­litados a praticá-la. Sua bênção é triplicada. Primeiro, eles têm a alegria unida ao conhecimento de uma tarefa árdua. Empreendimentos fáceis trazem problemas pequenos, mas também trazem poucos prazeres; os deleites arrebatadores estão reservados para aqueles que se esforçam e alcançam aquilo que é considerado impossível. E qual arrebatamento pode ser mais puro, mais santo, e mais intenso do que aqueles do ho­mem que lentamente teve êxito em tornar a mente do humilde e do modesto a sua própria; quem, após uma longa escalada, alcança o topo e se submete ao auto-esquecimento e ao amor auto-humilhante? Aqueles que praticam as coisas aqui ordenadas futuramente ganham para si a aprovação de seu Senhor. Um mestre só fica satisfeito quando o seu aluno compreende a sua lição, mas um senhor só fica satisfeito quando os seus servos atendem às suas ordens. Cristo, sendo tanto Senhor quan­to Mestre, exige que todos nós devamos não apenas saber, mas agir, E em proporção à autoridade de exigência está a satisfação com a qual o Se­nhor dos cristãos considera todos os esforços para corresponderem à sua vontade e para seguirem o seu exemplo. E para todos aqueles que fazem tais esforços é uma grande felicidade estar seguros da aprovação daquEle a quem servem. O pensamento: “Sou guiado na minha ação presente pelo espírito de Jesus, e Ele aprova o que eu faço”, mantém a mente em paz, mesmo quando alguém não tem a alegria de receber a aprovação de seus companheiros; o que não se trata de um comentário inoportuno aqui, porque sempre agradaremos menos aos homens, quan­do agradarmos mais ao Senhor. Qualquer um agradará prontamente a muitos homens pelo egoísmo prudente, em vez de fazê-lo por uma in­calculável generosidade e devoção àquilo que é correto. Os homens lou­vam aqueles que fazem o bem a si mesmos, e fecham os olhos para muitos desvios consideráveis da linha da moralidade do cristianismo puro, na busca de seus próprios interesses, para que sejam bem-sucedi­dos. Há até mesmo pessoas religiosas que freqüentemente nos envergo­nham e entristecem com conselhos que contêm muito mais da sabedoria mundana do que da simplicidade e sinceridade cristãs. Mas quando Cristo

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aprova algo, podemos nos esforçar e agir sem a simpatia e a aprovação dos homens. A aprovação dos homens é no máximo um conforto; a de Cristo é uma questão de vida ou morte.

O terceiro elemento na felicidade do homem que não é meramente um ouvinte esquecido, mas um cumpridor da lei perfeita de Cristo, é que ele escapa da culpa do conhecimento imperfeito. Na religião, é co­mum considerar o fato de pecar contra a luz como algo mais abominável do que pecar por ignorância. “Aquele, pois, que sabe fazer o bem e o não faz comete pecado”. E, é claro, quanto mais clara a luz, maior a respon­sabilidade. Agora, em nenhum departamento da verdade cristã o conhe­cimento está mais claro e evidente do que no campo da ética. Existem algumas doutrinas que a igreja, como um todo, mal pode dizer que co­nhece, por serem aparentemente de difícil compreensão, ou muito deba­tidas. Mas o ensino ético de Jesus é simples e copioso em todos os seus principais aspectos; é universalmente compreendido, e universalmente admirado. Protestantes e romanistas, trinitários, socinianos e deístas es­tão todos unidos aqui. Então, felizes são aqueles, de todas as seitas e denominações, que fazem as coisas que todos nós conhecemos, concor­damos e admiramos; porque uma pesada maldição paira sobre aqueles que não as fazem. A maldição não é de fato expressa, mas está implícita nas palavras de Cristo. O Senhor comum a todos os crentes se dirige a toda a cristandade aqui, dizendo: “Observe a luz do sol como um exem­plo perfeito; vocês se tornaram conhecedores de um ideal elevado e bon­doso da vida, com o qual os moralistas pagãos nunca sonharam. O que vocês estão fazendo com a sua luz? Será que vocês estão apenas obser­vando-a, e escrevendo livros a seu respeito, jactando-se dela, falando dela, permitindo, simultaneamente, que os homens fora do seio da igreja os superem em virtude humanitária e filantrópica? Se este é todo o uso que estão fazendo de seu conhecimento, haverá mais tolerância para os pa­gãos do que para vocês no dia do juízo”.

Tendo feito a reflexão que consideramos, Jesus continuou com uma palavra de apologia pelo tom de dúvida com o qual foi articulado, e que foi, sem dúvida, percebido pelos discípulos. “Não falo”, Ele disse, “de todos vós; eu bem sei os que tenho escolhido; mas para que se cumpra a Escritura. O que come o pão comigo levantou contra mim o seu calca­

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O Mestre Servindo 387

nhar”. A observação pode ser assim parafraseada: “Ao fazer uma alusão à possibilidade do conhecimento do que é correto, sem o acompanha­mento da ação correspondente, eu não tenho sido indulgente em insinua­ções desnecessárias. Eu, de fato, não penso que vocês seriam capazes de negligenciar, habitual e deliberadamente, um dever conhecido. Mas há um entre vocês que é capaz de tal conduta. Eu escolhi os doze, e conhe­ço o caráter de cada um; e, como eu disse há algum tempo, após ter feito uma pergunta que feriu os seus sentimentos, que um de vocês é um diabo6; então agora, depois de fazer uma reflexão de dúvida, eu digo que há um entre vós cujo caráter ilustra negativamente tal significado; al­guém que sabe o que é correto, mas não o fará; que coloca os sentimen­tos no lugar da ação e a admiração no lugar da imitação; alguém que tendo comido à mesa comigo como um amigo íntimo, retribuirá a mi­nha bondade, não com obediência amorosa, mas levantando o seu calca­nhar contra mim”.

Jesus podia pacientemente tolerar a fraqueza dos discípulos since­ros, mas o caráter de Judas — no qual o modo de pensar correto e os bons sentimentos são combinados com a falsidade de coração e a lassidão prática, no qual a promessa é colocada no lugar do desempenho e a expressão da palavra é substituída pela execução da ação apropriada — a sua alma repugnava totalmente.

Quem pode duvidar de que não foi em vão que os discípulos since­ros estiveram, durante tanto tempo, com aquEle que era tão preciso em seu ideal, e que realmente lutaram nos anos seguintes para fazer a vonta­de de seu Mestre, e servir uns aos outros com amor?

1 Alford, in loco, cita exemplos de uso similar de genomenos, Mateus 26.6; Joio 21.4; Marcos 6.2. Hofmann (.Schriftbeweis, 3.207, 208) interpreta a frase como na Versão Autorizada, e reconcilia esse ponto de vista com a narrativa relativa a Judas supondo que os versículos 26 e 27 relatam uma transação distinta proveniente da Santa Ceia e subseqüente a ela. Na versão revisada em inglês consta a expressão “durante a ceia”.

2 João 13.213 Lucas 22.15,16. Na versão revisada em inglês consta a expressão, “Eu não comerei”, em vez de “Não a

comerei mais”, omitindo do texto o termo grego ouketi. Westcott e Hort também omitem este termo; Tischendorfo m antém .

4 O apóstolo Pedro compreendeu isso muito bem. Por quatro vezes em sua segunda epístola ele associa os termos Senhor e Salvador ao nome de Cristo ( I .I I; 2.20; 3.2, 18).

3 João 15.15.

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6 João 6.66-70. As palavras de Jesus na ocasião presente se tornam mais claras quando vistas sob a luz da ocorrência anterior, que compara as duas passagens juntas. Estamos satisfeitos com o fato de as palavras “Não falo de todos vós” significarem: “Eu não penso que todos vocês pequem por saber e não agir”, em vez de: “Vocês não devem compartilhar a felicidade daqueles que sabem e agem”.

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22Em Memória

ou A Quarta Liçao sobre a Doutrina da Cruz

Mateus 26.26-29; Marcos 14.22-25; Lucas 22 .17 -20 (I Coríntios 11 .23-26)

AX Ceia do Senhor é um memorial sagrado à memória de Jesus Cris­to. “Fazei isso em memória de m im ” Em Betânia, Jesus havia falado como se desejasse que M aria fosse lembrada na pregação de seu evange­lho; no cenáculo, Ele expressou seu desejo de ser lembrado. Os atos de amor de M aria seriam celebrados na repetição de sua história; seu pró­prio ato de amor seria comemorado por uma ação simbólica, a ser repe­tida freqüentemente através dos tempos até o fim do mundo.

O ritual da Santa Ceia, além de comemorativo, é igualmente útil para interpretar a morte do Senhor. Ele coloca o solene acontecimento sob um foco diferente. A instituição desse banquete simbólico foi, de fato, um importante ato de Jesus durante o seu ministério pessoal relacio­nado à doutrina da expiação através do seu próprio sacrifício. Portanto, mais claramente do que em qualquer outro ato desempenhado ou pala­vra proferida pelo Senhor, os doze devem ter aprendido a conceber a morte de seu Mestre, como tendo um caráter redentor. E assim, Jesus estava, em outras palavras, dizendo aos seus discípulos: A minha morte, que está prestes a acontecer, não deve ser considerada como uma mera calamidade ou um desastre, algo contrário ao propósito divino ou à minha expectativa; não como um golpe fatal infligido por homens incré­dulos a mim, a vós e à causa que é importante para todos nós; nem mesmo como um mal que se transformará em bem; e sim como a reali­zação de um evento, sem qualquer frustração, o propósito de minha missão e a frutificação das bênçãos que desejo conceder ao mundo. O que os homens consideram mau, Deus considera bom, para assim vir a

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salvar muitas pessoas. O derramamento do meu sangue, em um aspecto o crime dos judeus perversos é, em outro aspecto, o meu próprio ato voluntário. Eu derramarei o meu sangue para que no final a graça preva­leça, para a remissão dos pecados. Minha morte dará início a uma nova dispensação, e selará o Novo Testamento; cumprirá o propósito deter­minado, tomando assim o lugar dos diversos sacrifícios do ritual mosai­co, e em particular do cordeiro pascal, que até os dias atuais é consumi­do. De agora em diante Eu serei o Cordeiro Pascoal do Israel de Deus, e ao mesmo tempo os protegerei da morte e alimentarei suas almas através de minha crucificação, como o pão da vida eterna.

Essas verdades são muito familiares para nós, contudo podem ter sido novas e estranhas para os discípulos; e estamos mais acostumados a explicar a Ceia através da morte de Cristo, em vez de a morte de Cristo através da Ceia. De qualquer modo, pode ser útil aqui reverter este pro­cesso, e imaginar a nós mesmos na posição dos doze, como testemunhas da instituição de um novo símbolo religioso, para nos empenharmos em redescobrir então o significado do evento com o qual está associado, e cuja importância deve ser transmitida e disseminada. Vamos então to­mar o nosso lugar ao lado desse memorial, e tentar ler a inscrição simbó­lica em sua superfície gasta.

I ) Primeiro, então, percebemos que é à morte de Jesus que este memorial se refere. Não é meramente erguido em sua memória em geral, e sim especialmente em memória de sua morte. Todas as coisas apontam para o que estava prestes a acontecer no Calvário. Os atos sacramentais de partir o pão e despejar o vinho manifestadamente apontam para essa direção. Todas as palavras ditas por Jesus na instituição da Ceia também envolvem alusões à sua morte. Tanto o fato como a maneira de sua mor­te são sugeridos pela distinção que Ele faz entre seu corpo e seu sangue: “Isto é o meu corpo”, “Isto é o meu sangue”. Corpo e sangue são um na vida, e se tornaram coisas separadas somente na morte; e não em todo o tipo de morte, mas por uma que envolve o derramamento de sangue, como no caso das vítimas sacrificiais. Os epítetos aplicados ao corpo e ao sangue apontam para a morte com mais clareza ainda. Jesus fala de seu corpo sendo “dado” — como se estivesse para ser assassinado ou “partido”1 em sacrifício, e de seu sangue sendo “derramado”. Então,

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finalmente, descrevendo o sangue, prestes a ser derramado como o san­gue de um Novo Testamento, o Salvador colocou a sua alusão acima de qualquer dúvida. Onde existe um testamento, deve também existir a morte do testador. E embora um testador comum deva morrer de modo co­mum, o Testador do Novo Testamento deve ter uma morte sacrificial; o novo epíteto implica uma referência à antiga Aliança judaica que foi ratificada pelo sacrifício das ofertas queimadas e das ofertas pacíficas de bois, cujo sangue era aspergido sobre o altar e as pessoas, e chamado por Moisés de “o sangue da aliança”.

2) O mero fato de a Ceia do Senhor comemorar especialmente a morte do Senhor, implica que a morte deve ter sido um evento de caráter muito importante. Instituindo um ritual simbólico para tal propósito, é como se Jesus assim dissesse a seus discípulos e a nós: “Fixem os seus olhos no Calvário e vejam o que acontece ali. Este é o grande evento em minha história terrena. Outros homens têm monumentos erguidos em sua homenagem porque tiveram vidas consideradas memoráveis. Desejo que vocês ergam um monumento a mim porque eu morri: não se esque­çam de minha vida, e estejam especialmente conscientes da minha mor­te; comemorem-na por aquilo que ela representa, e não pela vida a que no final ela levará. A memória dos outros homens é apreciada na celebra­ção de seu aniversário; mas no meu caso, melhor é o dia da minha morte do que o dia do meu nascimento para o propósito de uma celebração comemorativa. Meu nascimento neste mundo foi maravilhoso e signifi­cativo; mas ainda mais mafavilhosa e significativa é a minha saída dele através da crucificação. Em vitftudç do meu aniversário, nenhuma come­moração é necessária; mas mantenham viva a memória de minha morte, através da Santa Ceia, até que eu volte. Lembrando-se dela, vocês se lembrarão de toda a minha história na terra; dentre todos, este é o maior segredo, a consumação e a coroa”.

Mas por que, em uma história tão notável, a morte deve ser motivo de comemoração? Foi o seu caráter trágico que venceu por sua distinção? Será que o Senhor crucificado tinha a intenção de que a Ceia em seu nome se tornasse uma mera representação dramática de sua paixão, com o propósito de estimular os nossos sentimentos, e fazer surgir uma lágri­ma de solidariedade, renovando assim a memória de suas dores na hora

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da morte? Então, para pensar na questão de rebaixar o nosso banquete cristão ao nível da festa pagã de Adônis,

Q uem fosse ferido durante o ano no Líbano persuadia

as donzelas sírias a lamentarem seu destino

com canções de amor, todas em um dia de verão.

Será que Jesus desejou ter guardado em lembrança perpétua o ato errôneo e a vergonhosa indignidade feita ao Filho de Deus pelos ho­mens perversos que o crucificaram? A Santa Ceia foi instituída com o propósito de marcar com eterna infâmia um mundo que não sabendo o que fazer com o Santíssimo além de pregá-lo em uma cruz, sentiu maior benevolência por um ladrão do que por Ele? Certamente o mundo me­receu receber uma reprovação; mas o Filho do Homem não veio para condenar os pecadores, mas para salvá-los; e não estava em sua natureza amorosa erguer um memorial a seu próprio ressentimento ou à desonra de seus assassinos. O sangue de Jesus fa la melhor do que o de Abel.

Ou será que uma vez que sua morte na cruz, apesar da indignidade e da vergonha, foi gloriosa, como um testemunho de sua invencível fidelidade à causa da verdade e da justiça, que Jesus instruiu seus seguidores a mantê- la sempre em mente, pela celebração de um novo ritual simbólico? Será que essa festa da Ceia deve ser considerada como uma solenidade do mes­mo tipo daquelas pelas quais a Igreja Primitiva comemorava a morte dos mártires? Será que o Coenâ Domini é simplesmente a natalitia do grande protomártir ? Então, os socinianos fariam com que acreditássemos. Para a pergunta do porquê o Senhor desejava que a memória de sua crucificação fosse especialmente celebrada em sua igreja, o catecismo racoviano respon­de: “Porque esta, dentre todas as ações de Cristo (a morte enfrentada e suportada de forma voluntária), foi a maior e a mais apropriada para Ele. Embora a ressurreição e a exaltação de Cristo tenham sido obras extraor­dinárias, forma realizadas por Deus Pai, e não pelo Senhor Jesus Cristo”2. Em outras palavras, a morte merece ser lembrada, sobre todas as coisas, porque foi o ato mais significativo e sublime do testemunho de Cristo a favor da verdade, o glorioso toque final de uma vida nobre de devoção e sacrifício pessoal à elevada e arriscada vocação de um profeta.

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Em Memória 393

É verdade que a morte de Cristo foi tudo isso, é daro, e é igualmen­te verdadeiro que vale a pena lembrá-la como um ato de martírio; mas uma outra questão é definir se Jesus instituiu a Santa Ceia com o exclu­sivo propósito de ser principalmente uma comemoração de sua morte ou de seu martírio. Neste ponto, devemos aprender a verdade dos pró­prios lábios de Cristo. Retornemos então à história da instituição, para conhecer o pensamento do Senhor em relação a este assunto.

3) Felizmente, o Senhor Jesus explicou com uma clareza particular em que aspecto desejava que sua morte fosse o assunto de uma comemo­ração. Ao distribuir entre seus discípulos o pão sacramental, Ele disse: “Isto é o meu corpo que é partido por vós”3, sugerindo assim que sua morte deveria ser comemorada por causa de um benefício obtido pelo comunicador. Ao dar a seus discípulos o cálice sacramental, Ele disse: “Este cálice é o Novo Testamento no meu sangue, que é derramado por v ó s ”4, e também “que é derramado por muitos, para remissão dos peca­dos”5, indicando assim a natureza do benefício obtido por sua morte, que era digna de ser lembrada.

Neste mundo criativo da nova dispensação, Jesus representa a sua morte como uma oferta pelo pecado, uma expiação pela culpa, e a com­pra do perdão em virtude da dívida moral. Seu sangue deveria ser derra­mado para a remissão dos pecados. Em vista desta função, o sangue é chamado de “o sangue do Novo Testamento”, em uma alusão à profecia de Jeremias, que contém a promessa de uma nova aliança a ser feita por Deus com a casa de Israel — uma aliança cuja particularidade deveria ser o perdão da iniqüidade, e chamada nova, porque, diferente da antiga, seria uma aliança de pura graça, de promessas não atadas a estipulações legais6. Ao mencionar seu sangue e a nova aliança juntos, Jesus ensina que, ao abolir a Antiga Aliança, Ele iria ao mesmo tempo cumpri-la, introduzindo assim a nova. A Nova Aliança seria ratificada pelo sacrifí­cio, do mesmo modo como foi a antiga no Sinai, e a remissão do pecado seria concedida depois do derramamento do seu sangue. Mas ao propor a seus discípulos beber do cálice, o Senhor sugere que depois de sua morte não haverá mais a necessidade de sacrifícios. A oferta do sangue pelo pecado será convertida em uma oferta de gratidão feita com vinho, o cálice da salvação, para ser bebido com o coração grato, alegre, por

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todos aqueles que através da fé em seu sacrifício receberam o perdão de seus pecados. Finalmente, Jesus expressa que a Nova Aliança se refere a muitos, não a alguns poucos — não somente a Israel, mas a todas as na­ções: é um evangelho que Ele deixou como um legado para os pecadores de toda a humanidade.

Devemos beber deste cálice com gratidão e alegria; porque a “Nova Aliança” (nova, porém muito mais antiga do que a velha), da qual é o selo da confirmação, é em todos os aspectos bem ordenada e certa. Bem ordenada; certamente é uma constituição boa e divina de coisas que relacionam a bênção do perdão com a morte sacrificial daquEle através de quem ela chega até nós. E boa em relação aos interesses da justiça, pois ela estipula que o pecado não deve ser perdoado até que tenha sido adequadamente expiado pelo sacrifício do Amigo do pecador; e é justo e correto que sem o derramamento do sangue do Justo não deva existir a remissão dos injustos. E assim, este sistema é apropriado ao benefício do amor divino, assim como dá a tal amor um curso saudável e um alcance livre para demonstrar sua natureza magnânima, ao levar o fardo do peca­dor e do miserável. E uma vez mais, a constituição de uma nova aliança é admirável e apropriada ao grande objetivo prático almejado pelo sistema da redenção — a saber, a elevação de uma raça decaída, degradada, de um estado de corrupção para um estado de santidade. O Evangelho do perdão através da morte de Cristo é o poder moral de Deus para libertar as pes­soas do mundo do egoísmo, da inimizade e da infâmia, concedendo-lhes uma vida celestial de devoção, auto-sacrifício, paciência e humildade. Se a fé em Cristo for entendida somente como meramente crer no opus operatum de uma morte vicária, o poder de tal fé para elevar se tornará mais do que questionável. Mas quando a fé é considerada em seu verdadeiro sentido de acordo com as Escrituras, como implicando a crença não apenas em um certo procedimento, a resignação de alguém à morte pelos outros, mas também, e especialmente, a verdadeira gratidão àquele que realizou a ação, então seu poder de purificação e de enaltecimento está além de qualquer dúvida. “O amor de Cristo nos constrange” e “Estou crucifi­cado com Cristo” como resultado de tal fé.

Como é pobre o sistema de salvação dos socinianos em comparação com este da Nova Aliança! Naquele sistema, o perdão não tem uma

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dependência real do sangue de Jesus: Ele morreu como um mártir da justiça, não como um Redentor dos injustos. Somos perdoados através do arrependimento por uma simples palavra de Deus. O perdão não causa problema ou sacrifício àquele que perdoa; somente uma palavra, ou o traço de uma caneta assinando um documento: “Assim diz o Se­nhor”. Que procedimento fraco/ Que relação fria entre a divindade e suas criaturas! E preferível um perdão que signifique doação7, e que cau­se àquEle que perdoa sofrimento, suor, dor, sangue, feridas, morte — um perdão vindo de um Deus que diz, com efeito: “Eu não anularei, para salvar os pecadores, a lei pela qual o pecado tem a morte como penalida­de; mas para esta finalidade estou disposto a me tornar a vítima da lei”. Tal perdão é simultaneamente um incrível ato de justiça e de amor; con­siderando que o perdão sem a satisfação, embora à primeira vista possa parecer racional e generoso, não manifesta nem a justiça de Deus, nem o seu amor. Um deus sociniano, que perdoa sem a expiação, é igualmente destituído de aversão ao pecado e de amor intenso pelos pecadores.

Jesus disse certa vez: “Por isso, te digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama”. Esta é uma verdade profunda, mas existe ainda outra não menos profunda a ser colocada ao lado desta: devemos sentir que o nosso perdão custou muito àquEle que perdoa, e assim devemos amá-lo ainda mais. E por sentirem isso que os verdadeiros professores da fé universal demonstram esta intensa devoção a Cristo, o que leva a um contraste com o ato de prestar uma homenagem fria e intelectual a Deus. Quando o cristão pensa nas lágrimas, agonia, sofrimento, vergonha e dor suportados pelo Redentor, de sua aparência desfigurada, coração partido, lado perfurado, mãos e pés lacerados, seu peito queima com um devoto amor. A história do sacrifício de Cristo abre todas as fontes de sentimentos; e por nenhum outro meio, senão a via dolorosa, Jesus poderia ter ascendido ao trono do coração de seu povo. A Nova Aliança inaugu­rada pela morte de Cristo é certa, assim como organizada. E seguramen­te selada pelo sangue do Testador. Porque, em primeiro lugar, que me­lhor garantia podemos ter da boa vontade de Deus? “Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a sua vida pelos seus amigos”. “Conhecemos a caridade ou o amor, nisto: que ele deu a sua vida por

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nós”. Olhando a questão em relação à justiça, novamente, esta aliança é de igual modo certa. Deus não é injusto para se esquecer da obra de amor de seu Filho. Como Ele é real, enxerga o trabalho árduo de sua alma. Não pode ser de outra forma sob a administração moral de Jeová. Pode o Deus da verdade faltar com a sua Palavra? Jamais. Pode o Juiz de toda a terra permitir que alguém, especialmente o seu próprio Filho, se entre­gue, por puro amor, ao sofrimento, à dor e à vergonha por seus irmãos sem receber o pagamento que deseja, que lhe estava prometido — muitas almas, muitas vidas, muitos pecadores salvos? Pense nisso: a santidade sofrendo por amor à justiça e não tendo a consolação de fazer algo em relação à destruição dos injustos, e trazendo os desobedientes à obedi­ência do justo; amar, pelo impulso de sua natureza e por obrigações da aliança, sob uma necessidade de trabalhar pelos perdidos, e condenado pela perversidade ou apatia, ou falta de fé no Governador do universo em relação ao recebimento das recompensas — obra de amor perdida, ninguém mudou para melhor, as coisas permanecem como antes: ne­nhum pecador perdoado, liberto do inferno e reabilitado à santidade; nenhuma das pessoas escolhidas foi tirada das trevas para uma maravi­lhosa luz! Tal estado de coisas não pode fazer parte dos domínios de Deus. O governo de Deus segue seu curso com base no amor sagrado. Este dá ao amor um escopo livre para que se possa carregar os fardos dos outros: convenciona que se assim for, a pessoa poderá sentir todo o peso do fardo que carrega sobre si; mas também concilia que, por uma aliança eterna de verdade e de justiça, quando o fardo for tomado, o portador do mesmo deverá receber a sua recompensa da maneira que mais lhe agrada — com almas lavadas, perdoadas, santificadas, e levadas à glória eterna por Ele próprio como seu irmão ou filhos por quem pagou o devido resgate.

O princípio do mérito vicário envolvido na doutrina é de que so­mos perdoados simplesmente porque Cristo morreu por nossos peca­dos. E quando este fato é contemplado sem preconceitos, elogia-se e recomenda-se à razão e ao coração. Isto significa, na prática, um prêmio ganho para promover a justiça e o amor. Este prêmio oferecido susten­tou Jesus durante a sua árdua tarefa. Ele suportou a cruz porque, con­fiando na promessa de seu Pai, viu garantida a alegria de salvar muitas

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pessoas. É o mesmo princípio, em uma aplicação restrita, que estimula os cristãos a preencher o que está por trás dos sofrimentos do seu Se­nhor. Eles sabem que, se forem fiéis, não deverão viver para si próprios, e sim beneficiar o corpo espiritual da Igreja de Cristo, e também o mun­do todo. Se os fatos fossem diferentes, haveria também pouca fidelidade moral ou amor no mundo. Se o governo moral do universo tornasse impossível beneficiar ao próximo pela oração ou pela comiseração, tor- nar-se-ia impossível para dez homens serem escudos para Sodoma, e para o eleito ser o sal da terra — os homens desistiriam de tentar fazê-lo; a verdadeira preocupação com o bem-estar público cessaria, e o egoísmo universal se tornaria a ordem do dia. Se uma situação perversa persistis­se, a escuridão permaneceria em uma forma negativa: teria lugar um enigma impenetrável do Justo crucificado sem benefício para nenhuma criatura vivente — uma desgraça e uma vergonha para o governo e o caráter de Deus. Se, portanto, nos é dito para firmar a nossa fé na santi­dade divina, na justiça, na benevolência e na verdade, devemos crer que o sangue de Jesus certamente intervém por nós para a remissão dos peca­dos. E, também, no fato de que o sangue dos seus santos não está dispo­nível e nem tampouco é necessário para obter a bênção do perdão para os pecadores diante do tribunal divino — apenas o sangue de Cristo é capaz de nos conferir tal bênção, para sempre. O sangue de Cristo é precioso aos olhos de Deus, e torna preciosas as pessoas pelas quais é derramado — e é pela designação de Deus, de diversas formas — uma fonte de bênçãos a um mundo indigno cujos habitantes não sabem usar outros meios a não ser o abate de cordeiros.

4 ) O sacramento da Ceia demonstra Cristo não apenas como um Cordeiro a ser sacrificado como oferta pelo pecado, mas como um Cor­deiro Pascoal a ser ingerido para o sustento espiritual. “Tomai, comei; isto é o meu corpo.” Por esta injunção Jesus ensinou os doze, e através deles a todos os cristãos, a considerar a sua humanidade crucificada como o pão de Deus para a vida de suas almas. Devemos espiritualmente inge­rir a carne e beber o sangue do Filho do Homem pela fé, assim como ingerimos literalmente o pão e bebemos o vinho pela boca.

Considerando Cristo como o Pão da Vida, não estamos nos restrin­gindo ao benefício mencionado por Ele na instituição do banquete, a

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remissão dos pecados, mas tendo em vista todos os benefícios que visam ao nosso suprimento espiritual e crescimento na graça. Cristo é o Pão da Vida em todos os seus ofícios. Como Profeta, Ele fornece o pão da verdade divina para alimentar as nossas mentes; como Sacerdote, Ele supre o pão da justiça para satisfazer as nossas consciências perturbadas; como Rei, Ele se nos apresenta como um objeto de devoção, que deve preencher os nossos corações, e a quem nós devemos adorar sem medo de incorrer em idolatria.

Cada vez que a Ceia do Senhor é celebrada, somos convidados a contemplar a Cristo como o alimento da nossa alma; este é o sentido correto que devemos compreender. Cada vez que comemos o pão e be­bemos do cálice, declaramos que Cristo foi e é o alimento da nossa alma de todas essas formas. E cada vez que participamos dessa Ceia com sinceridade, somos ajudados a tomar Cristo como o nosso alimento espiritual com mais e mais abundância. Mesmo como um símbolo ou figura — sem qualquer misticismo ou magia — a Santa Ceia nos ajuda em nossa fé. Através dos olhos a Santa Ceia afeta o coração, como a poesia e a música fazem através dos ouvidos. O misticismo e a superstição que se deram em torno dos sacramentos com o passar do tempo são teste­munhas de sua poderosa influência sobre a imaginação. Os pensamentos e os sentimentos dos homens eram tão profundamente tocados que não podiam crer que tal poder se manifestasse por meio de simples símbo­los; e por uma confusão de idéias, natural da imaginação agitada, atribu­íram ao sinal todas as virtudes daquilo que estava sendo representado. Sendo assim, por exemplo, no catolicismo, a fé foi transferida de Cristo, o Redentor, e do Espírito Santo, o Santificador, para o ritual do batismo e da missa. Este resultado mostra a necessidade de conhecimento e de discernimento espiritual para manter a imaginação sob controle e impe­dir que os olhos da compreensão sejam expostos pelo deslumbre eviden­te da fantasia. Algumas pessoas — considerando a forma plena como os olhos da compreensão têm se desviado pelas teorias da graça sacramen­tal — têm sido tentadas a negar que os sacramentos sejam meios ou recursos da graça, e a pensar que às instituições que têm sido tão terrivelmente abusadas deve ser permitido cair em desuso. Esta é uma reação natural, mas é uma opinião extremada. A visão verdadeira e sensata da questão é

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que os sacramentos são recursos da graça, não por uma virtude mágica em si, ou naquele que os administra, mas auxiliando a fé pela compreen­são e, mais ainda, pela bênção de Cristo e pela obra de seu Espírito, como a recompensa da crença e do uso inteligente e sincero da mesma.

E isto, então, que aprendemos sobre a pedra monumental. A Ceia do Senhor comemora a sua morte; destaca a morte como um evento de importância transcendental; demonstra-a de fato, como a base da nossa esperança para o perdão do pecado; e, finalmente, mostra Cristo, o Se­nhor, que morreu na cruz, como tudo o que o nosso espírito necessita para a saúde e salvação — o nosso pão e vinho espirituais. Este ritual, instituído por Jesus na noite em que foi traído, segundo a sua vontade, deveria ser repetido não apenas pelos apóstolos, mas por seu povo que crê em todos os tempos, até a sua volta. Assim aprendemos nos escritos de Paulo; assim deveríamos ter inferido, independentemente de qual­quer informação expressa. Um ato tão original, tão comovente, tão abun­dante de significados, tão útil para a fé, uma vez desempenhado, foi virtualmente sancionado. Ao realizar tal ato, Jesus disse, em outras pala­vras: “Que esta se torne uma grande instituição, uma permanente ceri­mônia na comunidade que será chamada pelo meu Nome”.

O significado da ordenação determina o espírito com o qual deve ser observada. Os cristãos deveriam se sentar ao redor de uma mesa com um espírito de humildade, gratidão, e amor fraternal, confessar os peca­dos, agradecer sinceramente a Deus por sua aliança de graça, e por sua misericórdia demonstrada a favor deles em Cristo, amando aquEle que os amou e os purificou com o seu próprio sangue dos pecados que pra­ticaram, e que diariamente alimentou suas almas com o alimento divino, dando-lhe toda a glória e poder. Deveriam também amar uns aos outros— amar todos os homens redimidos e fiéis em Jesus Cristo como irmãos, e participar da Ceia, reunidos, como se fosse uma refeição em família. Além disso, deveriam orar para que um número sempre crescente de pessoas vivenciasse a eficácia da salvação através da morte de Cristo. Tanto os apóstolos quanto a igreja apostólica celebraram a Ceia deste modo, inclusive no Pentecostes, depois de Jesus ter ascendido à glória. Perseverando diariamente em união no Templo, e partindo o pão de casa em casa, eles realmente compartilhavam seu alimento com gratidão e

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singeleza de coração. Imagine se nós agora fizéssemos esta celebração como eles a faziam antigamente! Mas quanto não deveria ser feito para que isso se tornasse possível! O limo do tempo deve ser eliminado da pedra monumental; que a sua inscrição possa se tornar mais uma vez distintamente legível; os escombros acumulados durante mais de um milê­nio e meio de controvérsias teológicas sobre os sacramentos devem ser eliminados de nossa visão e de nossa mente8; a verdade de Jesus deve ser separada da confusão do erro humano; o ritual simples da Ceia deve ser despojado dos trajes cerimoniais elaborados através dos quais seu verda­deiro significado tem sido suprimido, e deve ser permitido que retorne à simplicidade primitiva. Essas coisas, que devem ser tão intensamente desejadas, virão a ocorrer — se não na terra, no dia em que o Senhor Jesus beber o vinho novo com o seu povo no Reino de seu Pai9.

1 I Coríntios 11.242 De Coenâ Domini, Quasstio 4.3 Lucas e Paulo4 Lucas 22.205 Mateus 26.28. Quanto à autenticidade dessas palavras, veja Neander, Life o f Christ; e também Keim, Jesu von

Nazam.6 Jeremias 31.31-34. Tal aliança, considerando o lado do homem, dificilmente pode ser considerada como uma

aliança. Veja Witsius, De (Ec. Fid. lib. 3. Cap. I. 8-12. As bênçãos de uma nova aliança, como descritas pelo próprio profeta, são as três seguintes: I ) A lei escrita no coração, e não nas tábuas de pedra = regeneração — renovação moral; 2) o conhecimento de Deus simplificado e tornado acessível a todos = abolição do ritual levítico elaborado; 3) perdão dos pecados.

7 Essa idéia é bem colocada na obra de Bushnell, Vicarious Sacrifice.8 A história dessas controvérsias é muito humilhante, e a maioria de suas conseqüências são desastrosas. Através

delas, o símbolo da união se tornou a principal causa de divisão. A igreja se recorda do seu Senhor e obedece ao seu mandamento de amor, como os membros das famílias algumas vezes se lembram de um parente falecido, olhando uns para os outros de modo irado ao redor do túmulo, e indo para a casa daquele que sepultaram para brigar e discutir sobre o significado de seu testamento.

9 Podemos notar aqui a momenta da doutrina da cruz como estabelecida nas quatro lições dadas por Jesus a seus discípulos, a fim de reuni-los sob o mesmo ponto de vista.

São as seguintes:1) Primeira lição — Cristo sofreu por causa da justiça: aqui está um exemplo para todos os seus seguidores

(M t 26.24-28 e passagens paralelas, vide cap. 12).2) Segunda lição — Cristo sofreu pelos injustos: Ele deu a sua vida como um resgate pelos pecadores (M t 20.28,

vide cap. 17). Considere também como exemplo o fato de Ele ter se levantado para vencer.3) Terceira lição — Cristo sofreu com um espírito de amor sacrificial, exemplificado por M aria de Betânia

(M t 26 .6-13 e passagens paralelas, vide cap. 18).4) Quarta lição — Cristo sofreu para inaugurar uma Nova Aliança da graça e obter para os pecadores o perdão

dos pecados (M t 26.26-29 e passagens paralelas. Veja o item 3 deste capítulo).

*N. do T : O termo protomártir significa o primeiro mártir de uma causa.

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23Judas Iscariotes

Mateus 26.20-23; Marcos 14 .17 -2 1; Lucas 22 .21-23 ; João 13 .21-30

AX \lém da cerimônia da lavagem dos pés e da instituição da Ceia, mais uma cena ocorreu na noite anterior à morte do Senhor, ajudando a torná- la eternamente memorável. Na mesma noite, durante a refeição notur­na1, Jesus expôs e expulsou o falso discípulo, que havia se encarregado de entregar seu Mestre nas mãos daqueles que queriam tirar-lhe a vida. Então, enquanto se ocupava com a lavagem dos pés, Ele fez alusões ao fato de haver um traidor entre os doze, insinuando que havia um deles que não estava limpo, que sabia o que era correto fazer mas não o faria. Tendo terminado e explicado o serviço humilde de amor, Ele procedeu com a tarefa indesejável de indicar distintamente a qual dos discípulos estava se referindo. Com o espírito importunado pelo pensamento da tarefa dolorosa, e ciente da presença de tal perversidade satânica, Ele introduziu o assunto fazendo a seguinte proclamação de caráter geral: “Em verdade vos digo que um de vós me há de trair”. E então, em resposta às indagações, Ele indicou a pessoa específica, explicando que o traidor era aquele a quem Ele desse o bocado molhado2.

O fato então anunciado era novo para os discípulos, mas não para o Mestre. Jesus sabia o tempo todo que havia um traidor no grupo. Ele havia até se referido ao fato um ano antes. Mas, com exceção daquela ocasião, Ele não havia falado da questão até então, e a mantinha em segredo em seu próprio coração. Agora, contudo, o segredo não deveria mais permanecer oculto. Havia chegado o momento em que o Filho do Homem deveria ser glorificado. Judas, por si só, resolveu ser o instru­mento da traição e morte de seu Senhor; e tal função perversa, uma vez

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decidida, deveria ser executada sem demora. Então parece que Jesus de­sejava se livrar da companhia do falso discípulo. Ele queria passar as últimas horas de sua vida na terra de modo tranqüilo, na companhia confidencial de seus fiéis, longe da irritação e da distração causada pela presença de um inimigo mortal ainda não declarado. E assim, Ele não espera até que Judas queira partir; Ele o convida a sair, afirmando sua autoridade mesmo depois de Judas ter renunciado à sua submissão e ter se entregado ao serviço do Diabo. E, após o bocado, Satanás entrou em Judas. O Senhor disse, em outras palavras: “Eu te conheço, Judas; tu és o homem: tu resolveste me trair: vá, então, e faça-o”. E então disse enfati­camente: “O que fazes, faze-o depressa”. Era uma ordem para que ele partisse, de uma vez por todas. Judas acatou a sugestão. Ele partiu “ime­diatamente”, e abandonou a sociedade da qual era indigno de ser mem­bro. Nós nos perguntamos como um homem assim poderia algum dia ter ingressado nela — como ele pôde ser admitido em tal sociedade santa — e como pôde ser escolhido para ser um dos doze. Será que Jesus não conhecia o verdadeiro caráter desse homem quando o escolheu? As pala­vras do nosso Senhor, ditas um pouco antes, nos impedem de pensar assim. “Eu bem sei”, disse Ele, enquanto explicava sobre a lavagem dos pés, “os que tenho escolhido”, significando, evidentemente, que bem conhecia a todos eles, inclusive Judas, na ocasião em que os escolheu. Então, será que o Senhor escolheu Judas sabendo quem ele era, e que poderia ter entre os doze alguém por quem seria traído, e que assim as Escrituras em particular seriam cumpridas? Então Ele, aparentemente se referindo à declaração aludida, segue dizendo: “Mas para que se cumpra a Escritura: O que come o pão comigo levantou contra mim o seu calca­nhar”3.

Mas não é incrível que Judas Iscariotes tenha sido escolhido mera­mente para ser um traidor, como um ator é escolhido por um diretor de teatro para fazer o papel de lago. O final apontado na Escritura citada deve ser basicamente relacionado à sua escolha, mas esse final não foi o motivo da escolha. Podemos considerar estes dois pontos como certos: por um lado, Judas não se tornou um seguidor de Jesus com intenções desleais; e por outro, Jesus não escolheu Judas como um dos doze por saber de antemão que ele seria um traidor.

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Se a escolha do falso discípulo não se deu por causa da ignorância nem ao conhecimento prévio, como ela pode então ser explicada? A única explicação que pode ser dada é que, independentemente da com­preensão secreta, Judas era aparentemente um homem qualificado, e não poderia ter escapado a nenhuma observação comum. Suas qualidades devem ter sido tais que alguém que não fosse onisciente, olhando para ele estaria disposto a dizer o que Samuel disse a Eliabe: “Certamente, está perante o Senhor o seu ungido”4. Neste caso, a escolha de Judas feita por Jesus é perfeitamente inteligível. O cabeça da Igreja simples­mente fez o que a igreja deve fazer em situações análogas. A igreja esco­lhe homens para cumprir os ofícios sagrados em uma visão conjunta de qualificações ostensivas, tais como conhecimento, zelo, piedade aparen­te e retidão de conduta exterior. Sendo assim, às vezes, ela faz designa­ções infelizes, e confere dignidade a pessoas do tipo de Judas, que deson­ram a posição que ocupam. O dano resultante é grande; mas Cristo nos ensinou, através de seu exemplo ao escolher Judas, assim como pela pará­bola do joio, que devemos ser pacientes, deixando o remédio em mãos superiores. Do mal Deus sempre faz surgir o bem, como fez no caso do traidor.

Supondo que Judas tenha sido escolhido para o apostolado com base em sua aparente adequação, em que tipo de homem isso implicaria? Al­guém vulgar, um hipócrita consciente, astuto e determinado, enquanto declaradamente almejava algo maior? Não necessariamente; é provável que não. Mas Judas era alguém como Jesus de forma indireta descreveu ao fazer a seguinte reflexão: “Ora, se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as praticardes”. O falso discípulo era sentimental, plausível — enganava a si mesmo e a alguns (exceto o Senhor) como se fosse piedoso — alguém que conhecia e aprovava o bem, embora não o praticasse conscientemente; alguém que por um sentimento estético, em uma fantasia e no intelecto, tinha afinidade com o que era nobre e divino, enquanto em sua vontade e conduta era escravo de paixões egoístas; alguém que, como último recurso, sempre se colocaria em primeiro lugar, e ainda poderia devotar-se zelosa­mente a fazer o bem, quando seus interesses pessoais não estivessem com­prometidos — em suma, o que o apóstolo Tiago chama de homem de “ânimo dobre” ou de dupla personalidade5. Ao descrever Judas deste modo,

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não utilizamos a figura de um monstro solitário. Homens de tal tipo não são raros como muitos imaginam.Tanto a história sagrada como a profana fornecem numerosos exemplos desse tipo de homens, desempenhando um papel importante nas questões humanas. Balaão, que teve a visão de um profeta e a alma de um sovina, foi um desses. Robespierre, o gênio perverso da Revolução Francesa, foi outro. O homem que mandou milha­res de pessoas para a guilhotina, em sua juventude renunciou a seu traba­lho de juiz provincial, porque era contra a sua consciência pronunciar uma sentença de morte a um criminoso, mesmo sendo culpado de uma trans­gressão capital6. Um terceiro exemplo, mais notável que os outros, pode ser encontrado no famoso grego Alcebíades, que, por uma ambição des­medida, inescrupulosa e licenciosa, juntamente com uma terna ligação ao maior e melhor dos gregos, foi o homem que em anos posteriores traiu a causa de sua cidade natal e passou para o lado de seus inimigos. Este foi, em sua juventude, um admirador e discípulo de Sócrates. O modo como ele se sentiu em relação ao sábio de Atenas pode ser reunido em palavras postas em sua boca por Platão em um de seus diálogos — palavras que involuntariamente sugerem um paralelo entre o orador e o indigno segui­dor de alguém maior que Sócrates: “Conheci através deste homem singu­lar (Sócrates) algo que ninguém poderia imaginar que eu fosse capaz; ter um sentimento de vergonha. Tenho consciência de uma inabilidade de contradizê-lo, e declino a fazer o que ele me propõe; e quando parto, sinto-me dominado por um desejo de estima popular. E então, afastei-me > dele, e passei a evitá-lo. Mas quando o vejo, sinto-me envergonhado de minha admissão, e freqüentemente penso que ficaria feliz se ele não mais existisse entre aqueles que vivem; porém bem sei que se isso viesse a acon­tecer, eu me sentiria ainda mais agoniado”7.

Sendo o caráter de Judas como o descrevemos, a possibilidade de ele se tornar um traidor se torna compreensível. Alguém que ama a si mesmo mais do que a qualquer outro homem, mesmo que bom, ou de qualquer forma santo, é sempre capaz de algum ato de má-fé ou abominável. Ele é um traidor no coração desde o princípio, e tudo o que deseja é um conjun­to de circunstâncias calculadas para trazer à cena elementos malignos de sua natureza. Então surge a questão: Quais foram as circunstâncias que converteram Judas de um possível em um verdadeiro traidor?

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Esta é, de fato, uma questão difícil de se responder. O crime come­tido por Judas Iscariotes, através do qual ele obteve para si uma reputa­ção assustadora, ainda permanece, apesar de todas as discussões das quais tem sido alvo, misterioso e inexplicável. Muitas tentativas têm sido feitas para explicar os prováveis motivos para tal ato nefando, algumas com tendência a desculpar o executor, e outras agravando a sua culpa; todas de certa forma conjeturais, e nenhuma perfeitamente satisfatória. Quan­to às narrativas do Evangelho, elas não explicam, e sim meramente regis­tram, a perversidade de Judas. Os evangelistas sinópticos mencionam de fato que o traidor fez um acordo com os sacerdotes, e recebeu deles uma soma em dinheiro pelo serviço realizado; e João, em sua narrativa da unção em Betânia, toma a ocasião para declarar que o discípulo repreen­dido era um ladrão, apossando-se do dinheiro do fundo comum, pelo qual era responsável8. Esses fatos, é claro, mostram que Iscariotes era um homem cobiçoso. Ninguém além de um homem ganancioso, de espírito ambicioso, poderia ter aceitado dinheiro por tal serviço. Um homem vingativo, cuja vaidade fosse ferida, ou que se imaginasse de algum modo enganado, poderia ter levado o traidor a almejar a vingança, mas este rejeitaria ser pago por tal trabalho iníquo. Os pequenos furtos que Judas fazia na bolsa, eram também, certamente, um significativo sinal de uma alma sórdida. Talvez o próprio fato de ele ter sido o encarregado pela bolsa entre os discípulos de Jesus pode ser considerado como uma indi­cação de que seu coração ansiava pela ganância. Supomos que ele levava a bolsa porque os outros discípulos eram todos supremamente despren­didos das questões que envolviam dinheiro, enquanto ele havia decidido — por inclinações em relação às finanças — demonstrar um desejo de estar encarregado dos fundos do grupo. Todos os demais ficariam muito felizes por encontrar um irmão disposto a cuidar do problema; e tendo absorvido o espírito dos preceitos de seu Mestre, não se preocupavam com o amanhã, e nem sequer pensavam em se apresentar como candida­tos rivais para tal cargo.

Portanto, de um modo mais distinto, os evangelistas representam Judas como um homem ambicioso. Mas estes não representam a ambição dele como o único, nem mesmo como o principal, motivo de seu crime. Isso, de fato, dificilmente pode ter ocorrido. Será que, em primeiro lugar, não seria

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melhor para Judas ter continuado como o encarregado da bolsa, com facilidades para se apropriar do seu conteúdo, do que vender seu Mestre por uma soma irrisória que não excedia vinte e cinco reais?9 Então, o que poderia induzir um homem, cuja paixão predominante era acumular di­nheiro, a se tornar um discípulo de Jesus? Certamente seguir a Jesus, que não possuía sequer um lugar para reclinar a sua cabeça, não era um meio de ganhar dinheiro! Então, finalmente, qual seria a razão para o remorso do traidor, com tão grande veemência, embora não fosse santo em sua natureza, considerando a hipótese de que seu único objetivo fosse ga­nhar algumas poucas peças de prata? A avareza pode transformar um homem de talentos esplêndidos em um mercenário inescrupuloso; mas é raro, de fato, que um homem dado a hábitos avaros, leve a sério os cri­mes cometidos sob sua influência. E da natureza da avareza destruir a consciência e tornar todas as coisas, mesmo as sagradas, venais. De onde, então, surgiu aquele poderoso vulcão no peito de Judas? Certamente outras paixões, além da paixão fria e dura da ganância, estavam operan­do na alma de Judas quando ele vendeu o seu Senhor!

Algumas pessoas sugeriram que, pressionado por esta dificuldade, ao trair Jesus, Judas foi principalmente influenciado por sentimentos de inveja ou de rancor, surgidos de dissensões internas ou injúrias imagina­das. Esta sugestão em si não é improvável. Ofensas podem ter facilmente surgido de várias fontes. O mero fato de Judas não ser galileu10, e sim nativo de outra província, pode ter incitado algum tipo de desentendi­mento. As simpatias e antipatias humanas dependem de poucas coisas. Relações de parentesco, um nome comum, ou um lugar de nascimento comum, têm muito mais poder do que os grandes laços que nos relacio­nam com todos os demais seres humanos. Na religião, a mesma observa­ção é válida. Os laços de um Senhor comum, de uma esperança comum, e de uma vida espiritual comum, são débeis quando comparados com os dos costumes e opiniões de seitas e religiões sectárias. E assim, quem sabe quais ofensas surgiram das disputas entre os discípulos sobre quem deveria ser o maior no Reino? E se o homem de Queriote tivesse sentido que não teria chance de ser o maior por não ser galileu? Os hábitos vis e egoístas de Judas como tesoureiro seriam uma terceira causa de maus sentimentos na companhia apostólica. Supondo que sua desonestidade

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tivesse escapado da observação, sua tendência de colocar o interesse pela bolsa acima dos objetos para os quais seu conteúdo estava destinado, como por exemplo sua má vontade em doar suprimentos para o grupo ou para os pobres, seria certamente notada. E, uma vez notada, seria certamente repreendida, uma vez que tratava-se de um grupo onde im­perava a sinceridade e a retidão11.

Essas reflexões mostram como o mau sentimento pode ter surgido entre Judas e seus companheiros discípulos; mas o que podemos inferir é o ódio do falso discípulo contra o seu Mestre. Teria Jesus feito algo que ofendesse o homem por quem seria traído? Sim! O Senhor havia enxer­gado o interior de Judas, e isso era suficientemente ofensivo! Porque Judas, é claro, sabia que havia sido analisado. Os homens não podem viver juntos, em um relacionamento próximo, por um longo tempo, sem virem a saber com que sentimentos são considerados uns pelos outros. Se eu desconfiar de um irmão, ele o descobrirá, mesmo que eu tente dissimular. Mas o Senhor, que é sincero e fiel, não o faria. Ele, de fato, não imporia ofensivamente sua desconfiança a Judas, mas também não a esconderia, para fazer com que as coisas corressem bem entre eles. Ele, que com tanta fidelidade corrigiu os erros dos outros discípulos, cum­priria seu dever em relação a esse também, e o faria saber que considerava com desaprovação o seu espírito e hábitos malignos, para levá-lo ao arre­pendimento. E não é difícil imaginar o efeito de tal tratamento. Em Pedro, a correção teve uma influência benéfica; levou-o a raciocinar cor­retamente. No caso de Judas, o resultado seria muito diferente. A mera percepção de que Jesus não pensava positivamente a respeito dele, somado à vergonha de uma repreensão aberta, provocaria um ressentimento som­brio e uma alienação crescente do coração. Então, o amor havia se trans­formado em ódio, e o discípulo impenitente começou a nutrir paixões vingativas.

O modo como a traição ocorreu apóia a idéia de que o agente foi influenciado por sentimentos malignos de vingança. Não satisfeito por dar uma informação que habilitaria as autoridades judaicas a tomar a vítima em suas próprias mãos, Judas conduziu o grupo que foi enviado para prender seu Mestre, e até o identificou para eles com uma saudação afetuosa. Para alguém dado à vingança, aquele beijo pode ter sido doce;

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mas para um homem em qualquer outra situação, mesmo sendo um traidor, seria repugnante e abominável! A saudação foi inteiramente des­necessária para o sucesso da conspiração; porque o destacamento militar estava munido de tochas, e assim Judas poderia ter indicado Jesus mes­mo se mantendo em uma posição oculta. Mas tal ação não satisfaria o desejo de um ex-amigo que agora desejava ser um inimigo mortal12.

Junto com a malícia e a ganância, o instinto de autopreservação pode ter tomado lugar entre os motivos de Judas. A perfídia pode ter sido recomendada por sugestão de um egoísmo prudente. O traidor era um homem sagaz, e acreditava que uma catástrofe estava próxima. Ele compreendia melhor que os seus irmãos a situação presente: “Porque os filhos deste mundo são mais prudentes na sua geração do que os filhos da luz”. Por seu entusiasmo generoso e esperanças patrióticas, os outros discípulos estavam cegos em relação aos sinais dos tempos; porém o falso discípulo era menos nobre e mais perspicaz. Sendo o desastre imi­nente, o que então deveria ser feito? O que deveria ser feito além de aceitar as evidências e fazer planos para si, de forma que a perda de Cristo pudesse se transformar em ganho? Se este ato vil pudesse ser perpetrado sob uma simulação de provocação, não poderia ser melhor!

Essas observações ajudam a considerar o crime de Judas Iscariotes dentro dos limites da experiência humana, e vale a pena fazê-las; não é aconselhável pensarmos a respeito do traidor como um personagem ab­solutamente único, como a perfeita encarnação isolada da perversidade satânica13. Ao contrário, deveríamos pensar em seu crime sentindo o mesmo que os discípulos, ao perguntarem: “Sou eu?”14 “Quem pode entender os próprios erros? Expurga-me tu dos que me são ocultos”. Existem muitos traidores além de Judas que, por maldade ou ganância, fingem diante de pessoas nobres e de causas nobres; alguns deles, porém, são homens até piores do que Judas. Este teve a distinção não-invejável de trair a mais excelente e exaltada de todas as vítimas; mas muitos da­queles que são substancialmente culpados de seu pecado não o conside­ram tão seriamente, e têm sido capazes de viver com alegria mesmo depois de seu ato de vileza ter sido consumado.

E, assim, embora seja importante não idealizarmos Judas como um pecador isolado, é aconselhável que consideremos seu crime como um

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mistério incompreensível de iniqüidade. E é assim que o quarto evange­lista quer que o vejamos. Ele poderia ter nos contado muito sobre a relação mútua de Judas e Jesus, tentando explicar a ação do traidor. Mas escolheu não fazê-lo. A única explicação que ele dá do crime do traidor é que Satanás se apoderou dele. Isso ele menciona duas vezes em um capí­tulo, como que para expressar o seu próprio horror, e para despertar um horror similar em seus leitores15. E para aprofundar esta idéia, depois de relatar a saída de Judas, ele acrescenta a reflexão sugestiva de que esta ocor­reu após o anoitecer: “E, tendo Judas tomado o bocado, saiu logo. E era já noite”. Ocasião conveniente para uma missão daquela natureza!

Judas partiu e traiu o seu Senhor, levando-o à morte, e então tirou a sua própria vida. Que acompanhamento trágico da crucificação foi tal suicídio! Que ilustração impressionante do mal de uma mente perturba­da! Para sentir-se contente de alguma forma, Judas deveria ter sido um homem melhor ou pior. Se tivesse sido melhor, ele seria salvo deste cri­me; se tivesse sido pior, teria escapado deste tormento antes que ocor­resse. E foi assim; ele era suficientemente mau para realizar o ato de infâmia, e suficientemente bom para ser incapaz de carregar o fardo da culpa de seu ato. Que desgraça para tal homem! Seria, de fato, melhor para ele se nunca tivesse nascido!

Que final melancólico foi o de Judas para quem teve um início tão auspicioso! Escolhido para ser um companheiro do Filho do Homem, e uma testemunha ocular e auditiva de sua obra, uma vez comprometido com a pregação do evangelho e a expulsão dos demônios, agora, possuí­do pelo demônio, dirigido por ele para realizar atos abomináveis, foi finalmente empregado por uma justa Providência para se vingar de seu próprio crime. Em vista dessa história, quão superficial é, em relação aos efeitos das circunstâncias, a teoria, que procura resolver todas as diferen­ças morais entre os homens! Quem tinha mais possibilidades de se tornar bom, do que Judas? E assim, as influências que devem ter favorecido a bondade serviram somente para provocar uma atividade latente do mal.

Que cruz amarga a constante presença de um homem como Judas deve ter sido para o coração puro e amoroso de Jesus! E como foi pacien­temente suportado durante anos! Aqui Ele é um exemplo e um conforto para os seus verdadeiros seguidores; e para este fim, dentre outros, Ele

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teve esta cruz para carregar. O Redentor dos homens tinha um compa­nheiro que levantou seu calcanhar contra si, para que neste, como em todos os outros aspectos, Ele seja capaz de socorrer os seus irmãos. Al gum fiel servo de Cristo reclamou de que seu amor tenha sido recom­pensado pelo ódio, sua verdade pela má-fé, ou de ser obrigado a tratar como um verdadeiro cristão alguém que ele mais que suspeita que seja um hipócrita? Ê um julgamento difícil, mas olhemos para Jesus e seja­mos pacientes!

1 Tem sido bastante discutido se este episódio aconteceu antes ou depois da Santa Ceia, o que não tem uma importância teológica, embora tenha se pensado que esteja estritamente relacionado à comunhão.

2 A respeito deste assunto, veja a obra de Ebrard, Gospel History, e também a obra de Stier, Reden Jesu, que reconcilia os sinópticos com João, supondo dois anúncios do traidor, com a Ceia do Senhor interposta, a qual ele coloca entre os versículos 22 e 23 da narrativa de João.

3 João 13.184 I Samuel 16.65 Tiago 1.8, anêr âipsuchos; ou seja, um homem com dupla personalidade; não que uma fosse real e a outra

simulada, mas com as duas personalidades reais, com a mais forte delas errada, e finalmente prevalecente.6 Carlyle, French Revolution, I. 170, 1717 Platão, sumposion: Alcibiades loquitur.8 João 12.69 Renan, Vie de Jésus, p. 394.10 Vide cap. 4.11 Renan, Vie de Jésus, p. 395. Os pobres não eram esqyecidos por Jesus e por seus discípulos (Jo 12.5; 13.29).

Quando os suprimentos eram abundantes, não eram guardados para o dia seguinte, mas eram distribuídos entre os necessitados. O fato de terem mais do que necessitavam era resultado do amor de almas agradecidas (Lc 8.1-3), e a bolsa era guardada de modo que nada era desperdiçado; porque a ética de Jesus condena o desperdício com tanta veemência quanto desaprova o desvelo. O Senhor ordenava que aquilo que sobejava (a exemplo do que ocorreu no caso da multiplicação dos pães) fosse recolhido.

12 Renan, na obra Vie de Jésus, favorece a idéia de que Judas foi influenciado pelo ódio. Ele observa isso ao falar do número de delatores nas sociedades secretas: “Un léger dépit”, ele disse, “suffisait pour faire d’un sectaire um traítre” (p. 395).

13 Esta é a visão de Daub na obra Judas Iscariot, oder Das Bòse in Verhàltniss zum Guten.14 Os discípulos primeiramente estremeceram, cada um por si próprio; então, depois de recobrarem a compostu­

ra, começaram a se perguntar quem poderia ser; e, finalmente, Pedro fez um sinal para João, que estava próximo de Jesus, para que perguntasse ao Senhor quem era o traidor.

15 João 13.2,27. Satanás entrou em Judas primeiro como o Satanás de propósitos perversos; então, após o bocado (o desafio de Cristo em relação a Judas), manifestou-se como Satanás em ação.

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Seçao I — Palavras de Conforto e Conselho para os Filhos Entristecidos João 13 .31-35 ; 14 .1-4 ; 15 -21

A .X v saída de Judas na escuridão da noite, em sua tarefa ainda mais sombria, foi uma convocação para Jesus se preparar para a morte. No entanto, Ele estava agradecido pela partida do traidor. Isso tirou um fardo de seu coração, e permitiu que Ele respirasse e falasse livremente; e se isso o aproximava, em primeiro lugar, de seus sofrimentos finais, tam­bém o aproximava de sua posterior alegria da ressurreição e exaltação à glória. Portanto, a sua primeira declaração1, depois da partida de Judas, foi uma explosão de verdadeira alegria. Quando o falso discípulo já ha­via saído, e o som de seus passos havia desaparecido, Jesus disse: “Agora, é glorificado o Filho do Homem, e Deus é glorificado nele. Se Deus é glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo e logo o há de glorificar”2.

Mas enquanto a fé substanciava as coisas que eram esperadas, e tornava as coisas evidentes invisíveis, Jesus pôde ver na morte presente a glória futura, e se lembrou que tinha à sua volta discípulos para quem, na fraqueza deles, a sua morte e partida significariam simplesmente perda e desolação. Portanto, Ele imediatamente voltou seus pensamentos a eles, e prosseguiu dizendo-lhes coisas que eram adequadas à sua condição interior e à sua situação exterior.

Em suas últimas palavras dirigidas aos seus discípulos, o Salvador empregou dois estilos diferentes de discurso. Primeiro, Ele lhes falou como um pai que está prestes a morrer dirigindo-se a seus filhos; depois, assumiu um tom mais elevado, e lhes falou como um Senhor que morre dirigindo-se aos seus servos, amigos e representantes. Encontramos as

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palavras de conforto e conselho proferidas por Jesus na condição anterior nas passagens citadas nos capítulos 13 e 14 do Evangelho de João; en­quanto as instruções do Senhor que se despede dos seus futuros apósto­los estão registradas nos dois capítulos que se seguem. Devemos consi­derar neste capítulo as últimas palavras do pai que está prestes a morrer, dirigidas aos seus filhos entristecidos.

Será observado que estas coisas não foram ditas em um discurso contínuo. Enquanto o pai que morreria lhes falava, os filhos continua­vam a fazer-lhe perguntas comuns a filhos. Primeiro um, então outro, então um terceiro, e então um quarto; fizeram-lhe perguntas sugeridas pelo que Ele estava lhes dizendo. Jesus ouviu pacientemente essas per­guntas, e as respondeu conforme seriam capazes de compreender. As respostas que Ele deu, e as coisas que queria dizer, sem referência a pos­síveis interrogações, estão mescladas na narrativa. Será conveniente para o nosso propósito separar uma coisa da outra, e considerar primeiro, agrupadas, as palavras de conforto proferidas por Jesus aos seus discípu­los, e então as perguntas que lhe fizeram, com as suas respectivas respos­tas. Este método fará com que essas palavras se destaquem em toda a sua simplicidade e peculiaridade especiais. Para mostrar como elas eram muito simples e apropriadas, podemos declará-las aqui da forma mais resumi­da possível. Elas eram as seguintes: I ) Estou partindo; em minha ausên­cia encontrem conforto no amor uns dos outros (13 .31-35); e 2 ) Estou partindo; mas é para a casa de meu Pai, e no momento esperado eu voltarei e os levarei para lá (14.1-29); e 3) Estou partindo; mas mesmo quando estiver longe estarei com vocês na pessoa do meu alter ego, o Consolador (14.15-21).

Sabendo a quem falava, Jesus começa diretamente com um vocabu­lário infantil. Ele se dirige aos seus discípulos não meramente como filhos, mas como “filhinhos” (13.33); pelo nome carinhoso que expres­sa sua afeição carinhosa em relação a eles, e sua compaixão pela fraqueza deles. Então faz alusão à sua morte de uma maneira delicada e indireta, adaptada à capacidade e sentimentos infantis. Ele lhes diz que está indo por uma estrada pela qual eles não podem seguir, e que sentirão a sua falta como filhos que sentem a falta de seu pai quando este parte e jamais retorna. “Ainda por um pouco estou convosco. Vós me buscareis,

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e, como tinha dito aos judeus: para onde eu vou não podeis vós ir, eu vo- lo digo também agora”.

Após este breve e simples prefácio Jesus continuou a dar a seus pequeninos seu primeiro conselho sobre a morte, isto é, de que eles deveriam se amar uns aos outros em sua ausência. Com certeza este foi um conselho bastante digno de vir em primeiro lugar! Pois qual consolo pode ser maior para os órfãos do que o amor mútuo? Mesmo em um mundo tão desanimador e triste, enquanto os irmãos em aflição forem verdadeiros uns para com os outros em solidariedade e ajuda recíprocas, terão uma infalível fonte de alegria no deserto da tristeza. Se, por outro lado, para todos os outros males da vida houver mais alienação, descon­fiança, antagonismo, os consternados estarão realmente desolados; sua noite de tristeza não terá nem mesmo uma estrela solitária para aliviar sua melancolia3.

Ansioso por assegurar a atenção esperada a um preceito que era em si mesmo muito oportuno, e estando entre os discípulos que precisavam de apoio, Jesus conferiu a isso toda a dignidade e importância de um novo mandamento, e fez do amor ordenado nesse particular a marca distintiva do díscipulado cristão. “Um novo mandamento vos dou”, dis­se Ele, “que vos ameis uns aos outros”. Deste modo, naquela noite me­morável, acrescenta uma terceira novidade àquelas já apresentadas — o novo mandamento e a Nova Aliança. O mandamento e a aliança eram novos no mesmo sentido; não por nunca terem sido ouvidos antes, mas por serem, agora, pela primeira vez, proclamados com a devida ênfase e terem assumido seu lugar de direito de supremacia acima dos detalhes do legalismo moral mosaico e dos rituais religiosos legais que eram som­bra daquilo que viria. Agora o amor deveria ser a suprema lei, e a livre graça deveria tornar antiquadas as ordenanças que foram dadas no mon­te Sinai. E por que agora? Em ambos os casos, porque Jesus estava pres­tes a morrer. A sua morte seria o selo do Novo Testamento, e exemplificaria e ratificaria o novo mandamento. Então Ele continua a dizer, depois de transmitir esta nova lei: “Assim como eu vos amei”. O tempo verbal no passado não deve ser interpretado de modo estrito aqui: deve ser toma­do no futuro perfeito, para incluir a morte que foi o ato que coroou o amor do Salvador. Jesus disse que os seus seguidores deveriam amar-se

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mutuamente como Ele mesmo ama a cada um de nós, e transmitiu o conceito de que conheceríamos que estamos nesse amor ao precisarmos da consolação que vem desse amor mútuo. Entendendo as suas palavras desse modo, enxergamos claramente por que Ele chama a lei do amor de “nova”. O seu próprio amor ao dar a sua vida por seu povo era algo novo na terra; e um amor entre seus seguidores, um em relação ao outro, se­melhante em espírito e pronto a fazer o mesmo se necessário, seria igual­mente uma novidade para a qual o mundo olharia, perguntando admira­do de onde teria vindo isso, até por fim perceberem que os homens que amavam tanto tinham estado com Jesus.

A segunda palavra de conforto dita por Jesus aos pequeninos que Ele estava prestes a deixar foi, em seu aspecto geral, uma exortação à fé: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim”, em seu aspecto mais especial uma promessa de que Ele voltaria para levá-los a fim de estarem com Ele para sempre4. A exortação abrange a totalidade dos interesses dos discípulos, seculares e espirituais, tempo­rais e eternos. Seu Mestre que estava prestes a morrer lhes recomenda primeiro que exercitem a fé em Deus, principalmente quanto às ansieda­des temporais. Ele lhes diz, na verdade: “Eu vos deixarei, meus filhos; mas não temais. Não ficareis no mundo como órfãos pobres, indefesos e desamparados; Deus, meu Pai, cuidará de vós; confieis na providência divina, e deixai que a paz reine em vossos corações”. Tendo assim os exortado a exercitarem a fé em Deus, o Supremo Provedor, Jesus em seguida exorta seus filhinhos a crerem nEle mesmo, com referência espe­cial àqueles interesses espirituais e eternos, por amor àquEle a quem haviam seguido, e por quem haviam deixado tudo. E como se Ele lhes dissesse: “Ao crer em Deus por comida e roupas, creiam também em mim, e tenham a certeza de que tudo o que vos disse sobre o Reino e suas alegrias e recompensas é verdade. Em pouco tempo achareis muito difícil crer: vos parecerá como se as promessas que fiz fossem enganosas, e o Reino, um sonho e uma alucinação. Mas não permitam que tais pensamentos sombrios dominem as vossas mentes: lembrai-vos daquilo que sabeis a meu respeito, e perguntai a vós mesmos se seria provável que aquEle, de quem fostes companheiros durante esses anos, vos enganaria com promessas românticas que jamais seriam cumpridas”.

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O Reino e as suas recompensas; essas eram as coisas que Jesus enco­rajava seus seguidores a esperar. Dessas coisas Ele conseqüentemente continuou a falar no estilo que combinava com o caráter que havia assu­mido — isto é, de um pai que está prestes a morrer e se dirige a seus filhos: “Na casa de meu Pai”, disse Ele, “há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito, pois vou preparar-vos lugar”. Esta, em sua forma mais específica, era a segunda palavra de consolação. Que perspectiva jubilosa aguardava os discípulos! No momento de desânimo os filhinhos se sentiriam órfãos, sem um lar na terra ou no céu. Mas seu Amigo lhes garantia que teriam não apenas um lar, mas um lar esplêndi­do; não apenas um abrigo humilde para se protegerem da tempestade, mas um palácio glorioso para residirem, em uma região onde as tempes­tades eram desconhecidas — uma casa com muitos quartos, fornecendo acomodação abundante para todos eles, incomparavelmente mais espa­çosa que o Templo que havia sido o lugar de habitação terrena de Deus. A sua própria morte, que lhes pareceria uma grande calamidade, apenas significaria que Ele iria antes para lhes preparar um lugar naquela es­plêndida mansão, e no tempo certo a sua partida seria seguida por um retorno a fim de levá-los para estarem consigo para sempre5. Ele não explicou o que implicava preparar lugar quando viesse novamente. Ape­nas acrescentou, como se para os persuadir a ter uma visão mais feliz da situação: “Vós sabeis para onde vou e conheceis o caminho”, querendo dizer: Pensem para onde vou, para o Pai, e pensem em minha morte simplesmente como o caminho para lá; e então não deixem que a minha ausência física no mundo vos entristeça, nem que a minha morte pareça algo horrível.

Para o estudioso da teologia do Novo Testamento interessado em identificar as semelhanças e contrastes em diferentes tipos de doutrinas, essa segunda palavra de consolação falada por Cristo aos seus discípulos tem um interesse especial, como contendo substancialmente a idéia de um Precursor, um dos pensamentos admiráveis da Epístola aos Hebreus. O escritor dessa epístola diz aos seus leitores hebreus que Jesus entrou no céu não meramente como um Sumo Sacerdote, mas como um Pre­cursor6, sendo esta uma das novidades e glórias da nova dispensação; porque nenhum sumo sacerdote de Israel entrou no Santo dos Santos

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como um precursor, mas apenas como um substituto, entrando pelo povo em um lugar para onde eles não o poderiam seguir. Jesus, por outro lado, entra no santuário celestial, não apenas por nós, mas antes de nós, entrando em um lugar para onde podemos segui-lo; não um lugar que é protegido, dotado de grades ou trancado para que não tenhamos acesso. Semelhantemente, o quarto evangelista mostra este pensamento ao re­gistrar as palavras de Jesus, que falou como o grande Sumo Sacerdote da humanidade.

Essas palavras do Senhor Jesus, de aspecto cândido, embora pro­fundas, não são apenas alegres, mas também estimulam muito a imagi­nação. As “muitas moradas” sugerem muitos pensamentos. Pensamos com prazer na quantidade de pessoas que a casa multidimensionada é capaz de conter. Podemos também, inofensivamente, embora talvez de modo imaginoso, com os santos de outras épocas, pensar nas habitações na casa do Pai como não apenas grandes em número, mas também de muitos tipos, correspondendo a classes ou classificação dos moradores7. Mas para alguns, o pensamento mais confortador trazido por esta su­gestiva palavra poética é a certeza de uma vida eterna. Para homens que têm duvidado da vida no além, o grande anseio não é a informação detalhada com respeito ao local, o tamanho e a arquitetura da cidade celestial, mas saber com certeza que existe tal cidade, que existe uma casa não feita por mãos, eterna, no céu. Este anseio é saciado por esta palavra de Cristo. Porque sejam como forem estas muitas moradas, elas sugerem ao menos que há um estado de existência feliz a ser atingido pelos cren­tes, uma vez que aquele em quem confiam o atingiu, isto é, através da morte. A vida eterna, sejam quais forem as suas condições, é sem dúvida alguma ensinada aqui. E é ensinada com autoridade. Jesus fala como alguém que conhece profundamente, e não (como Sócrates) como al­guém que meramente tem uma opinião sobre o assunto. Em sua reunião de despedida com seus amigos antes de beber a taça de cicuta, o filósofo de Atenas debateu com eles a questão da imortalidade da alma. Nesta questão ele manteve firmemente a afirmativa, mas ainda apenas como alguém que a via como um ótimo assunto para discussão, e sabia que havia muito a ser dito por ambos os lados. Porém Jesus faz mais do que manter a afirmativa sobre a vida futura. Ele fala sobre ela com uma

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confiança magistral, oferecendo-nos, não um aglomerado de frágeis opi­niões prováveis nas quais podemos perigosamente navegar pela corren­teza da vida em direção à morte, mas o sólido navio da palavra divina, no qual pode-se navegar com segurança, e pelo qual Sócrates e seus compa­nheiros ansiaram8. E Ele fala com um completo senso de responsabilida­de, tomando-a para si. “Se não fosse assim”, disse o Senhor aos seus discípulos, “eu vo-lo teria dito”. Isso é o mesmo que dizer que ninguém deve dar esperanças como Ele as deu, pois só Ele conhece e é o próprio fundamento da vida eterna. Não é suficiente ter uma opinião sobre o mundo vindouro: alguém que assumiu a responsabilidade de pedir que os homens deixassem este mundo presente por amor a Ele, o fez por ter a absoluta certeza de que a vida eterna é uma realidade, não um sonho. Que condescendência pela fraqueza dos discípulos é mostrada nessa re­flexão autojustificatória de seu Senhor! Que ajuda também ela empresta à nossa fé na realidade de uma alegria futura! Porque Jesus Cristo não teria falado desta maneira a menos que possuísse uma informação au­têntica sobre o mundo por vir.

Na terceira palavra de consolação, o pensamento principal é a pro­messa de um outro Consolador, que deveria tomar o lugar daquele que estava partindo, e fazer com que os desalentados se sentissem como se Ele ainda estivesse com eles. Na segunda palavra de conforto Jesus havia dito que iria preparar um lugar para os seus filhinhos, e que então voltaria e os levaria para lá. Nesta terceira e última palavra, Ele virtualmente promete estar presente com eles por meio de um substituto, ainda que esteja ausente. “E eu rogarei ao Pai”, disse Ele, “e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre”9 (não por um período de tempo como foi o caso comigo). Então Ele lhes diz quem é este maravilhoso Consolador: seu nome é Espírito da verdade10. Então, por fim, Ele lhes deu a entender que esse Espírito da verdade seria um Consolador para eles, restaurando a consciência de sua própria presença, e que a vinda desse outro Consolador seria, em certo sentido, o seu próprio retorno espiri­tual. Não vos deixarei desconsolados, Ele lhes assegura ao dizer: “Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós”11. Assim, prometeu não algo dife­rente, mas a mesma coisa que havia prometido anteriormente, em ter­mos diferentes. Ele não explica aqui, de maneira distinta, como o outro

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Consolador faria de si mesmo um alter ego daquele que partia12. Em um estágio subseqüente em seu discurso, Ele informou a seus discípulos como essa maravilha seria realizada. O Espírito tornaria o ausente Jesus novamente presente a eles, trazendo-lhes todas as suas palavras à lem­brança13, testificando dEle14; uma percepção inteligente de toda a verda­de cristã15. Tudo isso, embora não dito aqui, é suficientemente insinuado pelo nome dado ao novo Parácleto. Ele é chamado de Espírito da verda­de, não apenas de Espírito Santo, como em outras passagens, porque Ele deveria consolar iluminando a mente dos discípulos no conhecimento de Cristo, para que o vissem claramente pelos olhos espirituais quando não estivesse mais visível aos olhos físicos.

Essa visão espiritual, quando viesse, deveria ser a consolação efetiva e verdadeira na ausência do Senhor Jesus, a quem os onze haviam conhe­cido em carne. Seria como o amanhecer do dia, que dissipa os temores e os desconfortos da noite. Enquanto a noite durar, todos os confortos não serão nada mais que alívios do desconforto. A mão e a voz de um pai têm um efeito tranqüilizador sobre o temeroso coração de seu filho, quando caminham juntos à noite; mas enquanto a noite durar, o pequenino estará sujeito a se sentir assustado por objetos vistos de for­ma tênue; estes, distorcidos pela imaginação tomada de medo, se tornam formas fantásticas. “Na calada da noite os homens (muito mais as crian­ças) pensam que cada arbusto é um ladrão”; e todos podem se solidari­zar com o sentimento de Rousseau: “E da minha natureza sentir medo da escuridão”. A luz é bem-vinda, mesmo quando apenas nos revela a exata natureza e extensão de nossas misérias. Se neste caso ela não expul­sa a tristeza, ao menos ajuda a torná-la calma e sóbria. Este frio confor­to, porém, não foi o que Jesus prometeu aos seus seguidores. O Espírito da verdade não viria apenas para lhes mostrar a sua desolação em toda a sua nudez, e convencê-los de que tal situação era inevitável, ensinando- os a considerar suas primeiras esperanças como sonhos românticos, o Reino de Deus como um mero ideal e a morte de Jesus como o destino que aguarda cada fervorosa tentativa de realizar esse ideal. Que consolo miserável seria este! Ser informado que toda religião fervorosa deve aca­bar em infidelidade e todo o entusiasmo em desespero!

A terceira palavra de consolação foi apresentada por uma injunção colocada por Jesus aos seus discípulos. “Se me amardes”, Ele lhes disse,

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“guardareis os meus mandamentos”. E provável que aqui Ele quisesse estabelecer a verdadeira maneira de demonstrar amor a alguém despreparado, e seus ouvintes estavam em perigo de passar por tal situa­ção, isto é, de lamentarem a sua perda. Podemos parafrasear as palavras do Senhor para indicar a conexão de pensamento, como a seguir: “Se vocês me amarem, não mostrem o seu amor através uma tristeza vã, mas guardando os meus mandamentos, pelos quais devem me prestar um verdadeiro serviço. Deixem que os preceitos que eu lhes ensinei de tem­pos em tempos seja o seu interesse, e não fiquem perturbados quanto a si mesmos. Deixem o seu futuro em minhas mãos; eu cuidarei dele: por­que eu rogarei ao Pai, e Ele enviará um outro Consolador”16.

Mas esta paráfrase, embora verdadeira em seu alcance, não esgota o significado dessa importante palavra. Jesus prefacia a promessa do Consolador através de uma injunção para guardar os seus mandamentos, porque quer que seus discípulos entendam que o cumprimento da pro­messa e guardar os mandamentos caminhem juntos. Esta verdade é insi­nuada pela preposição “e”, que é a ligação entre o preceito e a promessa; e é reiterada de vários modos na passagem que estamos agora conside­rando. A necessidade de fidelidade moral para a iluminação espiritual é claramente ensinada quando o Consolador prometido é descrito como um Espírito “que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece”17. E ainda mais claramente ensinada no último versículo desta seção: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, este é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele”18. Como em seu primeiro grande sermão (no monte) Jesus havia dito: “Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus”; então, em seu discurso de despedida para os seus, Ele diz, na verdade: Sede puros de coração, e através da habitação do Espírito da verdade vós me vereis, mesmo quando eu me tornar invisível para o mundo19.

A vida e a luz caminham juntas: assim é a doutrina do Senhor Jesus, como a de toda a Escritura. Mantendo em mente esta grande verdade, compreendemos as diversas questões da perplexidade religiosa; em uma, o resultado da iluminação e da fidelidade; em outra, uma fé iluminada e firme. A “iluminação”, que consiste na extinção dos luminares celestiais

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da fé e da esperança, é o castigo por não se guardar fielmente os manda­mentos de Cristo. O que consiste na restauração da luz espiritual depois de um obscurecimento temporário pelas nuvens da dúvida, é a recom­pensa por se manter uma sólida integridade moral quando a fé é obscu- recida, e por temer a Deus enquanto se anda na escuridão. Um homem, por exemplo, que tendo crido por um tempo na divindade de Cristo e na vida futura, acaba crendo que Jesus foi somente um entusiasta iludido, e que o reino divino não passa de um lindo sonho, não será visto como tendo feito nenhum grande esforço para realizar seu próprio ideal, cer­tamente por não ter sido culpado da “loucura” de sofrer por isso. Para muitos, o credo que transforma toda religião em ideais impraticáveis é muito conveniente. Isso poupa um mundo de problemas e dores; isso lhes permite ter pensamentos aparentemente bons, sem exigir que prati­quem ações nobres, e substitui a realidade de se tornarem heróis pelo romantismo de um falso heroísmo.

Seção II — As Perguntas dos Filhos e a D espedidaJoão 13.36-38, 14.5-7, 8-14, 22-31

As perguntas apresentadas sucessivamente por quatro dos filhinhos, a seu pai que está prestes a morrer, chamam agora a nossa atenção.

A primeira delas foi feita pelo discípulo que era sempre o mais preci­pitado em dizer o que pensava — Simão Pedro. A sua pergunta referia-se à insinuação feita por Jesus sobre a sua partida. Pedro havia prestado atenção e ficado alarmado com aquela insinuação. Parecia sugerir um perigo; isso falava claramente de separação. Atormentado pela incerteza, aterrorizado pelo vago pressentimento do perigo oculto, afligido pelo pensamento de ficar separado de seu querido Mestre, ele não podia des­cansar até que tivesse penetrado no mistério; e na primeira pausa do discurso, inquiriu abruptamente: “Senhor, para onde vais? pensando, embora não tenha dito: “Aonde tu fores, irei”.

Foi para este pensamento não expressado que Jesus dirigiu a sua resposta. Ele não disse para onde estava indo; mas, deixando que isso fosse inferido a partir de sua estudada reserva, e do tom de voz com que havia falado, simplesmente disse a Pedro: “Para onde eu vou não podes, agora, seguir-me, mas, depois, me seguirás”. Através dessa resposta, Ele

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mostrou que não havia se esquecido de que era com seus filhos que Ele devia lidar. O Senhor não procurou um comportamento heróico por parte de Pedro e de seus discípulos-irmãos na crise que se aproximava. Na verdade, não espera que se tornem heróis muito em breve e o sigam no caminho do martírio, suportando suas cruzes, de acordo com a lei do discipulado, proclamada por Ele mesmo em conexão com a primeira declaração de sua própria morte. Mas, neste ínterim, espera que seus discípulos se comportem simplesmente como filhinhos, ao fugirem hor­rorizados quando o momento de perigo chegasse.

Enquanto essa era a idéia que Jesus tinha a respeito de Pedro, não era a idéia que Pedro tinha de si mesmo. Ele não pensava em si mesmo como uma criança, mas como um homem crescido. Vagamente perce­bendo o que significava seguir a seu Mestre, ele se julgou perfeitamente competente para a tarefa naquele instante, e se sentiu quase afligido pela pobre opinião nutrida em relação à sua coragem. “Por que não posso seguir-te agora?”, Pedro perguntou em um tom de virtude ferida. E por que há perigo, prisão e morte no caminho? Se isso é tudo, não há nenhu­ma boa razão, porque “por ti darei a minha vida”. Ah, como aquele “por que” foi infantil! E aquela autoconfiança, que marca infalível de fraque­za espiritual!

Se a resposta de Jesus à primeira pergunta de Pedro foi indireta e evasiva, a que Ele deu à segunda era muito clara para que o discípulo se enganasse. Disse o Senhor, tomando as palavras do discípulo: “Tu darás a tua vida por mim? Na verdade, na verdade te digo que não cantará o galo, enquanto me não tiveres negado três vezes”20. Melhor seria que Pedro tivesse ficado satisfeito com a primeira resposta! Não melhor, apenas mais agradável para o momento. Foi bom para Pedro ser assim claramente informado sobre o que seu Senhor pensava a seu respeito, e lhe ser mostrado, de uma vez por todas, o seu próprio retrato desenhado por uma mão exímia. Isso era exatamente o necessário para levá-lo ao autoconhecimento, e para trazer uma crise salutar à sua história espiritual. Ele já havia sido mais de uma vez tratado fielmente pelos defeitos que surgiram de seus vícios característicos de precipitação e autoconfiança. Mas tal correção detalhada não havia produzido uma impressão profun­da, nenhum efeito decisivamente duradouro em sua mente. Ele ainda era

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ignorante em relação a si mesmo, ainda tão precipitado, autoconfiante e rebelde como sempre, como mostrava com muita clareza a declaração que havia acabado de proferir. Portanto, havia a necessidade urgente de uma lição que jamais seria esquecida; uma palavra de correção que fosse impressa de forma inesquecível na memória do errante discípulo, e que geraria frutos por toda a sua vida. E aqui está ela, finalmente, e em boa hora. O Senhor diz a seu corajoso discípulo que ele irá, em seguida, se acovardar; Ele diz a seu inseparável discípulo, para quem a separação de seu Mestre parece ser mais terrível do que a morte, que ele irá, antes que muitas horas se passem, negar qualquer conhecimento ou ligação com aquele a quem ama tão profundamente. Ele lhe diz tudo isso em um momento em que a profecia deve ser seguida por seu cumprimento, qua­se tão instantaneamente quanto um relâmpago é seguido por seu estron­do de trovão. A profecia de Jesus, tão minuciosamente circunstancial, e a negação de Pedro, correspondendo de forma tão exata, são, ambas, tão notáveis, e se aproximam tanto, que certamente se mostram impressio­nantes. E será certamente estranho se as duas, combinadas pela bênção de Deus, em resposta à oração intercessória do Mestre, não fizerem do discípulo caído um outro homem. O resultado, sem dúvida, provará a verdade de uma outra palavra profética relatada por Lucas como tendo sido proferida pelo Senhor ao seu discípulo na mesma ocasião21. O joio será separado do trigo no caráter de Pedro; ele sofrerá uma grande mu­dança de espírito; e sendo convertido da autoconfiança e da rebeldia à mansidão e modéstia, será ajustado a fim de fortalecer outros, para ser um pastor para os fracos e, se necessário, suportar a cruz, e assim seguir o seu Mestre, através da morte, para a glória.

A segunda pergunta veio de Tomé, o discípulo melancólico, lento para crer, e propenso a ter opiniões sombrias a respeito das coisas. A mente desse discípulo agarrou-se à declaração com a qual Jesus concluiu a sua segunda palavra de consolação: “Mesmo vós sabeis para onde vou e conheceis o caminho”. Esta declaração pareceu a Tomé não somente uma inverdade, mas também pouco razoável. Em seu próprio entendi­mento Tomé se considerava completamente inconsciente de possuir o conhecimento pelo qual o autor da declaração tinha dado crédito aos seus ouvintes; e, além disso, ele não via como seria possível para qual­

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quer um deles possuí-lo, porque até então Jesus jamais lhes havia dito claramente para onde estava indo: E não conhecendo o terminus ad quem, como alguém poderia conhecer a estrada que levava para lá? Portanto, em um tom aparentemente seco, trivial, quase cínico, este segundo interlocutor observou: “Senhor, nós não sabemos para onde vais e como podemos saber o caminho?22

Esta declaração era totalmente característica deste homem, como o conhecemos através de um retrato de João23. Enquanto Pedro, de mente prática, pergunta a Jesus para onde Ele está indo, determinado se possí­vel a segui-lo, Tomé não considera um momento válido para fazer uma pergunta dessas. Não que ele esteja desinteressado no assunto. Bem gos­taria de saber para onde seu Senhor está indo; e se fosse possível, estaria tão pronto quanto seu companheiro a fazer-lhe companhia. O perigo não o deteria. Ele havia dito anteriormente: “Vamos nós também, para morrermos com ele”, e poderia dizer a mesma coisa honestamente mais uma vez; porque embora fosse melancólico, entendemos que não era egoísta nem covarde. Mas da mesma forma que na ocasião anterior, quan­do Jesus, desconsiderando os avisos dos discípulos, resolveu ir da Peréia para a Judéia em uma visita a uma família aflita de Betânia, Tomé tomou a visão mais obscura da situação, e considerou a morte como o destino certo que os aguardava a todos, então agora ele se entrega a um estado de espírito desesperançado e melancólico. O pensamento da partida do Mestre o deixa tão triste que ele não tem ânimo para fazer perguntas sobre o porquê e para onde. Ele se entrega à ignorância quanto a estes assuntos como um destino inevitável. Para onde? Para onde? Eu não sei; quem pode dizer? O futuro é sombrio. Onde pode estar, no universo, a casa do Pai de que falaste? Existe mesmo um lugar assim?

Até a pergunta feita por Tomé: “Como podemos saber o caminho?” é mais que uma pergunta; é uma defesa à atitude de não fazer perguntas. Não é uma exigência de informações, mas uma suave reclamação contra Jesus por esperar que seus discípulos estejam informados. Não é uma expressão de desejo por conhecimento, mas uma desculpa pela ignorân­cia. O discípulo melancólico no momento não tem a esperança de saber o destino ou o caminho e, portanto, ele está indiferente e apático. Longe de buscar a luz, ele está, antes, disposto a enxergar a escuridão de uma for­

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ma exagerada. Assim como Jonas em seu estado de espírito irado se entregou às queixas, Tomé, em sua tristeza, se deleita com a melancolia. Ele não aguarda ardentemente o amanhecer do dia; antes, tem prazer na noite, compatível ao seu atual estado de espírito. Homens bons, de tem­peramento melancólico, são, na melhor das hipóteses, como homens andando em meio a lugares sombrios de uma floresta. A tristeza é o sentimento prevalecente em suas almas, e ficam satisfeitos em ter peque­nos vislumbres ocasionais do céu, como lampejos do céu através do teto cheio de folhas da floresta. Mas Tomé está tão deprimido que mal se importa até mesmo em ter um rápido vislumbre do mundo celestial; ele não olha para cima, mas caminha pela floresta escura a passos lentos, com seus olhos fixos no chão.

As tendências à argumentação24 desse discípulo aparecem em suas palavras bem como em sua propensão ao desânimo. Um outro homem em estado desesperador poderia ter dito: Não conhecemos o destino nem o caminho; estamos completamente no escuro tanto em relação ao lugar para o qual você está indo, como por qual estrada você irá para lá. Mas Tomé deve precisar de motivos; o seu hábito mental o leva a repre­sentar um pedaço de ignorância como a conseqüência necessária de um outro: Não conhecemos o terminus ad quem e, portanto, é impossível que saibamos o caminho. Este homem é afligido pelo mal do pensamento; ele dá motivos para tudo, e exigirá motivos para tudo. Aqui ele demons­tra a impossibilidade de um certo tipo de conhecimento; em uma outra crise o encontraremos insistindo em uma demonstração palpável de que o seu Senhor realmente ressuscitou dos mortos.

Como Jesus responde ao discurso lúgubre de Tomé? Com muita compaixão e solidariedade, tanto agora como em outro momento. Para a curiosa pergunta de Pedro, Ele devolveu uma resposta evasiva; para o triste Tomé, por outro lado, Ele se digna a dar uma informação que não foi perguntada. E a informação dada é até mesmo repleta de redundân­cia. O discípulo havia reclamado da ignorância a respeito do destino, e especialmente do caminho, e teria sido uma resposta suficiente ter dito: o Pai é o destino, e Eu sou o caminho. Mas o Mestre, da plenitude de seu coração, disse mais que isso. Com um tom firme e enfático Ele pro­nunciou esta resposta sábia, dirigida não somente aos ouvidos de Tomé,

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mas a todo o mundo: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim”.

Comparando esta importante declaração com a palavra de consola­ção anterior, observamos uma mudança no modo de apresentar a verda­de. O próprio Pai toma o lugar da “casa do Pai” com suas muitas mora­das, como o destino final; e Jesus, em vez de ser o guia que um dia iria conduzir seus filhos para o lar em comum, se torna o caminho. O bondo­so Mestre muda a sua linguagem, de um favor condescendente, para atender aos raciocínios infantis dos seus discípulos. Dos cristãos, o me­lhor que pode ser dito, nas palavras de Paulo, é que agora, nesta vida presente, vêem o celestial e o eterno como que através de um espelho, em enigmas25. Mas os discípulos, nesta crise em sua história, não foram capazes de fazer tanto assim. Jesus mostrou diante de seus olhos o espe­lho nítido e cristalino de uma linda parábola com respeito a uma casa com muitas moradas, e eles não enxergaram nada aí; nenhuma imagem, exceto uma superfície opaca. O futuro permanecia obscuro e oculto como antes. O que então deveria ser feito? Exatamente o que Jesus fez. As pessoas devem ser substituídas por lugares. Os discípulos fracos na fé devem ser dirigidos desta maneira: Vocês não podem compreender para onde eu vou? Pensem, então, naquEle para quem Eu vou. Se vocês não sabem nada sobre o lugar chamado céu, saibam ao menos que têm um Pai ali. E quanto ao caminho para o céu, deixem que eu o seja para vocês. Conhecendo a mim, vocês não precisarão de nenhum outro conheci­mento; crendo em mim, poderão aguardar o futuro, até mesmo a própria morte, sem medo ou preocupação.

Ao olharmos mais estreitamente para a resposta de Jesus a Tomé, não achamos fácil nos satisfazermos com a exatidão com que ela deveria ser explanada. A própria totalidade dessa palavra nos deixa perplexos; é a escuridão com excesso de luz. Os intérpretes divergem quanto à ma­neira como o Caminho, a Verdade, e a Vida devem ser distinguidos, e como eles se relacionam entre si. Um oferece, como uma paráfrase do texto: Eu sou o princípio, o meio, e o fim da escada que conduz ao céu; um outro: Eu sou o exemplo, o professor, o doador da vida eterna; en­quanto um terceiro sujeita os dois últimos atributos ao primeiro, e lê: Eu sou o verdadeiro caminho da vida26. Cada opinião é verdadeira em si,

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embora cada uma hesite em aceitar uma das duas outras como exaurindo o significado das palavras do Salvador.

Seja qual for o método preferido de interpretar essas palavras do nosso Senhor, duas coisas ao menos estão claras nelas. Jesus se apresenta aqui como tudo o que o homem precisa para a salvação eterna, e como o único Salvador. Ele é o caminho, a verdade e a vida, tudo; e somente Ele conduz ao Pai. Na verdade, Ele diz aos homens: “O que vocês querem? E a luz? Eu sou a luz do mundo, a revelação do Pai: porque para este fim eu vim, para que pudesse declará-lo. Ou é a reconciliação que vocês querem? Eu, por esta mesma morte que estou prestes a suportar, sou o Reconciliador. O meu propósito, ao morrer, é aproximar de Deus os que estão longe; conduzi-los a um Pai perdoador e misericordioso. Ou é a vida, espiritual e eterna, que vocês buscam? Creiam em mim, e nunca morrerão; ou se morrerem, eu lhes ressuscitarei para entrarem na heran­ça que é incorruptível, imaculada, e que não desaparece, eterna nos céus. Deixem que todos os que buscam estas coisas olhem para mim. Olhem para mim, para a luz, não para mestres ou filósofos, nem mesmo para a natureza ou a providência. Estas últimas realmente revelam a Deus, mas elas o fazem de uma forma muito fraca. A luz da criação é apenas a luz estelar da teologia, e a luz da providência é apenas o luar, enquanto eu sou a luz do sol. O nome de meu Pai está escrito em hieróglifos nas obras da criação; na providência e na história está escrita com letras simples, mas tão distantes que precisam de muito estudo para juntá-las, e para decifrar o Nome Divino: em mim o Nome Divino está escrito de forma a ser entendido, e a sabedoria de Deus se torna como leite para as crianças27. Olhem para mim também para reconciliação, não para sacri­fícios da lei. Esta forma de se aproximar de Deus é antiquada agora. Eu sou o novo, o vivo, o eterno caminho para o Santo dos santos, através do qual tudo deve se aproximar da presença divina com um coração verda­deiro, em total segurança da fé. Olhem para mim, finalmente, para a bênção eterna. Eu sou aquele que, tendo morrido, deverá ressuscitar e viver para todo o sempre, e que terá em suas mãos as chaves da morte e do inferno, e abrirá o Reino dos céus para todos os crentes”.

A doutrina de que Cristo é a plenitude da graça e da verdade é muito confortante para aqueles que o conhecem; mas e quanto àqueles

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que não o conhecem, ou que possuem apenas um conhecimento implíci­to e inconsciente que mal valoriza o seu nome? A declaração que temos considerado os exclui da possibilidade de salvação? Não. Ela declara que ninguém vai ao Pai senão por Cristo, mas não diz quanto conhecimento é necessário para a salvação28. E possível que alguns sejam salvos por Cristo, e por amor a Ele, embora na verdade conheçam muito pouco a seu respeito. Isso podemos inferir do caso dos próprios discípulos. O que eles sabiam sobre o caminho da salvação naquela época? Jesus se dirige a eles como pessoas que ainda estão na ignorância com relação a si mesmas, dizendo: “Se vós me conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai”. No entanto, Ele não tem nenhuma hesitação em lhes falar como a pessoas que deveriam estar consigo na casa do Pai. E o que diremos de Jó, da mulher siro-fenícia, do eunuco etíope e de Cornélio, e podemos acrescentar — segundo Calvino — o sírio Naamã? Não pode­mos dizer mais do que o grande teólogo de Genebra já disse com relação a tais casos: “Eu confesso” ele escreve, “que de um certo modo a sua fé era implícita, não apenas pela pessoa de Cristo, mas por sua virtude e graça, e pelo ofício a Ele atribuído pelo Pai. Enquanto isso, é certo que estavam imbuídos de princípios que, embora superficiais, traziam-lhes algo de Cristo”29. E duvidoso se tudo isso pode ser aplicável a Naamã, embora Calvino, sem evidências, e meramente para atender às exigências de uma teoria, discuta que teria sido absurdo demais que Eliseu, ao falar de assuntos pequenos, tenha estado em silêncio sobre o tópico mais importante. Ou se conferirmos a Naamã a leve distinção sobre a qual se discute, não devemos também conferi-la ao mártir Justino30, a Zwinglio, a Sócrates, a Platão e a outros, com base no princípio de que todo o conhecimento de Deus, por quem quer que o possuísse e da forma que se obtivesse, quer a luz do sol, da lua ou das estrelas, fosse de fato cristão. Em outras palavras, que Cristo, somente por ser a única luz, seja a luz de todo homem que tenha qualquer luz nele?

Este prmcípio, embora tenha a sua parcela de verdade, pode muito facilmente ser transformado em um argumento contra uma revelação sobrenatural. Como conseqüência de seu primeiro capítulo, O f the Holy Scripture, a Confissão de Westminster amplamente assevera que a luz da natureza e as obras da criação e da providência não são suficientes para

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transmitir o conhecimento de Deus e de sua vontade, que são necessários para a salvação. Enquanto se mantém fortemente esta verdade, porém, devemos ter cuidado para não sermos atraídos para um tom de descrédi­to ao falar daquilo que podemos aprender de Deus a partir daquelas fontes inferiores. Embora andemos na luz do sol, não devemos despre­zar os luminares mais fracos da noite, ou nos esquecer da existência deles, como durante o dia quando os homens se esquecem da lua e das estrelas. Agindo assim estaremos virtualmente desacreditando as própri­as Escrituras, porque muito do que está na Bíblia, especialmente no Antigo Testamento, é apenas um registro do que homens inspirados aprende­ram através da observação das obras de Deus na criação, e de seus cami­nhos na providência. Nem todos podem, na verdade, ver tanto quanto eles viram. Pelo contrário, foi necessária uma revelação não apenas para tornar conhecidas as verdades que residem além dos ensinos da religião natural, mas mesmo para direcionar os olhos obscurecidos dos homens para as verdades que, embora visíveis em natureza, não eram vistas de fato em sua maior parte. A Bíblia, na linguagem curiosa de Calvino, é um par de óculos, no qual nossos olhos fracos vêem a glória de Deus no mundo31. Contudo o que é visto através dos óculos pelos olhos fracos é, em muitas passagens, exatamente o que poderia ser visto por olhos for­tes sem a ajuda destes óculos — “não é colocado nada ali que não seja visível na criação”32.

Estas observações podem nos ajudar a alimentar a esperança por aqueles cujas oportunidades de conhecer aquEle que é “o caminho, a verdade e a vida” são pequenas. Porém elas não justificam aqueles que, tendo facilidade abundante para a conhecer a Cristo, estejam satisfeitos com um mínimo de conhecimento. Há mais esperança para os pagãos do que para tais homens. Nenhum cristão verdadeiro pode pertencer a esse grupo. Um discípulo genuíno pode saber pouco no início: este era o caso até dos próprios apóstolos; mas não deverá sentir-se satisfeito em permanecer no escuro. Deverá desejar ser iluminado no conhecimento de Cristo, e deverá orar do seguinte modo: “Senhor, mostra-nos o Pai”.

Esta foi a oração de Filipe, o terceiro discípulo que participou do diálo­go na mesa da ceia. O pedido de Filipe, como a pergunta de Tomé, era uma negação virtual de uma declaração feita anteriormente por Jesus. “Se vós

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me conhecêsseis a mim”, Jesus havia dito a Filipe, “também conheceríeis a meu Pai”; e então acrescentou, “e já desde agora o conheceis e o tendes visto”. Filipe se sentiu incapaz de homologar esta última declaração. “Visto o Pai! Se fosse assim, nada nos satisfaria mais: Senhor, mostra- nos o Pai, o que nos basta”.

A oração do discípulo, em si, era muito sincera e digna de louvor. Não pode haver aspiração mais elevada do que aquela que busca o co­nhecimento de Deus, o Pai; nenhum indicador melhor de uma mente espiritual do que considerar tal conhecimento o summum bonum; não há nenhum outro sintoma mais esperançoso do alcance supremo do objeti­vo, do que a franqueza que honestamente confessa a ignorância presen­te. Neste aspecto os sentimentos pronunciados por Filipe serviram para satisfazer o seu Mestre. Em outros aspectos, porém, eles não foram tão satisfatórios. O inquiridor ingênuo tinha, evidentemente, uma noção muito incipiente do que significava ver o Pai. Ele imaginou que isso fosse possível, e parece que desejou ver o Pai como então via a Jesus — como um objeto de visão externo para os olhos do corpo. Então, supon­do ser este o seu desejo, sua reflexão foi tola: isso “nos basta”! Que bem poderia fazer a alguém uma mera visão exterior do Pai? E, por fim, essa mesma reflexão mostrou dolorosamente como os discípulos haviam ad­quirido pouco até este ponto do seu relacionamento com Jesus. Haviam estado com Ele durante alguns anos, contudo ainda não tinham encon­trado descanso e satisfação nEle, mas ainda tinham um desejo ardente por algo além dEle; porém já vinham obtendo dEle o que desejavam, sem o saber, desde o princípio.

Tal ignorância e incapacidade espiritual tão tardias eram muito desapontadoras. E Jesus estava desapontado, mas com uma paciência característica, não irritado. Ele não se ofendeu nem com a tolice de Fili­pe, nem com a contradição que este havia trazido à sua própria declara­ção (porque Jesus preferia ser contrariado do que ter discípulos fingindo saber quando não sabiam), mas tentou iluminar um pouco os seus filhi­nhos no conhecimento do Pai. Para este fim Ele deu grande importância à verdade de que o conhecimento do Pai e dEle mesmo, o Filho, era um: de que quem viu o Filho, viu o Pai. Para fixar melhor este princípio na mente de seus ouvintes, Jesus colocou a situação da maneira mais forte

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possível, tratando a ignorância deles quanto ao Pai como uma ignorân­cia em relação a Ele mesmo. “Estou há tanto tempo convosco, e não me tendes conhecido, Filipe?”, Ele perguntou. Então continuou o raciocí­nio, indicando que ser ignorante quanto ao Pai era ser muito mais igno­rante em relação a Ele mesmo, como no caso daqueles que negam a sua divindade. “Não crês tu”, ele novamente perguntou, "que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?” e então prosseguiu a pergunta com refe­rência às coisas que provavam a identidade afirmada — suas palavras e suas ohrasi3. E Ele não parou aqui, mas continuou em seguida falando das provas ainda mais convincentes de sua identidade com o Pai, que pode­ria ser verificada através das maravilhosas obras que deveriam, depois disso, ser realizadas pelos próprios apóstolos em seu nome, e através dos poderes que lhes conferiu em resposta às suas orações34.

A primeira pergunta feita por Jesus a Filipe: “Não me tendes co­nhecido?”, foi mais do que um artifício lógico para fazer os discípulos (naquele momento tão infantis) refletirem sobre o conteúdo que já pos­suíam. Sugeria um fato real. Os discípulos ainda não haviam realmente visto a Jesus, enquanto estiveram com Ele. Eles o conheciam, porém ao mesmo tempo não o conheciam com a profundidade com que deveriam conhecê-lo: não sabiam que sabiam, nem o que sabiam. Eram como crian­ças, que podem repetir o que lhes é ensinado sem entender o seu sentido, ou que possuem um tesouro sem serem capazes de avaliar o seu valor. Eram como homens olhando para um objeto através de um telescópio sem ajustar o foco, ou como um camponês ignorante olhando para o céu em uma noite de inverno, e vendo as estrelas que compõem uma conste­lação, tal como Ursa Maior ou Orion, contudo não a reconhecendo. Os discípulos estavam familiarizados com as palavras, parábolas, discursos, etc., falados e com as obras miraculosas realizadas por seu Mestre, mas conheciam essas coisas apenas como circunstâncias isoladas; os raios de luz separados, emanando da fonte da sabedoria, do poder e do amor divinos em Jesus, nunca haviam sido reunidos em um foco, para formar uma imagem distinta daquele que veio em carne para revelar o Deus invisível. Tinham visto muitas estrelas brilharem no céu espiritual en­quanto estiveram na companhia de Cristo; mas as estrelas ainda não tinham assumido, em seus olhos, o aspecto de constelação. Eles não

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tinham uma concepção espiritual clara, completa e consistente da men­te, do coração e do caráter do homem Jesus Cristo, em quem habitava corporalmente toda a plenitude da divindade. Também não adquiririam tal concepção até que o Espírito da verdade, o Consolador, viesse. A primeira coisa que o Consolador faria por eles seria lhes mostrar a Cris­to; não simplesmente recordar-lhes os detalhes de sua vida, mas mos­trar-lhes a única mente e espírito que habitou em meio aos detalhes, como a alma habita no corpo, e os tornar um todo orgânico, e que uma vez percebido, faria com que se lembrassem de recolher todas as circuns­tâncias isoladas que, no presente, estavam latentes em sua consciência. Quando os apóstolos obtivessem essa concepção, iriam realmente co­nhecer a Cristo, o mesmo Cristo que tinham conhecido antes, contudo diferente; um novo Cristo, em virtude do aumento da compreensão que teriam dEle — visto com os olhos do espírito, e não mais através dos olhos carnais. E quando tivessem visto a Cristo dessa maneira, sentiriam que também tinham visto o Pai. O conhecimento de Cristo iria satisfazê- los, porque nEle deveriam enxergar a face velada da glória do Senhor.

Não poderia ter sido a intenção de Jesus assegurar aos discípulos que já possuíam a visão de Deus, que satisfaz a alma, pois esta seria um bem futuro a ser alcançado depois do advento do Consolador. O Se­nhor também não a imporia a eles por meio de um processo de raciocí­nio. Quando Jesus disse: “Desde agora o conheceis o Pai e o tendes visto”, Ele evidentemente quis dizer: “Vós agora sabeis como vê-lo, isto é, refletindo-o em vosso relacionamento comigo”. E o único objetivo das declarações feitas a Filipe, com relação à íntima ligação entre o Pai e o narrador, evidentemente era imprimir nos discípulos a grande verdade de que a solução para todas as dificuldades religiosas e a satisfação de todos os desejos deveriam ser encontradas no conhecimento de Cristo. “Conheçam a mim”, Jesus diria, “confiem em mim, orem a mim, e tudo irá bem convosco. A vossa mente se encherá de luz e o vosso coração descansará; tereis tudo o que quiserdes; a vossa alegria será completa”.

Esta é uma lição muito importante; mas também significa que, como Filipe e os outros discípulos, todos são lentos para aprender. Quão pou­cos, mesmo dentre aqueles que confessam a divindade de Cristo, vêem nEle o verdadeiro e perfeito Revelador de Deus! Para muitos, Jesus é um

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ser, e Deus é um outro ser bem diferente; embora a verdade de que Jesus é divino seja o tempo todo honestamente reconhecida. Esta grande ver­dade reside na mente como uma semente infrutífera enterrada de modo profundo na terra, e podemos dizer disso o que tem sido falado da doutrina da imortalidade da alma: “Alguém pode crer nisso durante vinte anos, e apenas um ano depois, em algum grande momento, desco­brir com grande espanto os ricos conteúdos dessa crença, o calor desse poço de petróleo”35. Impressões de Deus têm sido recebidas de um lu­gar, impressões de Cristo de outro lugar, e os dois conjuntos de impres­sões ficam lado a lado na mente, porém aparentemente incompatíveis; contudo, ambas são acolhidas. Daí em diante, quando um cristão começa, de forma coerente, a colocar em prática o princípio de que Jesus é Deus, de que conhecer a Jesus é conhecer a Deus, ele está apto a experimentar um conflito doloroso entre uma nova e uma antiga classe de idéias sobre o Ser Divino. Dois deuses — um Deus cristianizado e uma espécie de divindade pagã — lutam pelo lugar de soberania; e quando finalmente o conflito termina com a entronização na mente e no coração do Deus a quem Jesus revelou, a aurora de uma nova vida espiritual raia.

Uma das mais proeminentes idéias em relação à concepção de Deus como revelada por Jesus Cristo é a expressa pelo nome Pai. De acordo com a doutrina de nosso Senhor e Salvador, Deus não será de fato conhecido até que seja considerado e crido sinceramente como um Pai; nem pode um Deus que não é considerado um Pai satisfazer o coração humano. Conse­qüentemente, o próprio modo de Jesus falar a respeito de Deus estava em inteira concordância com a sua doutrina. Ele não falou aos homens sobre a Divindade, ou sobre o Todo-poderoso. Esses epítetos que os filósofos gostam tanto de aplicar ao ser divino, o infinito, o absoluto, etc., nunca passaram por seus lábios. Palavras nunca pronunciadas por Ele poderiam sugerir a idéia de um tirano sombrio e arbitrário, diante de quem a consci­ência culpada de um paganismo supersticioso se curva de medo. Ele fala constantemente de um Pai em sermões, parábolas, oração modelo e con­versa particular. Tais expressões como “o Pai”, “meu Pai”, “vosso Pai” estavam constantemente em seus lábios; e tudo o que Ele ensinou a respei­to de Deus harmonizava-se de maneira perfeita com os sentimentos que essas expressões foram moldadas a suscitar.

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Contudo, apesar de todos os seus planos e a beleza de todas as suas declarações a respeito do Ser a quem nenhum homem jamais viu, teme- se que Jesus tenha tido — na vida de alguns — um êxito parcial no estabe­lecimento da adoração ao Pai. Por ignorância ou preferência, os homens ainda adoram extensivamente a Deus sob outros nomes e categorias. Alguns julgam a designação paternal muito grosseira, e preferem um nome expressivo de conotação mais distante e cerimoniosa. O termo Divindade, ouTodo-poderoso, lhes satisfaz. Os filósofos não gostam da designação Pai, porque esta torna a personalidade de Deus muito proe­minente. Preferem pensar no Não-criado como um Infinito, uma Abs­tração Eterna — um objeto de especulação, em vez de considerá-lo à luz da fé e do amor. Professores de religião de mentalidade legalista têm pavor da palavra Pai. Não têm certeza de terem o direito de usá-la, e consideram mais seguro falar a respeito de Deus em termos gerais como o Juiz, o Criador, o Legislador. Desse modo, por diferentes motivos, o mundano, o instruído e o religioso concordam em permitir que caia em desuso o nome no qual foram batizados, e apenas uma pequena minoria adora ao Pai em espírito e em verdade.

Leitores superficiais do Evangelho podem alimentar a idéia de que o nome Pai, aplicado a Deus por Jesus, é simplesmente, ou principal­mente, uma expressão poética sentimental, cuja perda não seria grande questão para arrependimento. Não poderia haver maior engano. O nome, nos lábios de Cristo, sempre representa um pensamento claro, e nos ensina uma grande verdade. Quando Ele usa o termo para expressar a relação daquEle que é invisível consigo mesmo, nos dá um vislumbre do mistério do Ser Divino, dizendo-nos que Deus é um ser abstrato, como os platônicos e os arianos o concebiam; não os absolutos, incapazes de se relacionar; não um ser impassível, sem sentimentos; mas alguém que eternamente ama, e é amado, em cuja natureza infinita os sentimentos familiares encontram alcance para a ação ininterrupta — um em três: Pai, Filho e Espírito Santo, três pessoas em uma única essência divina. Então, outra vez, quando Ele chama Deus de Pai, em referência à humanidade em geral, como faz repetidamente, proclama a homens mergulhados na ignorância e no pecado esta verdade abençoada: “Deus, meu Pai, tam­bém é o vosso Pai; Ele nutre um sentimento paternal em relação a vós,

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embora sejais tão deteriorados na visão moral que Ele bem poderia não vos conhecer, e tão degenerados que Ele bem poderia sentir vergonha de vos possuir; e eu, seu Filho vim, vosso irmão mais velho, para vos cha­mar de volta para a casa de nosso Pai. Não sois dignos de serdes chama­dos seus filhos, porque deixastes de portar a sua imagem, não prestastes a Ele a obediência e a reverência filiais; no entanto, Ele está disposto a ser um Pai para vós, e vos recebe misericordiosamente em seus braços. Creiais nisso, e vos torneis em coração e conduta filhos de Deus, para que possais desfrutar do benefício pleno, espiritual e eterno do amor paternal de Deus”. Quando, finalmente, o Senhor Jesus chama a Deus de Pai, com uma referência especial aos seus próprios discípulos, lhes garante que são objetos do cuidado constante, terno e eficaz de Deus; que todo o seu poder, sabedoria e amor estão empenhados para a prote­ção, preservação, direção e salvação eterna deles; que seu Pai no céu verá que eles não carecem de nada, e farão todas as coisas ministrarem aos seus interesses, e no final lhes assegurará a sua herança no Remo eterno. “Não temas,” é a sua mensagem confortadora ao seu pequeno rebanho escolhido, “porque a vosso Pai agradou dar-vos o Reino”.

Temos agora que observar a quarta e última pergunta 'dos filhos, que foi feita por Judas, “não o Iscariotes” (este está ocupado com outras coisas), mas o outro discípulo que tem o mesmo nome, também chama­do Lebeu e Tadeu36.

Em sua terceira palavra de consolação, Jesus falou de um reapa­recimento (após a sua partida) especial e exclusivamente para “os seus.” “Ainda um pouco, e o mundo não me verá mais, mas vós me vereis”, disse Ele, isto é, os discípulos o veriam depois de algum tempo. Agora duas perguntas poderiam naturalmente ser feitas com respeito a essa manifestação exclusiva: Como isso seria possível? E qual seria a razão disso? Como Jesus poderia fazer-se visível aos seus discípulos e, contu­do, permanecer invisível a todos os outros? E, havendo esta possibilida­de, por que não mostrar-se ao mundo em geral? Não é fácil decidir qual dessas duas dificuldades Judas tinha em sua mente, pois a sua pergunta poderia ser interpretada de acordo com uma dessas maneiras. Literal­mente traduzida, teria o seguinte sentido: “Senhor, o que aconteceu, para que tu te manifestes a nós, e não ao mundo?” O discípulo poderia

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querer perguntar como Nicodemos, em outras palavras: “Como estas coisas podem ser?” ou ainda poderia querer dizer: “Temos esperado pela vinda do teu Reino em poder e glória, visível aos olhos de todos os homens: o que te levou a mudar teus planos?”

Uma outra possibilidade é que a pergunta de Judas tenha sido fun­damentada em uma má compreensão da natureza da manifestação pro­metida. Ele pode ter imaginado que Jesus fosse reaparecer fisicamente, após a sua partida para o Pai; portanto, para ser visível aos olhos exterio­res, e não a este ou àquele, mas a todos, a menos que se esforçasse para se esconder de alguns enquanto se revelava a outros37. Nem Judas nem ne­nhum de seus irmãos foram capazes, naquele momento, de conceber uma manifestação espiritual, sem falar de encontrar nesse particular uma compensação completa, pela perda da presença física do Senhor. Se ti­vessem compreendido o pensamento de uma presença espiritual, pode­riam não ter tido dificuldade de conciliar a visibilidade a uns com a invisibilidade a outros; pois poderiam ter entendido que a visão poderia ser desfrutada apenas por aqueles que possuíssem o sentido da visão interior.

Como deveria ser respondida uma pergunta ditada pela incapacida­de de compreender o assunto ao qual se referia? Da mesma forma, como você explicaria a uma criança o funcionamento de um telefone? Se seu filho lhe perguntasse: Pai (ou mãe), como é que você pode falar pelo telefone com o tio ou a tia na América, tão longe daqui? Você pensaria em tentar lhe explicar os mistérios da telefonia. Você o levaria a uma central telefônica, mandaria que ele olhasse para o homem realmente encarregado de controlar os equipamentos e lhe diria que enquanto o homem fazia as conexões e discava para o número pedido, um aparelho na casa do tio na América tocava.

Foi dessa forma que Jesus respondeu à pergunta de Judas. Ele não tentou explicar a diferença entre uma manifestação espiritual e uma ma­nifestação física, mas simplesmente disse, na prática: Faça aquilo que você deve fazer, e o que prometi se realizará. “Se um homem me amar, ele guardará as minhas palavras; e meu Pai o amará, e viremos a ele, e faremos nele morada.” E apenas a declaração anterior repetida, de uma forma ligeiramente alterada e mais clara. Nada novo é dito, porque nada

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novo pode ser dito de forma inteligível. A antiga promessa é simples­mente assim posta para chamar a atenção sobre a condição de seu cum­primento. “Se alguém me ama, guardará a minha palavra”; atentem para isso, meus filhos, e o restante acontecerá naturalmente. A Trindade Divi­na — Pai, Filho e Espírito Santo — verdadeiramente habitará com o discí­pulo fiel que, com grande solicitude, temor e tremor, se esforça para observar os meus mandamentos. Para aqueles que não me amam, e não guardam as minhas palavras, e não crêem em mim, é simplesmente im­possível desfrutarem uma companhia tão majestosa. Somente os limpos de coração verão a Deus.

Jesus havia dito agora tudo o que queria dizer a seus discípulos na qualidade de um pai que está prestes a morrer, dirigindo-se a seus filhos entristecidos. Restou agora apenas concluir o discurso, e dar adeus aos seus filhinhos.

Ao se aproximar, Jesus não imagina ter removido todas as dificulda­des e dispersado toda a melancolia da mente de seus discípulos. Pelo contrário, está consciente de que tudo o que disse causou apenas uma leve impressão. No entanto, não dirá mais nada no tocante ao conforto. Em primeiro lugar, não há tempo. Judas e seu grupo, junto com o “prín­cipe deste mundo”, cujos servos são Judas e todos os seus comparsas, podem agora chegar a qualquer momento, e Ele precisa se manter em prontidão para encontrar-se com o inimigo38. Então, em segundo lugar, acrescentar qualquer outra coisa seria inútil. Não é possível tornar as coisas mais claras aos discípulos, no estado atual em que se encontram, com qualquer quantidade de discurso. Portanto, Ele não tenta fazê-lo, mas confia ao Consolador prometido todas as outras explicações39 e passa a pronunciar as palavras de adeus: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou”40 — palavras tocantes em todas as épocas, que afetam, indescritivelmente, as circunstâncias do Narrador e dos ouvintes. Não sabemos com precisão, mas pensamos que elas fizeram mais para con­fortar os filhinhos abatidos do que tudo o que foi dito anteriormente. Há uma ternura e uma música em seu som, além do seu sentido, que são maravilhosamente tranqüilizadoras. Podemos imaginar, decerto, que quando foram pronunciadas, os pobres discípulos foram tomados por um acesso de ternura, e romperam em lágrimas. Isso, contudo, lhes faria

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bem. A dor é curada pelo choro; a solidariedade que derrete o coração ao mesmo tempo o conforta.

Essa despedida tocante e solidária é mais que um bom desejo: é uma promessa — uma promessa feita por aquEle que sabe que a bênção pro­metida está ao alcance daqueles que o buscam. Ê como a palavra alegre falada por Davi a irmãos em aflição: “Espera no Senhor, anima-te, e ele fortalecerá o teu coração; espera, pois, no Senhor”. Davi disse esta pala­vra em um sentido de experiência, assim como Jesus fala aqui. A paz que Ele oferece a seus discípulos é a sua própria paz — “a minha paz”, não apenas uma paz que seria transmitida por “procuração”, mas uma paz que deveria ser experimentada. Ele teve paz no mundo, apesar da tristeza e da tentação. Portanto, pode lhes assegurar que isso é possível através da fé. Eles podem, também, ter paz na mente e no coração em meio à tribulação. O mundo não pode compreender nem dar essa paz; a única paz que o mundo conhece está relacionada à prosperidade, que pode ser tão facilmente destruída pela dificuldade, como um sopro de vento agita a superfície calma do mar. Mas há uma paz que é independente das circunstâncias exteriores, cuja virtude soberana e função abençoada é guardar o coração do temor e da preocupação. Jesus desfrutou esta paz; e Ele a deu a seus discípulos para que entendessem que através da fé e da sinceridade do pensamento eles também poderiam desfrutá-la.

As palavras de despedida não foram apenas uma promessa feita por aquEle que sabe do que fala, mas a promessa daquEle que pode conceder a bênção prometida. Jesus não diz meramente: Tenha bom ânimo; podeis ter a paz, assim como eu tive a paz, apesar da tribulação. Ele diz, além disso, e mais particularmente: Deixo-vos como herança esta paz que tive na terra, como um legado de morte; vo-la concedo como um presente de despedida. A herança de paz é dada aos filhinhos através de um testamen­to, embora, sendo menores, não entrem neste momento na verdadeira pos­se da herança. Quando chegarem à maioridade herdarão a promessa, e se deleitarão com a abundância de paz. A experiência posterior dos discípu­los provou que a promessa que lhes fora feita pelo seu Senhor não foi falsa nem vã. Os apóstolos, como Jesus predisse, encontraram no mundo muita tribulação; mas em meio a tudo, desfrutaram perfeita paz. Confiando no Senhor, e fazendo o bem, não tinham medo nem preocupações. Em tudo,

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pela oração e súplica, com ação de graças, fizeram conhecidos os seus pedidos a Deus; e a paz de Deus, que passaram a entender, guardou, de fato, os seus corações e mentes em Jesus Cristo.

Jesus ainda não havia dito suas últimas palavras aos seus filhinhos. Vendo em seus rostos o sinal de tristeza, apesar de tudo o que havia dito para confortá-los, Ele repentinamente lançou uma observação adicional, que deu a toda a questão de sua partida uma nova direção. Ele vinha lhes dizendo, por meio de discursos de despedida, que embora estivesse partin­do, voltaria para eles pessoalmente, no corpo, no final; porém, até lá, no Espírito. Ele então lhes diz que independentemente de sua volta, a sua partida deveria ser uma ocasião de alegria e não de tristeza, por causa do que isso significava para Ele. “Ouvistes o que eu vos disse: vou e venho para vós”: sem dúvida um conforto extraído da promessa. Mas “se me amásseis, certamente, exultaríeis por ter dito: vou para o Pai”41, esque- cendo-vos de vós mesmos, e pensando que mudança feliz seria para mim. Então acrescentou: “Porque o Pai é maior do que eu”. Entendemos que quando Jesus disse essas palavras, estava pensando em sua morte, mos­trando que como humano estava em uma condição que lhe fazia mo­mentaneamente menor do que o Pai, e por conseguinte estava manifes­tando a idéia de regozijo em sua partida. “Tu estais indo para o Pai”, alguém poderia ter dito — “sim, mas por que caminho!” Jesus responde­ria: O caminho é penoso, e abominável para a carne e o sangue; mas este é o caminho que meu Pai designou, e isso basta para mim, pois o meu Pai é maior do que eu. Interpretando assim as palavras, apenas fazemos com que o Senhor sugira neste ponto que Ele é capaz de suportar o sofrimento e a morte como uma manifestação ao mundo do seu amor pelo Pai, e como um ato de obediência ao seu mandamento.

E agora, finalmente, por palavra e ação, Jesus se esforça para impri­mir em seus filhinhos a realidade solene de sua situação. Primeiro, Ele solicita que observem o que lhes disse a respeito de sua partida para que quando a separação acontecesse, não fossem pegos de surpresa. “Eu vo- lo disse, agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis”42. Então Ele lhes dá a entender que a hora da partida havia chegado. Daqui em diante Ele não falará muito com eles; não haverá oportunidade; porque se aproxima o príncipe deste mundo. Então acres­

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centa palavras que têm o seguinte sentido: “Deixe-o vir; estou pronto para ele. Ele na verdade não tem nada em mim; nenhum direito sobre mim; nenhum poder sobre mim; nenhuma falta de minha parte da qual possa me acusar. No entanto, permito tudo o que acontecerá, para que todos os homens possam ver que amo o Pai, e que sou leal à sua vontade; que estou pronto a morrer pela verdade, pela justiça, pelos injustos”43. E finalmente, com voz firme e resoluta, ordena que todos se levantem dos assentos sobre os quais estavam reclinados, sem dúvida combinando a sua ação com as palavras: “Levantai-vos, vamo-nos daqui”44.

Da continuação do discurso, conforme registrado por João, como também da declaração feita por Ele no início do capítulo 18 de seu Evan­gelho ( “Tendo Jesus dito isso, saiu...”, etc.), inferimos que o grupo, neste ponto, não deixou o cenáculo. Eles apenas assumiram uma nova atitude, mudaram de uma posição provavelmente reclinada, colocando-se então de pé, como em prontidão para sair. Este movimento era, naquelas circuns­tâncias, completamente natural. Isso expressava de forma adequada a dis­posição resoluta de Jesus, e correspondia ao tom alterado com o qual continuou a se dirigir aos seus discípulos. A ação de levantar-se formou, na verdade, a transição da primeira parte de seu discurso para a segunda. Melhor que as palavras poderiam ter feito, isso alterou o estado de pensa­mento, e preparou os discípulos para ouvirem uma linguagem não suave, não gentil, e não familiar como anteriormente, mas severa, grave e veemen­te. Isso acionou a nota tônica, se podemos assim expressá-lo, pela qual o narrador passou do estilo lírico para o heróico. Poderia estar, de fato, dizendo: Vamos colocar um ponto final na linguagem infantil que, se con­tinuasse por mais tempo, iria apenas enfraquecê-los: deixe-me falar-lhes agora por um breve espaço de tempo como homens que precisam desem­penhar um papel importante no mundo. Levantem-se; livrem-se da lan- guidez, e ouçam enquanto pronuncio palavras que têm a finalidade de lhes inflamar com entusiasmo, lhes inspirar com coragem, e lhes imprimir um senso de responsabilidade e honra ligado à sua futura posição.

Assim compreendendo o levantar da mesa, devemos estar prepara­dos para ouvir juntamente com os discípulos, e entrarmos no estudo da porção restante do discurso de despedida de Cristo, sem qualquer senti­mento de precipitação.

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4 40 O Treinamento dos Doze

1 Nossos leitores encontrarão no final do capítulo 26 desta obra uma análise dos conteúdos do discurso de despedida e da oração intercessória registrada em João 13.31-38, e capítulos 14 a 17, os quais, embora colocados no final de nossa exposição, podem talvez ser consultados aqui de uma forma proveitosa. Fomos levados a preparar esta tabela em parte por conta da extensão da exposição, que é propensa a desviar a atenção das divisões naturais do assunto, e em parte para evitar a impressão de adequação à situação. Esta atitude tem como meta reproduzir esta parte do registro de João, de uma maneira tão forte quanto possível. Porém também desejamos observar o quanto da crítica sobre este discurso de despedida — criado para mostrar que não é um registro histórico tanto quanto uma redação livre — parece surgir de uma inspiração deficiente em relação à sua importância. Tivemos ocasião de notar isso mesmo em escritores que admitem a autoria de João, e reconhecem a logia do nosso Senhor como as origens de todas as expansões livres de João; como, por exemplo, Dr. Sanday em sua elaborada obra Authorship and Historical Character o f the Fourth Gospel. Admitindo a legitimidade da opinião desse escritor quanto aos discursos joaninos no campo abstrato, entendemos que ele falhou por não enxergar aparte interior dos discursos, e muito especialmente no discurso de despedida, no qual olhou muito para a superfície, e assim fez críticas, que não teria feito se tivesse olhado mais abaixo da superfície. Nos parece intrinsecamente possível que Jesus tenha dito palavras de conforto aos seus discípulos tais como estão consideradas na Seção I deste capítulo; palavras de exortação, advertência e encorajamento, respeitando sua obra como apóstolos, tal como encontramos em João 15 ,16; e palavras de oração por homens que tanto dependiam dele. As perguntas dos filhos, consideradas na Seção II deste capítulo, parecem surgir naturalmente das palavras ditas anteriormente por Jesus, e as respostas a eles devem ser mantidas separadas do que Jesus queria dizer, independentemente de interrupções.

2 João 13.31, 32. As palavras ei ho Theos edoxasthê en autõ são consideradas espúrias por Luthardt e outros críticos.3 Sanday, Authorship and Historical Character o f the Fourth Gospel, p. 219, diz: “Versículos 34, 35 (o mandatum) apare­

cem curiosamente como um parêntesis”! Este é o primeiro exemplo dentre vários no qual este autor parece mostrar um desejo de inspiração na estrutura do último discurso em sua relação às circunstâncias sérias de narrador e ouvintes. O mandatum certamente merecia o primeiro lugar entre as palavras de consolação para a família consterna­da.

4 João I4 .I . O verbo pisteuete em uma das frases pode ser imperativo ou indicativo, e são possíveis quatro traduções diferentes. A tradução na versão inglesa e a tradução dada acima levam particularmente à mesma conclu­são. Mesmo no indicativo, “credes em Deus”, um imperativo está implícito: “Exercite e extraia o conforto de sua fé em Deus”.

5 As palavras do versículo 3 são o equivalente joanino para a promessa da segunda vinda para estabelecer o Reino em glória, e para fazer com que os discípulos sejam participantes da glória. Isso forma uma característica conspícua na representação sinóptica dos ensinos de Cristo. Elas são similares, em importância, às palavras relata­das em Lucas como faladas por Jesus na mesma noite:

“E vós sois os que tendes permanecido comigo nas minhas tentações. E eu vos destino o Reino, como meu Pai mo destinou, para que comais e bebais à minha mesa no meu Reino e vos assenteis sobre tronos, julgando as doze tribos de Israel”. A escatologia, e geralmente a doutrina do Reino, se retiram para o pano de fundo no Evangelho de João. A idéia de um reino divino não é, na verdade, totalmente desejada; encontramo-la em João 3.3; 18.36, e na inscrição na cruz: “Jesus Nazareno, Rei dos judeus”. O equivalente joanino para a idéia do Reino é a vida eterna, um conceito encontrado nos Evangelhos Sinópticos (M t 16.25; 19.17; 19.29; 25.46), porém menos proeminente ali do que a idéia do Reino em João. A relação entre as duas idéias é esta: uma, a idéia do Reino, considera o homem como um membro da sociedade; a outra, a idéia da vida eterna, considera o homem como um indivíduo. A primeira denota o mais elevado bem como a posse conjunta de todos os seus cidadãos; a segunda, como a posse separada de cada alma individual. A retirada da idéia do Reino, com todo o colorido sensível com o qual ela é pintada nas narrativas sinópticas, pode ser atribuída à origem tardia do quarto Evangelho no final do primeiro século, quando a destruição de Jerusalém e a divulgação do evangelho entre os gentios colocaram para trás o velho apóstolo como um fato histórico. Se fosse pedido, será que Jesus poderia falar do mesmo assunto, na mesma ocasião, de um modo tão diferente quanto o representado em João 14.2,3 e Lucas 22.28,30? Podemos responder fazendo outra pergunta: Será que Jesus poderia falar aos mesmos ouvintes, na mesma ocasião, de modo tão diferente, como representado em João 14 e 15? O ponto de vista que se altera envolve uma mudança de estilo. A casa de muitas moradas e os tronos são ambos figuras ou parábolas, e ambos podem ocorrer em uma conversa ou discurso.

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6 A razão é perdida na A.V em inglês pelo uso do artigo. A R .V a expressa com precisão. Veja a sua versão de Hebreus 6.20.

7 Para conhecer a opinião de Cipriano, veja o capítulo 16 desta obra. A mesma idéia ocorre em Irineu, Haeres. 5. 36. Não há dúvida de que há uma verdade nesta opinião. Pensamos que haverá cristãos de várias classes no céu — príncipes e porteiros; também de várias escolas como por exemplo aquelas que são conhecidas como Igreja Alta, Igreja Ampla e Igreja Baixa, sendo capazes de finalmente acreditar que os oufros são cristãos.

8 Phaedo. cap. 35: “Alguém deve fazer uma de duas coisas (em referência à pergunta sobre uma condição futura): aprender como o caso se posiciona — descobrir; ou se estas coisas forem impossíveis, tomar o melhor e o mínimo facilmente refutado das opiniões humanas, e embarcando nela como em uma balsa ( schedias), navegar perigosamente pela vida; a menos que alguém pudesse mais seguramente e menos perigosamente navegar em um navio mais sólido ou em alguma palavra divina Qogou theiou twos')”..

9 João 14.1610 Versículo 1711 Versículo 1812 A identidade da doutrina do Espírito no discurso de despedida de Paulo pode ser notada. Nos escritos de

Paulo o Espírito também é o alter ego de Cristo. Ele declara por duas vezes que o Senhor é o Espírito: 2 Co 3.17, 18.13 Versículo 2614 João 15.2615 João 16.13, 1416 As palavras de Germânico, ao se aproximar da morte (em Antioquia, 19 d.C,: supostamente envenenado por

ordem de Tibério), dirigidas a seus amigos, vêm à memória aqui: “Non hoc praecipuum amicorum munus est, prosequi dfunctum ignavo quaestu: sed quae voluerit meminisse, quae mandaverit exsequi: flebunt Germanicum etiam ignoti: Vindicabitis vos, si me potius quartfortunam meamfovebatis”. —Taciti Annal. 2 .71 .

17 João 14.1718 João 14.2119 João 14.19. Sanday (na obra Fourth Gospel, p. 230) díz que a conexão no capítulo 14.12-17, embora difícil, é

real, mas pensa que dificilmente há um lugar nesta conexão para o versículo 15: “Se me amardes”, etc. Ele impediu a si mesmo de ver a sua relevância tratando o capítulo 14.12-17 como uma série contínua de pensamento, em vez de encontrar no versículo 15 o in í c io d e um n o v o p en sa m en to independente, a segunda das três palavras de conso­lação. Uma outra crítica errada desse autor no último discurso pode ser aludida aqui. Ele reclama que os diferentes assuntos não são mantidos separados, mas estão continuamente cruzando-se e emaranhando-se, assuntos posterio­res sendo antecipados no curso dos anteriores, e os anteriores retornando aos posteriores. Como uma ilustração disso, ele se refere à descrição das funções do Paracleto, o que considera desnecessariamente dividido em cinco fragmentos (capítulos 14.16, 17, 25, 26; 15.26; 16.8-16, 23-25). O fato é indubitável; mas em vez de ir contra a precisão histórica do registro de João, é melhor defendê-lo. Se o discurso de despedida fosse uma redação didática, principalmente o produto da mente do autor, a doutrina do Paracleto provavelmente teria sido transmitida em um parágrafo contínuo. Mas em uma conversa familiar, tal como o discurso é feito, tais referências ocasionais e frag­mentadas ao Consolador devem ser esperadas. A única questão que pode ser corretamente levantada é a seguinte: Aquilo que é dito em cada passagem está de acordo com a linha de pensamento? Acreditamos que a nossa exposição irá satisfazer os nossos leitores nesse ponto. Certamente, se a nossa opinião sobre o discurso — dividida em duas partes, quando Jesus se dirige aos discípulos primeiro como filhos, depois como seus futuros representantes — estiver certa, as referências ao Consolador deveriam certamente ser feitas em ambas as partes: na primeira, ao Consolador, como estando no lugar do ausente Chefe da família; na segunda, ao mesmo Consolador, como o iluminador e companheiro dos apóstolos.

20 Muito substancial nos Evangelhos sinópticos (M t 26.33-35; Mc 14.30; Lc 22.34). A harmonia deste assunto é difícil. Alguns supõem duas alusões à negação de Pedro, uma no cenáculo, e uma segunda vez a caminho do Getsêmani. Veja a obra de Stier, que sustenta essa opinião.

21 Lucas 22.3122 João 14.523 João 11.16; 20.24-2924 Sobre o chamado “Racionalismo de Tomé”, veja a seção 3 do capítulo 28.

en ainigmati, I Co 13.12.26 Luther, Grotius, Augustine, citados em Lange, Bibelwerk, das Evang. Johan.27 Verbum caro factum est, ut infantiae nostrae lactesceret sapientia tua, per quam creasti omnia. — August. Conf. 7. 18. A idéia de

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que Cristo se tornou homem para ser o Revelador de Deus é muito proeminente no tratado de Atanásio, peri tes enanthrõpêseõs tou logou.

28 A doutrina da Confissão de Westminster é ambígua neste ponto. Suas palavras são: “Muito menos podem os homens, não professando a religião cristã, serem salvos de qualquer outra forma, sejam eles muito zelosos e estruturando suas vidas de acordo com a luz da natureza, e na lei desta religião que professam”. Esta afirmação pode significar que as pessoas em questão absolutamente não podem ser salvas — a nao-profissão da religião cristã excluindo-os de serem salvos no caminho verdadeiro, e todos os outros caminhos não estando disponíveis; ou que eles não podem ser salvos de nenhuma outra maneira: se salvos, deve ser a despeito dos outros supostos caminhos, e através do único caminho verdadeiro — Cristo. A afirmação no primeiro capítulo da obra The Holy Scripture, parece fazer o equilíbrio pender para a primeira opinião. Neste capítulo, a insuficiência da luz da natureza para dar o conhecimento de Deus que é necessário para a salvação é afirmada, e a afirmação é feita sobre a base da doutrina da revelação. A afirmação mais forte de todas consta no Larger Catechism, Q. 60, que parece afirmar positivamente que aqueles que não ouviram o evangelho não podem ser salvos.

29 Calv. Inst. 3.2.32.30 Christõ de tõ kai hupo Sõkratou aro merousgnõstkentí (Jogos gar In) kai estin ho en panti on) — Apol. 2 .10; assim também Apol.

I. 5. As antecipações do pensamento cristão em Platão e em Eurípedes são familiares aos estudiosos. A seguinte opinião sobre a salvação dos gentios de Richard Baxter merece nota: “Não estou muito inclinado como uma vez estive a proferir uma sentença peremptória de condenação eterna sobre todos os que nunca ouviram falar de Cristo, pois hoje tenho mais razões do que anteriormente para pensar que o modo como Deus lida com este assunto é absolutamente desconhecido por nós” — Reliquiae Baxterianae, lib. I. parte I. Nesta obra o autor compara suas opiniões religiosas anteriores e posteriores.

31 Sicuti senes vel lippi, et quicunque oculis caligant si velpulcherrimum volumen illis objicias quamvis agnoscant esse aliquid scriptum} vix tamen duas voces contexere poterunt; specillis autem interpositis adjuti distincte legere incipient: ita Scriptura confusam alioqui Dei notitiam in mentihus nostris colligens} discussa caligine liquido nobis verum Deum ostendit. - Inst. I. 6. I.

32 Nihil tamen illic (Si 145} etc.) ponitur quod non liceat in creaturis contemplari — Calv. Inst. I. 10. 2.33 João 14.10, I I34 Versículos 12-143;> Jean Paul Richter, Siebenkas, Erstes Blumenstück.36 Veja o capítulo 4 deste livro.37 Luthardt (Das Johan. Evang. 2 .213) argumenta que há o sentido de uma manifestação corpórea (por ocasião do

fim do mundo), e argumenta de modo tênue que se o sentido fosse de apenas uma presença espiritual Jesus teria dito en autõ em vez de par1 autõ no versículo 23. O termo Para está de acordo com o estilo parabólico de discurso; en seria uma interpretação dessa figura de linguagem.

38 João 14.30,3139 Versículos 25, 2640 Versículo 2741 João 14.2842 Versículo 2943 João 14.30, 3144 Versículo 31

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25Orientação aos Futuros Apóstolos

antes da Morte do SenhorSeçao I — A Videira e seus Ramos

João I5 .I -I5

O tema do discurso nestes capítulos é a futura obra dos apóstolos — sua natureza, honras, dificuldades e alegrias. Muito do que é dito a esse respeito se aplica aos cristãos em geral, mas a referência em primeiro lugar é, sem dúvida alguma, aos onze que estavam presentes naquela ocasião; e somente mantendo isso em mente é que podemos ter uma idéia clara da importância do discurso como um todo.

A primeira parte das recomendações aos futuros apóstolos tem como objetivo fazê-los entender que têm uma grande obra diante de si1. A idéia fundamental dessa passagem pode ser encontrada nas palavras: “Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós, e vos nomeei, para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça”2. Jesus queria que os seus escolhidos entendessem que quando Ele deixasse a terra esperaria muito deles, e não que apenas não desanimassem, Eles deveriam ser gran­des protagonistas no mundo, e deixar sua marca permanentemente na história: deveriam, na verdade, assumir o seu lugar, permanecer firmes nEle e continuar a obra que Ele havia começado, em seu nome, e com a sua ajuda.

Para colocar essas obrigações de uma forma clara diante da mente de seus discípulos, Jesus fez uso de uma linda ilustração a partir da figueira, introduzindo-a bem no início de seu discurso. “Eu sou a videi­ra verdadeira”; este é o tema que na seqüência é desenvolvido com con­siderável riqueza de detalhes — a figura e a interpretação são livremente

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mescladas na exposição. Uma pergunta que tem sido freqüentemente feita é a seguinte: O que levou Jesus a adotar este símbolo em particular como o veículo de seus pensamentos? Muitos têm se arriscado a tentar oferecer respostas conjunturais a esta questão. Porém, em virtude da falta de informação na narrativa, devemos nos sentir satisfeitos por con­tinuar na ignorância em relação a este ponto, sem tentar fornecer a liga­ção perdida dessa associação das idéias. Esta não é uma grande dificul­dade; porque, afinal, qual é a importância de se conhecer com precisão a maneira como uma metáfora é sugerida (algo que — exceto no caso de Jesus — até mesmo a pessoa que emprega a metáfora freqüentemente desconhece), contanto que ela seja, em si mesma, apta para o propósito ao qual é aplicada? Sobre a conveniência e adequação da metáfora aqui aplicada, não pode haver nenhuma dúvida na mente daqueles que aten­tamente consideram o uso apropriado que o narrador dela fez3.

Voltando a nossa atenção, então, ao discurso de Jesus em seu pró­prio texto escolhido, não podemos deixar de ficar impressionados com a maneira como Ele se apressa sem demora a falar do fruto. Poderíamos esperar que, ao introduzir a figura da videira, Ele fosse em primeiro lugar se expressar completamente nos termos da figura, e de acordo com o caso. Após ouvir as palavras: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o lavrador”, esperamos ouvir algo como: “e vós, meus discípulos, são os ramos, através dos quais a videira produz os seus frutos”. Isto, porém, não é dito aqui; mas o autor da declaração passa imediatamente a dizer a seus ouvintes como os ramos (dos quais nenhuma menção foi feita) são tratados pelo Lavrador divino; como os ramos infrutíferos, por um lado, são cortados, enquanto os ramos frutíferos são podados para que possam se tornar ainda mais produtivos4. Isto mostra os pensamentos predominantes na mente de Jesus. O desejo de seu coração é que seus discípulos possam ser espiritualmente frutíferos. E como se o Senhor estivesse exclamando: “Frutifiquem, frutifiquem, meus discípulos; vocês serão inúteis a menos que produzam frutos: meu Pai e eu desejamos frutos; e o nosso trato com vocês, em sua totalidade, será regulado pelo expresso propósito de aumentar a fertilidade de cada um”.

Embora insistente em sua exigência por 'frutos, observamos que em nenhuma parte deste discurso sobre a videira Jesus indica no que consis­

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te este fruto esperado. Porém, quando consideramos com quem Ele está falando, não podemos ter nenhuma dúvida quanto ao que Ele deseja dizer. O fruto que Ele deseja é que o evangelho seja propagado, e que os discípulos contribuam para o aumento das almas no Reino de Deus, cumprindo deste modo a sua vocação apostólica. A santidade pessoal não é negligenciada; mas é exigida preferivelmente como um meio de se favorecer a fertilidade, e não como um fruto em si. A santidade é a limpeza do ramo que leva ao aumento da fertilidade.

Parece ser melhor considerar a próxima frase (“Vós já estais limpos pela palavra que vos tenho falado”5) como um parêntesis, no qual por um momento a figura da videira é perdida de vista. A menção dos ramos que quando improdutivos são cortados traz à memória do Senhor o caso de alguém que já havia sido cortado — o falso discípulo Judas — e o leva, naturalmente, a garantir aos onze que espera coisas melhores de cada um deles. O processo de extirpação já havia sido empregado entre eles em uma ocasião: portanto não deveriam se sentir orgulhosos, mas temer. No entanto, por outro lado, o Senhor havia dito anteriormente, em relação à lavagem dos pés, que eles estavam limpos, com uma exce­ção; então agora Ele diria que eles estavam todos limpos, sem exceção, pela palavra que lhes havia falado. Como ramos, os discípulos poderiam precisar ser podados, mas não haveria ocasião para cortes.

Tendo declarado fortemente que era indispensável produzirem fru­tos a fim de continuarem ligados à videira, o Senhor Jesus passou em seguida a apresentar as condições da fertilidade, e (o que deveríamos ter esperado desde o início do discurso) a relação subsistente entre Ele mes­mo e os seus discípulos. “Eu sou a videira”, disse Ele, “vós as varas”6. Através dessa declaração, Ele explica por que é tão urgente que os seus discípulos sejam frutíferos. A razão é que eles são o meio através do qual Ele mesmo produz frutos; os discípulos estão para o Senhor, assim como os ramos estão para a videira. A sua própria obra pessoal tinha sido escolhê-los e treiná-los — para enchê-los, por assim dizer, com a seiva da verdade divina; e o trabalho deles agora era transformar esta seiva em uvas. O Pai que está no céu, enviando o seu Filho ao mundo, plantou-o na terra como uma videira nova e espiritual; e Ele havia produzido os onze como seus ramos. Agora, o seu ministério pessoal estava se findan­

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do; e ficava para os ramos a incumbência de dar prosseguimento à obra até a sua consumação natural, e apresentar uma colheita de frutos, na forma de uma igreja de homens e mulheres salvos que crêem em seu nome. Se eles falhassem em fazer isso, todo o trabalho do Senhor seria em vão.

Voltando-nos agora para as condições da fertilidade, encontramos Jesus expressando-as nos seguintes termos: “Estai em mim, e eu, em vós”7. Essas palavras apontam para a dependência que os discípulos têm de seu Senhor, sob duas formas que, com a ajuda da analogia de uma árvore e seus ramos, se torna fácil de distinguir. O ramo permanece na videira estruturalmente; e a videira permanece no ramo vitalmente, através de sua seiva. Essas duas conexões são necessárias para produzir fruto. A menos que o ramo esteja organicamente ligado ao caule, a seiva que corre para produzir o fruto não pode passar por ele. Por outro lado, embora o ramo esteja ligado organicamente ao caule, se a seiva do caule não subir por este (um caso que é possível e comum no mundo natural), ele deverá permane­cer tão estéril quanto se fosse arrancado e caísse no chão.

Tudo isso é claro; mas quando perguntamos o que as duas conexões significam em relação à videira espiritual, a resposta já não é assim tão fácil. A tendência aqui é fundir as duas em uma, e tornar a distinção entre elas meramente nominal. A melhor maneira de se chegar à verdade é ficar o mais próximo possível da analogia natural. O que, então, seria dito mais apropriadamente em correspondência à ligação estrutural do ramo com a árvore? Respondemos, permanecendo na doutrina de Cris­to, na doutrina que Ele ensinou; e reconhecendo-o como a fonte de onde ela foi aprendida. Em outras palavras: “Permanecei em mim” sig­nifica “detenham e professem a verdade que eu vos ensinei, e apresen­tem-se simplesmente como testemunhas”. A outra ligação, por outro lado, significa a habitação do Espírito de Jesus Cristo no coração daque­les que crêem. Jesus dá a entender a seus discípulos que, enquanto per­manecerem em sua doutrina, terão o seu Espírito habitando neles, e que devem não apenas reter firmemente a verdade, mas serem cheios do Es­pírito da verdade.

Assim diferenciadas, as duas ligações não apenas são diferentes em conceito, mas separáveis de fato. Por um lado, pode haver uma ortodoxia

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cristã na letra onde há pouca ou nenhuma vida espiritual; e, por outro, pode haver uma certa espécie de vitalidade espiritual, uma grande moral e de certa forma uma sinceridade muito cristã, acompanhada por um sério abandono da fé. Um pode ser equiparado a um ramo morto em uma árvore viva, branqueada, sem casca, musgosa, e, mesmo no verão, sem folhas, que se estende como um braço seco do tronco no qual está inserido, e com o qual ainda mantém uma ligação estrutural orgânica. O outro é um ramo cortado da árvore pelo orgulho ou pela obstinação, cheio da seiva da árvore, e coberto com a folhagem no momento da extirpação. Pode-se imaginar por que ele não murchou imediatamente, sendo capaz de viver, crescer e florescer de um modo totalmente inde­pendente da árvore. As coisas não foram assim desde que o cristianismo começou? Infelizmente, foi sempre assim! Na grande floresta da igreja, muitas ortodoxias mortas sempre foram visíveis; e quanto aos ramos que se mantém por si mesmos, seu nome é legião.

As duas ligações que vimos não são apenas separáveis, mas encon- tram-se freqüentemente separadas, e não podem ser separadas sem que haja efeitos fatais. O resultado está sempre no final para ilustrar a verda­de das palavras de Cristo: “Porque sem mim nada podereis fazer”8. A ortodoxia morta é notoriamente impotente. Mostrando-se fraca, tími­da, apática, relutante a qualquer coisa árdua, heróica, na melhor das hi­póteses viva em pensamento ou conduta, torna-se finalmente desprovida de sinceridade e desmoralizante: como o sal sem sabor, que serve apenas para ser lançado fora; madeira inútil da videira, boa para nada, exceto para combustível, e que não vale muito sequer para este propósito. As heresias, por não estarem de acordo com a doutrina de Cristo, são igual­mente inúteis. A princípio, na verdade, elas possuem uma vitalidade efêmera e espúria, e fazem um pouco de barulho no mundo; mas pouco a pouco suas folhas começam a murchar, e não produzem nenhum fruto permanente.

O conceito de um ramo morto, aplicado a indivíduos, de uma for­ma diferente das igrejas ou do mundo religioso visto coletivamente, apre­senta dificuldades. Um ramo morto em uma árvore nem sempre esteve morto: ele foi produzido pela força vital da árvore, e teve um pouco da vida da árvore em si. A analogia entre os ramos naturais e espirituais se

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sustenta neste ponto? Não em qualquer sentido, como acreditamos, o que comprometeria a doutrina da perseverança na graça, que foi clara­mente ensinada nas palavras de nosso Senhor. Ao mesmo tempo, não pode ser negado que existe algo como uma experiência religiosa abortiva. Existem flores na árvore da vida que são atacadas pela geada, frutos verdes que caem antes de amadurecer, ramos que se tornam fracos e morrem. Jonathan Edwards, um calvinista convicto, mas também um observador franco e perspicaz dos fatos, comenta: “Não posso dizer que a maior parte dos supostos convertidos dê motivo, por sua conversa, para se supor que sejam verdadeiros convertidos. A proporção talvez possa ser melhor representada pela proporção dos botões em uma árvo­re que subsistem e chegam a amadurecer em frutos, ao número total de flores na primavera”9. A permanência de muitos botões espirituais é negada aqui, mas a própria negação sugere uma admissão de que eram botões.

Que alguns ramos se tornariam infrutíferos, e até mesmo morre­riam, enquanto outros iriam florescer e produzir fruto, é um grande mistério, cuja explicação é mais profunda do que os teólogos da escola arminiana estão dispostos a admitir. Contudo, embora isso seja verda­deiro, não se pode insistir com seriedade na atribuição da responsabili­dade, ao homem, de seu próprio caráter espiritual. Embora o Pai, como lavrador, maneje a podadeira, o processo de limpeza não pode ter conti­nuidade sem o nosso consentimento e cooperação. Pois este processo significa, praticamente, a remoção dos impedimentos morais visando a favorecer a vida e o crescimento — os cuidados da vida, a influência insidiosa da riqueza, a concupiscência da carne e as paixões da alma — males que não podem ser vencidos a menos que a nossa vontade e todos os nossos poderes morais venham a frutificar contra estes. Portanto, Jesus coloca sobre os seus discípulos o dever de permanecer nele, e de tê- lo permanecendo neles, e resolve toda a questão em termos simples, ensinando que devem guardar os seus mandamentos10. Se fizerem a sua parte com diligência e fidelidade, o Lavrador divino lhes assegura que não falhará em lhes dar generosamente todas as coisas necessárias para a mais abundante fertilidade. “Pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito”11.

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O destino dos ramos que não correspondem a nenhuma das duas possíveis maneiras é claramente declarado por Jesus. O destino do ramo que, estando estruturalmente nele, não produz fruto por estar absoluta­mente morto e seco, ou por estar afligido com um mau hábito que o torna estéril, é ser removido — ser judicialmente separado da árvore12. O destino do ramo que não permanecerá na videira não é ser cortado — porque ele mesmo o faz — mas ser lançado fora da vinha, para ali per­manecer até murchar, e, por fim, em um momento conveniente, ser reu­nido aos seus irmãos obstinados e errantes, em um monte, e queimado em uma fo gueira ao ar livre como os restos secos de um jardim13.

Na parte final do discurso sobre a videira14, Jesus expressa suas altas expectativas em relação à fertilidade dos ramos apostólicos, e sugere uma variedade de considerações que, agindo na mente dos discípulos como motivos, podem levar à realização de suas esperanças. Primeiro, Ele deu a entender aos discípulos que esperava deles não apenas frutos, mas muitos frutos15, e frutos não apenas abundantes em quantidade, mas bons em qualidade16, frutos que deveriam permanecer, uvas cujo suco deveria ser digno de preservação, como vinho em garrafas; uma igreja que deveria permanecer até o fim do mundo.

Esses dois requisitos, considerados juntamente, constituem uma ele­vada exigência. E realmente muito difícil gerar, simultaneamente, frutos abundantes e resistentes. Até certo ponto os dois requisitos limitam um ao outro. A ênfase na alta qualidade leva a uma excessiva diminuição dos grupos, enquanto a ênfase na quantidade pode facilmente levar à deterio­ração da qualidade do todo. E necessário estudar como se pode assegu­rar tanto uma grande quantidade de frutos quanto uma permanência consistente; e, por outro lado, cultivar a excelência de um modo consis­tente com o objetivo de se obter uma colheita justa que venha a compen­sar o trabalho e os gastos. Esta é, por assim dizer, a teoria ideal da cultu­ra da vinha; mas, na prática, devemos nos sentir satisfeitos com algo menor do que a realização perfeita da nossa teoria. Não podemos, por exemplo, insistir rigorosamente que todos os frutos devam permanecer. Muitos frutos do trabalho cristão são apenas meios transitórios para se gerar outros frutos de natureza permanente; e se satisfizermos a lei de Cristo no que se refere a produzir muitos frutos, alguns deles permanece-

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rão, e teremos feito o bem. A porção permanente do trabalho de um homem será pequena em relação ao total. Ela poderá ser, no máximo, apenas uma proporção do total, como a relação entre o suco de uva e as uvas que foram prensadas para que este fosse feito. Um pequeno barril de vinho representa uma quantidade muito maior de uvas; e do mesmo modo o resultado perene de uma vida cristã é muito insignificante em volume comparado com a massa de pensamentos, palavras e obras, da qual esta vida é composta. Um pequeno livro, por exemplo, pode preser­var, para todas as gerações, a alma e a essência dos pensamentos de uma mente mais dotada, e a graça de um coração nobre. Um testemunho desse fato é o maravilhoso livro O Peregrino, que contém em si mais vmho do que se pode encontrar nos frondosos escritos de alguns autores pro­lixos, cujas obras são apenas imensos barris de vinho que contêm pouco vinho, chegando, às vezes, a não ter sequer o seu aroma.

Para satisfazer a esses dois requisitos, duas virtudes são acima de tudo necessárias, isto é, diligência e paciência — uma que garanta a quan­tidade, e outra que garanta uma qualidade superior. Deve-se saber tanto como trabalhar quanto como esperar, nunca ocioso, contudo nunca apressado. Porém apenas a diligência não é suficiente. Uma atividade desempenha­da com afobação poderá até mesmo produzir muitos resultados aparen­tes, porém trará muitas conseqüências ruins. Por outro lado, a paciência desacompanhada da diligência se degenera em indolência, que não pro­duz absolutamente nenhum fruto, nem bom nem mau. As duas virtudes devem andar juntas; e quando isso acontece, elas nunca falham em pro­duzir, em maior ou menor quantidade, frutos que permaneçam em uma vida santa e exemplar, cuja memória é alimentada por gerações em uma igreja universal, em livros ou instituições filantrópicas, no caráter de des­cendentes, estudiosos e ouvintes.

Quando os dois requisitos são considerados e aplicados a todos os crentes em Cristo, o termo “muito” deve ser entendido de uma forma relativa. Em nossa opinião não é exigido de todos, indiscriminadamente, que produzam uma quantidade de frutos absolutamente grande, mas apenas daqueles que, como os apóstolos, foram escolhidos e dotados para ocupar posições de destaque. Daquele a quem pouco foi dado, pouco será pedido. No caso de um homem de pouco talento, é melhor não

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esperar uma grande produção de frutos mas, antes, esperar que este faça com qualidade o pouco para o qual tem capacidade. A aspiração é boa em teoria; mas aspirar exceder as dimensões designadas de nossa carrei­ra, é fornecer uma nova ilustração da antiga fábula do sapo e do boi. O homem que se lançar a intentar fazer mais do que aquilo para que está preparado, torna-se pior do que o inútil. Ele produz, não os frutos do­ces e sadios do Espírito, mas os frutos orgulhosos da vaidade, que, como os de Sodoma, são belos e adequados em aparência, e tenros ao toque de nossas mãos; mas interiormente são inchados, cheios de vento, e quando são pressionados explodem como uma bufa-de-lobo, um fungo17.

A exigência de muitos frutos, embora muito rigorosa em relação aos apóstolos, a quem em primeiro lugar é referida, tem um aspecto bondoso para o mundo. O fruto que Jesus espera de seus escolhidos é a conversão dos homens à fé no evangelho — o ajuntamento das almas no Reino de Deus. Uma exigência de muitos frutos neste sentido é uma expressão de boa vontade para com a humanidade, uma revelação da compaixão amorosa do Salvador para um mundo que jaz no pecado, no erro e nas trevas. Ao fazer esta exigência, Jesus está na verdade dizendo aos seus apóstolos: Ide pelo mundo, empenhai-vos em evangelizar todas as nações; sede frutíferos e multiplicai-vos, enchei a terra, e cultivai-a. Mesmo que não possais trazer muitos à obediência da fé; quanto maior o número daqueles que crerem em mim através da vossa palavra, maior será o meu prazer. Temos aqui, resumidamente, apenas um eco dos fer­vorosos discursos daquela ocasião anterior, quando Jesus recebeu a mor­te como a condição de fertilidade abundante, e a cruz como um poder por cuja atração irresistível Ele deveria atrair todos a si18.

A partir dos elevados requisitos do Senhor, passamos aos argumen­tos pelos quais Ele procurou transmitir aos seus discípulos o dever de produzir muitos frutos e permanecer. Destes, há não menos do que seis, agrupados em pares. Encontramos o primeiro par indicado nas seguin­tes palavras: “Nisto é glorificado meu Pai: que deis muito fruto; e assim sereis meus discípulos”19. Em outras palavras, Jesus queria que os seus discípulos se lembrassem de que o crédito, tanto do Lavrador divino quanto dEle mesmo, a Videira Verdadeira, dependia grandemente do comportamento deles. O mundo julgaria pelos resultados. Se eles, os

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apóstolos, fossem perfeitamente férteis, seria dito que Deus não enviou Cristo ao mundo em vão; e seu sucesso seria atribuído aquEle de quem eram discípulos. Se falhassem, os homens diriam: Deus plantou uma videira que não floresceu; e a videira produziu ramos que não deram frutos; ou em termos simples, Cristo escolheu agentes que não fizeram nada.

A força desses argumentos de fertilidade é mais óbvia no caso des­ses apóstolos, os fundadores da igreja, do que em relação à condição atual da igreja, quando a honra de Cristo e de Deus Pai parece depender, em uma medida muito pequena, da conduta dos indivíduos. Toda a ên­fase então recai sobre os onze homens. Atualmente, essa responsabilida­de está distribuída entre milhões de cristãos. No entanto, ainda hoje há uma grande necessidade de uma vida espiritualmente frutífera na igreja, para defender a honra do nome de Cristo; porque na atualidade há uma tendência de se olhar para o cristianismo como uma religião com a qual as pessoas simplesmente se acostumaram, algo do passado. O estoque da antiga videira é considerado por muitos como estando esgotado, e a produção de frutos, finda; e assim surge espaço para uma nova e vigorosa religião. Essa idéia só poderá ser efetivamente contradita de uma manei­ra, isto é, através do surgimento de uma geração de cristãos cujas vidas demonstrem que a “videira verdadeira” não é uma das coisas que enve­lheceram e desapareceram, mas que possui uma vitalidade eterna, sufici­ente não apenas para produzir novos ramos e novos cachos, mas para se livrar dos ramos mortos e de todo o musgo que possa ter crescido com o decorrer do tempo.

Encontramos um segundo par de motivos para a fertilidade, sugeri­do nas seguintes palavras: “Tenho-vos dito isso para que a minha alegria permaneça em vós, e a vossa alegria seja completa”20. Jesus quer dizer que a continuidade de sua alegria na vida dos discípulos, e a própria alegria deles como crentes em Jesus, dependia de serem frutíferos. A ênfase na primeira frase reside na palavra “permaneça”. Mesmo agora, embora sejam espiritualmente imaturos, Jesus sente alegria em seus dis­cípulos, como o jardineiro que se alegra com os cachos de uva quando ainda estão verdes, azedas, e não podem ser comidas. Mas Ele se alegra neles, neste momento, não pelo que são, mas por causa da promessa de

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fruto maduro que está neles. Se essa promessa não fosse cumprida, Ele se sentiria como o jardineiro se sente quando a flor é queimada pela geada, ou o fruto verde é atacado pela praga; ou como um pai se sente quando um filho não corresponde à brilhante promessa de sua juventu­de. Ele pode suportar a demora, mas não pode suportar o fracasso. Pode esperar pacientemente até que o processo de crescimento tenha passado por todas as suas etapas, e pode suportar todas as qualidades insatisfatórias da imaturidade, por causa da maturidade que alcançarão. Mas se nunca amadurecerem — se as crianças nunca se tornarem homens, se os alunos nunca se tornarem professores — então Ele exclamará, em um amargo desapontamento: “Quão infeliz sou! Minha alma desejou frutos madu­ros; e é isto o que encontro depois de esperar tanto tempo?”

Na segunda frase a ênfase reside na palavra “completa”. Não é dito ou insinuado que um cristão não possa ter alegria até que seu caráter esteja maduro e sua obra realizada. A linguagem de Jesus é bastante com­patível com a afirmação de que mesmo no início da vida espiritual pode haver uma grande, até mesmo apaixonada, explosão de alegria. Mas, por outro lado, essa linguagem sugere com clareza que a alegria do discípulo imaturo é necessariamente precária, e que a alegria que é estável e com­pleta vem apenas com a maturidade espiritual. Esta é uma grande verda­de prática, que todos os discípulos devem ter em mente. A alegria no sentido mais elevado é um dos frutos maduros do Espírito Santo, a re­compensa da perseverança e da fidelidade. O regozijo no início é bom, na medida em que ele prossegue; mas tudo depende da seqüência. Se pararmos logo e não crescermos, seremos infelizes; porque o fracasso em todas as coisas, e em especial na religião, é uma desgraça. Se formos comparativamente infrutíferos, poderemos não ser totalmente infelizes, mas nunca conheceremos a plenitude da alegria; porque somente ao ser­vo fiel serão ditas as palavras: “Entra no gozo do teu Senhor”. A perfeita medida de alegria é para o soldado que conquistou a vitória, para o lavrador que celebra a colheita em casa, para o atleta que ganhou o prê­mio de força, habilidade e velocidade.

As duas últimas considerações pelas quais Jesus procurou imprimir em seus discípulos o dever de serem frutíferos eram a natureza honrada de seu chamado apostólico e a dívida de gratidão que têm para com

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aquEle que os chamou, e que estava agora prestes a morrer por eles. O Senhor descreveu, nos seguintes termos, a dignidade do apostolado em contraste com a posição servil do discípulo: “Já vos não chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor, mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhe­cer”21. Em outras palavras, os discípulos eram aprendizes; os apóstolos, parceiros; os discípulos eram como funcionários públicos; os apóstolos seriam ministros confidenciais do rei; os discípulos eram alunos na esco­la de Jesus; os apóstolos seriam os guardiões da verdade cristã, os narra­dores e expositores da doutrina de seu Mestre, as únicas fontes de infor­mação confiáveis a respeito da letra e espírito de seu ensino. Que ofício poderia ser mais importante do que o deles? E quão necessário era que eles percebessem suas responsabilidades em relação a tudo isso!

Enquanto tentavam caminhar de modo digno de sua tão elevada vocação, os apóstolos também teriam em mente suas obrigações em rela­ção àquEle que os chamou para o ofício apostólico. A consideração devida a essas coisas seria um estímulo à diligência e à fidelidade. Por isso Jesus é cuidadoso ao frisar para os seus discípulos que eles devem tudo o que são, e que serão, a Ele. Ele lhes diz: “Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós”22. O Senhor deseja que eles entendam que não conferiram a Ele nenhum benefício por se tornarem seus discí­pulos: o benefício estava todo do lado deles. Ele os havia tirado da obs­curidade para serem a luz do mundo, para serem seus atuais companhei­ros e seus futuros amigos e representantes. Tendo feito tanto por eles, Ele estava habilitado a lhes pedir que sinceramente tentassem alcançar a finalidade para a qual lhes havia escolhido, e cumprir o ministério para o qual foram chamados.

Há algo ainda mais claro e digno de observação neste discurso so­bre a videira verdadeira — a reiteração do mandamento de amar uns aos outros. No início de suas palavras de despedida, Jesus ordenou aos seus discípulos o amor fraternal como uma fonte de consolo em relação à perda; aqui Ele o ordena novamente como uma condição de fertilida­de23. Embora não o diga com tantas palavras, Ele evidentemente quer que os seus discípulos entendam que permanecer uns nos outros em amor é tão necessário ao seu sucesso quanto a sua permanência no Se­

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nhor, pela fé. A divisão, o ciúme e a discórdia no grupo serão simples­mente fatais para a sua influência e para a causa que representam. Eles precisam ser amigos tão leais a ponto de estarem dispostos a morrer uns pelos outros. Se os cristãos sempre se lembrassem do mandamento do amor, sobre o qual o Senhor Jesus Cristo tão seriamente insistiu, que história diferente a igreja teria! Quão frutífera seria em todos os grandes resultados para os quais foi instituída!

Seção II — T ribulações Apostólicas e EncorajamentoJoão 15.18-27; I6.I-I5

Dos deveres apostólicos Jesus passou a falar das tribulações apostó­licas. A transição era natural; porque todos os grandes protagonistas da causa de Deus, cujos frutos permanecem, deverão experimentar, com certeza, dores. Ser odiado e maltratado é uma das penalidades da gran­deza moral e do poder espiritual; ou, colocando de modo diferente, um dos privilégios que Cristo confere aos seus “amigos”.

E muito difícil suportar o ódio, e o desejo de fugir dele é principal causa de infidelidade e incapacidade de gerar frutos. Os homens bons moldam a sua conduta para se manterem longe dos problemas, e pelo excesso de prudência covarde degeneram-se em uma nulídade espiritual. Era primeiramente importante que os apóstolos da fé cristã não se tor­nassem impotentes por essa causa. Por esta razão Jesus apresenta o as­sunto da tribulação aqui. Ele iria fortalecer os seus discípulos para que pudessem resistir aos sofrimentos falando-lhes antecipadamente. No decorrer de seu discurso sobre o tema desagradável, Ele disse: “Tenho- vos dito essas coisas para que vos não escandalizeis”24, como se justifi­cando a sua apresentação, isto é, para que não ficassem surpresos quan­do o tempo da dificuldade chegasse.

Para encorajar os jovens soldados da cruz, o Capitão da salvação tem recursos para vários expedientes, dentre os quais o primeiro é dizer- lhes, sem disfarce, o que devem esperar, uma vez que a familiaridade com a perspectiva sombria pode torná-la menos terrível. Jesus fala do ódio do mundo como uma questão absolutamente certa, não apenas julgando-o necessário para afirmar a sua certeza, mas assumindo-o como algo evidente: “Se o mundo vos aborrece”25. Em seguida Ele descreve,

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sem eufemismo ou rodeios, o tipo de tratamento que iriam receber nas mãos dos homens: “Expulsar-vos-ão das sinagogas; vem mesmo a hora em que qualquer que vos matar cuidará fazer um serviço a Deus”26. Palavras duras e horríveis; mas uma vez que estas coisas deveriam acon­tecer, era aconselhável que tivessem conhecimento sobre o pior.

Jesus a seguir diz a seus discípulos que seja o que for que venham sofrer, não poderá ser pior do que aquilo que Ele já havia passado. “Se o mundo vos aborrece, sabei que, primeiro do que a vós, me aborreceu a mim”. Pobre conforto, alguém diria; contudo não é tão pobre quando se considera a posição relativa das partes. Aquele que já foi odiado é o Senhor; aqueles que deverão ser odiados são apenas os servos. Jesus lem­bra isso aos seus discípulos, repetindo e trazendo à memória deles uma palavra que já havia falado naquela mesma noite27. A consideração deve­ria ao menos reprimir a murmuração; e devidamente tomada a sério, poderia até tornar-se uma fonte de inspiração heróica. O servo deveria se sentir envergonhado por reclamar da sorte da qual seu Mestre não está isento e nem deseja estar; ele deveria ficar orgulhoso de ser um companhei­ro nas tribulações daquEle que é seu superior, e considerar a sua experiên­cia da cruz não como um mero destino, mas como um privilégio.

Um terceiro expediente empregado por Jesus para conciliar os após­tolos com o ódio do mundo, é representá-lo como algo que necessaria­mente acompanha a eleição28. Bem avaliado, esse pensamento tem muita força. O amor geralmente reside em uma similaridade de interesses. Os homens amam aqueles que têm as mesmas opiniões, que ocupam posi­ções que lhes agradam, que seguem a mesma moda, e que perseguem os mesmos objetivos; e consideram todos aqueles que divergem deles a res­peito dessas coisas, com indiferença, desgosto, ou animosidade positiva, de acordo com o grau em que se tornam conscientes do contraste. Por isso surge um dilema para os escolhidos. Ou eles devem ser privados da honra, privilégios e esperança de sua eleição, e descer ao mundo sombrio em que não há Deus nem esperança; ou devem ficar satisfeitos, enquanto retêm a sua posição como chamados das trevas, para aceitar as desvanta­gens que se juntam a ela, e serem odiados por aqueles que amam as trevas e não a luz por terem uma vida ímpia. Que verdadeiro filho da luz hesi­tará em sua escolha?

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Para mostrar aos discípulos que eles não têm nenhuma alternativa exceto se submeterem pacientemente a sua sorte designada como os es­colhidos, Jesus vai ainda mais fundo na filosofia do ódio do mundo. Ele explica que o que em primeiro lugar será odiado neles, significará em segundo lugar o ódio a Ele mesmo; e em último lugar, e radicalmente, ignorância e hostilidade a Deus, seu Pai29. Ao apresentar esta verdade, Ele aproveita para fazer algumas reflexões severas sobre o mundo incré­dulo da Judéia, no qual Ele mesmo havia trabalhado. O Senhor enfatiza a incredulidade daquele povo, e declara que esta é indesculpável; acusa aqueles que têm sido culpados disso, de odiá-lo sem motivo, isto é, de odiar aquele cujo caráter, conduta, palavras e obras deveriam ter con­quistado sua fé e amor. O Senhor também destaca o ódio que demons­tram para com Ele, o que revela um ódio ao próprio Deus por cuja glória professavam ser tão zelosos30,

Como é dolorosa a perspectiva aqui mostrada da inimizade do mundo para com a verdade e suas testemunhas! Alguns gostariam de ver, na amargura com a qual os mensageiros da verdade foram recebidos (não excetuando o caso de Jesus), o resultado de um mal-entendido per- doável. E sem dúvida esta é a origem de muitas animosidades religiosas. Houve muitos pecados cometidos contra o Filho do Homem, e outros da mesma natureza que eram apenas em um grau moderado pecados contra o Espírito Santo. Se não fosse assim, ai de todos nós! Pois quem não perseguiu o Filho do Homem ou o seu interesse, nutrindo um mau sentimento e pronunciando palavras amargas contra os seus membros, se não contra Ele pessoalmente, sob a influência do preconceito, che­gando a ponto de infligir ferimentos físicos aos apóstolos das verdades desconhecidas e indesejáveis, em obediência aos impulsos cegos de medo excessivo ou paixão egoísta?

Se houver poucos que não o perseguiram de uma forma ou de ou­tra, talvez hajam também poucos dos perseguidos que não tiveram pers­pectivas muito sombrias da culpa de seus perseguidores. Os homens que sofrem por suas convicções são grandemente tentados a considerar seus adversários como sendo, em igual medida, adversários de Deus. As coi­sas erradas que suportam os fazem pensar e falar dos malfeitores como os próprios filhos do maligno. Então se dá importância à causa de al­

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guém, ou dignidade aos sofrimentos de alguém, julgando os primeiros como de Deus, e os últimos como aqueles que sofrem com paciência por amor a Deus. Por fim, afirmar amplamente esta situação como uma questão entre os amigos e os inimigos de Deus satisfaz tanto o intelecto quanto a consciência — o primeiro exigindo um status qucestionis que é simples e facilmente entendido; o segundo, um que nos coloca obvia­mente do lado certo, e nossos adversários obviamente do lado errado.

Tudo isso mostra que muita franqueza, humildade e paciência de espírito são necessárias antes que alguém possa dizer seguramente: “Aquele que me odeia, odeia a Deus”. No entanto, permanece verdadeiro que a atitude real de um homem em relação a Deus é revelada pela maneira como ele trata a obra atual de Deus e seus servos viventes. Jesus julgava seus inimigos de acordo com este princípio, embora não alimentasse nenhum ressentimento, e estava sempre pronto a tratar a ignorância da forma devida. Apesar de sua caridade, Ele cria e dizia que a hostilidade que encontrou provinha de uma vontade maligna e de um coração ímpio e mau. Ele tinha em vista principalmente os líderes da oposição que organizaram a multidão de ignorantes e preconceituosos em um exército hostil; homens que o Senhor sem hesitação denunciou como aqueles que odiavam a Deus, a verdade e a justiça. Jesus apontou o tratamento que estes lhe dispensavam como a evidência conclusiva deste fato. O aparecimento e o ministério de Jesus entre eles haviam retirado a másca­ra daqueles homens e revelado o seu verdadeiro caráter como hipócritas, fingindo santidade, mas por dentro cheios de mesquinhez e impiedade, que odiavam a genuína bondade, e não poderiam descansar até pregá-lo em uma cruz e tê-lo fora do mundo. Tendo a história e as palavras de Cristo diante de nossos olhos, devemos ter cuidado para não exagerar­mos nas desculpas para a incredulidade.

Tendo falado brevemente de sua amarga experiência no passado, Jesus continua com naturalidade expressando a esperança que nutre de um futu­ro brilhante. Até este ponto Ele foi desprezado e rejeitado pelos homens, mas crê que isto não será sempre assim. O mundo, tanto o judaico como o gentio, logo começará a mudar de idéia, e o Crucificado se tornará um objeto de fé e reverência. Essa esperança que Ele constrói em um alicerce forte e seguro é o testemunho combinado do Espírito da verdade e de seus

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próprios apóstolos. “Mas”, Ele diz, com seu rosto brilhando, “quando vier o Consolador (de quem Ele havia falado aos seus filhinhos, e a quem agora faz alusão como seu próprio Consolador, não menos do que deles) que eu da parte do Pai vos hei de enviar, aquele Espírito da verdade, que procede do Pai, testificará de mim”31. Ele não declara aqui que resultados o Espírito traria por meio de seu testemunho. Ele fala brevemente sobre este ponto mais tarde, ao perceber que seus ouvintes não compreenderam seu significado, ou que ao menos falharam em encontrar em suas palavras qualquer conforto para si mesmos. Enquanto isso Ele se apressa em indi­car que seus discípulos, assim como o Espírito da verdade, terão parte na honrada obra de redimir da desgraça o nome e o caráter de seu Mestre. Eles também deveriam dar testemunho, uma vez que estavam bem qualifi­cados a fazê-lo, tendo estado com Ele desde o início de seu ministério32, e conhecendo plenamente a sua doutrina e modo de vida.

Nesse futuro testemunho do Espírito e dos apóstolos, Jesus buscou conforto para o seu próprio coração sob o peso depressivo de um retrospecto triste e da perspectiva imediata da crucificação. Mas Ele tam­bém pretendia que os seus discípulos buscassem, do mesmo lugar, a força necessária para enfrentar suas próprias tribulações. Na verdade, nenhuma consideração poderia tender mais efetivamente a reconciliar mentes generosas com uma sorte dura do que aquelas sugeridas no que Jesus havia acabado de dizer, isto é, que os apóstolos sofreriam por uma causa favorecida pelo céu, e tenderiam a honrar aquEle a quem amavam mais que a própria vida. Quem não escolheria estar do lado a favor do qual o Espírito divino luta, mesmo correndo o risco de receber ferimentos? Quem não estaria feliz em ser reprovado e maltratado por um nome que é digno de estar acima de todo nome, especialmente se garantido que os sofrimentos suportados contribuiriam diretamente para a exaltação des­se nome abençoado, para que esteja no lugar de soberania que lhe per­tence por direito? Foram exatamente tais considerações que mais que qualquer outra coisa apoiaram os apóstolos sob suas grandes e múltiplas tribulações. Eles aprenderam a dizer: “Por amor a Cristo somos mortos todos os dias; somos reputados como ovelhas para o matadouro. Mas que importa? A igreja está se espalhando; os crentes estão se multipli­cando de todos os lados, brotando a cem por um em relação à semente

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do sangue dos mártires; o nome de nosso Senhor está sendo glorificado. Alegremente sofreremos, portanto, dando testemunho da verdade”.

Tendo estabelecido como premissa essas observações a respeito do auxílio para resistir, Jesus seguiu por fim declarando distintamente, em palavras já citadas, o que os apóstolos teriam de suportar33. A estas pala­vras fazemos apenas uma observação adicional, isto é, que os discípulos iriam aprender delas não apenas a natureza de suas futuras tribulações, mas também o local onde iriam acontecer. O Mestre os previne nesta parte de seu discurso contra o ódio do mundo; não do mundo do paga­nismo, que é irreligioso, cético, indiferente e indecente. Aqui o Senhor se refere ao mundo do judaísmo anticristão; dos homens freqüentadores das sinagogas, acostumados a distinguirem-se do “mundo” como o povo de Deus, muito zelosos até certo ponto pela glória de Deus, conservado­res fanáticos de suas opiniões e práticas religiosas, totalmente intoleran­tes e discordantes, excomungando implacavelmente todos os que se des­viassem sequer “um milímetro” da crença estabelecida, julgando sua morte não um crime, mas um serviço religioso, um sacrifício aceitável aoTodo- Poderoso. Para este mundo judaico é atribuída a honra de representar todo o cosmos dos homens alienados de Deus e da verdade; e se o ódio aos bons for a característica central do mundanismo, a honra estava bem ganha, pois foi entre os judeus que o poder de odiar atingiu seu máximo grau de intensidade. Ninguém seria capaz de odiar como um judeu reli­gioso da era apostólica: ele era famoso por sua capacidade diabólica de odiar. Até mesmo um historiador romano, Tácito, comenta o “hostile odium” da raça judaica contra toda a humanidade; e a experiência dos apóstolos cristãos justificava totalmente a proeminência dada por Jesus aos judeus ao discursar sobre o ódio do mundo. Deviam principalmente aos judeus incrédulos o conhecimento que tinham sobre o que significa­va o ódio do mundo. O mundo pagão os desprezava em vez de odiá-los. Os gregos riam e os romanos demonstravam uma indiferença desdenho­sa, ou no máximo se lhes opunham comedidamente, como a alguém que não preferiam. Mas que hostilidade constante, implacável e maligna dos religiosos judeus! Era sedenta de sangue, sem compaixão, digna do pró­prio Satanás. Jesus pôde verdadeiramente dizer aos judeus: “Vós tendes por pai ao diabo e quereis satisfazer os desejos de vosso pai”.

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Que fruto estranho era este espírito ímpio de ódio crescendo sobre a bonita videira que Deus havia plantado na terra santaJ Escolhido para ser o veículo de bênçãos para o mundo, Israel acaba se tornando o inimi­go do mundo, “contrário a todos os homens”, para fazer com que até mesmo os bons e humanitários a considerem e a tratem como uma pra­ga, cuja destruição da face da terra seria uma causa de congratulação para todos. Observe o resultado do abuso da eleição! Favores peculiares ministrando ao orgulho, em vez de incitar os favorecidos a dedícarem-se à sua elevada vocação como os benfeitores da humanidade; e assim uma nação santa é transformada em uma sinagoga de Satanás, a ponto de os inimigos mais destrutivos de Deus serem os de sua própria casa. Ai de nós! O mesmo fenômeno tem reaparecido na igreja cristã. O mundo que mais se opõe a Cristo, o próprio Anticristo, deve ser encontrado não em meio aos povos pagãos, mas em meio ao povo cristão; não entre os não- religiosos e céticos, mas entre aqueles que julgam ser o povo peculiar de Deus.

O anúncio feito por Jesus a respeito de suas futuras tribulações produziu, como era de se esperar, uma grande sensação entre os discípu­los. A perspectiva sombria revelada pelo levantar momentâneo do véu os horrorizou completamente. A consternação apareceu em seus rostos, e a tristeza encheu seus corações. Devem ter pensado que ser abandonado por seu Mestre já era suficientemente ruim, mas ser deixado para um destino como este era ainda pior. Jesus conhecia a impressão que suas palavras produziriam, e fez o possível para cuidar deles e ajudá-los a recobrar a serenidade.

Em primeiro lugar o Senhor justifica a necessidade de falar de as­suntos tão dolorosos, transmitindo o seguinte sentido: “Eu preferiria ficar em silêncio a respeito dos vossos problemas vindouros, e não os mencionei enquanto foi possível; mas não poderia pensar em vos deixar sem qualquer conhecimento sobre aquilo que está diante de vós. Faço-o agora que estou prestes a partir”34. O sentimento bondoso que ditou a declaração assim parafraseada é evidente; mas a declaração em si pode parecer inconsistente com os registros dos outros Evangelhos, dos quais aprendemos que as dificuldades ligadas ao discipulado em geral, e ao apostolado em particular, eram um assunto de freqüente observação nas

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conversas de Jesus com os doze. A dificuldade tem sido tratada pelos comentaristas de uma forma variada. Alguns admitem a contradição, e presumem que tais discursos anteriores a respeito das perseguições como são encontrados — por exemplo, no décimo capítulo de Mateus — são apresentados pelo evangelista fora de sua ordem cronológica. Outros insistem que a diferença entre os pronunciamentos anteriores e o presen­te reside na simplicidadr. representando o primeiro como vago e geral, como as primeiras alusões feitas por Jesus à sua própria morte; o segun­do como particular, definido e inconfundível, como os anúncios que Jesus fez com respeito à sua paixão no final de seu ministério. Uma terceira ala de expositores explica que a novidade desse discurso sobre o ódio do mundo reside em sua causa e origem35. Há ainda um quarto grupo que insiste que a grande diferença entre esse discurso e todos os que vieram antes, é que este foi um discurso de despedida; portanto, em virtude dessa situação, causou uma impressão singular36.

Onde predomina tamanha diferença de opinião, é impróprio dogmatizar. A nossa opinião, porém, é que a peculiaridade do pronuncia­mento atual com relação às tribulações apostólicas reside na maneira ou no estilo, e não na questão. Em ocasiões anteriores, especialmente na oca­sião da missão de teste dos doze, Jesus havia dito as mesmas coisas: Ele havia falado pelo menos dos açoites nas sinagogas, se não da excomunhão deles, e havia feito alusões às mortes violentas como no mínimo um desti­no possível para os apóstolos do Reino. Mas Ele havia dito tudo de uma maneira diferente. Ali Ele pregou a respeito da perseguição; aqui Ele faz um anúncio terrivelmente real. Nisso está toda a diferença entre aquele discurso e a presente comunicação. Haveria uma diferença entre um sermão que tinha como tema a frase: “Aos homens está ordenado morrerem uma vez” e uma intimação especial para um indivíduo semelhante a: “Este ano mor- rerás”. O sermão pode dizer muito mais sobre a morte do que a intimação, porém de uma maneira diferente, e com um efeito diferente!

O próximo expediente para curar a dor para a qual Jesus tem a solução é uma admoestação amigável. Ele gentilmente censura os discí­pulos por seu silêncio, que Ele considera como um sinal de tristeza desesperançada e desesperadora. “E, agora, vou para aquele que me en­viou; e nenhum de vós me pergunta: Para onde vais? Antes, porque isso

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vos tenho dito, o vosso coração se encheu de tristeza”37. “Por que”, Ele quer dizer, “estão tão abatidos? Não têm perguntas para me fazer sobre a minha partida? Estavam cheios de perguntas a princípio. Estavam curio­sos para saber para onde eu estava indo. Eu ficaria grato se essa pergunta fosse feita novamente, ou, na verdade, se qualquer pergunta me fosse feita, quer seja sábia quer tola. As interrogações mais infantis seriam melhores do que a melancolia de um desespero mudo”.

Como a pergunta “Para onde vais?” já havia sido suficientemente respondida, poderia ter sido desnecessário perguntar outra vez. Havia, porém, outras perguntas, nem desnecessárias nem impertinentes, que os discípulos poderiam ter aproveitado para fazer sobre o comunicado que haviam acabado de receber, a respeito do destino futuro que teriam. E provável que tivessem feito outro tipo de perguntas se não estivessem tão deprimidos de espírito. Eles poderiam ter perguntado: “Se acontecerá algo tão ruim conosco após a tua partida, por que não permaneces? Enquanto tens estado conosco, tens-nos protegido do ódio do mundo, e nos dizes que quando tu, nosso líder e cabeça, partires, o ódio será diri­gido contra nós, teus seguidores. Se é assim, como podemos considerar a tua partida como algo que não seja uma calamidade?”

Jesus continua a responder a essas perguntas não pronunciadas na próxima passagem. De modo ousado Ele afirma que, a despeito do que possam pensar, é para o bem deles que Ele deve partir38. A declaração, também verdadeira em outros aspectos, é feita com especial referência ao trabalho do apostolado. Na parte inicial de suas palavras de despedida, Jesus havia explicado a seus discípulos como a sua partida os afetaria individualmente, como pessoas ou como crentes. O Senhor lhes havia ga­rantido que quando “o Consolador” viesse, faria com que se sentissem como se o seu falecido Mestre tivesse retornado para eles; sim, como se estivesse mais realmente presente com eles do que jamais havia estado. Aqui o seu objetivo é mostrar o propósito de sua partida para o bene­fício do trabalho que desempenhavam como apóstolos, e fazê-los entender que a sua partida seria boa para eles como ministros públicos.

A prova dessa afirmação vem em seguida39 e tem, em essência, o seguinte sentido: “Quando eu vos deixar e for para o Pai40, duas desideratas, de importância essencial para o sucesso do vosso trabalho como apósto­

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los, serão fornecidas. Então tereis ouvintes receptivos, e vós mesmos sereis competentes para pregar. Nenhuma dessas desideratas existem no momento. O mundo me rejeitou e as minhas palavras; e vós, embora sinceros, ainda não compreendeis o que vos ensinei. Após a minha ascensão, haverá uma grande mudança em ambos os aspectos; o mundo estará mais preparado para ouvir a verdade, e vós podereis declará-la inteligentemente. A mu­dança não poderá acontecer até então, porque ela será produzida pelaobra do Consolador, o Espírito da verdade, e Ele não pode vir até que eu

/ » va .Na seção desse discurso sobre o qual temos dado o sentido geral,

Jesus esboça em rápidas linhas primeiro a obra de conversão do Espírito no mundo41, e então a sua obra iluminadora na mente dos apóstolos42. Ele descreve o primeiro nestes termos: “Quando ele vier, convencerá (gerará um sério pensamento e convicção) o mundo do pecado, e da justiça, e do juízo”. Então Ele explica em quais aspectos especiais o Espírito trará essas grandes realidades morais à mente dos homens; e aqui Ele apenas expõe o que já havia dito a respeito do testemunho do Espírito em seu próprio favor43. O Senhor diz a seus discípulos que o Consolador, testemunhando de si mesmo nos corações e consciências dos homens, os convencerá do pecado, especialmente como incrédulos nEle; da justiça em relação à sua partida ao Pai; e do juízo (por vir), porque o príncipe deste mundo já está julgado (isto é, terá sido, quando o Consolador iniciar a sua obra).

A segunda e a terceira observações explanatórias são enigmáticas, e em vez de esclarecer o assunto tratado, parece antes envolvê-lo na escu­ridão. Os discípulos manifestaram tanta disputa e diferença de opinião, que estender-se no assunto com eles seria inútil, e dogmatizar seria pre­sunção. Um grande ponto de discussão tem sido o seguinte: A que jus­tiça Jesus se refere, — à sua própria ou à dos pecadores? Será que Ele quer dizer que depois de Ele ter deixado a terra o Espírito convencerá o mun­do de que Ele era um homem justo? Ou quer dizer que o Espírito ensi­nará os homens a enxergar no Senhor crucificado a sua justiça? A nossa opinião é que Ele quis dizer as duas coisas. A justiça deve ser entendida em sua generalidade indefinida: e a idéia é que o Espírito fará uso da exaltação de Cristo para fazer com que os homens pensem sinceramente

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em todo o assunto da justiça; para lhes mostrar o caráter totalmente podre de sua própria justiça, cuja proeza foi crucificar Jesus; para convencer seus corações em relação à verdade solene de que o Crucificado era o Justo; e finalmente conduzi-los a encontrar em Jesus a sua verdadeira justiça, pensando na pergunta: Por que então o Justo sofreu?

Entendemos o significado da terceira observação explanatória no seguinte sentido: “Quando eu for crucificado, o deus deste mundo terá sido julgado. Decerto, tanto este mundo como o seu deus, mas este último de um modo sutil e irreversível — o mundo, embora atualmente seguindo a Satanás, ainda tem a chance de se converter. Quando eu su­bir, o Espírito usará então o juízo proferido contra Satanás no passado para convencer os homens de um juízo por vir; ensinando-os a enxergar neste uma profecia de separação final entre mim e todos que persistem obstinadamente na incredulidade, e assim, pelos terrores da perdição, os levará ao arrependimento e à fé”.

O que Jesus diz a respeito da obra iluminadora do Espírito sobre a mente dos discípulos significa o seguinte: Ele vos adequará para serdes inteligentes e minhas testemunhas dignas de confiança, e para serdes guias da igreja na doutrina e na prática. Para esses elevados propósitos duas coisas seriam necessárias: que eles compreendessem a verdade cris­tã, e que possuíssem o dom da profecia, a fim de serem capazes de pre­dizer o futuro em suas linhas gerais, para a advertência e o encorajamento dos crentes. Jesus lhes promete ambas as vantagens como frutos da in­fluência iluminadora do Espírito. Ele lhes garante que, quando o Consolador vier, os guiará em toda a verdade que Ele mesmo havia lhes ensinado, relembrando coisas esquecidas, explicando coisas não enten­didas, desenvolvendo sementes em um sistema de doutrina que estava inteiramente acima do atual poder de compreensão deles44. O Senhor também os informa que esse mesmo Espírito lhes mostrará as coisas por vir — tais como o surgimento das heresias e apostasias, a vinda do Anticristo, o conflito entre a luz e as trevas, e a questão do fim, como descritos no livro de Apocalipse.

Tais eram as mudanças que deveriam surgir no mundo e na vida dos discípulos pelo advento do Consolador. Verdadeiramente mudanças de grande benefício; mas por que elas não podem ocorrer antes que Jesus deixe o mundo?

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A resposta para esta pergunta é sugerida por Jesus, quando Ele fala do Espírito: “Não falará de si mesmo”45 e “Há de receber do que é meu e vo- lo há de anunciar”46. Cabia ao ministério pessoal de Jesus chegar ao fim antes do ministério do Espírito começar, porque este último é uma aplica­ção do primeiro. O Espírito não fala de si mesmo: Ele simplesmente toma as coisas relativas a Cristo e as mostra aos homens — aos incrédulos, para que se convençam e se convertam; e aos crentes, para a sua iluminação e santificação. Mas até que Jesus tivesse morrido, ressuscitado e subido aos céus, aquilo que fosse essencial a seu respeito permaneceria incompleto; os materiais para o Evangelho não estariam prontos para serem entregues. Poderia não haver a pregação apostólica nem a demonstração do Espírito acompanhada de poder. Deveria ser possível aos apóstolos e ao Espírito darem testemunho daquele que, embora perfeitamente santo, foi crucifica­ndo, para mostrar ao mundo a atrocidade do pecado. Eles deviam ter essas informações para poderem declarar que Deus fez do mesmo Jesus a quem eles crucificaram tanto o Senhor como o Cristo, exaltado à glória celestial, antes que seus ouvintes pudessem sentir remorso no coração e serem leva­dos a exclamar aterrorizados: “Que faremos, varões irmãos?” Somente após Jesus ter ascendido à glória, e se tornado invisível aos olhos mortais47, os homens conseguiram compreender que Ele não foi apenas pessoalmente um homem justo, mas o Senhor, a sua justiça. Então seria forçada em suas mentes a seguinte pergunta: Qual poderia ser o significado do Senhor da glória tornar-se homem e morrer na cruz? E pelo ensino' do Espírito eles aprenderiam a responder, não como nos dias de sua ignorância, “Ele sofre por suas próprias ofensas”, mas, “Verdadeiramente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si... ele foi ferido pelas nossas transgressões...”

Finalmente, não até que estivessem em uma posição de dizer que o seu Senhor havia ido para o céu, os apóstolos não poderiam aplicar com plena força sobre o impenitente a doutrina do juízo. Então eles pode­riam dizer: Cristo está assentado no trono celestial, como Príncipe e Salvador para todos os que crêem, mas também um Juiz para aqueles que continuam em rebelião e incredulidade. “Beijai o Filho, para que se não ire, e pereçais no caminho, quando em breve se inflamar a sua ira. Bem-aventurados todos aqueles que nele confiam”.

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Os discípulos não compreenderam tudo isso naquele momento. Eles não tinham noção da obra do Espírito na consciência do mundo e em seus próprios pensamentos, e da relação na qual a terceira pessoa da Trindade48 representava a segunda. Assim Jesus não se estende nesses tópicos, mas se restringe ao que é explicitamente necessário para indicar a verdade. Mas chegou o momento em que os discípulos de fato conse­guiram entender essas questões, e então apreciaram plenamente o entu­siasmo de seu Senhor em relação à dispensação do Consolador. Então eles reconheceram que a afirmação era certamente verdadeira, que era vantajoso para eles que Jesus partisse, e sorriram quando se lembraram que certa vez haviam pensado de outra forma; sim, perceberam que a palavra “vantajoso”, longe de ser forte demais, era, antes, uma expressão fraca, escolhida em auxílio bondoso à sua fraca capacidade espiritual, em vez da forte palavra “indispensável”. Então imaginamos que tenham se sentido como os homens bons se sentem em relação à morte quando chegam ao céu. Deste lado do túmulo podemos dizer:

T ím idos m ortais avançam e retroagem

Para cruzar o m ar estreito;

Demoram-se, tremendo, na margem;

E temem lançar-se a esta nova condição.

Mas para aqueles que estão do outro lado, como a morte parece ser um assunto insignificante, e como parece estranho à sua visão purificada, que sempre deveria ter sido necessário provar-lhes que era melhor partir para a glória do que permanecer em um mundo de pecados e tristezas!

Seção III - O Breve Período e o F in a l do D iscursoJoão 16.16-33

O louvor à dispensação do Consolador faz surgir um paradoxo. Jesus havia dito aos seus discípulos que a sua partida seria benéfica para eles em vários aspectos, mas particularmente neste: que eles deveriam alcançar uma compreensão clara e total a respeito da verdade cristã. De fato, o que Ele estava dizendo significava: E bom para vocês que eu vá, porque quando eu me tornar fisicamente invisível, serei espiritualmente visível para vocês. Devo me retirar de seus olhos físicos para que possa

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ser visto pelos olhos do entendimento. Assim Ele adequadamente ter­mina seu discurso sobre o Consolador repetindo um enigma, que Ele havia proposto de uma forma menos evidente em sua primeira referência à despedida: “Um pouco, e não me vereis; e outra vez um pouco, e ver- me-eis, porquanto vou para o Pai”.

Este enigma, como todos os outros, torna-se muito simples quando possuímos a chave para entendê-lo. Como em outras declarações para­doxais de Jesus em relação a perder e salvar a vida49, a palavra principal, “ver”, é usada em dois sentidos50 — primeiro no sentido físico, e depois, no segundo, em um sentido espiritual. E, assim, a possibilidade de um acontecimento, da partida de Cristo para o Pai, torna-se a razão de não ver, assim como a razão de ver. Quando Jesus ascendeu ao céu, os discí­pulos não o viram mais como no cenáculo, na última Ceia. Mas imedia­tamente depois dessa ocasião, passaram a vê-lo de outra forma. A idéia de sua vida chegou com doçura aos seus olhos e à sua alma. E a visão era satisfatória: ela justificou a bela linguagem com que o seu Mestre lhes havia falado antes de tê-los deixado. Embora não o tivessem visto mais em carne, ainda criam nEle, e, nas palavras do apóstolo Pedro, alegra­vam-se com gozo inefável e glorioso.

Porém, neste momento, os discípulos não têm uma concepção da visão e da alegria que os aguarda. As palavras de seu Senhor não têm significado para eles; são um enigma, de fato uma aparente contradição. Estando próximos ao locutor inspirado, eles sussurram uns aos outros comentários a respeito das palavras enigmáticas que o Senhor havia profe­rido, momentos antes, sobre ver e não ver e sobre ir para junto do Pai. O enigma evidentemente serviu a pelo menos um propósito: afastou os discí­pulos do estupor do sofrimento, e despertou a sua curiosidade. Esta, por­tanto, foi a recompensa pelo serviço prestado: Criou surpresa, mas não entenderam o seu sentido; os ouvintes foram constrangidos a confessar: “Não sabemos o que Ele diz”51. E assim, observamos que eles não fiz;eram perguntas a Jesus. Gostariam de fazê-las neste ponto, mas não se sentem capazes de tomar tal liberdade; refreados, imaginamos, por respeito ao tom com que o Mestre se dirigira a eles na segunda parte de seu discurso de despedida. Jesus, entretanto, consciente de que tinham algo a perguntar, de modo amável os beneficia com uma palavra de explicação52.

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Tal palavra não explica exatamente o enigma. Jesus não diz a seus discípulos o que aquele curto período de tempo significa, nem distingue os dois tipos de visão: Ele deixa que o enigma fique por ser esclarecido, do único modo possível: pela experiência. Tudo o que Ele procura fazer é mostrar que o mesmo evento que agora traz uma tristeza imediata poderá se tornar, após a sua ocorrência, um motivo de grande alegria. Com este propósito Ele compara a crise pela qual os discípulos estão prestes a passar, não como já fizemos, com o acontecimento solene atra­vés do qual um cristão parte deste mundo para um outro melhor; mas com o acontecimento com o qual a vida humana começa53.

A comparação é adequada ao propósito para o qual é introduzida; mas não podemos com certeza, para não dizer com propriedade, levá-la a detalhes. Intérpretes que aspiram compreender todos os mistérios e todo o conhecimento levantaram muitas questões, tais como: Quem é representado pela mãe na parábola — Cristo ou os discípulos? Quando o sofrimento começa, e quando e em que termina? As respostas dadas a essas perguntas são variadas. De acordo com uma delas, o próprio Jesus é o novo homem, e o sofrimento ao qual alude é a sua própria morte, vista como a redenção da humanidade pecadora. Uma outra interpreta­ção é que Jesus representa seus próprios discípulos como filhos do Cris­to espiritual, que nascerá quando o Consolador vier. A maioria entende o início do sofrimento como a morte de Cristo, mas há muitas opiniões diferentes a respeito de quando este termina. Alguns dizem que a data do gozo refere-se à data da ressurreição porque, decorrido um breve período de dolorosa separação, Jesus é restituído aos seus sofridos discí­pulos. Outros estendem a expressão “um pouco” como relacionada ao Pentecostes, quando a igreja nasceu no mundo como um novo homem em Cristo. Um terceiro grupo faz do curto período um longo período através das palavras: “Mas outra vez vos verei”, referindo-se à segunda vinda de Cristo, e à era abençoada do novo céu e da nova terra onde habita a justiça, pela qual toda a criação geme, e cujo tempo haverá de chegar54.

Não consideramos necessário nos manifestar a respeito desses te­mas tão discutidos. Ás vezes consideramos necessário conceder à ana­logia uma variação doutrinária e encontrar nela uma referência à rege­

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neração. O que Jesus tem em vista nesta parte de seu discurso não é o novo nascimento, seja dos discípulos ou da igreja, mas a iluminação espiritual dos apóstolos; sua transição de meros filhotes ao ponto de terem asas; de uma fé ignorante implícita a uma fé desenvolvida e inteli­gente; sua iniciação no grau mais elevado dos mistérios cristãos, quando devem enxergar claramente as coisas que no presente não lhes são inteli­gíveis; e serem mestres no Reino dos céus55. Para eles, como também para os cristãos em geral (pois há um sentido no qual a experiência dos após­tolos se repete na história espiritual de muitos crentes), esta crise não é menos importante do que a inicial, através da qual os homens passam da morte para a vida. E algo realmente importante ser regenerado, mas não é menos importante ser iluminado. A ocasião em que Cristo entra pela primeira vez em um coração é memorável, um objeto de fé e amor. Mas é também um momento igualmente importante, quando Cristo, depois de ter partido, talvez durante uma estação, deixando as mentes povoadas de dúvidas e os corações oprimidos pelo sofrimento, retorna para nunca mais partir, eliminando a frigidez do inverno e a escuridão, trazendo assim a luz, a alegria, o calor do verão e a fecundidade da alma. De fato, os discípulos deveriam estar satisfeitos com a partida de Cristo, na for­ma em que foi primeiramente conhecido, para que mais tarde tivessem tamanha alegria!

Sendo mostrada, por uma analogia familiar e singela, a possibili-dade de o sofrimento presente ser transformado em uma grande alegria, Jesus passa então a descrever, de um modo breve, as características do estado que os apóstolos em outros tempos viriam a atingir56. Primeiro, em meio a estas, Ele menciona uma compreensão ampliada da verdade; porque é a isto que se refere quando diz: “Naquele dia, nada me perguntareis”. Ele quer dizer que eles então não fariam perguntas tais como haviam feito ao longo do tempo em que conviveram, e especialmente naquela noite — per­guntas infantis, feitas com a curiosidade de uma criança, e também com a incapacidade infantil de compreender as respostas. O espírito inquiridor da infância seria substituído pelo espírito de compreensão da fase adulta. As verdades do Reino não seriam mais, como antes, mistérios impenetráveis para eles: deveriam ter a unção do Santo, e conhecer todas as coisas.

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Algumas pessoas pensam que é demais dizer isso a respeito de qual­quer cristão, não excetuando sequer os próprios apóstolos, enquanto no estado terreno, e assim dizem que o dia referido aqui é o da segunda vinda de Cristo, ou de sua feliz reunião, no Reino de seu Pai, com aque­les que salvou57. E, sem dúvida, é verdade que no último dia os cristãos deverão conhecê-lo como são conhecidos, e não ter absolutamente a necessidade de fazer quaisquer perguntas. Então,

Poder central que não conhece lim ites,

E sabedoria livre de empecilhos,

A visão beatifica deve alegrar

Os santos que estão à tua volta...

como nunca os alegrou aqui em baixo. A declaração que está diante de nós tem uma verdade relativa em referência a esta vida presente. En­quanto comparada com o estado perfeito, a visão mais clara de qualquer cristão se trata de enxergar como que através de um vidro, de forma obscura. E o grau de iluminação alcançado pelos apóstolos pode ser descrito, sem exagero, em contraste com a sua ignorância como discípu­los, como homens que ainda precisavam fazer mais perguntas. Ao pro­meter aos seus discípulos que atingiriam este alto grau, Jesus estava di­zendo, de fato, que como apóstolos eles seriam professores, não sábios — doutores em divindade com títulos conferidos pelo próprio céu — capa­zes de responder às perguntas dos jovens discípulos, parecidas com aquelas que um dia eles mesmos fizeram.

O segundo aspecto da iluminação apostólica mencionado por Je­sus é a influência ilimitada de Deus através da oração. Sobre isso Ele fala com grande ênfase: “N a verdade, na verdade vos digo que tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, ele vo-lo há de dar”58. Ou seja, os apóstolos deveriam ter à sua disposição o poder de Deus: o poder de operar milagres, de curar enfermidades; da profecia, de prever coisas do interesse da igreja, e o que era desejável que os crentes viessem a saber; da providência, para fazer todos os acontecimentos subservien­tes ao seu bem-estar, e à causa na qual estivessem trabalhando. A pro­messa, em sua essência, embora não em seus acidentes milagrosos, é

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feita para todos os que aspiram a maturidade cristã, e é cumprida na vida de todos aqueles que a recebem.

Na sentença seguinte, Jesus, se não estivermos enganados, particu- lariza um terceiro aspecto do estado espiritual de maturidade que Ele almejava que seus discípulos aspirassem. Ê um coração dilatado para dese­jar, perguntar e esperar grandes coisas para si próprios, para a igreja e para o mundo. “Até agora”, o Senhor lhes diz, “nada pedistes em meu nome”. Havia uma razão para isso, diferente do estado espiritual dos doze. Ainda não havia chegado o momento de pedir qualquer coisa em nome de Cristo: eles não poderiam receber este benefício até que a obra de Cristo estivesse completa e Ele fosse glorificado. Mas Jesus quis dizer algo mais através de seu comentário. Ele quis dizer algo que é de fato também verdadeiro, que até então os seus discípulos haviam pedido pouco em qualquer nome. Os desejos daqueles homens haviam sido pequenos, e suas idéias a respeito do que perguntar eram obscuras e toscas; quais­quer desejos de amplas dimensões que tivessem, haviam sido de caráter mundano, de forma que Deus não poderia concedê-los. Eles haviam se comportado como crianças, para quem um centavo parece ser maior do que mil para um homem rico. Mas Jesus sugere que, embora não diga claramente, sucederá o contrário com os seus apóstolos depois do ad­vento do Consolador. Então eles serão pobres meninos que se tornaram ricos mercadores, cujas idéias de alegria foram ampliadas pela sua fortu­na exterior. Então eles serão capazes de orar de tal modo como fez Paulo em sua prisão romana em favor da igreja efésia, e da igreja de todos os tempos; serão capazes de fazer a oração do Senhor, e especialmente de dizer: “Venha o teu reino”. E isso farão com compreensão do sentido, um fervoroso desejo e uma garantia da fé, da qual no presente não têm sequer a concepção. Até agora eles têm se comportado como crianças, que questionam os seus pais a respeito de coisas insignificantes como brinquedos e moedas; então devem crescer e aumentar a sua demanda em relação à riqueza da graça de Deus para si próprios, para a igreja e para o mundo.

Junto com esse aumento, as promessas de Jesus serão repletas de alegria. O que for pedido, o Pai concederá; e a resposta à oração encherá o cálice da alegria até à borda. A esperança pode ser deferida por uma

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estação, mas no final virá a alegria inexprimível do cumprimento da esperança. “Pedi e recebereis, para que a vossa alegria se cumpra”. E assim foi a experiência dos apóstolos. Eles tinham abundância de alegria no Espírito Santo, na obra deste em seus próprios corações e no mundo. E essa lei ainda permanece. Mas por que, então, o cristianismo parece não estar progredindo como poderia? Devemos responder a esta questão perguntando uns aos outros: Quantas pessoas têm um coração ansioso e desejoso pela compreensão? Quantas pessoas, de toda a sua alma, dese­jam para si, sobre todas as coisas, a santificação e o entendimento? Quantas, sincera e fervorosamente, desejam a conversão dos ímpios, a união, a paz, a pureza da igreja e que a integridade prevaleça na socieda­de como um todo? Somos limitados em nossos próprios corações, não em Deus.

O discurso de despedida está agora no final. Jesus disse aos seus discípulos o que o tempo permitia e o que eles eram capazes de ouvir. Ele não considerou que havia transmitido muitas instruções às suas men­tes, ou que havia feito muito por eles em termos de consolação. O Se­nhor tem uma idéia muito humilde sobre o efeito prático imediato do discurso que acabou de fazer. Fazendo uma breve retrospectiva, em uma provável alusão ao que acabara de dizer, o Senhor observa: “Disse-vos isso por parábolas”. Podemos citar algumas parábolas proferidas pelo Senhor: sobre a casa que tem várias moradas, sobre a Trindade Divina vindo para fixar sua moradia nos fiéis, sobre a vinha e seus ramos, e sobre as dores e alegrias maternais. Estas, sob a perspectiva do locutor, demonstram a essência de seu discurso.

Consciente da inevitável lentidão para entenderem não apenas o discurso presente, mas todo o seu ensino anterior, Jesus aproveita pela terceira vez a ocasião para repetir a promessa da compreensão espiritual futura, desta vez falando de si próprio como aquEle que dá a compreen­são, e representando a doutrina do Pai como o grande tópico desta. “Chega, porém, a hora em que vos não falarei mais por parábolas, mas abertamente vos falarei acerca do Pai”. A ocasião referida é o período a partir de sua ascensão. Pouco tempo depois, os discípulos viriam a vivenciar a resposta do pedido de Filipe, que desejava compreender o que seu Senhor quis dizer quando falou em ir até o Pai, e a .perceber a

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respectiva conseqüência abençoada em suas vidas. Então o seu Senhor exaltado, através do Espírito da verdade, lhes fala abertamente desta e de outras questões em comparação com o estilo de seu discurso presente, que era espiritual e proferido através de parábolas, elucidando outras passagens das Escrituras que relacionam a parcialidade e a falta de clare­za de todo o conhecimento espiritual neste estado de vida na terra.

Dos tempos felizes por vir, Jesus ainda tem algo mais a dizer; não algo novo, mas antigo, dito de modo novo, magnificamente benevolente e singelo. Suas palavras estão relacionadas à oração e aos seus efeitos. Em outras palavras: “No dia de vossa iluminação, como Eu já disse, não orareis menos do que antes, e sim muito mais, e usareis o meu nome como um apelo para que sejais ouvidos. Asseguro-vos, uma vez mais, de que sereis ouvidos. Em apoio a esta afirmação, devo lembrar-vos de que estarei no céu com o Pai, sempre pronto a pronunciar uma palavra a vosso favor, dizendo: ‘Pai, ouve-os por amor a mim, pois é em meu Nome que os seus pedidos são feitos’. Mas não insisto nisso, não apenas porque não precisais ser assegurados de meu interesse contínuo em vos­so bem-estar, mas especialmente porque minha intercessão não se fará necessária. Meu Pai sempre vos ouvirá, pois estivestes comigo em todas as minhas tentações59, amastes-me com afeição e coração leal, crestes em mim como o Cristo, o Filho do Deus vivo, enquanto muitos no mundo têm me considerado como um impostor e um blasfemador. Por esses serviços a seu Filho, meu Pai vos ama e vos é grato — em um sentido no qual Ele se considera vosso devedor60”. Que coração, que humanidade, que poesia existe em tudo isso! — poesia, e também verdade; a verdade inexprimivelmente confortadora não apenas para os onze companheiros fiéis de Jesus, mas para todos os que crêem nEle sinceramente.

Tendo aludido à fé de seus discípulos — tão meritória, por ser tão rara —Jesus aproveita a ocasião para encerrar o seu discurso, e no final de sua vida na terra solenemente declara mais uma vez a verdade. “Saí do Pai e vim ao mundo; outra vez, deixo o mundo e vou para o Pai”61. Os discípulos acreditaram apenas na primeira parte desta declaração, pois não compreendiam a segunda; mas Jesus coloca ambas juntas como duas metades de uma única verdade, onde uma implica necessariamente na outra. A declaração é altamente importante pois resume a história de

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Cristo; é a essência da fé cristã; afirma doutrinas absolutamente incom­patíveis com a visão meramente humana da pessoa de Cristo, e torna a sua divindade uma parte fundamental da fé.

Essas últimas palavras de Jesus eclodem sobre os discípulos como uma estrela que brilha repentinamente em meio às nuvens em uma noite escura. Com o tempo, uma expressão luminosa rompeu a neblina do discurso misterioso de seu Mestre, e eles imaginaram que finalmente haviam compreendido o seu significado. Jesus havia acabado de lhes di­zer que saíra do Pai e que viera ao mundo. Pelo menos isso eles compreen­deram; porque acreditavam que haviam se tornado discípulos. Satisfei­tos por terem ouvido algo a que poderiam dar uma resposta sincera, eles fazem o máximo e informam a seu Mestre que a sua locução inteligível e plena, e a compreensão inteligente que Ele havia projetado para o futu­ro, já existiam de fato. “Eis que”, disseram eles, com ênfase na partícula temporal, “agora, falas abertamente e não dizes parábola alguma. Agora, conhecemos que sabes tudo e não precisas de que alguém te interrogue. Por isso, cremos que saíste de Deus”.

E assim, é impossível que as crianças se expressem de um modo diferente daquele cabível à sua idade! Ao professarem o seu conhecimen­to, os discípulos demonstram a sua completa ignorância. Começando com o segundo “agora”, a declaração indica uma grande falta de compre­ensão em relação àquilo que Jesus havia dito a respeito de lhe fazerem perguntas quando tivessem mais entendimento. Ele quis dizer que eles então não necessitariam fazer perguntas como os aprendizes; os discípu­los entenderam suas palavras como significando que Ele próprio não necessitava fazer perguntas sobre quem era ou de onde vinha. Eles já aceitavam sua reivindicação de ter vindo do céu. E assim nada podemos dizer quanto à inferência expressa pela declaração: “Por isso, cremos”. Após muitas tentativas de compreender a lógica dos discípulos, devemos nos confessar perplexos. O único meio pelo qual podemos dar um sen­tido tolerável a estas palavras, é considerar o termo traduzido como “isso” como um advérbio de tempo, e ler “neste momento presente”. Embora alguma idéia adicional possa nos estar reservada para o futuro, nós agora cremos que Tu vieste de Deus. Esta tradução, contudo, não é apoiada, ou mesmo sugerida, por nenhum dos críticos62.

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Os discípulos sinceramente acreditavam que aquilo que professa­vam era a verdade. Jesus havia acabado de confirmar isso. Mas eles não haviam compreendido o que estava envolvido em sua crença. Eles não compreendiam que a vinda de Jesus do Pai implicava uma nova partida. Eles não haviam compreendido isso no início do discurso; não compre­enderam quando o discurso havia terminado; não compreenderiam até que o Senhor partisse e o Espírito viesse para tornar claras todas as coisas. Em conseqüência dessa ignorância, a fé daqueles homens não os sustentaria naquelas horas tão cruéis que se aproximavam. A morte de seu Mestre, o primeiro passo no processo de sua partida, os pegaria de surpresa e os faria entrar em pânico, como ovelhas atacadas por lobos. Então, Jesus lhes disse claramente: “Credes, agora?” Ele disse: “Eis que chega a hora, e já se aproxima, em que vós sereis dispersos, cada um para sua casa, e me deixareis só, mas não estou só, porque o Pai está comigo”63.

Uma dura realidade, duramente anunciada; mas com toda a dificul­dade, Jesus não tem medo de encará-la de forma direta. Seu coração se encontra em perfeita paz, porque Ele tem dois grandes consolos. O Se­nhor tem uma boa consciência. Ele pode dizer: “Eu venci o mundo”.

Jesus assegurou a sua integridade moral contra a tentação incessan­te. O príncipe deste mundo não encontrou nenhum traço do seu espíri­to nEle, e por esta exata razão irá crucificá-lo. Mas assim procedendo, Satanás não anulará, mas, ao contrário, selará a vitória de Cristo. A apa­rente derrota pelo poder mundano, será apenas o início e a medida de sua conquista espiritual. O mundo pensa que levá-lo à morte seja o segundo melhor modo de vencê-lo. Seus inimigos estariam muito mais contentes se tivessem obtido sucesso intimidando-o ou subornando-o para obter um acordo. Os poderes malignos do mundo sempre preferem a corrupção à perseguição como o meio mais adequado de se livrarem da verdade e da justiça; somente depois de falharem nas tentativas de corromper a consciência, e tornar o homem venal, é que recorrem à violência.

A outra fonte de consolação de Cristo diante da morte é a aprova­ção de seu Pai: “Não estou só, porque o Pai está comigo”. O Pai estava com Ele durante todo o tempo. Em três ocasiões críticas — no batismo, na transfiguração ocorrida no monte, no Templo há poucos dias atrás —

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o Pai o havia encorajado com uma voz de aprovação. O Senhor sente que o Pai ainda está com ele. Espera que o Pai continue ao seu lado quando for abandonado por seus escolhidos, e em meio a todas as crises terríveis que está prestes a enfrentar, mesmo naquele momento que seria o mais amargo e escuro, quando a perda da sensível presença de seu Pai o faria exclamar: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Ele espera que seu Pai esteja com Ele então, não para salvá-lo do sentimento de deser­ção (Ele não desejava ser salvo disso, porque tinha plena consciência de que veio para sofrer a maior de todas as dores, neste e em todos os outros aspectos, para ser como um irmão de cada ser humano; e assim seria capaz de socorrê-los quando se sentissem tentados a se desesperar), mas para sustentá-lo sob a chaga da aflição, e habilitá-lo com a fé filial para clamar “Deus meu” mesmo quando se sentisse abandonado. Livre de toda inquietação em relação a si próprio, Jesus propõe a seus discípu­los que tenham bom ânimo; e isto pela mesma razão que fez com que Ele não temesse, isto é, por ter vencido o mundo. O Senhor fará com que compreendam que a sua vitória também é deles. Em outras palavras: Tende bom ânimo; eu venci o mundo, e vós também o fizestes — isso foi o que Ele quis dizer. Homens de tendências socinianas interpretariam as palavras de forma diferente. Eles interpretariam as palavras de Jesus como: Eu venci o mundo, e assim vocês também deverão fazê-lo. Sigam o meu exemplo, e corajosamente lutem a batalha da justiça, apesar das tribula- ções64. O significado é bom o suficiente, até o seu limite. Encoraja as pessoas para a batalha da vida através do conhecimento de que o Senhor da glória passou por tudo isso antes delas. O fato de Ele ter sido um combatente é um pensamento inspirador; pois quem não seguiria o Di­vino Capitão da Salvação, que nos lidera em meio ao sofrimento levan- do-nos à glória? Então, quando pensamos que esse Combatente augusto foi completamente vitorioso na batalha, seu exemplo se torna ainda mais encorajador. Sua vitória mostra que o deus deste mundo não é onipo­tente; qualquer pessoa que desejar vencê-lo poderá fazê-lo simplesmente estando disposta a carregar a cruz. Vendo a forma como Jesus suportou a contradição dos pecadores — enfrentando até mesmo a morte, e des­prezando a vergonha da crucificação — seus seguidores se sentem mais encorajados a combater o bom combate da fé.

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Mas embora isso seja verdade, é a menor parte dela. O fato importan­te é que a vitória de Cristo é a vitória de seus seguidores, e assegura que eles também devem vencer. Jesus combateu o seu combate não buscando um benefício individual, mas como um personagem público, como um repre­sentante da raça humana. E todos são bem-vindos a reivindicar os benefí­cios de sua vitória — o perdão dos pecados, o poder para resistir ao malig­no e a admissão no Reino eterno. Por Cristo ter vencido, podemos dizer a todos que tenham bom ânimo. A vitória do Filho de Deus em sua nature­za humana é um recurso de consolação disponível a todos os que fazem parte dessa natureza. E um privilégio de todo homem (assim como um dever) reconhecer a Cristo como o seu representante nessa grande batalha. “Cristo é a cabeça de todo varão”. Todos aqueles que reconhecem sincera­mente este relacionamento receberão os seus benefícios. Reivindique a sua filiação ao Sumo Sacerdote, e você deverá receber dEle a misericórdia e a graça que lhe ajudarão em seus momentos de necessidade. Coloque em seu coração que os homens não são unidades isoladas, lutando suas próprias bata­lhas sem qualquer ajuda ou encorajamento. Somos de fato membros uns dos outros, e sobretudo, temos em Cristo um pai e um irmão mais velho. Aqueles que ainda não têm um relacionamento regenerado com Cristo devem saber que já têm, ao menos, um relacionamento humano com Ele. Enxerguemo-lo, então, como a nossa Cabeça em todas as coisas: como o nosso Rei, e abaixemos as armas da nossa rebelião; como o nosso Sumo Sacerdote, e recebamos dEle o perdão de nossos pecados; como o nosso Senhor, e sejamos governados por sua vontade, defendidos por seu poder e guiados por sua graça. Se o fizermos, o acusador dos irmãos não terá chance de prevalecer contra nós. As palavras do apóstolo João em Apocalipse serão cumpridas em nossa história: “Eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho; e não amaram a sua vida até à morte”.

1 João I5 .I -I72 Versículo 163 Sanday (Forth Gospel, p. 231) fala da alegoria da videira como pertencendo a um período diferente e mais

didático da vida de Cristo, e o representa como um momentâneo rompimento da linha de raciocínio que tem a finalidade de confortar os discípulos quanto à perspectiva da iminente partida de seu Senhor. Este foi certamente um objetivo, mas não o único. A alegoria é muito adequada a outro objetivo principal do discurso, isto é, colocar diante dos ouvintes as responsabilidades que tinham como apóstolos da fé cristã.

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4 João 15.25 João 15.36 Versículo 57 João 15.48 João 15.59 Veja o estudo biográfico de Sereno E. Dwight, prefixado na edição inglesa das Works o f Edwards, em dois

volumes: vol. I. p. 172.10 João 15.10 EI Versículo 712 João 15.213 Versículo 614 Versículos 8-1715 Versículo 816 Versículo 1617 Robinson, Biblical Researches, I. 523.18 João 12.24, 3319 João Í5.8. Vide leituras variadas, genes the em v ez de genêsestbe. O sentido é basicamente o mesmo, qualquer que seja

a leitura que preferirmos.20 João 15.IX21 João 15.1522 Versículo 1623 Versículos 12, 1724 João 16.1; veja também o versículo 425 João 15.1826 João 16.2; conforme aVersão Revisada em inglês. A idéia é que os assassinos imaginem que estão oferecendo

um serviço ou sacrifício religioso aceitável a Deus.27 João 15.20; comp. 13.16, também 12.2628 João 15.1929 João 15.2130 Versículos 22-2531 João 15.2632 Versículo 27. Hofmann considera martureite no versículo 27 como um imperativo: “E também dai testemunho

de mim: dizei ao mundo quem eu sou” — Schriftbeweis, 2te Hálfte, 2te Abtheilung, p. 19.33 João 16.234 João 16.435 Stier36 Luthardt37 João 16.5, 6. Olshausen une a primeira parte do versículo 5 ao versículo anterior, e supõe uma pausa depois

que as palavras foram proferidas.38 João 16.739 João 16.7-1540 apeltho, poreutko41 João I6 .8 -II42 João 16.12-1543 João 15.2644 João 16.1245 Versículo 1346 Versículo 1447 Versículo 10: “E não me vereis mais'’ é uma expressão que eqüivale a dizer: Não serei mais visto na terra. Esta

expressão sugere que a terra era o lugar da peregrinação de Cristo, e o céu o seu lar; portanto, pode-se afirmar, através desta passagem, a sua Divindade.

48 A personalidade do Espírito Santo é assumida ao longo de todo esse discurso. Veja o versículo 13, ekeinos.49 Mateus 16.2550 Existem duas palavras em grego theoreite, opsesthe.

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51 João 16.1832 Versículos 19-2153 Versículos 20-224 Para conhecer as várias opiniões a respeito dessas questões, veja as obras de Stier, Luthardt, Lange, Olshausen.

Alford, etc.5:> Alguém que tivesse sido apresentado ao mais alto grau (terceiro) dos mistérios eleusinianos era chamado de

epoptes. Veja Platão, Convivium (O discurso de Sócrates a respeito de Diotime, como Erõs).56 João 16.23-2457 Assim como Luthardt, 2.348, que sustenta que a primeira cláusula do versículo 23 se refere à condição final

da igreja, e a segunda, ao seu estado de imperfeição, com base no fato de que os dois não podem ser contemporâ­neos. Ele diz que onde há oração há um pedido, e vice-versa. Contudo, é ainda verdadeiro que quanto menos um homem necessita fazer perguntas, mais esclarecido é; e assim supõe-se que desejará orar mais.

58 João 16.23. O verbo traduzido nesta frase como pedir não é o mesmo daquele representado pela mesma palavra em inglês no primeiro. Na primeira oração é erõtesate; na segunda, aitêsête.

59 Lucas 22.28. Veja a nota 14 do capítulo 260 João 16.26,2761 Versículo 2862 Winer, em sua obra Neutest. Grammatik, declara que não conhece um exemplo mais claro do uso de en touto = por

isto, ou por causa de. De seu uso = intereâ ele cita vários exemplos de autores clássicos, p. 361-362 (tradução de Moulton, p. 484).

63 Os comentaristas nos dizem que arti pisteuete não é uma pergunta. Se não, por que não há uma partícula adversativa na próxima oração ( erchetai de)} A oração é, sem dúvida, interrogativa. Cristo questiona não a realidade em si, mas a suficiên-cia da fé de seus discípulos.

64 Sobre a teoria sociniana da expiação, veja a obra The Humiliation o f Christ (a 6a série de Cunningham Lectures) Lect. 7. p. 296, 2a edição.

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João 17

solene e respeitoso silêncio e sem qualquer anotação ou comentário, o conteúdo ou as circunstâncias em que foi oferecida a Deus a incompará­vel e sublime oração pronunciada por Jesus em seu discurso de despedi­da aos discípulos. Não é sem relutância que agora abandonamos nossa intenção, compelidos pelas considerações de que ela não foi oferecida apenas mentalmente a Deus, mas também para os ouvidos e a instrução dos onze homens presentes, e isso foi registrado por um deles para o benefício da igreja em todos os séculos. E devemos nos esforçar para compreender e interpretar aquilo que foi agradável a Deus preservar para nosso uso.

A oração está originariamente dividida em três partes: na primei­ra, Jesus ora por si mesmo, na segunda pelos seus discípulos, e na terceira pela igreja que passaria a existir através das pregações deles.

A oração em que Jesus pede por si mesmo (v. 1-5) contém ape­nas um pedido e suas duas razões. O pedido é: “Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho”; onde a maneira de se dirigir, simples, familiar e confidencial, é verdadeiramente digna de nota. "Pai!” — essa é a pri­meira palavra da oração, repetida seis vezes em seu decurso, com ou sem um epíteto anexado a ela, mas com o nome que Jesus dá a quem a sua oração é dirigida. Ele fala com Deus como se já estivesse no céu, segundo diz expressamente um pouco depois: “E eu já não estou mais no mundo”.

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A frase bastante significativa, “é chegada a hora”, não é menos dig­na de nota. O quanto ela exprime! — obediência filial, intimidade filial, esperança e alegria filiais. A hora! Era a hora pela qual Ele havia espera­do pacientemente, que havia aguardado com ansiosa expectativa, mas que, no entanto, nunca havia procurado apressar; a hora determinada pelo seu Pai e sobre a qual Pai e Filho sempre estiveram de acordo e da qual ninguém, a não ser Eles, tinha qualquer conhecimento. Aquela hora havia chegado, e sua chegada é anunciada como uma justificativa para dar suporte ao seu pedido; em outras palavras: “Tu sabes, Pai, o quanto esperei pacientemente pelo que agora estou pedindo, sem me cansar de bem proceder, nem me afastar dos percalços de meu destino terreno. Agora que minha missão se aproxima de seu desfecho final, conceda-me o desejo de meu coração e glorifica-me”.

“Glorifica-me”, isto é, “leva-me para estar junto a ti”. A oração de Jesus é para que seu Pai possa agora se alegrar em transportá-lo desse mundo de tristezas e pecados para o estado de glória que Ele havia dei­xado para trás, quando se tornou homem. Assim Ele explica sua própria intenção quando repete o pedido sob uma forma mais alongada, tal qual encontramos no versículo 5: “E, agora, glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela glória que tinha contigo antes que o mundo existis­se”, isto é, com a glória que Ele gozava no seio do Pai antes de sua encarnação, como o Filho Eterno de Deus.

Podemos observar que nessa oração por si mesmo, Jesus não faz nenhuma alusão aos seus sofrimentos tão próximos. Pouco tempo de­pois, no Getsêmani, Ele oraria assim: “Pai... afasta de mim este cálice”. Mas aqui não há nenhuma menção a esse cálice de sofrimento, mas so­mente à coroa de glória, pois o verdadeiro céu está totalmente visível e a antecipação de suas glórias fazem com que Ele se esqueça de todas as outras coisas. Somente depois de Ele ter penetrado nas trevas, as nuvens cinzentas começarão a se reunir, obscurecendo o céu e apagando de sua visão o mundo celestial. No entanto, a morte que se aproxima, embora não mencionada, está virtualmente incluída na oração. Jesus sabe que deve passar do sofrimento para a glória, e que deve se comportar digna­mente durante a sua última provação a fim de alcançar o tão desejado objetivo. Portanto, a oração que pronunciou inclui uma outra oração

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silenciosa: “Leva-me com segurança através da luta que se aproxima, deixe-me passar do vale das trevas para os domínios da luz, sem temor ou hesitação”1.

A primeira razão anexada a essa oração é: “Para que também o teu Filho te glorifique a ti”. Jesus está buscando a sua própria glorificação simplesmente como o meio de chegar a um fim mais supremo — a glorifi­cação de Deus Pai. E assim fazendo a conexão das duas glorificações como meio e fim, Ele está apenas repetindo ao Pai o que já havia dito aos discí­pulos em seu discurso de despedida, isto é, que seria bom para eles que Ele partisse porque somente depois de sua partida uma profunda impressão seria deixada indelével na consciência do mundo no que se refere à sua pessoa e à sua doutrina. Agora, Ele verdadeiramente diz ao Pai, em outras palavras: “Será bom para a tua glória que eu deixe a terra e vá para o céu; pois assim poderei melhor promover a tua glória na terra do que através de uma prolongada estadia aqui”. Para reforçar essa razão, Jesus declara em seguida que deseja glorificar o Pai em seu ofício como o Salvador dos pecadores: “Assim como lhe deste poder sobre toda carne, para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste”2. Interpretada à luz dessa sentença, essa oração quer dizer: “Tu me enviaste ao mundo para salvar os pecado­res, por isso tenho estado constantemente ocupado em procurar os perdi­dos e comunicar a vida eterna àqueles que desejarem recebê-la. Mas é chegada a hora em que essa missão poderá ser melhor desempenhada se Eu tiver ressuscitado. Portanto, elevai-me a teu trono, pois, a partir dele, como Príncipe e Salvador, poderei distribuir as bênçãos da salvação”.

E importante observar como Jesus define sua incumbência de ser o Salvador. Ele a representa como imediatamente relativa a toda a humani­dade e, em especial, a uma classe seleta de homens, atribuindo dessa ma­neira à sua missão uma referência geral e outra particular, de acordo com os ensinos contidos em todo o Novo Testamento que, em um momento, estabelece a figura de Cristo como o Salvador de todos os homens e em outro a sua figura como Salvador de seu povo, dos eleitos, de suas ovelhas, daqueles que nEle crêem. Temos o dever e o privilégio de imitar esse estilo de discurso que fala sobre a obra redentora de nosso Salvador, evitando quaisquer extremos, tanto o de negar ou ignorar os aspectos universais da missão de Cristo, como o de sustentar que, no mesmo sentido, Ele é o

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Salvador de todos ou que Ele deverá e irá salvar a todos, de qualquer modo,, no final. Esses dois extremos foram excluídos pelas palavras cuida­dosamente escolhidas por Jesus em sua oração intercessória. Por um lado, Ele está se referindo a toda a humanidade como se ela pertencesse à sua jurisdição como Salvador e, em seguida, como se fosse uma massa na qual deveria ser introduzido o fermento com o objetivo de fazê-la crescer. Por outro lado, existe uma óbvia restrição à universalidade da primeira cláusula nos termos da segunda. Os defensores da restauração universal não encon­tram aqui nenhum suporte para o seu dogma. Estes podem até indagar: “Uma vez que Jesus tem poder sobre toda a carne, não seria de acreditar que Ele iria usá-lo o máximo possível?” Em nossa resposta não iremos procurar fugir à questão reduzindo o poder reivindicado por Ele a uma simples soberania mediadora em relação ao todo apenas em benefício de uma parte, porque sabemos que a parte eleita foi escolhida não apenas em seu próprio benefício, mas também em benefício do todo, por ser o que de melhor havia na terra, por ser a luz do mundo e o fermento que levedaria a massa corrupta3. Simplesmente observaremos que o poder do Salvador não é compulsório. Os homens não são salvos à força, como se fossem máquinas, mas pelo amor e pela graça, porque são seres livres; e infeliz­mente existem muitos que poderiam ser reunidos sob as asas da expressão do amor, porém preferiram permanecer do lado de fora para a sua própria destruição.

A essência da vida eterna está definida na sentença seguinte da ora­ção, e é representada pelo conhecimento do único e verdadeiro Deus, e de Jesus Cristo como seu mensageiro; conhecimento esse assumido de uma forma abrangente, que incluiu fé, amor, adoração e a ênfase aos objetos de tal conhecimento. Aqui, a religião cristã é descrita, por um lado, em oposição ao paganismo com seus inúmeros deuses e, por outro, em oposição ao judaísmo que acreditava em um Deus único mas rejeitava as alegações de Jesus quando dizia ser o Cristo. Sua descrição vai mais além e exclui, por antecipação, as opiniões do arianismo e do socianismo a respeito da pessoa de Cristo. Os nomes de Deus e de Jesus são colocados no mesmo nível como objetos de uma consideração religiosa por meio da qual é atribuída ao último uma importância incompatível com o dogma de que Jesus era um simples homem. Pois a vida eterna não pode depen­

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der do conhecimento de qualquer homem, por melhor e mais sábio que seja; o máximo que se pode dizer a respeito do benefício auferido de tal conhecimento é que ele pode ajudar a conhecer melhor a Deus, e isso pode ser afirmado não só em relação a Jesus, mas também a Moisés, Paulo, João e todos os apóstolos.

Pode parecer estranho que Jesus, ao se dirigir ao Pai, tenha conside­rado necessário explicar em que consiste a vida eterna, sendo que alguns, para se verem livres dessa dificuldade, chegaram a supor que essa senten­ça fosse apenas uma reflexão explicativa introduzida pelo evangelista na oração. No entanto, essas palavras estão perfeitamente adequadas à ex­press ão do próprio Senhor Jesus. A primeira cláusula é uma confissão, feita pelo homem Jesus, de sua fé em Deus, seu Pai, como o supremo objeto do conhecimento, enquanto a sentença como um todo é, na ver­dade, um argumento usado para amparar a oração, “Glorifica a Teu Fi­lho”. A força dessa declaração reside naquilo que ela implica a respeito da ignorância existente nos homens a respeito do Pai e seu Filho. E como se Jesus dissesse: “Pai, tu sabes que a vida eterna consiste em co­nhecer a ti e a mim. Portanto, olhe em volta, e veja como são poucos os que possuem esse conhecimento. O mundo pagão não te conheceu, pois adorava os ídolos. O mundo judeu é igualmente ignorante a teu respeito, em espírito e em verdade, pois enquanto se vangloriava de te conhecer, me rejeitava. O mundo todo está coberto pelo obscuro véu da ignorân­cia e da superstição. Portanto, leva-me embora daqui, não porque Eu esteja cansado dos pecados e da ignorância deles, mas para que Eu possa me tornar uma luz para eles. Até agora, os meus esforços para iluminar as trevas tiveram sucesso, porém conceda-me uma posição de onde Eu possa iluminar toda a terra”.

Mas por que o Salvador sozinho, aqui, em toda a história do evan­gelho, dá a si mesmo o nome de Jesus Cristo? Alguns vêm nesse nome composto, comum na idade apostólica, uma outra prova de que esse versículo é uma interpolação. Isso, entretanto, não tem qualquer razão, pois o estilo com que Jesus indica a si próprio está exatamente adequa­do ao objetivo que tem em mente. Ele está implorando ao Pai que o conduza à glória para que possa, mais eficientemente, propagar a ver­dadeira fé. O que poderia ser mais apropriado, nessa conexão, do que

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falar objetivamente de si próprio sob o nome pelo qual Ele se tornaria conhecido entre os mestres dessa verdadeira fé?

A segunda razão pleiteada por Jesus, em suporte à sua oração, é que a missão que lhe havia sido confiada tinha sido fielmente cumprida, e agora Ele está reclamando a sua recompensa: “Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste a fazer. E, agora, glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo”4. O Grandioso Servo de Deus está falando aqui não só com referência ao passado mas também, e por antecipação, com referência ao seu sofrimento já suportado em seu propósito; portanto, nessa oração a expressão “tendo consumado” eqüivale, em seu significado, ao “está con­sumado” que Ele pronuncia na cruz. E o que Ele diz a respeito de si mesmo é verdadeiro: essa declaração, que nenhum outro ser humano po­deria ter feito sem se abater, não representa um exagero ou uma presumida peça de louvor próprio, mas a declaração humana, humilde e sóbria de uma consciência isenta de ofensas em relação a Deus e aos homens. Nem poderíamos afirmar que essa declaração, embora verdadeira, fosse supér­flua ou mesmo uma excessiva expressão de si próprio. Era preciso que Jesus a fizesse e, embora o fato em si já fosse do conhecimento de Deus, era desejável proclamá-lo aos ouvidos dos onze e de toda a igreja através de seu registro, sobre as bases em que repousava seu pleito de ser recompensa­do com glória para o fortalecimento da fé. Pois, uma vez que a nossa fé e esperança em relação a Deus estão baseadas no fato de Jesus Cristo ter feito a declaração acima, elas também são confirmadas pelo seu verdadeiro entendimento, por sua afirmação de que Ele manteve o seu pacto de traba­lhar, o qual, de alguma forma, representou para nós o selo de uma graça cuja finalidade é a mesma da ordenança da Santa Ceia.

Tendo apresentado essa breve petição por si próprio, Jesus prosse­guiu orando mais longamente pelos seus discípulos, e tudo que se segue está relacionado principalmente a eles, isto é, do versículo 6 ao 20, tudo se refere exclusivamente a eles. A transição é feita através de uma declara­ção especial onde aplica a idéia geral da sentença precedente àquela parte da obra pessoal de Cristo que consistia no treinamento desses homens: “Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste”5. Depois dessa declaração introdutória, segue-se uma breve descrição das pessoas que em seguida iriam receber a sua oração. Jesus dá aos discípulos um

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bom caráter. Em primeiro lugar, ao ser escrupulosamente cuidadoso em não exagerar a importância do serviço que prestou ao treiná-los para o apostolado, Ele reconhece que eles eram bons quando os encontrou: “Eram teus e tu mos deste”. Eles eram homens piedosos e devotos, ensi­nados por Deus, enviados por Deus e concedidos por Deus. Em segui­da, Ele dá testemunho de que desde o momento em que passaram a estar em sua companhia haviam mantido o mesmo caráter que possuíam an­tes de se juntar a Ele: “E guardaram tua palavra”. E, finalmente, o Se­nhor confirma que os homens que seu Pai lhe havia concedido tinham se mostrado verdadeiros crentes em sua pessoa e tinham recebido todas as suas palavras como sendo a própria verdade de Deus e dEle próprio, que havia sido enviado ao mundo por Deus6. Encontramos aqui, com toda certeza, uma generosa graça de Deus aos discípulos que, embora since­ros e devotados ao seu Mestre, estavam, como já sabemos, extremamente faltosos em conduta e lentos para aprender.

Após ter, generosamente, elogiado seus humildes companheiros, Jesus transmite a sua intenção de orar por eles: “Eu rogo por eles”. Mas essa oração ainda não vem a princípio, pois algumas palavras, como pre­fácio, deveriam ser apresentadas para dar-lhe maior ênfase quando fosse realmente proferida. Em primeiro lugar, porque as pessoas que iriam recebê-la foram escolhidas para ser, naquele momento, os únicos objetos de uma concentrada solicitude. “Eu rogo por eles; não rogo pelo mun­do”7. A intenção de Jesus ao fazer essa declaração não era, naturalmente, sugerir a exclusão do mundo de sua compaixão. Seu propósito aqui não é a exclusão, mas uma atenção dirigida a uma eventual inclusão. Ele iria pedir ao Pai para dirigir as suas especiais considerações a esse pequeno grupo de homens aos quais o destino do cristianismo estaria intimamente ligado. Ele ora por eles como uma mãe às portas da morte oraria ex­clusivamente por seus filhos, não por estar indiferente aos interesses de todos aqueles que a cercavam, mas porque sua família nessa solene situação representa para ela o objeto legítimo de uma solicitude absor­vente e monopolizadora. Ele ora por eles como se fossem o fruto pre­cioso do trabalho de sua vida, a esperança do futuro, os fundadores da igreja, a Arca de Noé da fé cristã, os missionários da verdade a todo o mundo: somente para eles, mas em benefício do mundo, sendo que a

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melhor coisa que Ele pode fazer ao mundo, nesse intervalo, será encomendá-lo aos cuidados do Pai.

O que Jesus quer dizer aos homens assim escolhidos não podemos, por nós mesmos, imaginar. Talvez para que seu Pai os guardasse, agora que Ele estava prestes a deixá-los. Porém, antes de fazer o pedido, aparecem duas razões pelas quais seu pedido deveria ser concedido. A primeira está expressa nestes termos: “E todas as minhas coisas são tuas, e as tuas coisas são minhas; e nisso sou glorificado”8. Na verdade, seu significado é: “E de tua responsabilidade, de teu interesse, guardar esses homens. Eles são teus, tu me deste estes homens; guarda-os como se fossem teus. Embora te­nham pertencido a mim desde que se tornaram discípulos, isso não faz qualquer diferença: eles ainda te pertencem, pois entre tu e mim não existe distinção entre o que é meu e o que é teu. Então, sou glorificado através deles; minha causa, meu nome e minha doutrina irão, daqui por diante, ser identificados com eles e, se eles fracassarem, meus interesses naufragarão. Portanto, assim como tu valorizaste a honra de teu Filho, guarda esses homens”. A outra razão por que o pedido a ser anunciado deveria ser concedido é: “Eu já não estou mais no mundo”9. O Mestre, prestes a partir da terra, encomenda aos cuidados de seu Pai aqueles a quem Ele está deixando, sem colocar um líder em seu lugar.

E agora, finalmente, vem a oração pelos onze, oferecida com a devi­da solenidade através de um enfático pronunciamento ao seu Ouvinte: “Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim como nós”10. O epíteto “santo” estaria adequado ao signifi­cado dessa oração quando ela diz que os discípulos devem ser guardados puros na fé e na prática, isolados de todo erro e pecado que existem, para que possam finalmente representar uma graça para o mundo cor­rupto do qual seu Senhor está prestes a sair. A oração compreende, em si mesma, duas peculiaridades. A primeira é que os discípulos possam ser guardados no nome do Pai que Jesus lhes manifestou, isto é, que possam continuar a acreditar naquilo que Ele lhes ensinou a respeito de Deus, e assim tornar-se o seu instrumento para a propagação do conhecimento do verdadeiro Deus e da verdadeira fé por toda a terra. A segunda é que possam estar em unidade, isto é, que possam ser guardados dentro de um amor mútuo, assim como na fé ao nome divino, separados do mun-

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do, mas não divididos entre s i11, Essas duas virtudes, verdade e amor, são as que Jesus está pedindo para si próprio, como sendo vitais naquele momento: a verdade como uma insígnia de distinção entre a sua igreja e o mundo, e o amor como o vínculo que une os crentes em uma santa comunidade de testemunhas da verdade. A igreja deve guardar essas duas qualidades para sempre como sendo de igual importância, sem sacrificar o amor à verdade, dividindo aqueles que deveriam ser apenas um ao insistir em um testemunho demasiado detalhado ou insignificante, nem sacrificar a verdade ao amor, isto é, fazendo da igreja uma sociedade demasiadamente ampla e extensa, porém, uma sociedade sem vocação, ou sem uma “razão de ser”, sem nenhuma verdade para guardar e ensi­nar, ou nenhum testemunho para ostentar.

Tendo encomendado os seus discípulos aos cuidados do Pai, Jesus em seguida faz um relato de sua própria gestão como Mestre e afirma que os manteve fielmente na verdade divina12. O Senhor declara ter cumprido o seu dever em relação a todos eles, sem mesmo excluir Judas, que fracassou, isentando-se ao mesmo tempo de toda culpa. A referência ao falso discípulo mostra o quanto o Senhor era escrupuloso ao fazer o seu relato. Nestas circunstâncias Ele se sente em uma situação de defesa com referência ao apóstata e provavelmente imagina que alguém poderia lhe fazer a seguinte pergunta: “O que você tem a dizer a respeito desse homem?” E Ele de fato responderia: “Fiz todo o possível para evitar que praticasse o mal, mas ele o escolheu. O filho da perdição não se perdeu por minha culpa”13. Sabemos muito bem que Jesus teria todo o direito de fazer essa afirmação.

Na parte seguinte da oração14 Jesus define o sentido no qual pede que seus discípulos sejam guardados e, ao fazê-lo, oferece novas razões que justificam porque seu pedido deveria ser aceito. Ele os encomenda aos cuidados de seu Pai como depositários da verdade, e por esse motivo são dignos de serem protegidos e precisam desses cuidados por causa da aver­são que o mundo tem à verdade15. O Senhor explica que, quando diz guardar, Ele não quer dizer uma transposição para fora desse mundo, mas sua preservação contra todos os males de natureza moral, pois sua presen­ça no mundo era tão necessária quanto o sal e sua pureza não menos necessária, pois o sal não pode existir sem sabor e virtude. Ele dirigiu essa explicação não apenas aos ouvidos de seu Pai, mas também aos ouvidos de

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seus discípulos. Ele desejava que compreendessem as duas coisas que deve­riam ser igualmente evitadas; a conformidade com o mundo e o cansaço do mundo. Eles deveriam permanecer na verdade, e permanecer no mun­do pelo bem da verdade; atentos, se isso lhes servisse de consolo, para entender, quando sentissem o máximo ódio do mundo, que estavam fa­zendo o bem e que o peso de sua cruz era a medida de sua influência.

Essa proteção pleiteada por Jesus para os seus nada mais era do que a continuação e o aperfeiçoamento de uma condição moral já existente. Agora, pela primeira vez, Ele não precisava pedir ao Pai que separasse seus discípulos do mundo, em espírito e caráter, pois separados eles já estavam desde quando, inicialmente, se juntaram à sua companhia, mas pedia que assim continuassem. E para fazer-lhes justiça, seu Mestre teve o cuidado de declarar duas vezes nessa parte de sua oração. Eles, o Se­nhor testemunha, “não são do mundo, assim como eu não sou do mun­do”16; assim os coloca no mesmo nível que Ele com sua característica generosidade e com toda a verdade, pois as pessoas assim descritas, em­bora sob muitos aspectos cheias de defeitos, eram extremamente abnega­das e nem um pouco preocupadas com a trindade do mundo — riquezas, honras e prazeres — mas somente com as palavras da vida eterna.

No entanto, apesar de sua sinceridade, os onze ainda precisavam não só da guarda divina, mas também de aperfeiçoamento; por esta razão, seu Mestre continuou a orar por sua santificação, tendo em vista, na verdade, não apenas sua perseverança, crescimento e maturidade na gra­ça como soldados cristãos, mas especialmente que fossem equipados para a função do apostolado. Em seguida, Ele continua nas palavras seguintes a fazer menção à sua vocação apostólica, mostrando que ela é primordial aos seus olhos: “Assim como tu me enviaste ao mundo, tam­bém eu os enviei ao mundo”17. Seu grande desejo é que eles possam estar aparelhados para a sua missão. Portanto, Ele prossegue falando sobre a sua própria santificação como o meio para alcançar o fim da santificação apostólica dos discípulos, como se o seu ministério estivesse meramente subordinado ao deles. “E por eles me santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na verdade”18. Palavras notáveis, cujo significado é obscuro e tem sido muito discutido, mas nas quais pode­mos, pelo menos com segurança, descobrir uma singular exibição de

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condescendência e amor. Aqui Jesus fala como um Pai que vive por amor e pelo bem de seus filhos, dedica especial atenção ao treinamento moral em todos os seus hábitos pessoais, recusa todos os prazeres em seu bene­fício, faz desse treinamento o seu principal objetivo e cuida para formar seu caráter, aperfeiçoar sua educação e prepará-los para os deveres da posição que estão destinados a ocupar.

O restante dessa oração (com exceção das duas sentenças finais)19, de um modo geral, diz respeito à igreja — àqueles que deverão crer em Cristo através da palavra dos apóstolos, ouvida de seus lábios ou relata­da em seus escritos. O que Jesus deseja para o corpo de crentes encontra- se parcialmente pressuposto, pois quando Ele diz: “Eu não rogo somente por estes”, está sugerindo que deseja àqueles que em seguida receberão suas orações as mesmas coisas que já pediu para os seus discípulos: preservá-los na verdade e contra todo o mal desse mundo, além da san­tificação pela verdade. A única bênção que Ele expressamente pede para a Igreja é a “unidade”. O anseio de seu coração, para aqueles que acreditarem nEle, é que “todos sejam um”. Seu ideal da unidade da igreja é bastante elevado, seu exemplo divino é a unidade existente entre as pessoas da Divindade, especialmente exemplificadas entre o Pai e o Filho, e seu fundamento é a mesma unidade divina: “como tu, ó Pai, o és em mim, e eu, em ti; que também eles sejam um em nós”, unidos íntima e harmoniosamente pelo nome comum pelo qual foram batizados e pelo qual eles são chamados20.

Essa unidade é desejada por Jesus não só por sua própria impor­tância, mas por causa do poder moral que irá conferir à igreja como uma instituição propagadora da fé cristã: “Para que o mundo creia que tu me enviaste”21. E claro que esse objetivo não poderia ser promovido a não ser que a unidade dos crentes se tornasse, de alguma maneira, de conhe­cimento público. Uma unidade que não seja visível não pode exercer qualquer efeito sobre o mundo, e seria como uma vela acesa que sob uma arca não transmite luz, mais no final até mesmo deixa de ser luz e se extingue. Não pode haver dúvida, portanto, de que o nosso Senhor ti­nha em vista uma unidade que fosse patente, e a única questão era como isso poderia ser alcançado. O primeiro e mais óbvio caminho seria atra­vés da união em uma única organização da igreja, com intermediários

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nomeados para representar todo o corpo e expressar a unidade de seu pensamento, como por exemplo os conselhos ecumênicos dos primeiros séculos. Essa mais completa manifestação de unidade pode ser encon­trada na Igreja Primitiva.

Em nossos dias não é possível fazer, em grande escala, a incorporação dessa união22 e devemos lançar mão de outros métodos para expressar o sentimento de universalidade. Um dos métodos que poderia ser experi­mentado seria aquele de uma confederação onde organizações de igrejas independentes que se reuniriam seguindo o exemplo dos Estados Unidos da América, ou das repúblicas gregas que fundaram um centro de unidade em assembléias legislativas e jurídicas chamados Conselhos Anjitiônicos. No entanto, qualquer que seja o nosso conceito, uma coisa é certa, a unidade dos crentes em Cristo deve ser feita de maneira patente e como um acon­tecimento de alguma forma inegável se a igreja desejar cumprir a sua voca­ção como nação santa, requisitada das trevas para demonstrar as virtudes daquEle cujo nome ela ostenta, e para conquistar para Ele a fé e as home­nagens do mundo. E verdade que a unidade da igreja realmente encontra verdadeira expressão em seu credo, e com isso não estamos nos referindo ao credo seccional dessa ou daquela denominação, mas àquele credo den­tre todos os credos, aquele que expressa a ortodoxia universal do cristianis­mo e compreende seus fundamentos, mas somente os fundamentos da fé cristã. Existe uma igreja, dentre todas as igrejas, para a qual esse credo representa alguma coisa valiosa, tudo o mais sendo, na opinião de seus membros, apenas um invólucro que contém a preciosa semente. Mas a existência dessa igreja é um fato reconhecido apenas pela fé e não pela aparência, e sua influência quase não é percebida pelo mundo. Porém, por mais agradecidos que possamos estar por sua presença em meio às organi­zações eclesiásticas dessa santa comunidade, não podemos aceitar apenas este conjunto organizado como o cumprimento daquele ideal que o Salva­dor tinha em mente quando pronunciou as palavras: “Para que sejam um”.

Nas duas sentenças seguintes23, Jesus amorosamente se demora nes­ta oração, repetindo, expandindo, reforçando seu pedido em linguagem profunda demais para a nossa linha de análise, mas que transmite de forma clara a verdade de que sem unidade a igreja não poderá glorificá- lo e louvá-lo como um Ser divino, nem ter a glória da presença dEle

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permanecendo em seu meio. E essa é uma verdade que, segundo o nosso entendimento, irá mostrar-se à altura da razão. As controvérsias não têm nada de divino, e não é necessária nenhuma participação ou influência de Deus para se instalarem. Qualquer pessoa pode contender; e o mun­do, sabendo disso, terá pouquíssimo respeito por uma igreja envolvida em contendas. Mas o mundo, admirado, arregala os olhos perante uma comunidade na qual prevalecem a paz e a concórdia e diz: “Aqui está algo fora do comum, onde o egoísmo e a obstinação das pessoas foram extirpados da natureza humana. Nada, a não ser a influência divina, poderia subjugar dessa forma as forças centrífugas que tendem a separar os homens uns dos outros”.

O amantíssimo nome do Pai, com que começa a próxima sentença, assinala o início do parágrafo final da oração do grande Sumo Sacerdo­te24. Nesse ponto, Jesus lança seu olhar adiante, em direção ao final de todas as coisas e ora pela consumação final do propósito de Deus em relação à igreja: que a igreja militante possa se tornar a igreja triunfante, que o corpo dos santos, imperfeitamente santificado na terra, possa se tornar perfeitamente santificado e glorificado no céu, ao seu lado, no lugar onde Ele estará, observando a sua glória e transformado em sua imagem pelo Espírito de Deus.

Em seguida vem a conclusão onde Jesus retorna do futuro distante até o presente e reúne em seus pensamentos não só a igreja como um todo mas também o grupo que havia se reunido naquele cenáculo, isto é, Ele próprio e seus discípulos25. Na oração do Senhor, essas duas senten­ças terminais têm a mesma finalidade da frase “em nome de Jesus Cris­to” que mencionamos as nossas orações. Elas contêm dois apelos — pela assistência aos participantes pelos quais a oração é feita, e pela justiça do Ser a quem ela é dirigida — sendo que esse último vem antes, personifica­do no título “Pai justo”. Os serviços, méritos e apelos de Jesus e seus discípulos são mencionados especificamente como itens aos quais o Pai, em sua justiça, não deixará de dar o devido valor. Também é mencionada a ignorância do mundo a respeito de Deus para intensificar o valor do reconhecimento que Ele recebeu de seu Filho, assim como dos compa­nheiros de seu Filho. Essa ignorância explica porque Jesus considerou necessário dizer: “Mas eu te conheci”. Nem mesmo o seu reconhecimen­

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to era algo natural naquele mundo, e o esforço com que o homem Jesus preservou Deus em seu entendimento foi igual ao esforço que precisou despender para manter-se imaculado em meio à corrupção do mundo. Como humano era difícil para Ele conhecer e confessar Deus como sendo seu Pai em um mundo que, usando mais de mil maneiras, pratica­mente negava essa paternidade. Também era difícil viver uma vida de amor em meio às múltiplas tentações de demonstrar egoísmo, cuidando apenas de si mesmo. Na verdade, os dois problemas eram apenas um. Ser luz em meio às trevas, amar em meio ao egoísmo e ser santo em meio à depravação, na verdade tudo isso quer dizer a mesma coisa.

Enquanto fazia um apelo por seus méritos, Jesus não se esquecia dos apelos de seus discípulos. A respeito deles, Ele diz com efeito: E estes te conheceram através de mim, como Eu te conheci de uma forma direta26. Não satisfeito com essa afirmação, Ele discorre de forma por­menorizada sobre a importância desses homens como objetos do cuida­do divino, e mostra claramente que eles são dignos de serem guardados como aqueles que possuem o conhecimento do nome de Deus, e estão antecipadamente destinados a conhecê-lo ainda mais perfeitamente, de modo a se tornarem capazes de fazê-lo conhecido, perante os outros, como aquEle que é digno de toda a honra e glória. E Deus será capaz de amá-los da mesma forma que amou ao seu próprio Filho quando Ele esteve no mundo servindo fielmente a seu Pai celestial. “E eu lhes fiz conhecer o teu nome e lho farei conhecer mais, para que o amor com que me tens amado esteja neles, e eu neles esteja”27. Palavras maravilho­sas que foram proferidas a favor de simples vasos terrenos!

APÊNDICE DOS CAPÍTULOS 24 — 26Anexamos aqui uma análise do discurso de despedida e da oraçào que o acompanhou.

PARTE I - João 13.31-14.31

Div. I — Palavras de conforto aos discípulos como se fossem crianças, dez (ou no máximo treze) sentenças ao todo:

I. Primeira palavra, 13.34,35: Que vos ameis uns aos outros na minha ausência.

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2. Segunda palavra, 14.1-4: Credes em Deus e crede também em mim. Vou cuidar dos vossos interesses enquanto fisicamente ausente, e mais tarde voltarei para vós.

3. Terceira palavra, 14.15-18: Mesmo tendo partido fisicamente, estarei convosco através do Espírito Santo (19-21, ampliados).

Div. II - Perguntas infantis e suas respostas:

1. A pergunta de Pedro, 13.36-38: “Senhor, para onde vais?”2. A pergunta de Tomé, 14.5-7. “Como podemos saber o caminho?”3. O pedido de Felipe, 14.8-14. “Mostra-nos o Pai.”4. A pergunta de Judas, 14.22-24 “De onde vem que te hás de

manifestar a nós e não ao mundo?”

PARTE II - João 15 ,16 : A incum bência p ara os futuros apóstolos após a p artid a do Senhor (estilo modificado)

1. Alegoria da Vinha, I5 .I -I6 : Os meios de os apóstolos de Cristo trabalharem no mundo. Eles trabalham através da vida do Senhor que permanece neles.

2 .Tribulações apostólicas e encorajamentos, 15.18-27; I6 .I -I5 : O mundo irá odiá-los, mas o Espírito irá convencer o mundo e iluminá-lo.

3. Um breve intervalo e o final do discurso, 16.16-33: O paradoxo de ver e não enxergar = ausência física, mas presença espiritual. O adeus.

PARTE III - João 17. Oração in tercessória

1. Oração por si mesmo, versículos 1-52. Oração pelos discípulos, versículos 6-193. Oração pela igreja, versículos 20-234. Conclusão da oração, versículos 24-26

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I Reuss ( Theologie Chrétienne, 2 .455) afirma que o Evangelho de João não conhece uma situação de humilhação e como prova disso faz alusão ao fato de que nesse Evangelho a morte de Cristo é representada como uma glorifica­ção. Sobre esse ponto de vista, veja The Humiliation of Christ, p. 34, 2a ed; e sobre a importância teológica do versículo 5, veja a mesma obra, p. 359.

“ João 17.2. A versão revisada traz a expressão: “Tu deste”. Nesse capítulo, os revisores conduziram de forma extremamente rígida suas opiniões sobre a versão do aoristo. Não há dúvida de que alguns dos aoriscos estão, na verdade, no modo perfeito. Podemos citar aqui as seguintes sentenças da obra de Buttman, Grammar o f The New Testament Greek: “Tem sido negado por muitos gramáticos que o aoristo quer dizer modo perfeito quando se referem ao uso do grego comum, e também por Winer com referência ao Novo Testamento, porém com muito pouca qualificação. Como em muitos outros exemplos, essa questão depende simplesmente de ligar a idéia correta à sua terminologia gramatical; isto é, desde que a relação de tempo expressa pelo modo perfeito esteja, de qualquer forma, de acordo com aquela do aoristo e do modo presente, nos casos em que o aoristo é usado no sentido do modo perfeito, devemos adotar essa opinião sobre o assunto — que o aoristo não tinha a intenção de expressar as duas relações do perfeito ao mesmo tempo, mas que o autor naquele momento afasta-se do presente e coloca-se no passado, conseqüentemente na çosição de um narrador, Essa é., ^ vcvaAs. tva&iraV yari. o "àtode fazer uma redação, e dela resulta não uma aversão positiva ao perfeito, mas uma maior preferência pelo aoristo. Portanto, a continuidade da ação, assim como seu efeito sobre o tempo presente, na verdade r e s id e não no tempo, mas na ligação; e a necessária inserção dessa relação, em todos os casos, é deixada por conta do leitor” — Páginas 197-8; Edição Americana.

3 Sobre esse assunto, veja Martensen, Die Cbristlicbe Dogmatik, § 215 (traduzido na Foreign Theological Library).4 João 17.45 Versículo 66 Versículos 7, 8, cf. Lucas 22.28, 297 Versículo 98 Versículo 109 Versículo 1110 Versículo IIII Versículo II12 Versículo 1213 Versículo 1214 Versículos 14-2015 Versículo 1416 João 17.14, 1617 Versículo 1818 Versículo 1919 Versículos 20-2420 Versículo 2121 Versículos 21, 2322 Essa observação tem o propósito de ser aplicada a toda a igreja visível, dividida não somente pela diversidade

de opiniões sobre doutrinas de importância fundamental, mas também por formas incompatíveis de governar a igreja. A incorporação, local ou parcial, de uma união de corpos, realmente aliados em doutrina e governo, não é apenas praticável, mas obrigatória.

23 João 17.22, 2324 Versículo 2425 Versículos 25, 2626 João 17.2527 Versículo 26

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27As Ovelhas Dispersas

Seçao I - “Todos os Discípulos, Deixando-o, Fugiram”Mateus 26 .36-41, 55, 56, 69-75; João 18 .15 -18

D o cenáculo, onde nos demoramos por tanto tempo, passamos para o mundo exterior, a fim de testemunhar o comportamento dos onze discípulos na grande crise final. As passagens citadas acima descrevem o papel que eles desempenharam nas cenas solenes relacionadas com a morte de seu Mestre. E esse papel, lamentavelmente, nada teve de herói­co. Fé, amor, princípios, tudo isso foi traído perante os instintos do medo, vergonha e autopreservação. Os melhores discípulos, aqueles três que, por serem os mais confiáveis, foram escolhidos por Jesus para fazer- lhe companhia no jardim do Getsêmani, mostraram-se totalmente inca­pazes de prestar o serviço que deles se esperava. Enquanto o Mestre estava atravessando o seu momento de agonia, eles adormeceram, exata­mente como haviam feito anteriormente no monte da transfiguração. Até os homens que haviam sido selecionados revelaram-se recrutas despreparados e incapazes de se livrar da sonolência e cumprir o seu dever como sentinelas. “Então, nem uma hora pudeste vigiar comigo?” E quando o inimigo apareceu não só esses três, mas também os oito discípulos restantes, fugiram tomados de pânico. “Todos os discípulos, deixando-o, fugiram”. E, ao final, um dentre eles, que se considerava o mais corajoso de seus irmãos, não só fugiu como também negou seu amado Mestre declarando, sob juramento: “Não conheço tal homem”.

A conduta tão frágil e tão covarde dos discípulos durante essa crise de sua história, leva-nos, naturalmente, a fazer duas perguntas: Como deveriam ter agido? E por que agiram dessa forma — quais foram as causas de seu fracasso?

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Agora, ao considerar em primeiro lugar a última dessas perguntas, e tentar por nós mesmos elaborar uma idéia distinta a respeito do conjun­to de ações que seriam exigidas como prova de fidelidade, não se conse­gue perceber imediatamente a razão por que os discípulos, com exceção de Pedro, cometeram esse erro. O que poderiam ter feito quando seu Senhor foi detido, a não ser fugir? Oferecer resistência? Mas isso Jesus havia expressamente proibido poucos momentos antes: “E, vendo os que estavam com ele o que ia suceder, disseram-lhe: Senhor, feriremos à espada?”1 Sem esperar resposta, um deles golpeou o servo do sumo sa­cerdote e extirpou-lhe a orelha. Esse discípulo brigão, segundo João nos informa, era Simão Pedro. Ele havia trazido uma espada, uma das duas que o grupo possuía, desde o cenáculo até o Getsêmani, pensando que ela poderia ser necessária, e estava completamente disposto a usá-la se chegasse a ocasião. Embora não fosse tão valente, como mais tarde se revelou perante os servos e os empregados, não foi assim que agiu no jardim, pois usou sua arma de forma corajosa, embora com pouca des­treza, e praticou uma execução que, felizmente, não foi mortal. Jesus imediatamente interferiu para evitar mais derramamento de sangue, pro­ferindo palavras que foram registradas de várias maneiras mas que, em suas diferentes versões, estavam inculcando uma política de não-resis- tência. “Mete no seu lugar a tua espada”, Ele disse a Pedro, completan­do a ordem com a seguinte explicação, “porque todos os que lançarem mão da espada à espada morrerão”. Isso era o mesmo que-dizer: “A nossa guerra é outra!” Em seguida, Ele continuou a dar a entender que havia outras razões superiores para não oferecer resistência, e que não se tratava de simples considerações de prudência ou conveniência: “Ou pensas tu que eu não poderia, agora, orar a meu Pai e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos? Como, pois, se cumpririam as Escri­turas, que dizem que assim convém que aconteça?”2 Ele poderia enfren­tar as forças humanas com forças divinas, superiores e celestiais, se assim quisesse; mas não quis, pois vencer os seus inimigos seria o mesmo que derrotar o propósito pelo qual veio ao mundo, que era conquistar, não pela força física, mas pela verdade, pelo amor e pela resignação divina e pelo beber do cálice que seu Pai havia colocado em suas mãos, por mais amargo que fosse para a carne e para o sangue3.

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Totalmente em harmonia com esses pronunciamentos no Getsêmani estão as declarações feitas por Jesus sobre o mesmo assunto, antes de deixar o cenáculo, como registra Lucas4. Na verdade, as declarações fei­tas em sua carta parecem expressar exatamente o oposto de uma atitude de não-resistência. Parece que Jesus está dizendo que o grande dever e obrigação daquele momento, para todos aqueles que estavam ao seu lado, era armar-se com uma espada, e que isso era tão urgente que aquele que dela precisasse deveria vender suas vestes para comprá-la. Mas a própria ênfase com que fala mostra que suas palavras não devem ser entendidas em seu prosaico sentido literal. E é muito fácil entender o que Ele quer dizer. Usando uma linguagem descritiva, seu objetivo era transmitir aos discípulos uma idéia da gravidade da situação. “Agora”, Ele diria, “che­gou o dia, sim, a hora da batalha: se o meu reino fosse desse mundo, como vocês imaginaram, agora teria chegado a hora de lutar e não de sonhar: agora, de fato, a situação chegou ao extremo e vocês precisam de todos os seus recursos. Portanto, equipem-se com sapatos, bolsas e alforjes e, sobretudo, com espadas e coragem de guerreiros”.

Os discípulos não entenderam o significado das palavras de seu Senhor e deram a essa parte uma interpretação vulgar e desprovida de sentido, assim como a muitas outras partes de seu discurso de despedi­da. Portanto, com uma seriedade ridícula, disseram: “Senhor, eis aqui duas espadas”. Essa absurda resposta provocou uma observação que, cer­tamente, deve ter aberto seus olhos e fez com que Pedro levasse o assun­to adiante a ponto de carregar consigo uma das espadas. “Basta!”, disse Jesus, provavelmente com um sorriso melancólico em seu rosto, ao pen­sar na ignorante simplicidade daqueles homens tão queridos e infantis: “Basta!” Duas espadas; bem, elas seriam suficientes apenas para alguém que não tivesse a menor intenção de lutar. O que representava duas espa­das para doze homens contra uma centena de armas de ataque? Naque­las circunstâncias, a própria idéia de lutar era absurda e bastava apenas ser amplamente difundida para se revelar um completo despropósito.

Os discípulos, então, não foram convocados a lutar pelo seu Mestre e evitar que fosse entregue aos judeus. No entanto, o que mais então poderiam ter feito? Não era seu dever sofrer com Ele e, colocando em prática as confissões de Pedro, acompanhá-lo na prisão e na morte? Mas

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isso também ninguém havia exigido que fizessem. Quando Jesus se en­tregou nas mãos daqueles que o vieram capturar, pediu que, embora o estivessem levando em custódia, deixassem seus acompanhantes segui­rem o seu caminho5. Ele não fez isso meramente por compaixão, mas como o Capitão da salvação, e no seu melhor interesse e no interesse de seu Reino, pois era muito necessário a esses interesses que os discípulos vivessem e que Ele próprio morresse e ressuscitasse. Ele se entregou à morte para que houvesse um evangelho a ser pregado e desejou a salva­ção de seus discípulos para que houvesse homens para pregá-lo. De ma­neira evidente, portanto, não era dever dos discípulos exporem suas vi­das ao perigo e poderíamos dizer, ao contrário, que seu dever estava no sentido de cuidar de sua vida para uma utilidade futura.

Onde, então, poderia estar o erro cometido pelos onze discípulos ao deixar de lutar ou sofrer pelo seu Senhor? Estava na sua falta de fé. “Credes em Deus, crede também em mim”, Jesus lhes havia dito no início de seu discurso de despedida e, no momento crítico, eles não fizeram nem uma coisa nem outra. Não acreditaram que no final tudo terminaria bem, para eles e seu Mestre, e especialmente que Deus iria providenciar a sua segu­rança sem qualquer sacrifício de qualquer princípio, ou mesmo da digni­dade, de sua parte. Eles tinham confiança apenas na rapidez de suas per­nas. Se tivessem tido fé em Deus e em Jesus teriam, sem temor, testemu­nhado na ocasião da prisão de seu Senhor, confiantes não só em seu futuro regresso como em sua própria segurança. Conforme a inclinação de seus sentimentos, teriam acompanhado os oficiais da justiça para ver o que iria acontecer ou, avessos a quaisquer cenas emocionantes e dolorosas, teriam se retirado silenciosamente para suas moradias até que a tragédia tivesse terminado. Porém, na ausência da fé, eles nem acompanharam seu Mestre calmamente, nem se retiraram calmamente, mas descrente e vergonhosa­mente abandonaram-no efugiram. O pecado reside não tanto no ato exte­rior, mas no estado interior da mente e do coração, do qual ele era o reflexo. Eles fugiram por descrença e desânimo, como homens cuja espe­rança havia sido perdida, e por um homem cuja causa estava perdida e a quem Deus havia abandonado aos seus inimigos.

Tendo estabelecido onde os discípulos erraram, podemos agora in­dagar as causas de sua má conduta e aqui, logo de início, vem à nossa

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mente que Jesus havia antecipado o colapso de seus seguidores. Ele não contava com sua fidelidade e esperava pela deserção como fato lógico e natural. Quando Pedro se ofereceu para segui-lo, em qualquer lugar que fosse, Ele disse que antes de o galo cantar na manhã seguinte, Pedro o teria negado por três vezes e, ao encerrar o discurso de despedida, disse a todos os discípulos que eles o deixariam sozinho. No caminho do monte das Oliveiras Ele repetiu essa afirmação nos seguintes termos: “Todos vós esta noite vos escandalizareis em mim, porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho se dispersarão”6. E, em todas essas ocasiões, o tom que Ele usou em suas palavras era mais profético do que reprovador. Ele esperava que os seus discípulos fossem domina­dos pelo pânico, do mesmo modo que alguém pode esperar que as ove­lhas fujam na presença do lobo, ou que as mulheres desmaiem ao presen­ciar uma carnificina. A partir dessa indulgência podemos inferir que, na opinião de Jesus, o pecado dos discípulos havia sido um pecado de fra­queza, e essa opinião foi a que Ele assumiu daí por diante, pois conhece­mos as palavras que dirigiu ao três sonolentos irmãos no Getsêmani. “Vigiai e orai”, disse-lhes, “para que não entreis em tentação; na verda­de, o espírito está pronto, mas a carne é fraca”7. Embora pronunciada com especial referência à fraqueza demonstrada por Pedro, Tiago e João no jardim, essa espécie de juízo, da forma como foi expresso, aplica-se à conduta de todos os discípulos (inclusive à negação de Pedro) em meio a toda aquela terrível crise. Jesus considerava os onze discípulos como homens cuja ligação com sua pessoa estava acima de qualquer suspeita, mas que eram sujeitos a errar, pela fraqueza de sua carne, ao ficarem expostos a uma repentina tentação.

Mas o que devemos entender por fraqueza da carne? Um mero amor instintivo pela vida, o pavor do perigo, o medo dos homens? Não, esses instintos continuaram com os apóstolos ao longo de sua vida, sem levá-los, exceto uma única vez, a repetir seu presente erro de conduta. Não só a carne dos discípulos era fraca, mas também a disposição de seu espírito. Seu caráter espiritual, nesse momento, era deficiente em certos elementos que promovem firmeza aos bons impulsos do coração e do­mínio sobre as enfermidades cuja natureza se mostra sensível. Os ele­mentos que faltavam a esse poder eram a premeditação, uma clara percepção da

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verdade; o conhecimento de si próprio e a disciplina da experiência. Por falta de pre- meditação, aconteceu que a prisão de seu Senhor tomou-os de surpresa. Isso pode parecer quase inacreditável depois das freqüentes insinuações que seu Mestre havia feito sobre a proximidade de sua morte; depois da instituição da Santa Ceia, o discurso de despedida, a referência ao trai­dor, o aviso profético a respeito de sua própria fragilidade e o discurso sobre a espada pareciam mais o toque de um clarim chamando para a batalha. Mas não resta dúvida de que esse era o caso. Os onze discípulos saíram do Getsêmani sem uma idéia definida sobre o que estava por acontecer. Na verdade, esses inexperientes recrutas não sabiam que esta­vam marchando para o campo de batalha e o sono dos três discípulos no jardim é prova suficiente disso. Se as três sentinelas estivessem profunda­mente impressionadas pela crença de que o inimigo estava próximo, elas não teriam caído no sono por mais tristes e cansadas que estivessem. O medo teria feito com que se conservassem em estado de alerta. “Se o pai de família soubesse a que vigília da noite havia de vir o ladrão, vigiaria e não deixaria que fosse arrombada a sua casa”.

Na crise final, o colapso dos discípulos era, em parte, devido tam­bém à falta de uma clara percepção da verdade. Eles não entendiam a doutrina a respeito de Cristo. E embora acreditassem que seu Mestre fosse o Cristo, o Filho de Deus, sua fé estava envolvida por uma falsa teoria sobre a missão e a carreira do Messias, e nessa teoria não havia lugar para a cruz. Enquanto a cruz permanecia apenas como assunto de conversa, sua teoria permanecia arraigada com firmeza em sua mente, e as palavras de seu Mestre eram rapidamente esquecidas. Mas quando a cruz finalmente apareceu, quando as coisas que Jesus havia previsto co­meçaram a se cumprir, então sua teoria desabou como uma árvore que foi destroçada de repente por um vendaval, carregando consigo a videira da sua fé. Desde o momento em que Jesus foi preso, tudo o que restou de fé na mente dos discípulos foi simplesmente a tristeza de terem se enganado: “Nós esperávamos que fosse ele o que remisse Israel”. Como pode alguém agir heroicamente em tais circunstâncias?

Um terceiro defeito radical no caráter dos discípulos era a ignorân­cia em relação a si mesmos. Aquele que conhece as suas próprias fraque­zas pode se tornar forte, mesmo nos pontos mais fracos; mas quem não

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as conhece não poderá ser forte em ponto algum. Nesse momento, os seguidores de Jesus não conheciam as suas próprias fraquezas. Acredita­vam que possuíam uma dose de fidelidade e de bravura que só existia em sua imaginação, e todos adotavam como seu o mesmo sentimento de Pedro: “Ainda que me seja necessário morrer contigo, não te negarei”8. Meu Deus! Eles não sabiam quanto medo humano havia dentro de si mesmos, e que desprezível covardia demonstrariam na presença do peri­go. E é claro que, quando o perigo realmente apareceu, seguiu-se a costu­meira conclusão de uma inconsciente bravura e todos esses corajosos discípulos abandonaram o seu Mestre e fugiram.

A última, e não menos importante, causa da fraqueza dos discípu­los foi sua inexperiência perante as cenas que estavam agora prestes a presenciar. A experiência adquirida na guerra é a grande promotora da indiferença e da coragem dos soldados veteranos em meio ao perigo, e o conhecimento prático dos perigos da vida militar faz com que se tornem empedernidos e destemidos. Mas os discípulos de Cristo ainda não eram veteranos e tinham acabado de assumir o seu primeiro compromisso. Até então, tinham experimentado apenas as provações próprias dos re­crutas mais inexperientes. Tinham sido convocados a abandonar suas casas, amigos, barcos de pesca e tudo mais que era terreno, para seguirem Jesus. Mas esses sofrimentos iniciais não são suficientes para transfor­mar alguém em soldado, nem o uso do uniforme, nem mesmo a discipli­na imposta por um sargento-instrutor. Imagine um soldado imaturo, com seu brilhante uniforme, colocado frente a frente com a horrível realidade de uma batalha. Seus joelhos chocam-se um contra o outro, seu coração fica aflito, às vezes chega até a desmaiar e é levado para a retaguarda, incapaz de participar da luta. Pobre rapaz, ele é digno de pena, não caçoe dele. Até mesmo Frederico, o Grande, fugiu de sua pri­meira batalha. Provavelmente o mais corajoso dos soldados não se sente muito heróico na primeira vez que enfrenta o fogo inimigo.

Essas observações nos ajudam a entender como aquele pequeno re­banho se dispersou quando Jesus, o seu Pastor, foi atingido. A explica­ção, em essência, não deixa de ser uma prova de que os discípulos eram como ovelhas ainda despreparadas para ser pastores de homens. Assim sendo, não devemos nos admirar com a indulgência de Jesus, à qual já

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nos referimos anteriormente. Quando o lobo aparece, ninguém espera que as ovelhas façam mais do que fugir. Somente aos pastores pode-se severamente repreender por sentirem algum medo covarde. Tendo isso em mente, iremos mais prontamente perdoar a Pedro, por ter negado a seu Senhor em um momento de surpresa, do que por sua covardia em Antioquia, alguns anos depois, quando desprezou seus irmãos gentios por medo dos judeus sectários de Jerusalém. Pedro, então, já era um pastor e tinha como dever liderar as ovelhas, ou mesmo conduzi-las até mesmo contra a sua inclinação, para os grandes e verdes pastos da liber­dade cristã, em vez de, humildemente, seguir aqueles que por sua meti- culosidade mostravam-se apenas como carneiros no rebanho de Cristo. Seu comportamento, nessa ocasião, foi bastante censurável e muito pre­judicial. Pois se não estava realmente liderando, já havia liderado antes e, como apóstolo, ele gozava da reputação e da influência de um pastor- chefe. Portanto, não tinha outra opção a não ser liderar ou deixar que o enganassem, e assim procedeu, a ponto de envolver Barnabé em sua dis­simulação. E muito sério para a igreja quando aqueles que são pastores na função e na influência tornam-se ovelhas na opinião e no coração; são líderes apenas no nome; na realidade são liderados.

Seção II - Peneirados como o TrigoLucas 22.31, 32

Esse fragmento de conversa que ocorreu no cenáculo é importante porque nos mostra a perspectiva adotada por Jesus em relação à crise que seus discípulos estavam prestes a atravessar. Sob a forma de uma mensa­gem dirigida a Pedro, ela era realmente uma palavra muito oportuna e também dizia respeito a todos os demais. Isso se torna evidente pelo uso do pronome plural ao dirigir-se diretamente ao discípulo com quem falava. “Satanás”, disse Jesus, “vos pediu (não a ti, mas a vós)”. Entende­mos que o Senhor estava dizendo: A ti Simão, e também a todos os teus irmãos ao teu lado. O mesmo aparece na injunção imposta a Pedro para transformar seu erro em um benefício aos seus irmãos. Os irmãos, natu­ralmente, não eram apenas os demais discípulos que estavam ali presen­tes, mas todos os que também, no futuro, creriam no Senhor. Entretanto, os apóstolos não devem ser excluídos da fraternidade que se beneficiaria

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da experiência de Pedro; ao contrário, eles eram provavelmente os prin­cipais participantes e os seus primeiros destinatários.

Observando, então, esse pronunciamento como uma expressão do juízo de Jesus sobre o caráter da crise que se aproximava, encontramos, na história dos futuros apóstolos, três particularidades dignas de nota.

I ) Primeiro, Jesus considera a crise como um momento em que os seus discípulos estão sendo peneirados. Satanás, o acusador dos irmãos, cético a respeito da fidelidade e integridade deles, assim como no caso de Jó e de todos os homens justos, tentaria peneirá-los como se faz com o trigo, esperançoso de que iriam se mostrar mais como o joio, tornan­do-se apóstatas como Judas, ou pelo menos que entrariam em um escan­daloso e desprezível colapso. Sob esse aspecto, essa crise final era pareci­da com a crise ocorrida em Cafarnaum no ano anterior. Aquele também havia sido um momento de seleção para o discipulado de Cristo. Nessa ocasião, o trigo também foi separado da palha, e entendemos que a pa­lha estava presente em grande- número, pois “desde então, muitos dos seus discípulos tornaram para trás e já não andavam com ele”.

Mas, ao lado dessa semelhança de caráter geral entre as duas crises — a menor e a maior, como poderíamos assim chamar — , uma impor­tante diferença deve ser observada. Na crise menor, os poucos escolhi­dos eram como trigo puro, enquanto a instável multidão seria o joio. Na maior, eles eram ao mesmo tempo o trigo e o joio, e a seleção não era entre um e outro homem, mas entre o bem e o mal, entre o que existia de valor e de desprezível no mesmo homem. O coração dos onze fiéis dis­cípulos deveria ser sondado para se descobrir sua latente fraqueza. O velho coração deveria ser colocado à parte, e o novo coração deveria ser assumido; o coração vaidoso, confiante e impetuoso de Simão, filho de Jonas, à parte do devotado, nobre e heróico coração de Pedro, firme como uma pedra.

Essa distinção entre as duas crises implica que a última tenha um caráter mais inquiridor do que a primeira e, após um momento de refle­xão, vemos que ela foi realmente assim. Considere apenas como era dife­rente a situação dos discípulos- em ambos os casos! Na crise menor, a multidão partiu, mas Jesus permaneceu; na maior, o próprio Senhor Jesus foi afastado de sua presença e eles se sentiram como ovelhas sem o

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seu Pastor. Uma diferença suficientemente grande para explicar a corres­pondente diferença na conduta dos mesmos homens nas duas ocasiões. Era sem dúvida desconcertante e desanimador ver a multidão de pesso­as, que ultimamente tinha acompanhado seu Mestre com tanto entusias­mo, dispersar-se como uma ociosa ralé depois de assistir a um show. Mas enquanto o seu Mestre permanecesse ao seu lado, eles não se entris­teceriam com a deserção desses discípulos espúrios. Eles amavam a Jesus por ser quem Ele era e é, não por sua popularidade ou por qualquer outro interesse. Ele era o Mestre deles e podia dar-lhes o pão da verdade eterna, que, diferente do pão que se deteriora, era o que estavam procu­rando. Ele era a sua Cabeça, seu Pai, seu Irmão mais velho e seu Esposo espiritual, e eles se apegariam a Ele em todas as eventualidades com uma fidelidade filial, fraternal e espiritual. Se as suas expectativas pareciam sombrias mesmo ao seu lado, onde poderiam ir para conseguir algo melhor? Não tinham outra escolha a não ser permanecer onde estavam.

Portanto, assim permaneceram, fiéis e valorosos, firmemente sus­tentados por sua sinceridade, pela clara percepção das alternativas e pelo fervoroso amor ao seu Senhor. Mas agora, meu Deus! Quando não é a multidão é o próprio Senhor Jesus que os estava deixando — na verdade não os estava abandonando, mas tinha sido arrancado de sua presença pelas mãos firmes de um poder mundano — e o que deveriam fazer? Nessa ocasião poderiam muito bem fazer a mesma pergunta de Pedro: “Para quem iremos nós?” e sentirem-se desesperados por uma resposta. AquEle cuja presença tinha sido seu consolo em uma ocasião penosa e desanimadora, aquEle que nos piores momentos, quando sua doutrina era para eles misteriosa e sua conduta incompreensível, significou mais para eles do que tudo o que havia de melhor nesse mundo, é agora arre­batado do seu lado e se sentem completamente desamparados, sem um Mestre, um Senhor a seu lado, um Guia, um Amigo e um Pai. Pior ainda, ao perderem-no, perdiam não apenas o seu melhor amigo, mas também a sua fé. Eles podiam acreditar que Jesus era o Cristo, embora a multidão tivesse apostatado, pois conseguiam entender sua apostasia como resul­tado da ignorância, da falta de sinceridade e da superficialidade. Mas como poderiam entender o messianato de alguém que é levado para a prisão e não para o trono? E que em vez de ser coroado rei está a cami­

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nho de ser executado como criminoso? Ao ficarem assim privados de Jesus, ficaram também privados de seu Cristo. O mundo dos incrédulos iria perguntar-lhes: “Onde está o teu Deus?”, e naquele momento não encontrariam uma resposta.

“Nós e Cristo contra o mundo” e “Cristo sob o domínio do mun­do, e nós sozinhos e abandonados”; essa, em resumo, era a diferença entre os dois momentos de seleção e, da mesma forma, eram diversos os resultados desse processo. No primeiro caso ele fazia a separação entre os sinceros e aqueles que não o eram; no segundo, descobria fraquezas mesmo nos mais sinceros. Os homens, que em ocasiões anteriores ape­gavam-se resolutamente aos seus partidos, na última fugiam tomados pelo pânico, discutindo sem dignidade sobre sua segurança e, pelo me­nos em um caso, com uma vergonhosa indiferença pela verdade. Observe como até os homens justos se tornam fracos quando não têm fé! Com fé, por mais imaturo ou ignorante que seja, você poderá conquistar o mundo todo; sem a fé que deliberadamente coloca Deus ao seu lado, você não tem qualquer possibilidade de vencer. Se você não mantiver a sua fé, Satanás se apoderará de sua vida e lhe fará errar como Abraão, fingir-se de louco como Davi, e dissimular ou jurar com falsidade e sacrilégio como Pedro. Os justos só vivem com justiça e nobreza através de sua fé.

2 ) Jesus considera que, embora perigosa, a crise pela qual seus discí­pulos iriam passar não se revelaria como uma ameaça mortal à sua fé. Sua esperança é que, não obstante eles pudessem errar, não entrariam em colapso, e que, embora o sol da fé pudesse entrar em eclipse, ele não iria se extinguir. Ele tem essa esperança mesmo em relação a Pedro, tendo tomado o cuidado de evitar uma catástrofe tão completa. “Mas eu ro­guei por ti, para que a tua fé não desfaleça”. E o resultado foi aquele que Ele esperava. Os discípulos mostraram-se fracos na crise final, mas não pecadores. Satanás fez com que tropeçassem, mas não conseguiu entrar e tomar posse deles. A esse respeito eles eram totalmente (ou diame­tralmente) opostos ajudas que não somente perdeu a sua fé, mas desper­diçou o seu amor e, abandonando o seu Senhor, entregou-se ao inimigo, tornando-se um instrumento para a realização de seus maléficos desíg­nios. Os onze apóstolos, na pior hipótese, continuaram com o coração

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fiel ao seu Mestre. Não cometeram, nem eram capazes de cometer atos de perfídia mas, ao fugir, identificaram-se com o lado perdedor.

Mas Pedro, o que podemos dizer sobre ele? Não seria uma exceção a esse raciocínio? Bem, certamente ele fez muito mais que desmoronar na fé e não temos qualquer desejo de atenuar a gravidade de seu pecado, e preferimos considerá-lo um solene exemplo da íntima proximidade com o pior, à qual os melhores homens podem ser levados. Ao mesmo tempo, não estaríamos sendo injustos ao afirmar que existe uma enorme diferença entre negar a Cristo entre os servos do sumo sacerdote e entregá- lo às mãos deste em troca de uma soma em dinheiro. Esse último ato representa o crime de um traidor patife enquanto o primeiro poderia ser cometido por alguém que havia sido sincero com o seu Mestre em todos os momentos em que seus interesses pareciam estar seriamente envolvi­dos. Ao negar conhecer Jesus, Pedro pensou estar salvando a si mesmo através da dissimulação, sem cometer qualquer ofensa material contra o seu Senhor. Seu ato se parece com aquele de Abraão, quando fez circular a mentirosa história a respeito de sua esposa ser sua irmã para proteger- se da violência dos devassos. Esse foi, certamente, um ato muito mesqui­nho, egoísta e totalmente indigno do pai dos fiéis. O ato de Pedro não foi menos mesquinho e egoísta, mas também não foi além disso. Ambos foram atos de fraqueza e não de iniqüidade, pois poucos entre os justos podem se dar ao luxo de jogar pedras no patriarca e nos discípulos. Mesmo aqueles que agem como heróis mas grandes ocasiões possivel­mente agirão, em outras, de forma muito indigna. Há homens que cora­josamente proclamam seus sentimentos ao discursar de um púlpito ou de um palanque, porém escondem e desmentem as suas convicções à mesa do jantar. Colocando-se no lugar em que os servos de Cristo de­vem falar a verdade, com bravura tomam as suas espadas em defesa de seu Senhor; mas, ao se misturar em termos iguais com a sociedade di­zem, muitas vezes, “Não conheço tal homem”. Portanto, se o pecado de Pedro é grave, lembremo-nos de que certamente não é incomum. E co­metido virtualmente, se não formalmente, por multidões que seriam incapazes de uma deliberada traição pública contra Deus e a verdade. O discípulo faltoso foi muito mais singular em seu arrependimento do que em seu pecado. De todos aqueles que, com meros atos de fraqueza virtu­

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almente negam a Cristo, poucos são os que, como ele, retiram-se e cho­ram amargamente!

O fato de Pedro não ter pecado de forma cabal e irrevogável como Judas, deve-se, em parte, à radical diferença existente entre os dois homens. Pedro, no fundo, era um filho de Deus; Judas em seu íntimo tinha sido o tempo todo um filho de Satanás. Portanto, podemos dizer que Pedro não podia ter pecado como Judas, nem que Judas podia ter se arrependido como Pedro. No entanto, quando afirmamos isso não po­demos nos esquecer de que Pedro foi protegido para não cometer uma apostasia através da graça especial que lhe foi concedida em resposta às orações de seu Mestre. Não sabemos exatamente quais foram os termos com os quais Jesus orou por Pedro, pois a oração em nome de um só discípulo, como aquela feita pelos outros onze, não foi registrada. Mas a direção dessas intercessões especiais é bastante clara a partir do relato que Jesus fez a Pedro. O Mestre havia orado para que a fé de seu discípu­lo não viesse a faltar, mas não para que ele ficasse isento do processo de seleção de Satanás, ou mesmo protegido contra qualquer pecado, pois Ele sabia que uma falta seria necessária para revelar ao confiante discípu­lo a sua própria fraqueza. Ele havia orado para que o pecado de Pedro não lhe fosse ruinoso, para que sua horrível falta pudesse ser seguida por uma devota tristeza e não por um endurecimento do coração e, no caso do traidor, que o seu pecado fosse acompanhado pelo arrependimento do mundo que lhe provocou a morte e pelo remorso de uma consciência culpada que, como a fúria, conduz o pecador rapidamente à condena­ção. E no arrependimento de Pedro, imediatamente após as suas negativas, vemos a concretização das orações de seu Mestre, uma graça especial sendo concedida para comover o seu coração, dominá-lo com uma benfazeja mágoa e levá-lo a extravasar a sua alma em lágrimas. E o salutar resultado que se produziu não foi por causa da piedade ou da bondade de seu coração, mas ao Espírito de Deus e à providência divina que trabalharam para esse fim. Mas pelo cantar do galo e pelas palavras de advertência que trazia à mente, assim como pela expressão nos olhos de Jesus e a terna misericórdia do Pai celestial, quem pode dizer qüais hu­mores demoníacos seriam capazes de se apossar do coração daquele culposo discípulo! Lembre-se de todo o tempo em que até mesmo Davi,

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um homem temente a Deus, cedeu a vez ao Diabo, abrigando em seu seio os demônios do orgulho, da falsidade e impenitência depois de ter pecado, e veja como estava longe de ser um fato lógico e natural que Pedro, imedi­atamente após ter negado a Cristo, se encontrasse sob a abençoada influ­ência de seu espírito perturbado e contrito, ou mesmo que a crise espiritu­al, pela qual tinha passado, chegasse naquela situação a um feliz resultado. Ele foi salvo pela graça, assim como ocorre com cada um de nós.

3) Jesus considera a crise, que estava prestes a ser experimentada por seus discípulos, como aquela que, além de ter um final feliz, resultaria em benefício espiritual para todos eles, qualificando-os para serem úteis aos semelhantes. Isso aparece na determinação que dá a Pedro: “E tu, quando te converteres, confirma teus irmãos”. Jesus espera que o frágil discípulo torne-se forte pela graça e, portanto, capacitado e pleno em disposição para ajudar os fracos. Ele acalenta essa expectativa em relação a todos eles, mas especialmente em relação a Pedro, entendendo que o mais fraco poderia e deveria, ao final, transformar-se no mais forte, o último em primeiro, o maior pecador no maior santo e o mais tolo no mais sábio e mais amável e bondoso dos homens.

Como essa bondosa e reconfortante concepção de fraqueza moral podia ser tão encoraj adora àquele que havia errado! O Salvador diz, na verdade, “não há razão para se desesperar, o pecado não apenas pode ser perdoado, mas transformado em uma boa causa para vocês mesmos e para os outros”. As faltas, quando devidamente consideradas, podem se tornar um trampolim para a virtude cristã e um treinamento para a po­sição de confortar e guiar. Como esse conceito pode trazer tanto confor­to a uma consciência atormentada! Homens que têm errado, e que con­sideram seriamente o seu pecado, estão sujeitos a consumir o coração e gastar o seu tempo em amargas reflexões sobre a sua má conduta anteri­or. Cristo lhes oferece coisas mais úteis para fazer. “Quando te converte­res”, Ele lhes diz, “confirma teus irmãos”: elimine seus inúteis remor­sos do irrevogável passado, e devote o seu coração e alma às obras do amor; deixe que elas lhe ajudem a perdoar a si mesmo, para que de suas próprias faltas e loucuras você possa aprender humildade, paciência, compaixão e sabedoria, necessárias para continuar, com todo sucesso, a praticá-las.

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Mas, embora extremamente encorajadoras àqueles que têm pecado, as palavras de Cristo a Simão não contêm qualquer estímulo ao pecado. Alguns adotam uma doutrina que lhes é favorita — que podemos fazer o mal para chegar ao bem, que devemos ser perdulários a fim de sermos bons cristãos, que um banho de lama deve preceder à ablução da regene­ração e do batismo da alma no sangue do Redentor. Essa é uma falsa e perniciosa doutrina da qual o Santíssimo não pode ser defensor. Para que o bem venha do mal, é isso que você está dizendo? E se o bem não vier? Na verdade, ele não vem mesmo, como um fato lógico e natural, segundo temos visto; nem seria provável que viesse caso você transfor­masse a esperança de sua vinda em um pretexto para pecar. Se o bem realmente vier, será através dos estreitos portais do arrependimento. Você somente poderá se tornar sábio, bondoso, humilde, gentil e um verda­deiro suporte para os fracos se sair e chorar amargamente. Mas que chances existem de surgir um penitente enternecimento do coração em alguém que adota e age segundo o princípio de que será necessário ter um currículo de pecados para se chegar à consciência do conhecimento próprio, da compaixão e de todas as virtudes humanas? O provável re­sultado de tal treinamento será um coração endurecido, uma consciência insensível, um julgamento moral pervertido, a eliminação de todas as mais fervorosas convicções a respeito das diferenças entre o certo e o errado. E a convicção de que o mal leva ao bem insensivelmente se trans­formando na idéia de que o mal é bom, portanto, ajustando sua defesa para cometer pecados sem pejo ou arrependimento.

E nós teríamos coragem de proferir essa idéia,

De que a aveia-brava não foi semeada,

Que no solo, abandonado estéril, pouco havia crescido

Dos grãos dos quais o homem pode viver?

Oh, se adotássemos inteiram ente essa doutrina

D urante a vida, mesmo depois dos ardores da juventude;

M as quem iria pregá-la como verdade

Aqueles que estão desorientados?

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Apegue-se ao que é bom: defina-o bem:

E tema a teologia da filosofia

Que poderá arrastar-te além de seu lim ite e tornar-se

A caftina dos senhores do inferno9.

No caso de Pedro, o bem realmente veio do mal. Aquele período de seleção havia inaugurado um momento decisivo em sua história espiri­tual e, como resultado, esse processo trouxe uma segunda conversão mais profunda e completa do que a primeira — um afastamento do pecado, não apenas de forma geral, mas em seus detalhes; dos pecados costumei­ros até um arrependimento mais esclarecido, se não mais fervoroso, e com o propósito de uma nova obediência mais vazia de confiança, mas por isso mesmo mais segura. Até agora ele havia sido um filho — na verdade um filho de Deus, mas apenas uma criança — e Pedro se tornou um homem na graça e pronto para suportar o fardo dos fracos. No entanto, é digno de nota que, demonstrando a pouca simpatia que como Autor de nossa fé tinha pela doutrina de que o mal pode ser praticado em benefício do bem, Jesus, embora sabedor de como o erro de Pedro iria terminar, por essa mesma razão não a considerou proveitosa. O Se­nhor não disse: “Eu desejei peneirar vocês”, mas permitiu que o espírito maligno que havia, no início, tentado nossos primeiros pais a pecar usando o argumento ilusório de que “sereis como Deus, sabendo o bem e o mal”, o fizesse. E reservou para si próprio o papel de intercessor que ora para que o mal possa ser dominado pelo bem. “Satanás vos pediu”, mas “eu roguei por ti”. Que palavras poderiam transmitir mais fortemente a idéia de culpa e de perigo do que essas ao insinuar que Simão está pres­tes a praticar um feito que é objeto de desejo para o Maligno, fazendo- se necessário que recebesse orações feitas especialmente por ele pelo Sal­vador das almas? Os homens conseguem ir a qualquer lugar à procura de apoio para as suas opiniões apologéticas e panteístas sobre o pecado.

Poderíamos acreditar que a referência a Satanás inclina-se, por outro lado, a enfraquecer a severidade moral, encorajando os homens a lançar a culpa de suas faltas sobre ele. Teoricamente plausível, essa obje­ção é praticamente contrária aos fatos, pois os defensores de teorias ambíguas sobre o pecado são também aqueles que não acreditam na

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personalidade do demônio. “As civilizações mais modernas removeram da mente o conceito do demônio e se tornaram mais negligentes quanto a imputar o castigo pelo pecado. A época anterior, que não negava as tentações e os assaltos do Diabo, era pouco inclinada a desculpar os homens que omitiam a resistência ao espírito do mal, ou a submissão a ele, considerando tais atitudes o grau extremo da culpa, e exerciam sobre essa falta de resistência um rigor jurídico que nos faz recuar cheios de horror. O extremo oposto a esse rigor é a lassidão da recente jurispru­dência criminal, segundo a qual juizes e médicos estão demasiadamente inclinados a justificar os culpados com base em fundamentos físicos e psíquicos, enquanto o juízo moral da opinião pública é relapso e indul­gente. E inegável que, para cada pecado, contribui não somente a má disposição, mas também o encantamento de alguma tentação; e quando essa tentação não é atribuída ao demônio, o pecador não culpará sua má disposição, mas as tentações que brotaram de algum outro refúgio que ele não deduz ser do pecado, mas da natureza, embora a natureza so­mente exerça alguma tentação sob a influência do pecado. O mundo e a carne são verdadeiramente os poderes da tentação, não através de sua essência natural, mas através da influência dos maus que os estão infectando. Mas quando, como no presente, a sedução ao demônio está relacionada à sensualidade, ao temperamento, à luxúria e às paixões físi­cas, às circunstâncias ou idéias fixas, às monomanias etc., a culpa é reti­rada dos ombros do pecador e colocada sobre alguma coisa eticamente indiferente ou simplesmente natural”10.

O parecer apresentado por Jesus a respeito da falta de seu discípulo não poderá, portanto, ser debitado ao enfraquecimento de seu senso de responsabilidade; ao contrário, é um parecer que está inclinado a inspi­rar ódio ao pecado e esperança ao pecador. Ele mostra o pecado que está prestes a ser cometido como sendo objeto de temor e de aversão e, quan­do já cometido, não só como perdoável quando houver arrependimento, mas capaz de se tornar útil ao progresso espiritual. De um lado, ele nos diz: Não brinque com a tentação, pois Satanás está próximo, procuran­do a ruína da alma — “Perturbai-vos e não pequeis” (SI 4.4) ou ainda, “Vigiai justamente e não pequeis” (I Co 15.34) e, por outro lado, “Se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o Jus-

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to” (I Jo 2.1) — não se desespere; abandone os seus pecados e assim encontrará o perdão.

Seção III - Pedro e JoãoJoão I8.I5-I8; 19.25-27

Embora todos os discípulos, sem exceção, tivessem abandonado Je­sus no momento de sua prisão, dois deles logo recuperaram coragem suficiente para retornar da fuga e seguir o seu Mestre enquanto Ele esta­va sendo levado a julgamento. Um deles era Simão Pedro, sempre origi­nal no bem e no mal e que, segundo nos contam, seguiu Jesus “de longe até ao pátio do sumo sacerdote... para ver o fim”11. O outro, de acordo com a opinião geral dos intérpretes, que acreditamos ser correta, era João. Na verdade seu nome não é mencionado, e ele é simplesmente descrito como “um outro” ou “o outro discípulo”. Mas como o próprio João é o nosso informante, existe uma prova bastante segura de que ele seja a pessoa à qual foi feita essa alusão. O “outro discípulo” que “era conhecido do sumo sacerdote... e entrou com Jesus na sala do sumo sacerdote”12, é aquele muito conhecido anônimo que tantas vezes en­contramos no quarto Evangelho. Caso o homem, cuja conduta era tão notável, fosse algum outro e não o evangelista, ele não teria permanecido anônimo em uma narrativa tão minuciosamente precisa em que até o nome do servo, cuja orelha Pedro havia cortado, é considerado bastante importante a ponto de ser registrado13.

Esses dois discípulos, embora muito diferentes quanto ao caráter, parecem ter desenvolvido uma certa amizade entre si. Em várias ocasi­ões, além da atual, encontramos seus nomes associados de maneira su­gestiva a uma ligação especial. A mesa da ceia, quando foi dada a notí­cia a respeito do traidor, Pedro fez um sinal ao discípulo que Jesus ama­va, e que iria perguntar quem era aquele de quem Ele falava. Por três vezes, durante o intervalo entre a ressurreição e a ascensão, os dois ir­mãos permaneceram unidos como companheiros. Correram juntos até o sepulcro na manhã da ressurreição e conversaram confidencialmente a respeito daquele estranho que apareceu no início da madrugada às mar­gens do mar da Galiléia, quando participavam de sua última expedição como pescadores. O discípulo a quem Jesus amava, ao reconhecer aquEle

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que havia ressuscitado, disse a Pedro: "E o Senhor”. Logo depois cami­nharam juntos na margem, seguindo a Jesus — Pedro por ter sido ordena­do, e João pelo impulso natural de seu amoroso coração. Uma intimida­de cimentada por essas sagradas associações tinha toda a possibilidade de se manter permanente, de modo que encontramos os dois discípulos ainda como companheiros, mesmo depois de se iniciarem nos deveres do apostolado. Iam juntos ao Templo àhora da oração e, ao se encontra­rem em dificuldades por terem curado o paralítico à porta do Templo, compareceram juntos perante o tribunal eclesiástico para serem julgados pelos mesmos homens — Anás e Caifás — que haviam presidido o julga­mento de seu Senhor, companheiros dessa vez perante a justiça, da mes­ma forma como haviam sido anteriormente no palácio do sumo sacer­dote.

Segundo esses fatos indicam, essa amizade que se formou entre os dois discípulos não tinha nada de surpreendente. Pertencendo ao círcu­lo mais próximo daqueles três a quem Jesus honrava com a sua confiança nas ocasiões especiais, eles tinham a oportunidade de se tornar bastante próximos; além disso, foram colocados em circunstâncias que os uniram em íntimos laços de fraternidade espiritual. E ambos estariam prepara­dos para desenvolver uma amizade especial, não obstante suas diferentes características, pois eram homens de uma acentuada originalidade e for­ça de caráter e encontrariam, um no outro, mais centros de interesse do que nos demais membros do grupo apostólico. Também suas peculiari­dades, longe de os manterem à parte, iriam, ao contrário, contribuir para uni-los. Eles eram constituídos de tal forma que um encontrava no ou­tro o complemento de si próprio. Em relação ao temperamento, Pedro era mais impulsivo e João era mais cauteloso; Pedro era um homem de ação, João era um homem da razão e do sentimento; o papel que compe­tia a Pedro era o de ser um líder e alguém que facilitasse o crescimento dos outros; o de João era o de ser fiel, confiar e ser amado; Pedro era o herói, e João o auxiliador e admirador do heroísmo.

Os dois amigos, em seus respectivos comportamentos nessa crise, foram ao mesmo tempo parecidos e diferentes entre si. Foram parecidos quando ambos demonstraram uma generosa solicitude em relação ao destino de seu Mestre, pois, enquanto os outros se retiraram da cena,

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eles o seguiram para ver como tudo terminaria. Provavelmente esse ato comum tenha se derivado, em ambos, dos mesmos motivos. Não fica­mos sabendo quais eram esses motivos, mas não é difícil imaginar. Em primeiro lugar, podemos atribuir certa influência a uma atividade natu­ral do espírito. Não fazia parte da natureza de Pedro, nem de João, per­manecerem indiferentes e passivos enquanto acontecimentos tão graves estivessem em andamento. Não podiam ficar sentados em casa, sem fa­zer nada, enquanto seu Senhor estava sendo julgado, sentenciado e trata­do como qualquer malfeitor. Se não pudessem evitar, seriam ao menos testemunhas de seus últimos sofrimentos. A mesma irreprimível energia de pensamento que três dias depois fez esses dois discípulos correrem para ver o sepulcro vazio estava agora impelindo seus passos em direção à sala do julgamento para testemunhar os acontecimentos que lá se pas­sariam.

Além das atividades de seu pensamento, podemos perceber, na con­duta dos dois discípulos, um certo espírito de ousadia em ação. Ficamos sabendo, através do livro de Atos dos Apóstolos, que quando Pedro e João compareceram perante o conselho de Jerusalém, os dirigentes fica­ram admirados com sua coragem. No entanto, essa coragem só podia ser esperada de homens que tinham tido esse tipo de comportamento du­rante a crise. Ê verdade que nessa ocasião, e em comum com os outros irmãos, eles já haviam passado por uma grande modificação espiritual, mas ainda assim não podemos deixar de reconhecer uma certa identida­de no caráter de cada um deles. Esses dois apóstolos tinham alcançado aquela maturidade espiritual que haviam prometido nos dias de seu discipulado, pois não deixou de ser um ato de coragem seguir, mesmo à distância, o grupo que havia levado Jesus como prisioneiro. Em homens que conseguem agir dessa maneira já existem, pelo menos, os rudimen­tos do caráter de um mártir. Se fossem meros covardes não teriam se com­portado desse modo; mas teriam prontamente se aproveitado da autori­zação para fugir que Jesus lhes havia concedido, confortando seu cora­ção com o pensamento de que, ao procurarem sua segurança, estavam apenas cumprindo a obrigação que lhes fora imposta.

Mas acreditamos que a conduta dos dois irmãos tenha se originado principalmente de seu fervoroso amor por Jesus. Quando desapareceu o

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primeiro paroxismo de medo, o cuidado pela segurança pessoal deu lu­gar a uma generosa preocupação com o destino daquEle a quem real­mente amavam mais que a própria vida. O amor a Cristo os obrigou a pensar não em si mesmos, mas naquEle cuja hora de aflição havia chega­do. Primeiro, eles afrouxaram o passo; em seguida pararam e olharam em volta; e ao ver aquele grupo armado se aproximando da cidade, pro­vavelmente tenham sentido que estavam magoando alguém e dito consi­go mesmos: “Não podemos abandonar nosso Mestre em sua hora de perigo, devemos ver o desdobramento desse assunto tão doloroso”. E assim, com o espírito angustiado, eles se dirigiram a Jerusalém, Pedro à frente e João logo atrás.

Os dois irmãos, que até agora tinham sido companheiros, desen- tenderam-se profundamente ao chegar à cena do julgamento e do sofri­mento. João apegou-se ao seu Senhor até o último momento. Parece que esteve presente nas várias inquirições às quais Jesus foi submetido e ou­viu com seus próprios ouvidos o processo jurídico do qual ele faz um relato tão interessante em seu Evangelho. Ele era um espectador quando a iníqua sentença foi proferida, tomou seu lugar aos pés da cruz onde a tudo podia assistir, não só para que seu moribundo Mestre pudesse vê- lo, mas também falar com ele. E viu, entre outras coisas, o fenômeno do sangue e da água fluindo da ferida provocada pela lança no corpo do Salvador, que ele com tanto cuidado registra em sua narrativa. Foi nesse lugar que ouviu as últimas palavras de Cristo, entre elas as que foram dirigidas a Maria (mãe de Jesus) e a ele mesmo. O Senhor disse a Maria: “Mulher, eis aí o teu filho”; e a ele, “Eis aí tua mãe”.

Dessa forma, João foi persistentemente fiel o tempo todo; mas e Pedro, o que aconteceu com ele? Meu Deus! Será que há necessidade de repetir a conhecida história de sua deplorável fraqueza no pátio do palá­cio do sumo sacerdote? Como, tendo conseguido entrar pela porta late­ral, através da intercessão de um discípulo irmão, ele primeiro negou ao porteiro sua ligação com Jesus, depois repetiu essa negação a outras pes­soas, acrescentando um solene juramento e, em seguida, muito irritado pela repetição da acusação, e talvez por uma consciência da culpa, decla­rou pela terceira vez, não apenas com um voto, mas com o acompanha­mento degradante de um juramento profano: “Não conheço tal homem”;

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para, por fim, — ao ouvir o galo cantar e ao mesmo tempo sentir o olhar de Jesus e lembrar-se das palavras “Antes que o galo cante, três vezes me negarás”— sair para a rua e chorar amargamente?

Não fomos informados sobre o que aconteceu com Pedro depois dessa melancólica exibição. E provável que tenha se retirado para a sua casa sentindo-se humilhado, abatido e esmagado, para lá permanecer coberto de dor e de vergonha até ser liberto desses sentimentos pelas emocionantes notícias da manhã da ressurreição.

Essa diferença de conduta entre os dois discípulos correspondia a uma diferença de caráter, e cada um agia conforme a sua natureza. E mesmo verdade que as circunstâncias não foram iguais para os dois; houve pontos favoráveis para um e desfavoráveis para o outro. João tinha a vantagem de ter um amigo na corte e era, de alguma forma, conhecido pelo sumo sacerdote. Essa circunstância permitiu-lhe a admissão na sala de julgamento, dando-lhe uma certa segurança contra qualquer risco à sua pessoa. Pedro, por outro lado, além de não ter nenhum amigo na corte, também podia naturalmente temer que algum inimigo pessoal estivesse presente nesse local. A precipitação de seu ato no jardim o havia tornado uma pessoal indesejável, e ele podia estar sentindo medo de, como conseqüência, ter problemas naquele local. Ficamos sabendo, através da descrição desse fato feita por João, que tais receios não deixavam de ter fundamento, pois uma das pessoas que acusaram Pedro de ser discí­pulo de Jesus pertencia à família do homem cuja orelha Pedro havia decepado, e que dirigiu sua acusação contra o discípulo com as seguintes palavras: “Não te vi eu no horto com ele?” Portanto, de qualquer forma, é muito provável que a consciência de ter cometido uma ofensa que poderia provocar algum rancor tenha tornado Pedro ansioso por não ser identificado como um dos discípulos de Cristo. Sua inoportuna cora­gem no jardim ajudou a fazer dele um covarde no pátio do palácio.

Entretanto, concedendo aos efeitos das circunstâncias todos os pos­síveis descontos, acreditamos que a diferença no comportamento dos dois discípulos tenha se devido, principalmente, a uma diferença exis­tente nos próprios homens. Receamos que, mesmo que não tivesse sido culpado de qualquer imprudência no jardim, Pedro teria negado a Jesus no pátio da casa do sumo sacerdote. Por outro lado, supondo que João

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tivesse sido colocado na posição de Pedro, não acreditamos que tivesse cometido o pecado que Pedro cometeu. A disposição de Pedro o deixava aberto à tentação, enquanto a de João, ao contrário, oferecia uma certa proteção contra ela. Pedro era franco e impetuoso, enquanto João era reservado e nobre; a tendência de Pedro com todas as pessoas era agir de uma forma calorosa e aberta, enquanto João se mantinha em seu lugar e tinha a facilidade de colocar as outras pessoas em seus próprios lugares. E fácil enxergar o importante efeito que essa diferença exercia na condu­ta de pessoas colocadas na posição de Pedro. Vamos supor que João estivesse no lugar de Pedro, e imaginar como teria agido. Certas pessoas que estivessem na corte, sem possuir qualquer autoridade ou influência, iriam interrogá-lo sobre sua ligação com Jesus. João não teria medo nem vergonha de reconhecer seu Senhor; entretanto, ele daria as costas sem responder a qualquer pergunta dos que o interrogavam. Eles não tinham qualquer direito de questioná-lo. João não teria tido qualquer simpatia pelo espírito que conduzia as perguntas daquela gente e certamente pen­saria que não serviria a nenhum propósito confessar seu discipulado a tais pessoas. Portanto João, assim como fez seu Mestre quando foi con­frontado com falsas testemunhas, manteria a sua tranqüilidade e se reti­raria da companhia das pessoas com as quais nada tinha em comum e pelas quais não nutria qualquer respeito.

Mas proteger-se contra esse inconveniente interrogatório, através de uma tão majestosa reserva, era algo que estava além da capacidade de Pedro. Ele não conseguia manter à distância pessoas que não eram ade­quadas à sua companhia; era demasiadamente aberto e sensível à opinião pública, e não era capaz de fazer uma seleção entre as pessoas. Se uma serva lhe perguntasse sobre a sua relação com o prisioneiro ele não con­seguiria passar por ela como se não a tivesse ouvido. Pedro lhe daria imediatamente uma reposta e, se sentisse instintivamente que a animosi­dade da questão estava dirigida ao seu Mestre, essa resposta precisaria ser uma mentira. Então, desprevenido quanto ao encontro com o perigo que se originaria de um contato muito próximo com aqueles que anda­vam pelo palácio, esse imprudente discípulo deve ter se envolvido e se prendido cada vez mais na rede, ao se misturar alegremente com os ser­vos e os empregados reunidos em volta do fogo que havia sido aceso no

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pátio externo. É claro que não tinha qualquer chance de escapar dali, era como uma pobre mosca apanhada na teia de uma aranha. Se esses ho­mens, com seu tom insolente de lacaios da corte, o acusassem de ser seguidor de um homem a quem seus mestres tinham agora em seu po­der, ele nada podia fazer além de irrefletidamente responder com uma ignóbil e básica negativa. Pobre Pedro; ele não estava evidentemente à altura da situação. Teria sido mais prudente ter permanecido em casa, restringindo a sua curiosidade de ver o fim. Mas ele, assim como a maio­ria dos seres humanos, somente alcançaria a sabedoria através de uma amarga experiência.

O contraste que desenhamos entre as características dos dois discí­pulos sugere o seguinte pensamento: Que resultado diferente pode pro­vocar o crescimento na graça em diferentes cristãos! Nem João nem Pedro tinham alcançado a maturidade de espírito, mas essa imaturidade se re­velava de maneiras opostas. A fraqueza de Pedro estava dirigida à sua indiscriminada cordialidade e à sua tendência de ser “amigo de todo mundo”. João, por outro lado, não corria nenhum risco de formar laços próximos com tudo e todos. Ao contrário, para ele era demasiadamentejácil estabelecer a diferença entre amigos e inimigos. Ele podia tomar um partido e nele permanecer; podia até odiar com fanática intensidade, assim como amar com uma maravilhosa devoção. Observe sua proposta de pedir fogo do céu para consumir as aldeias samaritanas! Essa era uma proposta que Pedro nunca poderia fazer, pois não era de sua natureza ser truculento contra qualquer ser humano. Até então, sua cordial natureza havia sido algo a se comentar, embora em outros aspectos pudesse deixá- lo aberto à tentação. Sendo as falhas dos dois discípulos tão opostas, o crescimento na graça iria naturalmente assumir duas formas opostas em suas respectivas experiências. Em Pedro ele iria tomar a forma de uma concentração; e em João, a de expansão. Pedro se tornaria menos genero­so e João m uito mais. Pedro progred iria de uma benevolência indiscriminada para uma determinação moral que faria a distinção entre amigos e inimigos, a igreja e o mundo. O progresso de João, por outro lado, consistiria em deixar de ser intolerante e se tornar imbuído do espírito bondoso, humano e gentil de seu Senhor. Pedro, no estado ma­duro de seu espírito, se importaria muito menos com a opinião e os

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sentimentos dos homens do que naquele momento, e João, por outro lado, passaria a se importar muito mais.

Podemos acrescentar algumas palavras a essa questão: Teria sido certo ou errado os dois discípulos terem seguido o seu Senhor até o local do julgamento? Em nossa opinião, não foi certo nem errado. Foi certo para aquele que era capaz de fazê-lo sem qualquer dano espiritual, e errado para aquele que tinha razões para acreditar que, assim fazendo, estaria se expondo a esse perigo. A última parte dessa resposta representa o caso de Pedro, enquanto a primeira parece ter sido o caso de João. Pedro havia sido bastante prevenido sobre a sua fraqueza e, se tivesse levado isso a sério, teria evitado a cena da tentação. Ao desconsiderar as advertências, ele se lançou voluntariamente nos braços do tentador e, é claro, cometeu um pecado. Seu erro ensina uma lição a todos aqueles que, sem procurar a orientação de Deus e negligenciando os conselhos recebi­dos, assumem compromissos que estão além de suas próprias forças.

1 Lucas 22.492 Mateus 26.52-543 João 18.114 Lucas 22.35-385 João 18.86 Mateus 26.317 Versículo 418 Mateus 26.359 Teenyson, In Memoriam3 53.10 Sartorius, Die Lebre von der heiligen Liebe, p. 79, 80.11 Mateus 26.5812 João 18.1513 João 18.10

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28O Pastor RessuscitadoSeçao I - Uma Notícia Boa demais para Ser Verdade

Mateus 28 .17 ; Marcos I6 .I I -I5 ; Lucas 2 4 .11 , 13-22, 36-42; João 20.20, 24-29

O dia negro da crucificação é passado; o dia seguinte, o sábado judeu, quando aquEle abatido dormiu em sua sepultura talhada na ro­cha, também é passado; o primeiro dia de uma nova semana e de uma nova era já raiou, e o Senhor ressuscitou dos mortos. O Pastor voltou a reunir as suas ovelhas dispersas. Certamente um dia feliz para os discí­pulos infelizes! Que alegria arrebatadora deve ter emocionado seus cora­ções com o pensamento de um encontro com o seu amado Senhor! Com que fervorosa esperança eles devem ter aguardado ansiosamente por aquela manhã da ressurreição!

Assim poderia se pensar; mas o estado real do caso não era este.Tais fervorosas expectativas não tiveram lugar na mente dos discípulos. O estado real de suas mentes na ressurreição de Cristo era bem semelhante ao dos judeus exilados na Babilônia, quando ouviram que seriam resta­belecidos em sua terra natal. O primeiro efeito da boa nova foi que eles eram como homens que sonhavam. A notícia parecia boa demais para ser verdade. Os cativos que haviam se assentado à beira dos rios da Babilônia, e que choravam quando se lembravam de Sião, deixaram de esperar pelo retorno à sua própria pátria, e certamente de serem capazes de esperar por qualquer coisa. “A dor estava instalada e a esperança esta­va morta” dentro deles. Então, quando os exilados haviam se recuperado do sentimento de surpresa, o efeito seguinte das boas notícias foi um acesso de júbilo. Eles se desatam em um riso histérico e em cânticos irreprimíveis1.

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Muito similar foi a experiência dos discípulos em relação à ressur­reição de Jesus dos mortos. A sua dor ainda não estava profundamente enraizada, mas a sua esperança estava morta. A ressurreição de seu Mes­tre era totalmente inesperada por eles, e receberam a notícia com surpre­sa e incredulidade. Este fato é expresso nas afirmações dos quatro evangelistas. Mateus afirma que na ocasião do encontro de Cristo com os seus seguidores na Galiléia, depois da ressurreição, alguns duvidaram, enquanto outros adoraram2. Marcos relata que quando os discípulos ouviram Maria Madalena dizer que Jesus estava vivo, e que havia sido visto por ela, “não o creram”3; e quando os dois discípulos que viajavam para Emaús contaram a seus irmãos sobre o seu encontro com Jesus no caminho, “nem ainda estes creram”4. Ele posteriormente relata como, em uma ocasião subseqüente, quando Jesus se encontrou com os onze de uma vez, ele “lançou-lhes em rosto a sua incredulidade e dureza de coração, por não haverem crido nos que o tinham visto já ressuscitado”5.

Em total concordância com estas afirmações dos dois primeiros evangelistas estão as de Lucas, cuja representação da atitude mental dos discípulos em relação à ressurreição de Jesus é detalhada e anima­da. De acordo com ele, os relatórios das mulheres lhes pareceram “como desvario, e não as creram”6. Os dois irmãos, vagamente mencionados por Marcos como caminhando pelo campo quando Jesus lhes apare­ceu, são representados por Lucas como tendo um semblante triste, embora conscientes dos rumores sobre a ressurreição; na verdade, es- tavam tão deprimidos no espírito, que não reconheceram Jesus quando Ele se juntou a eles e começou a conversar7. A ressurreição não era um fato para eles: tudo o que sabiam era que seu Mestre estava morto, e que eles haviam confiado inutilmente que seria Ele quem deveria ter redimido a Israel. O mesmo evangelista também nos informa que na primeira ocasião em que Jesus se apresentou no meio de seus discípu­los, eles reconheceram a semelhança da aparição com o seu Senhor morto, mas pensaram que era apenas um fantasma, e assim ficaram aterrorizados e apavorados de maneira que, a fim de afastar o medo, Jesus lhes mostrou suas mãos e seus pés, e lhes rogou que tocassem seu corpo, e assim se convencessem de que Ele não era um fantasma, mas um ser que possuía um corpo8.

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Em vez de declarações gerais, João dá um exemplo da incredulidade dos discípulos com relação à ressurreição, como mostrado de forma extrema por Tomé. Este discípulo é representado como alguém tão in­crédulo, que recusou-se a crer até que se lhe desse a oportunidade de colocar seu dedo nas marcas dos cravos e a sua mão na ferida feita por uma lança no lado do Salvador. Os outros discípulos compartilharam da mesma incredulidade de Tomé, embora em um grau menor; essa in­formação está implícita na afirmação feita por João em uma parte ante­rior de sua narrativa, em que se diz que quando Jesus encontrou seus discípulos na noite do dia em que ressuscitou, “mostrou-lhes as mãos e o lado”9.

As mulheres que haviam crido em Cristo não tinham mais expecta­tivas de sua ressurreição do que os onze. Elas saíram em direção à sepul­tura na manhã do primeiro dia da semana, com a intenção de embalsa­mar o corpo morto daquEle a quem amavam. Elas procuraram o vivo entre os mortos. Quando Madalena, que havia estado no túmulo antes das outras, encontrou a sepultura vazia, seu pensamento foi que alguém tivesse levado o corpo morto de seu Senhor10.

Quando a incredulidade dos discípulos finalmente deu lugar à fé, eles passaram, como os hebreus exilados, da extrema depressão à alegria exuberante. Quando a dúvida de Tomé foi removida, ele exclamou em êxtase: “Senhor meu, e Deus meu!”11 Lucas relata que quando reconhe­ceram seu Senhor ressuscitado, os discípulos não crendo ainda “por causa da alegria”12 trataram a dúvida como um estímulo à alegria. Os dois discípulos com quem Jesus conversou no caminho de Emaús disseram um ao outro quando Ele lhes deixou: “Porventura, não ardia em nós o nosso coração quando, pelo caminho, nos falava e quando nos abria as Escrituras?”13

Sob outro aspecto ainda mais importante, os onze se assemelhavam aos antigos hebreus exilados no momento de sua chamada. Enquanto a sua fé e esperança estavam paralisadas durante o intervalo entre a morte e a ressurreição de Jesus, seu amor permaneceu com uma vitalidade cons­tante. O judeu expatriado não se esqueceu de Jerusalém na terra dos estranhos. A ausência apenas fez seu coração ficar mais desejoso. Quan­do se sentava à beira dos rios da Babilônia, desanimado, inerte, em um

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estado de espírito indistinto e abstrato, olhando com olhos vidrados para as águas indolentes, grandes lágrimas rolavam silenciosamente por seu rosto, porque estava pensando em Sião. O exílio da alma poética não trouxe o esquecimento em relação à honra que era devida a Jerusalém. Ele era incapaz de cantar as canções do Senhor aos ouvidos de um públi­co pagão, que não se importava com o seu significado, mas apenas com o estilo da execução. Não prostituiria os seus talentos para a diversão dos opressores voluptuosos de Israel, embora deste modo pudesse con­seguir a sua restauração para a amada pátria de seu nascimento, como os cativos atenienses na Sicília dizem ter feito recitando versos de seu poeta favorito, Euripides, aos ouvidos de seus senhores sicilianos14.

Os discípulos não eram menos verdadeiros à memória de seu Se­nhor. Eles eram como “verdadeiras viúvas”, que permanecem fiéis a seus falecidos maridos e idolatram suas virtudes, embora a sua reputação seja nula na avaliação geral do mundo. Não poderiam chamá-lo de grande enganador, pois não podiam crer que Jesus fosse um enganador. Poderi­am ter se enganado e não compreendido, naquele momento, alguns pon­tos em seu ensino; mas um impostor — nunca! Portanto, embora Ele esti­vesse morto e a esperança deles tivesse desaparecido, eles ainda agiam como homens que nutriam a ligação mais afetuosa ao Mestre que ha­viam perdido. Eles se mantêm juntos como uma família consternada, com as cortinas abaixadas, por assim dizer, fechando e trancando as suas portas por medo dos judeus, identificando-se com o Crucificado e, como seus amigos, temendo a má vontade do mundo incrédulo. Exemplo ad­mirável a todos os cristãos de como se comportar em um dia de tribula- ção, censura e blasfêmia, quando a causa por Cristo parecer perdida, e os poderes das trevas no momento tiverem todas as coisas sob seu controle. Ainda que a fé seja eclipsada e a esperança dissipada, deixe que o coração seja sempre leal a seu verdadeiro Senhor!

O estado de espírito dos discípulos por ocasião da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos é de grande importância do ponto de vista apologético. O desespero que sentiram após a crucificação de seu Se­nhor colaborou para que expressassem a grande importância do teste­munho que dariam sobre o fa to de sua ressurreição. Não era provável que homens em tal estado de espírito cressem no acontecimento que viria,

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mesmo sendo um fato tão contundente e que não pudesse ser desacredi­ta do. Eles não ficariam ligeiramente satisfeitos com a verdade, como os homens estão inclinados a ficar no caso de eventos tão desejados quanto esperados: exigiriam, com ceticismo, evidências superabundantes, como os homens fazem no caso de eventos desejáveis e esperados. Seriam len­tos para crer no testemunho de outros, e poderiam até hesitar em crer naquilo que viam com seus próprios olhos. Não seriam capazes, como M . Renan supõe, de crer na ressurreição de Jesus, pelo simples fato de sua sepultura ter sido encontrada vazia, ao terceiro dia após a sua morte, pelas mulheres que foram embalsamar o seu corpo. Esta circunstância, ao ser divulgada, poderia fazer com que Pedro e João corressem para a sepultura para ver como as coisas estavam; mas após terem confirmado o relato das mulheres, ainda permaneceria a pergunta sobre como o fato deveria ser explicado; e a teoria de Maria Madalena, de que alguém havia levado o corpo, não pareceria totalmente improvável.

Essas nossas inferências, do que sabemos a respeito da condição mental dos discípulos, são totalmente confirmadas pelos relatos do Evan­gelho a respeito da recepção que deram ao Senhor Jesus ressuscitado em suas primeiras aparições a eles. Um dentre todos eles considerou essas aparições de modo cético, esforçando-se para satisfazê-los, e tornou ne­cessário que Jesus os convencesse de que o objeto visível não era uma aparição fantasmagórica, mas um homem vivo, e nenhum outro homem exceto aquEle que havia morrido na cruz. Os discípulos duvidaram en­tão da substancialidade, da identidade da pessoa que lhes apareceu. Não estavam, portanto, satisfeitos apenas por ver Jesus, mas, a seu próprio pedido, o tocaram. Um deles não somente tocou o corpo para se certi­ficar de que Ele possuía a incompressibilidade da matéria, mas insistiu em examinar com curiosidade cética aquelas partes que foram feridas pelos cravos e pela lança.Todos perceberam a semelhança entre o objeto da visão e Jesus, mas não puderam ser persuadidos quanto à identidade, tão despreparados que estavam para ver, novamente vivo, aquele que ha­via morrido; e sua teoria a princípio era a mesma de Strauss, de que eles teriam visto um fantasma ou um espectro. E o próprio fato de eles cogi­tarem essa teoria faz com que nos seja impossível cogitá-la. Não pode­mos, diante deste fato, aceitar o dogma de Strauss, de que “a f é em Jesus

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como o Messias, que por sua morte violenta havia recebido um golpe aparentemente fatal, foi subjetivamente restaurada por intermédio da mente, do poder da imaginação e do nervosismo”. Sabemos que o poder da imaginação e do nervosismo pode fazer muitas coisas. Freqüente­mente tem acontecido que homens em um estado anormal de entusias­mo vejam projetados no espaço exterior as criações de uma mente acalo­rada. Mas as pessoas em um estado insano como este — sujeito à alucina­ção — geralmente não estão tranqüilas e racionais o bastante para duvida­rem daquilo que vêem; nem é necessário, no caso delas, esforçarem-se para superar tais dúvidas. O que elas precisam, na realidade, é se torna­rem cientes de que o que pensam ver não é a realidade: o oposto daquilo que Jesus precisou fazer pelos discípulos, e o fez , por uma declaração solene de que Ele não era um espírito, convidando-os a tocarem-no, e assim convencendo-os de sua substancialidade material, chegando a com­partilhar alimentos na presença deles.

Quando mantemos firmemente diante de nossos olhos a condição mental dos doze no momento da ressurreição de Cristo, vemos a falsida­de e o absurdo transparentes da teoria do roubo inventada pelos sacerdo­tes judeus. Essa teoria diz que os discípulos vieram durante a noite, enquanto os guardas estavam dormindo, roubaram o corpo de Jesus e conseguiram divulgar a crença de que havia ressuscitado. Mateus diz que antes mesmo da ressurreição, os assassinos de nosso Senhor estavam com medo de que isso pudesse acontecer; e então, para prevenir qual­quer fraude desse tipo, rogaram a Pilatos que tivessem uma guarda colo­cada no sepulcro e, assim, com menosprezo lhes concedeu a permissão para tomarem as medidas que quisessem para prevenir qualquer proce­dimento com relação à ressurreição, tanto por parte do morto como dos vivos, respondendo com desdém: “Tendes a guarda; ide, guardai-o como entenderdes”. Eles assim o fizeram, selando a pedra e reforçando a guar­da. Ai deles! Suas precauções não impediram nem a ressurreição nem a crença nela, mas apenas forneceram uma ilustração da falsidade daqueles que tentam controlar a providência e o curso da história do mundo. Deram a si mesmos muito trabalho, e tudo isso resultou em nada. Não que estejamos inclinados a negar a astúcia desses políticos eclesiásticos. Sua trama para impedir a ressurreição foi muito prudente, e seu modo

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para explicá-la, mais tarde, foi até mesmo um tanto plausível. A história que criaram foi realmente uma invenção em que alguns acreditaram, e com certeza satisfaria a todos os que desejavam uma teoria decente para justificar uma conclusão prévia, como de fato parece ter acontecido; pois, de acordo com Mateus, ela foi relatada comumente nos anos seguintes15. Não era improvável que os soldados caíssem no sono durante a vigília da noite, em especial guardando um corpo morto, que provavelmente não lhes causaria nenhum problema; e aos olhos do mundo incrédulo, os seguidores do Nazareno eram capazes de usar qualquer meio para pro­mover os seus propósitos.

Mas admitindo tudo isso, e ainda admitindo que os membros do sinédrio estavam certos em suas opiniões em relação ao caráter dos discípulos, a sua teoria do roubo é ridícula. Os discípulos, ainda que fossem capazes de tal roubo (o que de fato não eram), no que diz respeito aos seus escrúpulos de consciência, não estariam em um esta­do de espírito para pensar nisso, ou de tentar fazê-lo. Não lhes restava nenhum ânimo para uma ação tão ousada. A tristeza era sentida como um peso de chumbo em seus corações, e os tornou tão inoperantes quanto o corpo que supostamente teriam roubado. Então o motivo para o roubo não poderia tê-los influenciado naquele momento. Rou­bar o corpo para propagar a crença da ressurreição! Que interesse eles teriam em propagar uma crença que eles mesmos não nutriam? “Por­que ainda não sabiam a Escritura, que diz que era necessário que res­suscitasse dos mortos”16. Nem se lembraram absolutamente do que seu Mestre havia dito sobre isso antes de sua morte. Para alguns essa declaração posterior pareceu difícil de acreditar; e para superar a difi­culdade, foi sugerido que as previsões de nosso Senhor com respeito à sua ressurreição poderiam não ter sido tão explícitas como aparecem nos Evangelhos, mas podem ter assumido essa forma explícita após o evento, quando seu significado já estava claramente entendido17. Não vemos nenhuma ocasião para tal suposição. Não pode haver dúvida de que Jesus tenha falado, no mínimo, de forma suficientemente clara sobre a sua morte; e mesmo assim os discípulos foram surpreendidos por sua morte e ressurreição18. Há uma explicação que é suficiente para ambos os casos. Os discípulos não eram homens inteligentes,

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espertos e sentimentais tal como Renan os descreve. Eram pessoas comuns e lentas em raciocínio; eram muito honestos, mas pouco aptos para aceitar novas idéias. Eram como cavalos com anteolhos, e podiam ver apenas em uma direção — isto é, na direção de seus preconceitos. Era necessária a cirurgia dos eventos para inserir uma nova verdade em suas mentes. Nada mudaria a torrente de seus pensamentos exceto uma represa de fatos inegáveis. Eles só poderiam ser convencidos de que Cristo deveria morrer e ressuscitar voluntariamente, e de que seu Reino não seria deste mundo, pelo derramamento do Espírito no Pen- tecostes e por sua chamada e vocação de pregar aos gentios. Sejamos agradecidos pela tolice honesta desses homens. Isso dá grande valor a seu testemunho. Sabemos que nada além dos fatos poderia fazer tais homens acreditarem naquilo de que foram acusados, por alguns, de inventar.

O uso apologético que temos feito das dúvidas dos discípulos com relação à ressurreição de Cristo não é apenas legítimo, mas é exatamente o que se pretendia ao serem registradas. Os evangelistas relataram cuida­dosamente essas dúvidas, para que nós não tivéssemos nenhuma dúvida. Essas coisas foram escritas para que pudéssemos crer que Jesus realmen­te ressuscitou dos mortos; pois os apóstolos deram suprema importân­cia a esse fato, do qual haviam duvidado nos dias de seu discipulado. A ressurreição foi o alicerce de sua estrutura doutrinária, uma parte essen­cial de seu evangelho. O apóstolo Paulo corretamente resumiu o evange­lho pregado por si mesmo e pelos homens que haviam estado com Jesus, nestes três itens: "que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”. Todos os onze concordaram inteiramente com o senti­mento de Paulo, de que se Cristo não tivesse ressuscitado, a sua pregação seria vã, e a fé dos cristãos também seria vã. Não haveria absolutamente nenhum evangelho, a menos que aquele que morreu pelos pecados dos homens ressuscitasse para a sua justificação. Com esta convicção em suas mentes, eles constantemente davam testemunho da ressurreição de Jesus aonde quer que fossem. Este testemunho lhes parecia uma parte tão importante de seu trabalho, que quando Pedro propôs a eleição de al­guém para preencher o lugar de Judas, destacou esta parte como uma

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função característica do ofício apostólico. “Dos varões”, disse ele, “que conviveram conosco todo o tempo em que o Senhor Jesus entrou e saiu dentre nós... um deles se faça conosco testemunha da sua ressurreição”.

E nosso grande dever nos solidarizarmos com este valor supremo ligado ao fato da ressurreição de Cristo na pregação apostólica. Incrédu­los modernos, como alguns na igreja de Corinto, tentam nos persuadir de que não importa se Jesus ressuscitou ou não; tudo i s s o é valioso no cristianismo sendo inteiramente independente da mera verdade históri­ca. Com estes praticamente concordaram muitos crentes habituados a uma vida espiritual elevada, que tratam fatos simplesmente sobrenatu­rais com uma negligência desdenhosa, julgando que apenas as elevadas doutrinas da fé sejam dignas de sua consideração. Para as pessoas que têm esta índole, tais estudos como aqueles que têm nos ocupado neste capítulo parecem uma perda de tempo; e se dissessem como se sentem, ouviríamos: “Abandone essas ninharias, e nos dê o evangelho puro e simples”. Os cristãos inteligentes, sóbrios e desejosos diferem fofo coelo dessas duas classes de pessoas. Na opinião deles, o cristianismo é, em primeiro lugar, uma religião de fatos sobrenaturais. Esses fatos ocupam o lugar principal em seu credo. Eles sabem que se crerem honestamente, todas as grandes doutrinas da fé devem, cedo ou tarde, ser aceitas; e, por outro lado, compreendem claramente que uma religião que despreza, para não dizer que desacredita, esses fatos, não é senão uma utopia que deve logo ser dissipada, ou uma casa construída na areia cuja tempestade irá destruir. Portanto, enquanto reconhecem a importância de toda a verdade revelada, dão um destaque muito especial aos fatos revelados. Crendo de coração na preciosa verdade de que Cristo morreu por nossos pecados, estes se mostram cuidadosos ao pregar o evangelho, como os apóstolos, afirmando que o Senhor Jesus Cristo morreu, foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia19.

Seção II — Os Olhos dos D iscípulos São AbertosMarcos 16.14; Lucas 24.25-32, 44-46; João 20.20-23

Após a sua morte, Jesus mostrou-se vivo a seus discípulos em um corpo, pela primeira vez, na noite do dia de sua ressurreição. Foi a quar­ta vez que Ele se tornou visível desde que havia ressuscitado dos mortos.

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O Senhor havia aparecido naquela manhã primeiro a Maria Madalena. Ela havia recebido a honra que assim lhe fora conferida por sua preemi- nente devoção. De espírito semelhante a Maria de Betânia, ela havia sido a primeira dentre as mulheres que vieram ao túmulo de José de Arimatéia para embalsamar o corpo morto do Salvador. Encontrando a sepultura vazia, ela chorou amargamente, porque pensou que haviam levado o seu Senhor, e ela não sabia onde o haviam colocado. Aquelas lágrimas, sinal certo de amor verdadeiro e profundo, não passaram despercebidas pelo Senhor ressurrecto. As dores dessa alma fiel tocaram o terno coração do Senhor, e o trouxeram para junto dela para confortá-la. Voltando em aflição do sepulcro, ela o viu de pé, mas não o reconheceu. “Disse-lhe Jesus: Mulher, por que choras? Quem buscas? Ela, cuidando que era o hortelão, disse-lhe: Senhor, se tu o levaste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei. Disse-lhe Jesus: M aria!”20 Atônita por ouvir aquela voz tão familiar, ela olha com mais atenção, e imediatamente devolve a saudação benigna com uma expressiva palavra de reconhecimento: “Rabom!” Desse modo, “para lágrimas santas, nas horas solitárias, o Cristo ressurrecto sempre aparece.”

A segunda aparição foi concedida a Pedro. Com respeito a este en­contro particular entre Jesus e seu discípulo errante não temos nenhum detalhe: é simplesmente mencionado por Paulo em sua Epístola aos Coríntios e por Lucas em seu Evangelho; mas não podemos ter nenhu­ma dúvida de seu objetivo. O Mestre ressurrecto lembrou-se do pecado de Pedro; Ele sabia como Pedro estava com sua mente perturbada por conta disso, e desejou sem demora avisá-lo de que estava perdoado; e em consideração atenciosa pelos sentimentos do ofensor, planejou encontrá- lo pela primeira vez depois de sua queda, sozinhos.

No decorrer do dia Jesus apareceu, pela terceira vez, a dois irmãos que viajavam para Emaús. Lucas deu um maior destaque a essa terceira aparição do que a qualquer outra em sua narrativa, provavelmente por­que esse tenha sido, para o evangelista, um dos casos que mais lhe tenha chamado a atenção após a ressurreição, ao selecionar as passagens que deveria inserir em seu Evangelho. E, na verdade, é impossível imaginar algo mais interessante do que essa linda história. Quão vivida é toda a situação dos discípulos trazida diante de nós pela figura de dois amigos

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andando pelo caminho, e conversando juntos sobre as coisas que haviam acontecido, os sofrimentos de Jesus três dias atrás, e dos rumores que acabavam de chegar a seus ouvidos sobre a sua ressurreição; e enquanto conversavam, vibrando entre o desespero e a esperança, meditando des­consoladamente na crucificação daquEle que até então consideravam ser o Redentor de Israel, e imaginando se seria possível que Ele pudesse ter ressuscitado! Por um artifício de amor ele assume a posição de um ho­mem incógnito, e juntando-se à companhia dos dois homens pesarosos, lhes pergunta de forma indiferente qual era o assunto de que falavam tão triste e seriamente; e ao receber como resposta uma pergunta que expres­sava surpresa por ele ignorar fatos que eram conhecidos até mesmo por estrangeiros em Jerusalém, novamente pergunta de forma seca e indife­rente: “Quais” coisas?Tendo assim arrancado deles a história, o Senhor começa por sua vez a lhes mostrar que um leitor inteligente do Antigo Testamento não deveria ficar surpreso por tais coisas acontecerem àquEle a quem acreditavam ser o Cristo, aproveitando para expor-lhes “o que dele se achava em todas as Escrituras”, sem dizer que é de si mesmo que está falando. Na chegada dos viajantes ao vilarejo para onde os dois irmãos se dirigiam, o desconhecido assume o ar de um homem que pre­tende seguir em frente, como um estranho que não imporia a sua com­panhia não sendo convidado; mas ao receber um convite insistente, Ele aceita, e finalmente os dois irmãos descobrem, para sua alegria, quem estavam recebendo sem saber.

A propósito, esta aparição de Jesus aos dois irmãos foi um tipo de prelúdio àquilo que fez na noite do mesmo dia em Jerusalém, aos onze, ou melhor, aos dez. Logo que descobriram quem haviam tido como convidado, Cleopas e seu companheiro partiram de Emaús para a C i­dade Santa, ansiosos para contarem a seus amigos dali essas notícias sensacionais. E, eis que, enquanto eles estavam contando o que havia acontecido no caminho, e como Jesus se lhes tornou conhecido no partir do pão, o próprio Senhor Jesus apareceu entre eles, pronunciando uma gentil saudação: “Paz seja convosco!” Ele veio fazer pelos futuros apóstolos o que já havia feito pelos dois amigos: mostrar-se vivo a cada um deles após a sua morte, e abrir seus entendimentos para que pudes­sem compreender as Escrituras, e verem que, de acordo com o que

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havia sido escrito antes de Cristo, cabia a Ele sofrer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia.

Embora o modelo geral das duas aparições seja o mesmo, observa­mos uma diferença na ordem dos procedimentos seguidos por Jesus. Em um caso ele abriu os olhos do entendimento em primeiro lugar e os olhos do corpo em segundo; no outro caso, Ele inverteu esta ordem. Em sua conversa com os dois irmãos, Ele primeiro lhes mostrou que a cruci­ficação e a ressurreição estavam em perfeito acordo com as Escrituras do Antigo Testamento, e então, em conclusão, se fez visível aos seus olhos físicos como o Jesus ressuscitado. Em outras palavras, Ele primeiro lhes ensinou a verdadeira teoria escriturística da experiência terrena do Mes­sias, e então os satisfez com a questão de fa to. Por outro lado, à noite, na reunião com os dez, Ele empregou primeiramente a questão de fato, e em seguida passou à teoria. Ele convenceu os seus discípulos de que havia realmente ressuscitado, mostrando-lhes suas mãos e seus pés, e ingerindo alimentos; e então continuou mostrando que esse fato era apenas o que eles deveriam ter esperado como o cumprimento das pro­fecias do Antigo Testamento.

Variando assim a ordem da revelação, Jesus estava apenas adequan­do o seu procedimento às diferentes circunstâncias das pessoas com quem tinha de lidar. Os dois amigos que viajavam para Emaús não notaram nenhuma semelhança entre o estranho que se juntou a eles e seu amado Senhor, em quem vinham pensando e de quem vinham falando. “Mas os olhos deles estavam como que fechados, para que o não conhecessem”21. A principal causa disso, cremos, era desviar o peso do coração. A dor os havia cegado. Eles estavam tão absortos em seus próprios e tristes pensa­mentos, que não tinham nenhum interesse nas coisas exteriores. Não se deram ao trabalho de olhar quem estava com eles; não teria feito nenhu­ma diferença se o estranho fosse seu próprio pai. E óbvio como os ho­mens nesse estado de espírito devem ser tratados. Eles só podem receber a visão exterior após terem primeiramente os seus olhos interiores aber­tos. A sua mente enferma deve ser curada, a fim de que possam olhar para o que está diante de si mesmos, e realmente enxergá-lo. Foi de acordo com esse princípio que Jesus procedeu com os dois irmãos. Ele se ajustou ao humor deles, e os conduziu do desespero à esperança, e

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então os sentidos exteriores recobraram seu poder perceptivo, dizendo- lhes quem era o estranho. E como se a própria consciência tivesse lhes dito: “Vós ouvistes um rumor de que aquele que foi crucificado há três dias ressuscitou. Considerastes este rumor uma história incrível. Mas por que deveriam fazê-lo? Crestes que Jesus é o Cristo. Se Ele é o Cristo, a sua ressurreição também deve ser esperada tanto quanto a paixão, pois as duas coisas, semelhantemente, estão preditas nas Escrituras que vós crestes ser a Palavra de Deus”.Tendo esses dois pensamentos tomado as suas mentes, o coração dos dois irmãos começou a arder com o poder abrasador de uma nova verdade; a aurora da esperança rompe em seus espíritos; eles despertam de um sonho opressivo; olham para fora, e, vêem que o homem que vinha falando com eles é o próprio Senhor Jesus!

Com os dez o caso foi diferente. Quando Jesus apareceu no meio deles, reconheceram imediatamente o semblante de seu falecido Mestre. Eles estavam ouvindo a história de Cleopas e seu companheiro, e esta­vam em um estado de espírito mais observador. Mas não puderam acre­ditar que o que tinham visto fosse realmente Jesus. Estavam aterroriza­dos e apavorados, e supunham que tivessem visto um fantasma — o fantasma ou o espectro do Crucificado. A primeira coisa a ser feita nesse caso, portanto, era manifestadamente mitigar o medo despertado, e con­vencer os discípulos aterrorizados de que o ser que havia aparecido de repente não era um fantasma, mas um homem: o mesmo homem que parecia ser o próprio Senhor Jesus. Até que tal aparição tivesse ocorrido, não poderia haver qualquer conversa proveitosa a respeito do ensino do Antigo Testamento sobre a questão da história terrena do Messias. Jesus falou de si mesmo como aquEle que cumpriu essa tarefa, e só depois disso começou a expor a verdadeira teoria messiânica.

Algo semelhante à diferença que assinalamos na experiência dos dois e dos dez discípulos em relação à crença na ressurreição pode ser encon­trado nas maneiras pelas quais diferentes cristãos agora são trazidos à fé. As evidências do cristianismo são comumente divididas em duas gran­des categorias — a externa e a interna; uma tirada dos fatos históricos externos, a outra da adaptação do evangelho à natureza e às necessidades dos homens. Ambos os tipos de evidência são necessários para uma fé

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perfeita, como também ambos os tipos de visão, a interna e a externa, foram necessários para tornar os discípulos totalmente crentes em rela­ção à ressurreição. Mas alguns começam com um tipo, e outros com o outro. Alguns são convencidos primeiro de que a história do evangelho é verdadeira, e então, talvez muito tempo depois, despertam para um sen­tido da importância e preciosidade das coisas que se relacionam. Ou­tros, novamente, são como Cleopas e seu companheiro; tão absortos em seus próprios pensamentos que são incapazes de apreciar ou enxergar os fatos, exigindo primeiro ter seus olhos do entendimento iluminados para verem a beleza e o valor da verdade como ela é em Jesus. Eles podem de uma vez ter um tipo de fé tradicional nos fatos, como suficientemente bem atestados. Mas, com tristeza, devem ter perdido essa fé. São céticos e se sentem tristes por serem assim, e sentem que as coisas iam melhor na vida deles quando, como os outros, criam. Contudo, embora tentem, não podem restaurar a sua fé pelo estudo de meras evidências externas. Eles lêem livros que tratam de tais evidências, mas não ficam muito impressionados com eles. Seus olhos estão presos, e não conhecem o Cristo que vem a eles daquela maneira externa. Mas Ele se revela a cada um deles de outra maneira. Por um diálogo oculto com a alma deles, o Senhor transmite às suas mentes um poderoso senso da grandeza moral da fé cristã, fazendo-os sentir que, verdade ou não, tudo isso é, ao me­nos, digno de ser verdade. Então seus corações começam a arder: eles espe­ram que aquilo que é tão belo possa vir a ser objetivamente verdadeiro; a questão das evidências externas assume um novo interesse em suas men­tes; eles investigam, lêem e contemplam; e, vejam, enxergam a Jesus res­suscitado, uma verdadeira pessoa histórica para eles: levantando-se da sepultura da dúvida para ser para sempre o sol de suas almas, mais pre­cioso que a perda temporária; e que vem...

Vestido em um traje m ais precioso,

M ais tocante, digno e cheio de vida,

Dentro da visão e perspectiva da alm a deles,

... como nunca dantes havia acontecido antes de duvidarem.Dessas observações na ordem das duas revelações feitas por Jesus

aos seus discípulos — de si mesmo aos olhos físicos deles, e da doutrina

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escriturística do Messias aos olhos do intelecto deles — passamos a con­siderar a pergunta: O que a segunda revelação significa? Qual foi o efeito preciso daquelas exposições das Escrituras com a qual o Cristo ressurrecto favoreceu os seus ouvintes? Os discípulos extraíram daí uma quantidade de luz para suplantar a necessidade de qualquer iluminação posterior? O próprio Senhor Jesus fez a obra do Espírito da verdade, cujo advento Ele havia prometido antes de sofrer, e os conduziu em toda a verdade? Cer­tamente que não. A abertura do entendimento que ocorreu nesse mo­mento, não significou, de maneira alguma, um esclarecimento total da doutrina cristã. Os discípulos ainda não compreendiam as bases morais dos sofrimentos e da ressurreição de Cristo. Eles não sabiam por que o Senhor passou por essas experiências; palavras como dever ou estar in­cumbido não significavam para eles, por hora, nada mais que algo que estivesse de acordo com as profecias do Antigo Testamento, corretamen­te entendidas; que as coisas que haviam acontecido poderiam e deveriam ter sido antecipadas. Eles estavam no mesmo estado de espírito dos cris­tãos judeus, a quem a Epístola aos Hebreus foi dirigida. Tiveram mais tarde que perseguir o> conteúdo daqueles escritos profundos. Esses cris­tãos estavam mal fundamentados na verdade do evangelho: não enxerga­ram a glória da dispensação do evangelho, nem a sua harmonia com o que havia se passado anteriormente, sob a qual haviam sido educados. Em particular, a dignidade divina d© Autor da fé cristã lhes parecia in­compatível com a sua humilhação terrena. Assim, o escritor da epístola se pôs a provar que a divindade, a humilhação temporária e a subseqüen­te glorificação de Cristo foram todas ensinadas nas Escrituras do Antigo Testamento, citando-as generosamente para este propósito nos primei­ros capítulos de sua epístola. Ele fez, na verdade, por suas exposições escritas a seus leitores, o que Jesus fez por sua exposição oral a seus ouvintes. E o que devemos dizer sobre o efeito imediato do argumento do escritor na mente daqueles que atenciosamente o procuraram? Imagi­namos que o crente imaturo, ao deixar o livro seria constrangido a admi­tir: “Bem, ele está certo: todas essas coisas estão escritas a respeito do Messias; e, portanto, nenhuma delas, nem mesmo a humilhação e o so­frimento nos quais eu tropeço, podem ser uma razão para rejeitar a Jesus como o Cristo”. Um resultado muito importante, contudo muito ele­

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mentar. Que distância há da simples admissão de que a vida de Jesus correspondeu à vida ideal do Messias como retratado no Antigo Testa­mento, a admirável, entusiástica, e totalmente inteligente apreciação da verdade do evangelho mostrada pelo próprio escritor em cada página de sua epístola!

Não menor foi a distância entre o estado de espírito dos discípulos depois que Jesus lhes expôs as coisas que foram faladas a respeito de si mesmo na lei, nos profetas e nos salmos, e o estado de iluminação que eles atingiram como apóstolos após o advento do Consolador. Agora eles conheciam meramente o alfabeto da doutrina de Cristo; então che­garam à perfeição, e foram totalmente iniciados nos mistérios do evan­gelho. Agora um simples raio de luz foi lançado em suas mentes sombrias; depois, o dia claro da verdade derramou a sua abundância sobre suas almas. Ou podemos expressar a diferença de acordo com os termos su­geridos pela narrativa dada por João dos eventos relacionados à pri­meira aparição do Jesus ressurrecto aos seus discípulos. João relata que em uma etapa dos procedimentos, Jesus soprou sobre os discípulos, e lhes disse: “Recebei o Espírito Santo”. Não devemos entender que nesse momento e nessa situação tenham recebido o Espírito na plenitude pro­metida. O sopro foi antes um sinal e penhor daquilo que estava por vir. Era uma renovação emblemática da promessa, e a primeira parcela de seu cumprimento. Era apenas uma pequena nuvem como a mão de um ho­mem que pressagiava uma chuva copiosa, ou o primeiro sopro de vento que antecede o poderoso vendaval. Agora eles têm o pequeno sopro da influência do Espírito, mas não até que sintam o vento impetuoso do Pentecostes.Tão grande é a diferença entre agora e antes, entre a ilumi­nação espiritual dos discípulos na primeira noite do sábado cristão e nos dias posteriores.

Este ainda era o dia das pequenas coisas para os discípulos. As pe­quenas coisas, porém, não deveriam ser desprezadas; nem foram. Não somos realmente informados sobre o valor que os dez atribuíram à luz que receberam, mas seguramente podemos presumir que seus sentimen­tos eram muitos semelhantes aos dos dois irmãos que viajavam para Emaús. Conversando sobre as palavras de Jesus depois de sua partida, disseram um ao outro: “Porventura, não ardia em nós o nosso coração

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quando, pelo caminho, nos falava e quando nos abria as Escrituras?” A luz que receberam pode ter sido pequena, mas era uma nova luz, e tinha todo o poder que queima o coração e arrebata o pensamento em relação à nova verdade. Aquele diálogo na estrada trouxe uma crise à sua história espiritual. Foi o dia do raiar do evangelho; foi a pequena centelha que acendeu uma grande fogueira; depositou em suas mentes um pensamen­to que formaria a semente ou o centro do novo sistema de crença; remo­veu o véu que estava sobre os seus rostos quando liam o Antigo Testa­mento, e foi assim o primeiro passo em um processo que colocaria em seu olhar uma face reveladora, como em um espelho, a glória do Senhor, e em seu ser mudado na mesma imagem, de glória em glória, pelo Se­nhor, o Espírito. Feliz é o homem que tem, neste momento, o mesmo que esses dois discípulos/

Alguma alma desconsolada pode dizer: “Queria que essa felicidade fosse minha!” Para o conforto de algum irmão tão infeliz, observemos as circunstâncias em que essa nova luz surgiu para os discípulos. Seus cora­ções foram incendiados quando haviam se tornado muito secos e mur- chos: desesperançados, doentes e cansados da vida, pela dor e pelo desa­pontamento. E sempre assim: o combustível deve estar seco para que a faísca possa funcionar. Assim, foi quando o povo de Israel reclamou: “Os nossos ossos se secaram, e pereceu a nossa esperança; nós estamos corta­dos”, que veio a palavra: “Eis que eu abrirei as vossas sepulturas, e vos farei sair das vossas sepulturas, ó povo meu, e vos trarei à terra de Israel”. O mesmo ocorreu com esses discípulos de Jesus. Foi quando cada partícula da gota de esperança se tornou totalmente pálida para cada um deles — e a sua fé foi reduzida a isso: “Esperávamos que fosse ele o que remisse Israel” — que seus corações foram inflamados pelo poder abrasador da nova ver­dade. Assim foi em muitos momentos desde então. O fogo da esperança foi aceso no coração, para nunca mais ser apagado, exatamente no momen­to em que os homens estavam entrando em desespero; a fé foi reavivada quando um homem pareceu a si mesmo ser infiel; a luz da verdade surgiu para as mentes que haviam deixado de procurar pelo amanhecer; o confor­to da salvação retornou às almas que haviam começado a pensar que a misericórdia de Deus havia desaparecido para sempre. “Quando, porém, vier o Filho do Homem, porventura, achará fé na terra?”

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Não há nada estranho nisso. A verdade é que o coração precisa ser seco pelas provações antes de poder ser queimado. Até que a tristeza venha, os corações humanos não se incendeiam com o fogo divino; há neles muito da seiva deste mundo. Foi isso que tornou os discípulos tão lentos de coração para crerem em tudo o que os profetas haviam dito. Sua ambição mundana os impediu de aprenderem a espiritualidade do Reino de Deus, e o orgulho os tornou cegos para a glória da cruz. Por isso Jesus os censurou justamente por sua incredulidade e insensatez. Se os seus corações fossem puros, eles poderiam ter sabido com antecedên­cia o que iria acontecer. De fato, eles não compreenderam nada até que a morte do Senhor frustrou sua esperança e destruiu sua ambição, e a amarga tristeza os preparou para receber a instrução espiritual.

Seção III - A Dúvida de ToméJoão 20.24-29

“Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quan­do veio Jesus”, naquela primeira noite de sábado cristão, e se mostrou aos seus discípulos. Espera-se que ele tenha tido um bom motivo para a sua ausência; mas é ao menos possível que não tivesse. Em seu estado de espírito melancólico Tomé pode simplesmente ter se entregado à luxúria da tristeza solitária, assim como alguns, cujo Cristo está morto, passam o sábado em casa ou em retiros rurais, fugindo da alegria ofensiva ou do tédio sonolento da adoração social. Seja como for, qualquer que seja o caso, ele perdeu um bom sermão; o único, que saibamos, durante todo o período do ministério de nosso Senhor, no qual Ele se apresentou for­malmente à tarefa de expor a doutrina messiânica do Antigo Testamen­to. Oh, se ele soubesse que tal discurso seria proferido naquela noite! Mas nunca se sabe quando as coisas boas virão, e a única maneira de ter certeza de as conseguir é estar sempre em seu posto.

O mesmo humor melancólico que provavelmente fez com que Tomé estivesse: ausente durante a ocasião da primeira reunião de Cristo com seus discípulos depois que Ele ressuscitou dos mortos, o tornou cético acima de todos os demais tópicos relacionados às notícias da ressurrei­ção. Quando os outros discípulos, em seu retorno, disseram-lhe que haviam acabado de ver Jesus, ele respondeu com veemência: “Se eu não

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vir o sinal dos cravos em suas mãos, e não puser o dedo no lugar dos cravos, e não puser a minha mão no seu lado, de maneira nenhuma o crerei”22. Ele não ficaria satisfeito com o testemunho de seus irmãos: deveria ter, para si, uma evidência palpável. Não que duvidasse de sua veracidade; mas não conseguia se livrar da desconfiança de que o que eles disseram ter visto não passava de uma aparição fantasmagórica que enganara os seus olhos.

O ceticismo de Tomé foi, pensamos, principalmente uma questão de temperamento, e teve pouco em comum com a dúvida de homens de tendência racionalista, que são inveteradamente incrédulos com respeito ao sobrenatural, e que se escandalizam com tudo o que lembre algo miraculoso. E comum chamar Tomé de “O Racionalista” entre os doze, e alguns até mesmo supõem que ele tenha pertencido à seita dos saduceus antes de se unir ao grupo de Jesus. Em uma reflexão sensata, somos obrigados a dizer que vemos pouco fundamento para tal opinião sobre o caráter do discípulo, enquanto certamente não invejamos os duvidosos modernos por nenhum conforto que possa se originar disso. Estamos bem cientes de que entre os sinceros, e mesmo entre aqueles que têm uma mente espiritual, existem homens cujas mentes estão tão formadas que consideram muito difícil crer em algo sobrenatural e miraculoso: tão difícil que, se estivessem no lugar de Tomé, um livre manuseio e a mais diminuta inspeção das feridas no corpo do Salvador ressurrecto teriam suscitado neles uma expressão de fé não hesitante na realidade de sua ressurreição. Também não vemos nenhuma razão a priori para afirmar que nenhum discípulo de Jesus poderia ter sido alguém com tal tipo de pensamento. Tudo o que dizemos é que não há nenhuma evidência de que Tomé, na verdade, fosse um homem dessa índole. Em nenhuma pas­sagem na história do evangelho descobrimos qualquer despreparo de sua parte para crer no sobrenatural ou no miraculoso como tal Não encontra­mos, por exemplo, que fora cético sobre a ressurreição de Lázaro: somos apenas informados que, quando Jesus se propôs a visitar a família aflita em Betânia, ele considerou a viagem repleta de perigos para o seu amado Mestre e para todos os discípulos, e disse: “Vamos nós também, para morrermos com ele”. Então, como agora, ele não se mostrou tão racionalista quanto o homem de temperamento melancólico, propenso

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a olhar o lado sombrio das coisas, vivendo no triste luar ao invés de no alegre raio de sol. Sua dúvida não provinha de seu sistema de pensamen­to, mas do estado de seus sentimentos.

Devemos dizer aqui uma outra coisa sobre a dúvida desse discípulo. Ela não procedia de uma indisposição ou de uma má vontade para crer. Era a dúvida de um homem triste, cuja tristeza devia-se à falta de certeza sobre um evento do qual posteriormente teria a maior e mais feliz garantia. Nada poderia dar a Tomé mais prazer do que receber a certeza de que seu Mestre havia realmente ressuscitado. Isso fica evidente pela alegria que ele manifestou quando finalmente foi convencido — “Senhor meu, e Deus meu!” — e que não é a exclamação de alguém que é forçado relutan­temente a admitir um fato que preferiria negar. E comum para homens que nunca tiveram qualquer dúvida em si mesmos investigar toda dúvida por motivos errados e denunciá-la de modo indiscriminado como um crime. Agora, inquestionavelmente, muitos duvidam pelos motivos erra­dos, porque não desejam e não se permitem crer. Muitos negam a ressur­reição dos mortos, porque isso seria, para eles, a ressurreição para a ver­gonha e desonra eterna. Mas isso não é verdade, de forma alguma. Al­guns duvidam daqueles que desejam crer; e não somente isso, sua dúvida se deve à sua ansiedade para crer. Eles se mostram tão ansiosos para conhecer a verdade, e sentem tão intensamente a imensa importância dos interesses que estão em jogo, que não podem pensar que as coisas estão garantidas, e por um tempo suas mãos tremem tanto que não con­seguem agarrar com firmeza os grandes objetos da fé — um Deus vivo; um Salvador encarnado, crucificado, morto e ressuscitado; um futuro glorioso e eterno. Deles é a dúvida peculiar a homens sinceros, atencio­sos e de coração puro, distantes como os pólos separados da dúvida do frívolo, mundano e mau: uma dúvida santa e nobre, não uma dúvida mesquinha e ímpia; se não para ser louvada como positivamente louvá­vel, ainda menos para ser duramente condenada e excluída do seio da solidariedade cristã — uma dúvida que na pior hipótese é apenas uma fraqueza, e que sempre resulta em uma fé forte e firme.

Inferimos que Jesus considerava a dúvida dos tristes discípulos como sendo desse tipo, a partir de sua maneira de lidar com ela. Como Tomé estava ausente na ocasião da primeira aparição do Senhor ressurrecto aos

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discípulos, Ele faz uma segunda aparição especial em benefício do discí­pulo ausente, e lhe oferece a prova desejada. Ao concluir a saudação introdutória, Ele se volta imediatamente ao duvidoso, e se dirige a ele em termos que tinham a finalidade de lembrar-lhe de sua própria declaração a seu irmão, dizendo: “Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; chega a tua mão e põe-na no meu lado; não sejas incrédulo, mas crente”. Pode ter havido aqui um pouco de repreensão, mas há muito mais uma solida­riedade de muita consideração. Jesus fala como a um discípulo sincero, cuja fé é fraca, não como a alguém que tem um coração mau e incrédulo. Quando as exigências por evidências foram feitas por homens que mera­mente queriam uma desculpa para a incredulidade, Ele os atendeu de uma maneira muito diferente. “Uma geração má e adúltera”, Ele estava habituado a dizer em tais circunstâncias, “pede um sinal, e nenhum sinal lhe será dado, senão o sinal do profeta Jonas”.

Tendo averiguado o caráter da dúvida de Tomé, consideremos agora a sua fé.

As dúvidas do discípulo melancólico foram logo removidas. Mas como? Tomé se aproveitou das facilidades oferecidas para a verificação da realidade da ressurreição de seu Senhor? Ele colocou realmente seus dedos e sua mão nas feridas dos cravos e da lança? As opiniões divergem neste ponto, mas pensamos que a maior probabilidade esteja ao lado daqueles que mantêm a negativa. Vários pontos nos conduzem nessa direção. Primeiro, a narrativa parece não deixar espaço para o processo de investigação. Tomé responde à proposta de Jesus com o que parece ser uma imediata profissão de fé. Então a forma como esta profissão é feita não é aquela que deveríamos esperar, onde se assumisse o resultado de uma investigação deliberada. “Senhor meu, e Deus meu!” é a linguagem calorosa e afetiva de um homem que sofreu alguma mudança repentina de sentimentos, e não de alguém que acabou de concluir uma experiên­cia científica. Além disso, observamos que não há alusão a tal processo na declaração feita por Jesus com respeito à fé de Tomé. O discípulo é representado como crendo porque viu as feridas mostradas, não porque as tenha tocado. Por fim, a idéia do processo proposto como tendo realmente ocorrido é incoerente com o caráter do homem para o qual a proposta foi feita. Tomé não era um homem frio e calculista, que conduz

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a investigação sobre a verdade com a imparcialidade fria de um juiz, e que teria examinado as feridas no corpo do Salvador ressurrecto com toda a frieza com que os anatomistas dissecam cadáveres. Ele era um homem de temperamento exaltado e poético, veemente tanto na crença como na incredulidade, e passava da fé para a dúvida pelos sentimentos de seu coração e não pelos raciocínios de seu intelecto.

Imaginamos que a verdade sobre Tomé fosse algo assim. Quando, oito dias antes, ele fez aquela declaração aos seus irmãos discípulos, não queria deliberadamente dizer tudo o que disse. Era a declaração excên­trica de um homem melancólico, que estava em um estado de espírito tão desolado e infeliz quanto possível. “Jesus ressurrecto! Isso é impos­sível, porém é algo que tem uma importante finalidade. Eu não acredita­rei até que faça isso e aquilo. Não sei se acreditarei depois que tiver feito tudo.” Mas oito dias haviam se passado e, vejam só, Jesus está no meio deles, visível ao discípulo que estava ausente na primeira ocasião bem como para os demais. Tomé ainda insistirá em aplicar seu rigoroso teste? Não, não! As suas dúvidas se dissiparam assim que ele viu Jesus, como a névoa da manhã ao nascer do sol. Mesmo antes de o Senhor ressurrecto colocar as suas feridas à mostra e pronunciar aquelas palavras um tanto reprováveis, ainda que gentis e solidárias, que evidenciam um conheci­mento íntimo de tudo o que estava se passando pela mente duvidosa de seus discípulos, Tomé se torna um crente; e após ter visto as desagradá­veis feridas e ouvido as palavras generosas, está envergonhado de suas palavras precipitadas e imprudentes a seus irmãos, e, tomado de alegria e de lágrimas, exclama: “Senhor meu, e Deus meu!”

Foi uma nobre confissão de fé — a mais avançada, na verdade, já feita por qualquer um dos doze durante o tempo em que estiveram com Jesus. O último é o primeiro; o mais duvidoso atinge a crença mais firme e completa. Assim aconteceu com freqüência na história da igreja. Baxter registra, como sua experiência, que nada é tão firmemente crido como aquilo de que já se teve dúvidas. Muitos Tomés têm dito, ou poderiam dizer o mesmo de si próprios. Os duvidosos no final se tornaram os crentes mais firmes e até mesmo os mais fervorosos. A dúvida em si é algo frio, e, como no caso de Tomé, sempre declara palavras duras e insensíveis. Porém isso não deve nos surpreender; porque quando a mente

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está em dúvida a alma está na escuridão, e durante a noite fria o coração se torna congelado. Mas quando a luz do dia da fé chega, o gelo se derrete, e os corações que uma vez pareceram duros e empedernidos se mostram capazes de um entusiasmo generoso e de fervorosa devoção.

Os socinianos, cujo sistema é derrubado por completo pela confis­são de Tomé naturalmente interpretada, nos dizem que as palavras “Se­nhor meu, e Deus meu” não se referem de maneira alguma a Jesus, mas à Divindade no céu. Julgam que elas sejam meramente uma expressão de surpresa da parte do discípulo, ao descobrir que aquilo de que ele duvi­dara viria de fato a ocorrer. Os socinianos dizem que Tomé levanta os seus olhos e as suas mãos aos céus, e exclama: Senhor meu, e Deus meu!, de fato o Jesus crucificado é restaurado à vida outra vez. Essa interpreta­ção é totalmente insensata. Desconsidera a declaração do texto, de que Tomé, ao pronunciar essas palavras-, estava respondendo e falando com Jesus, e procura fazer com que um homem explodindo de emoção fale friamente; pois enquanto uma única expressão como “Deus meu” pode­ria ter sido uma declaração apropriada de espanto, as duas frases, “Se­nhor meu, e Deus meu” seriam, para este propósito, fracas e superficiais.

Não temos aqui,, portanto, nenhuma mera expressão de surpresa, mas uma profissão de fé muito apropriada para o homem e as circuns­tâncias; tão fecunda em significado quanto vigorosa e impetuosa. Tomé declara imediatamente a sua aceitação de um fato miraculoso, e a sua crença em uma importante doutrina. Na primeira parte de suas palavras a Jesus, ele reconhece que aquEle que esteve morto está vivo: Meu Se­nhor, meu amado Mestre! E Ele mesmo — a mesma pessoa com quem desfrutamos uma comunhão tão abençoada antes que Ele fosse crucifi­cado. Na segunda parte de suas palavras, ele reconhece a divindade de Cristo, se não pela primeira vez, ao menos com: uma inteligência e uma ênfase totalmente novas. Do fato ele passa à doutrina: Meu Senhor ressurrecto, sim, e portanto meu Deus; porque Ele é Divino, aquEle sobre quem a morte não tem nenhum poder. E a doutrina, por sua vez, ajuda a dar à ressurreição uma certeza adicional; porque uma vez que Cristo é Deus, a morte não poderia ter qualquer poder sobre Ele; logo, a sua ressurreição foi natural. Tomé, tendo alcançado a afirmação sublime, “Deus meu”, fez a transição da plataforma baixa da fé na qual. permane­

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ceu quando exigiu evidências sensatas, para uma mais alta, na qual sentiu que tais evidências eram superficiais.

Devemos agora notar, em último lugar, a observação feita pelo Se­nhor com respeito à fé que o seu discípulo acabou de professar. “Disse- lhe Jesus: Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creram!”.

Esta reflexão sobre a bênção daqueles que crêem sem ver, embora expressa no tempo passado, realmente também dizia respeito ao futuro. O caso suposto por Jesus deveria ser o caso de todos os crentes depois da era apostólica. Desde então ninguém viu, e ninguém pode crer por ter visto, como os apóstolos viram. Eles viram, para que pudéssemos ser capazes de crer sem ver, através de nossa fé em seu testemunho.

Mas o que Jesus quer dizer ao pronunciar uma bem-aventurança a favor daqueles que não vêem, e mesmo assim crêem?

O Senhor não está elogiando aqueles que crêem sem qualquer in­vestigação. Uma coisa é crer sem ver, outra coisa é crer sem considerar. Crer sem ver é ser capaz de ficar satisfeito com algo menor que uma demonstração absoluta, ou ter uma iluminação interior que, até certo ponto, faz com que não dependamos de evidências externas. Tal faculda­de da fé é muito necessária; porque se a fé fosse possível apenas para aqueles que vêem, a crença no cristianismo não poderia ter se estendido além da era apostólica. Mas crer sem investigar ou considerar é um as­sunto totalmente diferente. E simplesmente não se importar se aquilo em que se está crendo é verdadeiro ou falso. Não há nenhum mérito em se fazer isso. Tal fé tem a sua origem naquilo que é básico nos homens — em sua ignorância, preguiça e indiferença espiritual; e não pode trazer nenhuma bênção a seus possuidores. Mesmo supondo que aquilo em que a pessoa está crendo são verdades tão elevadas, santas e abençoadas, que bem tal fé pode fazer a quem as recebe naturalmente sem investiga­ção, ou até mesmo sem conhecer muito sobre aquilo que essas verdades de fato significam?

O Senhor Jesus, então, não outorga aqui uma bênção à credulidade. Tampouco pretende dizer que toda a felicidade é derramada sobre aque­les que jamais duvidaram como Tomé. O fato não é este. Aqueles que crêem com facilidade certamente desfrutam de uma bênção toda pró­

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pria. Escapam do tormento da incerteza, e a corrente de sua vida espiri­tual flui com grande suavidade. Mas aqueles que duvidaram, e agora finalmente crêem, também têm a sua alegria peculiar, na qual nenhum estranho pode interferir. Deles é a alegria experimentada quando o que estava morto está vivo novamente, e quando o que estava perdido é en­contrado. Deles é o êxtase de Tomé quando exclamou, com referência a um Salvador que se pensava ter desaparecido para sempre: “Senhor meu, e Deus meu!”. Deles é a bem-aventurança do homem que, tendo mergu­lhado em um mar profundo, traz uma pérola muito valiosa. Deles é o conforto de terem suas dúvidas do passado tornadas disponíveis para o avanço de sua fé, cada dúvida tornando-se uma pedra no alicerce não aparente sobre o qual a superestrutura de seu credo está construída. As perturbações da fé são convertidas em confirmações — da mesma manei­ra que as perturbações nos movimentos planetários a princípio tiveram supostamente a função de lançar dúvidas sobre a teoria da gravitação de Newton — e foram convertidas, por mais investigações e pesquisas, na prova mais forte de sua veracidade.

O que, então, o Senhor Jesus quer dizer com essas palavras? Sim­plesmente isto: Ele deseja que aqueles que devem crer sem ver, entendam que não têm motivos para invejar aqueles que tiveram uma oportunidade de ver e que só creram após isso. Nós, que vivemos tanto tempo após os acontecimentos registrados na Palavra de Deus, somos muito propensos a imaginar que estamos em uma grande desvantagem quando compara­dos aos discípulos de Jesus. E, de certa forma, realmente estamos em desvantagem, e a fé é muitas vezes algo mais difícil para nós do que foi para eles. Mas então não devemos nos esquecer de que, à medida que se torna mais difícil alcançar a fé, ela se torna mais louvável e preciosa ao coração. Sermos capazes de crer sem ver é uma realização mais elevada do que a de alguém que foi capaz de crer por ter visto; e se essa realiza­ção exige um esforço, a prova da fé apenas aumenta o seu valor. Deve­mos nos lembrar, além disso, de que jamais alcançamos a plenitude da bênção da fé até que aquilo em que cremos brilhe à luz de sua pró­pria auto-evidência. Você pensa que os discípulos eram felizes por terem visto o seu Senhor ressuscitado e crido? Eles se sentiram muito mais felizes quando tiveram uma inspiração muito clara sobre todo o mistério

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da redenção; e assim a prova deste ou daquele fato ou doutrina específica foi considerada desnecessária.

Jesus desejou que o seu discípulo duvidoso aspirasse a esta felicida­de; e contrastando o seu caso com o daqueles que crêem sem ver, Ele nos faz saber que esta é uma bênção que nós também podemos receber. Tam­bém podemos alcançar a bênção de ter uma fé elevada acima de toda a dúvida por sua própria e clara inspiração em relação à verdade divina. Se formos fiéis, poderemos nos elevar a este nível a partir das coisas humil­des. Podemos começar, em nossas fraquezas, sendo Tomés, agarrando- nos ansiosamente a cada discussão das evidências externas para nos sal­var do afogamento, e terminarmos com uma fé quase palpável, regozi­jando-nos no Senhor Jesus Cristo como o nosso Senhor e Deus, com uma alegria indizível e cheia de glória.

1 Salmo 137. A experiência dos exilados e a dos apóstolos relembra os escritos do poeta grego Eurípedes:pollai morphai tõn daimoniõn polia d’ aelptos krainousi theoi kai ta dokêthent} ouk etelesthê tõn d’ adokêtõn poron heure theos

2 Mateus 28.173 Marcos 16. I I4 Marcos 16.135 Marcos 16.146 Lucas 24.117 Lucas 24.16â Lucas 24.36, 379 João 20.2010 João 20.211 João 20.2812 Lucas 24.4113 Lucas 24.3214 A história é contada por Plutarco em sua obra Paralkla (Nikias), além de ser citada e comentada por Gillies,

History o f Greece, cap. 20.15 Mateus 28.1516 João 20.917 Veja Neander, Life o f Jesus.18 Colam (Jésus Christ et les Croyances messianiques de son Temps, 2ième ed. p. 164) tenta enfraquecer a força desse

argumento pela observação de que a morte de Jesus, sendo um evento indesejável, era algo de que os discípulos não desejavam se lembrar ou crer, pois envolvia a ruína de suas esperanças messiânicas; ao passo que a ressurreição, sendo um evento alegre, teria sido crida e recebida com alegria caso tivesse realmente sido predita. Esse autor se esquece de que a ressurreição implicava na morte como seu antecedente, e que, se crida, teria feito com que a morte fosse vista sob um enfoque totalmente diferente; também se esquece de que, se isso tivesse falhado, o mesmo

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destino da morte teria sido compartilhado com antecedência, isto é, ser desconsiderado; e depois, mais tarde, pareceria uma “notícia boa demais para ser verdade”.

19 Baur, negando, ou tacitamente ignorando o fa to da ressurreição, admite que a crença nela pelos apóstolos era a pré-suposição necessária a todo o desenvolvimento histórico do cristianismo. Ele não tenta explicar como essa crença surgiu em suas mentes, e declara que ela é inexplicável através da análise psicológica ( vide Kirchen geschicbte der Drei Erstein Jahrhunderte, 3te Ausg., p. 40). A opinião de Keim é peculiar. Mesmo defendendo com Baur e Strauss a impossibilidade de uma ressurreição no sentido comum, ele difere de Strauss com relação às aparições de Jesus depois de sua morte como algo mais que alucinações, como ocorrências objetivas, comunicações “telegráficas” do mundo dos espíritos para avisar aos desanimados discípulos que tudo estava bem (Jesu von Nazara, Band 3. p 605). Esta hipótese, que parece ter sido sugerida pelo fenômeno do espiritualismo moderno, acrescenta um quarto tópico à lista de tentativas naturalistas para dispor do grande fato cardinal considerado neste capítulo — a Ressurreição. Para conhecimento do leitor, expomos esta lista espúria:

1. Jesus nunca esteve morto: a ressurreição foi meramente uma reanimação após um desmaio.2. O corpo morto foi roubado, e circulou a mentira de que Jesus havia ressuscitado.3. Os discípulos honestamente criam que Jesus havia ressuscitado, mas a sua crença era pura alucinação

criada por uma mente fértil.4. Após a sua morte, Jesus fez comunicações espiritualistas aos seus discípulos, o que naturalmente levou à

crença de que Ele havia ressuscitado.20 João 20.15,1621 Lucas 24.1622 Versículo 25

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29Os Co-pastores sao Advertidos

Seçao 1 - Dever Pastoral João 2 1 .1 5 - 1 7

VV ou pescar , afirmou Simão a seus companheiros, pouco tempo depois de retornar de Jerusalém, nas proximidades do lago galileu; “tam­bém nós vamos contigo”, responderam Tomé, Natanael, Tiago, João e outros dois anônimos, formando com Pedro sete homens, provavelmen­te todos, dentre os onze, que eram pescadores por profissão. Todos em­barcaram nessa expedição com amor. Presumimos que essa tenha sido uma expedição com o intuito de buscar comida, porém havia algo mais. Era uma volta aos seus antigos e amados modos de vida, cercado de cenas familiares, que traziam adoráveis lembranças de tempos passados. Era uma recreação e um consolo, mais do que bem-vindos e necessários aos homens que haviam passado por momentos de dor e experiências intensas; um feriado para homens fatigados pela mágoa, surpresa, e vigí­lia. Todo estudioso com a mente sobrecarregada, todo artesão com ten­dões fatigados, poderia entender o abandono que aqueles sete discípulos estavam sentindo em seus barcos, navegando no mar de Tiberíades, e desempenhando sua antiga função.

Quais eram os pensamentos daqueles homens fora da água naquela noite? A partir da significativa alusão feita por a Jesus à juventude de Pedro durante uma conversa na manhã seguinte, inferimos que fossem os seguintes: “Após tudo isso, não seria melhor sermos simples pescado­res do que apóstolos da religião cristã? O que conseguimos por seguir a Jesus? Certamente não o que esperávamos. E temos alguma razão para esperar algo melhor no futuro? Nosso Mestre nos disse que o nosso

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futuro seria parecido com o dEle — uma vida de tristezas, terminando provavelmente no martírio. Porém aqui, em nossa província da Galiléia, perseguindo o nosso antigo chamado, podemos pensar, acreditar e agir como nos agrada, guardados, pela obscuridade, de todos os perigos. E então quão deleitável, livre e independente será esta vida rústica às mar­gens do lago! Em dias passados, antes que deixássemos nossas redes e seguíssemos a Jesus, nos vestíamos com nossos casacos de pescadores e andávamos por onde queríamos. Ao nos tornarmos apóstolos, perdería­mos essa liberdade. Carregaríamos uma pesada carga de responsabilida­des; estaríamos obrigados, continuamente, a pensar nos outros e não agradar a nós mesmos; sujeitos a termos a nossa liberdade pessoal, e até a nossa vida, tiradas de nós”.

Ao colocar tais palavras na boca dos discípulos, não violamos a probabilidade; os sentimentos que essas palavras expressam são naturais e comuns em vista da séria responsabilidade e dos perigos a que poderiam estar expostos. Talvez jamais ninguém tenha tomado essa árdua iniciativa, sem ao menos saborear um pequeno momento de relembranças. Esta é uma debilidade que facilmente persegue a natureza humana.

Contudo, apesar de ser natural, não é sábio para os homens olhar para o passado.Tristes pensamentos do passado são, em sua maior parte, enganosos; pelo menos no caso dos discípulos, eles o foram. Se a vida simples que tinham deixado para trás os fazia tão felizes, por que a abandonaram? Por que abruptamente abandonaram suas redes e seus barcos e seguiram a Jesus? Ah! Pescar nas águas claras do mar da Galiléia não satisfaz o homem completamente. A vida é mais que os alimentos, e o Reino de Deus é o principal objetivo do homem. Além disso, a vida do pescador tem suas inconveniências e, com o passar dos anos, não é tão romântica quanto parece. Um pescador pode, às vezes, sair com suas redes e trabalhar arduamente durante toda a noite, e não pescar sequer um peixe.

Isso foi o que de fato aconteceu na presente ocasião. “E naquela noite nada apanharam”1. A circunstância provavelmente ajudou a que­brar a fórmula mágica do romance, e a despertar os sete discípulos de um sonho apaixonado. E quando isso aconteceu, houve Alguém que conhecia seus pensamentos, e que viu que não saciaram a luxúria do

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sentimento reacionário. “E, sendo já manhã, Jesus se apresentou na praia”2. Ele veio para mostrar-se, pela terceira vez3, a seus discípulos — não como antes, para convencê-los de que havia ressuscitado — mas para induzi-los a dedicar suas mentes e seus corações por completo às suas vocações futuras como pescadores de homens, e como co-pastores do seu reba­nho, preparando-os para a sua partida do mundo. Toda a conduta do Senhor nessa ocasião está dedicada a este objetivo. Primeiramente, Ele faz com que pesquem uma enorme quantidade de peixes, a fim de lembrá- los de seu antigo chamado para serem seus apóstolos, tornando-se sím­bolos de coragem e sucesso no trabalho apostólico. E então Ele os con­vida a jantar os peixes que Ele mesmo havia conseguido4, assados em um fogo que Ele mesmo preparou na praia, para curá-los dos sentimentos e cuidados terrenos, e assegurá-los de que se quisessem realmente servir ao Reino, com todo o coração, todas as suas necessidades seriam atendidas. Finalmente, ao término da refeição da manhã, Ele inicia uma conversa, na presença de todos, com o discípulo que havia sido o líder na aventura daquela noite no lago, e dirige-se a este de uma forma que traria à tona todo o seu entusiasmo latente; essa conversa surtiria um efeito seme­lhante na mente de todos os presentes.

Superficialmente, as palavras proferidas por Jesus a Pedro parecem se referir apenas a esse discípulo; e o objetivo desejado parece trazê-lo de volta à posição de apóstolo, que ele pode ter considerado perdida por causa de sua conduta no pátio da casa do sumo sacerdote. Esta, conse­qüentemente, é a visão adotada em relação à cena impressionante nas margens do lago. E concordando ou não com essa visão, temos que ad­mitir que por alguma razão o Senhor Jesus queria fazer com que Pedro se lembrasse de suas recentes imperfeições. Os traços de alusão aos inci­dentes do passado, na história dos discípulos, durante a última crise, são inconfundíveis. Até o momento escolhido para a conversa é significati­vo. Foi durante o jantar que Jesus perguntou a Pedro se ele o amava; foi após cearem que Jesus deu a seus discípulos o seu novo mandamento de amor, e que Pedro fez seu veemente protesto de devoção à causa e à pessoa de seu Mestre. O nome pelo qual o Mestre ressuscitado se dirigiu a seu discípulo — não Pedro, mas Simão, filho de Jonas — teve a intenção de lembrá-lo de sua fraqueza, e daquela outra ocasião em que, chaman-

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do-o pelo mesmo nome, Jesus o advertiu de que Satanás queria cirandá- lo como trigo. A pergunta repetida por três vezes, “Amas-me?”, não poderia deixar de lembrar a Pedro, com tristeza, de sua tríplice negação, e então, reavivar a sua dor. A maneira como a questão foi colocada pela primeira vez — “Amas-me mais do que estes?” — contém uma alusão manifesta à declaração de Pedro, “Ainda que todos se escandalizem em ti, eu nunca me escandalizarei”. A injunção “Apascenta as minhas ove­lhas” refere-se à proclamação profética feita por Jesus a caminho do monte das Oliveiras: “Todos vós esta noite vos escandalizareis em mim, porque escrito está: Ferirei o pastor, e as ovelhas se dispersarão”, e não significa sofrer como um rebanho disperso, como vocês já sofreram. A injunção, “Apascenta os meus cordeiros”, associada à primeira pergunta, “Amas-me mais do que estes?” nos faz pensar na responsabilidade: “E tu, quando te converteres, confirma teus irmãos”; a idéia sugere, em ambos os casos, a mesma coisa, isto é, que o homem que caiu mais profundamente e com­preendeu mais completamente a sua própria fraqueza, é, ou deveria ser, o melhor qualificado para fortalecer os mais fracos — para apascentar os cordeiros.

Entretanto, dentre todas essas alusões à queda de Pedro, somos in­capazes de concordar com a visão de que a cena aqui registrada signifi­casse uma restauração formal do discípulo culpado à sua posição como apóstolo. Não negamos que depois de tudo o que aconteceu, aquele discípulo precisasse de cura para seu próprio conforto e paz. Porém, nossa dificuldade é a seguinte: Será que ele já não havia sido restaurado? Qual foi o significado daquele encontro particular entre ele e Jesus, e qual foi o resultado? Quem pode questionar se após aquele encontro a mente do discípulo não esteve à vontade, e logo após ele se sentiu em paz, tanto consigo mesmo quanto com o seu Mestre? Ou, caso seja ne­cessário uma evidência, olhe para o comportamento de Pedro ao reco­nhecer Jesus do barco — enquanto o Senhor estava na praia naquela ma­nhã cinzenta — lançando-se ao mar para encontrar-se com o seu amado Mestre. Será que este era o comportamento de um homem afligido por uma consciência culpada? Entretanto, pode ser respondido que ainda havia a necessidade de uma restauração formal pública, em virtude do escândalo público causado por Pedro. Questionamos esse ponto; po­

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rém, mesmo que assim seja, o que isso significa? Por que essa restauração não aconteceu antes, durante o primeiro ou o segundo encontro em Jerusalém? E então, a cena ocorrida nas margens do lago realmente re­mete a uma transação formal? Podemos considerar esse encontro casual, tranqüilo, familiar e uma conversa após o café da manhã com dois terços dos discípulos, como uma reunião eclesiástica, com o propósito solene de cura de um irmão caído e sua readmissão à comunhão e permanência na igreja? Em nossa opinião, a idéia é muito fria e pedante para ser seriamente alimentada. E então, mais uma objeção a essa teoria está por ser exposta, isto é, que ela falha em dar unidade às várias partes da cena. Isso pode explicar a pergunta que Jesus fez a Pedro, porém não explica a referência profética à sua história futura que ali foi declarada. Entre a expressão “Permito que você, a despeito de sua má conduta no-passado, seja um apóstolo” e a expressão “Eu lhe advirto que, neste assunto, você não terá a liberdade de ação com que se deleitava anteriormente” não existe nenhuma conexão identificável. A queda de Pedro não sugeriu um desvio de pensamento, pois não veio do amor à liberdade, e sim do medo dos homens.

Nesta cena não encontramos a restauração de Pedro a uma posição que lhe havia sido retirada, mas sua lembrança do sentido mais solene de sua elevada vocação. Não está sendo dito: “Eu lhe permito”, e sim “Eu lhe ordeno”. Este nos parece ser o sentido correto das palavras de Cristo a seu discípulo e, através dele, a todos os seus companheiros. Por todas essas considerações, Ele faria com que se dedicassem de coração e alma ao seu trabalho apostólico, deixando suas redes e barcos e tudo o mais para sempre. Pensamos que o Senhor diria a Simão, por fim: “Pela me­mória de sua própria fraqueza, pelo meu amor clemente e perdoador, e sua gratidão por ele; pela necessidade dos irmãos discípulos, de que sua própria fraqueza do passado possa lhe ensinar a entender e a ter compai­xão; pela fervorosa ligação que sei que você anseia ter comigo: Por essas e todas as considerações de família, Eu te responsabilizo, na véspera de minha partida, a ser um herói, a desempenhar o papel de homem, a ser forte pelos outros e não apenas para ti mesmo, a ‘apascentar o rebanho de Deus, assumindo a supervisão deste, não por constrangimento, mas de boa vontade’. Não se esquive da responsabilidade, não cobice a ocio­

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sidade, curve o teu pescoço ao jugo e deixe que o amor o torne mais leve. Doce é a liberdade aos seus corações humanos; porém muito mais nobre— embora menos prazeroso — é o amor paciente e que suporta o jugo”.

Sendo essa a mensagem de Jesus a todos os presentes, Pedro foi apropriadamente selecionado como o meio de transmiti-la. Ele foi um excelente exemplo para se pregar um sermão de auto consagração. Seu caráter e sua conduta passaram toda poesia, todo argumento e toda ilus­tração necessários para dar o direcionamento ao tema. Que situação ade­quada à sua impetuosidade, espírito passional e liberdade irrestrita! E que coração não se sente tocado pelo pensamento de tal homem, disci­plinando sua elevada e corajosa alma em paciência e submissão? O pes­cador jovem, brincalhão, decidido, vestido de seu manto, indo de lá para cá em seu próprio e doce desejo; o apóstolo santo, amadurecido, dócil como um cordeiro, estende seus braços para serem atados e destinados ao martírio: que contraste comovente! Será que este homem apaixonado possuía, de alguma maneira, o mais forte caráter dentre os doze, sendo, por outro lado, o mais fraco, e por esta razão aquele que poderia ilustrar melhor a necessidade que os homens têm de serem apascentados? Será que ele reconheceu as suas próprias fraquezas, e a partir desse conheci­mento se fortaleceu? Então, quão melhor se afirma o dever geral do mais forte ajudar o mais fraco, que designou a este discípulo em particular o especial dever de cuidar dos mais fracos? Dizer a Pedro: “Apascenta os meus cordeiros”, é o mesmo que dizer a todos os apóstolos: “Apascenta as minhas ovelhas”.

Ao exigir que Pedro mostrasse o seu amor desempenhando o papel de pastor para o pequeno rebanho de fiéis, Jesus adaptou sua demanda à capacidade espiritual do discípulo. O amor ao Salvador não se manifes­ta, exclusivamente, através da atitude de alimentar as ovelhas; os discípu­los imaturos e inexperientes deveriam demonstrá-lo sendo ovelhas. So­mente após os fracos tornarem-se fortes, e estabelecidos na graça, é que devem tornar-se pastores, encarregando-se de cuidar dos outros. Ao de­signar a Pedro e a seus companheiros deveres pastorais, portanto, Jesus anuncia que eles saíram, ou estão quase saindo, da categoria dos mais fracos e passando para a categoria dos mais fortes. “Até agora”, Ele lhes afirma, em outras palavras, “vocês têm sido como ovelhas, que necessi­

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tam ser guiadas, observadas e defendidas pela sabedoria e coragem de outras. Agora, no entanto, chegou a hora de tornarem-se pastores, capa­zes e dispostos a fazer pelos fracos o que tenho feito por vocês. Até agora, vocês me deixaram cuidar de vocês; de hoje em diante, vocês de­vem habituar-se a serem vistos como guardiões, como eu fui visto por vocês. Até agora, vocês têm sido como crianças dependendo de mim, seu Pai; daqui por diante, vocês também deverão ser pais, cuidando de meus outros filhos. Até hoje vocês têm sido como novatos, inexperientes, que se entregam ao pânico, e fogem do perigo; de hoje em diante, vocês devem ser capitães superiores ao medo, e através de sua serena determi­nação, devem inspirar os soldados da cruz com coragem heróica”. Em poucas palavras, Jesus aqui anuncia a Pedro e aos demais, que agora eles farão a transição da juventude para a maturidade, da tutela para o autogoverno, de uma posição onde eram dependentes e recebiam cuida­dos, passariam a cuidar da influência, autoridade e responsabilidade, como líderes e comandantes na comunidade cristã, realizando a obra para a qual foram treinados. Tal transição e transformação ocorreram em pouco tempo na história dos discípulos. Eles assumiram a posição de embaixadores ou representantes de Cristo após a sua ascensão. Pedro, como líder ou representante, apesar de não ser o “papa” na igreja que estava nascendo, teve seu caráter alterado com a finalidade de estar à altura de suas elevadas funções. Os tímidos discípulos tornaram-se cora­josos apóstolos. Pedro, que de maneira fraca negou ao Senhor na sala do julgamento, heroicamente o confessou diante do Sinédrio. Os discípulos ignorantes e tolos, que continuaram a interpretar as palavras de seu Mestre de maneira errônea, foram cheios com o Espírito de sabedoria e enten­dimento, e então os homens ouviram suas palavras como estavam acos­tumados a ouvir as palavras do próprio Senhor Jesus.

Temos afirmado que o amor a Cristo não impôs a todos os seus discípulos o dever de pastorear; ele mostrou, antes, que o maior número simplesmente ouviria a voz dos pastores e os seguiriam, e geralmente com uma disposição de serem guiados por aqueles que fossem mais sá­bios do que eles mesmos. Devemos acrescentar, contudo, que todos os que são animados pelo espírito de amor ao Redentor, serão pastores ou ovelhas, ativamente úteis para cuidar das almas de outras pessoas. Ou

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ainda, com gratidão, utilizarão esta provisão para o cuidado de suas pró­prias almas. Muitos, no entanto, não se incluem em qualquer classifica­ção. Alguns são ovelhas de fato, porém ovelhas que estão desviadas; ou­tros, não são nem ovelhas nem pastores, sendo autoconfiantes, ainda relutantes e até desqualificados para serem úteis; muito rebeldes para serem guiados, ainda não inclinados a tornar sua força e experiência disponíveis para seus irmãos, utilizando todo o seu talento exclusiva­mente a serviço de seus próprios interesses. Tais homens são encontrados na igreja e no Estado, diligentemente contidos pelo ofício e pela responsa­bilidade, e criticam severamente aqueles que se submetem ao jugo; por sua vez são criticados por sua timidez e servidão, como pessoas inexperientes, por assim dizer, comparáveis a “cavalos selvagens” em seus procedimentos em relação à igreja, merecedores de uma dupla censura5.

Agora, não há problemas em ser como “cavalos selvagens” alegran­do-se na liberdade desenfreada, na época da juventude; porém, não é possível rejeitar por toda a vida o jugo de um procedimento bom, corre­to e adulto. “Mas nós que somos fortes devemos suportar as fraquezas dos fracos e não agradar a nós mesmos.” Não há dúvidas quanto à van­tagem de ser livre de cuidados, e liberto em relação a opiniões e ações, e, livrando-nos daqueles que nos causariam embaraços, vivermos uma vida de “deuses”, indiferentes à humanidade. Porém, esta não é a finalidade da vida de qualquer homem, menos ainda tratando-se de homens sábios e fortes, pois nem estes estão livres de cuidados e problemas. Aquele que tem um coração cristão deve sentir que é suficientemente forte e sábio para proporcionar o bem aos outros que precisam de força e sabedoria; e ele irá se encarregar da função de pastor, embora, às vezes, sentindo medo e tremendo por causa de suas responsabilidades. Contudo, deve ter plena consciência de que, ao fazê-lo, estará consentindo que a sua liberdade e independência tornem-se muito limitadas. O jugo do amor que nos une a nossos irmãos às vezes não é fácil, e o fardo de cuidar deles não é leve; porém, de um modo geral, é melhor e mais nobre ser um servo e um escravo ao oferecer amor, do que ser um homem livre através do poder emancipador do egoísmo. E melhor ser um Pedro como prisio­neiro e mártir por amor ao evangelho, do que um Simão que tenta incul- car na mente de seu Senhor a política egoísta do “Salve a si mesmo”, ou

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jazer em um luxurioso conforto no monte da Transfiguração, exclamando: “Senhor, bom é estarmos aqui”. E melhor ser um Pedro preso por causa dos outros e, como um bom pastor, ser levado para onde não queria ir, para ser sacrificado pelas ovelhas, do que um Simão, provido de seus próprios trajes, perambulando com indiferente ar de elegância e uma moderna indiferença. Uma vida nas ondas do oceano, uma vida nos bos­ques, uma vida nas montanhas ou nas nuvens pode ser ótima para so­nhos e letras de músicas; porém, a única vida em que o genuíno e poético heroísmo prevalece é aquela que é gasta nesta terra prosaica, no humilde e despretensioso trabalho de fazer o bem.

Observe agora, finalmente, a evidência mostrada pelas respostas de Pedro às perguntas de seu Senhor, de que ele está, de fato, preparado para o trabalho responsável a que foi convocado. Não é, meramente, que ele apele ao próprio Senhor Jesus, como alguém que sabe de todas as coisas, afirmando: “Tu sabes que eu te amo”; e como já tínhamos suge­rido, cada sincero discípulo pode fazer isso. Dois sinais específicos de maturidade espiritual são discerníveis aqui, não para serem encontrados naqueles que são fracos na graça, e que não foram, também, previamente encontrados no próprio Pedro. O primeiro deles é a modéstia — muito notável no caráter de um homem como ele. Pedro não faz agora compa­rações entre si mesmo e seus irmãos como fez anteriormente. Apesar das aparências, ele ainda afirma que realmente ama Jesus; porém, é cauteloso para não dizer: “Amo-te mais que estes outros”. Ele não o diz, e eviden­temente não pensa desse modo: o espírito fanfarrão o deixou; ele é um homem humilde, controlado e sábio, espiritualmente equipado para pastorear, simplesmente porque deixou de se considerar, de modo vai­doso, competente para isso.

O segundo sinal de maturidade discernível nas respostas de Pedro é o piedoso arrependimento pelas falhas cometidas no passado: “Simão entristeceu-se por (Jesus) lhe ter dito terceira vez: Amas-me?” Ele prova­velmente tenha se entristecido por causa da tripla interrogação lhe ter lembrado de que havia negado o Senhor por três vezes. Desse modo pode ter sentido que o seu amor estava sendo colocado em questão. Observe particularmente o sentimento produzido pela delicada referên­cia aos pecados que havia cometido no passado. Tratava-se de uma triste­

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za, não uma irritação, ira ou vergonha. Não existe orgulho, paixão ou vaidade na alma desse homem, somente algo santo, uma humilde contrição; supomos que não tenha sido observada qualquer alteração repentina em sua fisionomia, mas somente uma expressão graciosa e atenuada de um espírito penitente, que se sentira castigado. O homem que faz alusões a seus pecados não somente tende a ser uma ovelha, como também a cuidar dos cordeiros. Ele será capaz de restaurar aqueles que tiverem um espírito de mansidão. Ele será brando em relação aos ofensores, não com uma falsa caridade que não possa ser oferecida para condenar fortemente os pecados, mas com a genuína caridade de alguém que recebeu misericórdia pelos pecados de que sinceramente se arrepen­deu. Por sua benigna simpatia, os pecadores se converterão a Deus em lamentos sinceros pelas suas ofensas, e em esperança humilde de perdão; e pelo seu cuidado cauteloso, muitas ovelhas serão guardadas para que não se percam do rebanho.

Seção II - Pastor PastorumJoão 21.19-22

Para ser um co-pastor zeloso é necessário, em outra visão, ser uma ovelha cheia de fé, e seguir o Supremo Pastor para onde for. Os pastores não são senhores sobre a herança de Deus, mas meros servos de Cristo, o grande Cabeça da igreja, que têm como obrigação considerar a vontade do Senhor como sua lei, e sua vida como seu modelo. Na cena do lago, Jesus se esforçou para que seus discípulos entendessem isso. Ele não permitiu que viessem a supor que, ao comprometer-se com a obrigação pastoral de seu rebanho, Ele estivesse abdicando de sua posição como Pastor e Bispo das almas. Ao dizer a Pedro: “Apascenta os meus cordei­ros”, “Apascenta as minhas ovelhas”, estava dizendo, como sua última palavra, “Segue-me”.

Está sugerido na narrativa que, enquanto Jesus afirmava isso, Ele se levantou e saiu do local onde estavam os discípulos, que haviam termi­nado sua refeição matinal. Não sabemos para onde Ele foi, porém sabe­mos que foi em direção à “Montanha da Galiléia”, o ponto de encontro previamente designado onde o ressuscitado Salvador “foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez”. As ovelhas já haviam se dirigido a

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esse local por duas vezes para encontrar o seu Divino Pastor, em um aprisco montanhoso e afastado; e também é possível que o objetivo da jornada na qual Pedro foi convidado a se unir a seu Mestre seja a apre­sentação dele ao rebanho que foi incumbido de cuidar.

Assim sendo, Pedro obedece ao seu chamado, e passa a seguir a Jesus de uma vez. Ele pode ter tido como primeira impressão a idéia de que seria o único a atender ao seu Senhor, e sentido um desejo natural de olhar para trás para ver o que seus companheiros estavam fazendo. Olhan­do ao redor, ele observou o discípulo que Jesus amava, e que ele também amava, seguindo bem de perto os seus passos; e eis que surge uma per­gunta em seus lábios: “Senhor, e deste que será?” A pergunta foi elíptica, mas significou: João está nos seguindo; ele terá o mesmo destino que o Senhor reservou para mim? Ele também será atado e levado, para onde não deseja ir; ou será, como o discípulo mais querido e mais amado, desobrigado das dificuldades que estou destinado a enfrentar?

A mais afortunada situação que estava reservada a João, cremos, também estava à disposição de Pedro. Ele não podia deixar de lembrar- se da memorável cena em que a mãe de João fez aquele pedido ambicio­so em benefício de seus dois filhos; e, apesar do que Jesus havia dito sobre experimentar o seu cálice e ser batizado com o seu batismo, Pedro bem pode ter imaginado que o desejo de João seria realizado, e que ele viveria para ver a chegada do Reino dos céus e compartilhar a sua glória. Assim como todos os demais discípulos, provavelmente Pedro esperasse, até o último dia da permanência de seu Senhor na terra, que o reino de Israel fosse restaurado muito em breve. Se esse fosse o pensamento de Pedro, não seria surpreendente que ele perguntasse, se não por inveja, ao menos com um sentimento triste de perda: “Senhor, e deste que será?” A adversidade é algo difícil de suportar, porém torna-se ainda mais difícil quando o infortúnio permanece em evidente contraste com a prosperi­dade de um irmão que começou sua trajetória na mesma ocasião em que aquele que está sofrendo e, mesmo sem expectativas melhores, supera de longe o primeiro ao longo da carreira.

Jesus parece não ter se incomodado com a pergunta de Pedro. “Se eu quero”, Ele afirmou, “que ele fique até que eu venha, que te importa a ti? Segue-me tu”. Alguém poderia considerar esta resposta como um tanto

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severa. Será que Jesus não poderia ao menos ter lembrado Simão, para seu conforto, das palavras que dirigiu a Tiago e a João: “Podeis vós beber o cálice que eu hei de beber?” Será que isso não teria ajudado Pedro a seguir mais alegremente o seu Mestre no árduo caminho da cruz, sabendo que, a despeito da maneira como João tivesse que morrer, também teria que sofrer pelo evangelho; que sua vida, quer fosse curta ou longa, seria repleta de tribulações; que a participação na glória do Reino dos céus não depende da longevidade; e que, de fato, o primeiro a morrer seria o primeiro a alcançar a glória? Mas poderia ser que não. Administrar tal conforto teria sido o mesmo que se mostrar indulgente em relação à fraqueza dos discí­pulos. Aquele que precisa desempenhar o papel de um soldado deve ser treinado com rigor militar. A fraqueza excessiva, como um suspiro pela felicidade, a meditação excessiva e saudosista sobre a felicidade perdida, não deve fazer parte do caráter de um apóstolo. E Jesus, a quem tais dispo­sições são, em sua maioria, repugnantes, tomará todo o cuidado para não lhes conceder qualquer apoio. Ele terá todos os seus seguidores, e em especial os líderes de seu povo, como heróis — “Soldados enérgicos e com­pletamente dispostos”, prontos a comandar, sem medo do perigo, pacien­tes em relação à fadiga, sem traços de fraqueza ou egoísmo. Ele não dará ocasião à fraqueza natural, desconsiderará a dor presente, e fará com que possamos resistir à censura, contanto que conquiste o seu objetivo final — a produção de um caráter à prova de tentações.

Tendo este fim em vista, Jesus não teve problemas para corrigir o mal­entendido por parte de Pedro sobre seu irmão discípulo. Tratava-se, na verdade, de equívocos. João não ficaria até que o Senhor voltasse do modo que Pedro havia entendido. Ele realmente viveu até o final do primeiro século da era cristã, portanto, até muito tempo depois da vinda do Senhor para executar o juízo sobre Jerusalém. Entretanto, exceto pela longevidade de que desfrutou, o último dos apóstolos não poderia, de maneira nenhu­ma, ser invejado. A igreja foi militante em todos os seus dias: ele participou de muitas de suas batalhas, e, como conseqüência, adquiriu várias cicatri­zes. Companheiro de Pedro no primeiro conflito da igreja com o mundo, ele foi prisioneiro em Patmos por amor à Palavra de Deus, e áo testemu­nho de Jesus Cristo, após a morte de Pedro. Talvez alguém possa dizer, em virtude do temperamento de João, que a sua vida foi menos agitada que a

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de seu irmão apóstolo. Ele foi um homem de menos impetuosidade, em­bora não apresentasse menor intensidade de trabalho; e talvez o seu caráter não despertasse tamanha oposição do mundo. Por suas virtudes e fraque­zas, Pedro se tornaria um herói da fé, o Lutero da era apostólica, dando e recebendo os mais árduos golpes, e suportando o impacto da batalha. João, por outro lado, pode ser considerado o mais amoroso dentre os apóstolos, sem, no entanto, apresentar uma tendência de ceder às pressões. E, como tal, provavelmente desfrutou uma vida mais calma e pacífica. Porém a diferença entre os dois homens era, acima de tudo, a subordina­ção. E, considerando todas as coisas, podemos dizer que João não bebeu menos profundamente do cálice de Cristo do que Pedro. Não havia nada glorioso ou invejável em sua parte na terra, exceto a visão que recebeu em Patmos da glória que ainda seria revelada.

Ainda que tudo isso fosse claro a seus olhos prescientes, Jesus não se dignou a dar quaisquer explicações referentes ao futuro de seu amado discípulo, porém permitiu que Pedro pensasse o que lhe agradasse em relação ao futuro de seu amigo. “Se eu quero que ele fique até que eu venha, que te importa a ti? Esta frase não significava dar quaisquer infor­mações, como os crentes contemporâneos podem ter imaginado, mas expressa preferencialmente a recusa a fornecer qualquer informação de caráter final. O Senhor poderia estar dizendo: “Suponha que fosse de meu agrado que João permanecesse na terra até que eu retornasse; o que isso significaria para ti? Suponha que eu o escolhesse para se sentar à minha destra em meu Reino Messiânico; o que, pergunto novamente, isso significaria para ti? Suponha que João não experimentasse a morte, sobrevivendo, deste modo, até à minha segunda vinda, ou fosse, como um outro Elias, levado diretamente ao céu, ou ainda que o seu corpo fosse dotado do poder da vida eterna; ainda assim o que isso significaria para ti? Quanto a ti, segue-me”.

A repetição enfática dessa injunção é muito significativa. Por um lado, mostra que quando Jesus disse a Pedro: “Apascenta os meus cor­deiros”, Ele não tinha a intenção de torná-lo o pastor dos pastores, um pastor ou bispo sobre seus companheiros. Na teologia romanista, os cordeiros são os membros leigos da igreja, e as ovelhas são os co-pastores— todo o corpo do clero, com exceção do papa. Quão estranho seria, se

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tal doutrina fosse verdadeira, que Pedro fosse corrigido, ao se interessar pelo rebanho, por fazer uma pergunta tão simples como essa: “Senhor, e deste que será?” Jesus responde como se Pedro estivesse se intrometendo em questões que não lhe diziam respeito. E, de fato, a intromissão era uma das falhas de Pedro. Ele sentia prazer em administrar e cuidar de outras pessoas; ele tentou, mais de uma vez, administrar o próprio Se­nhor. E bastante curioso lembrar que a igreja recebeu desse apóstolo a importante advertência contra o procedimento acima nomeado. “Que nenhum de vós padeça como homicida, ou ladrão, ou malfeitor, ou como o que se entremete em negócios alheios”; literalmente, no caso do catolicismo romano, Pedro está dizendo que um bispo não deve se intrometer em outra diocese6. Evidentemente, as freqüentes censuras administradas a Pedro da parte do Mestre tiveram um efeito duradouro.

Por mais pesada que fosse a carga da responsabilidade de seu discí­pulo nessa época, não eqüivalia a qualquer coisa tão formidável como a envolvida em ser um Cristo visível, por assim dizer, para a igreja como um todo. Nem Pedro nem qualquer outro homem seria capaz de supor­tar essa carga, e felizmente não é necessário que alguém o faça. A respon­sabilidade até do mais elevado cargo na igreja, deve ser restrita a limites relativamente estritos. O principal objetivo, até mesmo para o líder dos co-pastores, não é fazer com que os outros sigam a Cristo, mas manter a sua própria vida na presença de Deus, seguindo a Cristo. E ótimo que o nosso Senhor faça com que isso se torne evidente por meio das palavras endereçadas aos seus representantes dentre os apóstolos. Os cristãos de natureza ativa, enérgica e intensa, têm idéias muito exageradas sobre as suas responsabilidades; e cuidar, por si próprios, de todo o mundo, e impor a si mesmos a obrigação de remediar todo o mal que é feito sob o sol é uma carga demasiadamente grande para eles. Eles seriam defenso­res gerais da fé onde quer que fossem atacados, e reparadores gerais de tudo o que é errado, como ajudadores de todas as almas. Existe algo nobre e quixotesco nesse temperamento; e esse não seria o melhor sinal da seriedade moral do homem se ele não tivesse conhecido, em determi­nado momento de sua vida, algo sobre esse espírito meticuloso e muito zeloso. Contudo, deve-se entender que o Cabeça da igreja não impôs, a nenhum homem, tal responsabilidade tão ilimitada; e a partir daí, quan­

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do se trata de auto-imposição, não conduz ao verdadeiro proveito. Ne­nhum homem pode fazer o trabalho dos outros homens, e ninguém é responsável pelos erros e falhas que outros homens cometem; cada ho­mem contribui mais efetiva e certamente para o bem de todos, condu­zindo a sua própria vida de acordo com os princípios de Deus. O mun­do está cheio de maldade e pecados por todos os lados — ceticismo, superstição, ignorância, imoralidade — uma visão extremamente infeliz. “O que então devemos fazer?” Acima de tudo, seguir a Cristo. Ser fiéis, deixar os infiéis. Tratar a religião de forma sensata, deixando de lado aqueles que baseiam a sua fé na autoridade humana, que é falha, e a sua religião em rituais fantasiosos e idolatrias vulgares. Sejamos santos, exem­plos de sobriedade, justiça e piedade, mesmo que todo o mundo venha a se tornar um caos sufocante de impureza, engano e impiedade. Digamos como Josué: “Se vos parece mal aos vossos olhos servir ao Senhor, escolhei hoje a quem sirvais... porém eu e a minha casa serviremos ao Senhor”.

A injunção repetida: “Segue-me”, restringe a responsabilidade indivi­dual e prescreve inteira atenção às obrigações pessoais. Cristo exige que os seus discípulos o sigam com integridade de coração, sem distrações, mur- murações, invejas, maldade, e sem medir as conseqüências de lhe ser fiel. Podemos pensar que Pedro ainda não estava à altura nessa questão. Ainda permanecia em seu coração um anseio vulgar pela felicidade de ser o maior líder dos homens. A isenção de carregar a cruz ainda lhe pareceu supremamente desejável. Pedro provavelmente tenha pensado que o favor especial da parte de Cristo a um discípulo em particular poderia se mani­festar através de tal isenção. Ele ainda não havia entendido que Cristo com freqüência mostra favor especial a seus seguidores tornando-os, de forma notável, participantes de seu cálice amargo e de seu batismo sangrento. O grande entusiasmo de Paulo, que fez com que desejasse conhecer a Jesus e ter comunhão com os seus sofrimentos, ainda não havia se apossado do coração de Simão. Quando um serviço árduo e perigoso precisava ser rea­lizado, aqueles que eram selecionados para ser a esperança em meio ao desespero pareciam, a Simão, objetos de compaixão. Longe de se voluntariar a tal serviço, ele preferia congratular-se por ter escapado; e a mais elevada e concebível virtude, caso alguém não tivesse a sorte de escapar, seria, em sua opinião, submissão àquilo que fosse inevitável.

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Pedro também foi deficiente na virtude m ilitar da obediência inquestionável a ordens, que é o segredo da força de um exército. Um general diz a alguém: Vá e ele vai; e a outro: Venha e ele vem. O general designa a posição de cada um, e ninguém se aventura a perguntar por quê, ou a fazer comparações invejosas. Existe uma entrega absoluta da vontade individual à vontade do comandante. E a respeito dos pensa­mentos ligados à preferência, cada homem é como uma máquina que tem cabeça, mãos e coração, somente para o desempenho efetivo da tare­fa que lhe foi designada. Pedro ainda não havia alcançado esse nível de abnegação. Ele não era capaz de fazer simplesmente o que lhe havia sido ordenado, mas olhava ao redor para ver o que os outros estavam fazendo. Não imaginemos, de modo algum, que isso fosse uma pequena falha desse apóstolo. Esta era uma falha disciplinar que não poderia ser igno­rada pelo Comandante dos fiéis. A obediência implícita é necessária tan­to na igreja como no exército. O antigo soldado Loyola entendeu isso, e então apresentou um sistema de disciplina militar à organização chama­da “Sociedade de Jesus”. E a história dessa sociedade mostra a sabedoria de seu fundador; a despeito do que possamos pensar sobre a qualidade do trabalho realizado, não podemos negar a energia da fraternidade jesuítica, nem a devoção de seus membros. O Senhor Jesus Cristo exige de todos os seus fiéis a mesma devoção que os jesuítas demonstravam para com os seus superiores; e esta devoção deve ser oferecida ao Senhor de uma maneira pura e perfeita. O Senhor deseja que o seu povo se entregue à sua vontade demonstrando uma obediência cordial, precisa e habitual, considerando todas as suas ordens como sábias, e todas as suas providências como boas, reconhecendo o direito que Ele tem de dispor de nós como quiser, sentindo-nos satisfeitos por servi-lo em um peque­no ou grande local, através da realização ou do sofrimento, por um cur­to ou por um longo período de tempo, na vida ou na morte, tendo como único objetivo que o Senhor seja glorificado.

Este é o nosso dever, e também a nossa bem-aventurança. E assim dispostos, estaremos despreocupados quanto a todas as possíveis conse­qüências, as tristezas imaginárias, a inveja, o mau humor e a inquietação da obstinação. Não devemos mais nos distrair nem ser atormentados por querermos constantemente saber o que vem acontecendo ou o que

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acontecerá a este ou àquele companheiro discípulo; mas sim, sermos capazes de dar continuidade e nos sentirmos realizados por meio de nossos próprios trabalhos com paz e serenidade. Não devemos nos preo­cupar com o nosso futuro ou com o futuro de qualquer outra pessoa, mas viver a nossa vida no presente de uma forma saudável e feliz. Deve­mos nos livrar para sempre do medo, dos cuidados, das intrigas, do engano e da aflição; e, como cotovias na porta dos céus, cantar:

Pai, eu sei que toda a m inha vida

È estabelecida por ti,

E as mudanças que certamente vierem

N ão terei medo de enfrentar;

Porém lhe peço hoje,

Que possa a ti servir.

N ão quero ter um pensamento incansável

E ao mesmo tempo inconstante,

Buscando algo novo para fazer,

O u desvendar os segredos que me estão ocultos;

Quero ser tratado como um a criança,

Guiado por tua mão aonde quer que vá”.

Dessa forma, irmão, “...vai até ao fim; porque repousarás e estarás na tua sorte, no fim dos dias”.

1 João 21.32 João 21.43 A sexta aparição desde que ressuscitou.4 Quando os discípulos desembarcaram, viram o fogo e o peixe que já estava sendo assado. E havia também pão. D E justo avaliar se nossa venerável confissão não é pequena e estrita, um tipo de limitador, mesmo tratando-se de

ministros.Também é possível avaliar o que deve ser exigido de cooperadores leigos que não exercem o ministério de ensino e que colocam o seu conhecimento secular a serviço do desempenho inteligente de suas tarefas e do cuidado com os detalhes. Estes são geralmente exemplares em disciplina por sua crença e conduta. Nenhum homem se dispõe a manter a lei moral contida nos Dez Mandamentos com a finalidade de estar sujeito a ser disciplinado por imoralidade.

6 I Pedro 4.15; o termo grego aqui é allotrioepiskopos.

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30Poder do Alto

Mateus 28 .18-20 ; Marcos 16 .15 ; Lucas 24.47-53; Atos I.I-8

l~ ^ a Galiléia os discípulos, de comum acordo ou orientados, toma­ram o caminho de volta a Jerusalém onde o seu Senhor ressuscitado se mostrou uma vez mais, a última vez, para dar-lhes as últimas instruções e despedir-se deles.

Não há menção distinta nos Evangelhos desse último encontro. Cada um dos evangelistas sinópticos, entretanto, preservou algumas das últi­mas palavras ditas por Jesus aos seus discípulos antes que ascendesse ao céu. Entre essas, consideramos os versículos finais do Evangelho de Mateus, onde lemos: “E-me dado todo o poder no céu e na terra. Por­tanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-as a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos”1. Destas últimas palavras, Marcos dá, no final de seu Evangelho, uma versão abreviada, nestes termos: “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”2. Na narrativa de Lucas as palavras ditas por Jesus na ocasião de sua última aparição aos onze estão tão entretecidas com as que Ele disse na noite de sua ressurreição que, exceto por sua característica suplementar e circunstancial, transmitida pelo mesmo autor no Livro de Atos, nunca poderíamos pensar em fazer uma distinção, muito menos saber onde colocar uma linha divisória. Comparando as duas descrições, entretanto, podemos ver que as pala­vras proferidas em dois momentos diferentes são interpretadas juntas em um discurso contínuo; e não temos grande dificuldade em determi­nar o que pertence à primeira aparição e o que pertence à última. De

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570 O Treinamento dos Doze

acordo com o livro de Atos, Jesus, em sua última conversa com os seus discípulos, falou-lhes de seus deveres apostólicos como suas testemu­nhas e como pregadores do seu evangelho; da promessa do Espírito, cuja descida visava capacitá-los para a sua obra; e sobre o que eles deveriam fazer até que a promessa fosse cumprida. Agora estes são somente os tópicos considerados nos versículos citados no último capítulo do Evan­gelho de Lucas. Existe primeiro a delegação apostólica para pregar arre­pendimento e remissão dos pecados em nome de Jesus entre todas as nações, começando por Jerusalém; e uma injunção virtual recaiu sobre os discípulos para que fossem testemunhas fiéis de todas as coisas que tinham visto e ouvido na companhia de seu Senhor, e, especialmente, de sua ressurreição dos mortos. Então, há a renovação da promessa, aqui chamada de “a promessa do Pai”. Finalmente, existe a orientação para esperar pela bênção prometida na cidade santa: “Ficai, porém, na cidade de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder”.

Todos esses dizeres sustentam a evidência interna de serem as últi­mas palavras, porque são completamente adequados à situação. Era na­tural e necessário que Jesus falasse, então, com seus agentes escolhidos na hora de sua partida final, dando-lhes instruções para guiarem-se em seus futuros trabalhos apostólicos, e no pequeno intervalo que estava para decorrer antes que esses trabalhos começassem. A brevidade e o tom dessas últimas palavras estão de acordo com a ocasião em que fo­ram proferidas. Pela primeira vez, deveríamos, talvez, ter esperado um estilo mais patético de discurso em relação à reunião de despedida; mas, ao refletirmos melhor, percebemos que tudo o que fosse saboreado com mero sentimentalismo teria sido inferior à dignidade da situação. No discurso de despedida, antes da paixão, a ternura estava em seu devido lugar, mas nas palavras de despedida, antes da ascensão, teria sido mal- empregada. No caso anterior, Jesus foi um pai falando suas últimas pala­vras de conselho e conforto aos seus filhos tristes; por fim, Ele foi: “como se um homem, partindo para fora da terra, deixasse a sua casa, e desse autoridade aos seus servos, e a cada um, a sua obra, e mandasse ao porteiro que vigiasse”3 e sua maneira de discursar foi adaptada ao seu caráter.

E, ainda, o tom adotado por Jesus em sua última entrevista com os onze não foi puramente magistral. O Amigo não estava totalmente per-

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Poder do Alto 571

dido na presença do Mestre, Ele tinha palavras doces e ordens aos seus servos. O que poderia ser mais doce e mais encorajador do que estas palavras: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos?” E não existe nem um tom de amizade nessa declaração, na qual Jesus, agora, prestes a ascender à glória, parece por antecipação re­tomar o manto de majestade divina que tinha colocado de lado quando tornou-se homem: “E-me dado todo o poder no céu e na terra”. Por que Ele fala disso agora? Não com o propósito de auto-exaltação; não para colocar uma distância entre Ele e seus companheiros, como se fosse rebaixá-los da posição de amigos para a posição de meros servos. A verdadeira finalidade dessa declaração era animá-los em seu caminho por todo o mundo, como mensageiros do Reino; era fazê-los sentir que a tarefa a eles designada não era, como poderia parecer, impossível. Em outras palavras: “Tenho todo o poder no céu e em toda a terra: portanto ide4 por todo o mundo, fazendo discípulos de todas as nações, não duvi­dando de que toda a influência espiritual e todos os agentes providenciais se tornarão subservientes à grande incumbência a qual eu vos envio”.

Jesus tinha atos e palavras doces para os seus amigos por ocasião de sua partida. De fato, não existiu um beijo de despedida, ou um aperto de mãos, ou outro ato simbólico em uso entre os homens que pudesse ser­vir para dizer adeus; mas o modo em que se deu a ascensão foi o mais gracioso e benevolente para com aqueles que o Ascendente estava dei­xando para trás. Jesus se moveu para cima sendo suspenso da terra por alguma força de atração celestial, olhando para baixo em direção aos seus amados companheiros, provavelmente com as suas mãos estendidas em um gesto de bênção. Aqui, os onze não se entristeceram nem se afligiram pela partida de seu Senhor.

De fato, eles se maravilharam e olharam fixa e ansiosamente, surpre­sos, em direção ao céu, como se tentando penetrar na nuvem que recebeu a pessoa de seu Mestre; mas a partida não deixou tristeza para trás. Já não vendo mais o seu Senhor, provavelmente tenham curvado suas cabe­ças em reverência ao Cristo ascendido. Em seguida retornaram a Jerusa­lém com grande alegria, como se t iv e s s em ganhado, e não perdido, um amigo, e como se a ascensão não fosse o pôr-do-sol, mas o nascimento dele — como de fato era, não somente para eles, mas para todo o mundo.

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Do miraculoso evento, pelo qual nosso Sumo Sacerdote passou pelo véu e entrou no santuário celestial, não podemos falar. Como na transfi­guração, este é um tópico sobre o qual não sabemos o que dizer; um evento que não precisa ser explicado, mas crido com devoção e alegria, em companhia de semelhante verdade declarada aos discípulos pelos dois homens em trajes brancos, que disseram: “Varões galileus, por que estais olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir”5. Por essa razão, deixamos de falar da ascensão e passamos a fazer algumas observações sobre a grande incumbência dada pelo Senhor aos seus apóstolos, pela última vez, antes de ter ascendido à glória.

Aquela incumbência era valiosa por causa daquEle de quem ema­nou, quer nEle pensemos como o Filho de Deus ou como o Filho do Homem. “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”. Certamente essa é a linguagem do Ser Divino. Que mero homem já fez um plano de beneficência que alcançasse, em seu escopo, toda a raça humana? E quem, senão um, possuindo todo o poder no céu e na terra, poderia atrever-se a esperar ter sucesso em tão gigantesco empre­endimento? E quão cheia de graça e amor era a questão da Grande Comissão! A incumbência que Jesus deu aos seus apóstolos consistia em pregar o arrependimento e a remissão dos pecados em seu nome, fazendo desse modo uma conquista pacífica do mundo para Deus pela palavra de reconciliação através de sua morte. Tal filantropia é, ao mes­mo tempo, divina e intensamente humana. E marca, como característi­ca especial daquEle que concede a sua graça, a direção: “começando de Jerusalém”. As palavras indicam um plano de operações adaptado, a princípio, às circunstâncias do mundo e à capacidade e idiossincrasias dos agentes; no entanto, fazem mais. Abrem uma janela voltada para dentro do coração de Jesus e mostram-no como sendo o mesmo que orou na cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Por que começar por Jerusalém? Por causa dos “pecadores de Jerusalém”; a maioria precisa do arrependimento e do perdão. E porque Jesus mos­traria neles, no início, a extensão de sua bondade, que serviria como um padrão para aqueles que viviam em Samaria, Antioquia e nos con­fins da terra.

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Poder do Alto 573

Esta era, de todas as maneiras, uma incumbência à altura de ser dada por Jesus, como o Filho de Deus e Salvador dos pecadores. Mas que incumbência para ser recebida por pobres pescadores galileus! Que fardo de responsabilidade a ser colocado sobre os ombros de qualquer pobre mortal! Quem é suficiente para essas coisas? Jesus conhecia a insu­ficiência de seus instrumentos. Por isso, tendo investido-os com autori­dade oficial, passou a falar de outro tipo de poder, sem o qual os oficiais seriam totalmente ineficazes. Ele disse: “Eis que envio sobre vós a pro­messa de meu Pai; permanecei, pois, na cidade, até que do alto sejais revestidos de poder”.

“Até que do alto sejais revestidos de poder”. Esta expressão tem um som místico, e o seu sentido parece difícil de definir; contudo, o sentido geral é, certamente, simples o bastante. Ela significou não total ou prin­cipalmente um poder para operar milagres, mas justamente o que Jesus tinha dito em seu discurso de despedida, antes de sua morte. Este poder que vem do alto significa tudo o que os apóstolos receberiam através da missão do Consolador — esclarecimento da mente, dilatação do coração, santificação de suas faculdades e transformação de caráter, para torná- los espadas afiadas e flechas polidas para subjugar o mundo à verdade; essas qualidades, ou o efeito combinado delas, constituíram o poder que Jesus direcionou os onze a esperar. O poder, portanto, era espiritual, não mágico; uma inspiração, não uma possessão; um poder que não agiria como uma força fanática cega, mas que se manifestaria como um espíri­to de amor e de uma consciência sã. Depois que o poder desceu, os apóstolos não se tornaram menos racionais, porém mais racionais; não loucos, mas sóbrios; não meros entusiastas inflamados e vazios, mas entusiastas equilibrados, claros e dignos expositores da verdade divina, tal como o relato de Lucas sobre o seu ministério. Em resumo, estavam prestes a ser diferentes daquilo que foram no passado, e mais parecidos com o seu Mestre: e não mais ignorantes, infantis, fracos, carnais, mas iniciados nos mistérios do Reino, e habitualmente sob a direção do Es­pírito de graça e santidade.

Tal poder prometido era evidentemente indispensável para que fos­sem bem-sucedidos. Os títulos oficiais não seriam o mais importante, e sob certos aspectos poderiam ser vãos — apóstolos, evangelistas, pasto­

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res, professores, governantes; as vestes clericais seriam vãs se a alma dos onze não fosse vestida com esta peça de roupa do poder divino. Vãos, então, e igualmente vãos agora. O mundo está prestes a ser evangelizado, não pelos homens investidos com dignidades eclesiásticas e com peças de roupas parcialmente coloridas, mas por homens que têm experimen­tado o batismo no Espírito Santo, e que estão visivelmente imbuídos do poder divino da sabedoria, amor e zelo.

O poder prometido era indispensável, e também era, em sua nature­za, algo a ser simplesmente esperado. Os discípulos foram instruídos a esperar até que viesse. Não deveriam tentar fazer nada sem ele, nem tentar alcançá-lo. E foram sábios o suficiente para seguir as instruções. Entenderam completamente que o poder era necessário, e que não po­deria ser alcançado, mas que deveria vir sobre eles. Nem todos são igual­mente sábios. Muitos virtualmente assumem que o poder do qual Cris­to falou pode ser dispensado, e que, de fato, não é uma realidade, mas uma quimera. Outros, mais devotados, acreditam no poder, mas não na impotência do homem de investir-se dele por si mesmo. Estes tentam ganhar o poder por meio de seu próprio trabalho, ou assumem para si e para outros uma situação de frenesi e entusiasmo. O fracasso, mais cedo ou mais tarde, convence essas pessoas de seus erros, mostrando que os resultados espirituais são produzidos por algo mais do que eloqüência, intelecto, dinheiro e organização; mostra, também, que o verdadeiro poder espiritual não pode ser produzido, como faíscas elétricas, por fricção ou estímulo, mas deve, soberana e graciosamente, vir do alto.

1 Mateus 28.18-202 Marcos 16.15. A expressão “a toda criatura” corresponde a pase ktisei sem o artigo. Não desejamos entrar aqui

na questão da autenticidade do texto de Marcos 16.9-20.3 Marcos 13.344 O termo Oun é uma leitura discutida, mas a idéia que expressa implica em conexão.5 Atos 1 2

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31Esperando

Atos I .I2 -I 4 1

l ^ 3 e p o i s que o Senhor havia partido e ascendido ao céu, os onze retornaram a Jerusalém como lhes fora ordenado. Reuniram-se em um cenáculo na cidade e, em companhia das mulheres crentes, dentre as quais Maria, a mãe de Jesus, e seus parentes e outros irmãos, somando cento e vinte pessoas, esperavam pelo poder como homens que esperam pela aurora; ou como homens que vieram ver um panorama, à espera da subida da cortina que escondia da visão as cenas que os olhos não ti­nham visto, nem seus ouvidos tinham ouvido, nem teriam subido aos seus corações. Estes versículos do primeiro capítulo de Atos nos mos­tram os discípulos e os demais cristãos esperando e orando.

Quão solene é a situação desses homens nessa crise de sua história! Eles estão prestes a passar por uma transformação espiritual; passar, por assim dizer, do casulo à condição de ter asas para alçar vôo. Estão pres­tes a receber a promessa feita por Jesus antes de sua morte. O Espírito da verdade está prestes a vir e guiá-los em toda a verdade cristã. A estrela da alva está prestes a nascer em seus corações, depois da lúgubre e intensa noite de perplexidade mental e dor desesperadora pela qual passaram recentemente. Estão prestes a ser dotados com as expressões do poder divino e ter a sua compreensão aumentada em relação às palavras e obras de Cristo, de modo que os homens que os ouvissem se surpreenderiam e diriam uns aos outros: “Pois quê! Não são galileus todos esses homens que estão falando? Como pois os ouvimos, cada um, na nossa própria língua em que somos nascidos?... Todos os temos ouvido em nossas pró­prias línguas falar das grandezas de Deus”2. Com um pressentimento

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sombrio do que estaria por vir, com corações que palpitavam e cresciam de entusiasmo pela expectativa e elevando-se com pensamentos admirá­veis sobre as grandes coisas que estavam prestes a ser reveladas, eles sen­taram-se naquele cenáculo por dez longos dias e esperaram pela promes­sa do Pai. Esta é verdadeiramente uma cena impressionante e sublime.

Mas como esperaram? Ficaram sentados quietos e silenciosos, du­rante todo aquele tempo, esperando pela descida do poder? Não, a reu­nião no cenáculo não era uma reunião da seita “Quaere”. Eles oraram, e até cuidaram de alguns assuntos de ordem administrativa; naqueles dias, Pedro se levantou entre os discípulos e propôs a eleição de um novo apóstolo para o lugar de Judas, que foi para seu próprio lugar. Sua reu­nião também não foi tediosa, como podem imaginar muitos que nunca passaram por nenhum tipo de crise espiritual, para aqueles que pensam que esperar por Deus é um sinônimo de indolência e indiferença. Pode­mos ter certeza de que os cento e vinte crentes não sofreram de tédio. Orações e súplicas solitárias preencheram muitas daquelas abençoadas horas. Para homens na situação dos discípulos, a oração não é uma for­ma de devoção “tediosa” com a qual nós, nestes degenerados dias, estamos tão familiarizados. Em vez disso, é uma luta com Deus, durante a qual as horas passaram sem ser notadas, e o dia acabava antes que percebessem. “Todos estes perseveravam unanimemente em oração e súplicas.” Eles oraram sem esmorecer, sem dar lugar ao cansaço, com um só coração e mente.

Além de orar, os discípulos, sem dúvida, passaram parte de seu tem­po lendo as Escrituras. Isso não foi declarado, mas pode ser assumido como algo a se esperar, e também pode ser inferido pela maneira com a qual Pedro lidou com os textos do Antigo Testamento em seu discurso ao povo no dia de Pentecostes. Aquele sermão pentecostal mostra sinais de preparação prévia. Era, em certo sentido, uma efusão improvisada sob a inspiração do Espírito Santo; mas, por outro lado, o fruto de um estudo cuidadoso. Pedro e seus irmãos tinham, sem dúvida, relido cui­dadosamente todas aquelas passagens que Jesus tinha exposto no dia em que ressuscitou dos mortos, e entre elas aquele salmo de Davi, cujas palavras os apóstolos citaram em seu primeiro sermão evangélico para sustentar a doutrina da ressurreição de Cristo. Podemos encontrar evi-

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ciências da cuidadosa atenção dedicada a esta e a outras porções messiâ­nicas das Escrituras pela precisão com que são citadas. Os quatro versí­culos do salmo colocam palavra por palavra do discurso de Pedro como estão no texto original — um fato marcante, já que vários pregadores e escritores do Novo Testamento não o fazem, preferindo não aderir à ipsissima verba em suas citações do Antigo Testamento, citando os textos mais livremente.

Os exercícios espirituais daqueles dez dias seriam mais adiante di­versificados por conversas religiosas. A leitura das Escrituras traria, na­turalmente, comentários e discussões. Aqueles que tinham sido privile­giados pela oportunidade de ouvir Jesus ressuscitado expondo o que estava escrito na lei, nos profetas e nos Salmos a respeito dEle mesmo, não falhariam em transmitir aos seus irmãos o benefício das instruções através das quais o seu próprio entendimento tinha sido aberto. Pedro, que estava tão pronto a propor a eleição de uma nova testemunha para a ressurreição de Jesus, estava não menos pronto para contar a seus com­panheiros no cenáculo o que o Jesus ressuscitado havia dito sobre esses textos do Antigo Testamento. Ele lhes falaria livremente sobre o signifi­cado que Jesus lhe ensinou a encontrar no Salmo 16, e faria o mesmo nas ruas de Jerusalém, ao tomar a liberdade de discursar às multidões. Após a leitura do Salmo 109, ele diria: “Homens e irmãos, assim e assim, o Senhor Jesus interpretou estas palavras”. E provavelmente após a leitura do Salmo 109 ele se levantou e disse: “Varões irmãos, convinha que se cumprisse a Escritura que o Espírito Santo predisse pela boca de Davi, acerca de Judas... Fique deserta a sua habitação, e não haja quem nela habite; e: Tome outro o seu bispado”. Por isso — escolhamos outro para assumir o seu lugar.

Assim os irmãos se ocuparam durante esses dez dias. Eles oraram, leram as Escrituras, conferenciaram juntos sobre o que leram e sobre o que esperavam ver. Então continuaram esperando de comum acordo em um mesmo lugar até que o dia do Pentecostes tivesse chegado, quando “de repente, veio do céu um som, como de um vento veemente e impe­tuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a

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falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem. Então a promessa se cumpriu, o poder tinha vindo do alto, ilustrando de certa maneira, as palavras do profeta: “As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do ho­mem são as que Deus preparou para os que o amam”.

Os eventos do Pentecostes foram a resposta às orações oferecidas durante aqueles dez dias, os quais podemos chamar de “período de in­cubação” da igreja cristã. Também concluímos que a lição de encora­jamento a ser aprendida por meio desse fato não pode ser perdida, pois as orações daquele grupo do cenáculo não foram, essencialmente, dife­rentes das orações dos santos em qualquer outro período da história da igreja. Elas têm se referido praticamente aos mesmos temas. Os onze e os outros oraram pelo poder prometido, para que tivessem mais enten­dimento quanto ao significado das Escrituras, pela vinda do Reino divi­no à terra. E enquanto oravam por essas coisas, acreditamos, com fervor peculiar, não oravam por elas com extraordinária inteligência. Deles, tal­vez mais enfaticamente do que o normal, poderia ser dito que não sabi­am como convinha orar. Acreditamos que tenham tido muitas idéias confusas sobre o “poder” e sua natureza, e sobre os efeitos que este estava prestes a produzir. Sabemos que eles tinham idéias superficiais e até errôneas sobre o “reino”, pois foi registrado que no dia da ascensão de Jesus eles lhe perguntaram: “Senhor, restaurarás tu neste tempo o reino a Israel?”3 Nesta rápida questão, estão contidos três erros conceituais crassos. Acreditava-se que Cristo estava prestes a reinar pessoalmente na terra, tornando-se um grande rei, como Davi. Os discípulos não tinham nenhuma idéia de uma ascensão ao céu. Então o reino que esperavam era meramente do tipo judaico, nacional. “Restaurarás tu”, eles pergunta­ram, “o reino a Israel?” Finalmente, o reino por eles procurado era polí­tico, e não espiritual: não uma nova criação, mas um reino terreno res­taurado, a partir de uma condição presente de prostração, a uma condi­ção de poder e esplendor que a nação já havia possuído.

As noções dos onze no que concerne ao reino continuaram a ser praticamente as mesmas até o dia de Pentecostes, como aquelas que tinham tido no dia da ascensão. E verdade que Jesus tinha, em sua res­posta, feito uma declaração que, se rigorosamente entendida, visava a

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corrigir os conceitos errôneos deles. Embora fosse, formalmente, uma declinação a dar informação a respeito do assunto sobre o qual os discí­pulos estavam curiosos, aquela resposta proporcionava uma explicação real e suficientemente clara do caso. Quando falou do poder que deveriam receber, Jesus deu claras evidências de que o trabalho de inauguração do reino estava prestes a ser feito pelos apóstolos como Ele os incumbira, e não por Ele mesmo em pessoa. E o mesmo está implícito nas palavras: “Ser-me-eis testemunhas”. As testemunhas só são necessárias para al­guém que não pode ser visto. Conectando o “poder” com a descida do Espírito Santo, Jesus efetivamente corrigiu o terceiro erro dos onze a respeito do reino — isto é, a noção de que o reino teria uma natureza política. O poder recebido através do batismo no Espírito é moral, não político, em seu caráter; e um reino fundado através de tal poder não é um reino deste mundo, mas um reino cujas características e cidadãos são homens que crêem na verdade. Jesus mencionou a verdade ao falar de seu remo a Pilatos. E, em último lugar, as palavras “ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” estavam certamente ajustadas para banir da mente dos onze o sonho de um mero reino judaico nacional. Se a questão fosse apenas a restauração do reino de Israel, para que seria necessário testemunhar a respeito de Jesus até aos confins da terra? Tal testemunho fala de um reino de natureza universal, incluindo todas as pessoas, de todas as lín­guas e parentescos sob o céu.

Pela resposta do Senhor aos discípulos, podemos compreender a verdadeira idéia do reino como um reino fundamentado na fé em Cristo; presidido por um rei, não mais fisicamente presente, mas espiritualmen­te onipresente; não limitado a um país, mas formado por todos os que fossem da verdade, em todas as partes do mundo. Esta grande idéia, entretanto, não emergiu das palavras que estivemos comentando. Os dis­cípulos poderiam perceber a natureza do reino, tanto a partir dos ensi­nos de Jesus, quanto a partir dos eventos da providência divina. O pano­rama do Reino de Deus deveria permanecer oculto aos seus olhos até que a cortina fosse levantada em três movimentos históricos distintos — a ascensão, a descida do Espírito Santo no Pentecostes, testemunhada pela multidão que tinha vindo festejar, e a conversão dos samaritanos e dos gentios4. O primei­

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ro desses movimentos já tinha acontecido quando os discípulos se reuni­ram no cenáculo para esperar pela promessa do Pai. Jesus tinha ascendi­do, então agora sabiam que o trono do império, a capital do reino, seria no céu, e não em Jerusalém. Este era um conhecimento valioso, mas não era tudo o que precisavam. Somente uma pequena parte do panorama já era visível aos espectadores, e eles ainda estavam no escuro em relação à natureza e extensão do reino por vir. Esperavam ver um panorama de uma nova Palestina, não de um novo céu e uma nova terra onde deveria habitar a justiça; e indubitavelmente continuaram a alimentar essa ex­pectativa até que as cortinas foram levantadas e os fatos mostraram que tinham, de modo inconsciente, estado orando por isso. Então, a esta altura, aprenderam que aquEle que ouve as orações não só faz pelo seu povo o que este pede, mas faz muito mais do que podem imaginar.

Esta cena de espera vista em relação aos eventos subseqüentes regis­trados em Atos dos Apóstolos, sem mencionar toda a história da igreja, sugere uma outra observação. Podemos aprender através dela a grande importância que pode existir em coisas aparentemente insignificantes. Tivemos a oportunidade de fazer esta observação em conexão com a primeira reunião de Jesus com cinco homens que mais tarde se tornari­am membros do grupo dos doze escolhidos, e consideramos oportuno repeti-la neste ponto. Se o mundo judeu contemporâneo soubesse da existência de uma reunião como aquela no cenáculo, considerariam-na uma questão desprezível. Porém esta foi a reunião de maior importância ocorrida na Judéia naquele tempo. A esperança de Israel, sim, do mun­do, estava naquela pequena congregação. Por menor que fosse, Deus estava com aqueles que a formavam. Os infiéis que não criam na influên­cia sobrenatural riam de tais palavras; mas até estes deveriam reconhecer que alguma fonte de poder estava centrada naquela pequena comunida­de, pois se multiplicaram com grande rapidez, excedendo até mesmo a dos israelitas no Egito. Aqueles que rejeitaram a influência divina impu­seram a si mesmos o fardo de uma complicada e difícil explicação do fato. Para aqueles que crêem nessa influência, é suficiente dizer que aquele pequeno rebanho cresceu muito, não pela força, não pelo poder deste mundo, mas pelo Espírito de Deus. Foi de bom grado que o Pai lhes deu o seu reino.

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E agora, deixando para trás aqueles homens pelos quais temos por tanto tempo nutrido considerável comunhão, pode ser bom, aqui, indi­car em uma sentença, como um resumo, a soma dos ensinos que eles receberam do Mestre. A partir de tal resumo é, de fato, impossível trans­mitir uma idéia adequada do treinamento que receberam para desempe­nhar a sua carreira futura. E importante enxergar que a principal parte do treinamento consistiu em estarem na companhia de alguém como Jesus. Contudo, pode ser bom permitir que os nossos leitores enxer­guem, mesmo que de relance, que a instrução comunicada por Jesus aos seus discípulos não era sistemática e que tinha até mesmo um caráter ocasional. Ela difere totalmente do ensino ministrado nas escolas teoló­gicas. Durante o tempo em que o Senhor e os seus discípulos estavam juntos, lições de valor inestimável eram transmitidas pelo Divino Mestre aos seus pupilos em muitos assuntos de vital importância. Para enume­rar os tópicos, tanto quanto possível, na ordem em que têm sido consi­derados neste trabalho, podemos destacar que o Senhor Jesus deu aos seus discípulos lições sobre a natureza do Reino divino5; sobre a ora­ção6; sobre liberdade religiosa ou a natureza da verdadeira santidade7, sobre sua própria Pessoa e reivindicações8; sobre a doutrina da cruz e a importância de sua morte9; sobre humildade e virtudes semelhantes, ou sobre o temperamento cristão correto que foi exigido dos discípulos, tanto na vida privada como na vida eclesiástica10; sobre a doutrina do sacrifício pessoal11; sobre o fermento dos fariseus e dos saduceus, e os infortúnios que sobreviriam à nação judaica12; sobre a missão do Consolador, que consiste em convencer o mundo e esclarecê-lo13. As­sumindo com segurança a precisão dos registros bíblicos, podemos ter a certeza de que o ensino transmitido foi ajustado para fazer dos discípu­los o que eles tinham sido solicitados a ser: apóstolos de uma religião espiritual e universal. Tiveram o entendimento iluminado, foram capaci­tados com um amor amplo o suficiente para abraçar toda a humanidade, suas consciências se tornaram tremendamente sensíveis a todas as reivin­dicações do dever, foram libertos de todos os escrúpulos supersticiosos, emancipados dos grilhões dos costumes, das tradições e dos manda­mentos dos homens, e passaram a possuir temperamentos purgados do orgulho, da vontade própria, da impaciência, das paixões iracundas, do

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espírito de vingança e da implacabilidade. Temos de admitir francamen­te que eram lentos para aprender, e mesmo quando o seu Mestre os deixou estavam longe da perfeição. Porém eram homens de tão grande excelência moral, que poderíamos confiantemente antecipar que — tendo estado tanto tempo com Jesus — provariam ser excepcionalmente bons e nobres quando se apresentassem ao mundo como líderes de um grande movimento, chamados a agir sob sua própria responsabilidade. Porém jamais dispensariam o precioso auxílio do prometido poder do alto e da influência esclarecedora e santificadora do Paracleto. Até mesmo aque­les que não crêem na influência sobrenatural devem admitir, em bases puramente psicológicas, que homens que receberam um treinamento tão excepcional se portariam, muito provavelmente, de uma forma sábia, com bravura e heroísmo ao desempenhar suas tarefas como homens pú­blicos. De acordo com a narrativa de Atos dos Apóstolos, eles cumpri­ram o seu dever. Porém, de acordo com uma conhecida escola de críti­cos, cumpriram-na de uma maneira muito pobre — de uma maneira to­talmente indigna de seu grande Mestre. Qual visão merece mais crédi­to: a visão do evangelista Lucas ou a do Dr. Baur?

1 As partes do Evangelho e de Atos dos Apóstolos mencionados neste capítulo contêm questões que têm sido motivo de muitos debates. Mas por não ser apropriado ao caráter desta obra abordar esses debates e questões, preferimos nos limitar a fornecer a nossa própria opinião a respeito dos eventos sem fazer referência às visões céticas de muitos críticos modernos.

2 Atos 2 .7 -113 Atos 1.64 Considere as observações feitas no capítulo 28 sobre a lentidão do entendimento dos discípulos, que os levou

a não compreender as palavras de Cristo até que fossem interpretadas e esclarecidas pelos eventos que se seguiram.5 Capítulos 5 e 86 Capítulo 67 Capítulo 78 Capítulo 119 Capítulos 12, 17, 18, 22 e também 910 Capítulos 14, 15, 17, 21 e 2911 Capítulo 1612 Capítulos 7, 10 e 2013 Capítulos 25 e 29

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Os métodos que Jesus uti­lizo u para preparar seus discípulos são um modelo inspirador no preparo de novos líderes e servos, e O Treinamento dos 12 documen­ta os conflitos e sucesso dos que tiveram a oportu­nidade e o privilégio de se­rem alunos do M estre por excelência. Ele transformou seus seguidores em pesso­as que levariam a mensa­gem da salvação pelos sé­culos, de geração a geração.

Se você deseja crescer m i­nis terialmente e treinar ou­tros d iscípu los e líderes, esta obra o auxiliará trazen­do como exemplo aqueles que estiveram aprendendo aos pés do Senhor dos se-

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Liderança

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e você deseja crescer no discipulado e no ministério, precisa en­tender de que forma os discípulos se relacionavam com o Senhor.

Alexander Balmain Bruce, pastor escocês, ministrou em congregações na Escócia e deu aulas em um Seminário em Glasgow. Por mais de quarenta anos, dedicou-se a ministrar o evangelho, primeiro como pas­tor, e então como um ilustre professor de Apologética e Exegese do Novo Testamento. Começou a escrever durante o tempo em que pastoreava, e seu conhecido livro O Treinamento dos TDoze foi publicado em 1871.

Uma autoridade como o Dr. W. H. Griffith Thomas chamou o livro de “um dos grandes clássicos cristãos do século XIX”, e o Dr. W ilbur Smith, principal bibliófilo americano, observou: “Não há nada impor­tante na vida de nosso Senhor em relação ao treinamento dos doze apóstolos que não tenha sido relatado nesse livro...”

Agora, esse “clássico do século XIX” pode expandir seu ministério já rico e abençoado. Embora com mais de cem anos de idade, a obra do Dr. Bruce fala poderosa e efetivamente à geração cristã contemporâ­nea, e beneficiará muitos leitores modernos, porque seus estudos exa­minam de modo cuidadoso de que forma os discípulos cresceram como resultado do relacionamento que tinham com o Mestre.

ISBN 8 5 -2 6 3 -0 8 5 5 -6