traquina, nelson - cap 2 - a trajetória histórica do jornalismo na democracia

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TRAQUINA, Nelson - Cap 2 - A Trajetória Histórica Do Jornalismo Na Democracia

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  • Captulo 2

    A trajetria histrica do jornalismo na democracia

    filsofo e poltico romano Ccero escreveu h mais de dois mil anos estas palavras sbias: ''Desconhecer a histria permanecer criana para sempre''. Uma viso mais

    global da histria do jornalismo na democracia aponta para trs vertentes fundamentais do seu desenvolvimento: 1) a sua ex-panso, que comeou no sculo XIX com a expanso da impren-sa, e explodiu no sculo XX com a expanso de novos meios de comunicao social, como o rdio e a televiso, e abre novas fronteiras com o jornalismo on-line4 ; 2) a sua comercializao, que teve verdadeiramente incio no sculo XIX com a emergn-cia de uma nova mercadoria, a informao,. ou melhor dito, a notcia; 3) concomitantemente, o plo econmico do campo jornalstico est em face da emergncia do plo intelectual com a profissionalizao dos jornalistas e uma conseqente defini-o das notcias em funo de valores e normas que apontam para o papel social da informao numa democracia.

    4 ,lqm Portugal, jornalismo-em-linha. (NR).

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  • A expanso da imprensa

    O jornalismo que conhecemos hoje nas sociedades de-mocrticas tem as suas razes no sculo XIX. Foi durante o s-culo XIX que se verificou o desenvolvimento do primeiro mass media, a imprensa. A vertiginosa expanso dos jornais no sculo XIX permitiu a criao de novos empregos neles; um nmero crescente de pessoas dedica-se integralmente a uma atividade que, durante as dcadas do sculo XIX, ganhou um novo objeti-vo - fornecer inf armao e no propaganda. Este novo paradig-ma ser a luz que viu nascer valores que ainda hoje so identi-ficados com o jornalismo: a notcia, a procura da verdade, a inde-pendncia, a objetividade, e uma noo de servio ao pblico -uma constelao de idias que d forma a uma nova viso do ''plo intelectual'' do campo jornalstico.

    Concomitantemente, as crescentes tiragens dos jornais correspondem crescente comercializao da imprensa durante 0 sculo XIX. Embora houvesse pessoas que, por exemplo, fize-ram negcio com a venda de jornais durante a revoluo france-sa no fim do sculo XVIII, os jornais eram sobretudo armas na luta poltica, estreitamente identificados com causas polticas. Durante o sculo XIX, sobretudo com a criao de um novo jornalismo - a chamada penny press - os jornais so encarados como um negcio que P.ode render lucros, apontando com obje-tivo fundamental o aumento das tiragens. Com o objetivo de fornecer informao e no propaganda, os jornais oferecem um novo produto - as notcias, baseadas nos "fatos" e no nas "opi-

    . ,.., ,, nioes .

    Assim, no sculo XIX, verificamos a emergncia de um novo paradigma - informao, no propaganda - que partilha-do entre os membros da sociedade e os jornalistas; a consti-tuio de um novo grupo social - os jornalistas - que reivindica

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    um monoplio do saber - o que notcia; e a comercializ~t o da imprensa - a informao como mercadoria, visvel cc>111 o surgimento de uma imprensa mais sensacionalista nos fins do sculo, aquilo que se chamou o ''jornalismo amarelo'''i nos Estados Unidos. Numa histria universal do jornalism(), cada vez mais visvel na era da globalizao, dois processos fundamentais marcam a evoluo da atividade jornalstica: 1) a sua comercializao e 2) a profissionalizao dos seus tra-balhadores.

    Portanto, o surgimento do jornalismo enquanto atividade remunerada est ligado emergncia dum dispositivo tecno-lgico, emergncia do primeiro mass media, a imprensa. Pode-mos verificar a expanso vertiginosa da imprensa com dados estatsticos sobre o aumento das tiragens e o aumento do nme-ro de jornais na Frana ao longo do sculo XIX. O nmero de jornais franceses aumentou de 49 em 1830, para 73 em 1867, para 220 em 1881, e 322 na vspera da Primeira Guerra Mun-dial, em 1914. As tiragens dos jornais tambm sofreram um au-mento notvel durante o sculo: 34.000 em 1815, 1.000.000 em 1867, 2.500.000 em 1880, e 9.500.000 em 1914. Nos Estados Unidos, o nmero de jornais publicados a nvel nacional dupli-cou entre 1830 e 1840. Enquanto a populao aumentou 33 por cento, a circulao dos jornais aumentou 187 por cento (Schiller, 1979:46).

    Vrios fatores contriburam para fazer do sculo XIX a ''poca de ouro'' da imprensa: 1) a evoluo do sistema econ-mico; 2) os avanos tecnolgicos; 3) fatores sociais; e 4) a evo-

    . luo do sistema poltico no reconhecimento da liberdade n rumo democracia. (O'Boyle, 1968).

    Segundo Leonor O'Boyle (1968:290-1 ), o sistema ecot1

  • que um certo tipo de imprensa s pde emergir num certo est-gio da sociedade industrial. O desenvolvimento da imprensa est relacionado com a industrializao da sociedade e com o desen-volvimento duma nova forma de financiamento, a publicidade. O'Boyle (1968:290-1) escreve: '' ... s uma sociedade economicamente avanada podia produzir uma imprensa que se autofinanciasse com-pletamente a partir das vendas a um pblico leitor de massas e de anncios pagos. Sem tal base econmica a imprensa ou no subsistia ou tinha que se apoiar em subsdios polticos''. O'Boyle acrescen-ta: ''Da mesma forma} o jornalismo como ocupao integral, com os seus prprios padres de desempenho) e integridade moral, e com um grau mnimo de estatuto social} s poderia aparecer quando a im-prensa se transformasse numa empresa de negcios lucrativa''.

    O jornalismo transformou-se num negcio com um nme-ro crescente de proprietrios que comearam a publicar jornais com o intuito de ter lucros e o objetivo central seria a expanso da circulao. A emergncia do jornalismo com os seus prprios ''padres de performance e integridade moral'' tornou-se poss-vel com a crescente independncia econmica dos jornais em relao aos subsdios polticos, mtodo dominante de financia-mento da imprensa no incio do sculo XIX. As novas formas de financiamento da imprensa, as receitas da publicidade e dos cres-centes rendimentos das vendas dos jornais, permitiram a despolitizao da imprensa, passo fundamental na instalao do novo paradigma do jornalismo: o jornalismo como inf.ormao e no como propaganda, isto , um jornalismo que privilegia os fatos e no a opinio. Com as novas formas de financiamento, a imprensa conquista uma maior independncia em relao aos partidos polticos, principal fonte de receita dos jornais ainda no incio do sculo XIX.

    Em finais desse mesmo sculo XIX, o jornal tornou-se cada vez mais importante como veculo para a publicidade, princi-

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    palmente a partir do momento em que a publicidade em si se tornou mais central numa economia em expanso . . A partir dos anos 1880, os armazns, em conjunto com os medicamentos, eram a base de sustento das colunas de publicidade nos jornais. Os pequenos anncios ganharam importncia. Produtos de ''mar-ca'', promovidos a nvel nacional, como sabonetes, fermentos e outros, comearam a aparecer nas colunas dos jornais. A sua circulao dos jornais. O nmero de pessoas empregadas na in-dstria da produo das notcias aumentou tambm.

    Mas o desenvolvimento da publicidade ocorreu em ritmos diferentes. Segundo Chalaby (1996:321), a publicidade estava mais bem instituda .nos Estados Unidos e no Reino Unido do que na Frana no incio do sculo XX; os industriais franceses eram mais relutantes e os jornais franceses vendiam muito me-nos espao publicitrio. Na Frana, as receitas publicitrias para um dos maiores dirios, Le Petit Parisien (o jornal de maior xito durante a Terceira Repblica francesa), representavam apenas 13.1 por cento do total de receitas entre 1879 e 1914. A exigi-dade das receitas de publicidade, segundo Chalaby (1996), le-vou a prticas de corrupo na imprensa francesa durante a Ter-ceira Repblica, com a entrada de um a dois milhes de francos por ano provenientes do governo francs nos jornais.

    Entre 1867 e 1900, a soma total dos investimentos publi-citrios nos Estados Unidos subiu de 50 mil~es de dlares para 542 milhes (Solomon, 1994:5). No Reino Unido, a publicidade representava em 1910 um negcio de 15 milhes de libras (Chalaby, 1997:631). Segundo um historiador contemporneo, o jornal The Times obtinha em 1870 em publicidade o dobro da receita obtida em vendas (Chalaby, 1997:631).

    Mas um mass media, um ''dispositivo tecnolgico'' que che-ga a um grande nmero de pessoas, s foi possvel com novas invenes que tambm tiveram um impacto direto na ideologi~t

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  • da profisso emergente e no estreitamento da relao entre o jornalismo e o fator tempo.

    Houve grandes avanos tecnolgicos que tornaram poss-vel conseguir um produto de massas, em particular no domnio da tcnica tipogrfica. Na poca de Gutemberg, em meados do sculo XV, a tecnologia existente permitia a impresso de 50 pginas/hora. Com a inveno de I

  • sculo XX como Londres, Paris e Nova Iorque. Cidades como estas crescem durante o sculo XIX e oferecem um pblico fcil de atingir com o novo produto de consumo - o jornal. O acesso torna-se ainda mais fcil com a instituio de novas formas de venda, como os ardinas, cada vez mais comuns ao longo do s-culo XIX.

    De novo, encontramos diferenas importantes no proces-so de urbanizao: no ano de 1890, a populao urbana nos Es-tados Unidos e no Reino Unido era o dobro da populao urba-na da Frana. Nesse ano, 20 milhes de pessoas viviam nas ci-dades norte-americanas (28 por cento da populao), e 21 mi-lhes de britnicos habitavam nas cidades (62 por cento da po-pulao), enquanto apenas 10 milhes de franceses viviam em meio urbano (26 por cento da populao) (Chalaby 1997:632). Entre 1890 e 1930, a populao total nas sete maiores cidades cresceu quase 300 por cento nos Estados Unidos, 150 por cento no Reino Unido e 120 por cento na Frana (Chalaby, 1997:632).

    No s os novos lucros do capitalismo, a nova e poderosa maquinaria, e os novos ansiosos leitores em busca de notcias diversificadas alimentaram a expanso da imprensa. Outro in-grediente fundamental, mesmo essencial para o crescimento de um campo jornalstico cada vez mais autnomo e credvel, a liberdade. A expanso da imprensa foi alimentada pela crescen-te conquista de direitos _fundamentais, como a liberdade, cerne de lutas polticas seculares que incendiaram revoltas e revolu-es, valor central da emergncia de um novo conceito de go-verno ~ a democracia. Como a histria dos meios de comunica-o social em Portugal demonstra claramente, a imprensa cres-ceu no sculo XIX em cada momento em que houve mais liber-dade.

    Com as liberdades essenciais, incluindo a liberdade de im-prensa, garantidas na constituio, a imprensa norte-americana

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    explodiu ao longo do sculo XIX, em particular com a chamada penny press, que iremos ver mais adiante. Seguindo o novo paradigma no jornalismo (o jornal de informao), a imprensa norte-americana sofre igualmente ao longo deste sculo um pro-cesso de despolitizao. Segundo o estudo da historiadora nor-te-americana Patrcia Dooley (1997:82), a percentagem de jor-nais abertamente partidrios caiu de 43 por cento no incio do sculo para 16 por cento no seu eplogo.

    No Reino Unido, nos anos de 1830, havia 60 reprteres a fazer a cobertura do Parlamento. Na sesso de 1870, o jornal The Times por si s tinha 19 jornalistas a seguir os debates. Em contraste, na Frana havia ainda nos anos 70 restries aos jor-nalistas que faziam a cobertura do Parlamento: s podiam, itz extenso, publicar as declaraes dos debates (Chalaby, 1996:308). A represso imprensa francesa era intensa at 1877. Uma nova lei de imprensa, de 1881, iria revogar mais de 300 artigos de 42 estatutos, incluindo artigos de censura, de restries adminis-trativas e de restries econmicas. ''Ns no proclamamos a li-berdade} fazemos melhor} realizamo-la'', declarou um dos deputa-dos franceses, autores da nova lei de imprensa francesa (citado em Derlporte, 1999:19).

    Sem entraves, a imprensa francesa iria tambm explodir. J entre o perodo 1869-1880, tinha aumentado as suas tiragens na ordem dos 46 por cento; entre 1880 e 1891, a expanso in-tensificou-se com um crescimento da ordem de 52 por cento. Seguindo o modelo norte-americano, verificou-se igualmente uma despolitiza? da imprensa francesa, com uma forte quebra nas tiragens dos jornais partidrios como La Petite Rpublique. A onda do penny press, do jornalismo informativo, invadiu a im-prensa francesa, sobretudo no fim do sculo XIX, com o dom-nio dos chamados quatro grandes, Le Petit Parisien, Le Journal, Le Petit J ournal e Le Matin, que controlam 84 por cento das

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  • tiragens da imprensa da Frana em 1912 (Delporte, 1999:44). Na ltima dcada do sculo XIX, a forte concorrncia entre os jornais provocou enormes campanhas de auto-promoo, com a oferta de brindes, a organizao de acontecimentos desportivos (corridas de bicicletas em 1884 e corridas de automveis em 1899), e concursos. Dois jornais, Le Matine Le ]ournal, criaram um acontecimento quando organizaram uma competio entre um reprter de cada jornal para ver quem dava a volta ao mun-do primeiro, publicando todos os dias um relato da viagem do reprter. O jornalista do Le Matin levou 63 dias e 13 horas de viagem para vencer o concorrente do Le Journal (Delporte, 1999:70).

    De novo, no Reino Unido, as chamada-s ''taxas sobre o sa-ber'' foram reduzidas em 1836 e eliminadas entre 1855 e 1861 (Chalaby, 1996:318). Assim, tal como os outros fatores, o ritmo e a intensidade da mudana poltica divergem nas especificidades de cada pas. Mas a relao entre democracia e jornalismo fun-damentalmente uma relao simbitica em que a liberdade se encontra como estrela brilhante de toda uma constelao teri-ca que fornece ao novo jornalismo emergente uma legitimidade para a atividade/ negcio em expanso e uma identidade para os seus profissionais. Assim, o campo jornalstico moderno, com os seus dois plos (Bourdieu), o ''econmico'' e o ''intelectual'' (onde as notcias so vistas como informao e no propaganda partidria) constitui-se nas sociedades democrticas numa fun-dao onde o jornalismo partilha como herana toda uma hist-ria contra a censura e em prol da liberdade, uma herana que inclui alguns dos nomes mais sonantes da histria da humanida-de, como Milton, Rousseau e Voltaire.

    A luta pela liberdade

    A afirmao da nova legitimidade jornalstica ocorre pe-rante o antagonismo do poder poltico, inserido num processo

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    secular em luta pela liberdade, e, subseqentemente, pela con-quista de uma nova forma de governo: a democracia. O poder absoluto posto em causa e existe a procura de caminhos alter-nativos, perante dvidas sobre os benefcios e os custos de um sistema de poder que tem como base a ''opinio pblica'', termo utilizado pela primeira vez em 17 44, embora sem um sentido poltico.

    A luta pela liberdade comea com a luta contra a censura de um poder poltico absoluto, sob forma de monarquia na es-magadora maioria dos pases. Quando John Milton publica o seu manifesto contra a censura, intitulado Areopagtica, em meados do sculo XVII, j tinha havido mudanas importantes no Oci-dente desde a inveno de Gutemberg no sculo XV. A Refor-ma Protestante ps em causa a autoridade da Igreja, que teima-va em insistir, como criao divina, que a Terra era o centro do universo. Durante os sculos XVII e XVIII uma nova classe a

    ' '

    burguesia, iria denegrir as estruturas polticas da socie~ade au-tocrtica e o seu monoplio do poder poltico, enquanto come-a a emergir, na terminologia de Jurgen Habermas (1989), .um ''espao pblico'' com os cafs em cidades como Londres e Pa-ris, num total de mais de 2000 cafs na capital inglesa no incio do sculo XVIII.

    Na obscuridade do poder absoluto, Milton escreve uma crtica feroz contra a existncia da censura. Milton argumenta que s a apresentao de todos os lados de uma questo poder permitir a sua compreenso. Para Milton, entre o que a verda-de e o que falso, a verdade ir sair triunfante. Na Inglaterra, a censura seria abolida em 1695, e a completa eliminao de con-trole da reportagem parlamentar, em 1771. Na Frana, a luta contra a censura seria um dos objetivos da revoluo de 1789, havendo, no entanto, fortes ataques e mesmo supresso das li-berdades fundamentais ao longo do sculo XIX.

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  • O filsofo ingls John Locke defendeu na sua obra princi-pal, Two Treatises on Government, publicada em 1690, o direito da revoluo. Segundo Locke, as pessoas tm o direito, mesmo o dever, de revoltar-se contra os lderes tirnicos. Locke avana com a idia do contrato em que os governantes atuariam com base no consentimento dos governados. O Homem dava socie-dade civil a autoridade de limitar as suas liberdades no interesse do bem comum, atravs da maioria (entendido por Locke como a maioria dos ''homens com propriedade'').

    No sculo XVIII, a elaborao de uma nova teoria de go-verno recebe as contribuies de outros escritores. Charles-Louis de Secondet, o Baro de Montesquieu, publica o livro, The Spirit of Laws, em 1748, onde exprime meio sculo antes as idias que constituiro a base para um documento chave da Revolu-o francesa, a Declarao dos Direitos do Homem. Para Mon-tesquieu, a melhor forma de governar era a que permitia a cada cidado prosseguir a riqueza e o poder com o mnimo de cons-trangimento. Para Montesquieu, a liberdade de expresso era fun-damental. A Repblica seria, para o autor, a melhor forma de governo. Boas leis podiam garantir o triunfo da justia e da li-berdade, mas era possvel a degenerao, ou seja, a transforma-o da repblica na ditadura da multido. Assim, Montesquieu defendeu a importncia de dois fatores: a educao e a diviso do poder. Escreve Montesquieu: ''Se no se quiser abusar do po-der) as coisas devem ser dispoJtas de modo a que o poder controle o poder''.

    Outra contribuio veio de Jean-Jacques Rousseau, cujo famoso livro, O Contrato Social, seria publicado em 1762. O li-vro comea com estas palavras: ''O Homem nasceu livre mas est por todo o lado preso com correntes''. O conceito bsico que Rousseau avana o de volont gnrale que representa o ''inte-resse pblico''. Escreve Rousseau: ''Por si mesmo o povo ser sem-

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    'i

    pre bom} mas de modo algum o v sempre por si mesmo. A Vontade Geral tem sempre razo} mas o julgamento que a guia nem sempre est informado ... A informao pblica leva unio da compreenso e da obtage no corpo sociat'. Com Rousseau, o termo ''opinio pblica'' ganha claramente um sentido poltico que seria desen-volvido nos incios do sculo XIX pelos filsofos ingleses, Bentham e Mills.

    Outro contemporneo de Rousseau, Franois-Marie Arouet de Voltaire, avanou trs conceitos fundamentais na sua obra de mais de 50 volumes: 1) o conceito de tolerncia; 2) a autoridade da lei; e 3) a importncia da liberdade de opinio. A sua mais famosa citao reza assim: ''Posso ser contra aquilo que tu dizes} mas bater-me-ei at morte para que o possas dizer'.

    Impulsionada pelas revolues americana (1776) e france-sa (1789), a liberdade torna-se um princpio sagrado. Reza o ar-tigo 11 da Declarao do Homem e do Cidado, aprovada em Agosto de 1789: ''A livre circulao de pensamento e opinio um dos direitos mais preciosos do Homem. Todos os cidados podem por-tanto falar} escrever e publicar livremente) excepto quando forem res-ponsveis pelo abuso dessa liberdade em casos bem determinados por lei''. O Marqus de Mirabeau defendeu a declarao nos Esta-dos Gerais, onde afirmou: ''Que a primeira das vossas leis consa-gre para sempre a liberdade de imprensa. Esta a mais intocve~ a mais incondicional liberdade - sem a qual as outras liberdades nun-ca podero ser asseguradas''.

    O ''Quarto Poder'' e a democracia

    A retrica da liberdade no apagava uma viso muito crti-ca da imprensa que vigorava no incio do sculo XIX, largamen-te associada ligao entre os jornais e a propaganda poltica. Como iremos ver mais adiante, a imprensa era identificada com demagogos, fanticos, ou, simplesmente, escritores de terceira

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  • categoria. A atitude do poder poltico, ainda largamente um po-der autoritrio, era de antagonismo, bem-ilustrado pelo comen-trio do Ministro dos Negcios Estrangeiros do governo alemo, Mitternich, em 1819, sobre a imprensa: ''Todos os governos ale-mes chegaram concluso de que... a imprensa serve um partido antagonista de todos os governos existentes... traz consigo o mal inominvel, ao denegrir toda a autoridade, ao questionar todos os princpios, ao tentar reconstituir todas as verdades.... Estes jornais servem um partido que trabalha imperturbavelmente para a destrui-o de tudo o que existe na Alemanha... no h palavra melhor para indicar a atividade destes jornais que conspirao'' (citado em O'Boyle, 1968:306).

    Leonor O'Boyle escreve que esta atitude dos governos envolvia um certo paradoxo, porque os jornalistas eram temidos como perigosos revolucionrios, mas ao mesmo tempo ''despre-zados como escritores de segunda categoria que no representavam ningum'' (O'Boyle, 1968:306-7).

    Este ''maior poder da nao'' tinha sido designado como o ''Quatro Poder'' anteriormente, no mesmo sculo, por um depu-tado do Parlamento ingls, McCaulay, que um dia apontou para a galeria onde se sentavam os jornalistas e os apelidou o ''Quar-to Poder'' (traduo do termo ingls Fourth Estate) (Boorstein, 1971:124). No ano de 1828, ainda sobre a influncia da Revolu-o Francesa, quando McCaulay se referiu-se ao ''quarto'' tat (o termo francs para estafe) ou ''poder'', tinha como quadro de referncia os trs tats da Revoluo Francesa: o clero, a nobre~ za- e o troisieme tat, que engloba os burgueses e o povo. No novo enquadramento da democracia, com o princpio de ''poder con-trola poder'' (power checks power), a imprensa (os media) seria o ''quarto'' poder em relao aos outros trs: o poder executivo, o legislativo e o judicial.

    O novo designado ''Quarto Poder'', a imprensa, o jornalis-mo, necessitava de uma legitimidade para tranqilizar os receios,

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    justificar o seu lugar crescente na sociedade, e dar cobertura a um negcio rentvel. Encontrou essa legitimidade nos intrpre-tes convincentes e influentes da teoria da opinio pblica. O conceito de opinio pblica foi um produto das filosofias libe-rais de finais do sculo XVII e XVIII e, sobretudo, as teorias democrticas do sculo XIX. Mas particularmente nas idias dos ''utilitaristas ingleses'' do sculo XIX que a imprensa iria encontrar uma srie de argumentos para combater a imagem de uma fora perigosa e revolucionria que alguns polticos queri-am impor. Segundo Bentham, a opinio pblica era uma parte integrante da teoria democrtica do Estado. A opinio pblica era importante como instrumento de controle social. Numa opi-nio pblica esclarecida, podamos encontrar um tribunal que reunia ''toda a sabedoria e toda a justia da nao''. Mas como que esta opinio pblica ia ser alimentada com os ingredientes necessrios para que pudesse tomar as suas decises? Como podia esta opinio pblica exprimir-se?

    Para J eremy Bentham, a resposta era simples: a imprensa. Segundo o historiador George Boyce, a imprensa atuaria como um elo indispensvel entre a opinio pblica e as instituies governantes (Boyce, 1978:21). Os jornais eram vistos como um meio de exprimir as queixas e injustias individuais e como uma forma de assegurar a proteo contra a tirania insensvel. Por-tanto a legitimidade jornalstica est na teoria democrtica e, segundo os seus tericos, assenta claramente numa postura de desconfiana (em relao ao poder) e numa cultura claramente adversaria! entre jornalismo e poder. Assim, James Mill escreve

    ,

    em 1821: ''E to verdadeiro que o descontentamento do povo o nico meio de remover os defeitos dos governos viviosos, que a liber-

    dade de imprensa, o instrumento principal para criar descontenta-mento, , em todos os pases civilizados, visto por todos excepto os adeptos do mau governo como uma segurana indispensvel e a maior salvaguarda dos interesses da humanidade''. Com a legitimidade

    47

  • da teoria democrtica, os jornalistas podiam salientar o seu du-plo papel: como porta-vozes da opinio pblica, dando expres-so s diferentes vozes no interior da sociedade que deveriam ser tidas em conta pelos governos, e como vigilantes do poder poltico que protege os cidados contra os abusos (histricos) dos governantes. Pareciam deste modo ser qualquer coisa como um tipo de autoridade eleito pelo povo para apresentar as ne-cessidades populares ao governo: o radical Johann Wirth pensa-va que os jornalistas deveriam efetivamente ser eleitos e pagos pelo povo (O'Boyle, 1968:306).

    Segundo Leonor O'Boyle, os governos, no entanto, acre-ditavam que os jornalistas fabricavam a opinio pblica em vez de a expressar. Aos seus olhos, os jornalistas eram essencial-mente personagens polticas subversivas, uma mo-cheia de homens sem princpios que agitavam a instabilidade social por motivos baixos de proveito econmico e promoo pessoal.

    Em Frana, Pierre Royer Collard pensava na imprensa como um 'quarto poder' no estado, exercendo algumas das fun-es antes associadas s corporaes do '~ncien Regime''; os jornais verificavam o poder do governo central tal como os par-lamentos o haviam feito antes. Deste ponto de vista, a liberdade de imprensa era no s uma liberdade mas tambm um poder, na medida em que a imprensa equilibrava os outros poderes na sociedade (O'Boyle, 1968:296). Outro escritor, Rn de Chateaubrian, explicou as relaes entre opinio pblica e go-verno, estabelecendo que as cmaras existam para julgar os inte-resses particulares da Frana, enquanto que a nao fazia os seus julgamentos por meio da imprensa. Uma imprensa livre parecia ser uma parte necessria do governo representativo. Sem ela, o governo e o povo no se compreenderiam um ao outro. Escreve Chateubriand: ''Nas discusses que necessariamente se levantam entre o ministrio e as cmaras) como poderia o pblico saber a verdade se

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    os jornais estivessem sob censura do ministrio, isto , sob a influn-cia de uma das partes interessadas? Como poderiam o ministrio e as Cmaras conhecer a opinio pblica, que constitui a vontade ge-ral, se essa opinio no se podia expressar livremente? Eleies li-vres exigem uma imprensa fivre. S a imprensa poderia exercer um controle do governo num perodo no qual as Cmaras no esto em sesso'' (citado em O'Boyle, 1968:296).

    Outro influente filsofo do incio do sculo XIX foi James Mills. Mills defendeu a quase absoluta liberdade de imprensa e preconizava uma papel importante para ela. Deveria ser um ins-t~umento de reforma da sociedade, alis o principal instrumen-to para obrigar o governo a efetuar as reformas sociais. Estipu-lando claramente uma relao "litigiosa" (adversary) entre gover-no e o ''Quarto Poder'', Mills defende que os jornalistas devem tambm ser "agitadores". Escreve Mills em 1831: "O povo, para estar no seu melhor estado, deveria p arecer pronto e impaciente para entrar em ao, sem na realidade entrar. A imprensa) que o nosso

    ,, . .

    unzco instrumento) tem neste momento a efetuar a mais delicada e exaltante funo que algum poder teve at agora que desempenhar neste pas''. Mais adiante, iremos ver como a definio da im-prensa como ''contra--poder'' conquistou um lugar mtico na cul-tura jornalstica.

    Assim, o jornalismo, o designado "Quarto poder", e a de-. . ,,

    mocrac1a const1tu1ram-se em simbiose. Alexis Tocqueville es-creveu que a soberania do povo e a liberdade de imprensa eram coisas absolutamente inseparveis. O terceiro Presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, afirmou: ''No h democra-cia sem liberdade de imprensa". E num artigo publicado no Edinburg Review em 1855, a imprensa descrita na seguinte maneira: "O instrumento por meio do qual a inteligncia agregada da nao os critica e controla a todos. na verdade o 'Quarto Po-der} do Reino''.

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  • O novo jornalismo Por um lado, a teoria democrtica apontava para que o

    jornalismo cumprisse um duplo papel: 1) co~ a li_berdade "ne-gativa", vigiar o poder poltico e proteger os c1dadao~, dos. e~e~,tuais abusos dos governantes; 2) com a liberdade pos1t1va , fornecer aos cidados as informaes necessrias para o desem-penho das suas responsabilidades cvica~, to~nand~ cen~ra_l o conceito de servio pblico como parte da identidade JOrnal1st1ca. Por outro lado, a comercializao da imprensa torna o jornalis-mo mais independente dos laos polticos e transforma a ativi-dade tambm numa indstria onde um novo produto - as not-cias como informao - vendido com o objetivo de conseguir lucros. A nova ideologia pregava que os jornais deveriam servir os leitores e no os polticos, pregava que traziam informao til e interessante aos cidados, em vez de argumentos tenden-ciosos em nome de interesses partidrios, pregava fatos e no

    . . ,...,

    op1n1oes. O novo jornalismo veio na forma da chamada penny press,

    nome que vem do fato de que, perante o preo estabelecid~ ou comum de seis centavos, o preo desta nova imprensa foi reduzido a um centavo. Com o objetivo de aumentar a circula-o, atingindo pessoas que normalmente no comprava~ um jornal por razes econmicas, o baixo pre~o destes jorn~s tor-nava-os acessveis a um . novo leque de leitores. Ha assim um novo conceito de audincia: 1) um pblico mais generalizado e no uma elite educada; 2) um pblico politicamente menos homogneo.

    Com o desenvolvimento da penny press nos anos 1830-1840, exemplificado com o aparecimento de novo ttulos como com The Sun nos Estados Unidos (Nova Iorque) em 1831; Presse na

    Fra~a (Paris) em 1836 e Dirio de Notcias em Portugal (Lis-boa) em 1864, surgiu um novo jornalismo que privilegia infor-

    50

    mao e no propaganda, distino que era vista como pressu-pondo um novo conceito de notcia onde existiria a separao

    ,

    entre fatos e opinies. E precisamente esta idia que a chamada penny press dinamizou, efetuando assim a mudana de um jorna-lismo de opinio para um jornalismo de informao.

    Um dos mais ardentes defensores deste novo jornalismo foram as agncias de notcias, que aparecem nos anos 1830-1860, com a Agence Havas em Frana em 1836, a Associated Press nos Estados Unidos em 184.4, e a Reuters na Inglaterra em 1851. Em 1856, o correspondente em Washington da agncia noticio-sa Associated ]Jress pronunciou o que ia ser a bblia desta nova tradio jornalstica: ''O meu trabalho comunicar fa tos: as mi-nhas instrues no permitem qualquer tzpo de comentrios sobre os fatos) sej am eles quais forem''. A influncia do ''novo jornalismo'' atravessou fronteiras, como iremos ver mais adiante. Em 1889, no prefcio do anurio da imprensa francesa, o autor Edouard Locroy escreveu: ''A informao, a notcia exata ou inexata, toma um lugar cada vez mais considervel nas colunas dos j ornais) e o estilo telegrfico tende cada vez mais a substituir o dos mestres. ~mericanizamo-nos' todos os dias ... A imprensa sofre uma transforma-o completa. O leitor exige a brevidade acima de tudo ... E sobretu-do nada de doutrina! Nada de exposio de princpios''.

    O surgimento deste novo jornalismo no ocorre de forma isolada e divorciada no contexto social e intelectual. Surgiu no sculo XIX, como escreve Todd Gitlin (1979:28), ''um vasto movimento intelectual em direo distanciao cientfica e separa-o cultural dos fatos do valor''. Assim, no sculo XIX, em que o positivismo reinante, que todo o esforo intelectual tanto na cincia como na filosofia como ainda, mais tarde, na sociologia e outras disciplinas, ambiciona atingir a perfeio de um novo invento, invento esse que parecia ser o espelho h muito deseja-do, cujas imagens eram reproduzveis, cuja autoridade era in-contestvel - a mquina fotogrfica. Escreveu Samuel Morse:

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  • ''Eles (os daguerretipos) no podem ser chamados cpias da nature-za, mas sim pedaos da prpria natureza''. Outro escritor da po-ca argumentava que ''a verdade'' da fotografia ''eleva-se alto)

    I'

    acima de toda a linguagem, pintura ou poesia. E a primeira lingua-gem uni versa~ dirigindo-se a todos os que tm imaginao'' (citado em Schiller, 1979:49).

    O realismo fotogrfico tornou-se assim o farol orientador da prtica jornalstica, como podemos verificar num texto escri-to em 1855: ''Porque um reprter deve ser uma mera mquina que repete, apesar de uma orientao editorial. Ele no deve conhecer nenhum dono mas s o seu dever, e esse dever o de fornecer a verda- de exata. A sua profisso superior) e nenhum amor por lugar ou popularidade deve desvi-lo de fornecer a verdade na sua integrida-de. A poltica do jornal tem sido de reportar ipsi verbis''.

    Neste novo jornalismo na era do positivismo, vive-se um culto dos fatos. Como afirmou o que podemos chamar um idelogo deste novo jornalismo: ''O comentrio livre) mas os fa-tos so sagrados'' (citado por Elliott, 1978: 188). Podemos encon-trar uma claro sinal deste culto dos fatos na literatura - o surgimento de um novo gnero literrio e assim o aparecimento de uma nova personagem na literatura. ''Elementar'', diria Sherlock Holmes ao Doutor Watson, '' o detetive."

    No jornalismo apareceu tambm, de uma forma crescente, uma nova figura que iria ocupar um lugar mtico e mesmo ro-mntico na profisso emergente: o reprter. E era para esse mundo dos fatos que esta nova figura do campo jornalstico - o reprter - fazia um esforo supremo: a respiga e a montagem dos fatos. E este esforo tentava transformar o jornalismo numa mquina fotogrfica da realidade, ou seja, na sua ideologia pro-

    . fissional, o espelho da realidade. A caa hbil dos fatos dava ao reprter a categoria comparvel do cientista, do explorador e do historiador. Posteriormente, iria emergir uma nova forma

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    jornalstica baseada num trabalho exaustivo dos fatos: o jorna-lismo de investigao.

    A seguinte citao do sculo XIX traduz bem o sentimen-to dominante da poca: ''O mundo cansou-se de pregadores e ser- . mes. Hoje o mundo pede fatos. Est cansado de fadas e anjos) pede carne e sangue'' . . Duas das palavras-chave eram a palavra ''obser-var'' e a palavra ''lente''. Estas palavras exprimiam bem o senti-mento do quo realistas . notcia do jornal, o artigo de revista, e mesmo o romance, podiam ser, deveriam ser, fotograficamente fiis vida real (Schudson, 1978).

    A obsesso pelos fatos acompanhou uma crescente obses-so com o tem~o e uma maior orientao por parte da imprensa para os acontecimentos. O impacto tecnolgico marcou o jorna-lismo do sculo XIX como iria marcar toda a histria do jorna-lismo ao longo do sculo XX at o presente, apertando cada vez mais a presso das horas-de-fechamento, permitindo a realiza-o de um valor central da cultura jornalstica - o imediatismo. De novas edies dos jornais no mesmo dia quebra da progra-mao televisiva anunciada com boletins, novos avanos tec-nolgicos nas ltimas dcadas do sculo XX tornaram possvel, de. longa distncia, atingir o cmulo do imediatismo - ''a trans-misso direta do acontecimento''.

    Como j tivemos a oportunidade de sublinhar, o advento do telgrafo no sculo XIX ligou o jornalismo mais atualidade e criou diverses e demarcaes adicionais, tornando possvel noticiar de mais stios e, acima de tudo, permitindo ao jornalis-1no operar dentro de um novo tempo: o ''presente instantneo'', como escreveu Anthony Smith. O impacto do telgrafo no jor-nalismo foi significativo porque consolidou tudo o que a pentry press tinha posto em movimento: 1) permitiu que os jornais fun-cionassem em tempo real; 2) ajudou a fomentar a criao de uma rede mais vasta de pessoas empregadas integralmente Il()

    53

  • trabalho de produzir inf armao, nomeadamente as agncias de notcias, que rapidamente alargaram ao nvel internacional a sua cobertura jornalstica, num processo continuado at hoje na globalizao do jornalismo; e 3) introduziu alteraes fundamen-tais na escrita das notcias, nomeadamente a utilizao duma linguagem homogeneizada, rpida, de fatos escassos, numa pa-lavra, telegrfica.

    As notcias tornaram-se mais orientadas para o aconteci-mento, o que no dizer que o anterior jornalismo no noticiava acontecimentos; mas o contedo dominante dos jornais co-meou a concentrar-se em acontecimentos, por oposio a opinies polticas.

    Velhos conceitos do que ''notcia'' Para alm do culto dos fatos, porm, a nova imprensa, li-

    berta do conceito de porta-voz partidria, voltava a oferecer aos leitores uma maior diversidade de informao, contada de uma forma mais sensacionalista. O sensacionalismo foi, quando mui-to, predominante nas publicaes na Europa do sculo XVIII que precederam o jornal. O autor britnico Matthew Engel (1996) descreve que as publicaes na Inglaterra nessa altura desta forma: ''Assuntos carnais e pecados secretos eram o tema dos jornais populares de domingo''. E uma quadra britnica do sculo XIX sobre o jornalis~o reza assim: ''Faz ccegas ao pblico) f-lo . sorrir; quanto mais faz ccegas) mais ganhas; ensina o pblico, nun-ca ser rico; vives como um mendigo, e morres na valeta''.

    O novo jornalismo oferecia uma velha receita das ''not-cias''.

    De novo, lembrando as palavras de Ccero, viajamos ao passado. Desta vez para o momento em que Ccero viveu: a poca Romana. Durante suas longas ausncias de Roma, Ccero rece-bia ''notcias'' sob a forma de cartas do seu amigo Caelius. No

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    :

    .

    podia ir ao quiosque comprar o jornal local porque no havia jornais h 2.000 anos. Numa carta Caelius escreveu a Ccero: ''No aconteceu absolutamente nada de novo a no ser que queiras que as ninharias que se seguem - e tenho a certeza que queres - te . sejam descritas numa carta'' (citado em Stephens, 1988:12). O que segue era uma coleo de ''notcias'' sobre casamentos, di-vrcios e adultrio entre romanas proeminentes. Durante a Ida-de Mdia, uma ''folha volante'' - uma forma pr-industrial do jornal moderno - para o czar russo continha ''curiosas'', defini-das como uma combinao do estranho e do bizarro. No ano da morte de William Shakespeare, em 1616, dos 25 ''livros noticio-sos'' publicados na Inglaterra nesse ano, quase um tero dedi-cado s ''pessoas importantes'', como a Rainha Isabel; um outro tero dedicado aos assassnios, e o ltimo tero a uma variedade de assuntos.

    Assim, preciso estar atento s qualidades mais perma-nentes das notcias. Como iremos sublinhar mais adiante, os padres bsicos do que notcia, como aponta o historiador Mitchell Stephens, revelam enormes semelhanas. Escreve Stephens (1988:34): ''Podemos imaginar um sistema noticioso que desdenhasse o raro em favor do tpico, que ignorasse o proeminente, que dedicasse tanta ateno ao datado quanto ao atua~ ao legal como ao ilegal, paz como guerra) ao bem-estar como calamidade e morte'' .

    Mais liberto do paradigma dos jornais como armas polti-. cas, com a penny press, houve uma maior diversidade de informa-o. Devido ao objetivo de querer mais leitores, houve a neces-sidade de obter uma melhor utilizao econmica do espao do jornal, ainda muito limitado. Era importante assegurar que o espao usasse matria que interessasse s pessoas. Com a maior diversidade nos assuntos abordados, para alm das notcias so-bre a poltica e o estrangeiro, houve espao nos jornais da penny

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  • press para publicar notcias sobre os tribun~s, a polcia, os ac~ntecimentos da rua, os acontecimentos locais. Apareceu tambem, sobretudo. no fim do sculo XIX, uma torrente de jornalismo sensacional.

    Uma nova empresa jornalstica No primeiro jornal norte-americano, que surgiu em 1690,

    0 Diretor prometeu que o jornal iria fornecer notcias regu~armente ... isto , uma vez por ms. O Diretor explicou que o JO~nal poderia aparecer com maior freqncia "se acontecer .~gum excesso de ocorrncias''. O diretor continuou: ''A responsabzlzdade pelo fabrico de notcias era inteiramente de Deus, ou ~o ,f!iabo".

    Com o novo jornalismo, desenvolveu-se a ideia de que competia ao prprio jornal andar atrs da "notcia"; era p_reciso encher 0 jornal com notcias que poderiam interessar os leitores. Para responder procura, a prpria empresa jornalstica teve que crescer, empregando mais pessoas para a produo de not-cias. A.ssim, emergiu uma nova figura no jornalismo - o reprter. O reprter tornou-se uma ocupao integral no jornalismo. , .

    Inicialmente, a figura do reprter tinha pouco prest1g10 dentro da atividade. Uma primeira definio na Inglaterra enca-rava 0 reprter como algum que "v como seu dever tomar n,ot~s do desenvolvimento dos-acontecimentos e qite tem o estranho habito de considerar os fatos como f tos'' (Faucher, citado em Chalaby, 1996:309). Quatro dcadas mais tarde, uma definio no dicio-nrio Larousse ainda continha conotaes negativas, mas, como iremos ver no captulo 3, a atividade geral de jornalismo tinha

    . ~ . .

    pouco prestgio social. No entanto, a figura do reporter iria ga-nhar um lugar de prestgio dentro da profisso emergente e a contratao de mais reprteres seria a tendncia geral ao longo do sculo, com a especializao dos reprteres em situaes cada

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    vez mais diversas, como o correspondente especial, ou o corres-pondente de guerra.

    A emergncia do correspondente especial e, ein particular, a emergncia do correspondente de guerra iria ter lugar na se-gunda metade do sculo XIX. De fato, a Guerra Civil norte-ame-ricana seria um ~os primeiros conflitos de guerra que teria uma cobertura jornalstica extensiva, com o envio de mais de 60 cor-respondentes por parte do N ew York Hera/d e 20 por parte do N 'ew York Times e do New York Tribune (Stephens:1988:248). Entre os jornais britnicos, The Times tinha o departamento de assuntos estrangeiros mais desenvolvido, com quase 20 corres-pondentes estrangeiros em 1857, enviando correspondentes China durante dois anos nessa poca (Chalaby 1996). O jorna-lismo francs foi mais lento no seu desenvolvimento, sendo o jornal Le Temps o primeiro a criar uma pequena equipe de cor-respondentes nos anos 1870.

    Com a expanso da imprensa, as empresas jornalsticas eram empresas cada vez maiores, mais complexas, mais burocrticas, com uma crescente diviso do trabalho. A estrutura da indstria

    . tomou forma a partir de uma diviso do trabalho entre departa-mentos e a emergncia de numerosas posies jornalsticas. Como escreve Michael Schudson (1989), as funes de gesto, editori-ais e de reportagem foram diferenciadas medida que os repr-teres eram empregados para no fazer mais nada a no ser reco-lher e escrever notcias. Mas o grande profissionalismo destes primeiros jornalistas era ainda pequeno (Schudson, 1983:9) . Houve um processo de crescente burocracia. Os departamentos comercial e editorial ficaram mais claramente demarcados. Sur-giu uma nova dependncia da publicidade - construiu-se uma base financeira mais slida ao mudar a venda de publicidade

    para um custo linha e ao organizar um sistema eficiente de distribuio baseado em transportadoras e vendas de rua. O papel

    do tipgrafo divergiu do de diretor, e outros papis ficaram mais

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  • definidos. Na Frana, uma redao de 10 a 20 jornalistas repre-sentava a norma para os jornais franceses na dcada de 1880; no incio do sculo XX, depois de anos de expanso, as redaes dos jornais de grande expanso tinham entre 50 a 100 jornalis-tas. Entre 1880 a 1900, os custos salariais do jornal Le Petit Parisien triplicaram (Delporte, 1999:99).

    Novas prticas e formatos jornalsticos A diviso do trabalho alimentou a emergente profisso de

    jornalista (Schiller, 1979:46). No caso do reprter - uma nova figura que aparece no sculo XIX na paisagem jornalstica - de-senvolveu-se a nova tcnica da estenografia, que transformou o trabalho de reportagem numa espcie de cincia. Segundo Smith, a estenografia foi ''a primeira de uma longa srie de tcnicas jornalsticas que a princpio pareceu prometer ao leitor a recuperao completa de alguma semelhana com a realidade''. Acrescenta: ''Ao apresentar ao leitor a ipsissima verba de um discurso) parecia de incio que a reportagem era capaz de fornecer um verdadeiro espelho da realidade'' (Smith, 1978:161).

    No caso da cobertura da Guerra Civil norte-americana (1861-1865) por parte da imprensa, a presena de reprteres tornou a guerra mais acessvel. Ao acompanhar as tropas duran-te a Guerra Civil, os leitores tiveram acesso a notcias de bata-lhas, do desempenho dos generais, das estratgias militares, da vida nos acampamentos e do comportamento das tropas. E os jornalistas utilizaram novas tcnicas no seu trabalho, como a descrio das testemunhas e dos cenrios. Os reprteres recor-rem cada vez mais tcnica de entrevistar as pessoas na obten-o dos fatos. A tcnica da entrevista foi utilizada pela primeira vez por um dos primeiros jornais da nova penny press, The New York Hera/d, numa reportagem sobre um crime que teve lugar num bordel, com uma entrevista com a proprietria do negcio.

    58

    ;. :;.: ; .

    Depois da Guerra _Civil norte-americana, a utilizao da entre-vista tornou-se vulgar. Outra tcnica nova no trabalh() jornalstico, o recurso a fontes mltiplas, tornou-se uma prtica estabelecida.

    No s as peas noticiosas incluam cada vez mais fontes mltiplas, apresentando uma diversidade de pontos de vista no mesmo artigo, como tambm os jornalistas demonstraram ainda mais agressividade na o_bteno de elementos informativos: a prtica dos correspondentes do Norte durante a Guerra Civil norte-americana, de viajar disfarados no Sul para evitar serem detectados, forneceu um modelo para o ''jornalismo de disfar-ce'' que se desenvolveu nos anos de 1880. (O primeiro artigo deste tipo foi publicado no jornal de Joseph Pulitzer, New York World, com o ttulo ''Inside the Madhouse'', e era uma reporta-gem sobre um hospcio). Outro importante desenvolvimento, de-monstrativo do crescente poder da imprensa, seria o surgimento do jornalismo de investigao, com os chamados jornalistas muckrakers no fim do sculo XIX e incio do sculo XX.

    A utilizao de testemunhas oculares, o desenvolvimento da reportagem, com a utilizao da tcnica da descrio, foram algumas das inovaes no jornalismo no decurso do sculo XIX. Mas houve ta!llbm uma mudana importante no formato das

    notcias durante o sculo. medida que as notcias comearam :a. ser tratadas como um produto, uma forma nascente de ''empa-cotamento'' apareceu. As notcias tornaram-se crescentemente : 1est~ndardizadas ao tomarem a forma a que chamamos hoje ''pi-.ftfuide invertida'', enfatizando o pargrafo de abertura, o lead.

    O estudo de Michael Schudson sobre a cobertura jorna-:lstica do ''Discurso Nao'' do Presidente norte-americano ao .Congresso desde ~ 790 at 1978 demonstra que as formas narra-

    tivas no so um dado adquirido imutvel. No estudo, Schudson demonstra que os aspectos do acontecimento que so seleci

  • nados para fazer parte da notcia tambm so mutveis ao longo do tempo: a incluso ou no de referncias s reaes dos con-gressistas, s reaes na imprensa estrangeira, ao espetculo do encontro; a utilizao ou no de entrevistas; a constituio do prprio Presidente como um ator, como o ator principal; a exis-tncia de interpretaes sobre o contedo da mensagem e de

    ,..,.,

    comparaoes com outras mensagens. As notcias sobre o ''Discurso Nao'' tomaram trs for-

    matos bsicos: o registro estenogrfico do discurso, de 1790 at 1850; uma cronologia e comentrio sobre o acontecimento, de 1850 at 1900; e a reportagem da mensagem, com a utilizao da ''pirmide invertida'', a partir de 1900. O relato estritamente cronolgico do acontecimento deu lugar a um relato em que a utilizao de um lead se tornou uma prtica corrente no jornalis-mo norte-americano, demonstra-tido o crescente sentimento de autoridade por parte dos jornalistas, a decidir quais so os ele-mentos do acontecimento mais i~portante e que merecem figu-rar no lead. A utilizao da pirmide invertida reconheceu impli-citamente o jornalista como ''perito''. Para Schudson (1982), estas mudanas no so um reflexo de mudanas na estrutura poltica, isto , da realidade te.latada; algumas mudanas no sis-tema poltico so posteriores s mudanas operadas nas con-venes narrativas. Assim, j no sculo XX, segundo Schudson, os jornalistas norte-americanos sentiram ter o direito de analisar o significado das mensagens presidenciais, algo que tambm os jornalistas da televiso norte-americana mais tarde afirmariam (aps uma fase inicial ~de dvidas sobre o lugar da informao no novo meio).

    Outra inveno do jornalismo que ocorre no sculo XIX, hoje banal no jornalismo, a entrevista. Apesar da disputa his-trica em torno da data da primeira entrevista (Schudson, 1994:566), a utilizao da entrevista apenas comeou a ser um

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    prtica corrente nos anos 1870. Um exame do jornal Atlanta Constitution sugere que a utilizao de entrevistas era rara no incio dos anos 70, mas tornou-se freqente no fim da dcada. Foi no ano de 1871 que o Papa supostamente deu a sua primeira entrevista ao jornalista Thompson Cooper do jornal New York

    ;-,.

    World (Schudson, 1994:571). No entanto, era rara a utilizao de citaes diretas: uma entrevista com I

  • histria do jornalismo seguiu o padro europeu ocidental de desen-volvimento profissiona~ na medida em que era uma resposta cres-cente alfabetizao) ao aumento de riqueza) e aos desenvolvimentos nas tcnicas de comunicao e imprensa que chegaram com a industri-alizao''. Acrescenta O'Boyle (1968:290): ''Por todo o lado) a figura emergente do jornalista tinha de ser diferenciada de um esta-tuto de pessoas educadas com pretenses de liderana socia~ um gru-po que compreendia o artista, o professor, e o lder poltico. Na Fran- a) na Alemanha e na Inglaterra} contudo, o processo de separao do jornalismo de atividades relacionadas tomoit formas bastante di-ferentes. Enquanto que em cada pas a ocupao combinava as belles lettres, a reportagem, e a agitao poltica) mesmo assim estes ele-mentos seriam combinados em cada caso em propores diferentes; a variao explica-se apenas em termos de dessemelhanas nos siste-mas econmicos e polticos''.

    As importantes lutas na Inglaterra contra a censura, a sua abolio ainda no fim do sculo XVII, mais de cem anos antes da Revoluo Francesa, contriburam para a expanso de uma imprensa que privilegia a informao e no a propaganda polti-ca. A contratao de reprteres para a cobertura do Parlamento britnico era uma prtica corrente na Inglaterra j nos anos 1830, com perto de 60 correspondentes que faziam a cobertura das sesses parlamentares, um nmero que subiu para mais de 100 em 1870 (Chalaby, 1996). A expanso da imprensa veio com o crescimento do que era designado por 'imprensa respeitvel', os grandes jornais dirios como The Times. A imprensa respeitvel era ela prpria um produto da industrializao na Inglaterra. Se-gundo O'Boyle (1 968), a nova classe mdia formou um largo pblico que queria notcias polticas e econmicas, de modo que foi possvel a um jornal dirio atrair leitores e anunciantes sufi-cientes para se auto-sustentarem, sem qualquer dependncia de subsdios polticos.

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    A comercializao tornou possvel o amadureciment

  • entrevista publicada no jornal de Londres, J:>aJ/ Mal/ Gazette, ocorreu em 1883; em 1884, o jornal publicou 134 entrevistas. A reportagem desenvolveu-se em parte devido ao estmulo da pre-sena de jornalistas norte-americanos que foram atrados a Lon-dres para trabalhar nos jornais ingleses, especialmente naqueles que adotaram o ''novo jornalismo'' (Marzolf,1984). Escreve Marzolf: ''Pelos finais do sculo) os europeus tinham exemplos do 'novo jornalismo' nas suas capitais) e o estilo americanizante) com a sua nfase na notcia, no uso extensivo da entrevista) na histria de interesse humano e na reportagem investigativa) tinha tambm influ-enciado e modificado a imprensa poltica e elitista nesses locais''. (1984:529).

    Na Frana, o jornalismo teve maiores dificuldades na afir-mao da sua autonomia, mantendo laos mais estritos com a literatura e a poltica. Segundo Thomas Ferenczi: ''A histria do jornalismo francs mostra com efeito que este apresenta dois fatores recorrentes. O primeiro a sua ligao literatura) o seg~ndo a sua relao com a poltica''. (Ferenczi, 1993:12). Acrescenta Ferenczi: ''A figura do militante e do escritor exerceram uma e outra uma forte influncia .robre o jornalismo francs. Assim que) em fins do sculo XIX) este comea a emergir como fora autnoma) no renega esta dupla origem'' (Ferenczi, 1993:13).

    A avaliao de Ferenczi apoiada por O'Boyle (O'Boyle 1968:291): ''Na Frana) o jornalista foi lento a definir um papel distinto do artista, do poltico e do financeiro) e a perder a reputao de venalidade e inferioridade social. A razo principal para isto era sem dvida o estado relativamente atrasado da economia francesa} que permanecia predominantemente agrria, com uma pequena comu-nidade de comerciantes no muito inclinada para a inovao e mais dominada pela finana que pela indstria''.

    Na Frana, havia pouca publicidade paga, e no havia um pblico leitor de massas. Como conseqncia, os jornais france-ses no conseguiam o tipo de dividendos que teria feito deles

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    um negcio lucrativo ou at auto-suficiente. Permaneciam de-pendentes financeiramente dos vrios partidos polticos, e as-sim altamente politizados e partidrios. Em 1858, o crtico

    '

    Alphonse I

  • No entanto, observa O'Boyle (1968:295), os jornais fran-ceses permaneceram ''politizados e venais a um grau surpreenden-te atravs do .sculo''. Apesar do aparecimento do jornal Presse, o desenvolvimento da chamada penny press iria ter um verdadeiro surto apenas a partir dos anos 1870 e 1880, sobretudo depois da aprovao de uma nova lei de imprensa que consagra o princ-pio da liberdade de imprensa com a instituio da Terceira Re-pblica, em 1881 (Delporte, 1999). Depois da Revoluo Fran-cesa, a sociedade francesa estava marcada pela luta poltica: a revoluo francesa tinha destrudo consensos sobre questes fundamentais. Escreve O'Boyle (1968:295): ''Os anos 1815-1830) e em menor medida 1830-1848) caracterizaram-se por uma imensa absoro e discusso polticas) medida que os franceses ten-tavam pensar a fundo nos problemas bsicos de governo e desenvol-ver instituies satisfatrias. Ao seu nvel mais profundo o seu pro-blema era definir o poder soberano) localizar a autoridade final na sociedade francesa ... A Revoluo tinha destrudo o consenso nos assuntos fundamentais) e agora cada assunto especfico parecia levar inevitavelmente de volta questo dos direitos respectivos do governo e do povo) do monarca e das Cmaras'' (O'Boyle, 1968:295).

    Para o setor mais conservador da sociedade francesa, a liberdade era uma noo perigosa. Para muitos, os jornais conti-n11avam a ser vistos como rgos de partidos polticos, e foi esta ligao aos partidos que os fez parecer to perigosos e o seu controle to importante. O perigo bvio era que as discusses polticas na imprensa fossem conduzidas cada vez mais impulsi-vamente numa tentativa de ganhar leitores, ao fornecer excita-o, novidade e escndalo. Um deputado francs, Baron Pasquier, disse que ''cada poca tem o seu prprio fanatismo. Nas pocas pas-sadas) isto tinha sido poltico no carter) mas na poca presente outro fanatismo que domina - o da opinio poltica. 'Onde vamos encontrar os rgos deste fanatismo? Por quem ele encorajado, su-

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    ~orta~o, exaltado?' Quem pode negar, meus senhores, que pelos ;ornais e peridicos de todos os tzpos?'' (citado em O'Boyle, 1968:297).

    . Como iremos ver no prximo captulo, a imagem dos jor-na~1stas em todos os pases pouco prestigiada. Na Frana, na p~1meira metade do sculo XIX, segundo O'Boyle (1968: 298), a imagem do jornalista era a de um homem que era "ele prprio um fantico poltico ou algum que queria explorar o fanatismo de outros para os seus prprios fins''.

    Para alm das ligaes com a poltica, o jornalismo fran-cs mantm relaes bastante fortes com a literatura. Talvez nenhum outro fato ilustre to bem a ligao entre o jornalismo e a literatura na Frana, do que o primeiro congresso internacio-nal dos jornalistas em Londres, em que a delegao francesa foi conduzida pelo escritor Emile Zola j no fim do sculo XIX, em 1893. A identificao entre jornalismo e literatura foi um fator que explica as fortes resistncias dentro do jornalismo francs s influncias do "novo jornalismo". Mas, para alm do jornal Presse, h claros sinais da influncia do ''novo jornalismo''. Cada vez mais, os fatos assumem um papel importante no contedo dos jornais. O jornalista francs Yves Guyot estava consciente da evoluo do jornalismo e dizia que a imprensa seria no futuro ''um secretariado de informaes e um laboratrio'' (citado em

    Fere~cz~, 1993:175). Para Guyot, o jornalismo devia conquistar o pr1me1ro lugar na procura da informao. ''No h outros mes-tres seno os fatos'', afirmava Guyot. ''A questo ) portanto) ter fatos de primeira qualidade, de uma exatido to grande quanto possvel. O primeiro dever da imprensa fornec-los!'' (citado em Ferenczi, 1993~175).

    Como j foi referido, pode-se ler no prefcio do anurio da imprensa francesa, em 1875: ''A informao) a notcia exata ou inexata) toma um lugar cada vez mais considervel nas colunas dos

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  • jornais) e o estilo telegrfico tende cada vez mais a substituir o dos mestres. !Americanizamo-nos' todos os dias ... A imprensa sofreu uma transformao completa. O leitor exige a brevidade acima de tudo ... E sobretudo nada de doutrina. Nada de exposio de princpios''. J no fim do sculo XIX, em 1898, o jornalista Eugene Melchoir nota no jornal Figaro que ''a curiosidade pblica exige cada vez mais a informao total e rpida) americana'' (citado em Ferenczi, 1993:234). Espalha-se tambm a idia de que os jornais tm por funo revelar fatos escondidos ou informaes incmodas tan-to quanto, seno mais que, exprimir uma opinio, formular um julgamento.

    Outro valor que cada vez mais valorizado no jornalismo francs uma escrita atraente. O jornalista francs Paul Blouet descrevia o jornalismo americano como ''a maior e mais brilhan-te conquista da atividade americana''. Acrescenta Blouet: ''O jor-nalista americano pode ser um homem de letras) mas acima de tudo tem que possuir uma pena brilhante e grfica, e no lhe requisitam os servios se no conseguir escrever um artigo ou um pargrafo enr-gico a partir do acontecimento mais trivial. Deve relatar os fatos1 mas deve ser interessante e legvel) e isto faz do jornal americano uma enorme coleo de contos'' (citado em O'Boyle, 1968: 532).

    O contraste com a Frana era claro para Blouet. Para Blouet, o jornalismo francs pessoal, e os franceses querem as opinies de escritores e diretores do jornal. O jornalista francs assina os seus artigos e um lder de opinio. O jornalismo considerado um ramo da literatura (O'Boyle, 1968:532). Escre-ve Blouet: ''O jornalismo americano o resultado natural das cir-cunstncias e da poca democrtica em que vivemos. O jornalismo no pode ser o que era quando lido por apenas algumas das pessoas da cultura. Numa democracia, o Estado e o jornalismo tm que agra-

    ,

    dar s massas. A medida que as pessoas ficam mais educadas, o Estado e o jornalismo elevar-se-o com elas'' (citado em O'Boyle, 1968:532).

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    A influncia do ''novo jornalismo'' foi tambm visvel com a emergncia de reprteres no jornalismo francs, embora o pro-cesso se desenvolvesse de uma forma mais lenta do que no jor-nalismo norte-americano ou ingls. Segundo Chalaby (1996), o caso de correspondentes estrangeiros ilustra os ritmos diferen-tes de desenvolvimento. O jornal norte-americano New York Hera/d estabeleceu correspondentes na Europa nos anos 1840; depois da Guerra Civil norte-americana, numerosos correspon-dentes estrangeiros norte-americanos podiam ser vistos nos cam-pos de batalha, da Guerra da Crimia ao conflito russo-japons. O jornal ingls The Times tinha j constitudo ein meados dos anos 1850 uma equipe de correspondentes estrangeiros, e mui-tos dos outros dirios ingleses tambm tinham correspondentes estrangeiros, embora em nmero mais redL1zido do que rival The Times. Em contraste, nenhum jornal francs tinha corres-pondentes estrangeiros antes dos anos 1870, senc.1.o apenas dois os jornais, Le Temps e Le ]ournal des Dbats, q11e tinham corres-pondentes estrangeiros at a Primeira Guerra Mundial (Chalaby, 1996:307).

    Nas ltimas dcadas do sculo XIX, os jornais franceses comearam a empregar pessoas para as atividades ligadas pro-cura de notcias, utilizando o termo ingls ''reporter'' para, como escreve Chabaly (1996:309), designar ''esta nova raa de jornalis-tas''. A parte reservada s reportagens na maior parte dos jor-nais, favorecida pela modernizao dos transportes e das comu-nicaes, modifica pouco a pouco a fisionomia da imprensa. Uma primeira definio do ''reprter'' em 1836, palavra que vem do ingls, retratava o reprter como ''uma espcie de empregado que v como seu dever tomar notas do desenvolvimento dos eventos'' e que tem o estranho hbito de considerar os fatos como fatos (Chalaby, 1996:309). O dicionrio Larousse, na sua edio de 1869, ainda dava palavra ''reprter'' uma conotao negativa. No entanto,

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  • na definio dada pelo dicionrio Larousse nos incios dos anos 1930, o reprter definido como um jornalista que recolhe in-formao, escrevendo que o gosto do pblico para a informao rpida e completa deu reportagem e ao reprter um lugar con-sidervel no jornalismo contemporneo (citado em Delporte, 1999:234).

    H uma multiplicao de ttulos e um forte aumento de tiragens, em grande parte devido emergncia de quatro gran-des ttulos: Le Petit Journal, fundado em 1863, Le Petit Parisien, em 1876, Le Matin, fundado em 1884, e L e ]ournal, que ser lanado em 1892. Escreve Ferenczi (1993:30) que, a estas mu-danas quantitativas, ''juntam-se as transformaes qualitativas) das quais a mais espetacular e sem dvida a mais significativa o lugar crescente ocupado na profisso pelos reprteres''.

    Num ambiente descrito pelo redator de S oleil, Charles Canivet, como ''uma concorrncia desenfreada e que iniciou uma corrida vertiginosa informao'' (citado em Ferenczi, 1993: 233), o crescente protagonismo do reprter no jornalismo francs pro-vocou crticas, tal como este comentrio: ''Estes reprteres que no tm um naco de memria e que no se rebaixam a tomar notas. De agora em diante dir-lhes-ei: no lido seno com reprteres que tomem notas'' ( citado em Ferenczi, 1993:33). Na Gazette de Lausanne, Edouard Rod escreve que ''jornalista - ou, melhory o reprter - tende a usurpar todas as funes: conduz os inquritos) instrui o processo, d conselhos aos sbios e aos militares, substitui o juiv o diplomata e o general. Em suma) preciso que saiba tudo antes de toda a gente, que chegue primeiro a todo o lado, que tenha itma opinio que no recue perante ningum'' (citado em Ferenczi, 1993:234).

    Le Matin apareceu no dia 22 de fevereiro de 1884 como edio francesa de um jornal de lngua inglesa chamado Morning News, fundado em Paris por dois norte-americanos, Albert C.

    ,,

    Ives e Samuel S .. Chamberlain. E, sem dvida, a primeira tenta-

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    tiva feita na Frana de ir at ao fundo na lgica do ''novo jorna-lismo'' e, segundo Marzolf, foi denunciada como uma ''america-nizao'' da imprensa francesa. No seu primeiro nmero, Le Matin anunciou que ''ser um jornal que no ter nenh1:1ma opinio polti-ca, que no estar enfeudado a nenhum banco, que no vender o seu protagonismo a nenhum assunto: ser um jornal de informaes tele-grficas) universais e verdadeiras'' (citado em Ferenczi, 1993:36-37). Em seis meses, a nova publicao tinha uma circulao de 33.000 exemplares (Marzolf, 1984:534).

    Marzolf descreve este jornal francs como um exemplo do ''novo jornalismo''. Escreve Marzolf (1984:534: ''Le Matin era americano na aparncia e na sua aproximao notcia. A primeira pgina apresentava cabealhos de vrias colunas e notcias, incluin-do as histrias mais recentes telegrafadas de Londres. O uso da pri-meira pgina como uma montra6 de exposio de notcias, com gran-des cabealhos e ilustraes) no entanto, no se tornari.a comum nos dirios europeus at ao incio da 1 Guerra Mundial ''.

    Para um certo nmero de pessoas, incluindo intelectuais influentes como Emile Zola, as mudanas provocadas pelos ventos do ''novo jornalismo'' representam uma degradao da imprensa. Para Henri Brenger, a crise da imprensa no seno um aspecto de uma crise mais vasta que toca tambm a escola e o parlamento, as duas outras instituies-chave da democracia. A escola, a imprensa, o Parlamento, eis os novos poderes diri-gindo a Frana, afirma Brenger, antes de explicar: ''Cada vez mais no nosso pas a opinio pblica e a lei sero o que delas fize-rem a escola) o parlamento e a imprensa. Ora estes trs 'poderes' no desempenham o papel que deveria ser o seu: 'O que deveria morali-zar corrompeu, o que deveria clarificar toldou a vista, o que deveria governar desnorteou'''. (citado em Ferenczi, 199 3:21 7). Para o

    6No Brasil, vitrine. (NR)

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  • cronista do jornal Figaro, Maurice Talmery, todo o mal vem do fato da imprensa ser ao mesmo tempo uma imprensa de dinheiro e uma imprensa democrtica (Ferenczi, 1993:226).

    O jornalista Albert Moise Millaud condenou o ''novo jor-nalismo'', dizendo que ele tinha ''morto a literatura'' e ''est a matar o jornalismo''. Escreve Millaud: ''A reportagem est a insi-nuar-se nos jornais franceses) e esta a ltima palavra em decadn-cia literria}}. Acrescenta que os leitores norte-americanos ainda estavam ''na idade da 'infncia) como leitores e precisavam que lhes contassem 'pequenas histrias' em vez de grandes coisas da arte e da literatura'' (citado em O'Boyle, 1968:531 ).

    O escritor Emile Zola escreve em 1888, no prefcio do seu livro La Morasse: ''O fluxo desencadeado pela informao trans-formou o jornalismo, matou os grandes artigos de discusso, matou a crtica literria, deu de dia para dia mais lugar aos despachos, aos grandes e pequenos, aos processos verbais dos reprteres e dos entrevistadores'' (citado em Feren_czi, 1993:31-32).

    Mas nas ltimas dcadas do sculo XIX, a crtica ao novo ' jornalismo tambm uma crtica liberdade. Numa srie de ar-

    tigos publicados na revista Revue Bleue, publicados em 1890, a liberdade de imprensa descrita como excessivamente recente para no desencadear com ela excessos de todo o tipo. ''Para a maioria dos observadores, tinha havido uma reviravolta deplorve~ que modificou completamente a funo de imprensa: de instrumento contribuindo para a formao da opinio, ei-la mudada, segundo testemunhos entristecidos) em meio de divertimento, no visando se-no o baixo prazer dos seus leitores'' (citado em Ferenczi, 1993:215).

    Apesar das resistncias, no fim do sculo algumas vozes crticas j se mostram mais abertas aos ventos do ''novo jorna-lismo''. Em 1894, o escritor Emile Zola j tinha mudado de opi-nio. J no recusava este novo jornalismo que estimula ''a

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    investigao ... sobre fatos reais e sobre os atores vivos do drama quo-tidiano'' (citado em Ferenczi, 1993:204). Zola j no reprovava ''um estilo simples) claro e forte'' que, dizia, caracterizava a nova imprensa em 1894. Escreve Zola: ''So ditas tantas coisas ms da imprensa... mas a forma nova a informao) e devemos ser re-edu-cados. Todos os homens de 50 anos sentiram a falta da velha im-prensa com o seu estilo lento e comedido'' (O'Boyle, 1968:532-3).

    O jornalismo francs sofreu enormes mudanas ao longo do sculo XIX, influenciado pelos ventos ''do novo jornalismo''. Tentou afirmar-se como um poder de parte inteira, exercido por

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    um corpo de profissionais que, por no ter ainda cortado todos os laos com os polticos e com os escritores, no reivindicava menos a sua liberdade de ao. E na formao do ''corpo'' de profissionais, processo que iremos detalhar no prximo captu-lo, houve a afirmao de uma identidade profissional. August Sabatier escreve: ''Porque no reconhecer que h ... bons e maus jor-nalistas e, se o reconhecemos em teoria, porqu) aqui como ali, no procuram os bons evitar ser confundidos com os outros e defender, de uma forma legtima e privada, a dignidade de sua profisso'' (cita-do em Ferenczi, 1993:230-231).

    O jornalista francs Yves Guyot foi um jornalista que perce-beu o futuro poder do jornalismo. Guyot acreditava que a impren-sa, considerada algumas vezes como o ''Quarto Poder do Esta-do'', se tornaria no primeiro '' medida que os governos de discus-so substitussem os governos absolutistas'' (citado em Ferenczi, 1993: 175). A profissionalizao era acompanhada por uma nova concepo do jornalismo que dava em princpio a prioridade informao e no propaganda. Sem dvida, este sentimento de pertena a um grupo eloqentemente evidenciado no encon~ tro entre o pintor Claude Monet e o jornalista Gustave Geffroy:

    Quando Gustave Geffroy encontrou Claude Monet pela primeira vez em 1886 em Belle-Isle-en-Mer, o pai do Impres-sionismo perguntou-lhe:

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