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Ésquilo Sófocles EuRípides ARistófanes edição comentada Tradução e notas: Mário da Gama Kury Apresentação geral, material de apoio e revisão das notas: Adriane da Silva Duarte o melhor do teatro grego prometeu acorrentado édipo rei medeia as nuvens

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O melhor do teatro grego

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  • squilo Sfocles EuRpides ARistfanes

    edio comentada

    Traduo e notas:Mrio da Gama Kury

    Apresentao geral, material de apoio e reviso das notas:Adriane da Silva Duarte

    o melhor do teatro gregoprometeu acorrentado dipo rei medeia as nuvens

  • 7apresentao

    Teatro grego: o que saber para apreciar

    O teatRo, tal como conhecemos, nasce em Atenas, na Grcia, na passa-gem do sculo VI para o V a.C., no mbito dos festivais dramticos em honra ao deus Dioniso. Em sua origem, portanto, o espetculo teatral, ainda que almejasse tambm diverso, est inserido em um contexto simultaneamente cvico e religioso, esferas no de todo apartadas para os gregos.

    A imitao, como nota Aristteles na Potica, inata ao ser humano e, por isso, as atividades de natureza mimtica (dana, desenho, drama) j se encon-travam entre os homens das cavernas, como revelam as pinturas rupestres. O que aconteceu em Atenas, no final do sculo VI a.C., foi, porm, diferente de tudo o que se conhecia at ento. Antes, os prprios gregos e outros povos encenavam seus mitos como forma de celebrar os deuses e manter viva a me-mria de feitos heroicos do passado o que ainda pode ser observado hoje em muitas partes do globo. Contudo, com a criao dos concursos teatrais, deixa- se para trs o improviso ritual e abraa-se a profissionalizao do espetculo. Poetas passam a compor e apresentar suas peas a cada ano, contratam-se atores para dar vida s personagens por eles criadas, cidados so designados para participar do coro e, os mais ricos dentre eles, para exercer a funo de produtores, enquanto outros devem integrar o jri encarregado da premiao. Os espetculos passam a atrair espectadores de todo o mundo grego, e no apenas os atenienses.

    No bastasse o surgimento de uma prtica diferenciada, a teoria teatral tambm aparece na Grcia com a reflexo de Plato, em particular no on e na Repblica, e de Aristteles, na Potica, o mais importante tratado sobre a arte dramtica que a Antiguidade nos legou e ainda hoje uma referncia terica importante. Continua-se a debater o significado de termos que adentraram o vocabulrio crtico, como mimese (representao), catarse (purificao est-tica das emoes) e hamartia (falha trgica).

    Por tudo isso e, em especial, pela qualidade de sua poesia, a experincia grega foi decisiva para o desenvolvimento da arte dramtica no Ocidente. No

  • 8por coincidncia a palavra teatro, que pode designar a uma s vez o recinto que abriga o espetculo, o espetculo em si e os espectadores que a ele assis-tem, de origem grega (tha significa contemplao) e, assim como drama (cuja primeira acepo ao), integra hoje o vocabulrio de inmeras lnguas ao redor do planeta.

    Embora se possa datar com razovel certeza o incio das atividades tea-trais em c.535 a.C., com as primeiras representaes de tragdias no seio da plis ateniense, sua origem pouco conhecida. A questo to controversa que um dos helenistas mais influentes do ltimo sculo, o francs Jean-Pierre Vernant, aconselhava que fosse deixada de lado, porque, mesmo considerando que fosse possvel resgatar com exatido a gnese do drama grego a partir de rituais agrrios, isso no resultaria til para a compreenso do fenmeno his-trico que perpassa o sculo V a.C. Ou seja, para Vernant, o teatro praticado em Atenas reflete diretamente as condies sociais e polticas dessa cidade, no devendo mais nada a sua suposta origem rural. Ainda assim, grande a tentao para debruar-se sobre o assunto.

    Como as tragdias e comdias eram representadas durante os festivais em que se celebrava Dioniso, o culto a esse deus sempre esteve no centro das especulaes sobre a origem do drama. Para os gregos, o ato de ir ao teatro tinha ento uma clara conotao religiosa. Os espetculos eram precedidos por procisses em que a esttua do deus era conduzida at o recinto das re-presentaes, onde permanecia at o final da competio. Os coros trgicos e cmicos evoluam em volta do altar do deus do vinho e diante do seu sacer-dote, a quem era reservado um assento na primeira fila da plateia. Banquetes e sacrifcios completavam a programao.

    No resta dvida de que o deus era visto como o patrono do teatro. Mas como esse vnculo teria surgido? Em primeiro lugar, em seu culto, o deus era adorado sob a forma de uma mscara, pendurada em uma coluna recoberta por uma tnica. A mscara, vale lembrar, o acessrio mais emblemtico do teatro grego, o sinal da sua alteridade, da capacidade de abandonar-se para tornar-se outro, ainda que momentaneamente. Alm disso, atravs da msica, da dana e da ingesto do vinho, os rituais dionisacos predispunham seus seguidores ao transe, de modo que transcendessem a realidade imediata e entrassem em comunho com a divindade. Guardadas as particularidades de cada caso, na prtica teatral se observa um efeito parecido, j que o que nela se busca uma forma de dar vida a um outro, abdicando da prpria identidade.

    O deus tambm se revela hbil nas artes da iluso. Nos mitos em que figura, Dioniso mostra-se capaz de modificar sua aparncia, adotando os mais

  • 9diversos disfarces, e de alterar o mundo a sua volta. No Hino homrico a Dioniso I, composio hexamtrica que celebra o deus, narra-se como, sob o aspecto de um inofensivo rapazinho, ele sequestrado por piratas e como os pune, assumindo a forma de um leo, transformando o barco em uma ilha e os marujos em assustados golfinhos. Em As bacantes, tragdia que Eurpides lhe dedicou, o disfarce aparece duplamente. Primeiro o deus que surge em cena na pele de seu sacerdote, enganando Penteu, que pretendia banir os ritos dionisacos de Tebas. Depois a vez de Penteu, que, persuadido por Dioniso, traveste-se para espionar as bacantes reunidas nas montanhas. Elas, no en-tanto, no se deixam iludir e, ao descobri-lo, despedaam-no. Embora outros deuses do panteo grego tambm sejam capazes de se transformar, Dioniso parece afetar de forma mais intensa a percepo que o homem tem de si e da realidade que o cerca.

    Aristteles, na Potica, tambm remonta a gnese do drama a formas po- ticas associadas ao deus do vinho. O ditirambo, um hino coral executado no mbito das festas em homenagem a Dioniso, estaria na origem da tragdia; os cantos flicos, com os quais se acompanhavam as procisses do deus, que favorece a fertilidade da terra, na origem da comdia. Por mais simplificadora que essa genealogia possa parecer, uma vez que esses dois elementos no bastam para explicar o fenmeno dramtico como um todo, significativo que mais uma vez Dioniso se encontre no centro da cena.

    Assim, pode soar contraditrio que o deus aparea to pouco nos enredos, quer trgicos, quer cmicos. To raramente a sua saga figurava no programa dos festivais dramticos que os atenienses cunharam a expresso nada a ver com Dioniso, com a qual marcavam o espanto, para no dizer o protesto, diante dessa ausncia notvel.

    So principalmente os heris, personagens dos ciclos picos, que fornecem assunto para as tragdias. Ao ciclo tebano, que rene os mitos relacionados a Tebas, pertence a histria de dipo e seus descendentes An-tgona, Polinices, Etecles , e tambm a do prprio Dioniso, filho de Zeus com a tebana Smele. O ciclo troiano aborda os acontecimentos passados durante a guerra de Troia e os heris que dela participaram, como Ajax, Fi-loctetes, Helena, e do lado dos troianos Hcuba, Andrmaca e outras troia-nas cativas. Tambm se ligam a ele as histrias dos tridas, de Agameno e seus filhos, Ifignia, Electra e Orestes. Outros heris, como Hracles, Jaso, ou ainda Teseu e on, especialmente caros aos atenienses, tambm foram objeto de tragdias. Vale notar que me atenho aqui aos ttulos que foram conservados, os quais representam apenas uma pequena porcentagem da

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    produo teatral ateniense, pois, infelizmente, a maior parte perdeu-se na poeira dos sculos.

    O lugar proeminente reservado aos heris se deve importncia de seu culto junto s populaes das cidades, que os consideravam entidades benfa-zejas, chegando a disputar a primazia de abrigar seus restos fnebres, como mostra muito bem a tragdia dipo em Colono, de Sfocles. Reverenciados em eventos esportivos e poticos, os heris migraram naturalmente para o palco dos concursos dramticos.

    Percebe-se assim que o mito, entendido como as histrias tradicionais e annimas que versam sobre deuses e heris, constitui a matria-prima da tragdia. Quanto comdia, seu assunto outro, o dia a dia da cidade, o aqui e agora. Seus heris estavam s voltas com os problemas polticos, que se propunham a resolver com os mtodos mais fantsticos. Suas personagens frequentavam as praas e as ruas, como os famosos Scrates e Eurpides, ou os annimos taverneiros, artesos, floristas e feirantes que ajudam a compor o quadro mais vivo, muito embora eivado de exageros, da sociedade ateniense.

    O teatro tem muito a dizer a respeito de sua poca, pois tambm um acontecimento cvico. Os espetculos dramticos entraram no calendrio de festas de Atenas por iniciativa de seus governantes. Coube a Pisstrato, tirano ateniense, instituir os concursos teatrais na cidade, o que foi mantido pelos representantes da democracia, regime que sucederia a tirania no incio do sculo V a.C. Os festivais forneciam uma grande oportunidade para que Ate-nas consolidasse sua imagem internamente e a projetasse para alm de suas fronteiras. As Grandes Dionsias, o maior desses festivais, proporcionavam a ocasio ideal para tal exibio, uma vez que, por acontecerem durante a prima-vera, quando as condies de navegao eram mais favorveis, contavam com a presena de muitos estrangeiros entre os espectadores. Paradas militares, cerimnias em que os rfos e os heris de guerra eram homenageados, o de-psito pblico dos tributos recolhidos das cidades aliadas, estas eram algumas das atividades que antecediam os espetculos, somando-se s manifestaes de ordem religiosa, por si s solenes. Atenas queria se mostrar uma potncia blica, econmica e cultural.

    Quando o espetculo comeava, as peas se encarregavam de reforar ou, por vezes, de contestar essa imagem, dando prosseguimento exposio da cidade. A comdia, por abordar a esfera pblica, tematizava a plis democrtica e seus problemas de forma direta, valendo-se da stira explcita e dirigindo conselhos populao. J a tragdia, apesar de ter por objeto o passado mtico, atualizava-o ao apresent-lo a partir de uma perspectiva ateniense. Assim se

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    pode afirmar, como o fez o helenista alemo Wilhelm Nestle, que a tragdia nasce quando o mito passa a ser visto pelos olhos do cidado. No fundo, Ate-nas est subjacente em cada uma das peas encenadas em seus festivais.

    Os gregos se relacionavam com o teatro de forma bastante diversa da que estamos acostumados a fazer hoje em dia. Caso se deseje assistir a um espet-culo hoje, basta consultar a programao e escolher a data mais conveniente, pois as peas costumam ficar em cartaz por semanas. Em Atenas, no havia tantas opes, j que as peas eram compostas para serem apresentadas uma nica vez durante o festival em que estavam inscritas. Por isso, era difcil que um espetculo fosse visto mais de uma vez, embora fosse possvel que, depois da estreia, houvesse reapresentaes eventuais, para homenagear um poeta recm-falecido, por exemplo, ou para contemplar localidades mais afastadas

    de fato, parece que trupes mambembes rodavam todo o mundo grego. Por outro lado, o comparecimento ao teatro era quase universal no h consenso sobre a presena de mulheres entre os espectadores. Uma poltica de subsdios garantia que as camadas mais pobres da populao pudessem deixar de lado o trabalho para acompanhar os trs dias de espetculos.

    Outra diferena entre a prtica grega e a nossa est no fato de as apre-sentaes ocorrerem no noite, mas durante o dia e ao ar livre. O teatro grego, com a plateia em semicrculo, disposta volta da orquestra um espao circular ocupado pelo coro e de frente para a cena, onde ficavam os atores, favorece tanto a acstica quanto a visibilidade. Ainda hoje possvel test-las. O turista que visita o teatro de Epidauro, localizado a curta distncia de Atenas, espanta-se ao perceber que mesmo sentado na ltima fila tem viso total da orquestra e escuta com clareza o som de uma moeda que cai no cho ou de um fsforo riscado. Isso nos diz muito acerca dos espectadores antigos, que faziam questo de ver e ouvir o que transcorria em cena, sem ligar se eles prprios eram vistos pelos outros.

    As construes em pedra que nos vm mente quando pensamos nesse espao ainda no existiam no perodo ureo da produo ateniense, o sculo V a.C. Ento, as peas eram encenadas em estruturas provisrias, erguidas em madeira e desmontadas aps o trmino dos festivais. A maior parte das obras remanescentes foi apresentada nesses recintos improvisados, em que o palco consistia em um estrado cerca de meio metro mais alto que a orquestra, facilitando o contato entre atores e coreutas, os membros do coro. Um sculo mais tarde, com a elevao do palco em mais de dois metros, refletindo a perda de relevncia do coro enquanto elemento dramtico, isso j no seria mais possvel ou desejvel.

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    Por integrar o calendrio festivo da plis, a produo do espetculo era financiada pelo tesouro pblico atravs da coregia, uma entre vrias liturgias, espcie de imposto sobre grandes fortunas, mantidas pela cidade. Assim, os cidados mais ricos, denominados coregos, eram encarregados de custear os coros, cuidando de seu sustento durante o perodo em que durassem os ensaios e do figurino que usariam em cena.

    O coro, formado exclusivamente por cidados do sexo masculino, sortea-dos a cada ano para a funo, somava entre doze e quinze integrantes no caso da tragdia e 24 no da comdia. Sua caracterizao podia variar dos usuais ancios e prisioneiras trgicos a grupos de camponeses, pssaros, nuvens ou o que mais ditasse a imaginao dos comedigrafos. O coro trgico por natureza mais contemplativo e passivo, limitando-se a comentar a ao e acon-selhar o heri, com quem mantm uma relao de dependncia. O da comdia mais combativo, por vezes opondo-se ao protagonista, que deve conquist-lo para fazer prevalecer seu ponto de vista.

    Se os coreutas eram amadores, os atores, em contrapartida, eram pro-fissionais contratados pela cidade. O elenco, limitado a trs atores para a tra-gdia e, por vezes, quatro para a comdia, era composto apenas por homens, que, com a ajuda das mscaras, deveriam representar todos os papis da pea. Por vezes podia-se recorrer a figurantes, geralmente sem falas. A Medeia, de Eurpides, por exemplo, conta com sete personagens alm das crianas, re-presentadas por figurantes e as falas eram distribudas pelos trs atores de acordo com a hierarquia estabelecida entre eles. Assim, o ator principal, ou protagonista, ficaria com o papel mais importante, o da herona que d nome pea, permanecendo por mais tempo em cena. O deuteragonista e o tritago-nista, segundo e terceiro ator respectivamente, dividiam os papis menores.

    A direo de cena cabia geralmente ao poeta ou a um dos atores e o diretor era denominado professor (didskalos). Como ele preparava o grupo para uma nica apresentao, no havia necessidade de incluir no texto final as indicaes cnicas, as didasclias. Os textos, no entanto, fornecem inmeras informaes sobre o estado de esprito das personagens, cuja expresso con-gelada da mscara ocultaria, ou relativas sua movimentao. Presume-se que estaria a servio dos espectadores, ajudando-os a acompanhar melhor o espetculo.

    Alm da mscara, com seu caracterstico esgar de horror ou com a boca rasgada em perptua gargalhada, apresentando as personagens de acordo com o gnero a que se ligavam, compunham o figurino uma tnica, comprida para tragdia ou curta para comdia, e os coturnos, calados cnicos, ainda

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    desprovidos dos saltos que ganhariam no perodo helenstico. Para completar a caracterizao dos atores cmicos, barrigas protuberantes e ndegas fartas, forjadas com o auxlio de enchimentos, e um grande falo de couro, que esca-pava por sob a roupa, eram de regra.

    Pouco se sabe sobre o cenrio, a no ser que sua criao foi atribuda a Sfocles ao menos segundo o testemunho de Aristteles na Potica. Em vista das condies improvisadas do edifcio cnico no perodo clssico, constru- do a cada apresentao e pensado para abrigar em sequncia trs tragdias, um drama satrico e uma comdia, a decorao de cena deveria ser simples e prtica, limitando-se, talvez, a painis pintados em madeira ou tecido, que poderiam ser substitudos rapidamente no intervalo entre as peas. No mais, os textos so eloquentes, fornecendo diversas indicaes para situar os espectadores. As per-sonagens entravam em cena pelas laterais do palco ou pelas portas localizadas no fundo, que representariam as casas normalmente a ao dramtica se passa do lado de fora das residncias. Os coreutas compartilhavam a mesma passagem utilizada pelo pblico: o prodo, a entrada lateral, o que reforava a identidade entre eles. Uma vez na orquestra, ali permaneciam at a concluso do drama.

    O uso da maquinaria cnica estava restrito ao enciclema e mquina, am-bos empregados com frequncia pelos poetas. O primeiro era uma plataforma rolante, impulsionada atravs da porta cenogrfica, cujo intuito era revelar o interior de uma casa; a segunda, um guindaste que suspendia personagens por sobre a cena, representando, em geral, divindades o clebre deus ex machina. Eu-rpides, na Medeia, faz uso notvel dos dois elementos. Medeia declara ao coro que matar seus filhos, em seguida entra no palcio, de onde se escutam os gritos das crianas. Jaso aparece e fora a porta para que se possam ver os corpos e como as mortes no ocorriam em cena no teatro grego, mas a exibio dos cadveres era um importante meio de comoo, o enciclema era usado frequentemente para esse fim. Abertas as portas, a expectativa se frustra, pois nada se v; mas ouve-se a voz de Medeia vinda do alto. A herona est sobre o carro do Sol, que a transportar a Atenas, onde sepultar os filhos, num uso espetacular da mquina.

    A durao dos festivais dramticos variou conforme o tempo e as circuns-tncias. Grande parte da produo clssica remanescente data do perodo em que Atenas enfrentava Esparta na Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), que mudaria os rumos da poderosa democracia ateniense. Durante os quase trinta anos do conflito, por razes de economia, as apresentaes de teatro foram reduzidas de cinco para trs dias.

    A programao inclua ento a encenao de uma tetralogia, composta por trs tragdias e um drama satrico, a cargo de um mesmo tragedigrafo, e de

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    uma comdia, composta por um comedigrafo diferente a cada dia de espet-culo. O drama satrico consistia em uma pea burlesca de pardia mitolgica, centrada em torno de um coro de stiros, seres hbridos metade homens, metade bodes, que acompanhavam Dioniso em suas orgias. Havia uma clara especializa-o entre os dramaturgos na Grcia, desconhecendo-se um nico caso em que o mesmo homem tenha se aventurado a compor tragdias e comdias, como sugere de maneira provocativa o Scrates platnico, no final do Banquete.

    Esse nmero reduzido de participantes por festival, seis poetas ao todo, sendo trs para cada categoria, sugere que tenha havido uma seleo inicial para definir, dentre os inscritos, os textos que seriam apresentados. Sabe-se, entretanto, que a tradio familiar exercia forte influncia nesse campo, uma vez que era recorrente a participao dos mesmos dramaturgos ano aps ano, no sendo incomum que seus filhos ou sobrinhos seguissem a mesma carreira. Por fim, prmios eram atribudos ao melhor poeta, ator protagonista e corego, por um jri formado de cidados especialmente designados para a funo.

    Tragdias e comdias seguiam uma mesma estrutura em sua composio, alternando partes dialogadas ou recitadas, a cargo dos atores, com cantos corais. Resguardadas as particularidades, as peas se iniciam com o prlogo, dialogado ou recitativo, no qual so apresentadas as premissas que devem reger a ao, com vistas a situar os espectadores. Segue-se o prodo, seo de natureza coral que marca a entrada do coro em cena, dando indcios de sua caracterizao e do vnculo que mantm com o heri. A partir da alternam-se episdios, em que as personagens contracenam, e estsimos, intervenes cantadas em que o coro tece comentrios sobre a ao ou dirige splicas aos deuses. Dentre os episdios encontra-se o agon, ou combate verbal em que duas personagens entram em conflito, contrapondo seus pontos de vista e argumentando at que um deles ceda. Por fim, h o xodo, a parte final da pea, marcada pelo desenlace da trama e pela sada das personagens de cena alis, esse o significado da palavra em grego.

    Consideradas as convenes do teatro grego, nem tudo poderia ser mos-trado em cena. Mortes no palco, cenas que requerem uma multido, milagres, no eram encenveis. Tambm no eram factveis mudanas bruscas de cen-rio. H, no entanto, uma personagem, responsvel por trazer aos olhos dos espectadores aquilo que eles no podem testemunhar diretamente: o mensa-geiro. Ele uma espcie de espectador privilegiado, que relata plateia o que viu dentro das casas, no campo de batalha, o que se passa no acampamento inimigo ou na cidade vizinha. Na Medeia, o mensageiro surge para narrar o fim trgico de Creonte e sua filha, envenenados pelos presentes que a herona

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    enviou por meio de seus filhos. Essa informao crucial para o desenrolar da trama, j que sela o destino das crianas para no morrerem nas mos dos cidados de Corinto, sedentos de vingana, seriam imoladas pela prpria me, uma forma de atingir tambm o pai, Jaso. O mensageiro um narrador infiltrado dentro do drama e sua palavra sempre digna de f.

    A emoo est no cerne da experincia dramtica dos gregos. Plato e Aristteles discorreram sobre o papel das emoes no teatro, especialmente no que toca tragdia. Para Plato, buscar deliberadamente comover os es-pectadores, como fazem os tragedigrafos, nocivo, pois enfraquece a parte racional da alma, debilitando o cidado. Da, entre outras razes, os poetas trgicos estarem excludos da cidade ideal juntamente com os picos. J Aris-tteles, embora tenha sido discpulo de Plato, compreende diversamente a questo. Para ele, o prazer da tragdia est em suscitar e purgar certas emoes, processo que ele denomina catarse. No caso da tragdia, essas emoes seriam o terror e a piedade, o que exigiria uma identificao entre o espectador e o heri trgico, de modo que aquele pudesse se colocar no lugar do ltimo e temesse passar pelo que ele passa, apiedando-se dele, que sofre sem merecer. Desse processo, que Aristteles no se digna a explicar na Potica, derivaria o prazer que sentimos ao contemplar obras de natureza artstica.

    Os gregos consideravam que Tspis, poeta semilendrio, teria dado incio tragdia ao ter a ideia de destacar um elemento do coro para com ele contra-cenar, criando assim o primeiro ator; mas foi squilo o primeiro poeta trgico poupado pela ao do tempo. Embora vrios poetas tenham participado dos concursos dramticos ao longo do sculo V, apenas quatro tiveram peas con-servadas na ntegra. So eles os tragedigrafos squilo, Sfocles e Eurpides, e o comedigrafo Aristfanes. Eles esto reunidos nesse volume, representados atravs de suas obras mais impactantes, respectivamente: Prometeu acorrentado, dipo rei, Medeia e As nuvens.

    AdRiane da Silva DuaRte

    Adriane da Silva Duarte professora de lngua e literatura grega na USP, onde defendeu mestrado e doutorado sobre a comdia grega. autora, entre outros, das tradues das comdias As aves, Lisstrata e As tesmoforiantes, de Aristfanes, e dos livros O dono da voz e a voz do dono: A parbase na comdia de Aristfanes e Cenas de reconhecimento na poesia grega, alm do infantil O nascimento de Zeus e outros mitos gregos.

  • prometeu acorrentado

    squilo

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    ProMeTeu AcorrenTAdo

    poca da ao: tempo mticoLocal: regio desolada na CtiaPrimeira representao: incerta

    Personagens prometeu, um tit filho de Urano (o Cu) e Gaia (a Terra), ou de Urano e Tmis hefesto, deus do fogopoderfora

    divindades auxiliares de Zeus

    coro das Oceanides, filhas de Oceanooceano, deus dos mares que circundam a terraio, filha do rei naco, amada por Zeus e perseguida por Herahermes, deus arauto dos deuses

    Cenrio Ao fundo, um macio rochoso. Entram podeR e foRa arrastando pRome teu, seguidos por hefesto, mancando e levando seus instrumentos de ferreiro.

  • 28

    Prlogo, Cena 1 [O prlogo se inicia com um dilogo, atravs do qual se expem as

    diretrizes da ao. Hefesto, acompanhado por Poder e Fora, entra em cena conduzindo Prometeu, a quem deve acorrentar aos penhascos por ordem de Zeus. A punio decorre de Prometeu ter roubado o fogo, prerrogativa

    divina, para beneciar os homens. O cenrio a regio desabitada da Ctia. Hefesto demonstra piedade por Prometeu, mas, exortado por

    Poder e temendo contrariar Zeus, procede ao acorrentamento do deus. Cumprida a tarefa, Hefesto, Poder e Fora saem de cena. (v.1-114)]

    poder Aqui estamos ns, neste lugar remoto,marchando num deserto pelo cho da Ctia1onde nenhuma criatura humana vive.Pensa somente, Hefesto, nas ordens de Zeus,

    5 teu pai, e em acorrentar nestas montanhas de inacessveis pncaros um criminosocom cadeias indestrutveis de ao puro.Ele roubou teu privilgio, o fogo rubrode onde nasceram todas as artes humanas,

    10 para presente-lo aos mortais indefesos. hora de pagar aos deuses por seu crimee de aprender a resignar-se humildementeao mando soberano de Zeus poderoso,deixando de querer ser benfeitor dos homens.

    1. Regio da Eursia, em grande parte desabitada, entre o mar Negro (Ponto Euxino) e o mar de Azov (Palos Metis), onde hoje se encontram a Rssia, a Ucrnia e a Gergia.

  • 29

    hefesto15 Aqui findou, Poder e Fora, esta misso

    atribuda a vs por Zeus; j a cumpristese nada mais agora vos retm aqui.Quanto a mim mesmo, sinto que me falta o nimopara prender, usando a violncia, um deus,

    20 um imortal e, mais ainda, meu irmo, neste cume batido pelas tempestades.De minha parte, devo encher-me de coragempara a misso, pois negligenciar as ordens

    de um pai falta cuja punio dura.

    Dirigindo-se a PROMETEU.

    25 s muito audaz em todos os teus pensamentos, filho da sbia Tmis,2 e contrariandoas minhas intenes e as tuas vou pregar-tenesta isolada rocha, longe dos caminhos,com elos inflexveis de ao indestrutvel.

    30 Aqui no poders ouvir a voz dos homensnem ver a imagem deles e, sempre queimadopelo fogo inclemente do sol flamejante,ters a flor da pele escura e ressecada;por toda a eternidade vers com alvio

    35 a noite recobrindo a esplendorosa luzcom seu imenso manto repleto de estrelas,e por seu turno o sol evaporar na aurorao orvalho glido, sem que a pungente dorde um mal perenemente vinculado a ti

    40 descuide-se de corroer a tua carne,pois teu libertador ainda no nasceu.Eis tua recompensa por haver queridoagir como se fosses benfeitor dos homens.Deus descuidoso do rancor dos outros deuses,

    45 quiseste transgredir um direito sagrado dando aos mortais as prerrogativas divinas;

    2. Filha de Urano e Gaia, uma das Titanides, Tmis a deusa identificada com a Justia e com a instituio dos orculos. Desposada por Zeus, com ele gerou as Horas e as Moiras, entre outras divindades. Apenas squilo lhe atribui a maternidade de Prometeu, o que contribui para elevar o estatuto deste que ousa se contrapor ao maior dos deuses do panteo grego, dando credibilidade s suas previses sobre a queda de Zeus.

  • 30

    e como recompensa permanecersnuma viglia dolorosa, sempre em p,sem conseguir dormir nem dobrar os joelhos.

    50 Ters tempo bastante aqui para externarteus gemidos sem fim e vs lamentaes; sempre duro o corao dos novos reis.

    poderAgora ajamos sem demora e sem queixumes.No abominas o deus amaldioado

    55 entre todos os deuses, que ousou entregarteus privilgios aos efmeros mortais?

    hefestoSo fortes, muito fortes, os laos de sangue,principalmente quando juntam-se afeio.

    poderConcordo, mas menos temerrio, Hefesto,

    60 deixar de obedecer s ordens de teu pai?

    hefestoTua ousadia iguala a tua crueldade!

    poderNossas lamentaes no podero salv-lo;no te fatigues gemendo por coisa alguma.

    hefestoNossa misso realmente detestvel!

    poder65 intil maldiz-la. Com toda a franqueza,

    o teu ofcio no causa destes males.

  • 31

    hefestoAh! Se o cu permitisse, de qualquer maneira,que esta misso coubesse a outra divindade!

    poderTodos temos a sorte predeterminada;

    70 a nica exceo Zeus, o rei dos deuses.Somente ele livre entre imortais e homens.

    hefestoEu mesmo vejo e nada tenho a ponderar.

    poderEnto apressa-te a crav-lo no rochedo.Que Zeus no veja a tua hesitao aqui!

    hefesto75 Ele j pode ver-me com cravos nas mos.

    poderPe a corrente nos pulsos deste rebelde;depois usa o martelo e prende-o ao rochedo,malhando logo com todas as tuas foras.

    hefestoTudo est sendo feito sem qualquer descaso.

    poder80 Malha mais forte! Aperta! No deve haver folga!

    Ele capaz at de feitos impossveis.

  • 32

    hefestoPrendi um brao; ele no poder solt-lo.

    poderAgora o outro! V se o pregas para sempre!Ele deve ficar sabendo muito bem

    85 que sua astcia no se sobrepe a Zeus!

    hefestoS ele pode censurar a minha obra.

    poderSem perder tempo, enfia resolutamenteno meio de seu peito, como te compete,o dente muito duro deste cravo de ao!

    hefesto90 Sofro em surdina por teus males, Prometeu!

    poderHesitas e at gemes por um inimigode Zeus. Dou-te um conselho: deves ter cuidadopara no te queixares mais e por ti mesmo!

    hefestoVs o que os olhos nunca deveriam ver!

    poder95 Ele est tendo a sorte merecida. Vamos!

    Lana o cinto de bronze em volta de seus flancos!

    hefestoSou constrangido a isto; no me ds mais ordens.

  • 33

    poderTenho de dar-te outras. No ters repouso.Abaixa-te e ata fora os tornozelos dele!

    hefesto100 Pronto! Est feito e sem maior esforo meu.

    poderAgora aperta ainda mais para que a peiapenetre em sua carne. O avaliadordo cumprimento de nossa misso duro.

    hefestoTuas palavras correspondem a teu fsico.

    poder105 S fraco, se te agrada, mas no me censures

    se te pareo impiedoso e exigente.

    hefestoPartamos, pois seus membros esto todos presos.

    poderDirigindo-se a PROMETEU.

    S insolente agora tua maneirae rouba aos deuses todos os seus privilgios

    110 para entreg-los s criaturas efmeras! Que alvio podero trazer-te os frgeis homens?Chamando-te de Prometeu3 os deuses erram;

    3. Prometeu significa o que sabe (da raiz math, aprender, saber) antes (pro). Na tentativa de manter o trocadilho existente no original, Mrio da Gama Kury aproximou Prometeu do verbo prometer. No texto grego o jogo de palavras se faz com o adjetivo prometheus, previdente.

  • 34

    vai procurar em outra parte quem prometalivrar-te desta obra bem executada!

    Saem o PODER, a FORA e HEFESTO.

    Prlogo, Cena 2 [Monlogo de Prometeu, que convoca os deuses a testemunhar

    o tratamento indigno que ele, deus, recebe da parte de um outro deus, Zeus. Reconhece que por ter o dom da previso nada do que se passa

    surpresa para ele, e que sabia ser esse o preo a pagar pelo favor prestado aos homens. Pressente a chegada do Coro, que se aproxima. (v.115-163)]

    prometeuAgitado.

    115 ter divino, ventos de asas lpidas,guas de tantos rios, riso imensodas vagas mltiplas dos mares, Terra,me de todos os seres, e tu, Solonividente olho, eu vos invoco!

    120 Notai os males que eu, um deus, suporto, mandados contra mim por outros deuses!Vede as injrias que hoje me aniquilame me faro sofrer de agora em diantedurante longos, incontveis dias!

    125 Eis os laos de infmia, imaginadospara prender-me pelo novo reidos Bem-aventurados! Ai de mim!Os sofrimentos que me esmagam hojee os muitos ainda por vir constrangem-me

    130 a soluar. Depois das provaesverei brilhar enfim a liberdade?

    Reanimado, depois de alguns momentos de silncio.

    Mas, que digo? No sei antecipadamentetodo o futuro? Dor nenhuma, ou desventuracair sobre mim sem que eu tenha previsto.

  • 35

    135 Temos de suportar com o corao impvidoa sorte que nos imposta e admitira impossibilidade de fazermos frente fora irresistvel da fatalidade.Subjugam-me estes males todos ai de mim!

    140 por ter feito um favor a todos os mortais. Em certa ocasio apanhei e guardeina cavidade de uma rvore a sementedo fogo roubado por mim para entregar estirpe humana, a fim de servir-lhe de mestre

    145 das artes numerosas, dos meios capazesde faz-la chegar a elevados fins.Agora, acorrentado sob o cu aberto,pago a penalidade pela afronta a Zeus!

    Novamente agitado.

    Ah! Que rudo, que perfume evola-se150 de algum lugar oculto e chega a mim?

    Vem ele de algum deus, ou de mortais,ou de qualquer mistura de um e outros?Vm a este rochedo, fim do mundo,contemplar os meus males? Ou ento,

    155 que desejam deste infeliz, de mim? Vedes um deus desventurado, presopor cravos de ao que o imobilizam,detestado por Zeus, seu inimigo,por haver amado demais os homens!

    Atento.

    160 Ouo perto de mim cantos de pssaros. O claro ter responde silvandoa movimentos bruscos de asas rpidas!Qualquer rudo estranho agora assusta-me.

    Chega um carro alado a um rochedo prximo quele onde PROMETEU est acorrentado, trazendo as Oceanides, que formam o CORO.