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FACULDADE CÁSPER LÍBERO Renato Delmanto Barros ‘Voz do Brasil’: proposta de jornalismo de interesse do cidadão que virou peça de relações públicas do governo SÃO PAULO 2015

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FACULDADE CÁSPER LÍBERO

Renato Delmanto Barros

‘Voz do Brasil’: proposta de jornalismo

de interesse do cidadão que virou peça de

relações públicas do governo

SÃO PAULO

2015

RENATO DELMANTO BARROS

‘Voz do Brasil’: proposta de jornalismo

de interesse do cidadão que virou peça de

relações públicas do governo

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu,

Mestrado em Comunicação, linha de

pesquisa B: Produtos Midiáticos –

Jornalismo e Entretenimento, da Faculdade

Cásper Líbero, para obtenção do título de

mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Simonetta

Persichetti

SÃO PAULO

2015

Delmanto Barros, Renato

Voz do Brasil: proposta de jornalismo de interesse do cidadão que virou peça

de relações públicas do governo / Renato Delmanto Barros. – Sao Paulo, 2015.

144 f. : il. ; 30cm.

Orientadora: Profa. Dra. Simonetta Persichetti

Dissertação (mestrado) – Faculdade Cásper Líbero, Programa de Pós-Graduação

Stricto Sensu – Mestrado em Comunicação

1. Jornalismo. 2. Notícia. 3. Retórica. 4. Relações Públicas. I. Persichetti,

Simonetta. II. Faculdade Cásper Líbero, Programa de Mestrado em Comunicação. III.

Voz do Brasil: proposta de jornalismo de interesse do cidadão que virou peça de

relações públicas do governo.

À minha esposa, Priscilla, que caminha comigo

há tantos anos e me colocou no bom caminho;

e ao meu pai, Sylvio Homero, por me ensinar a ter

uma visão crítica e compreensiva sobre o mundo.

AGRADECIMENTOS

À minha família, que suportou com paciência todo o período de pesquisa e, principalmente,

os muitos momentos de ausência durante o mestrado;

À minha orientadora, Profª. Dra. Simonetta Persichetti, que ajudou na definição do foco,

conseguiu encontrar suporte teórico para minha ideia e não me deixou desistir da jornada;

Aos professores do Mestrado, pelas aulas ministradas e pelas excelentes oportunidades

abertas ao diálogo e à reflexão. O retorno à condição de aluno foi uma experiência

gratificante para mim;

Aos integrantes da banca: Dra. Simonetta Persichetti, Dr. Carlos Eduardo Lins da Silva e

Dr. Dimas A. Kunsch, que me honram por ter aceitado o convite e pelas ótimas

contribuições dadas na qualificação;

Aos jornalistas Carlos Marchi e Eugênio Bucci, personagens importantes da história da Voz

do Brasil, que se dispuseram gentilmente a dar entrevistas para esta pesquisa e relembrar

suas experiências dentro do governo;

Ao prof. Dr. Carlos Costa, pelo apoio e intervenção que foram decisivos para o início deste

Mestrado;

Ao prof. Dr. Júlio César Barbosa, um dos primeiros a conhecer minha ideia de pesquisa e

que sugeriu a análise retórica como um caminho a ser seguido;

Aos colegas professores da Coordenadoria de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, pelo

incentivo recebido desde o primeiro momento para que eu me dedicasse à pesquisa;

Aos meus colegas de Mestrado, que contribuíram, cada um a sua maneira, com sugestões

para a pesquisa, e pela agradável convivência nesses dois anos;

Ao pessoal da Secretaria da Pós-Graduação e da Biblioteca da Cásper Líbero, sempre

solícitos e dispostos a ajudar;

Aos amigos e colegas que direta ou indiretamente contribuíram para o desenvolvimento

desta pesquisa: Claudio Niwcles Arantes, Helena Jacob, Pedro Serico Vaz, Filomena

Salemme, Eugênio de Menezes, Ricardo Gandour, Mena de Almeida, Vivian Paixão,

Catharina Barros;

A Deus, que me dá forças para combater o bom combate.

“Guarde sempre na lembrança que esta estrada não é sua.

Sua vista pouco alcança, mas a terra continua”

Sidney Miller

RESUMO

A dissertação analisa a primeira parte do programa radiofônico Voz do Brasil – que

veicula informações do Poder Executivo Federal –, com base nas características

específicas do jornalismo e do trabalho de relações públicas. Produzido pela Secretaria

de Comunicação da Presidência da República, o programa tem transmissão obrigatória

por todas as emissoras de rádio do país e foi criado há 80 anos, pelo governo Getúlio

Vargas. Ao longo de quase toda a sua história, o programa foi identificado como

veículo porta-voz do governo – independentemente do regime político vigente no país

(alternância de ditaduras com períodos democráticos). Esta pesquisa procurou extrair

elementos que indicassem, de forma objetiva, que o conteúdo veiculado na Voz do

Brasil apresenta características de peça de comunicação institucional do governo – a

despeito da existência de diretrizes que definem preceitos jornalísticos e preveem o

compromisso com os interesses do cidadão e a defesa do direito à informação. Esta

análise apoia-se nos conceitos de jornalismo e notícia (de Nelson Traquina e outros

autores), nos critérios de noticiabilidade (apontados por Mauro Wolf) e na comparação

do conteúdo do programa com as notícias veiculadas nas edições correspondentes de

jornais de grande circulação. Com base ainda na análise retórica do programa, a partir

das ideias de Tereza Halliday e de Chaïm Perelman, e nas teorias sobre as relações

públicas propostas por Dan Lattimore, Paulo Nassar e outros, concluímos que a Voz do

Brasil é um produto “jornalístico” a serviço das relações públicas do governo federal.

Palavras-chave: Jornalismo. Notícia. Retórica. Relações Públicas.

ABSTRACT

The dissertation aims to investigate the official radio show Voz do Brasil (Voice of

Brazil) – specifically the part that features news from the federal government –, based

on journalism and public relations’ concepts. Produced by the Communication

Secretariat of the Brazilian Presidency, the radio show is mandatory for all

broadcasting stations in the country. Created under the Getúlio Vargas government, 80

years ago, along almost its entire history the radio show has been presented as the

government’s “spokesman” – regardless of the country’s political regime, alternating

dictatorships with democratic periods. The goal of this research was to identify

elements that could indicate that Voz do Brasil is part of the institutional

communication apparatus of government. It happens despite the existence of

guidelines that provide the commitment to the citizens’ interests and their right to

information. The analysis was based on the theory of journalism (supported by Nelson

Traquina and other authors) and the criteria of newsworthiness and news-value

(pointed by Mauro Wolf). In order to verify the accomplishment of these criteria, we

made a comparison between the radio show and the news published by three national

newspapers. We also used rhetorical analysis (based on Tereza Halliday and Chaïm

Perelman), and public relations concepts (proposed by Dan Lattimore and Paulo

Nassar) to conclude that Voz do Brasil is a “journalistic” product serving as a public

relations tool for the federal government.

Keywords: Journalism. News. Rhetoric. Public Relations.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Capa da Folha de S.Paulo – 08 jul 1980 ........................................................ 56

Figura 2 – Capas dos jornais – 12 jun 2003 .................................................................... 58

Figura 3 – Capas dos jornais – 05 fev 2014 .................................................................... 61

Figura 4 – Capas dos jornais – 19 mar 2015.................................................................... 67

Figura 5 – Capas dos jornais – 07 jun 2013 .................................................................... 70

Figura 6 – Capas dos jornais – 08 jun 2013 .................................................................... 71

Figura 7 – Capas dos jornais – 14 jun 2013 .................................................................... 72

Figura 8 – Sites da imprensa internacional – Junho 2013 .............................................. 73

Figura 9 – Capas dos jornais – 16 jun 2015 .................................................................... 74

Figura 10 – Capas dos jornais – 17 jun 2013 .................................................................. 75

Figura 11 – Capas dos jornais – 18 jun 2013 .................................................................. 75

Figura 12 – Capas dos jornais – 19 jun 2013 .................................................................. 77

Figura 13 – Capas dos jornais – 20 jun 2013 .................................................................. 80

Figura 14 – Capas dos jornais – 21 jun 2013 .................................................................. 82

Figura 15 – Capas dos jornais – 20 set 2014 ................................................................... 92

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Pauta da Voz do Brasil – 04 fev 2014 .................................................... 62

Tabela 2 – Pauta da Voz do Brasil – 18 mar 2015 .................................................... 68

Tabela 3 – Pauta da Voz do Brasil – 20 jun 2013 ..................................................... 81

Tabela 4 – Temas tratados pela Voz do Brasil em maio 2014 ................................... 97

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1: A história da Voz do Brasil ............................................................ 19

Contexto histórico do rádio no Brasil ........................................................... 19

O populismo de Getúlio Vargas .................................................................... 21

O Estado Novo e a obrigatoriedade da Hora do Brasil ................................ 23

O fim da ditadura Vargas e a Voz do Brasil .................................................. 26

O ocaso do populismo: JK, Jânio e Jango ..................................................... 30

O regime militar e uma nova herança autoritária .......................................... 32

A Nova República e a “nova” Voz do Brasil ................................................ 39

Consolidação da democracia e a mesma Voz do passado ............................. 46

Uma proposta jornalística para a Voz do Brasil ............................................ 49

A Voz do Brasil depois de 2007 .................................................................... 51

CAPÍTULO 2: Critérios de noticiabilidade na Voz do Brasil ................................. 53

A “notícia” na Voz do Brasil ......................................................................... 53

O “protesto” do papa Joao Paulo II ............................................................. 55

A manifestaçao que virou “pauta de reivindicações” ................................... 57

O conceito de noticiabilidade ....................................................................... 59

O “apagao” elétrico de 2014 ........................................................................ 60

A polêmica saída do ministro da Educação em 2015 .................................. 65

As manifestações de rua em junho de 2013.................................................. 69

CAPÍTULO 3: Análise retórica da Voz do Brasil .................................................. 84

As origens da retórica na Grécia antiga ....................................................... 84

Retórica enquanto arte de convencer ........................................................... 86

A busca da legitimação pelo discurso .......................................................... 88

O uso do argumento pragmático ................................................................. 89

O argumento da autoridade ......................................................................... 91

Espaço público e manipulação .................................................................... 96

A priorização de temas na Voz do Brasil .................................................... 97

CAPÍTULO 4: Comunicação pública ou relações públicas? .............................. 103

Uma definição para comunicação pública ................................................ 104

Distinções entre jornalismo e relações públicas ....................................... 106

A origem das relações públicas ................................................................ 107

A Voz do Brasil como “mídia da fonte” .................................................. 109

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 112

REFERÊNCIAS ................................................................................................. 114

APÊNDICES ....................................................................................................... 119

Apêndice A – Entrevista com Carlos Marchi – 15 jul 2015 ..................... 119

Apêndice B – Entrevista com Eugênio Bucci – 27 jul 2015 ..................... 135

12

INTRODUÇÃO

O presente trabalho sobre a Voz do Brasil surgiu da preocupação de escolher

um objeto de pesquisa que permitisse a análise de um produto editorial do ponto de vista

jornalístico, mas que esta pudesse ser ampliada com conceitos dos processos de

comunicação institucional. Como professor de graduação em Jornalismo da Faculdade

Cásper Líbero desde 2005, profissional de imprensa por mais de 20 anos (com

experiências em revista, jornal, TV e internet) e especializado em comunicação

corporativa nos últimos 10 anos, a análise da primeira parte do programa de rádio Voz do

Brasil, vinculada ao Poder Executivo Federal, atenderia a essa expectativa acadêmica.

A Voz do Brasil é transmitida de segunda a sexta-feira, das 19h às 20h,

compulsoriamente por todas as emissoras de rádio do país, veiculando “notícias” sobre o

governo federal. É o programa radiofônico mais antigo do Brasil, tendo sido criado em

1935, durante o governo do presidente Getúlio Vargas. Passou a ter transmissão

obrigatória após o golpe de Estado do próprio presidente Vargas, que deu início à

ditadura do Estado Novo (1937-1945). O programa integrava o projeto de propaganda

oficial do governo Vargas, que tinha um de seus pilares no rádio – àquela época ainda um

meio nascente no país. O projeto de comunicação de Vargas guardava forte inspiração

nos modelos de propaganda dos regimes nazista e fascista, vigentes na Alemanha e na

Itália, respectivamente.

Ao longo de quase toda sua história, a Voz do Brasil desempenhou o papel de

porta-voz do governo, funcionando como uma ferramenta de relações públicas oficial, em

vez de ser um produto jornalístico de informação à sociedade a respeito dos temas ligados

ao Poder Executivo federal. Tradicionalmente, o programa submeteu-se aos desígnios dos

governantes, independentemente do regime político que estivesse vigente no país – ao

longo de toda a existência da Voz do Brasil, houve no país uma alternância de fases de

regimes ditatoriais e de democracia. Nos períodos de ditadura – notadamente na primeira

era Vargas1 e no período do regime militar (1964-1985) – essa característica se acentuou,

o que conferiu à Voz do Brasil a pecha de “herança autoritária”. Essa “tradiçao” do

programa somente foi rompida em dois períodos específicos, que serão relatados neste

trabalho: entre 1985 e 1986, no início da chamada Nova República, quando José Sarney

1 Deposto ao final da ditadura do Estado Novo (1945), Vargas voltaria a ser presidente, eleito

democraticamente, cinco anos depois, período conhecido como segunda era Vargas.

13

era presidente da República e o jornalista Carlos Marchi esteve no comando da Voz do

Brasil; e entre 2003 e 2006, no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,

quando o jornalista e professor Eugênio Bucci presidiu a Radiobrás, empresa então

responsável pela produção do programa.

Bucci relatou sua experiência no livro Em Brasília, 19 horas (2008)2, cuja

leitura foi a primeira inspiração para esta pesquisa. A obra indica, no seu subtítulo (“A

guerra entre a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula”), a

dificuldade enfrentada pela equipe do programa ao tentar implantar um projeto de

jornalismo. Naquele período, foram tornados públicos diversos documentos contendo as

propostas editoriais para as emissoras de rádio e TV controladas pela estatal e,

especificamente, para a Voz do Brasil. Tanto o livro quanto esses documentos permitiram

que se tivesse nessa pesquisa uma visão geral da relação entre a linha editorial do

programa e o governo federal.

Para a contextualização histórica do programa, foi fundamental o livro A hora

do clique – análise do programa ‘Voz do Brasil’ da Velha à Nova República, de Lilian

Maria Perosa (1995). A obra permitiu uma compreensao da “convivência” da Voz do

Brasil com os diversos regimes que marcaram a história política do Brasil desde os anos

1930. Graças à extensa pesquisa feita pela autora, foi possível identificar o primeiro

período da história do programa em que se tentou praticar o jornalismo – entre 1985 e

1986, no primeiro ano do governo do presidente José Sarney, na chamada “Nova

República”. Devido à parca documentaçao existente em relaçao àquela fase, as

informações contidas no livro de Lilian Perosa foram complementadas com uma

entrevista com o jornalista Carlos Marchi, que presidiu àquela época a Empresa Brasileira

de Notícias (então responsável pela Voz do Brasil) e foi um dos responsáveis pelo projeto

editorial idealizado sob a inspiração do primeiro governo civil pós-regime militar,

elaborado após a eleição de Tancredo Neves (1910-1985).

Esta dissertação traz no primeiro capítulo a história do programa,

identificando as características de cada fase política vivida pelo país e as relações da Voz

do Brasil com cada um desses contextos políticos – incluindo um detalhamento dos dois

períodos em que foram adotados critérios jornalísticos no programa.

No segundo capítulo, analisamos os critérios de noticiabilidade adotados pelo

programa, a partir da análise comparativa de alguns programas selecionados com as

2 O título do livro faz referência ao jargão usado durante muitos anos na abertura do programa.

14

edições correspondentes de três jornais de grande circulação – O Estado de S.Paulo,

Folha de S.Paulo e O Globo (RJ) –, com o objetivo de verificar se o programa oficial

adota critérios de seleção de notícias distintos dos jornais impressos. O programa foi

acompanhado diariamente durante 30 meses (entre 2013 e 2015), e desse período foram

selecionadas edições que melhor corroborassem a hipótese, aqui sugerida, de que o

conteúdo veiculado, em vez de praticar o jornalismo, presta-se ao papel de peça de

comunicação institucional do governo.

No terceiro capítulo, desenvolvemos uma análise do conteúdo do programa

do ponto de vista retórico, principalmente na questão do uso da retórica em busca de

legitimação perante a sociedade. Conforme essa análise, o conteúdo do programa

demonstra estar a serviço dos interesses específicos do governo, em detrimento dos

interesses dos cidadãos.

O quarto capítulo apresenta os conceitos de comunicação pública e de

relações públicas, e as características que fazem a Voz do Brasil ser uma “mídia” do

próprio governo federal.

Nas considerações finais, concluímos que a Voz do Brasil é um produto de

relações públicas do governo, a despeito da existência de regras e diretrizes que pautam o

trabalho de seus jornalistas. O mais recente documento contendo essas diretrizes foi

publicado em 2013: trata-se do Manual de Jornalismo da EBC – Empresa Brasil de

Comunicação, estatal vinculada à Secretaria de Comunicação da Presidência da

República e que, atualmente, é responsável pela produção da Voz do Brasil. O documento

defende o direito à informação dos cidadãos e vaticina que todos os jornalistas da

empresa devem ter um “compromisso com a verdade”.

Desde o princípio, esta pesquisa se propôs a analisar apenas a parte inicial do

programa, com cerca de 25 minutos de duração, que é de responsabilidade do Poder

Executivo. O restante do horário de transmissão obrigatória é dedicado às duas casas do

Parlamento, ao Poder Judiciário e ao Tribunal de Contas da União. Os conteúdos que não

são de responsabilidade da Presidência da República, dos Ministérios e dos órgãos da

administração direta não foram considerados como objeto de estudo.

Sendo a Voz do Brasil um produto de comunicação vinculado à Presidência

da República, e em razão de a “genealogia” do programa mesclar conceitos das ciências

da comunicação com conceitos da política, optamos por definir algumas noções que serão

adotadas neste trabalho: entre elas jornalismo e notícia, relações públicas, comunicação

15

pública, retórica, poder e Estado. Esses conceitos visam facilitar o entendimento das

análises desenvolvidas nas próximas páginas.

Jornalismo e notícia – o jornalismo é entendido aqui como o ofício de

informar à sociedade a respeito de fatos que sejam de interesse geral dos cidadãos. Ao

longo do século 20, diversos autores – entre eles Lippman, Galtung & Ruge, Golding &

Elliott, Gans, Gaillard, Hohemberg, Traquina, Wolf, Chaparro e Lage – se dedicaram a

definir critérios de noticiabilidade, assim como os valores-notícia (características de um

fato em si) que justificam a sua seleção por veículos jornalísticos. Em suas definições –

muitas vezes complementares – esses autores sugerem como valores-notícia que

credenciam os eventos como “notícias” atributos como novidade (um fato inédito),

raridade (o inesperado, como o exemplo alegórico do homem que morde o cão),

relevância (importância do fato ou dos personagens), proximidade geográfica (se

acontece próximo do público do veículo), negatividade (a questão das bad news e das

good news), entre outros.

Para efeitos desta dissertação, adotamos o conceito de Nelson Traquina

(1993), de que a matéria-prima do jornalismo é a notícia, ou seja, os acontecimentos ou

as informações que sao transformados em notícia pelo “sistema jornalístico”. Numa

perspectiva histórica, as notícias eram os acontecimentos com “direito à existência

pública”, que eram selecionados pelos jornalistas para aparecerem nos veículos

(conforme o processo do gatekeeper), o que os transformava em temas de discussão da

opinião pública (aqui no conceito de agenda setting).

Para avaliar o processo de seleção de notícias pelos veículos, optamos pelos

conceitos de noticiabilidade (newsworthiness) apresentados por Mauro Wolf (2012).

Dentre as várias possibilidades de análise propostas pelo autor – e embasadas por outros

autores – adotamos os critérios “substantivos”. Esses critérios podem ser verificados com

base no (a) grau hierárquico dos envolvidos; (b) impacto do fato sobre o interesse

nacional; (c) quantidade de pessoas que o acontecimento envolve (direta ou

indiretamente); e (d) relevância em relação aos desenvolvimentos futuros de uma

determinada situação. Acreditamos que esses critérios permitem uma avaliação menos

subjetiva do que seriam temas de interesse da sociedade.

O desenvolvimento de novas tecnologias e a enorme difusão de informações

proporcionada pelas plataformas antes inexistentes (notadamente as mídias sociais e as

redes de compartilhamento) vêm transformando o papel do jornalismo, mas este não é o

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foco deste trabalho. Aqui, pretendemos resgatar a liturgia que caracteriza o ofício do

jornalista (e que contribui para a credibilidade da profissão): o compromisso com a

acuidade, com a veracidade e com a integridade.

Comunicação pública – para a análise desenvolvida nesta pesquisa sobre a

Voz do Brasil, optamos por um conceito de comunicação pública sugerido por Jorge

Duarte, Eugênio Bucci e outros autores. Neste trabalho, a comunicação pública é

entendida como aquela que se ocupa da “viabilização do direito social coletivo e

individual ao diálogo, à informação e expressão” (DUARTE, 2012), ou simplesmente

“toda comunicaçao que tematiza um assunto de interesse público” (BUCCI, 2015).

Trabalhamos com duas dimensões da comunicação pública: a primeira a

define como aquela para a qual concorre o dinheiro público – na forma de recursos,

equipamentos, equipes de funcionários ou efetivamente o controle ou participação

acionária de algum ente público. Já a segunda dimensão define que comunicação pública

é aquela que, obrigatoriamente, deve observar os princípios constitucionais,

principalmente o da impessoalidade. Dessa forma um veículo de comunicação pública

não pode ter como objetivo servir a interesses de governantes ou autoridades de turno,

mas aos interesses do Estado e do cidadão.

Relações públicas – dentre as muitas definições existentes, adotamos aqui um

conceito baseado, principalmente, nos autores Lattimore (2009), Kunsch (2003) e Nassar

(2007), que consideram como relações públicas ações de comunicação patrocinadas por

entidades ou organizações com o objetivo de ter uma visibilidade pública, uma melhor

imagem ou conseguir a inserção na esfera pública. Lattimore propõe uma distinção entre

o campo específico das relações públicas e o do jornalismo: pois os jornalistas não

representam as organizações sobre as quais escrevem, enquanto os profissionais de

relações públicas, sim. Para o autor, isso influencia a maneira como os profissionais de

relações públicas enquadram ideias e a indpendência na apresentação dos fatos. No

entanto, isso não significa que o trabalho de relações públicas dispense o profissional de

respeitar preceitos éticos – ao contrário, o bom trabalho de relações públicas não admite a

disseminação de informações inverídicas, seja de maneira proposital, seja involuntária.

Sant’Anna (2004) sugere que as relações públicas estao englobadas num

conceito mais amplo de comunicação institucional – que inclui o conjunto de conteúdos

disponibilizados pelas organizações e instituições à opinião pública. A comunicação

17

institucional possibilita que sejam desenvolvidos por esses entes jurídicos canais próprios

de conteúdo, o que o autor define como mídia das fontes. Essas mídias distribuem

informações que sao tratadas “editorialmente” por profissionais vinculados a essas

organizações, que se utilizam de processos “jornalísticos” semelhantes aos dos veículos

de imprensa. No entanto, diferentemente da imprensa, essas mídias das fontes têm o

objetivo de defender os interesses das entidades ou organizações às quais estão

vinculadas – conceito que se encaixa na análise do programa Voz do Brasil.

Retórica – partindo dos fundamentos de Aristóteles, o conceito de retórica

adotado nesta pesquisa tem como base os estudos de Tereza Halliday (1987, 1988) e de

Chaim Perelman (2005). Num processo dialógico entre os dois autores, optamos por uma

definição de retórica como um processo comunicacional que busca a legitimação de uma

organização ou entidade a partir de discursos institucionais, conteúdos oficiais e

propagandas. Halliday mostra que empresas e instituições constroem seus discursos

retoricamente, para atender a objetivos específicos, como construir “simbolicamente” a

realidade. Já Perelman (2005) propõe um “nova retórica”, na qual a “verdade” nao

decorre de um raciocínio lógico corroborado por “evidências” empíricas, mas da

deliberação do público em aceitá-las como tal. Isso é um fator relevante a ser considerado

na análise do conteúdo da Voz do Brasil, visto que se trata de um programa com

transmissão obrigatória por todas as emissoras de rádio do país.

Poder – o fato de a Voz do Brasil estar vinculada à Presidência da República

e de ter sido criada como instrumento de divulgação do governo Vargas, inspirada em

regimes autoritários (fascismo e nazismo), leva-nos a adotar, primeiramente, um conceito

de poder no sentido político (a partir de Norberto Bobbio e outros autores). Entretanto,

sendo o objetivo de nossa análise o uso do programa como peça de comunicação

governamental, optamos por adotar os conceitos propostos por John B. Thompson

(2013), que tratam o poder como “a capacidade de intervir no curso dos acontecimentos e

em suas consequências”.

Se atualmente costuma-se associar o poder à política – ou às “ações de

indivíduos agindo em nome do Estado” –, isso se deve ao fato de os Estados terem se

tornado, particularmente, centros importantes de concentração do poder que têm se

utilizado dos meios de informação e comunicação. Com esse intuito, os detentores do

poder usam a comunicação para provocar reações de determinado teor na opinião pública

18

– como sugerir caminhos e decisões, induzir a crer e a descrer em determinada tese ou

pessoa etc.

Estado e autoritarismo – neste trabalho, optamos por um conceito de Estado

baseado na definição de Weber: instituição política que, dirigida por um governo, detém

o monopólio da força física, em determinado território, subordinando a sociedade que

nele vive. A distinção entre Estado e governo é particularmente relevante na análise aqui

desenvolvida: pois a Voz do Brasil é diretamente ligada à estrutura do Estado, mas, ao

longo de quase toda a sua história, foi tratada como peça de comunicação a serviço dos

governos de turno, aos quais esteve submetida.

De Bobbio, emprestamos o conceito de autoritarismo, já que a Voz do Brasil

foi criada no governo de Getúlio Vargas, apenas dois antes do golpe que instituiu a

ditadura do Estado Novo (1937-1945). Em outro período de sua história, durante o

regime militar (1964-1985), o programa foi usado como “porta-voz” da ditadura, o que

acabou gerando, na sociedade, a percepção de que é uma “herança autoritária”. Bobbio

define autoritarismo como o regime que privilegia a autoridade governamental e diminui

“de forma mais ou menos radical o consenso”, colocando em posiçao secundária as

instituições representativas. Em outras palavras, é um contraponto à democracia.

Conforme veremos ao longo dessa dissertação, a Voz do Brasil tornou-se um

instrumento usado por grupos instalados no interior do Estado (notadamente em regimes

autoritários, mas também nos períodos democráticos) para disseminar sua ideologia ou

defender seus interesses.

19

CAPÍTULO 1

A história da ‘Voz do Brasil’

Contexto histórico do rádio no Brasil

A primeira transmissão de rádio no Brasil ocorreu no dia 6 de abril de 1919,

em Recife (PE). Naquela data, os cientistas amadores Oscar Moreira Pinto, Augusto

Pereira e João Cardoso Alves inauguraram a Rádio Clube de Pernambuco, usando um

transmissor importado da França. Apesar dessa primeira transmissão, a data oficial de

início da radiodifusão no Brasil é 7 de setembro de 1922, quando o presidente da

República, Epitácio Pessoa, discursou na abertura da Exposição Internacional do Rio de

Janeiro, como parte das comemorações do centenário da Independência do Brasil.

A fala presidencial foi veiculada por um transmissor de 500 watts de potência

instalado no alto do Morro do Corcovado. Por iniciativa das companhias Rio de Janeiro

and São Paulo Telephone Company, Westinghouse International Company e Western

Electric Company, foram instalados 80 receptores no Rio de Janeiro, em Niterói e em São

Paulo. O jornal carioca A Noite, na edição do dia seguinte, descreveu o impacto dessa

experiência sobre a população:

À noite, no recinto da Exposição, em frente ao posto de Telephone

Público, por meio do telephone alto-falante, a multidão teve uma

sensação inédita. A ópera Guarany, de Carlos Gomes, que estava sendo

cantada no Theatro Municipal, foi alli, distinctamente ouvida bem como

os applausos aos artistas (ORTRIWANO, 1985, p.13).

Após essa cerimônia, o sistema de radiodifusão seguiu funcionando por

alguns dias, com a transmissão de óperas encenadas no Teatro Municipal do Rio de

Janeiro. No entanto, como não havia um sistema de transmissão regular nem aparelhos

receptores vendidos a preços acessíveis, o rádio deixou de funcionar poucos dias depois

do fim da Exposição Internacional.

A popularização do rádio no Brasil deve muito ao médico e antropólogo

carioca Edgard Roquette-Pinto (1884-1954). Aos 22 anos, ele iniciou uma carreira de

professor de Antropologia, Etnografia e Arqueologia do Museu Nacional, no Rio de

Janeiro. Naquela época, começou a se dedicar à divulgação científica, por meio de livros,

exposições e novas tecnologias, como o cinema e o rádio. Roquette-Pinto tornou-se um

entusiasta da experiência radiofônica a partir da Exposição Internacional. Em 20 de abril

de 1923, fundou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que iniciou suas transmissões

20

regulares no dia 1º de maio daquele ano e é considerada a primeira emissora educativa do

país. A programação era composta por música, notícias e diversos cursos – “aulas de

silvicultura prática, lições de história natural, física, química, italiano, francês, inglês,

português, geografia e até palestras seriadas” (RANGEL, 2010, p.13). O próprio

Roquette-Pinto era quem apresentava o Jornal da Manhã. Ele criaria ainda a Rádio

Escola Municipal do Rio de Janeiro, em 1934 e, em 1936, doou ao Governo Federal a

Rádio Sociedade – ato que deu origem ao Serviço de Radiodifusão Educativa, do qual o

próprio Roquette-Pinto seria diretor até 1943. Em 1946, a Prefeitura do Rio de Janeiro

renomeou a rádio como Rádio Roquette-Pinto – sem o aval do próprio homenageado.

O entusiasmo de Roquette-Pinto pelo meio rádio e o seu empreendedorismo

no setor o transformaram em “patrono” desse meio no Brasil, um “título” informal que se

deve a manifestações públicas feitas em diversas ocasiões ao longo de sua vida:

O rádio é o jornal de quem não sabe ler; é o mestre de quem não pode

ir à escola; é o divertimento gratuito do pobre; é o animador de novas

esperanças; o consolador dos enfermos; o guia dos sãos, desde que o

realizem com espírito altruísta e elevado (OLIVEIRA & COSTA,

2012, p.10).

Além da notável dedicação e dos esforços de Roquette-Pinto, o envolvimento

de outros empreendedores – como os empresários Paulo Machado de Carvalho, que

adquiriu a Rádio Record de São Paulo em 1931, e Assis Chateaubriand, que inaugurou a

Rádio Tupi do Rio de Janeiro em 1935 – contribuíram significativamente para a

popularização do rádio no Brasil.

O político gaúcho Getúlio Vargas identificou no novo meio uma ferramenta

que poderia ser útil para disseminar seu estilo populista. Em 1930, Vargas era governador

do Rio Grande do Sul quando disputou a presidência da República com o paulista Júlio

Prestes. A chamada República Velha tinha sido marcada pela “política do café-com-

leite”, em que paulistas e mineiros revezavam-se no poder central.3 Naquele ano, Prestes

rompeu o acordo e decidiu candidatar-se à sucessão do também paulista Washington

Luís. Aliado aos mineiros e a grupos nordestinos igualmente insatisfeitos com essa

oligarquia, Getúlio disputou a eleição em março, mas foi derrotado por Prestes.

Denúncias de fraudes na eleição e o assassinato do paraibano João Pessoa (candidato a

vice-presidente na chapa de Vargas) provocaram uma crise institucional no país.

3 A expressão vem do café, que era produzido em São Paulo, e da tradição pecuária mineira que produzia

leite e queijos.

21

Washington Luís foi deposto e preso em 24 de outubro de 1930 pelos ministros militares,

que empossaram Vargas na presidência no dia 3 de novembro.

Em 1932, o governo de Vargas enfrentou a Revolução Constitucionalista,

quando os governos de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e lideranças políticas

da parte sul do Mato Grosso se rebelaram contra o poder central. As tropas

constitucionalistas acabaram derrotadas, mas o movimento aumentou a pressão sobre o

governo, que acabou por convocar uma Assembleia Constituinte. Em 1934, foi

promulgada uma nova Constituição e Vargas foi eleito presidente (CPDOC, 1997b).

A nova Constituiçao, “apesar de ser a mais liberal e progressista que (o país)

jamais tivera, era ainda uma pérola do autoritarismo e do elitismo”, pois o voto excluía os

analfabetos (que representavam cerca de dois terços da população), aumentou o poder de

intervenção do Estado na política e na economia, e permitiu a nacionalização de empresas

estrangeiras e a criação de monopólios nacionais (GONTIJO, 1996, p.19).

O populismo de Getúlio Vargas

Uma das principais características do varguismo era a política populista, com

a qual o mandatário se aproximava da população, principalmente das camadas mais

pobres. A crise econômica decorrente da quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em

1929, que descapitalizou a elite produtora de café no Brasil, gerou uma série de protestos

de operários nas grandes cidades do país. Vargas teve a capacidade de incorporar ao seu

discurso o apelo popular e conseguir elaborar um discurso político que fosse

compreendido pela população insatisfeita. Não se tratava de uma mera questão

semântica: o povo que protestava queria “comida, casa e trabalho, e nao alimentaçao,

moradia e emprego” – e, nesse sentido, o governo Vargas soube “compreender a

importância da decodificaçao de um discurso elitista por outro de apelo popular”.

(GONTIJO, 1996, p.18).

No projeto populista de poder de Vargas, os meios de comunicação ganharam

relevância. Dentre eles, o rádio foi escolhido como um dos alicerces de seu plano de

integração nacional. A estratégia de Vargas era profissionalizar o setor, dando concessões

de emissoras à iniciativa privada, e incentivando o desenvolvimento da indústria nacional

para baratear o custo dos aparelhos receptores – antes importados. Para garantir a

sobrevivência das emissoras privadas, Vargas assinou um decreto, em 1932, que

autorizava a veiculação de anúncios comerciais no rádio. O objetivo do governo com

essas medidas era fazer com que o meio se popularizasse rapidamente. Essa meta foi

22

atingida: entre 1937 e 1942, o número de receptores cresceu de 357.921 para 659.762

(CAPELATO, 1999, p.176).

Em julho de 1935, foi criado o programa Hora do Brasil, por sugestão de

Lourival Fontes, então diretor do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural

(DPDC).4 Embrião da atual Voz do Brasil, o programa tinha um papel estratégico nesse

projeto de comunicação varguista. A missão do programa era ser o divulgador oficial dos

atos do governo, principalmente dos discursos do presidente. Já o objetivo “extraoficial”

da Hora do Brasil era transmitir “uma prestaçao de contas do governo ao povo, em que a

narração pura e simples dos atos e iniciativas da autoridade se torna o melhor e mais

convincente elogio do regime” (TOTA, 1987, p.37).

O primeiro programa, com a abertura da ópera O Guarani, de Carlos

Gomes, foi transmitido dos estúdios da Rádio Guanabara, no Rio de

Janeiro, e apresentado pelo locutor Luiz Jatobá. Nessa ocasião, entraram

em cadeia oito emissoras (PEROSA, 1995, p.44).

A consciência de Vargas a respeito da importância do meio rádio ficou clara

na mensagem que o presidente enviou ao Parlamento em 1° de maio de 1937, propondo

que a União viabilizasse a instalação de receptores de rádio com alto-falantes instalados

“mesmo nas pequenas aglomerações”, para dar condições que a populaçao pudesse

usufruir

momentos de educação política e social, informes úteis aos seus

negócios e toda sorte de notícias tendentes a entrelaçar os interesses

diversos da Nação. A iniciativa mais se recomenda quando

considerarmos o fato de não existir no Brasil imprensa de divulgação

nacional. São diversas e distantes as zonas do interior e a maioria delas

dispõe de imprensa própria, veiculando apenas as notícias de caráter

regional (PEROSA, 1995, p.46).

A tendência autoritária de Vargas só seria conhecida a partir do golpe que

daria origem à ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937. Mas a simpatia, ainda

que velada, do governo com os regimes nazista da Alemanha e fascista da Itália

começava a ser demonstrada no projeto de comunicação e de propaganda política oficial

que estava sendo implantado. A própria criação da Hora do Brasil trazia essa inspiração:

Lourival Fontes trouxe aquela filosofia de propaganda do Mussolini.

Ele foi à Itália numa delegação de futebol, foi recebido por Mussolini e

andou estudando tudo aquilo. Voltou de lá apaixonado pelo regime

4 O Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC) foi criado pelo governo provisório no dia 10

de julho de 1934, às vésperas da promulgação da Constituição de 1934. O órgão substituiu o Departamento

Oficial de Propaganda (DOP), criado logo após a Revolução de 1930. O DPDC se propunha a estudar a

utilização do cinema, do rádio e de outros meios de comunicação de massa na propaganda governamental.

Após o golpe que instituiu o Estado Novo, em 1937, o órgão foi sucedido pelo Departamento de Imprensa e

Propaganda – DIP (CPDOC, 1997b).

23

fascista, principalmente em relação à propaganda (PEROSA, 1995,

p.40).5

O Estado Novo e a obrigatoriedade da Hora do Brasil

Com o golpe de Estado de novembro de 1937, Getúlio Vargas revogou a

Constituição e teve início o período ditatorial do Estado Novo. Durante a ditadura

Vargas, o governo ampliou a repressão policial aos opositores, implantou um rígido

controle sobre a produção artística e submeteu à censura todos os meios de

comunicação, pois os considerava estratégicos para a consolidação do regime e para o

controle social (CARNEIRO, 1997, p.333). A Hora do Brasil foi então transformada

em uma das principais ferramentas da ditadura Vargas para atingir seus objetivos de

comunicação. E, em 1938, o programa passou a ter veiculação obrigatória por todas as

emissoras do país. O Departamento de Propaganda e Difusão Cultural foi substituído

pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável por difundir a

ideologia do Estado Novo e a imagem do presidente, além de coordenar todo o

programa oficial de radiodifusão e censura aos meios de comunicação e às produções

artísticas. Lourival Fontes foi mantido na direção do DIP, e a produção da Hora do

Brasil passou a ser de responsabilidade do novo órgão. Criado por um decreto

presidencial em 27 de dezembro de 1939, o DIP nasceu com a finalidade de

centralizar, coordenar, orientar e superintender a propaganda

nacional interna ou externa e servir permanentemente como

elemento auxiliar de informação dos ministérios e entidades públicas

e privadas, na parte que interessa à propaganda nacional (TOTA,

1987, p. 34).

Entre as funções específicas do DIP, destacavam-se:

c) fazer censura do teatro, do cinema, de funções recreativas e

esportivas de qualquer natureza, de radiodifusão, de literatura social

e política, e da imprensa, quando a esta forem cominadas as

penalidades previstas pela lei; (...)

p) organizar e dirigir o programa de radiodifusão oficial do governo

(PEROSA, 1995, p.40).6

5 Em 1935, Lourival Fontes defendeu a ideologia fascista em entrevista ao Diário da Noite: “O fascismo é

um regime que caminha para o povo e que se antecipa e realiza, no campo das conquistas e da cooperação

social, os imperativos mais avançados da dignificaçao, valorizaçao e igualdade do trabalhador”. Além do

diretor do DIP, outro integrante do primeiro escalão do Estado Novo assumidamente simpático aos regimes

nazi-fascista era Filinto Muller, chefe da polícia política responsável pela repressão aos opositores

(CPDOC, 1997b). 6 O interesse estratégico da ditadura Vargas no rádio pode ser medido pela censura prévia do DIP: somente

em 1940, quando havia apenas 78 emissoras no país, a Divisão de Rádio do órgão analisou 3.770

programas e 1.615 quadros (ou sketches, na linguagem da época). Desses, foram proibidos 108 programas,

sob a alegaçao de que eram “contrários às determinações legais”. Além disso, o órgao previamente analisou

483 peças de teatro e 2.416 gravações musicais (PEROSA, 1995, p.44).

24

Mesmo que não assumidamente, o DIP trazia a inspiração dos modelos

fascista e nazista de propaganda. Conforme esse modelo, o rádio passou a ter um

papel fundamental na formação de uma opinião pública convergente com o regime,

seguindo inspiração do próprio ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels:

Com o rádio, destruímos o espírito de rebelião. O rádio deve ser

propaganda. E propaganda significa combater em todos os campos

de batalha do espírito, gerar, multiplicar, destruir, exterminar,

construir e abater. A nossa propaganda é inspirada naquilo que

chamamos raça, sangue e nação alemães (GIOVANNINI, 1987,

p.185).7

Estilo semelhante foi adotado pelo DIP na comunicação de governo;

conseguiu trabalhar a imagem de Vargas como um político ligado às massas, que

governava defendendo os direitos da população mais carente. A despeito do contexto

político vigente, no qual havia repressão aos adversários do regime e censura sobre os

meios de comunicação, a propaganda oficial conseguiu consolidar entre a população a

imagem de Vargas como o “pai dos pobres”. No Estado Novo,

a propaganda política tinha características particulares: uso de insinuações

indiretas, veladas e ameaçadoras; simplificação das idéias para atingir as

massas incultas; apelo emocional; repetições; promessas de benefícios

materiais ao povo (emprego, aumento de salários, barateamento dos gêneros

de primeira necessidade); promessas de unificação e fortalecimento nacional

(CAPELATO, 1999, p.167).

Vargas foi o primeiro político brasileiro a usar a propaganda e os meios de

comunicação como parte de um projeto de poder e peça de legitimação do regime. E

foi também o primeiro político a identificar a importância política do rádio, usando-o,

conforme Ortriwano (1985, p.17), dentro de um modelo autoritário.

A propaganda política é estratégica para o exercício do poder em

qualquer regime, mas naqueles de tendência totalitária ela adquire

força muito maior porque o Estado, graças ao monopólio dos meios

de comunicação, exerce censura rigorosa sobre o conjunto das

informações e as manipula. O poder político, nesses casos, conjuga o

monopólio da força física e da força simbólica. Tenta suprimir, dos

imaginários sociais, toda representação do passado, presente e futuro

coletivos que seja distinta daquela que atesta a sua legitimidade e

cauciona seu controle sobre o conjunto da vida coletiva

(CAPELATO, 1999, p.169).

Na Alemanha nazista, a propaganda era vista não só como instrumento de

persuasão em torno dos objetivos do regime, mas era usada como uma verdadeira

7 Joseph Goebbels (1887-1945), ministro da Propaganda de Hitler, foi o principal idealizador do programa

de comunicação do regime nazista.

25

ferramenta de “hipnose” coletiva das multidões, com o objetivo de “submeter a

população, preparar as massas para as grandes tarefas nacionais e favorecer uma

revoluçao espiritual e cultural”. Capelato destaca que o próprio Hitler e o seu ministro

Goebbels destacavam a importância da propaganda e os objetivos dela esperados:

Segundo os preceitos de Hitler expressos em Mein Kampf:8 “A arte

da propaganda consiste em ser capaz de despertar a imaginação

pública fazendo apelo aos sentimentos, encontrando fórmulas

psicologicamente apropriadas que chamam a atenção das massas e

tocam os corações”. Goebbels também expôs o que se deveria

esperar da propaganda: “(...) é boa a propaganda que leva ao sucesso

(...). Esta não deve ser correta, doce, prudente ou honorável (...)

porque o que importa não é que uma propaganda impressione bem,

mas que ela dê os resultados esperados” (CAPELATO, 1999, p.168).

Na ditadura Vargas, nem todos os ideólogos ou adeptos do Estado Novo se

assumiam simpatizantes do nazi-fascismo. Mas os integrantes do governo buscaram

inspiração no regime alemão para desenvolver o projeto de comunicação varguista – e

aperfeiçoar-se na arte de, usando mensagens políticas, “envolver” as multidões em

torno de um governo totalitário que se mantinha no poder por meio da força.

Nesse tipo de discurso, o significado das palavras importa pouco,

pois, como declarou Goebbels, “nao falamos para dizer alguma

coisa, mas para obter um determinado efeito”. No Estado Novo, o

efeito visado era a conquista do apoio necessário à legitimação do

novo poder, oriundo de um golpe (CAPELATO, 1999, p.172).

A repressão política e a censura aos meios de comunicação sufocavam a

oposição ao regime e permitiram que a propaganda oficial do Estado Novo alcançasse

um nível de produção e organização até então sem precedentes no país. Inspirados

pelo exemplo alemão, os responsáveis pela comunicação varguista transformaram a

Hora do Brasil num dos principais veículos de divulgação do governo e,

principalmente, do presidente:

Os discursos de Vargas, proferidos em inaugurações, comemorações e

visitas, assim como o de seus ministros e assessores, forneciam o conteúdo

básico da propaganda. Havia controle direto sobre os veículos de

comunicação: jornais, rádios, cinema. A partir de 1940, 420 jornais e 346

revistas não conseguiram registro no DIP. Os que insistiram em manter sua

independência ou se atreveram a fazer críticas ao governo tiveram sua

licença cassada (CAPELATO, 1999, p.173).9

8 Mein Kampf, ou “Minha Luta”, em traduçao livre, é o título do livro de Adolf Hitler que resume as suas

ideias em relação ao antissemitismo e ao nacional-socialismo, também conhecido como a “bíblia nazista”.

Escrito em dois volumes – o primeiro produzido quando Hitler esteve na prisão, antes de assumir o poder, e

o segundo escrito fora da prisão e editado em 1926. 9 O jornal O Estado de S.Paulo foi um dos alvos da ditadura varguista. Em março de 1940, policiais

invadiram a sede do jornal e alegaram ter encontrado armas sobre o forro do prédio, que serviriam a uma

26

O fim da ditadura Vargas e a Voz do Brasil

O processo de desarticulação do Estado Novo começou em 1942, com o

envolvimento oficial do Brasil na II Guerra Mundial. O rompimento com a Alemanha

nazista e a aliança com os países aliados contribuíram para o enfraquecimento do

regime ditatorial. “Como justificar a manutençao da ditadura, se soldados brasileiros

lutavam na Europa em prol da democracia?” (PANDOLFI, 1999, p.11). O DIP

também teve seu poder reduzido em decorrência do alinhamento do governo federal

contra os países do Eixo. Em 1942, o diretor do órgão, Lourival Fontes, e outros

ministros de Vargas mais simpáticos às ditaduras alemã e italiana foram exonerados

diante de pressões dos movimentos antifascistas.

A derrota alemã e o fim da II Guerra Mundial, em 8 de maio de 1945,

foram determinantes para o fim do Estado Novo no Brasil. Getúlio Vargas foi

deposto pelo Exército no dia 29 de outubro de 1945, e exilado em sua cidade natal,

São Borja (RS).

Com a deposição de Vargas em 1945, o DIP foi cercado pela polícia do

Exército e os funcionários foram presos. O redator Américo Luiz da

Silva, da Hora do Brasil, redigiu o noticiário de deposição sob a mira

do capitão Pitalunga. Outro redator, Manoel Antunes Macieira,

praticamente decretou o desaparecimento da memória do DIP. Nervoso,

segundo depoimento do jornalista Henrique Brandenburguer – redator

do Departamento desde 1941 –, ele pôs fogo em preciosos documentos

do órgão (PEROSA, 1995, p.55).

Em 2 de dezembro daquele ano, foram realizadas eleições presidenciais e

o marechal Eurico Gaspar Dutra foi eleito pela coligação PSD-PTB. Dutra tomou

posse em 31 de janeiro de 1946, mas como ainda estava em vigor a Constituição de

1937 (promulgada por Vargas no início do Estado Novo), foi convocada uma

Constituinte para elaborar uma nova Carta. Os constituintes elegeram o político

catarinense Nereu Ramos como vice-presidente (pois a Carta varguista não previa

esse cargo).

Com o clima de redemocratização no país, o presidente Dutra passou a ser

pressionado por empresários do setor de radiodifusão para acabar com a Hora do

Brasil, pois o programa era visto como uma obsoleta herança fascista do Estado

Novo. Dutra, que havia sido ministro da Guerra durante nove anos do governo Vargas

reedição da revolução de 1932. Durante 5 anos, o jornal esteve sob intervenção, só retornando ao controle

da família Mesquita em dezembro de 1945, após a queda de Vargas.

27

– e que, portanto, também havia se beneficiado da propaganda oficial feita pela Hora

do Brasil,

concordou em princípio com a ideia, para logo abandoná-la ante os

argumentos dos setores político-partidários que viram no programa

um importante meio de propaganda em favor do próprio governo.

Receando desagradar os opositores da Hora do Brasil, Dutra admitiu

fazer mudanças no programa que refletissem a fase democrática

experimentada pelo país naquele momento (PEROSA, 1995, p.57).

As principais mudanças foram a alteração de nome do programa para Voz

do Brasil, a ampliação do número de apresentadores para três e a designação de 10

minutos do programa para notícias do Poder Legislativo.10

No entanto, o programa manteve, durante o mandato de Dutra, as mesmas

características de veículo porta-voz do governo. Apesar de abrir espaço para a

cobertura da Assembleia Constituinte – desde a sua instalação, em 1945, até a

promulgação da nova Constituição, em 18 de setembro de 1946, inclusive dando voz a

parlamentares comunistas11 –, o programa seguiu a linha ideológica do novo

presidente. Eleito pelas mesmas forças políticas que apoiavam Vargas (os partidos

PSD e PTB), e pelos militares que haviam derrubado a ditadura do Estado Novo,

Dutra tinha algumas diferenças em relação a seu antecessor, principalmente em

relação às ideias nacionalistas e à participação política dos trabalhadores.

O presidente Dutra era mais influenciado por empresários; abriu a

economia para o capital estrangeiro e reduziu a força das estatais. No seu governo, foi

criada a Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro, que se tornaria um

importante centro de formação político-militar anticomunista. Também, durante seu

governo, o Partido Comunista voltou à ilegalidade (em 1947), e seus parlamentares

tiveram os mandatos cassados – entre eles os 15 deputados federais –, foi dissolvida a

Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB) e foram rompidas as relações

diplomáticas com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Segundo

Lilian Perosa (1995, p.60), todos esses episódios foram narrados “sob o ponto de vista

oficial” pela Voz do Brasil.

Além da cobertura alinhada aos interesses do governo, o programa ignorou

as inovações adotadas naquela época no meio radiofônico – especialmente por

emissoras comerciais em programas como o Repórter Esso, da Rádio Nacional

10 O horário destinado a notícias do Congresso Nacional na Voz do Brasil decorria da aprovação de um

projeto de lei de autoria do deputado Angelo Mendes de Moraes. 11 Eleitos pelo Partido Comunista Brasileiro, que havia estado na ilegalidade até 1945.

28

(lançado em 1941), e o Grande Jornal Falado Tupi, da Rádio Tupi (lançado em

1942), que contribuíram para o desenvolvimento da linguagem jornalística

radiofônica, que deixou de ser “apenas a leitura no microfone das notícias dos jornais

impressos” (ORTRIWANO, 1985, p.21).

Já a Voz do Brasil manteve o estilo formal, com uma leitura linear e

monótona de “textos densos, muitas vezes ininteligíveis ao ouvinte comum”

(PEROSA, 1995, p.63). O conteúdo do programa era composto, principalmente de

decretos governamentais e discursos do presidente e dos ministros. Também foi

mantida, no governo Dutra, a obrigatoriedade de transmissão por todas as emissoras

do país. Essa obrigatoriedade da transmissão persiste até hoje e é alvo de uma

campanha por parte de entidades do setor, iniciada em 1995.12

Em outubro de 1950, Getúlio Vargas foi novamente eleito presidente pela

coligaçao “Aliança das Forças Populistas”, com a qual retomou a política de

reaproximaçao com as massas e assumiu bandeiras nacionalistas como a do “Petróleo

é Nosso”. A Voz do Brasil novamente desempenhou um papel importante nesse

propósito do presidente, que enfrentaria um novo contexto político, principalmente

com uma cobrança maior por parte do Parlamento e da imprensa. Além da Voz do

Brasil, Vargas contava com um único grande aliado na imprensa, o jornalista Samuel

Wainer (1910-1980), proprietário do jornal Última Hora.13

Nesse contexto, os conteúdos veiculados pela Voz do Brasil

priorizaram nomes em detrimento dos fatos. Explicável, portanto,

que episódios como a criação da Petrobrás (1953), e a revisão do

salário mínimo, no mesmo ano, foram sempre abordados como

dádivas do governo ou, melhor dizendo, de Getúlio Vargas. O

12 A campanha foi iniciada pela Rádio Eldorado, vinculada ao Grupo Estado, e teve a adesão de 850 emissoras e

entidades como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert). Os empresários do setor alegavam

que a Voz do Brasil era um resquício do regime autoritário e que o noticiário oficial dos Poderes da República não

atraía o interesse dos ouvintes, principalmente nos grandes centros urbanos. Argumentavam também que a

obrigatoriedade limita a liberdade de prestar serviços aos ouvintes, dar notícias e cobrir eventos esportivos. O fim da

obrigatoriedade segue sendo um pleito do setor, embora algumas emissoras retransmitam o programa em horários

alternativos, amparadas por liminares judiciais. Atualmente, tramitam no Congresso o Projeto de Lei nº 595/2003 e

a Medida Provisória 648/2014, que nao propõem o fim da obrigatoriedade, mas “flexibilizam” o horário de

transmissão do programa. 13 O jornal Última Hora foi lançado em 1951, com o apoio de Getúlio Vargas, que viabilizou um empréstimo do

Banco do Brasil ao jornalista Samuel Wainer, um ex-repórter dos Diários Associados. O jornal nasceu com o

objetivo de ser um veículo de defesa do governo Vargas. A despeito disso, o veículo desenvolveu um estilo editorial

revolucionário para a época, com o uso de fotos e títulos em linguagem informal, o que o transformou num sucesso

de público. No entanto, o posicionamento político da Última Hora e a ligação de Wainer com Vargas fizeram com

que o jornalista passasse a ser alvo de denúncias da oposição. Carlos Lacerda acusava o jornalista (filho de uma

família de judeus da Bessarábia, atual Ucrânia) de ter emigrado para o Brasil criança – o que feria a legislação

brasileira, que não permitia que estrangeiros fossem proprietários de veículos de imprensa. Wainer foi investigado

por uma CPI no Congresso Nacional, o que contribuiu para agravar a crise política do segundo governo Vargas

(WAINER, 1988).

29

mesmo ocorreu no horário do Legislativo, em que a própria estrutura

do programa, voltada principalmente para a divulgação dos discursos

da tribuna, favoreceu intensamente o personalismo político. Não

foram poucas as vezes que, nesse espaço, o principal adversário

político de Vargas, Carlos Lacerda, importante líder da UDN, do Rio

de Janeiro, realizou mordazes e agressivos ataques ao projeto

nacional-desenvolvimentista do presidente (PEROSA, 1995, p.65).

As condições políticas e a conjuntura econômica minaram o projeto de

Vargas. A inflação era crescente, o que corroía o poder de compra dos salários e

comprometia a eficácia dos programas sociais do governo. Parte da imprensa fazia

forte oposição, buscando escândalos no governo que pudessem ser denunciados. Na

imprensa, os principais opositores de Vargas eram os Diários Associados, de Assis

Chateaubriand (1892-1968), o Correio da Manhã, de Paulo Bittencourt (1895-1963),

e a Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda (1914-1977).14

No dia 5 de agosto de 1954, Lacerda sofreu um atentado na Rua Tonelero, no Rio

de Janeiro, no qual morreu o major Rubens Florentino Vaz, que fazia a segurança pessoal do

jornalista e deputado federal. Um dos envolvidos no atentado era o gaúcho Climério Euribes,

integrante da guarda pessoal do presidente, compadre do chefe da guarda Gregório Fortunato

(um homem de confiança de Vargas) e afilhado de Lutero Vargas, filho do presidente que era

deputado federal. A exploração do atentado pela oposição e pela imprensa gerou uma crise

política para o governo: foi instaurado um Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar o caso,

para garantir que não houvesse interferência do governo. Suspeito de estar envolvido, o filho do

presidente prestou depoimento ao IPM em 13 de agosto, depois gravou um depoimento com

sua defesa para a Rádio Nacional. No texto, que foi revisado pelo ministro da Justiça, Tancredo

Neves, Lutero Vargas dizia que era vítima de uma trama engendrada por “maus brasileiros,

trabalhados por ódios pessoais mesquinhos” e jurava nao ter direta ou indiretamente nenhuma

responsabilidade, “por açao ou omissao” no atentado (NETO, 2014, p.320).15

Naquele mesmo dia, conforme Perosa (1995, p.66), a Voz do Brasil

reproduziu o discurso de Lutero Vargas. Ao veicular a fala de um personagem da política

com mandato legislativo, mas que não possuía nenhum vínculo institucional com o

14 À exceção do jornal Última Hora, os principais órgãos de imprensa faziam oposição a Vargas. Mesmo

projetos desenvolvimentistas como a criação da Petrobrás e do Banco Nacional do Desenvolvimento

Econômico (atual BNDES), a ampliação da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda (RJ) e a

proposta de criação do sistema brasileiro de eletrificação, a futura Eletrobrás, sofreram ataques da

imprensa. Quando da assinatura do decreto presidencial que criou a Petrobrás, em 1953, apenas o jornal de

Samuel Wainer destacou a notícia na primeira página; os outros veículos criticaram a iniciativa de Vargas

em seus editoriais. Assis Chateaubriand definiu o projeto como um “capricho caro” do presidente e o

Correio da Manhã, como “aventura de nacionalistas rasteiros” (NETO, 2014, p.265). 15 Lutero Vargas acabou não sendo indiciado no Inquérito Policial Militar que apurou o atentado. Em

outubro de 1954, reelegeu-se deputado federal com 120 mil votos.

30

governo federal (a não ser o fato de ser filho do presidente), o programa prestou-se à

defesa incondicional do governo – mesmo diante das evidências que apontavam o

envolvimento de correligionários de Vargas no atentado.

A crise política causada pelo atentado na Rua Tonelero culminou com o

suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954. A carta-testamento deixada pelo

presidente foi lida na íntegra pelo locutor da Voz do Brasil.

Tal qual ocorrera com o presidente Dutra após o fim do Estado Novo, logo

que o vice-presidente Café Filho assumiu o cargo, ainda sob um clima de grande

comoção nacional com o suicídio de Vargas, o novo mandatário passou a ser pressionado

pelos empresários do setor de radiodifusão para extinguir a Voz do Brasil.

Cedendo às pressões, ele baixou um decreto extinguindo o programa

oficial. A Agência Nacional distribuiu a notícia aos órgãos de

divulgação. No entanto, foi necessário recolher essa notícia das

redações dos jornais e emissoras de rádio e televisão; pois Café Filho

precisou fazer um pronunciamento à Nação e só lhe foi possível, nesse

período, através da Voz do Brasil (PEROSA, 1995, p.68).

O ocaso do populismo: JK, Jânio e Jango

Café Filho foi substituído pelo mineiro Juscelino Kubitschek (1956-1960).

No governo JK, a Voz do Brasil tornou-se instrumento de divulgaçao do “Plano de

Metas” e da proposta de crescer “50 anos em 5”. O político mineiro também tinha um

estilo populista (tanto que era chamado de presidente “bossa nova”), mas preferiu

substituir o nacionalismo característico da era Vargas pelo “desenvolvimentismo”. Nesse

sentido, além de implementar a indústria automobilística nacional (entre outras), o

governo teve como principal legado a construção da nova Capital Federal, Brasília,

“inaugurada” em abril de 1960. JK usou a Voz do Brasil para fazer um “afago” ao povo

carioca na despedida do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro:

A tranquilidade de consciência pelo dever cumprido se reúne a tristeza do

adeus a esta encantadora cidade do Rio de Janeiro, que, com inexcedível

generosidade, hospedou o Governo durante quase dois séculos. (...) Estou

certo de que, embora de longe, o magnetismo da vossa cidade continuará

a imprimir caráter particular a decisões fundamentais para os rumos do

Brasil e que os vossos centros de cultura prosseguirão jorrando a luz que

dirige a marcha do Brasil para o seu grande destino.16

Em 1960, o governador de São Paulo, Jânio Quadros, foi eleito com uma

votação recorde (quase seis milhões de votos) para suceder JK. Também com estilo

16 Discurso de JK trasmitido pela Voz do Brasil em 19 de abril de 1960. In Biblioteca da Presidência da

República. Disponível em <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/jk/discursos-1/1960/

18.pdf/download>. Acesso em 12 fev 2015.

31

populista, Jânio tinha como principal “bandeira” o combate à corrupçao (o símbolo de

sua campanha era uma vassoura usada, metaforicamente, para varrer a corrupção), Jânio

teve uma carreira política meteórica, iniciada como vereador na cidade de São Paulo até

chegar a presidente.17

Com uma grande habilidade para usar recursos publicitários em suas

campanhas políticas, como presidente, Jânio aproveitou-se da Voz do Brasil e inculcou-

lhe o mesmo “estilo autoritário, moralista e extremamente personificado”, um

“populismo de direita, militarista, antiparlamentar”, conforme Maria Victoria Benevides.

O presidente “virava” notícia graças a medidas polêmicas ou decretos às vezes insólitos,

que eram utilizados como recursos publicitários: eram “decisões pessoais do presidente

da República para questões disparatadas e insólitas, obviamente deslocadas da órbita

governamental” (BENEVIDES, 1981, p.24).

Todas essas medidas eram noticiadas pela Voz do Brasil. Entre as decisões

polêmicas de Jânio, estavam a proibição do funcionamento de jóqueis clubes nos dias úteis, o

banimento das brigas de galo, do uso de lança-perfume nos bailes de Carnaval e também a

proibição de maiôs “cavados” nos concursos de beleza. Apesar de sua orientação política à

direita, Jânio condecorou, em agosto de 1961, Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul.

Na Voz do Brasil, o presidente era retratado como uma espécie de “salvador da pátria”:

Imerso nessa cadeia ideológica provinciana, o programa oficial, embora

altamente centralizado, ficou fragmentado em pequenas ordens,

proibições, reclamações ou simples avisos, carregados de uma aura

onipresente de quem se apresentou, sem o menor pudor, como o

messias após o caos (PEROSA, 1995, p.76).

Seis meses após tomar posse, Jânio renunciou ao mandato, e o vice-

presidente, João Goulart, assumiu o posto somente após a instituição do regime

parlamentarista pelo Congresso Nacional. Mesmo com poderes limitados, Jango,

como era popularmente conhecido, seguiu com um plano de reformas de base, que

propunha transformações nos sistemas agrário, financeiro, eleitoral etc.

Em 1962, foi aprovado pelo Congresso Nacional o Código Brasileiro das

Telecomunicações, que provocou mudanças no formato da Voz do Brasil. O decreto

que regulamentou o Código, assinado por Jango em 1963, determinava que o

17 Jânio Quadros foi eleito suplente de vereador aos 30 anos e assumiu uma vaga na Câmara Municipal de

São Paulo em 1948, após a cassação dos mandatos dos políticos do Partido Comunista Brasileiro, por

determinação do presidente Dutra. Em 1951, foi eleito deputado estadual com a maior votação da época,

depois prefeito de São Paulo (1953), governador (1955) e presidente (1960).

32

programa tivesse 30 minutos reservados ao Poder Executivo e Judiciário e os outros

30 minutos à Câmara e ao Senado.18

Mais uma vez a Voz do Brasil foi usada como veículo oficial de divulgação

das propostas do presidente. Em meio a uma crise política e institucional, decorrentes da

reação contrária de setores mais conservadores às reformas propostas por Jango, em 13

de março de 1964, ocorreu um grande comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro,

organizado pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e pela Assessoria Sindical da

Presidência. O objetivo de Jango era pressionar o Congresso a votar as reformas de base,

e o comício teve ampla cobertura jornalística da Voz do Brasil. No entanto, o episódio

despertou o receio dos militares – e de parcelas de civis mais à direita – quanto a uma

possível radicalização do governo à esquerda. Em 31 de março, o governo Jango foi

deposto por um golpe e teve início o período da ditadura militar.19

Na edição do dia 1º de abril de 1964, a Voz do Brasil mudou a orientação e

abandonou a defesa das reformas sociais. O programa anunciou, de forma solene, a

“revoluçao” (a palavra “golpe” seria prudentemente evitada nos 21 anos seguintes) e

destacou que o objetivo do movimento dos militares era deter a “ameaça comunista” que

pairava sobre o Brasil e garantir o retorno do país à “normalidade democrática”

(CASTRO, 2010).

O programa oficial entraria num longo período de controle absoluto de seu

conteúdo pelos militares no poder.

O regime militar e uma nova herança autoritária

O regime militar começou com uma junta composta pelos chefes das três

armas, que editaram o primeiro Ato Institucional da ditadura (AI-1) em 9 de abril de

1964. O texto justificava o golpe como sendo uma “revoluçao”:

É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba

de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve

e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no

comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional,

é uma autêntica revolução. A revolução se distingue de outros

18 Decreto nº 52.795, de 31 de outubro de 1963. Disponível em <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/

Antigos/D52795compilado.htm>. Acesso em 21/07/2014. 19 O golpe militar foi deflagrado na madrugada do dia 31 de março de 1964. No dia seguinte, sem apoio da

parcela de oficiais militares “legalistas”, que permitiria uma resistência militar ao golpe, e dos movimentos

sindicais, que dariam apoio popular e político à resistência, o presidente João Goulart viajou para Porto

Alegre, e em seguida exilou-se no Uruguai.

33

movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a

vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.20

Apesar de o AI-1 ter adotado medidas autoritárias – como instituir a eleição

indireta para presidente e dar poderes aos militares para cassar mandatos de políticos e

exonerar funcionários públicos “desde que tenham atentado contra a segurança do País, o

regime democrático e a probidade da administraçao pública” – foi no governo seguinte,

do general Castello Branco (1964-1967), que foram adotadas as medidas que

endureceram o regime. O Ato Institucional nº 2 fechou o Congresso após as eleições de

outubro de 1965 e implantou o bipartidarismo; dissolveu organizações sindicais como o

Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), as ligas camponesas e a União Nacional dos

Estudantes (UNE); e decretou a Lei de Imprensa, que visava controlar o fluxo de

informação nos veículos, assim como regular o trabalho dos jornalistas profissionais.

Nesse contexto, a Voz do Brasil teve reforçada sua “vocaçao” de porta-voz oficial.

Já no governo Costa e Silva (1967-1969), a preocupação com a legitimidade

do poder central levou à criação da Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP)21.

Entre outros objetivos, o órgao deveria “captar os interesses e as aspirações” e “auscultar

os anseios nacionais” e, com base neles, sugerir as ações governamentais; realizar

campanhas educacionais para fortalecer o caráter nacional; trabalhar em prol da “criaçao

de um sentimento de aglutinaçao nacional”; e contribuir para o “incremento de uma sadia

mentalidade de segurança nacional”, entre outros (CAPARELLI, 1986, p.34).

Apesar de criada no fim do governo Costa e Silva, a AERP entrou,

efetivamente, em operação e ganhou força no governo do general Emílio Garrastazu

Médici (1969-1974). Assim que assumiu a presidência, Médici incluiu a comunicação

entre as “principais diretrizes” de seu governo, apresentadas em reuniao ministerial no dia

6 de janeiro de 1970. Determinava o general-presidente:

Objetivando informar a opinião pública, motivar a vontade coletiva para o

esforço nacional de desenvolvimento e contribuir para o prestígio

internacional do Brasil, será estabelecido um Sistema de Comunicação

Social, com base na atuação dos órgãos do Poder Executivo. Princípios de

verdade, legitimidade, integração de esforços, eficiência e impessoalidade

regerão a comunicação social do governo. O órgão de direção central do

sistema será a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP). Integrar-

se-ão ao sistema os órgãos de relações públicas dos ministérios e do

20 Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ AIT/

ait-01-64.htm>. Acesso em 12/02/2015. 21 A AERP foi criada pelo Decreto n° 62.119, de 15 de janeiro de 1968, sendo vinculada ao Gabinete da

Casa Militar da Presidência.

34

Estado-Maior das Forças Armadas, bem como órgãos similares da

administração indireta (MOREIRA, 1998, p.75)

Considerado de linha dura, o governo Médici foi marcado pela violenta

repressão aos opositores, pela censura aos meios de comunicação e pela tortura adotada

nos órgãos de segurança. A AERP passou a ter papel estratégico na criação de uma

imagem positiva do presidente junto à populaçao, que o distinguisse da “realidade”

autoritária e repressiva do governo. Para tal propósito, foram colocadas em prática

algumas das conclusões do I Seminário de Relações Públicas do Poder Executivo,

realizado no final de 1968, ainda no governo Costa e Silva, que visavam humanizar a

imagem do presidente, trabalhando uma “propaganda ideológica para que as pessoas se

encontrassem na figura de seu governante” (NAVES, 2012, p.2).

A AERP transformou-se, assim, no principal instrumento de promoção

institucional da imagem do governo e especialmente do presidente Médici, a partir do

aproveitamento integral da figura do presidente, no seu aspecto humano,

moderado e compreensivo, para caracterizar toda a campanha orientada no

sentido da valorização do homem, a única suscetível de criar uma imagem

efetiva e imediata do governo (CHAPARRO, 2011, p.43).

Com este mandato, a AERP produziu e difundiu os slogans ufanistas que

marcaram essa fase do regime militar, como “Brasil: ame-o ou deixe-o” e “Ninguém

segura este país”. O tricampeonato de futebol conquistado pela Seleçao Brasileira em

1970 também foi usado pela AERP para trabalhar a imagem do presidente – que

apreciava o futebol – e que explica, em parte, a popularidade do general Médici, a

despeito da tortura e da guerrilha que ocorriam no país naquele período.

Como tinha mandato para negociar as verbas de propaganda oficial com os

veículos privados, a AERP tornou-se o órgão mais forte da comunicação oficial,

gerenciando um orçamento generoso. Essa verba foi usada pelo coronel Otávio Costa,

chefe da AERP no governo Médici, para tentar evitar a comparação da agência com o

DIP da era Vargas, criando

uma nova modalidade de propaganda política no Brasil, que se

amparava nos modernos recursos oferecidos pelos meios de

comunicação de massa e que absorvia e recriava padrões de

comportamento, crenças, instituições e outros valores espirituais e

materiais tidos como conformadores da sociedade brasileira. Um tipo de

propaganda que subsistiria por muito tempo (FICO, 1997, p.50).

A propaganda oficial trabalhava a ideia de desenvolvimento, de “milagre

econômico” e tendia a despolitizar a comunicaçao.

35

A AERP tinha como principal foco a despretensão política em suas

propagandas. Abusava de sentimentalismo como o amor e a

solidariedade e nao fazia referências políticas. Isso para que a “massa”,

que os militares consideravam despreparada para o voto, se contentasse

com os rumos que o país estava tomando. Para eles, não era um povo de

vontade coletiva. Essas propagandas educativas situavam os

governantes em uma “autoridade moral”, que era o que mantinha o seu

status quo. A ideia era de uma democracia camuflada pelo “milagre

econômico”, dessa forma, a justificativa seria a de que, para existir um

desenvolvimento, se fazia necessária a presença de um governo forte: o

militarismo (NAVES, 2012, p.2).

No governo Médici, a TV se tornou o principal canal de veiculação das

propagandas do governo, devido à grande penetração que o meio ganhara desde meados

dos anos 60, o que se explica pelo aumento das concessões feitas à inicitiva privada.22 A

propaganda oficial mostrava grandes projetos de integração nacional, como a hidrelétrica

de Itaipu, a rodovia Transamazônica e Ferrovia do Aço, que contribuíam para construir,

nas propagandas exibidas pela televisão, a imagem de um Brasil grande.

Apesar do foco na TV, o rádio manteve-se como peça importante para a

propaganda governamental, devido à sua capilaridade, principalmente no interior do país.

A propaganda oficial era veiculada tanto em horários gratuitos requisitados da

programação das emissoras de rádio e TV, quanto pela Agência Nacional, que distribuía

as “notícias” do governo para as emissoras e as veiculava na Voz do Brasil (que na época

era um programa vinculado à Agência).23

Embora não fosse responsável pela produção da Voz do Brasil, a AERP se

preocupava com a audiência do programa oficial. Uma pesquisa de opinião encomendada

pelo órgão, em 1971, apontou que apenas 8% dos brasileiros ouviam frequentemente a

Voz do Brasil, enquanto 51% nunca a tinham ouvido e 41% só raramente. A pesquisa

limitou-se às zonas rurais do país, onde o governo supunha que a penetração do programa

fosse maior (PEROSA, 1995, p.95). Nenhuma grande transformação estrutural ocorreu

no conteúdo da Voz do Brasil durante o governo Médici; houve apenas a substituição da

ópera O Guarani, na vinheta de abertura, pelo Hino da Independência, tocado em tom

solene, e a adoção da frase de abertura “Em Brasília, dezenove horas”.

22 Durante os primeiros 14 anos de existência da TV no Brasil (1950-1964), foram concedidas à exploração

da iniciativa privada 33 canais; nos 14 anos seguintes (1964-1979), quando o país vivia sob o regime

militar, o número de concessões foi de 112 (CAPARELLI, 1986, p.23). 23 Depois de 20 anos subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, a Agência Nacional foi

transferida para o Gabinete Civil da Presidência, em fevereiro de 1967, por meio de decreto de Castello

Branco. Esse decreto determinou também a criação dos setores de Redação, Estúdio e Televisão, o que fez

com que a Agência Nacional assumisse o papel de principal órgão distribuidor das informações oficiais.

36

Quando assumiu a presidência, o general Ernesto Geisel (1974-1979)

enfrentou um período de desgaste do regime em razão da crise econômica – que

esvaziava o discurso do “milagre econômico” usado por Médici. Sob a influência do

ministro-chefe da Casa Civil, o general Golbery do Couto e Silva, o governo Geisel deu

início a um lento processo de abertura política, que se arrastaria por todo o seu governo.

Convocado para assumir a AERP, o coronel José Maria de Toledo Camargo

passou a usar o rádio com maior frequência para a propaganda oficial, com o objetivo de

atingir os lugares mais remotos do país. Na campanha “Este é um país que vai pra

frente”, os conteúdos eram renovados a cada 15 dias e, “somente na etapa inicial dessa

campanha, cinco mil discos foram distribuídos para 800 estações de rádio e cerca de três

mil serviços de alto-falante” (MOREIRA, 1998, p.77).

A Voz do Brasil, especificamente, prestava-se ao projeto de abertura

engendrado pelo general Golbery. Esse projeto previa uma distensao política “lenta,

gradual e segura”. Na data simbólica de 31 de março de 1974 (décimo aniversário do

golpe militar), o programa transmitiu a íntegra de um discurso de Geisel sobre as bases

do projeto de abertura, no qual o general-presidente assumia que almejava “uma

democracia que nos propicie a paz interna, a justiça social e o fortalecimento da

segurança nacional” (PEROSA, 1995, p.117).

A segurança nacional à qual se referia o presidente passava por uma

reorganização do sistema radiofônico brasileiro, com a distribuição de novas concessões

de emissoras em frequência modulada (FM), até então usada apenas experimentalmente

no país. O Plano Básico de Canais FM, lançado pelo Ministério das Comunicações em

1975, concedeu incentivos à indústria para fabricar receptores com a “nova” faixa de FM,

que possuía melhor qualidade sonora e, portanto, era mais adequada à programação

musical que ao jornalismo. O projeto pretendia ainda fazer com que o Brasil tivesse mais

de mil emissoras em FM no final da década de 70.24

Em 15 de dezembro de 1975, o presidente Geisel sancionou a lei que criou a

Empresa Brasileira de Radiodifusão, Radiobrás. Com sede em Brasília, a estatal passou a

ser responsável pela produção da Voz do Brasil e pela gestão de todas as emissoras de

rádio e TV pertencentes ao governo federal. A centralização do comando dos veículos

24 A distribuição das emissoras em FM à iniciativa privada foi inspirada no “estilo de ocupação militar”.

“Seguindo um planejamento anual, o Ministério das Comunicações selecionava, em cada região, primeiro

as cidades com mais de 500 mil habitantes, depois aquelas com 300 mil, 200 mil etc., para distribuir os

canais de radiodifusão” (MOREIRA, 1998, p.79).

37

oficiais de comunicação em Brasília também estava alinhada à doutrina de segurança

nacional. A lei que criou a estatal determinava que

as emissoras da Radiobrás deverão operar dentro de elevados padrões

técnicos e propiciar a cobertura necessária para atender sobretudo as

regiões de baixa densidade demográfica e reduzido interesse

comercial, e as localidades julgadas estrategicamente importantes para

a integração nacional.25

Apesar de anunciar a integração nacional como um de seus principais objetivos, a

Radiobrás e, especificamente, a Voz do Brasil prestaram-se ao papel de veículos chapa-branca,

conforme o jargão jornalístico.26 Além disso, o fato de a estatal concentrar seus funcionários na

Capital Federal fez com que a empresa se tornasse um “cabide” de empregos para

correligionários dos detentores do poder. Segundo Bucci, essa característica atravessou o

período militar e sobreviveu nos governos civis que o sucederam.

Criada pela ditadura militar em 1976, (...) sua função propagandística

sobreviveu à ditadura, invadindo sem cerimônia o período

precariamente democrático que se seguiu a 1985. Fixou-se, desde

então, o costume de que o partido do governo, qualquer que fosse ele,

poderia aparelhar a Radiobrás (BUCCI, 2008, p.26).

Pressionado por setores da sociedade civil que pediam a abertura política – em

protesto contra episódios como o assassinato, em 1975, do jornalista Wladimir Herzog no DOI-

Codi paulista –, o governo Geisel usou novamente a Voz do Brasil para anunciar a

promulgação da Emenda Constitucional nº 11, em 13 de outubro de 1978, que revogava todos

os Atos Institucionais que ferissem a Constituição Federal – o que na prática permitiu a volta de

exilados ao país, o livre exercício dos direitos políticos e a redemocratização política.

No último governo militar, comandado pelo general João Baptista Figueiredo

(1979-1985), já em meio ao processo de “abertura”, foi criada a Secretaria de

Comunicação Social (Secom) – e a Agência Nacional transformou-se na Empresa

Brasileira de Notícias (EBN). A Secom passou a ser responsável pela unificação do

sistema de comunicação do governo e, principalmente, de suas verbas. A nova estrutura e

essa estratégia de comunicação do governo foram documentadas nas Diretrizes Setoriais

do Presidente João Figueiredo para a Secom, que previam que o programa Voz do Brasil

seria “reformulado, para dar-lhe mais vitalidade e melhores condições de audiência”. No

entanto, a Secom teve vida curta e foi extinta em abril de 1981. A Radiobrás passou a ser

25 Lei nº 6.301/75, parágrafo 1º, artigo 1º. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/

L6301.htm>. Acesso em 12 fev 2015. 26 Expressão que define veículos de comunicação alinhados aos interesses dos governos, uma metáfora que

faz referência à frota oficial de automóveis, que é emplacada com chapas de cor distinta dos particulares.

38

vinculada ao Ministério das Comunicações, enquanto a EBN (e a Voz do Brasil)

respondia ao Ministério da Justiça. Sob essa nova estrutura, o programa tentou

assumir características de um radiojornalismo mais dinâmico, ao estilo

das emissoras privadas. Para tanto, foram introduzidas vinhetas

(pequenas ilustrações musicais intranoticiário), a participação direta

do repórter na apresentação da notícia e gravações de entrevistas ou

depoimentos com membros do governo. Além disso, a apresentação

do noticiário ficou atribuída a dois locutores, um homem e uma

mulher, para suprimir o tom linear de uma única locução masculina

(PEROSA, 1995, p.126).

Essas “inovações”, no entanto, estavam limitadas pelo que Lilian Perosa

(1995, p.126) define como “limitações históricas e burocráticas” do programa, a principal

delas ligada ao fato de sua equipe de produção ser formada, predominantemente, por

jornalistas e por profissionais de outras áreas sem o domínio da linguagem radiofônica. O

ministro da Justiça, Ibrahim Abi Ackel, anunciou em discurso na própria Voz do Brasil os

princípios da “nova” comunicaçao do governo: pretendia “tornar possível e fácil o acesso

dos meios de comunicação e de crítica aos atos do governo”. No entanto, o discurso

ministerial gerou desconfianças, pois ao anunciar o propósito da EBN de nao “dirigir,

distorcer ou condicionar a informaçao”, deixava escapar a sugestão de que isso

costumava ocorrer na Voz do Brasil.

Na prática, esse propósito acabou negado pelo próprio conteúdo veiculado na

Voz do Brasil, que preservou o estilo de subserviência às autoridades. A diferença era

que, no governo Figueiredo, as “proibições” passaram a ser tratadas como “orientações”

de ministros e de outros integrantes do governo.

Durante a campanha presidencial de 1985, na qual o candidato da oposição,

Tancredo Neves (da Aliança Democrática), disputaria com o candidato oficial Paulo

Maluf (PDS) os votos do Colégio Eleitoral, tanto a Voz do Brasil quanto a EBN

receberam a “orientaçao” de concentrar a cobertura apenas na candidatura oficial.

Dois repórteres e um fotógrafo da EBN foram contratados para

acompanhar diariamente o candidato do PDS. Os próprios funcionários

encararam a orientação com ironia e comentaram que a agência deixou

de ser EBN – Empresa Brasileira de Notícias – e passou a ser EBM –

Empresa Brasileira do Malufismo (PEROSA, 1995, p.127).

A Voz do Brasil não veiculou, antes da eleição indireta, em janeiro de 1985,

nenhuma notícia sobre o candidato da oposição. No entanto, jornalistas da EBN em Brasília e

dos escritórios regionais foram mobilizados para acompanhar todos os comícios de Tancredo

Neves. Os relatos desses comícios funcionavam como uma espécie de “monitoramento” da

39

campanha: detalhavam o desempenho do candidato, os principais políticos presentes em cada

evento, a quantidade de público, o número de bandeiras vermelhas etc. Os jornalistas faziam

um trabalho de “patrulha” da chapa da oposiçao, visto que nenhuma dessas informações teve

aproveitamento na Voz do Brasil (PEROSA, 1995, p.127).

A Nova República e a “nova” Voz do Brasil

Com a eleição de Tancredo pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985,

a EBN e a Voz do Brasil tiveram de se adaptar aos novos ares da República, que voltaria

a ser comandada por um civil após 21 anos de presidentes militares. Tancredo montou o

novo ministério, mesclando forças progressistas (do PMDB autêntico e de partidos mais à

esquerda) e conservadoras (quadros oriundos do PDS que o apoiaram na eleição). Na

véspera da posse, 14 de março de 1985, o presidente eleito foi internado no Hospital de

Base de Brasília e submetido a uma cirurgia. Quem assumiu o cargo foi o vice-presidente

da chapa, José Sarney. Tancredo morreu 38 dias após a eleição e Sarney completou o

mandato até 1990, no período conhecido como Nova República.

As mudanças pelas quais passariam a EBN e a Voz do Brasil, a partir do

início da Nova República, tiveram inspiração nas ideias de um grupo de professores da

Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Coordenado por Venício

Lima, Murilo César Ramos, Salomão Amorim e Luiz Gonzaga Motta, esse grupo vinha

se dedicando, desde a segunda metade dos anos 70, a pensar políticas de comunicação

pública adequadas a um governo democrático.

Ao grupo acadêmico juntaram-se alguns jovens jornalistas de Brasília, que faziam

oposição à entao diretoria do sindicato da categoria, que consideravam “pelega”. Entre eles,

estavam Helio Doyle, Armando Rollemberg e Carlos Marchi. A chapa deles ganhou a eleição

sindical em 1976, tendo como candidato a presidente o veterano Carlos Castello Branco (1920-

1993), o Castelinho, reconhecido colunista político do Jornal do Brasil. Também se juntaram

ao grupo parlamentares de oposição ao governo militar, como a deputada Cristina Tavares

(1934-1992), da ala “autêntica” do PMDB. Desse grupo diverso, nasceram as ideias que

inspirariam um novo modelo de comunicação oficial.

A gente fazia reuniões bastante produtivas. E essas reuniões começaram

a se encaminhar para projetos. Talvez essa seja a grande diferença entre

a Voz do Brasil que sempre se fez e a Voz do Brasil que se fez naquele

período, porque [o programa] era parte desse projeto maior. A gente

entendia que a comunicação institucional, acima de tudo, tinha de ser

pública, não estatal. Esse era um fundamento essencial. Não era um

serviço que a gente prestaria ao governo, era um serviço que a gente

40

prestaria à sociedade. Portanto, tinha aí engatado e subentendido o

compromisso da absoluta verdade, da não mistificação, da não

demagogia (MARCHI, 2015).27

Carlos Marchi, jornalista carioca que estava radicado em Brasília há anos e

que participava desse grupo, havia se integrado à campanha de Tancredo Neves em

meados de 1984. Escolhido para a presidência da EBN após a vitória da Aliança

Democrática, em janeiro de 1985, indicou os outros três diretores da empresa para

viabilizar a implantação do novo projeto editorial: o professor Luiz Gonzaga Mota, da

UnB, foi escolhido para o cargo de diretor de Planejamento, que não existia antes; já o

diretor responsável pelo conteúdo jornalístico seria Luiz Roberto Serrano; e, como diretor

Financeiro, Marchi convidou Emerson Almeida, que havia trabalhado nessa área no

Ministério da Educação (MEC).

A despeito dessa diretoria comprometida com o projeto, o processo de

mudança editorial na EBN não foi fácil, pois havia resistências às transformações na Voz

do Brasil por parte do próprio governo – o projeto de comunicação da Nova República e

as mudanças na Voz do Brasil haviam sido pensados para serem implantados num

governo Tancredo Neves. Com a doença e a morte do presidente eleito, a equipe da EBN

teve de se submeter a José Sarney, político oriundo do partido governista, que

representava a oligarquia nordestina e tinha perfil bem mais conservador, conforme

depoimento de Luiz Gonzaga Mota a Fernando Oliveira Paulino:

Embora Tancredo fosse um político conservador, ele era um político

tolerante, que era muito próprio da política mineira daquela época. Você

era conservador, mas tolerava. E, na área da cultura, dizia-se que você

era de esquerda; na área de política, de centro; e na área da economia,

conservador. Então como ele era, mesmo no conservadorismo, um

pouco avançado na área da cultura, o Tancredo se abriu muito

(PAULINO, 2009, p. 108).

A EBN era vinculada ao Ministério da Justiça, para o qual Tancredo Neves

havia indicado Fernando Lyra (1938-2013), político de perfil progressista e que apoiava o

projeto de renovação da Voz do Brasil. Apesar do apoio do ministro Lyra – que era amigo

de Marchi havia anos –, a direçao da empresa logo percebeu que nao seria fácil “fazer

jornalismo com independência dentro de um governo, ainda mais um governo

pluripartidário”. O primeiro embate da nova direçao da EBN com outros setores do

governo ocorreu após a demissao de 10 jornalistas que eram considerados “malufistas”,

logo no início da gestao de Carlos Marchi. “Nós os ‘justiçamos’ em praça pública”, relata

27 Entrevista concedida ao autor, em 15 jul 2015, reproduzida na íntegra nos Apêndices desta dissertação.

41

o jornalista. Fernando César, assessor de Sarney e que conhecia o presidente da EBN dos

tempos de redação do Jornal do Brasil, telefonou para ele com um pedido do Planalto

para que voltasse atrás nas demissões. Marchi negou-se a readmiti-los. “Sarney nao era

propriamente um presidente, era um ‘subpresidente’ que tinha eventualmente assumido o

governo, e Tancredo ainda estava vivo”, lembra.

Além do Sarney, eu comecei a receber telefonemas de colegas meus

jornalistas, principalmente os que cobriam a Câmara e que eram muito

ligados a todos os partidos. (...) Isso foi um fator de intenso desgaste,

até que a gente venceu a parada, não os readmitimos. Mas ficou uma

cicatriz (MARCHI, 2015).

Em relação ao projeto editorial em si, a equipe de Marchi contava com o

apoio incondicional do ministro da Justiça, conforme depoimento ao próprio programa,

em 19 de março de 1985:

De uma empresa de notícias se espera mais: a notícia expressando

fielmente os fatos acontecidos em um país livre e soberano e não a

informação a serviço do governo ou de seu partido, mas a notícia real

que o público tem direito de saber e o governo de prestar contas sem

escamoteações, subterfúgios, interesses inconfessados ou objetos de

servilismo (PEROSA, 1995, p.140).

Na comemoração dos 50 anos da Voz do Brasil, em 22 de julho de 1985, o

próprio presidente Sarney fez um pronunciamento em defesa do programa:

“Modernizada, reformulada, a Voz do Brasil tem estabelecido um amplo

diálogo do governo com a sociedade e cumpre um importante papel

para a Nova República, estabelecendo um largo canal de comunicação

entre o governo e o povo” (PEROSA, 1995, p.141).

Sob a gestão de Carlos Marchi, o programa resgatou a introdução da ópera O

Guarani como tema de abertura e passou a usar uma linguagem menos pomposa no

noticiário. “O novo projeto tratou logo de suprimir o tom marcial dos locutores, herança

do DIP, e adotou uma narração mais natural, procurando instaurar uma linguagem mais

descontraída e direta” (PEROSA, 1995, p. 142).

Mas as principais mudanças adotadas na gestão Marchi foram no conteúdo:

para combater o estilo “chapa-branca”, foi adotado um sistema de pautas e uma rotina de

reuniões de avaliação do programa entre diretores, repórteres e editores. O projeto

editorial estava alinhado com os princípios democráticos da Nova República. Em um

artigo escrito para o Jornal de Brasília, Marchi definiu o conteúdo da Voz do Brasil como

“um jornalismo oficial com dignidade”:

“Temos que libertar o jornalista em seu trabalho. Dar-lhe condições de

operar sem limitações, o que antigamente era norma. Por exemplo: o

42

repórter da EBN deve perguntar e não se omitir nas entrevistas, como se

não tivesse aquele direito. Deve escrever tudo. Não deve ignorar as

críticas eventualmente feitas a setores do governo, desde que partam de

oposição responsável. Enfim, deve liberar sua competência e

criatividade”.28

Entretanto, ao colocar em prática a proposta de abrir espaço para líderes da

oposição, a Voz do Brasil passou a receber críticas de dentro do governo, principalmente

os militares. Um exemplo desse embate se deu quando foi feita pela EBN uma entrevista

com o governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, que fazia oposição a Sarney. Antes

de decidir se a entrevista seria incluída na Voz do Brasil, Marchi distribuiu, via telex, a

matéria aos jornais, para checar a repercussão que teria. Logo que a matéria foi

distribuída, Marchi recebeu um telefonema informando que o general Ivan Mendes de

Almeida, ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), tinha ido reclamar

da EBN com o próprio presidente da República. Sarney teria respondido ao chefe do SNI

que “o pessoal” da EBN era “meio rebelde” – mas o general não ficou convencido.

Ciente de que o projeto talvez não tivesse vida longa, Marchi decidiu colocar a entrevista

na Voz do Brasil, pois seria o seu álibi: se Sarney o demitisse, ele poderia dizer que havia

sido demitido por ter feito bom jornalismo.

No início de 1986, passando por uma crise econômica devido a uma inflação

alta, Sarney promoveu uma reforma ministerial. Fernando Lyra foi substituído na pasta

da Justiça por Paulo Brossard (1924-2015), político gaúcho mais conservador. Diante das

incertezas e “completamente desprotegido”, o presidente da EBN buscou uma

“blindagem” para o seu projeto jornalístico:

Quando o Fernando Lyra saiu, a gente pensou: “Nao teremos mais

tempo, a gente tem que correr para implantar dignamente um projeto”.

Sabia que não poderia levar até o fim (o projeto), mas a gente queria

implantar uma série de coisas que fossem difíceis de serem revertidas

depois, que criassem história, que criassem vínculo (MARCHI, 2015).

Uma dessas estratégias de blindagem foi reforçar o papel de agência noticiosa

da EBN, por meio de parcerias editoriais com agências oficiais de outros países – como

Portugal, Espanha, Argentina e Angola. Marchi sabia que essa não era a diversidade de

conteúdos ideal, mas permitiria que a EBN “se desvinculasse da via hegemônica do

jornalismo dos Estados Unidos”. Conseguiu convencer o chefe do Departamento de

Promoção Comercial do Itamaraty, o embaixador Paulo de Tarso Flecha de Lima, de que

28 O artigo “EBN: a Voz do Brasil vai ser ouvida”, de autoria de Carlos Marchi, foi publicado pelo Jornal

de Brasília em 26 mar 1985 (PEROSA, 1995, p.141)

43

esses acordos eram importantes para o comércio internacional do país. O diplomata

passou a defender o projeto editorial da EBN e, indiretamente, contribuiu para que a

equipe que comandava na empresa fosse preservada.

Desde antes da saída de Fernando Lyra do ministério, já havia um movimento

dentro do governo para que a EBN fosse transferida para o Ministério das Comunicações,

comandado pelo baiano Antônio Carlos Magalhães (1927-2007), o ACM, uma das

principais lideranças oriundas do PDS que dava suporte à Aliança Democrática. O aval

de Flecha de Lima ao projeto da EBN também foi importante porque o embaixador era

muito próximo do ministro. “E quando o ACM começou a avançar sobre a gente, o Paulo

de Tarso nos protegia, dizendo que estávamos trabalhando em conjunto” (MARCHI,

2015).

Apesar do perfil mais conservador de Paulo Brossard, não foi isso que levou à

saída de Marchi do governo. Uma das medidas administrativas adotadas na EBN para

engajar os seus jornalistas havia sido a elaboração de um plano de carreira para aqueles

que atuavam na chamada área “fim” da empresa (os jornalistas), definindo faixas salariais

e regras de entrada na equipe jornalística da estatal. A nova equipe do Ministério queria

fazer indicações de jornalistas para a EBN, ignorando essas regras de entrada. Esse

embate durou até a saída de Marchi da EBN, sem que ele tenha atendido aos pedidos do

ministro.

Mesmo após a reforma ministerial de janeiro de 1985, quando boa parte dos

profissionais de orientação mais à esquerda deixou o governo, não houve uma maior

pressão sobre o conteúdo da Voz do Brasil, ou tentativas de interferência na pauta do

programa. Nem quando foi lançada a principal bandeira do governo Sarney, o Plano

Cruzado,29 que congelou os preços e salários para tentar conter a hiperinflação, a Voz do

Brasil foi pressionada a mudar a forma como cobria os assuntos do governo:

Na época, todo mundo acreditava no Plano Cruzado – a cobertura da

imprensa da época foi muito favorável, porque as pessoas estavam

sufocadas pela inflação, pelos males da economia, e queriam uma saída,

queriam acreditar que aquela saída era boa, exequível. Eu não me

lembro de nenhuma pressão; pouquíssimas vezes eu recebi um

telefonema do Planalto para cobrir ou deixar de cobrir alguma coisa”

(MARCHI, 2015).

29 O Plano Cruzado foi anunciado em 28/02/1986 pelo então ministro da Fazenda, Dilson Funaro. O plano

econômico tinha características heterodoxas (inspiradas em John Keynes), pois adotava como medidas de

combate à hiperinflação o congelamento de preços, salários e da taxa de câmbio, entre outras.

44

Se historicamente a Voz do Brasil sempre foi um produto que atraiu o

interesse dos políticos no poder, o programa não era o principal foco da equipe de

Marchi. Na verdade, eles queriam implantar seu projeto jornalístico em toda a EBN,

fazendo com que a empresa fosse reconhecida internacionalmente como uma agência

noticiosa brasileira de credibilidade, não apenas como a produtora da Voz do Brasil.

Tanto que Marchi chegou a propor ao presidente da República um projeto para acabar

com o programa de rádio:

O Sarney deu pulo da cadeira e disse: “Você nao é do Nordeste, você nao

sabe o que que é a Voz do Brasil no Nordeste. Leva esse projeto para o

Congresso e mostra para um deputado do interior do Nordeste e pergunta o

que ele acha. Ele vai pular na sua carótida” (MARCHI, 2015).

O projeto de transformação da EBN em uma agência de notícias internacional

incluiu ainda uma “utopia inovadora”, segundo Marchi: a proposta para que os grandes

jornais brasileiros se tornassem sócios da estatal, pois assim poderiam se beneficiar dos

conteúdos fornecidos por outras agências internacionais:

A ideia era incorporar os jornais à EBN, como acionistas da empresa, e

permitir que eles fossem abastecidos com as notícias nacionais

produzidas pela agência – e com notícias internacionais enviadas de

outros países. A intenção era livrar os jornais brasileiros da dependência

das grandes agências internacionais (MARCHI, 2015).

Os jornais receberam a ideia com enorme desconfiança. “Ao primeiro

contato, o Estadão reagiu como um leão ferido e me brindou com um editorial”, relembra

Marchi. O editorial criticava o projeto de internacionalização da EBN e questionava os

reais propósitos da estatal em querer a participação da iniciativa privada. O editorial

chamava a EBN de “agência Tass cabocla”, numa referência à agência oficial soviética,

criticava a obrigatoriedade da Voz do Brasil e não reconhecia as mudanças implantadas

no programa durante a gestão de Carlos Marchi, afirmando que isso não passava

de mero engodo para disfarçar o que tal programa oficial sempre foi:

um instrumento de propaganda do governo, uma intromissão indevida

do poder público em um campo de atividade que é exclusivo da

iniciativa privada em quaisquer democracias que se prezem e — last but

not least — um exemplo de “cabide de empregos” governamentais.30

30 O editorial “Uma Agência Tass cabocla?!?” foi publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo no dia

24/06/1986 e questionava o fato de a proposta de participação societária dos jornais pretender dar maior

credibilidade à agência oficial, o que significaria que as empresas estatais de notícias de outros países

nao mereciam credibilidade. “Nisso (Carlos Marchi) está perfeitamente certo, pois qual a credibilidade,

por exemplo, que merece a Agência Tass dos soviéticos, ou que merecia a ADN dos nazistas?”,

perguntava o jornal.

45

As críticas da imprensa se somaram às críticas de dentro do próprio governo.

Ao longo do primeiro ano da Nova República, os repórteres foram orientados e

incentivados pela direção da EBN a serem imparciais nos contatos com as autoridades.

Mas como muitos órgãos do governo estavam acostumados à tradição subserviente da

Voz do Brasil, e não a uma postura crítica dos repórteres, isso acabou se tornando um

problema. Os jornalistas da Voz do Brasil perceberam que tinham mais liberdade e

começaram a afrontar ministros em entrevistas. Choviam reclamações.

E entao, eu que tinha dito antes para as pessoas que “valia tudo” para

fazer jornalismo, tive que chegar para eles e dizer para maneirarem,

porque não podia ser assim (MARCHI, 2015).

Os embates da direção da EBN com a equipe do ministro Brossard, os

desgastes com outros órgãos públicos (devido às coberturas feitas), somados ao

episódio da demissão dos 10 jornalistas no início da gestão (que não havia sido

esquecido) e às desconfianças do SNI de que a equipe da EBN era formada por

comunistas (que vinham desde a entrevista de Brizola), culminaram com a saída de

Marchi da estatal, cerca de seis meses depois da nomeaçao de Brossard. “Era uma

guerrilha (...) e eu sabia que não poderia enfrentar isso nem no governo Tancredo,

quanto mais no governo Sarney” (MARCHI, 2015).

No entanto, o projeto implantado na EBN, no início da Nova República,

não acabou com a saída de Carlos Marchi, até porque foi mantido pelos seus

sucessores imediatos – depois de um breve período comandada pelo porta-voz do

governo, Frota Neto, a EBN foi presidida pelo jornalista Ruy Lopes, de boa

reputação no mercado, que havia sido chefe da Sucursal de Brasília da Folha de

S.Paulo, e que assumiu a estatal com o objetivo de modernizá-la tecnicamente.

Lopes permaneceu menos de um ano no cargo, pois as pressões sobre a EBN e a Voz

do Brasil aumentaram conforme o governo perdia a batalha contra a inflação

(PEROSA, 1995, p.148).

Ruy Lopes foi substituído por Getúlio Bittencourt (1952-2009), outro

conhecido repórter de Brasília, mas que não conseguiu evitar que a Voz do Brasil, sob sua

gestão, cedesse às vontades do governo.

Getúlio comandou a empresa na fase em que o presidente Sarney

empregou todos os métodos para assegurar a dilatação de seu mandato,

e não vacilou em engajar a primeira meia hora da Voz do Brasil na

campanha de promoção dos cinco anos de mandato acalentados por

Sarney (PEROSA, 1995, p.149).

46

Isso nao significava que o programa tivesse voltado a ser totalmente “chapa-

branca”; ainda se praticava um certo jornalismo na Voz do Brasil. Tanto que Getúlio

Bittencourt foi sumariamente demitido em 1988, por causa da veiculação de uma

entrevista exclusiva do brigadeiro Paulo Roberto Camarinha. O chefe do Estado Maior

das Forças Armadas fez duras críticas à política econômica do governo nos microfones da

Voz do Brasil. Sarney teria ficado tão irritado que, além de demitir o presidente da EBN,

decretou a incorporação da empresa pela Radiobrás (PEROSA, 1995, p.149).31

Consolidação da democracia e a mesma Voz do passado

No governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), o jornalista Marcelo

Netto assumiu a presidência da Radiobrás. Amparado na popularidade de “caçador de

marajás”, quando era governador de Alagoas, Collor liderou as pesquisas durante a

campanha presidencial e se utilizou de forma muito eficaz do que hoje é chamado de

marketing político. O jornalista Ricardo Setti, que cobriu as eleições de 1989 para o

Jornal do Brasil, definiu a campanha de Collor como um “videoclipe político”:

Para o grande teórico da comunicação Marshall MacLuhan, como se

sabe, o meio é a mensagem. Para Fernando Collor de Mello, a

campanha é a mensagem. Basta seguir o candidato em sua busca pelos

votos pelo país para perceber que são os símbolos emitidos pela

campanha, muito mais que os discursos, que comunicam a mensagem

de Collor (SETTI apud CONTI, 1999, p.191).

Logo que assumiu a Presidência, Collor e sua equipe econômica

surpreenderam o país com o Plano Collor,32 mais uma tentativa oficial de combater a

inflação, que chegava a 80% ao mês no fim do governo Sarney. O anúncio do plano

foi feito em uma conturbada entrevista coletiva no dia seguinte à posse do presidente,

pela ministra da Economia, Zélia Cardoso de Melo, e por dois membros da equipe

econômica, Antônio Kandir e Ibrahim Eris.

Os três não conseguiram se fazer entender. Não diziam o que

pretendiam nem quais eram os fundamentos do plano. A ministra falava

em “transferência de titularidade” com a naturalidade de quem diz “hoje

está calor”. Eris, o presidente do Banco Central, nascido e criado na

Turquia, dizia “os torneiras” e “as critérias” (CONTI, 1999, p.324).

31 O decreto nº 96.212, de 22 jun 1988 extinguiu a Empresa Brasileira de Notícias, que havia sido criada em

1979 e alterou o nome da Radiobrás de Empresa Brasileira de Radiodifusão para Empresa Brasileira de

Comunicação S.A. O decreto definiu ainda que a Radiobrás seria subordinada ao ministro chefe da Casa Civil. 32 As medidas do Plano Collor incluíam a volta do cruzeiro como moeda e uma desvalorização do cruzado,

congelamento de preços e salários, criminalização dos aumentos não autorizados e bloqueio de todos saldos

bancários do país acima do valor correspondente a 1.250 dólares.

47

A Voz do Brasil daquele dia demonstrou que, a partir de então, seria adotado

um novo estilo editorial. O programa não apenas abriu espaço para que o próprio

presidente anunciasse as medidas do plano econômico, mas incorporou o mesmo discurso

maniqueísta do presidente, conforme anunciado pelo locutor:

Após traçar um perfil da atual situação do país no primeiro dia de trabalho

com todo o seu ministério, o presidente Fernando Collor enumerou o

conjunto de medidas e afirmou que, antes de tudo, é preciso fazer um

saneamento moral na área econômica33 (PEROSA, 1995, p.170).

Em sua fala na Voz do Brasil, Collor enumerou seis medidas adotadas, entre

elas a criminalização do abuso do poder econômico, que levaria à cadeia gerentes e donos

de empresas que escondessem mercadorias, a demissão e prisão de servidores públicos

que lesassem o fisco e a taxação das grandes fortunas e dos ganhos em bolsa de valores.

Individualizando as complexas questões sociais, Color extraiu delas o

caráter político inerente, e a luta de concepções sociopolíticas e

econômicas diferenciadas e conflitivas (...) ficaram diluídas no âmbito

de subjetividades moralistas e, portanto, mistificadoras de todo um

processo histórico real e dinâmico que é a luta pela sobrevivência e pela

liberdade desenvolvida pelos homens (PEROSA, 1995, p.171).

Entretanto, em seu pronunciamento na Voz do Brasil, Collor não falou no

confisco da poupança. Preferiu ressaltar a retórica populista, por exemplo, ao explicar a

taxaçao de ganhos no mercado financeiro: “O assalariado pagava o imposto de renda

sobre seu salário de fome e o patrão obtinha os seus ganhos especulativos sem recolher

um centavo aos cofres da Uniao” (PEROSA, 1995, 171).

Desde o primeiro dia do governo Collor, a Voz do Brasil tornou-se novamente

um veículo estratégico para a comunicação oficial, principalmente devido à sua

capilaridade no interior do país, sendo compulsoriamente retransmitida pelas 2.231

emissoras de rádio existentes àquela época. Marcelo Netto decidiu “popularizar” a

linguagem do programa, começando pela substituiçao do tradicional “Em Brasília, 19

horas” por “Em Brasília, sao sete horas da noite”. A introduçao de O Guarani deu lugar a

um arranjo de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e o texto do noticiário passou a ser

mais informal, para ser compreendido por todos os brasileiros e, assim, evitar que os

aparelhos de rádio fossem desligados quando o programa começasse.

As mudanças adotadas na Voz do Brasil durante o governo Collor não foram

apenas estéticas. O programa abdicou de qualquer tentativa de fazer jornalismo isento e

passou a ser “fonte de informaçao obrigatória” sobre os temas ligados ao governo,

33 Grifo nosso.

48

tratando a palavra governamental como “elemento prioritário da notícia”, conforme

definiu Tairo Arrial, gerente de Radiodifusão da Radiobrás à época:

Como apêndice do poder, a Radiobrás e, por conseguinte, a Voz do

Brasil, propagou, com a precisão e o detalhamento inerentes a um órgão

de comunicação oficial, a ideologia do governante em exercício, agora

em formato radiojornalístico mais dinâmico, mas ainda unilateral na sua

abordagem. O pensamento divergente não seria autorizado, até porque a

“personalizaçao do poder” voltou à ordem do dia, como forma de suprir

o “desgoverno” herdado de Sarney (PEROSA, 1995, p.170).

Como muitas das estatais da época, a Radiobrás era considerada um cabide de

empregos. No governo Collor, a empresa passou por um processo de desestruturação

dentro do plano anti-estatista do presidente, que provocou uma redução de salários e

sucateamento de equipamentos e instalações. A empresa teve dois presidentes na era

Collor – Marcelo Netto (1990-1991) e Ruy Pontes (1991-1992) –, e nesse período 439

funcionários foram dispensados e outros 32 pediram demissão – “alguns porque foram

constrangidos a isso” (BUCCI, 2008, p.95).

Collor sofreu o processo de impeachment e foi afastado da Presidência em 22

de setembro de 1992, sendo substituído pelo vice-presidente, Itamar Franco, que

completou o mandato até 1995. Mineiro, com um estilo mais discreto que Collor, Itamar

colocou na presidência da Radiobrás Luiz Otávio de Castro Souza. A Voz do Brasil

perdeu o estilo personalista da gestão anterior, mas a estatal ainda enfrentava desafios de

ordem administrativa, herdados de seu antecessor.

A companhia entrou num período errante e errático. A inconstância

virou a regra. Entre 1990 e 1998, cinco presidentes se sucederam na

Radiobrás, com cinco linhas administrativas inteiramente distintas.

(...) Por volta de 1992, o descontrole atingiu o ápice. Os integrantes

do Conselho Fiscal tinham renunciado e o Conselho Administrativo

se dissolvera. Praticamente não havia prestação de contas (BUCCI,

2008, p.95).

A crise administrativa não permitia grandes investimentos na Voz do Brasil. A

crise da estatal perdurou no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-1999),

que sucedeu Itamar Franco. Bucci (2008, p.97) destaca o importante papel, no processo de

saneamento administrativo da empresa, exercido pelo jornalista Carlos Zarur, o primeiro

profissional formado nos quadros da Radiobrás a assumir a presidência da estatal, no segundo

mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2003). Apenas durante esse segundo mandato

de FHC é que a empresa superou as dificuldades financeiras e começou a ter condições de se

dedicar mais às “atividades fim”. No entanto, como era subordinada à Secretaria de

49

Comunicação Social da Presidência da República (Secom), a Radiobrás ainda se ressentia dos

“pedidos” que costumavam chegar do Palácio do Planalto.

Esse cenário só mudaria em 2003, a partir da posse de Luiz Inácio Lula da Silva na

Presidência e a indicação do jornalista Eugênio Bucci para comandar a Radiobrás.

Em janeiro de 2003, encontrei uma organização que mantinha a cabeça

baixa diante do governo, qualquer que fosse o governo. Lembro-me

bem de que as secretárias reagiam esbaforidas a qualquer telefonema da

Secom: interrompiam reuniões, batiam na porta do banheiro, corriam

pelos corredores para chamar imediatamente quem quer que fosse. (...)

Aquelas pessoas ainda tinham a ideia de que o chefe de todas elas era

alguém que não trabalhava ali, apenas telefonava para dar ordens

(BUCCI, 2008, p.98).

Uma proposta jornalística para a Voz do Brasil

Ao assumir a presidência da Radiobrás, em janeiro de 2003, no primeiro

governo petista, Eugênio Bucci propôs a adoção de mudanças editoriais, visando

extinguir o jornalismo “chapa-branca” da Voz do Brasil e de outros veículos

controlados pela estatal, como a TV Nacional de Brasília, a Rádio Nacional do Rio de

Janeiro e a Agência Brasil de notícias. Professor e doutor em Comunicação, Bucci

debatia nos meios acadêmicos e na imprensa questões ligadas à ética e ao direito à

informação. Em 1994, quando da segunda campanha de Lula à Presidência, Bucci foi

escalado para escrever o capítulo “A razao da comunicaçao” no documento que

elencava 13 motivos para se votar no petista. Em seu texto, intitulado “Um país que

dialogue”, Bucci dizia que o candidato representava “a marcha cidada, inclusive nos

campos do direito à informação, que vem sendo tão desprezado, e do direito à livre

expressao do pensamento” (BUCCI, 2008, p.197).

Sem que esse direito seja atendido, a democracia não funciona, uma vez

que o debate público pelo qual se formam as opiniões entre os cidadãos

se torna um debate viciado. (...) Quando o poder age no sentido de

subtrair do cidadão a informação que lhe é devida, está corroendo as

bases do exercício do jornalismo ético, que é o bom jornalismo, e

corroendo a sociedade (BUCCI, 2000, p.33).

À frente da Radiobrás, Bucci tentou pôr em prática as ideias que havia

defendido ao longo de sua carreira acadêmica. Apesar de a estatal ser encarregada, por

lei, de noticiar os atos do governo, isso era entendido no governo e na própria Radiobrás

como o dever de fazer promoçao das “realizações” das autoridades.

Nós entendíamos de outro modo. Para nós, ela deveria apenas informar, sem

omitir fatos relevantes e sem fazer propaganda, pois a mesma lei não

incumbia à Radiobrás as funções de assessoria de imprensa, de porta-voz, de

50

publicidade governamental – essas funções pertenciam diretamente à

Presidência da República e às suas secretarias (BUCCI, 2008, p.30).

Procurou-se implantar um modelo de jornalismo que tivesse como premissa o

direito à informação do cidadão e isenção na cobertura. Mas, de maneira similar ao que

ocorreu com Carlos Marchi no início do governo Sarney, o projeto adotado por Bucci

para a Voz do Brasil também sofreria resistências na própria Radiobrás e no governo.

O projeto ia contra a cultura do Estado, dos partidos, da Radiobrás e

também de boa parte da esquerda. O bloqueio cultural era uma

unanimidade que afirmava e reafirmava sem descanso: uma estatal com

emissoras de radiodifusão existia para defender o governo e preservar a

imagem dos governantes (BUCCI, 2008, p.21).

O projeto editorial adotado na estatal e na Voz do Brasil foi formalizado

publicamente em 2005, nos Documentos sobre o Jornalismo da Radiobrás. O texto definia que

informaçao é um direito do cidadao tao importante quanto a educaçao e a saúde. “E um direito

de todos, independentemente das inclinações ideológicas de cada um”.

Nossos jornalistas, comunicadores e todos aqueles que atuam no

processamento da informação que oferecemos ao público têm o

dever de evitar o partidarismo, a pregação religiosa, o tom

promocional e qualquer finalidade propagandística. (...) Nós

noticiamos fatos novos que façam diferença na vida do cidadão. Não

produzimos comentários opinativos, textos autorais nem análises ou

interpretações. Não é nosso papel. Noticiamos e explicamos os

acontecimentos (RADIOBRÁS, 2005, p.4).

Em 2006, foi publicado o Manual de Jornalismo da Radiobrás, o primeiro

documento do gênero em 30 anos de história da estatal. Organizado pelo jornalista Celso

Nucci,34 o Manual consolidava as diretrizes e os procedimentos a serem adotados pelos

jornalistas da empresa. O próprio Eugênio Bucci, no texto de apresentação do Manual,

ressaltava que, até 2003, as equipes da Radiobrás estavam habituadas a produzir conteúdos com

“vícios do discurso chapa-branca”, e ressaltava que já tinham assimilado esse conceito.

Gradativamente, a Radiobrás conseguiu se adequar à nova idade da

democracia no Brasil, contribuindo para imprimir mais

transparência à gestão da coisa pública. (...) No regime

democrático, o que define a qualidade das notícias produzidas por

uma empresa pública — sobre a qual não pesa nenhuma atribuição

legal de fazer assessoria de imprensa para o governo ou de fazer

relações públicas para as autoridades. (BUCCI, 2006, p.11).

34 Celso Nucci havia sido chefe de Eugênio Bucci na Editora Abril por mais de 10 anos, e assumiu a

assessoria especial da presidência da Radiobrás, em agosto de 2003. Segundo Bucci, era o maior

especialista em planejamento editorial que conhecera (BUCCI, 2008, p.251).

51

A defesa do direito à informação incomodou alguns setores do governo,

que consideravam que a Radiobrás (e a Voz do Brasil, especificamente) não deveria

noticiar certos assuntos que não eram de interesse do Planalto.35 Entre as queixas

vindas de outras áreas do governo até Bucci, estava aquela de que deveria ser

instalado nas redações um “filtro governista”. “Queriam que a Radiobrás agisse com

Lula do mesmo modo que agia antes [com os outros presidentes]”.

Uma democracia pode perfeitamente conviver com empresas

públicas encarregadas da prática do jornalismo – empresas públicas

porque de propriedade pública, que recebem financiamentos

públicos –, mas nessas empresas os representantes do governo não

podem interferir nem na gestão administrativa nem na gestão

editorial. Quanto mais democrático é um Estado, mais o Poder

Executivo se afasta da função de editar conteúdos jornalísticos

(BUCCI, 2008, p.79).

Eugênio Bucci permaneceu na Radiobrás até abril de 2007. Em 2008, foi criada a

Empresa Brasil de Comunicação – EBC Serviços, que sucedeu a Radiobrás em suas

atribuições. A nova direção da empresa, no entanto, não revogou as diretrizes adotadas na

gestão de Bucci até 2013, quando foi lançado o novo Manual de Jornalismo da EBC.

A Voz do Brasil depois de 2007

Criada por iniciativa do então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social

da Presidência, Franklin Martins, um jornalista com grande experiência na cobertura política, a

EBC reuniu as emissoras pertencentes à Radiobrás e à Fundação Roquette-Pinto (ligada ao

Ministério da Educação e controladora da Rádio MEC). A Voz do Brasil manteve-se como um

veículo relevante da nova empresa, mas o principal projeto do ministro foi a criação, em

dezembro de 2007, da TV Brasil, uma emissora pública com transmissão em rede nacional. A

emissora foi criada para “atender à antiga aspiraçao da sociedade brasileira por uma televisao

pública nacional, independente e democrática” (EBC SERVIÇOS, sd) e para cumprir um

preceito constitucional de formar um “sistema nacional de televisao”, junto com a televisao

privada (ou comercial) e a televisão estatal (a serviço do governo).

Grosso modo, a televisão comercial, de massa, estaria mais voltada para

o entretenimento e um pouco de jornalismo, sustentada por inserções

comerciais; a estatal, sustentada pelo governo, estaria mais voltada para

a divulgação dos feitos oficiais, do governo de plantão, com alguma

prestação de serviços de utilidade pública e programas educacionais; e a

pública, equidistante das duas, sustentada pela sociedade, estaria

35 Entre os temas noticiados pela Voz do Brasil nesse período que geraram polêmica no governo estão a

greve de agentes da Polícia Federal em 2004 e a queda do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, em

março de 2006, em meio a um escândalo de violação de sigilo bancário.

52

voltada para os interesses dos cidadãos em sua dimensão mais humana.

Nas outras duas, ele seria o consumidor, o eleitor, o telespectador

apenas (MENDONÇA, 2007).

Sob a gestão da EBC, a Voz do Brasil não teve imediatamente uma nova

diretriz editorial, apesar de não terem sido revogadas as políticas elaboradas

anteriormente para a Radiobrás – pois não foi esclarecido ao público se aqueles

documentos ainda estavam em vigor, visto que a estatal já não existia mais. Em abril de

2013, a EBC lançou o Manual de Jornalismo, no qual o então presidente da empresa,

Nelson Breve, definiu jornalismo como um serviço público, sem o qual a sociedade “nao

consegue exercer seus direitos de cidadania”.

Seu texto defendia ainda que os jornalistas da estatal deveriam atuar com

independência, mas alertava que essa tarefa nao era fácil e que estava “sempre sujeita a

tentações e interpretações subjetivas”. Num arroubo que parece inspirado em Descartes

do senso comum (a defesa da razão, da evidência e da certeza), Nelson Breve argumenta

ser imprescindível aos jornalistas da EBC

a adoção de regras de conduta muito claras, precisas e transparentes

para que o resultado do trabalho de apuração, edição e divulgação das

informações seja realmente o que a sociedade espera e necessita: a

verdade, somente a verdade, nada a mais ou a menos que a verdade

(BREVE, 2013, p.7).

Como o Manual de Jornalismo da EBC prega que a empresa deve praticar uma

comunicaçao “que visa em primeiro lugar o interesse público” e que o jornalista tem a missao

de representar a sociedade “onde estiver, reportando com fidelidade, precisao e honestidade os

fatos e acontecimentos de interesse público” (EBC SERVIÇOS, 2013, p.7), esta dissertação

analisará, nos próximos capítulos, o conteúdo veiculado pela Voz do Brasil entre 2013 e 2015

para verificar se os conceitos de jornalismo defendidos em seu Manual são colocados em

prática.

Como veremos, levando-se em conta que se trata de um programa com

transmissão obrigatória por todas as emissoras do país, alguns acontecimentos de grande

impacto sobre a sociedade não foram abordados com o mesmo destaque que em jornais de

grande circulação, a despeito dos preceitos definidos pelo Manual de Jornalismo da EBC.

53

CAPÍTULO 2

Critérios de noticiabilidade na ‘Voz do Brasil’

A “notícia” na Voz do Brasil

Diversos autores vêm se dedicando a estudar o campo do jornalismo –

investigando as teorias do jornalismo, a história do jornalismo, a análise do discurso, a

produção da notícia, as teorias da narrativa. Não se pretende aqui, neste trabalho, um

aprofundamento das teorias da notícia, mas optamos por um dos conceitos de jornalismo,

compreendido como o ato de informar à sociedade a respeito de fatos que sejam de

interesse geral dos cidadãos, para analisar o programa Voz do Brasil.

Essa compreensão – presente nas pesquisas de Lippman, Galtung & Ruge,

Golding & Elliott, Gans, Gaillard, Hohemberg, Traquina, Wolf, Chaparro e Lage – é

também adotada pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), no Código de Ética da

profissao. Esse documento, elaborado em 2007, considera que “o acesso à informaçao de

relevante interesse público é um direito fundamental” dos cidadaos e que “a produçao e a

divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade

o interesse público”. Para exercerem esse ofício, conforme a Fenaj, os jornalistas não

podem admitir que o exercício desse direito seja impedido por algum outro tipo de

interesse. O Código de Ética determina ainda que o compromisso fundamental do

jornalista deve ser “com a verdade no relato dos fatos”, e que seu trabalho deve ser

pautado “na precisa apuraçao dos acontecimentos e na sua correta divulgaçao”.

Numa perspectiva histórica do estudo do jornalismo, considerando os

conceitos de gatekepper e a teoria do agendamento (agenda setting), as notícias podem

ser entendidas como a existência pública dos acontecimentos, processo que se dá por

meio da atividade jornalística. As notícias contribuem, também, para a “construçao de

significações sobre acontecimentos e ideias e para o agendamento de temas na lista de

preocupações do público” (SOUSA, 2002, p.198). Para Molotch & Lester (1993, p.34), as

notícias nos apresentam fatos importantes “a que nós não assistimos diretamente dão

como observáveis e significativos acontecimentos que seriam remotos de outra forma”.

Tuchman (1993, p. 262) afirma que os relatos noticiosos “sao documentos públicos que

colocam o mundo à nossa frente”.

54

Vários autores reconhecem também a relevância do jornalismo para a

construção da democracia. Nas sociedades democráticas, o acesso à informação, mais que

um direito, pode ser entendido como uma necessidade “que emana dos próprios

fundamentos do sistema” (SOUSA, 2002, p.198). Traquina ressalta especialmente o papel

da imprensa como fiscalizadora dos poderes constituídos, por meio de uma relação

“simbiótica”, em que o jornalismo desempenha um papel de adversário do poder político

– tanto que passou a ser chamado de Quarto Poder.

A democracia não pode ser imaginada como sendo um sistema de

governo sem liberdade e o papel central do jornalismo, na teoria

democrática, é de informar o público sem censura. Os pais fundadores

da teoria democrática têm insistido, desde o filósofo Milton,36 na

liberdade como sendo essencial para a troca de ideias e opiniões, e

reservaram ao jornalismo não apenas o papel de informar os cidadãos,

mas também, num quadro de checks and balances (a divisão do poder

entre poderes) a responsabilidade de ser o guardião (watchdog) do

governo (TRAQUINA, 2005, p.22).

O autor destaca ainda que

tal como a democracia sem uma imprensa livre é impensável, o

jornalismo sem liberdade é farsa ou tragédia. O que é o jornalismo num

sistema totalitário (...) é fácil de definir: o jornalismo seria a propaganda

a serviço do poder instalado (TRAQUINA, 2005, p.23).

Diante desses pressupostos e considerando-se o histórico da Voz do Brasil

como porta-voz do governo, cabe a pergunta: seria possível praticar o jornalismo no

programa, visto que esse ofício implica numa função de fiscalização dos poderes

constituídos a partir de um compromisso com o interesse público? E qual seria o conceito

de “notícia” adotado pela Voz do Brasil, que justificaria que determinado acontecimento

ou informação fosse selecionado para estar no programa?

Para avaliar o processo de seleção de notícias em veículos jornalísticos,

optamos pelos conceitos ligados à noticiabilidade e aos valores-notícias dos

acontecimentos. Dentre os atributos propostos para se avaliar a noticiabilidade,

encontramos a novidade (quando o fato é inédito, portanto noticiável), raridade (quando

acontece o inesperado, conforme o exemplo alegórico clássico de que um cachorro que

morde um homem não é notícia, mas se o homem morde o cão será noticiado), relevância

36 O poeta e filósofo britânico John Milton (1608-1674) dedicou sua vida à defesa das liberdades civis,

políticas e religiosas, razão pela qual é frequentemente citado em temas ligados à liberdade de expressão e

ao direito à informação. Não se encontra nos seus escritos passagem que se refira expressamente à

“liberdade de informação”, visto que essa terminologia não era adotada na sua época. No entanto o conceito

se faz presente na sua obra Areopagítica: “Dai-me liberdade para saber, para falar e para discutir

livremente, de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades” (Give me the liberty to know, to

utter, and to argue freely according to conscience, above all liberties).

55

(a importância do acontecimento para a sociedade ou a posição hierárquica dos

personagens envolvidos), proximidade geográfica (se o fato ocorre próximo ao público

do veículo), negatividade (a questão das bad news e das good news), entre outros.

Nesta dissertação, para avaliar o processo de seleção de notícias pela Voz do

Brasil e pelos jornais analisados, optamos pelos conceitos de noticiabilidade apresentados

por Mauro Wolf (2012) e outros autores, especificamente os critérios “substantivos”, que

permitem uma avaliação menos subjetiva do que seriam temas de interesse da sociedade,

vis-à-vis os interesses do Poder Executivo federal e dos órgãos da administração direta.

Para tal análise, foi feito o acompanhamento das edições da Voz do Brasil durante 30

meses,37 com o objetivo de se identificar exemplos que melhor exemplificassem a

hipótese aqui apresentada, que os interesses do governo se sobrepõem aos da sociedade.

Apesar de a pesquisa se limitar ao período entre 2013 e 2015, buscamos duas

referências anteriores desse padrão de seleção de notícias pela Voz do Brasil – pois as

consideramos emblemáticas para a análise aqui desenvolvida e por terem sido

documentadas em outros trabalhos. A primeira delas, relatada por Lilian Perosa (1995,

p.124), ocorreu em 1980, durante a primeira visita do papa João Paulo II ao Brasil,

quando o país ainda vivia sob o regime militar. Na ocasião, o principal líder da igreja

católica reproduziu em sua fala um protesto da população de Teresina, capital do Piauí.

O “protesto” do papa João Paulo II

Era o dia 8 de julho de 1980. Durante uma rápida escala de seu voo no

Aeroporto de Teresina, o papa João Paulo II foi recebido por cerca de 100 mil pessoas,

que o aguardavam debaixo de um sol escaldante. No meio da multidão, foi levantada uma

faixa que trazia os dizeres: “Sto Padre, o povo passa fome”. Uma manifestaçao como

essa, naquela época de ditadura militar, era passível de enquadramento na Lei de

Segurança Nacional (LSN). Embora as redações não mais estivessem sujeitas à censura

prévia, os jornalistas temiam ser enquadrados na Lei de Imprensa e na própria LSN.

Portanto, a cobertura da imprensa sobre a visita papal dificilmente reproduziria aquele

protesto popular. No entanto, após rezar a oração do Pai Nosso, o próprio João Paulo II

falou à multidao: “Pai Nosso, o povo passa fome”. A frase pronunciada pelo pontífice

transformou-se em uma espécie de “alvará” para que a imprensa a publicasse com

37 O acompanhamento do programa se deu entre janeiro de 2013 e junho de 2015, com o objetivo de

identificar edições em que houvesse fatos amplamente noticiados pelos demais veículos de imprensa, e que

permitissem a comparação do programa radiofônico oficial com os três jornais impressos de circulação

nacional escolhidos para compor esta análise.

56

destaque – e que, no caso da Folha de S.Paulo, fosse publicada a foto da faixa para

“justificar” a principal manchete daquela edição.

Figura 1 – Capa da Folha de S.Paulo – 09 jul 1980

Fonte: Jornal Folha de S.Paulo de 09 de julho 1980

Já o programa Voz do Brasil daquela data ignorou a fala papal. Conforme

Lilian Perosa, a justificativa foi que o programa – assim como todos os demais

veículos ligados ao governo federal e controlados, na época, pela Empresa Brasileira

de Notícias (EBN) – somente veiculavam informações que tivessem caráter “oficial”.

Deve-se entender esse “oficial” como o endosso de alguma autoridade do governo

federal ao acontecimento. Portanto, segundo a autora, o fato jornalístico por si só (no

caso, o protesto estampado na faixa e a fala do papa) não bastava para a sua

divulgação:

Sua veracidade e, portanto, sua credibilidade, estariam

condicionados à sua confirmaçao pela “autoridade governamental”.

A palavra oficial, nesse caso, determinaria o fato. O fato sem a

palavra oficial não existiria, portanto, não seria publicável

(PEROSA, 1995, p.123).

57

A manifestação que virou “pauta de reivindicações”

Em 11 de junho de 2003, quando já estava há seis meses à frente da

Radiobrás e buscava implantar conceitos jornalísticos na Voz do Brasil, Eugênio

Bucci vivenciou o que posteriormente definiu como tentativa de “tapear” a nação no

programa radiofônico. Naquele dia, entidades sindicais de vários Estados

organizaram uma manifestação contra a reforma previdenciária, na Esplanada dos

Ministérios, em Brasília. O protesto contou com a participação de cerca de 20 mil

funcionários públicos. Aquela era a primeira manifestação popular contra o governo

Lula, que tinha suas origens justamente no movimento sindical. “O protesto serviu

também para expor as divergências internas do partido do presidente”, pois alguns

parlamentares do PT “entraram em marcha em apoio aos manifestantes, agravando

as fissuras internas do PT e da base aliada” (BUCCI, 2008, p.154).

No programa Voz do Brasil, a manchete daquele dia foi: “Os remédios de uso

contínuo devem ficar mais baratos”, com direito a uma informaçao complementar: “Os

diabéticos e os hipertensos estao entre os beneficiados”.

As duas chamadas principais, sobre os remédios que “deveriam”

ficar mais baratos, não noticiavam nenhum benefício direto para o

ouvinte. Tudo se reduzia a uma intenção do ministro da Saúde,

Humberto Costa, que anunciara, naquele dia, que o governo estaria

preparando uma lista de medicamentos para serem vendidos a

preços menores. Mas isso, de acordo com o próprio governo, só

aconteceria no final daquele ano – e não aconteceu nunca (BUCCI,

2008, p.151).

Em relação ao protesto dos servidores federais, a Voz do Brasil anunciou

a notícia da seguinte maneira: “Sindicalistas entregam ao governo propostas para a

reforma da Previdência”. Conforme Bucci, a reivindicação dos servidores foi

relatada no programa como um episódio “diplomático”: ao ser perguntado pela

apresentadora como a proposta havia sido recebida pelos ministros, o repórter , de

forma bem informal, respondeu ao apresentador: “Olha, muito bem”. Em seguida, o

repórter reproduziu os argumentos do ministro da Secretaria-Geral da Presidência,

“como se lesse um texto sem querer dar a impressao de que lia” (BUCCI, 2008,

p.152).

A Voz do Brasil daquele dia ainda abriu o microfone para que o então

presidente do PT, José Genoino, emitisse sua opinião sobre o episódio: “A manifestação

58

de servidores públicos contra a reforma da Previdência faz parte do processo

democrático, mas a retirada da proposta do governo é inegociável”.38

As “reportagens” apresentadas naquela noite nao estavam à altura da

palavra reportagem. (...) O ouvinte que insistisse em acreditar no

programa saía dele sem ter uma visão mínima do que tinha se passado

em Brasília naquele 11 de junho. Depois, era um texto mal-

intencionado. À indigência jornalística vinha se somar o propósito de

mentir, de esconder os acontecimentos (BUCCI, 2008, p.153).

Nos principais jornais do dia seguinte, a imagem dos servidores públicos

ocupando a Esplanada dos Ministérios foi estampada na primeira página, com títulos que

destacaram as diferenças existentes entre o governo e os sindicatos:

Estado: “Servidores agridem líderes do PT e da CUT”

Folha: “Servidores fazem maior ato contra Lula”

Globo: “Ato de 20 mil divide sindicatos e PT”

Figura 2 – Capas dos jornais – 12 jun 2003

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 12 de junho de 2003

A Voz do Brasil daquela data, na avaliação de Bucci (2008, p.154), agredia o

cidadão no seu direito à informaçao, “pela conduta premeditada da equipe responsável

pela produçao do horário reservado ao Poder Executivo”. O episódio foi usado por Bucci

como símbolo do tratamento da notícia que deveria ser evitado no programa e acelerou as

38 Do ponto de vista formal, não caberia a um veículo de comunicação ligado à Presidência dar espaço para

o presidente de uma sigla – mesmo que ele fosse do mesmo partido que o presidente da República, pois ele

não exercia nenhuma função na administração direta federal.

59

mudanças feitas na equipe – que passou a ter apresentadores e editores “sem vícios” –,

para que se pudessem adotar novos princípios editoriais no programa, voltados para o

direito à informação.

O conceito de noticiabilidade

O conceito de noticiabilidade (newsworthiness, no termo em inglês) orienta o

trabalho jornalístico, permitindo uma avaliação dos acontecimentos com base em um

conjunto de critérios de relevância que definem a aptidão de cada evento para virar notícia.

Esses critérios se aplicam nas diferentes etapas da produção jornalística: pauta, apuração,

reportagem e edição. Na avaliação do conteúdo da Voz do Brasil, adotamos o que Wolf

(2012) define como critérios substantivos de avaliação das notícias, que se articulam

com base em dois fatores básicos: a importância e o interesse do acontecimento.

Num mundo ideal – sem a influência de fatores externos, nem das convicções

pessoais dos jornalistas, nem das estruturas organizacionais e hierárquicas das empresas

de comunicação – a avaliação da noticiabilidade poderia ser baseada nos chamados

valores-notícia.

Os valores-notícia são a qualidade dos eventos ou da sua construção

jornalística, cuja ausência ou presença relativa os indica para

inclusão num produto informativo. Quanto mais um acontecimento

exibe essas qualidades, maiores são as suas possibilidades de ser

incluído (GOLDING-ELLIOTT, 1979, p.114).39

Esses valores-notícia são regras práticas que abrangem um corpus de

conhecimentos profissionais em uma redação, e justificam as linhas-guia que orientam “o

que deve ser enfatizado, o que deve ser omitido, onde dar prioridade na preparação das

notícias a serem apresentadas ao público” (GOLDING-ELLIOTT, 1979, p.114).

Wolf (2012, p.186) destaca que o contexto profissional-organizacional-

burocrático das empresas exerce uma influência decisiva nas escolhas dos jornalistas – da

mesma forma que influencia as relações entre repórteres e editores, e as relações entre

jornalistas e executivos das empresas de comunicação nas quais trabalham.

A fonte de recompensas do jornalista não está entre os leitores, que

são manifestamente os seus clientes, mas entre seus colegas e

superiores. Em vez de aderir a ideais sociais e profissionais, o

39 Do original em inglês: “News values are qualities of events or of their journalistic construction, whose relative

absence or presence recommends them for inclusion in the news product. The more of such qualities a story

exhibits, the greater its chances of inclusion” (tradução do autor).

60

jornalista redefine os próprios valores no nível mais pragmático do

grupo redacional (BREED, 1999, p.84).40

No caso da Voz do Brasil, o fato de o programa estar vinculado

hierarquicamente à estrutura da Presidência da República permitiu a disseminação

de uma espécie de consenso, baseado em uma falsa premissa: por ser estatal e

controlar emissoras de rádio e TV, a empresa existia para defender o governo e para

preservar a imagem das autoridades. Formalmente, não há na Voz do Brasil qualquer

orientação para que o programa se preste a este papel (BUCCI, 2008, p.33). Ao

contrário, as políticas e manuais que já foram tornados públicos – incluindo o

Manual de Jornalismo da EBC, lançado em 2013 e ainda em vigor – defendem a

imparcialidade no trabalho jornalístico. Um exemplo é o texto introdutório do

Manual, assinado pelo então presidente da estatal, Nelson Breve:

A liberdade de expressão e o direito à informação são princípios

fundamentais da democracia e razão essencial da existência da

imprensa. Portanto, o jornalista é um servidor da sociedade. Ele

tem a missão de ser os olhos, ouvidos e demais sentidos do povo,

onde estiver, reportando com fidelidade, precisão e honestidade os

fatos e acontecimentos de interesse público (BREVE, 2013, p.7).

No entanto, não é isso que se nota no programa, conforme alguns

exemplos compilados entre 2013 e 2015, que serão analisados a seguir.

O “apagão” elétrico de 2014

No dia 4 de fevereiro de 2014, uma terça-feira, houve uma falha no

fornecimento de energia elétrica em boa parte do país. O problema ocorreu no

início da tarde em uma linha de transmissão no Estado do Tocantins e, em

decorrência de uma reação em cadeia, parte do sistema interligado de transmissão

nacional foi desligado, por razões de segurança. Esse “apagao”, na linguagem

popular adotada pela imprensa, atingiu 11 Estados, nas regiões Sul, Sudeste, Norte

e Centro-Oeste.

A falta de energia afetou, diretamente, seis milhões de clientes das empresas

distribuidoras de energia (entre residências, estabelecimentos comerciais e outras

instituições), ou cerca de 11 milhões de pessoas. Nos grandes centros, a falta de energia

40 Do original em inglês: The newsman’s source of rewards is located not among the readers, who are manifestly

his clients, but among his colleagues and superiors. Instead of adhering to societal and professional ideals, he

redefines his values to the more pragmatic level of the newsroom group (tradução do autor).

61

provocou problemas nos transportes públicos, notadamente nos metrôs e trens urbanos, assim

como no trânsito, pois afetou o funcionamento dos semáforos.

A notícia foi destacada como manchete de primeira página, nos três jornais

aqui analisados, nas edições do dia seguinte:

O Estado de S.Paulo: “Apagao atinge 11 Estados e analistas veem sistema frágil”

Folha de S.Paulo: “Apagao atinge 11 Estados, e 6 milhões ficam sem luz”

O Globo: “Sistema opera no limite e apagao pode se repetir”

Figura 3 – Capas dos jornais – 05 fev 2015

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 05 de fevereiro de 2014

Além das manchetes, o “apagao” mereceu dos jornais uma ampla

cobertura nas páginas internas, que relataram os impactos sociais e políticos do

episódio e buscaram explicações para o incidente. O impacto, principalmente nas

grandes cidades, foi tamanho que o Ministério de Minas e Energia convocou uma

entrevista coletiva para o final daquela tarde, em Brasília.

Apesar da atenção que o próprio ministério responsável pela gestão do

setor elétrico brasileiro deu ao episódio, o programa Voz do Brasil daquela data,

transmitido ao vivo das 19h00 às 19h25, não considerou a notícia do apagão entre as

três manchetes destacadas no teaser de abertura do programa – que optou por temas

ligados a políticas públicas do governo (como a agricultura e a saúde pública) .41

41 As manchetes foram as seguintes: (1) “Mais de R$ 5 bilhões foram investidos, nos últimos 10 anos, para a

compra de quatro milhões de toneladas de produtos da agricultura familiar”; (2) “Um bilhao e 300 milhões de reais

vão ser dados de incentivo fiscal, esse ano para projetos e pesquisas de combate ao câncer e de apoio às pessoas com

62

O assunto “apagao” só foi tratado decorridos 14 minutos de transmissão –

portanto, mais da metade do programa. A primeira participação ao vivo da repórter que

acompanhou a entrevista coletiva do Ministério das Minas e Energia abordou um tema

correlato tratado pelos porta-vozes: o impacto do baixo nível de água nos reservatórios do país

sobre o sistema de geração nacional.42

Somente em sua segunda participação no programa é que a repórter falou sobre a

falha no fornecimento de energia:

- O Operador Nacional do Sistema (...) afirmou que houve um curto-circuito

em uma parte da linha de transmissão no Estado do Tocantins que

comprometeu 8% da carga do país. O secretário executivo do Ministério de

Minas e Energia, Márcio Zimmermann, afirmou que o Operador Nacional do

Sistema irá fazer uma avaliação sobre o fato, que não foi causado pela alta do

consumo de energia no país. E diz que, sempre que acontece uma ocorrência

como esta, há desligamento da carga para evitar problemas mais sérios. A

interrupção na transmissão de energia foi às duas horas e três minutos desta

tarde e, de acordo com o Operador Nacional do Sistema, a energia começou

a ser restabelecida 35 minutos depois. [fala da repórter Priscila Machado]43

O relato acima durou exatos 55 segundos, sem qualquer réplica ou questionamento

por parte dos apresentadores do programa, como recomendaria a prática do bom jornalismo e o

compromisso com o direito à informação. Por exemplo, os ouvintes não foram informados

quanto tempo demorou para que a energia fosse totalmente restabelecida, já que a jornalista

informou em seu relato apenas que “a energia começou a ser restabelecida 35 minutos depois”

do incidente.44

Além disso, uma análise da distribuição do tempo daquela edição da Voz do Brasil

entre os 14 assuntos incluídos na pauta também indica uma priorização de temas de interesse

do governo federal, em detrimento da notícia do “apagao”, conforme mostra a tabela:

Tabela 1 – Pauta da ‘Voz do Brasil’ – 04 fev 2014

Ordem de

apresentação Assunto Duração

1 Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) 3min01seg

deficiência”; e (3) “Brasil deve receber esse ano, no Carnaval, quase 6,5 milhões de turistas. A expectativa é injetar

mais de R$ 6 bilhões na economia do país”. Ainda que sejam pautas ligadas a políticas públicas (1 e 2) e ao

potencial turístico do país (3), as notícias destacam temas de interesse do governo, e não da população, e destacam

grandes cifras, que, nos casos 2 e 3, ainda não haviam se materializado. 42 A primeira participação da repórter Priscila Machado durou 1 minuto e 28 segundos. 43 A transcrição integral dos programas Voz do Brasil analisados nesta dissertação estão disponíveis em

<http://conteudo.ebcservicos.com.br/programas/a-voz-do-brasil/transcricoes_tpl>. Acesso em 01 jul 2015. 44 O texto publicado pela Folha no dia seguinte informou que “no fim da tarde (...), em Sao Paulo e no Rio, havia

indústrias sem luz e semáforos apagados”.

63

2 Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura 2min50seg

3 Dia Mundial do Câncer e apoio a pessoas com deficiência 3min8seg

4 Desembarque de cubanos para o Programa Mais Médicos 47seg

5 Receitas com turismo previstas para o Carnaval 2014 1min57seg

6 Reforma do Cristo Redentor no Rio de Janeiro 52seg

7 Nível de água nos reservatórios das hidrelétricas 1min28seg

8 Interrupção no fornecimento de energia 55seg

9 Indicadores da produção industrial do país 39seg

10 Posse do ministro Aloizio Mercadante na Casa Civil 2min07seg

11 Agência-Barco da Caixa Econômica na Ilha de Marajó 2min17seg

12 Programa Rotas de Integração Nacional na Ilha de Marajó 39seg

13 Caravana da Secretaria da Micro e Pequena Empresa 36seg

14 Serviço Aéreo Fácil tira dúvidas sobre direitos de

passageiros 45seg

Fonte: Cronometragem feita pelo próprio autor com base no arquivo em áudio da EBC Serviços.45

Wolf propõe uma análise da noticiabilidade a partir do que chama de

“admissões implícitas” ou de “considerações relativas”. Sao elas: (a) as características

substantivas das notícias ou seu conteúdo, uma categoria de considerações que diz

respeito a quanto o evento é apto a se transformar em notícia; (b) a disponibilidade de

material e os critérios relativos ao produto informativo, que se refere ao conjunto dos

processos de produção e de realização do trabalho jornalístico; (c) o público, ou seja, a

imagem que os jornalistas têm a respeito daqueles que serão destinatários das notícias; e

(d) a concorrência, que diz respeito às relações entre os meios de comunicação de massa

presentes no mercado (WOLF, 2012, p.207).

Para efeitos desta análise, optamos por trabalhar com os critérios substantivos

propostos pelo autor. Esses critérios articulam-se com base em dois fatores principais: a

importância e o interesse gerado pela notícia. Para que sejam avaliados esses fatores,

Wolf (2012, p.208-214) sugere que a análise das notícias seja baseada a partir de quatro

variáveis: (1) o grau hierárquico dos envolvidos no acontecimento; (2) o impacto do fato

sobre a nação e interesse nacional; (3) a quantidade de pessoas que o acontecimento

envolve (direta ou indiretamente); e (4) a relevância do fato em relação aos

desenvolvimentos futuros de uma determinada situação.

45 A íntegra dos conteúdos em áudio dos programas analisados nesta dissertação estão disponíveis em

<http://conteudo.ebcservicos.com.br/programas/a-voz-do-brasil/programas>. Acesso em 01 jul 2015.

64

Na primeira variável, o autor indica que quanto mais o acontecimento

envolver ou interessar membros da elite política ou econômica, mais chance terá de se

tornar notícia. “A hierarquia governamental é visível (...) e auxilia os jornalistas em sua

avaliçao de importância” (GANS, 1979, p.147). O valor/notícia “importância” de um

evento é definido com base em fatores como o grau de poder institucional, a visibilidade

dos personagens (a capacidade de serem “reconhecidos” pelo público em geral) e o peso

das organizações envolvidas. Se analisado com base nessa variável, o “apagao” deveria

ter tido destaque na Voz do Brasil, visto que se tratou de um tema de gestão do Ministério

das Minas e Energia e de interesse direto do governo, a ponto de ter merecido uma

entrevista coletiva naquele mesmo dia, com a participação de representantes do alto

escalão do ministério.

Na variável “impacto sobre a naçao e sobre o interesse nacional”, Galtung e

Ruge (1993, p.63) sugerem a análise com base no valor/notícia “significatividade”, ou

seja, o potencial do acontecimento em influir ou incidir sobre os interesses do país. A

cobertura sobre o “apagao”, feita pelos jornais impressos analisados, destacou os efeitos

sobre o sistema elétrico: além do O Globo, que destacou na manchete o risco de novo

“apagao” devido à suspeita de o sistema operar “no limite”, a Folha de S.Paulo informou

que a presidente da República havia convocado uma reunião de emergência (informação

que não foi dada pela Voz do Brasil) e o Estado de S.Paulo questionou o fato de o

Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) descartar uma sobrecarga do sistema, sem

mesmo saber as reais causas da pane.

A terceira variável, “quantidade de pessoas que o acontecimento (de fato ou

potencialmente) envolve”, correlaciona-se diretamente com a anterior – pois há uma

complementaridade entre o interesse social de um episódio e o número de pessoas

atingidas. Gans (1979, p.151) diz que quanto mais elevado for o número de pessoas

envolvidas, mais importante será a notícia. No caso do “apagao”, o fato de ter deixado

sem luz cerca de 11 milhões de pessoas – e de ter afetado outros milhões de moradores

das grandes cidades (usuários ou não de transportes públicos) – já justificaria um

destaque maior na Voz do Brasil.

Na quarta variável, “relevância e significatividade do acontecimento quanto à

evoluçao futura de uma determinada situaçao” (GANS, 1979, p.152), avalia-se a capacidade de

uma cobertura manter o interesse do público e, portanto, merecer uma cobertura prolongada.

No caso do “apagão” em si, a notícia nao teria uma “cauda longa”, visto que a pane foi

solucionada em algumas horas, mas o contexto do setor elétrico nacional tem esse potencial (no

65

que se refere à insegurança jurídica dos contratos com os geradores de energia, falta de

investimentos em infraestrutura (atraso nas licitações e licenças de novas obras) e o decorrente

risco de um novo “apagao”. Tanto que foi destacado pelos jornais impressos.

Na cobertura feita pela Voz do Brasil, o “apagao” foi tratado como assunto de

menor relevância. O programa omitiu algumas informações passadas pelo próprio Ministério

das Minas e Energia e pelo Operador Nacional do Sistema – como o fato de o problema ter

afetado seis milhões de unidades consumidoras em 11 Estados (o programa citou apenas que o

curto-circuito “comprometeu 8% da carga do país”). A reportagem do programa também

evitou o uso do termo “apagao”, preferindo “interrupçao na transmissao”. Vale pontuar que

essa opção semântica do programa não está incorreta; está mais em conformidade com a norma

padrão da língua portuguesa do que “apagao”, pois evita o uso de uma gíria que começou a ser

incorporada ao repertório dos brasileiros a partir de meados dos anos 1980, em substituição à

expressão em inglês até então usada nesses casos de falta generalizada de energia (blackout).

No entanto, se analisado conforme os conceitos de noticiabilidade aqui adotados, o

programa deveria ter destacado o problema do “apagão”, em vez de privilegiar temas de

abrangência e repercussão limitadas – tanto geograficamente quanto no quesito relevância.

A polêmica saída do ministro da Educação em 2015

Em março de 2015, o ministro da Educação, Cid Gomes, compareceu ao

Plenário da Câmara dos Deputados depois de ser convocado pela Casa para se

explicar sobre declarações que havia feito a respeito dos parlamentares. A

convocação do ministro foi aprovada pelo Plenário da Câmara, que se transformou

em uma Comissão Geral para receber o ministro da Educação. Conforme o

regimento da Casa, caso ele não comparecesse, poderia sofrer processo por crime de

responsabilidade. Ex-governador do Ceará e no cargo de ministro há cerca de três

meses, Cid Gomes disse, durante uma visita à Universidade Federal do Pará

(UFPA), no dia 27 de fevereiro, que

tem lá [no Congresso] uns 400 deputados, 300 deputados que,

quanto pior, melhor para eles. Eles querem é que o governo esteja

frágil porque é a forma de eles achacarem mais, tomarem mais,

tirarem mais dele, aprovarem as emendas impositivas. [ministro

Cid Gomes, em pronunciamento na UFPA] (SOUZA, 2015)

Da tribuna do Plenário, o ministro disse que “partidos de oposiçao têm o

dever de fazer oposiçao” e que os “partidos de situaçao têm o dever de ser situaçao

ou entao larguem o osso, saiam do governo”. Essa frase causou uma reação dos

66

parlamentares no plenário, que resultou em uma discussão com os deputados. O

ministro dirigiu-se ao presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ):

– Eu fui, Sras. e Srs. Deputados, acusado de mal-educado. O

Ministro da Educação é mal-educado. Pois muito bem, eu prefiro ser

acusado por ele [apontando para o presidente da Casa, Eduardo

Cunha] de mal-educado do que ser, como ele, acusado de achaque!

[ministro Cid Gomes, no Plenário da Câmara]46

Houve uma sequência de reações dos parlamentares; o deputado Leonardo

Picciani (PMDB-RJ) falou ao microfone: “Esse cidadão não vai vir aqui debochar da cara

dos representantes da população brasileira!”; o deputado Sergio Zveiter (PSD-RJ)

chamou o ministro de “palhaço”. O ministro tentou revidar, mas teve seu microfone

desligado por determinação do presidente da Câmara – alegando que a palavra estava

com o parlamentar. Depois disso, o ministro abandonou a tribuna do Plenário. O

deputado Eduardo Cunha encerrou a Comissão Geral e anunciou que iria processar o

ministro.

– Não vou admitir que alguém que seja representante do Poder

Executivo não só agrida esta Casa, como agrediu a todos os seus

Parlamentares, como vem aqui e reafirme a agressão, inclusive

chegando ao ponto de querer dominar. Então, a Procuradoria vai

processar. A Presidência vai processar. (...) Esta Casa vai se dar ao

respeito, dependendo desta Presidência e, pelo que estou

depreendendo, da maioria dos Parlamentares que não se sentem

achacadores e não vão levar essa ofensa para casa. [deputado

Eduardo Cunha, no Plenário da Câmara]

Minutos depois, o próprio presidente da Câmara foi quem primeiro anunciou

a demissão do ministro aos deputados presentes no Plenário – após ter sido informado

pelo ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante.

A demissão do ministro da Educação, após a acalorada discussão no

Parlamento, virou manchete nos jornais do dia seguinte.

Estado: “Ministro é demitido depois de bate-boca no Congresso”

Folha: “Após bate-boca na Câmara, Eduardo Cunha anuncia queda de

ministro”

Globo: “PMDB ameaça sair da base, e Cid Gomes deixa governo”

46 Transcrição da Sessão Plenária da Comissão Geral da Câmara dos Deputados, realizada no dia 18 mar 2015, está

disponível em <http://www.camara.leg.br/internet/sitaqweb/TextoHTML.asp?etapa=3&nuSessao=036.1.55.O&nu

Quarto=36&nuOrador=1&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=15:10&sgFaseSessao=CG%20%20%20%20%20%20

% 20%20 &Data=18/03/2015&txApelido=CID%20GOMES&txFaseSessao=Comissão%20Geral%20%20%20%

20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20&dtHoraQuarto=15:10&txEtapa=Sem%20redação%20fi

nal>. Acesso em 01 jul 2015.

67

Figura 4 – Capas dos jornais – 19 mar 2015

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de março de 2015

Nos textos publicados nas primeiras páginas, os jornais contextualizaram a

saída do ministro e a crise entre os poderes Executivo e Legislativo que ela simbolizava.

A Folha definiu o fato de o presidente da Câmara anunciar a saída do ministro antes do

próprio Palácio do Planalto como um “episódio inusitado e constrangedor para o

governo”. O Estado de S.Paulo informou que o ministro foi demitido em razão do bate-

boca com o presidente da Câmara e que, devido ao episódio, o PMDB ameaçava romper

com o governo. Já O Globo destacou que “a demissao foi comunicada a Cunha, e

anunciada em plenário, antes mesmo de Cid chegar ao Planalto”.

Para a Voz do Brasil, daquele dia, o principal assunto foi a assinatura do

Projeto de Lei de combate à corrupção, anunciado em cerimônia no Palácio do Planalto.

Na pauta do programa, o tema mereceu duas matérias, ocupando um tempo total de mais

de sete minutos, trazendo trechos dos discursos da presidente da República e do ministro

da Justiça, José Eduardo Cardoso. Para o jornal O Globo, o episódio envolvendo o

ministro na Câmara “ofuscou a divulgaçao do pacote anti-corrupção de Dilma”,

anunciado pela presidente naquele mesmo dia, no Palácio do Planalto.

Na pauta do programa Voz do Brasil, a notícia da demissão do ministro Cid

Gomes apareceu como segundo assunto, portanto foi considerado um conteúdo relevante.

No entanto, a notícias não detalhou as circunstâncias que provocaram a saída – sequer foi

citado que o ministro havia comparecido ao Congresso, quanto mais que houve um bate-

boca com os parlamentares. Além disso, a notícia sobre a saída do ministro ocupou

68

apenas 11 segundos do programa (a menor duração dentre todos os assuntos incluídos na

pauta daquela edição da Voz do Brasil) e foi dada da seguinte forma pelos apresentadores:

– O ministro da Educação, Cid Gomes, entregou hoje o seu pedido de

demissão à presidenta Dilma Rousseff. [locutor Luciano Seixas]

– A presidenta agradeceu a dedicação do ministro que estava à frente à pasta.

[locutora Kátia Sartório]

Tabela 2 – Pauta da ‘Voz do Brasil’ – 18 mar 2015

Ordem de

apresentação Assunto Duração

1 Pacote Anti-Corrupção 1 4min14seg

2 Pacote Anti-Corrupção 2 3min06seg

3 Demissão do ministro da Educação, Cid Gomes 11seg

4 Venda de bebida a menores vira crime 2min55seg

5 Leilão da Ponte Rio-Niterói 5min16seg

6 Programa de cisternas 57seg

7 Recadastramento no Bolsa Família 1min

8 Prêmio Bloomberg de combate ao tabaco 1min08seg

9 Força Nacional de Segurança no RN 44seg

10 Assentamento de famílias do Maranhão 28seg

11 Prazo final para declaração da RAIS 46seg

Fonte: Cronometragem do próprio autor com base no conteúdo da EBC Serviços.

Conforme declarado no site da EBC Serviços, o objetivo da Voz do Brasil é levar

“aos cidadaos dos mais distantes pontos do país” notícias de seu interesse sobre o Poder

Executivo. Mas, apesar da proposição de veicular notícias que sejam de interesse do cidadão, a

análise do conteúdo do programa revela a influência exercida pela estrutura da estatal sobre o

trabalho jornalístico, o que faz prevalecer os interesses do poder constituído. O processo

jornalístico nas redações é submetido a “restrições ligadas à organizaçao do trabalho, sobre as

quais se constroem convenções profissionais” (WOLF, 2012, p.195). A noticiabilidade,

portanto, está estreitamente ligada aos processos rotineiros e à padronização das práticas

jornalísticas, que por sua vez são influenciados pela estrutura organizacional das empresas de

comunicação.

Os sistemas que regem o fazer jornalístico nas empresas funcionam a partir de uma

ideologia dominante, que é socializada entre os que lá trabalham. No processo de avaliação da

69

noticiabilidade, “a relevância de um acontecimento é determinada e comensurada com base nas

exigências organizacionais do aparato” (WOLF, 2012, p.265).

No caso da Voz do Brasil, essa influência do aparato se fazia onipresente desde os

tempos do DIP da era Vargas, quando todos os jornalistas sabiam o que se podia e o que não se

podia noticiar. Durante o regime militar, certos nomes de políticos e de personalidades eram

rigorosamente censurados no programa – entre eles, nomes tão díspares como o do ex-

presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) e o do arcebispo de Olinda e Recife Dom Hélder

Câmara (1909-1999). Já no fim do período militar, “o programa nao ficou ileso às investidas

grotescas do regime autoritário”, como a ordem para que fosse suprimida nos textos da Voz do

Brasil a patente do general Golbery do Couto e Silva, sempre que o então ministro da Casa

Civil fosse mencionado, ou para que os redatores acatassem os desejos da esposa do presidente

Joao Figueiredo, dona Dulce Figueiredo, e jamais a tratassem como “primeira-dama” na Voz do

Brasil. Também, naquela fase, o programa foi proibido de se referir à residência oficial do

presidente como Granja do Torto, “para evitar trocadilhos” (PEROSA, 1995, p.108).

Mas orientações dessa ordem não foram exclusivas dos regimes autoritários.

Mesmo durante os períodos em que o país experimentou a democracia, a Voz do Brasil

submeteu-se aos desígnios dos governantes, independentemente de sua orientação política.

Bucci lembra que o programa jamais tivera a atribuiçao legal de “bancar a advogada dos

governantes” perante o público.

Nenhum órgão de radiodifusão sob gestão do Estado pode virar defensor de

um “ponto de vista” em detrimento de outros pontos de vista, mesmo que

seja o ponto de vista do presidente da República. Quem oficialmente defende

os governos são os porta-vozes, os ministros, a base de sustentação do

governo no Congresso (BUCCI, 2008, p.259).

As manifestações de rua em junho de 2013

As manifestações de rua realizadas no mês de junho de 2013 começaram a ganhar

vulto no dia 6 de junho, com protestos em quatro capitais que haviam sido, inicialmente,

organizados pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento de 20 centavos nas tarifas

do transporte público. A cidade de São Paulo presenciou, naquele dia, cenas de depredação no

fim dos protestos. As capas dos jornais do dia seguinte destacaram essas cenas de violência – o

Estado de S.Paulo deu a manchete para o assunto, enquanto na Folha e no O Globo, as cenas

de depredação ilustraram a foto principal da página, com chamadas de texto secudárias:

Estado: “Protesto contra tarifa acaba em depredaçao e caos em SP”

Folha: “Vandalismo marca ato por transporte mais barato em SP”

Globo: “Protestos contra passagens de ônibus em quatro capitais”

70

Figura 5 – Capas dos jornais – 07 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 07 de junho de 2013

Os protestos voltaram a ocorrer nos dias 7, 11 e 13 de junho, sendo replicados em

outras capitais. Aos poucos, as manifestações passaram a ter a participação mais ativa de

grupos black blocs47, que se tornaram os principais responsáveis pela destruição de carros de

polícia, mobiliário urbano (pontos de ônibus, telefones, lixeiras) e de lojas. As cenas de objetos

incendiados nas ruas tornaram-se comuns naquele mês de junho, nos telejornais, nos jornais

impressos, revistas, sites de notícias da internet e redes sociais.

No dia 7 de junho, houve uma grande manifestação em São Paulo, que

interrompeu o trânsito em um dos corredores de tráfego mais movimentado da capital (a

Marginal do Rio Pinheiros, na zona sul). Uma estação de metrô foi depredada e houve conflito

dos manifestantes com a polícia. No dia seguinte, os jornais paulistas destacaram o episódio –

e, apesar das cenas impactantes, o carioca O Globo não tratou do assunto em sua capa.

Estado: “Protesto fecha Marginal e lentidao chega a 226km”

Folha: “Manifestantes causam medo, param marginal e picham ônibus”

47 Grupo de jovens vestidos com roupas pretas e com rostos cobertos com lenços, que foram responsáveis

por algumas das depredações durante as manifestações e foram alvo de repressão pela Polícia.

71

Figura 6 – Capas dos jornais – 08 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo de 08 de junho de 2013

Conforme aumentava a violência dos protestos, e os enfrentamentos entre os

manifestantes e a polícia militar, os jornais ampliavam o destaque nas suas primeiras páginas.

No dia 12 de junho, os jornais de São Paulo voltaram a destacar as depredações e os atos de

vandalismo das manifestações.48

Vale destacar ainda que, nas edições do dia 14 de junho, embora as cenas de

violência tenham ocorrido na cidade de São Paulo, também o jornal carioca O Globo

destacou na primeira página os episódios nas ruas. Dessa forma, o jornal atestou a relevância

nacional que o tema começava a ganhar, extrapolando a questão do reajuste das tarifas de

transporte público e se tornando um assunto que atendia aos critérios de noticiabilidade do

jornal. As manchetes das edições de 14 de junho foram:

Estado: “Confronto fere mais de 100; paulistano vive dia de caos”

Folha: “Polícia reage com violência e SP vive noite de caos”

Globo: “Confronto se agrava em SP, com mais prisões e feridos”

48 No Estado, a manchete de 12 de junho foi: “Maior protesto contra tarifa tem bombas e depredaçao”; já a

Folha destacou: “Contra tarifa, manifestantes vandalizam o centro de SP”.

72

Figura 7 – Capas dos jornais – 14 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 14 de junho de 2013

As manifestações ocorreram às vésperas do início da Copa das Confederações,

evento que tradicionalmente é organizado um ano antes do Mundial de Futebol pelo país-

sede da Copa, reunindo seleções representantes de todos os continentes. O torneio teve

início no dia 15 de junho, em Brasília. Os protestos não perderam força, mesmo após a

redução das tarifas de transporte, e os manifestantes ampliaram o leque de reivindicações,

pedindo melhores condições de saúde e educação. As pessoas nas ruas questionavam os

gastos oficiais com as obras voltadas para a Copa do Mundo e pediam serviços públicos

com o mesmo “padrao Fifa”, numa referência às exigências para a construção e reforma de

novos estádios, feitas pelo órgão que administra o futebol mundialmente.49

O fato de os protestos ocorrerem simultaneamente ao evento esportivo da Fifa

atraiu também a atenção da imprensa internacional para os protestos no Brasil. Alguns

desses veículos destacaram o fato de a população brasileira ter “acordado” para os

problemas do país e ocupado as ruas, conforme mostram os três exemplos abaixo:

New York Times (EUA): “Protests Widen as Brazilians Chide Leaders”

Le Monde (França): “Au Brésil, manifestations contre la vie chère à l'approche

du Mondial”

The Economist (Reino Unido): “The streets erupt” 50

49 Os manifestantes pediam ainda a prisão de políticos corruptos condenados pelo mensalão do PT, eram contra a

aprovação do Projeto de Emenda Constitucional que limitava as investigações do Ministério Público (PEC-37) e

contra as greves que paralisavam os serviços de ônibus e metrô em São Paulo (CARLOS, 2015, p.15). 50 A matéria do Le Monde foi publicada no dia 17 de junho; as do NYT e da Economist foram publicadas em 18 de

junho. Em traduçao livre: “Protestos se espalham enquanto brasileiros repreendem políticos” (NYT); “No Brasil,

manifestações contra os altos custos da Copa do Mundo” (Le Monde); e “A explosao das ruas” (Economist).

73

Figura 8 – Sites da imprensa internacional – Junho 2013

Fontes: New York Times de 18 de junho, Le Monde de 17 de junho e The Economist de 18 de junho.

Mesmo extrapolando as reivindicações para temas de responsabilidade do

governo federal (como saúde e educação) e ganhando, cada vez mais, destaque na

imprensa nacional e internacional, os protestos somente foram abordados pelo

programa Voz do Brasil no dia 18 de junho, doze dias depois da primeira grande

manifestação.

No evento de abertura da Copa das Confederações, no sábado, 15 de

junho, a presidente da República foi vaiada pelo público presente ao Estádio Mané

Garrincha, em Brasília, no momento em que sua imagem apareceu no telão. Do lado

de fora do estádio, houve confronto entre manifestantes e a polícia, que deixou 39

feridos e 29 detidos.51

O episódio virou manchete nos jornais do dia seguinte, que trouxeram

também as primeiras análises sobre uma semana de protestos pelo país, com títulos

como: “A semana em que Sao Paulo ardeu” (Folha) e “Ritual de Passagem – A

questão da tarifa de ônibus extrapolou os centavos e culminou em repressão, feridos

e centenas de presos” (Estado). Nas manchetes, foi dado destaque às vaias à

presidente da República:

Estado: “Torcida vaia Dilma na festa de abertura em Brasília”

Folha: “Estreia do Brasil tem vaia a Dilma, feridos e presos”

Globo: “Torneio começa com vaias a Dilma e vitória da seleçao”

51 Conforme reportagem da Agência Brasil, 29 pessoas foram detidas pela polícia do Distrito Federal e o

Corpo de Bombeiros fez 39 atendimentos de emergência, entre eles três manifestantes com ferimentos de

bala de borracha e quatro policiais.

74

Figura 9 – Capas dos jornais – 16 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 16 de junho de 2013

Na segunda-feira, 17 de junho, os jornais apontavam a disposição do

governo do Estado de São Paulo em negociar com os manifestantes – e seu

comprometimento em não reprimir com violência os protestos. A Folha destacou, na

capa, uma foto do confronto entre manifestantes e policiais do lado de fora do

Maracanã, durante um jogo da Copa das Confederações. A Folha ainda revelou que

a presidente da República havia desistido de fazer discurso no jogo de abertura do

torneio, temendo justamente ser hostilizada pelos torcedores. Em O Globo, embora a

manchete tenha sido voltada à reinauguração do Maracanã, a capa trouxe foto do

confronto no Rio e a preocupação com os novos protestos que estavam marcados

para ocorrer em São Paulo.

Estado: “Protesto ganha apoio e governo busca diálogo”

Folha: “Governo de SP pede e terá reuniao com manifestantes hoje”

Globo: “O Brasil e o mundo de olho em Sao Paulo”

75

Figura 10 – Capas dos jornais – 17 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 17 de junho de 2013

Diante do compromisso do governo paulista de não reprimir com violência as

manifestações, novos protestos ocorreram na segunda-feira, 17 de junho. Mais de 240 mil

pessoas foram às ruas em 12 capitais, sendo que uma das imagens mais emblemáticas

ocorreu em Brasília, com a ocupação do teto do Congresso Nacional pelos manifestantes, e

que foi reproduzida nas capas dos três jornais analisados.

Estado: “Protesto se espalha pelo país e políticos viram alvo”

Folha: “Milhares vao às ruas ‘contra tudo’; grupos atingem palácios”

Globo: “O Brasil nas ruas – Convocados pelas redes sociais, protestos

mobilizam pelo menos 240 mil pessoas em 11 capitais”

Figura 11 – Capas dos jornais – 18 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 18 de junho de 2013

76

Somente no dia 18 de junho, as manifestações foram incluídas na pauta da

Voz do Brasil. O programa destacou que as manifestações eram legítimas e faziam parte

da democracia. A Voz do Brasil reproduziu trechos de um discurso da presidente da

República e de uma entrevista do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto

Carvalho, que havia se reunido com representantes de alguns dos movimentos

representados nas manifestações. Com 3min30seg de duração, a matéria foi o primeiro

tema da pauta do programa:

– As vozes das ruas querem mais cidadania, mais saúde, mais educação,

mais transporte, mais oportunidades. A afirmação é da presidenta Dilma

Rousseff, que reconheceu as manifestações em todo o país como

legítimas e parte da democracia. [apresentadora Kátia Sartório]

– A presidenta diz que as pessoas que foram ontem às ruas deram uma

mensagem direta ao conjunto da sociedade, sobretudo aos governantes

de todas as instâncias. [apresentador Luciano Seixas]52

A presidente Dilma Rousseff tratou do tema durante a cerimônia de anúncio do

projeto de lei do novo Código de Mineração, no Palácio do Planalto, diante de uma audiência

formada por políticos e empresários. Em matéria publicada no dia seguinte, a Folha

considerou que, até aquele momento, a presidente vinha “buscando se manter distante de uma

avaliação mais aprofundada sobre as manifestações” e contextualizou a decisao presidencial

como tendo sido tomada em conjunto com a equipe de marketing do governo:

Dilma incluiu as manifestações em seu discurso sobre o novo Código

de Mineração após avaliar com o marqueteiro João Santana que era

preciso se posicionar para não dar a imagem de que seu governo está

na defensiva. “O meu governo, que quer ampliar o acesso à educaçao

e à saúde, compreende que as exigências da população mudam.

Mudam quando nós mudamos também o Brasil” (FOLHA DE

S.PAULO, 2013b, p.C7).

Na Voz do Brasil, a fala da presidente foi editada em blocos, destacando os

trechos que tentavam “responder” às reivindicações dos manifestantes. O discurso

presidencial foi redigido cuidadosamente, utilizando-se do recurso da repetição para

ressaltar determinadas expressões (como a expressão “mensagem direta das ruas”).

Percebe-se também que, em alguns desses trechos, a fala é interrompida pelos aplausos

dos presentes, indicando a presença de uma plateia amistosa no Palácio do Planalto:

– Essa mensagem direta das ruas é por mais cidadania, por melhores

escolas, por melhores hospitais, postos de saúde, pelo direito à

participação. Essa mensagem direta das ruas mostra a exigência de

transporte público de qualidade e a preço justo. Essa mensagem direta

das ruas é pelo direito de influir nas decisões de todos os governos, do

52 As transcrições da Voz do Brasil reproduzidas aqui foram retiradas do site da EBC Serviços. Disponível em

<http://conteudo.ebcservicos.com.br/programas/a-voz-do-brasil/transcricoes_tpl>. Acesso em 6 jun 2015.

77

Legislativo e do Judiciário. Essa mensagem direta das ruas é de repúdio

à corrupção e ao uso indevido do dinheiro público. [aplausos] Essa

mensagem direta das ruas comprova o valor intrínseco da democracia,

da participação dos cidadãos em busca de seus direitos. E eu queria

dizer aos senhores: a minha geração sabe quanto isso nos custou

(PORTAL DO PLANALTO, 2013).

Na noite daquele mesmo dia 18 de junho, manifestantes em São Paulo

tentaram invadir a sede da Prefeitura, no centro da cidade, provocando um confronto

violento com a Guarda Civil Metropolitana. Esse episódio e os saques de lojas ocorridos

no centro mereceram o destaque principal dos jornais do dia seguinte, em detrimento da

fala presidencial.

Estado: “SP tem noite de caos, com ataque à Prefeitura e onda de saques”

Folha: “Ato em SP tem ataque à prefeitura, saque e vandalismo; PM tarda a agir”

Globo: “Capitais já baixam tarifas de ônibus; protestos continuam”

Figura 12 – Capas dos jornais – 19 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de junho de 2013

A inclusão do tema das manifestações na pauta da Voz do Brasil apenas

depois de passados 12 dias do início dos protestos, indica a adoção de critérios peculiares

de noticiabilidade no programa, se comparado seu conteúdo ao dos jornais da grande

imprensa. O programa ignorou, por exemplo, o critério de “importância”, no que se refere

ao impacto do fato sobre o interesse nacional e a quantidade de pessoas envolvidas.

A Voz do Brasil abordou o assunto apenas quando a presidente da República

veio a público com um “discurso” cuidadosamente elaborado – e, além disso, pronunciado

em um ambiente “controlado”, cercada de aliados e distante da população insatisfeita. Isso

78

nos leva a deduzir que, ao dispensar os critérios de noticiabilidade, o programa não apenas

abriu mão dos preceitos de seu Manual de Jornalismo, mas tentou construir uma imagem

de um governo aberto ao diálogo, a partir de técnicas das relações públicas.

A administração da visibilidade através da mídia é uma atividade

perseguida não somente nos períodos intensivos de campanhas

eleitorais, ela faz parte também da própria arte de governar. A condução

de um governo exige um contínuo processo de tomada de decisões

sobre o que, a quem e como se pode tornar público. A tarefa de tomar e

executar essas decisões pode ser confiada em parte a uma equipe

especializada de assessores, responsáveis pela administração da relação

entre governo e a mídia (THOMPSON, 2013, p.181).

No caso das notícias sobre as manifestações veiculadas pela Voz do Brasil, o

critério de seleção esteve mais ligado à agenda governamental do que ao desenrolar dos

acontecimentos. Nos dias que se seguiram à primeira menção no programa, o assunto

seguiu na capa dos jornais, mas só voltaria a ser abordado pela Voz do Brasil quando

algum representante do governo tinha algo a declarar – e não em decorrência de novos

acontecimentos.

Debord, ao analisar a postura do poder espetacular, alerta para o uso da

desinformação por parte das autoridades:

Contrariamente à pura mentira, a desinformação, e é nisto que o

conceito é interessante para os defensores da sociedade dominante, deve

fatalmente conter uma certa parte de verdade, mas deliberadamente

manipulada por um hábil inimigo. O poder que fala de desinformação

não acredita estar ele mesmo absolutamente sem defeitos, mas sabe que

poderá atribuir a toda a crítica precisa esta excessiva insignificância que

está na natureza da desinformação; e que deste modo não terá de

reconhecer nunca um defeito particular. Em suma, a desinformação

seria um mau uso da verdade (DEBORD, 1997, p.52).

O fato de a Voz do Brasil ter ignorado uma notícia de interesse nacional

durante vários dias – ou de tê-la reproduzido apenas quando amparada por algum

posicionamento oficial – pode indicar uma tentativa de convencer o público de que os

acontecimentos nas ruas não seriam exatamente como foram. Ou que a percepção do

público a respeito das manifestações estava errada – a despeito das evidências concretas,

como o comércio fechado, as escolas com atividades canceladas, o trânsito comprometido

pelos protestos e as cenas de depredações e de repressão policial.

Uma postura assim poderia ser interpretada como um “discurso de

propaganda”, conforme Ramonet:

Um discurso de propaganda é um discurso que tenta, criando fatos, ou

então ocultando-os, construir um tipo de verdade falsa, o que está longe

de ser o desígnio de nossos próprios sistemas informacionais. (...)

79

Propriamente falando, o discurso de propaganda é um discurso de

censura, mas a censura, em compensação, não é necessariamente da

ordem da propaganda. Esta consiste em suprimir, amputar, proibir um

certo número de aspectos dos fatos, ou mesmo o conjunto dos fatos, em

ocultá-los, em escondê-los (RAMONET, 1999, p.48).

No dia seguinte à primeira referência da Voz do Brasil aos protestos, dia 19

de junho, o programa tangenciou o tema, ao noticiar que o governo federal havia

proposto uma desoneração para as empresas de transporte público – o que poderia

provocar, indiretamente, uma queda no valor das tarifas. O anúncio foi feito no programa

pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega:

– Fizemos várias reduções em toda a cadeia de transportes, começando

pelos mais importantes. A desoneração da folha de pagamento do setor

de transporte, que beneficiou tanto o transporte coletivo quanto o

transporte metroviário. Recentemente, fizemos também a redução do

PIS e Cofins sobre passagens para todo o sistema. [ministro Guido

Mantega]

Naquele mesmo dia, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e o

governador do Estado, Geraldo Alckmin, anunciaram a redução do preço das

passagens de ônibus e metrô. No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes também

reduziu as tarifas. A notícia ocupou a manchete dos principais jornais do dia seguinte.

O anúncio da redução das tarifas foi comemorado pelas multidões reunidas naquela

data em locais públicos, para assistir ao jogo entre Brasil e México pela Copa das

Confederações – e esses governantes que tomaram as iniciativas foram vaiados

quando a imagem deles foi exibida no telão, durante a notícia da redução das tarifas.

A Voz do Brasil não deu a notícia da redução das tarifas nas capitais – o

que é justificável por se tratar de um programa com informações do governo federal,

enquanto essas medidas foram tomadas nos âmbitos municipais e estadual. Mas ao

tentar divulgar as iniciativas federais que contribuiriam para a redução das tarifas – a

desoneração para o setor de transportes – o programa não fez qualquer referência aos

protestos. No programa, a medida foi relatada como uma demonstração de

antecipação do governo diante das demandas populares (pois já havia um projeto

semelhante em tramitação no Congresso):

– O governo federal já tinha se antecipado às desonerações de tributos,

previstas em um projeto aprovado na Câmara e que vai ser apreciado

agora no Senado. De acordo com o ministro, a isenção total ou parcial

de impostos permite uma redução de aproximadamente 10% nas tarifas

de trens e metrô e de mais ou menos 7% nas tarifas de ônibus. [repórter

Ricardo Carandina]

80

Os jornais do dia seguinte destacaram que o preço das passagens havia

baixado nas duas capitais por pressão das manifestações.

Estado: “Haddad e Alckmin cedem, tarifa volta a R$ 3 e MPL mantém ato”

Folha: “Protestos de rua derrubam tarifas”

Globo: “Protestos derrubam aumentos em Sao Paulo e no Rio de Janeiro”

Figura 13 – Capas dos jornais – 20 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de junho de 2013

Apesar da redução das tarifas, os protestos no dia 20 de junho foram mantidos

e reuniram cerca de um milhão de pessoas em várias capitais, sendo marcados pela

violência. Em Brasília, os manifestantes tentaram invadir o Palácio do Itamaraty e, no

Rio de Janeiro, a Prefeitura foi alvo dos manifestantes. A situação levou a presidente da

República a cancelar uma viagem que faria ao Japão.

Na edição daquela quinta-feira, a Voz do Brasil não noticiou as manifestações

que ocorreram em Brasília e em outras capitais.53 O programa optou por abordar

novamente a desoneração do setor de transportes, que havia sido citada no programa do

dia anterior. Para tal, introduziu a informação no contexto dos protestos, mas sem se

referir aos protestos daquele dia e sem trazer qualquer informação nova ou factual:

– Manifestações estão acontecendo em todo o país, e uma das principais

reivindicações é o preço das passagens de ônibus, trens, metrôs.

[apresentadora Kátia Sartório]

– Pois é, Kátia. Ontem, divulgamos, aqui na Voz do Brasil, que o

governo federal já implementou medidas para reduzir os custos das

empresas de transporte público. [apresentador Luciano Seixas]

53 Vale destacar que a tentativa de invasão do Itamaraty ocorreu no início da noite, no momento em que o

programa entrava no ar, o que pode ter inviabilizado a inclusão dessa informação na Voz do Brasil.

81

– A ideia, Luciano, é baixar o preço das passagens aqui no país. E,

agora, vamos saber, ao vivo, com o repórter Ricardo Carandina, mais

detalhes sobre todas essas medidas. [apresentadora Kátia Sartório]

Em sua participação ao vivo, o repórter esclareceu algumas medidas que

haviam sido adotadas pelo governo: a redução a zero do imposto sobre combustíveis

(Cide), implantada em junho de 2012; a eliminação da contribuição previdenciária de

20% sobre a folha de pagamento das empresas; e a isenção de PIS/Cofins para empresas

de transporte. E voltou a se referir à fala do ministro da Fazenda, na véspera:

– De acordo com o ministro da Fazenda, Guido Mantega, essas medidas

permitem uma redução no custo (...) das passagens de ônibus de

aproximadamente 7%. E no caso das passagens de trens, a redução

poderia chegar a 10%. Com isso, as passagens poderiam ser reduzidas

ou pelo menos ter reajustes menores.54 [repórter Ricardo Carandina]

Além de cancelar a viagem ao Japão, a presidente convocou uma reunião de

emergência para o dia seguinte, em Brasília, com os principais assessores e ministros. Os

jornais destacaram o intuito da reunião, que era elaborar um plano de resposta à crise:

Na reunião, a presidente vai fazer um balanço dos protestos e analisar se

faz ou não um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV. (...)

Assessores presidenciais disseram ontem reservadamente que o governo

estava “atônito” e “perplexo” com as manifestações em todo o país, mas

monitorava a evolução dos protestos para tomar medidas de emergência

em caso de necessidade (FOLHA DE S.PAULO, 2013a).

A Voz do Brasil daquele dia ignorou o cancelamento da agenda internacional

da presidente e também a convocação da reunião de emergência. A notícia não foi

incluída entre os 13 assuntos da pauta daquela edição da Voz do Brasil:

Tabela 3 – Pauta da Voz do Brasil – 20 jun 2013

Ordem Assunto

1 Balanço parcial da vacinação contra a paralisia infantil

2 Desoneração do setor de transportes

3 Pesquisa Antaq sobre vias fluviais na Amazônia

4 Visita ao Centro Aberto de Mídia da Copa das Confederações

5 Inscrições no programa Pronatec Copa

6 Rua de Fortaleza é eleita a “mais enfeitada” para a Copa

7 Começam as Conferências Municipais de Assistência Social

8 Programa de Integração Educação Profissional-Básica

54 A matéria sobre a desoneração dos transportes públicos ocupou 2’51”, sem fazer qualquer referência ao

cancelamento da viagem da presidente da República.

82

9 Um milhão de alunos matriculados em cursos a distância do MEC

10 Taxa de desemprego em abril ficou em 5,8%

11 Fim do prazo de inscriçao no plano “Viver sem Limites"

12 Três cidades do Ceará no programa “Crack, é possível vencer”

13 Último dia para inscrições no programa "Atletas nas Escolas"

Fonte: Fonte: Análise do próprio autor, com base no conteúdo da EBC Serviços.

Já os jornais do dia seguinte não só noticiaram os protestos, como destacaram

o cancelamento da viagem e a convocação da reunião de emergência:

Estado: “Um milhao vai às ruas, violência cresce e Dilma chama reuniao”

Folha: “Protestos violentos se espalham pelo país e Dilma chama reuniao”

Globo: “Sem controle – Em noite de novos conflitos, depredações e saques,

Itamaraty e prefeitura do Rio sao atacados”

Figura 14 – Capas dos jornais – 21 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 21 de junho de 2013

Os protestos perduraram ainda por algumas semanas, embora tivessem

perdido força com o passar do tempo. A “cobertura” das manifestações de 2013 pela Voz

do Brasil, aqui analisada, representa bem o padrão de alinhamento do programa à agenda

governamental, assim como o compromisso com os interesses do governo, em detrimento

dos interesses do cidadão e da defesa do direito à informação.

83

Ao optar por um discurso oficial que guarda apenas uma relação tangencial

com os acontecimentos nas ruas, a Voz do Brasil ignorou critérios de noticiabilidade e

não praticou o jornalismo defendido em seu próprio Manual de Jornalismo – segundo o

qual os fatos de interesse público devem ser reportados “com fidelidade, precisao e

honestidade”.

Ao assumir como seu o discurso das autoridades, a Voz do Brasil adota uma

“retórica da legitimaçao”, ou seja, um recurso utilizado por instituições e organizações

para “enfrentar grupos com visões e interesses diversos ou por vezes incompatíveis aos

seus ou para obter identificaçao junto a seus públicos” (HALLIDAY, 1987, p.91). O uso

de recursos retóricos pela Voz do Brasil para desenvolver esse discurso de propaganda

será objeto de análise no próximo capítulo.

84

CAPÍTULO 3

Análise retórica da ‘Voz do Brasil’

As origens da retórica na Grécia antiga

O primeiro documento do qual se tem notícia a respeito da “arte” retórica é

atribuído a Córax de Siracusa, no século 5 a.C. Ele redigiu um “manual” que servia de

base para as argumentações de qualquer cidadão perante os tribunais gregos. O

documento era um guia para as pessoas dedicadas ao ofício de escrever esses discursos e

arguições a serem apresentados perante a Justiça. Philippe Breton, um autor

contemporâneo que é uma referência em relação ao estudo da retórica, considera que

Córax foi “o primeiro professor de retórica, de certa forma seu inventor”. No seu manual,

do qual restam apenas vestígios e referências de outros autores (como Cícero e

Quintiliano), Córax propõe

um conjunto de procedimentos de natureza técnica que permitem

argumentar de maneira mais eficaz diante dos tribunais. O retórico

nasce ao mesmo tempo num contexto judiciário e no cerne de uma

reflexão sobre os métodos que permitem sistematizar a eficácia da

palavra (BRETON, 1999, p.48).

O sistema judicial da Grécia antiga permitia que tanto o queixoso quanto os

acusados se defendessem a si mesmos diante de juízes e dos júris populares. Esse

processo garantiria a avaliaçao da “autenticidade” de causa cada um. O tratado escrito por

Córax trabalhava o conceito de que todo discurso, para ser convincente, necessitava ser

“organizado”. Ele desenvolveu, entao, um “roteiro” do discurso retórico, baseado no

“domínio da situaçao” por parte de quem o proferisse.

O orador, diante dos juízes ou dos cidadãos reunidos em assembleia

política, deveria, em primeiro lugar, (...) procurar “acalmar por meio

de palavras insinuantes e lisonjeiras a agitaçao da assembleia”. Será

esse o papel do exórdio. Em seguida, depois de ter obtido a atenção,

ele expõe o tema da deliberação, passa à discussão, intercala-a de

digressões, que confirmam suas provas; por fim, na recapitulação ou

conclusão, resume seus motivos e reúne todas as suas forças para

arrebatar um público já abalado (BRETON, 1999, p.49).

Definida por Breton como “primeira retórica”, o tratado de Córax era

“ensinado” aos retores especializados na preparaçao de discursos jurídicos, a partir de

“fórmulas feitas, de exórdios preparados, que só esperavam para ser usados nesta ou

85

naquela circunstância”. Essa fórmula permitia que se inventassem “lugares”55 ou

“argumentos típicos” que podiam ser empregados em qualquer defesa ou arguiçao –

como sugere Breton: “No exórdio, começar por dizer que não se é orador, elogiar o

talento do adversário”.

É à composição de um caderno de exórdios e perorações que o orador

ateniense se dedicava mais cuidadosamente: pois a falta da peroração

significava comprometer o sucesso de todo o discurso; hesitar no

começo era expor-se a ser retirado da tribuna (BENOÎT apud

BRETON, 1999, p.50).

A contribuição de Córax à arte retórica foi grande. Mesmo que estivesse,

primordialmente, preocupada com a eficácia (jurídica ou política) do discurso, com sua

capacidade de convencer, essa primeira retórica surgiu como uma “alternativa possível à

violência das relações sociais”, pois as decisões eram tomadas pela maioria, com base em

uma discussao coletiva. Nesse sentido, “a retórica, como instrumento do debate, assume

todo o seu sentido” (BRETON, 1999, p.50).

Pouco mais de um século depois de Córax, na mesma Grécia, Aristóteles (384

a.C.-322 a.C.) avançou com os estudos sobre a arte retórica, ao questionar a “mecânica

sofística, com seus lugares pré-fabricados, seus procedimentos e, em suma, seu cinismo a

serviço do poder” (BRETON, 1999, p.50). Aristóteles definiu retórica como “a arte de

procurar, em qualquer situaçao, os meios de persuasao disponíveis”. Para Aristóteles,

nenhuma outra arte possui essa função, pois as outras têm a possibilidade de “instituir e

de persuadir” apenas sobre o objeto que lhes é próprio, enquanto a retórica parece ser

capaz de, “no que concerne a qualquer questao, descobrir o que é próprio para persuadir”

(ARISTÓTELES, 2000, p.26).

Para Aristóteles, a retórica fazia parte da vida democrática, pois os cidadãos

da polis usavam a força da argumentaçao em vez da “argumentaçao” da força para

convencer os demais em favor de terminada ideia. Mas uma característica relevante o

distingue de Córax: com Aristóteles, a retórica se apoia numa ética que não privilegia a

eficácia – o que a ajudou a se tornar uma técnica “completa”.

O objeto da retórica antiga era, acima de tudo, a arte de falar em

público de modo persuasivo; referia-se, pois, ao uso da linguagem

falada, do discurso, perante uma multidão reunida em praça pública,

com o intuito de obter a adesão desta a uma tese que se lhe

apresentava (PERELMAN, 2005, p.6).

55 Philipe Breton alerta que desse conceito de “lugares” usado pelos retores é que surgiu a expressão “lugar-

comum”.

86

Aristóteles acentua, com veemência, que a função da retórica não é persuadir

a qualquer custo. Essa arte não se reduz aos expedientes guiados, exclusivamente, pelo

objetivo de vitória nos embates políticos ou forenses – uma acusação comumente feita

contra os sofistas da época. O pensador grego pretendia evitar que qualquer

encadeamento de proposições pudesse ganhar o estatuto de “argumentaçao dialética,

apenas baseada na retórica de quem a proferisse.

Em outros termos, a preocupação do pensamento filosófico no sentido

de não legitimar todas e quaisquer manifestações do intelecto humano –

mas apenas as resultantes de determinado método, que possibilite o

controle de sua pertinência – também estava, de algum modo, presente

na reflexão aristotélica (COELHO, 2005, p.XIII).

A matriz proposta por Aristóteles perdurou por séculos como paradigma do

estudo da retórica. No entanto,

de comunicação pragmática para resolver os negócios humanos, na

Antiguidade, a retórica adquiriu má fama quando, no século XIX,

banalizou-se como “verniz de estilo” e passou a ser associada ao uso

floreado de figuras de linguagem. (...) Acentuou-se daí a sua

desvirtuação, que os maus políticos do nosso tempo acabaram por

exacerbar, reforçando uma das acepções populares de “retórica”,

registrada pelos dicionários: “discurso de forma primorosa, porém vazio

de conteúdo” (HALLIDAY, 1988, p.122).

Retórica enquanto arte de convencer

Apenas no século XX, os estudos sobre a retórica foram incorporados às

pesquisas sobre Comunicação, sob a rubrica de rhetorical criticism (crítica retórica).

Filósofos e estudiosos passaram a estudar a retórica tanto sob seu aspecto formal quanto

sob o aspecto de instrumento de persuasão. Um pesquisador se destaca nos estudos sobre

retórica no século passado: o filósofo de origem polonesa radicado na Bélgica Chaïm

Perelman (1912-1984), que propôs o que definiu como “nova retórica”.

Perelman percebe que considerar irracional a aplicação do direito

importa renunciar a qualquer filosofia prática e abandonar a disciplina

da conduta humana ao sabor de emoções e interesses, quer dizer,

confiá-la à violência. Insatisfeito com a afirmação da irracionalidade da

aplicação do direito, Perelman elege como projeto teórico a pesquisa de

uma “lógica dos julgamentos de valor”. Daí nascerá a nova retórica

(COELHO, 2005, p.XV).

A preocupação básica de Perelman é entender os meandros pelos quais os

valores se introduzem no processo de argumentação. Para Coelho, a nova retórica pode

ser considerada o “discurso do método” de uma racionalidade que nao consegue evitar os

debates, portanto se abre ao diálogo.

87

Já não se trata de privilegiar a univocidade da linguagem, a

unicidade a priori da tese válida, mas sim de aceitar o pluralismo,

tanto nos valores morais como nas opiniões. A abertura para o

múltiplo e o não-coercivo torna-se, então, a palavra-mestra da

racionalidade (COELHO, 2005, p.XX).

A nova retórica incorpora o processo comunicacional à arte de persuadir

e convencer por meio do discurso. Uma das propostas de Perelman que o distingue

de Aristóteles é a ampliação do conceito de auditório (poderíamos aqui adotar

“audiência”), diante das possibilidades dos meios de comunicaçao. Perelman

trabalha o conceito de “auditório universal”, pois quando uma argumentação se

dirige apenas a um “auditório particular”, o orador acaba adaptando suas teses “ao

modo de ver de seus ouvintes”, ou seja, pode colocar em risco seus argumentos e

ficar exposto a questionamentos de outras pessoas, que não fazem parte daquele

grupo. Isso enfraquece sua argumentação.

Uma argumentação dirigida a um auditório universal deve

convencer o leitor do caráter coercivo das razões fornecidas, de sua

evidência, de sua validade intemporal e absoluta, independente das

contingências locais ou históricas. “A verdade”, diz-nos Kant,

“repousa no acordo com o objeto e, por conseguinte, com relação a

tal objeto, os juízos de qualquer entendimento devem estar de

acordo” (PERELMAN, 2005, p.35)

Apenas uma asserçao assim pode ser afirmada, ou seja, expressa “como

um juízo necessariamente válido para todos”. Esse processo pressupõe a “adesao do

espírito” da audiência, mas essa depende de uma “verdade coerciva”:

O indivíduo, com sua liberdade de deliberação e de escolha, apaga-

se ante a razão que o coage e tira-lhe qualquer possibilidade de

dúvida. No limite, a retórica eficaz para um auditório universal

seria a que manipula apenas a prova lógica (PERELMAN, 2005,

p.36).

No entanto, a argumentação dirigida a um auditório ampliado não

consegue convencer a todos, o que leva os retores a “desqualificar o recalcitrante,

considerando-o estúpido ou anormal”. Esta era uma prática comum entre os

pensadores medievais, mas que se pode encontrar em alguns pensadores modernos.

Mas a adesao da maioria da audiência a esse procedimento só será possível “se o

número e o valor intelectual dos proscritos não ameaçarem tornar ridículo

semelhante procedimento” (PERELMAN, 2005, p.37).

88

A busca da legitimação pelo discurso

Para analisarmos o conteúdo da Voz do Brasil, além dos conceitos de

Perelman, recorremos às ideias de Halliday (1987, 1988), cuja obra estuda os discursos

institucionais de organizações e empresas, enquanto “atos retóricos” em busca de

legitimação perante a sociedade. Halliday lembra que a nova retórica proposta por

Perelman superou as “conotações negativas” derivadas do mau uso dessa arte por “retores

irresponsáveis” e permitiu o retorno a seu sentido denotativo de ação comunicativa que

visa influenciar o ambiente à sua volta.

Desde a Antiguidade, a prática retórica consiste no uso da

argumentação como instrumento de gestão dos negócios humanos –

uma arte e uma estratégia, antípoda do uso da força para resolver

conflitos (HALLIDAY, 1998).

Conforme a autora, a base da legitimação de governos e organizações está na

aceitação deles por parte da sociedade. No caso de empresas – especificamente seu tema

de estudo – refere-se a um conceito específico de “fronteiras” (uma metáfora tirada da

Teoria dos Sistemas e aplicada às organizações enquanto sistemas sociais), ou seja, um

conjunto de “valores, normas e ideologias” existentes na sociedade que deixa ou nao essa

organização atuar.

“Deixar funcionar” significa aceitar o ramo de negócios, a conduta e os

objetivos da organização com base na convicção de que esses três

aspectos da existência organizacional são compatíveis com as

necessidades e/ou interesses da sociedade (HALLIDAY, 1987, p.12).

A partir dessa “aceitaçao”, empresas e organizações tentam construir sua

legitimidade por meio do discurso, recorrendo ao que Habermas (1975, p.112) define

como “interpretações, apresentações narrativas, ou... explanações sistematizadas e

cadeias de argumentos”.

Atos retóricos são atos de comunicação verbal e não-verbal (...) que

visam manter ou mudar percepções, crenças e comportamentos. Atos

administrativos são decisões implementadas para tornar a organização

persona grata junto aos setores do ambiente externo dos quais ela

depende para sobreviver. Servem de apoio aos atos retóricos e são

também investidos de significados (HALLIDAY, 1998).

Como procuraremos demonstrar nas próximas páginas, o conteúdo da Voz do

Brasil apresenta, em diversas oportunidades, a opção por determinadas abordagens dos

acontecimentos que, se comparados com a cobertura de outros veículos de imprensa a

respeito dos mesmos temas, demonstram uma tentativa de legitimação do governo federal.

89

O uso do argumento pragmático

Perelman denomina “argumento pragmático” aquele que permite “apreciar

uma coisa consoante suas consequências, presentes ou futuras”. Este tipo de argumento

permite, por exemplo, que alguém que tenha sido acusado de algum malfeito possa

transferir o valor das consequências de seu ato para as causas – rompendo o vínculo

causal e lançando a culpa para outra pessoa ou para as circunstâncias. “Se conseguir

inocentar-se terá, por esse próprio fato, transferido o juízo desfavorável para o que

parecerá, nesse momento, a causa da açao”. Esse argumento nao requer qualquer

justificaçao para ser aceito pelo senso comum. “O ponto de vista oposto, cada vez que é

defendido, necessita, ao contrário, de uma argumentaçao” (PERELMAN, 2005, p.303).

Um exemplo do uso do argumento pragmático na retórica da Voz do Brasil

está no programa do dia 24 de janeiro de 2013. O principal destaque daquela edição foi o

anúncio de uma redução das tarifas de energia – que havia sido feito na noite anterior, em

pronunciamento em rede nacional de TV, pela presidente da República. A matéria da Voz

do Brasil trouxe, além de um trecho do pronunciamento da presidente, entrevistas com o

ministro das Minas e Energia, com o presidente da Empresa de Pesquisa Energética

(EPE) e com três consumidores.

Se comparado com os jornais do dia seguinte (que repercutiram as medidas

anunciadas), o conteúdo da Voz do Brasil buscou simplificar a explicação para o

financiamento da medida (que se daria por meio do adiantamento de receita devida pelo

Consórcio Binacional da Usina Hidrelétrica de Itaipu ao Tesouro Nacional). A repórter

do programa reproduziu o discurso oficial, que justificava a necessidade de uso de

recursos do Tesouro em decorrência da recusa de concessionárias de Estados governados

pela oposição em “bancar” a reduçao da tarifa de energia:

– O ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, reuniu a imprensa para

detalhar as medidas e destacou que os programas sociais, como o Luz

para Todos e Tarifa Social, vão ser mantidos. Edison Lobão disse que o

Tesouro Nacional vai bancar quase R$ 8,5 bilhões para conseguir a

diminuição da tarifa. São créditos gerados pela usina hidrelétrica de

Itaipu, já que quatro companhias de energia não aceitaram a proposta do

governo para renovar concessões de parte de algumas usinas

hidrelétricas (…) [mas] esclareceu que mesmo a populaçao dos Estados

onde as concessionárias não aderiram ao plano vão ter redução nas

contas de luz. [repórter Mara Kenupp]56

56 As concessionárias de energia estaduais que não aderiram à proposta foram as empresas dos Estados de

São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais e Paraná.

90

Já os jornais do dia seguinte optaram por uma explicação mais detalhada

sobre como essa conta seria paga: para a Folha, tratava-se de um “buraco”, pois o valor

representava mais que o dobro do que havia sido previsto; o Estado alertou que esse

montante teria de ser coberto por meio de um “subsídio”; enquanto O Globo dizia que o

financiamento da medida era resultado de uma “manobra fiscal”.

Folha: Para garantir o desconto maior na conta de luz (...) o governo

federal vai ter de desembolsar R$ 8,5 bilhões neste ano. O valor é duas

vezes e meia o previsto inicialmente. Para cobrir o buraco, a União vai

usar receitas de Itaipu. A usina foi construída por Brasil e Paraguai, mas

financiada com recursos brasileiros. Há dívida de US$ 15 bilhões, a ser

paga até 2023. A estratégia é antecipar esses valores e receber. No

entanto, segundo o Ministério da Fazenda, a forma como isso será feito

ainda nao está definida. Uma das possibilidades é vender esse “crédito”

para o BNDES.

Estado: A união teve de ampliar os subsídios cobertos pela Conta de

Desenvolvimento Energético (CDE), encargo que incide sobre a tarifa

de luz e subsidia programas do governo, que agora terão de ser

financiados pelo Tesouro.

Globo: Para garantir a tarifa menor, o Tesouro fará aporte de R$ 8,46 bi,

que deverá ser viabilizado por manobra fiscal envolvendo operação de

triangulação com o BNDES.57

Diferentemente dos jornais, que buscaram explicar os impactos financeiros da

medida sobre as reservas do Tesouro Nacional – já que iriam consumir recursos sem o

respectivo lastro –, a Voz do Brasil adotou o que Perelman chama de “manobra dilatória”

(uma expressão emprestada do repertório jurídico)58 ao selecionar, para “abrir” a

reportagem, um trecho do discurso da presidente que relacionava a medida à “garantia”

do fornecimento de energia, negando o risco de racionamento:

Isso significa que o Brasil vai ter energia cada vez melhor e mais barata,

significa que o Brasil tem e terá energia mais que suficiente para o

presente e para o futuro, sem nenhum risco de racionamento ou

qualquer tipo de estrangulamento, no curto, no médio ou no longo

prazo. [presidente Dilma Rousseff]

Diferentemente da retórica otimista da presidente da República, o risco de

racionamento tornou-se uma possibilidade real no final de 2014, devido à crise hídrica

que o país enfrentou, principalmente nas regiões Sudeste e Nordeste. Além disso,

conforme os jornais haviam alertado, o “rombo” nas contas públicas do governo federal

revelou-se um desafio para o novo governo que assumiria o mandato em janeiro de 2015.

57 Fonte: Jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O Globo de 25 de janeiro de 2013. 58 No vocabulário jurídico, essa manobra é o ato de tardar, adiar ou prorrogar a execução de determinados

processos.

91

O argumento da autoridade

Outro argumento retórico que pode ser usado para “comprovar” determinada

tese é o chamado “argumento da autoridade”. Esse tipo de argumentaçao se aproveita dos

atos ou juízos de uma pessoa ou grupo de pessoas que ocupam certas posições

hierárquicas para justificar determinada medida. Dentre os modos de raciocínio retórico,

o argumento de autoridade é um dos que foi mais intensamente atacado pelos

pesquisadores, por ter sido muito usado nos meios hostis à livre pesquisa científica, “de

uma maneira abusiva, peremptória”, ou seja, como se as autoridades invocadas fossem

infalíveis (PERELMAN, 2005, p.348).

Perelman alerta para o risco de, mesmo sendo a doutrina do consentimento do

britânico John Locke a base dos regimes democráticos, a “vontade da maioria” pode ser

imposta a todos com base apenas na intimidação exercida pelo poder da autoridade – cuja

reputaçao é ancorada na “instrução, eminência, poder, ou alguma outra causa”. Assim

qualifica-se de imprudente qualquer contestação aos argumentos das autoridades.

Outra maneira que os homens [que estão no poder] usam para guiar

outros, forçá-los a submeter-se a seus julgamentos e acolher a opinião

em debate consiste em exigir que o adversário admita o que eles alegam

como uma prova, ou para assinalar uma melhor (LOCKE, 1999, p.303).

Perelman complementa:

Apenas a existência de uma argumentação, que não seja nem

coercitiva nem arbitrária, confere um sentido à liberdade humana,

condição de exercício de uma escolha racional. Se a liberdade fosse

apenas adesão necessária a uma ordem natural previamente dada,

excluiria qualquer possibilidade de escolha; se o exercício da

liberdade não fosse fundamentado em razões, toda escolha seria

irracional e se reduziria a uma decisão arbitrária atuando num vazio

intelectual (PERELMAN, 2005, p.581).

Ao pautar seu conteúdo por uma interpretação seletiva das informações,

baseada na hierarquia e na “agenda” das autoridades, a Voz do Brasil recorre ao

expediente do argumento da autoridade. Um exemplo é a forma como foram noticiados,

em 2014, os resultados da Pesquisa Nacional de Análise de Domicílios (Pnad), realizada

pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Todos os anos, em meados do mês de setembro, o instituto divulga os

indicadores sociais do país, que são usados para comparar o desenvolvimento nacional

com o de outros países. Em 2014, a divulgação desse índice ocorreu no dia 18 de

setembro, em meio à campanha eleitoral para a Presidência da República. Os dados foram

92

destacados na manchete dos jornais do dia seguinte, que ressaltaram o aumento na

desigualdade, interrompendo uma tendência verificada há duas décadas.

Estado: “Desemprego cresce e desigualdade para de cair”

Folha: “Sob Dilma, queda da desigualdade trava no país”

Globo: “Desemprego e desigualdade aumentam, mas renda sobe”

Figura 15 - Capas dos jornais – 19 set 2014

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de setembro de 2014

Os dados da Pnad costumam merecer uma atenção especial por parte da

imprensa, que chega a publicar cadernos especiais (caso do Estado e do O Globo em

2014) sobre os avanços ou recuos do país nos aspectos sociais, em relação ao ano

anterior. Nas matérias publicadas em 2014, os jornais basearam-se nos dados do IBGE e

nas informações de técnicos do próprio instituto para tentar explicar a seus leitores os

motivos da piora dos indicadores sociais. Para o Estado,

o Índice Gini59, que mede a concentração de renda, piorou. (...) A

explicação para o que o IBGE considera estagnação está na disparidade

de ganhos entre pobres e ricos. O rendimento do trabalho emendou o

nono ano seguido de crescimento em 2013, mas 324 mil brasileiros

entraram para a extrema pobreza.

59 O Índice Gini é um parâmetro adotado internacionalmente para medir a desigualdade social, que foi

desenvolvido em 1912 pelo estatístico italiano Corrado Gini (1884-1965).

93

A Folha baseou sua análise na avaliação de especialistas de fora do governo,

embora tenha mantido espaço na chamada de capa para o posicionamento da presidente

da República, que “minimizou” os resultados:

Para especialistas, há esgotamento de fatores que levaram a bons

resultados desde 1990, como emprego em alta e programas para

transferir renda. A presidente Dilma (PT) minimizou os dados da

pesquisa. Disse haver flutuação normal na estagnação da queda da

desigualdade e taxa de desemprego pontual.

O jornal O Globo destacou, num subtítulo, dois pontos de melhoria

(“Saneamento melhora e cresce acesso à internet”), mas destacou que a inflação

“corroeu” os ganhos dos mais pobres:

O freio na economia e a inflação mais alta fizeram a desigualdade

avançar em 2013, o que não ocorria há 20 anos. A pesquisa (...)

mostrou ainda que o desemprego subiu de 6,1% para 6,5%, com 6,693

milhões de desempregados. Apesar disso, a renda dos trabalhadores

aumentou 5,7%. O ganho foi maior para os 10% mais ricos. Entre os

10% mais pobres, o avanço foi de só 3,5%. Isso explica a piora na

distribuição de renda.

Enquanto os jornais buscaram contextualizar os indicadores sociais – com

base nos próprios dados do IBGE – a Voz do Brasil adotou um discurso que destacou

apenas os avanços verificados no campo social. No teaser de abertura do programa, a

apresentadora anunciou:

– Aumento da escolaridade, da renda do brasileiro e também do acesso

à água, à rede de esgoto e à internet, queda no analfabetismo e no

número de crianças e adolescentes que trabalham. Esses são alguns

dados da pesquisa divulgada hoje pelo IBGE. [apresentadora Kátia

Sartório]

Na introdução da reportagem propriamente dita, que foi o primeiro tema da

pauta daquela edição do programa, também prevaleceu o discurso ressaltando os aspectos

positivos da pesquisa:

– Divulgada hoje pelo IBGE a Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios Brasil referente ao ano de 2013, com informações sobre

população, migração, educação, trabalho, rendimento e domicílios para

todo o Brasil, grandes regiões, estados e regiões

metropolitanas. [apresentadora Kátia Sartório]

– Entre os dados, a pesquisa mostra que a população do país foi

estimada em 201,5 milhões de pessoas, e traz também um aumento da

escolaridade, da renda da população brasileira e também do acesso à

água, à rede de esgoto e à internet. [apresentador Luciano Seixas]

Na sequência da reportagem, foram apresentadas falas dos ministros

Marcelo Neri, da Secretaria de Assuntos Estratégicos, da ministra Tereza Campello,

94

do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e de Henrique Paim, titular da pasta

da Educação:

– O crescimento das boas ocupações, ocupações com carteira, e

redução das ocupações desprotegidas, isso confere proteção ao

trabalhador, mas eu diria que o dado mais representativo é o

aumento do salário real, 5,7% real em um ano. Então eu diria que

esse talvez seja o principal indicador de melhora da qualidade.

Certamente o que está por trás disso é a melhora educacional

brasileira dos últimos anos. [ministro Marcelo Neri]

– Eu acho que o dado mais importante para o Ministério do

Desenvolvimento Social é a redução de mais de 11% em um ano do

trabalho infantil. Isso é resultado de um trabalho de longo tempo de

política pública de combate ao trabalho infantil. As crianças hoje

trabalham cada vez menos, então estão cada vez mais na escola e o que

é que nós precisamos fazer? Continuar melhorando não só a fiscalização

do trabalho para reduzir a zero o trabalho infantil no Brasil, como

também para que a gente mude essa cultura de que o trabalho infantil é

bom. Não é bom. É criança na escola. [ministra Tereza Campello]

– Essa tendência de queda [no analfabetismo], ela se dá em todas as

faixas etárias. Isso é muito importante destacar. (...) Significa dizer

que nós fechamos a torneira, especialmente de 15 a 29 anos, ou

seja, o Brasil não está mais produzindo analfabetos. Essa é uma

conversação muito importante e fundamental, o que demonstra que

há um acerto nas políticas de alfabetização das crianças e dos

jovens. [ministro Henrique Paim]

A Voz do Brasil recorreu ao “discurso da autoridade” para justificar a

abordagem adotada, amparada na “patente” dos ministros entrevistados. Além disso,

esses discursos adotam expressões que ressaltam as opiniões pessoais em detrimento dos

dados técnicos da pesquisa. Diz o ministro Marcelo Néri: “eu diria que o dado mais

representativo...” e depois “esse talvez seja o principal indicador...” Já a ministra

Tereza Campello arrisca: “eu acho que o dado mais importante...” e o ministro da

Educaçao diz que “é muito importante destacar”.60 Ou seja, a autoridade tenta impor

determinada interpretação dos dados com base na “reputaçao” do seu cargo ou no seu

currículo como titular da pasta.61

A opção da Voz do Brasil pelo “argumento da autoridade” fica clara ainda no

fato de o programa ter dedicado 11 minutos ao tema, mas ter ignorado alguns dados

relevantes da própria pesquisa. Na entrevista coletiva organizada pelo IBGE, no Rio de

Janeiro, a gerente do instituto responsável pela pesquisa, Maria Lucia Vieira, tratou

60 Grifos nossos. 61 No caso do ministro Marcelo Néri, a reputação pessoal reforça ainda mais o argumento da autoridade,

pois se trata de um economista com reconhecida carreira acadêmica, PhD pela Universidade de Princeton

(EUA), fundador e diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) e ex-

presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, um dos principais centros de pesquisas

sobre avanços sociais do país, ligado ao governo federal.

95

abertamente das questões que foram evitadas pela Voz do Brasil – como o aumento da

taxa de desemprego. Também o press-release divulgado pela IBGE, sobre os resultados

do Pnad, abordou o tema:

A população desocupada cresceu 6,3% em relação a 2012, e a ocupada

cresceu 0,6%. A taxa de desocupação se elevou de 6,1% para 6,5% em

2013 (foi o ano com a segunda menor taxa na série harmonizada de

2001 a 2013). O trabalho com carteira assinada, no entanto, continuou a

crescer, subindo 2,3% em relaçao a 2012. (…) O trabalho das crianças e

adolescentes recuou 10,6% em relação a 2012, o equivalente a menos

379,8 mil crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17 anos no

mercado de trabalho (IBGE, 2014).

Na Voz do Brasil, optou-se por colocar um trecho do depoimento da gerente

do Pnad, Maria Lucia Vieira, mas que tratava do aumento da taxa de escolaridade:

– Observou-se também um aumento muito importante na taxa de

escolarização para as crianças de quatro a cinco anos, é o que mais vem

crescendo. Isso pode ser algum reflexo da inserção da mulher no

mercado de trabalho, que as crianças precisam ir mais cedo para as

escolas, para as creches. [gerente do Pnad, Maria Lucia Vieira]

Do ponto de vista retórico, a participação dos jornalistas da Voz do Brasil

também reproduz o ufanismo do discurso oficial:

– O nível de instrução e os anos de estudo do brasileiro aumentaram de

2012 para 2013 e a taxa de analfabetismo 0,4%, com quase 298 mil

pessoas aprendendo a ler e escrever no Brasil. [repórter Paulo La

Salvia]

– A pesquisa também revela que o Brasil registrou a menor taxa

histórica de trabalho infantil. Em um ano, houve queda de 15% no

número de crianças entre 5 e 13 anos que trabalhavam. [repórter

Priscila Machado]

Ao adotar o argumento da autoridade, representado pela fala dos ministros e

pela “seleçao” de trechos dos técnicos do IBGE, a Voz do Brasil tentou construir um

discurso que, mostrando apenas parte da realidade, destacasse os dados que

interessavam ao governo.

Não é o caso aqui de se analisar se o fato de a divulgação da pesquisa ter

ocorrido em meio à campanha eleitoral para presidente poder ter causado alguma

influência sobre a cobertura da Voz do Brasil – pois uma possível influência eleitoral

sobre o programa não é o escopo desta pesquisa.62

62 A análise da amostra de programas nos leva a concluir que, durante a campanha eleitoral, foram evitadas

na Voz do Brasil abordagens que destacassem a figura da presidente candidata à reeleição. Evitou-se,

também, citar os nomes de certos programas sociais do governo, já que esses programas sociais foram

citados como plataforma de campanha da presidente no horário eleitoral. Com isso, a Voz do Brasil evitou

o descumprimento da legislação sobre a propaganda política – que ocorre entre os meses de julho e outubro

nos anos em que há eleições.

96

Espaço público e manipulação

Entre as atribuições formais da Voz do Brasil está aquela que a define com a

missão de apresentar aos cidadãos as notícias referentes ao Poder Executivo Federal.

Conforme Kenneth Burke, a retórica possui uma função reparadora num mundo repleto

de facções e interesses conflitantes – em que os processos de comunicação substituíram o

contato face a face estudado pelos gregos. Promover “a identificaçao entre as pessoas é a

razao de ser da retórica” (Burke, 1969, p.25).

Como produto informacional do governo federal, o programa se prestaria ao

que Habermas define como instrumento de formação de opinião a respeito do governo:

“Opinion” assume em inglês e em francês o sentido nada complicado

do termo latino opinio, a opinião, o juízo sem certeza, não plenamente

demonstrado. (...) Para nosso contexto, contudo, o outro significado de

opinion é mais importante, ou seja, “reputation”, a reputaçao, a

consideração, aquilo que se coloca na opinião dos outros. Opinion no

sentido de uma concepção incerta, que primeiro ainda teria de passar

pelo teste da verdade, liga-se a opinion no sentido de um modo de ver

da multidão, questionável no cerne (HABERMAS, 2003, p.110).

O noticiário da Voz do Brasil, nesse contexto, teria então a função de

construir a reputaçao do governo, por meio da veiculaçao de “notícias” sobre os atos do

poder central. No entanto, esses atos sao “retóricos”, e as notícias embutem outros

significados – que podem ser “trabalhados” no discurso. Para Halliday (1988, p.124), as

situações retóricas “são construções simbólicas da realidade – um composto de realidade

objetiva mais a interpretação de quem as vivencia”.

Habermas lembra que a publicidade é uma ferramenta para se criar “uma aura

de good will” para certas autoridades e governos, pois

[a publicidade] possibilita a peculiar ambivalência de uma dominação

sobre a dominação da opinião não-pública: serve à manipulação do

público na mesma medida que à legitimação ante ele. O jornalismo

crítico é suprimido pelo jornalismo manipulativo (HABERMAS,

2003, p.210).

Bourdieu alertava para a capacidade de o poder simbólico “constituir o dado

pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de

mundo”. No auge de seu exercício, o poder simbólico é “quase mágico” e permite

obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou

econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se

for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (...) O que faz o

97

poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem

ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que

as pronuncia (BOURDIEU, 1989, p.14).

São tênues as linhas que separam a informação parcial, a informação

manipulada e a desinformação. Breton alerta que, nem sempre, o que parece informação

segura para o público o é de fato.

Efetivamente, a desinformação é uma ação que consiste em fazer

validar, por um receptor que se quer intencionalmente enganar, certa

descrição do real favorável ao emissor, fazendo-a passar por uma

informação segura e verificada. Toda a habilidade técnica da

desinformação reside justamente no mecanismo que permite travestir

uma informaçao falsa numa informaçao “verdadeira” que seja

perfeitamente crível e que oriente a ação daquele que a recebe num

sentido que lhe é desfavorável (BRETON, 1999, p.53).

Debord sugeria que a desinformação não é a simples negação de um fato que

nao convém às autoridades, mas deve necessariamente “conter uma certa parte da

verdade, mas deliberadamente manipulada” (DEBORD, 1997, p.52). Para Golding e

Elliott (1979, p.12), manipulaçao é uma “distorçao deliberada das notícias com fins

políticos ou pessoais (...), devido à influência do preconceito, da conspiração ou dos que

detêm o poder político e comercial”.

Na Voz do Brasil, não se percebe claramente uma tendência à manipulação,

tal qual sugerem os autores acima. Mas é possível identificar a prevalência de

determinados temas de interesse do governo, conforme análise feita a partir da pauta dos

programas veiculados no mês de maio de 2014, que veremos a seguir.63

A priorização de temas na Voz do Brasil

Nos 21 programas veiculados durante o mês de maio de 2014, os temas mais

destacados pela Voz do Brasil podem ser considerados diretamente de interesse do governo.

Foram eles: educação, infraestrutura, políticas sociais, saúde, segurança e agricultura.

Tabela 4 – Temas tratados pela Voz do Brasil em maio 2014

Tema Número de citações

Educação 27

Infraestrutura 26

63 A escolha do período foi aleatória: evitou-se propositalmente o período de campanha eleitoral (entre

julho e outubro de 2014) e o período imediatamente posterior às manifestações de junho de 2013, para que

a análise não fosse “contaminada” por episódios pontuais da conjuntura.

98

Políticas sociais 21

Saúde 21

Segurança 16

Agricultura 15

Cidadania 13

Cultura 10

Economia 10

Ambiental 8

Relações internacionais 7

Turismo 7

Direitos humanos 6

Emprego 5

Moradia 5

Esporte64 3

Previdência social 2

Outros 9

Fonte: Análise do próprio autor, com base no conteúdo da EBC Serviços.

Quando trata desses temas, a Voz do Brasil tende a ressaltar programas

governamentais relacionados a eles e procura destacar grandes cifras ou números

envolvidos em cada um deles. Destacaremos, a seguir, alguns desses exemplos, que

mostram como a retórica é usada para construir uma imagem positiva do poder público

federal – ou para dar-lhe legitimidade. Para efeitos desta análise, os projetos e ações

governamentais foram agrupados em temas afins, definidos a nosso critério.65

No programa do dia 6 de maio de 2014, foram anunciados recursos

destinados ao saneamento básico em municípios com menos de 50 mil habitantes, em 26

Estados da Federação. Percebe-se, no conteúdo da Voz do Brasil, que a retórica

governamental, reforçando as grandes cifras, é reproduzida nas falas dos jornalistas do

64 Em razão da proximidade da Copa do Mundo, o tema esporte foi citado 18 vezes pelo programa; no

entanto, 15 dessas citações se referiam à itinerância da taça do torneio, aberta à visitação pública em

diversas capitais brasileiras. Optamos por expurgar essas notícias, por se tratarem de um tema sazonal que

não contribui para a análise desejada. 65 São exemplos desses critérios: o programa “Minha Casa, Minha Vida” foi classificado no tema moradia;

“Mais Médicos”, em saúde; “Pronatec”, em educação; e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),

em infraestrutura.

99

programa, de forma que o discurso oficial acaba incorporado às intervenções dos

repórteres e apresentadores, com direito à repetição dos valores e das cifras:66

– Ao todo, são mais de R$ 2,8 bilhões para as cidades, recursos que

fazem parte da terceira etapa das ações de saneamento do Programa de

Aceleração do Crescimento, o PAC 2. [apresentador Luciano Seixas]

– Os R$ 2,8 bilhões investidos em projetos (...) vão beneficiar cerca

de 5,3 milhões de brasileiros. Na cerimônia de assinatura do convênio,

o ministro da Saúde, Arthur Chioro, falou da importância do

investimento em saneamento básico para a saúde da população.

[repórter Carolina Rocha]

Do ponto de vista jornalístico, chama a atenção o fato de os repórteres e

apresentadores da Voz do Brasil se prestarem ao papel de “promotores” das autoridades,

reforçando a retórica dos discursos oficiais:

– O investimento vai aumentar o atendimento à população e contribuir

para alcançar as metas estabelecidas do Plano Nacional de Saneamento

Básico. A presidenta Dilma Rousseff disse que com os recursos

anunciados hoje já são quase R$ 7 bilhões destinados para a construção

de redes de água e esgoto em cidades com até 50 mil habitantes.

[repórter Carolina Rocha]

No fechamento da reportagem, a jornalista informou que os municípios que

assinaram o convênio seriam os responsáveis pela licitação e pelo monitoramento das

obras. Portanto, nenhuma das obras teria início imediatamente. A reportagem tampouco

apresentou um “balanço” de quantas obras de saneamento contempladas nos “quase R$ 7

bilhões já destinados” para este fim haviam saído do papel e estavam efetivamente em

fase de construçao. Conforme os “cânones” do ofício de jornalista, esse tipo de

questionamento deveria constar em uma reportagem como esta.

No dia 13 de maio de 2014, o principal destaque do programa foi para a visita

que a presidente da República fez às obras da transposição do Rio São Francisco, nos

estados da Paraíba, Piauí e Pernambuco. Novamente, foram destacadas as grandes cifras

envolvidas no empreendimento. A Voz do Brasil escalou três repórteres para a cobertura,

que foi anunciada pela apresentadora a partir dos “benefícios” que a transposiçao

proporcionaria à população nordestina:

– O Projeto de Integração do Rio São Francisco vai levar água para os

municípios do Nordeste que sofrem com a seca e deve beneficiar 12

milhões de pessoas. [apresentadora Kátia Sartório]

66 Grifos nossos.

100

No entanto, na intervenção do primeiro repórter, enviado especial à Paraíba,

foi informado que esse benefício estava previsto para começar a ser usufruído pela

população nordestina apenas após um ano e meio:

– De acordo com o Ministério da Integração Nacional, mais de 120

municípios paraibanos vão ser atendidos e mais de 2 milhões de

pessoas serão beneficiadas quando toda a obra for concluída, até o

final de 2015. [repórter João Pedro Neto, na Paraíba]

Na participação de outro repórter, no Ceará, revelou-se que as obras de dois

trechos do projeto no Estado não estavam finalizadas; além disso, o jornalista incorporou

ao seu texto uma “literalidade” do discurso presidencial que faz uma relaçao de causa e

efeito puramente retórica:

– O trecho de 140 quilômetros, que vai da captação do Rio São

Francisco em Cabrobó, Pernambuco, até Jati, tem 65% das obras

executadas. O trecho de 39 quilômetros, que começa em Jati e vai até

Brejo Santo, tem 25% de execução. (...) A presidenta disse que a

integração do São Francisco vai trazer de volta nordestinos que

foram embora fugindo da seca. [repórter Ricardo Carandina, no

Ceará] 67

Em Pernambuco, acompanhada por outro repórter da Voz do Brasil, a

comitiva presidencial visitou uma estação de bombeamento que começara a ser

construída dois meses antes.

– A água que vai passar pelos canais vai chegar não só nos grandes

centros urbanos aqui do Nordeste. Vai também abastecer centenas de

pequenas e médias comunidades do semiárido nordestino. Ao todo,

serão mais de 12 milhões de pessoas beneficiadas. (...) O valor total do

Projeto de Transposição do Rio São Francisco chega a mais de R$ 8

bilhões. [repórter Leandro Alarcon, de Pernambuco]

Nesta cobertura da Voz do Brasil, as intervenções dos jornalistas reforçam o

discurso governamental, não apenas ao retransmitir as informações passadas pelas

autoridades e as suas interpretações (o “discurso da autoridade”, proposto por Perelman),

mas principalmente por não questionar a veracidade dessas informações e a efetividade

da realização desse projeto. Boa parte dos números informados no programa referem-se a

etapas do projeto ainda a serem implementadas, portanto sem benefício imediato para a

população.

A opção da Voz do Brasil por assumir a retórica governamental é notada em

diversas matérias veiculadas no mês analisado, conforme exemplos selecionados a seguir.

67 O projeto de transposição do São Francisco prevê a construção de um total de mais de 700 quilômetros

de canais de concreto, que passam por vários Estados do Nordeste e que não têm data prevista para serem

concluídos. As obras visitadas pela comitiva presidencial no Ceará, portanto, equivalem apenas a cerca de

25% do total do projeto.

101

Em algumas delas, a notícia de alguma iniciativa ou obra do governo sempre incorpora o

valor “total” do investimento, nao apenas do trecho em questão que está sendo anunciado

ou inaugurado. O conteúdo do programa deixa a impressão de que o importante é passar a

mensagem de que o montante total é expressivo – ainda que não esteja finalizado, que o

valor não tenha sido, efetivamente, desembolsado, ou ainda que não haja garantia

orçamentária de que será realizado. Os trechos a seguir foram retirados das intervenções

dos jornalistas do programa, ao longo do mês de maio de 2014:

– A BR-381 será duplicada. A presidenta Dilma Rousseff assinou, nesta

segunda-feira (12), em Ipatinga (MG), ordem de serviço para as obras

do trecho que liga Belo Horizonte a Governador Valadares. Vão ser

investidos R$ 2,5 bilhões em toda a rodovia. [12/maio]

– Foi inaugurado trecho de 855 quilômetros da Ferrovia Norte-Sul,

entre as cidades de Anápolis (GO) e Palmas (TO). A obra recebeu

investimentos de mais de R$ 4 bilhões. [22/maio]

– Para a safra, que se inicia no próximo dia 1º de julho e se estende até

30 de junho de 2015, o governo federal anunciou, nesta segunda-feira,

crédito recorde. O Plano Safra da Agricultura Familiar vai destinar R$

24,1 bilhões para investimentos no setor, aumento de 14% em relação

ao período anterior. [26/maio]

– Nesta segunda-feira, a presidenta Dilma Rousseff também lançou o

segundo Plano Safra específico para a região do semiárido, que vai

receber R$ 4,6 bilhões entre 2014 e 2015. [26/maio]

Outro recurso utilizado pelo programa para reproduzir a retórica do governo é

ampliar a abrangência das iniciativas e dos programas oficiais, destacando o total de

pessoas beneficiadas – mesmo que não o sejam imediatamente, ou que estejam ainda nos

planos oficiais, mas sem prazo definido para tal. Esse recurso impede a aferição das

promessas anunciadas pelas autoridades, por parte dos cidadãos e da imprensa:

– Mais de 3,2 mil alunos da Paraíba e do Piauí receberam o certificado

de cursos do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e

Emprego (Pronatec). O programa já matriculou 6,9 milhões de alunos

no país. A meta é matricular 8 milhões até o final de 2014. [16/maio]

– O investimento na aquisição das 147 máquinas para as cidades

mineiras superou R$ 52 milhões. (...) Ao final deste semestre, o

governo federal vai ter investido quase R$ 5 bilhões em todo o país

na aquisição de mais de 18 mil máquinas, beneficiando mais de 91%

dos municípios brasileiros. [30/maio]

A Voz do Brasil recorre ainda ao recurso retórico de ampliar o escopo da

notícia, incorporando a ela um período bem mais longo (passado ou futuro) de

abrangência, de forma a “inflar” os resultados já obtidos ou previstos pelos programas e

ações governamentais.

– Mais de R$ 160 milhões foram liberados para a instalação de cisternas

em seis estados brasileiros. O recurso é do programa Água para Todos,

102

que já beneficiou 2,9 milhões de brasileiros com cisternas de

consumo. [20/maio]

– O Programa Brasil Sorridente completa dez anos. Neste período, a

Política de Saúde Bucal do Ministério da Saúde permitiu o acesso

gratuito a tratamentos odontológicos a cerca de 80 milhões de

usuários do SUS. [28/maio]

Conforme mostrado nos exemplos acima, o conteúdo da Voz do Brasil

incorpora recursos retóricos próprios do discurso oficial, que acabam por comprometer a

isenção que se espera de um produto jornalístico. Disso decorre a imagem de veículo

porta-voz do governo – ou “chapa-branca” –, que marca quase toda a sua história.

Mais que isso, a despeito das diretrizes que regem o trabalho dos jornalistas

da EBC – que definem o interesse do cidadão como objetivo primeiro do trabalho

jornalístico, assim como o compromisso com a verdade –, os exemplos compilados nesta

pesquisa demonstram se tratar de um produto de comunicação institucional, a serviço das

relações públicas do governo.

103

CAPÍTULO 4

Comunicação pública ou relações públicas?

Conforme visto nos capítulos anteriores, ao longo de quase toda a sua

história, a Voz do Brasil prestou-se ao papel de porta-voz do governo federal, ou parte de

um projeto oficial de relações públicas – à exceção de dois períodos específicos aqui

analisados. Essa característica se deu a despeito da existência de diretrizes que definem o

modelo de “jornalismo” que deveria ser adotado no programa – diretrizes formalizadas e

tornadas públicas desde o ano de 2005.

O atual Manual de Jornalismo da EBC, lançado em 2013, é definido como

um “código de conduta” dos jornalistas que trabalham na estatal, entre eles a equipe

responsável pela produção da Voz do Brasil:

Mais do que um conjunto de regras e normas de comportamento, trata-

se de um compromisso social da empresa e seus jornalistas com a busca

da verdade, com a precisão, com a clareza, com o respeito aos fatos e

aos direitos humanos, com o combate aos preconceitos, com a

democracia e com a diversidade de opiniões e de pontos de vista

(BREVE, 2013, p.8).

O Manual trabalha com uma definição de jornalismo muito semelhante aos

conceitos propostos por diversos estudiosos da comunicação – e que também foi adotada

aqui nesta dissertação.

A EBC considera que jornalismo é espaço público por onde são

transferidas informações relevantes, com potencial para alterar a

realidade, que se sucedem no tempo e no espaço, objeto de interesse da

coletividade e abrangidos pelos seus critérios de cobertura. Essas

informações têm de ser transmitidas com honestidade, fidelidade,

precisão e responsabilidade. Devem ser mediadas por um processo

ético, rigoroso, criterioso, isento, imparcial, sem preconceito e

independente (EBC SERVIÇOS, 2013, p.21).

O documento determina ainda que essas informações devem estar amparadas

por contextualizações e análises “confiáveis” e que sejam apresentadas ao público com

uma linguagem clara e objetiva,

que permita elucidação e esclarecimento de seus significados, de suas

causas e de seus efeitos na sociedade. E, dessa forma, ofereçam aos

indivíduos e sujeitos sociais melhores condições de agir e tomar

decisões para transformar a realidade em benefício dos interesses

coletivos (EBC SERVIÇOS, 2013, p.21).

104

O Manual tenta “traduzir” na forma de princípios éticos e operacionais as

regras que pautam o trabalho dos jornalistas da EBC.68 O texto traz referências de outros

documentos semelhantes disponíveis no Brasil (incluindo os produzidos anteriormente

pela própria Radiobrás) e em outros países. Nesse processo, foram identificados temas

transversais que permeiam todos esses documentos e manuais, como a busca da verdade,

a fidelidade aos interesses da sociedade e o respeito aos direitos humanos e à democracia.

Com base nesses pilares, o Manual se propõe a ser “orientador e promotor do

desenvolvimento das boas práticas de comunicação pública no Brasil” (EBC SERVIÇOS,

2013, p.13).

Uma definição de comunicação pública

Nas sociedades democráticas, a comunicação pública é entendida como

aquela proporcionada pelos entes púbicos, que ajuda o cidadão a ter pleno conhecimento

sobre os seus direitos. Ampliando essa “deontologia”, Jorge Duarte ressalta que esse

conceito de comunicação pública é válido mesmo nos casos em que o cidadão não tenha

procurado por essa informação:

A comunicação pública ocorre no espaço formado pelos fluxos de

informação e de interação entre agentes públicos e atores sociais

(governo, Estado e sociedade civil – inclusive partidos, empresas, terceiro

setor e cada cidadão individualmente) em temas de interesse público. (...)

A comunicação pública ocupa-se da viabilização do direito social

coletivo e individual ao diálogo, à informação e expressão. Assim, fazer

comunicação pública é assumir a perspectiva cidada na comunicação

envolvendo temas de interesse coletivo (DUARTE, 2012, p. 59).

Wilson da Costa Bueno prefere a terminologia “comunicaçao de interesse

público”, e defende uma distinçao entre ela e a comunicação de governo propriamente dita:

Há diferenças importantes entre a visão moderna de comunicação

pública e comunicação dita política ou governamental. A comunicação

de interesse público visa abranger as ações e atividades que têm como

endereço a sociedade, independente de sua origem (pública ou privada).

(BUENO, 2012, p.136).

Eugênio Bucci complementa essa definição alertando que, para que seja

“pública”, a comunicaçao deve, necessariamente, preencher dois requisitos: o primeiro é

ser uma comunicaçao “para a qual concorrem recursos públicos – dinheiro, trabalho,

equipamentos”; e o segundo, decorrente do primeiro, é “observar os princípios

68 Com um texto bastante adjetivado, o Manual de Jornalismo da EBC possui 79 páginas, nas quais as

diretrizes estão classificadas tanto por especificações técnicas do trabalho jornalístico – como pauta,

apuração, entrevistas e edição –, quanto por temas que devem ser abordados no conteúdo (por exemplo,

educação, saúde, política, economia, ciência e tecnologia, meio ambiente, movimentos sociais etc.).

105

constitucionais, entre eles e principalmente o da impessoalidade”, assim como

contemplar o direito à informação dos cidadãos. Sem atender a esses requisitos, conclui:

“ou ela agride a Constituiçao ou é ilegal” (Bucci, 2015a).69

Conforme esse entendimento, o programa Voz do Brasil e a estatal

responsável pela sua produção deveriam estar voltadas para atender ao direito dos

cidadãos de serem informados a respeito dos temas de seu interesse – já que toda a sua

estrutura é mantida com recursos públicos.

Uma empresa pública de comunicação como a Radiobrás, que controla

emissoras e agências de notícias, só tem razão de ser se atender o direito

à informação. (...) Qualquer prática fora desse imperativo constitui uma

usurpação (BUCCI, 2006, p.12).

Em um ambiente democrático, a comunicação pública pode dar uma

importante contribuição para a mediação do debate público – juntamente com a atuação

da imprensa livre. Isso não acontece nos regimes autoritários, em que a atuação da mídia

é controlada pelos governos – sejam os aparatos de comunicação oficiais, sejam os

veículos de imprensa privados.

Na ditadura, o objetivo da comunicação ligada ao governo era angariar

a obediência e a concordância passiva do público. Na democracia, ao

contrário, o sentido da comunicação pública é estimular a participação

crítica dos cidadãos nas instâncias de poder. Para a ditadura, a

divergência é um problema. Para a democracia, a divergência é a

solução (BUCCI, 2006, p.12).

Apesar de a Voz do Brasil ter sido submetida a períodos autoritários ao

longo de sua história – e tenha começado a “moldar” seu estilo editorial durante a

ditadura de Getúlio Vargas, como parte do aparato de comunicação do Estado Novo –,

o programa já registra mais da metade de sua existência sob o regime democrático, o

que lhe deveria proporcionar condições para a prática de uma comunicação de interesse

público.

Instrumentos formais para tal não lhe faltam: as atuais diretrizes da EBC,

vigentes desde 2013, orientam os seus jornalistas da estatal a se empenharem para fazer

com “independência” a cobertura jornalística e a “dar ao cidadao elementos para formular,

com autonomia, sua visao crítica sobre a realidade” (EBC SERVIÇOS, 2013, p.55). Como

demonstrado nos capítulos anteriores, não é isso que se pratica na Voz do Brasil.

O que pode justificar a discrepância entre a diretriz e a prática editorial adotada

na Voz do Brasil é a sua subordinação direta à estrutura do Poder Executivo. Esse fator pode

69 Entrevista concedida ao autor, em 21 jul 2015, reproduzida na íntegra nos Apêndices desta dissertação.

106

abrir espaço para que haja uma “contaminação” do conteúdo do programa pela agenda

privada dos governantes, em vez de abrigar apenas a agenda pública (do Estado). Thompson

considera que instituições estatais acabam permitindo que a agenda privada se sobreponha à

agenda de interesse público, pois “os indivíduos normalmente exercem poder em muitos

contextos que pouco ou nada têm a ver com o Estado” (THOMPSON, 2013, p.38).

Bucci é mais explícito ao definir essa subordinação:

O programa Voz do Brasil é “do” governo federal. A relaçao com o

governo é quase de uma prestaçao de serviço; o “cliente” é o governo,

ainda que formalmente não seja assim, é isso que acontece: o cliente é o

governo federal. Aquele é um horário “do” governo federal. (...) O

objeto da notícia, o narrador da notícia e a fonte da notícia são o

governo” (BUCCI, 2015a).

Apesar desse “pertencimento” à estrutura do Poder Executivo federal, e de

sua vocação histórica para fazer relações públicas para o governo, a equipe do

programa é formada basicamente por jornalistas. Esses profissionais deveriam,

portanto, seguir as diretrizes editoriais preconizadas para o exercício do trabalho

“jornalístico” na Voz do Brasil. Como veremos a seguir, há distinções conceituais entre

os jornalistas e os profissionais de relações públicas – assim como entre os objetivos

específicos de cada uma dessas profissões.

Distinções entre jornalismo e relações públicas

Para Lattimore, a diferença básica entre o jornalista e o profissional de

relações públicas se deve aos papéis assumidos por cada um deles perante as empresas

nas quais atuam e o impacto que esse papel provoca no trabalho final.

Os jornalistas não representam as organizações sobre as quais escrevem,

mas os profissionais de relações públicas o fazem, e isso pode

influenciar a objetividade e a forma como enquadram ideias e

apresentam os fatos (LATTIMORE, 2012, p.27).

Um dos principais objetivos dos jornalistas é informar à sociedade a respeito

de fatos que sejam de interesse do cidadão. Já o profissional de relações públicas

identifica na imprensa uma forma de divulgar os temas de seu interesse (ou de interesse

da empresa ou instituição que representa), conferindo-lhes “a legitimidade que a

organizaçao pode nao obter com a propaganda paga” (LATTIMORE, 2012, p.179).

O jornalismo nao lida prioritariamente, portanto, com a “divulgaçao”

de relatos. Ao contrário, sua justificativa é descobrir segredos que

não se quer divulgar. Seu objetivo primordial não é difundir aquilo

que governos, igrejas, grupos econômicos ou políticos desejam

contar ao público, embora também se sirva disso, mas aquilo que o

107

cidadão quer, precisa e tem o direito de saber, o que não

necessariamente coincide com o que os outros querem contar

(BUCCI, 2002, p.42).

Lattimore considera que essas sao “responsabilidades” que os jornalistas

assumem diante da sociedade e do sujeito da matéria, pois

eles concebem a si próprios como os olhos e ouvidos do público,

vigiando instituições públicas, e consideram que seu trabalho é buscar

a verdade, colocá-la em perspectiva e publicá-la para que as pessoas

possam tratar de suas questões estando bem informadas

(LATTIMORE, 2012, p.179).

O vínculo direto com a Presidência da República não permite à Voz do

Brasil praticar o jornalismo, tal qual aqui definido, pois faltam-lhe alguns pressupostos

básicos, como um espaço para a interlocução necessária entre as partes envolvidas –

visto que, no programa, apenas a voz do governo tem espaço. Para Bucci (2015a), trata-

se de comunicação governamental, institucional – que poderia ser definida também

como um “proselitismo”, ainda que disfarçado.

Assim, mesmo que sejam abordados no programa temas de interesse do

cidadão (como a prestação de serviços que sejam de competência exclusiva do

governo), existe uma linha tênue que separa essa característica de um proselitismo

“assumido”. Na Voz do Brasil, a prestação de serviços (que é própria da comunicação

pública) é tratada editorialmente e presta-se aos objetivos de gerar visibilidade às

autoridades.

Devido às suas características de canal de informações sobre o governo, a

Voz do Brasil representa um ambiente propício para que as autoridades se “mostrem”

para a sociedade da forma como julgarem mais adequada. O programa acaba sendo um

alvo dos governantes, quando se veem diante da necessidade de construir uma imagem

positiva ou reverter uma imagem negativa. É isso que tem caracterizado o programa ao

longo de quase toda a sua história.

A origem das relações públicas

O conceito de relações públicas surgiu no início do século XX, nos Estados

Unidos. O pioneiro foi um jovem jornalista, Ivy Lee (1877-1934), que depois de trabalhar

para a campanha democrata à Prefeitura de Nova Iorque, em 1903, decidiu criar a

primeira agência de relações públicas daquele país. À época, existia no meio jornalístico

um personagem conhecido como “agentes de imprensa”. Esses agentes haviam surgido

na segunda metade do século anterior e atuavam como organizadores de atrações

108

circenses itinerantes e também como divulgadores desses espetáculos para a então

imprensa emergente. Não raras vezes, os agentes de imprensa recorriam a expedientes

pouco éticos para dar publicidade a seus eventos – alguns dos textos preparados por esses

agentes podem ser considerados “floridos e exagerados, o que os distanciava da verdade e

os aproximava do charlatanismo” (NASSAR, 2007, p.39).70

Ivy Lee esforçou-se para se diferenciar dos agentes de imprensa, lançando um

manifesto público sobre a forma de atuação de sua nova agência de relações públicas:

Este não é um serviço de imprensa secreto. Todo o nosso trabalho é

feito às claras. Nosso objetivo é divulgar notícias. Isto não é uma

agência de propaganda. Se acharem que o nosso material ficaria

melhor na seção de classificados, não o usem. (...) O trabalho que

desenvolvemos em nome de empresas comerciais e de instituições

públicas consiste em fornecer para a imprensa e para o público dos

Estados Unidos matéria informativa, rápida e precisa, sobre todo

assunto cujo valor e interesse se faça merecedor de reconhecimento

por parte deles (NASSAR, 2007, p.43).

Apesar dessa declaração de propósitos, Lee não é uma unanimidade entre

os pesquisadores da história das relações públicas, sendo criticado por alguns deles.71

Outros pioneiros da profissão, como Edward Bernays (1891-1995), também são

acusados de manipulação da informação no trabalho de relações públicas.

Bernays nasceu na Áustria e era sobrinho de Sigmund Freud. Radicado nos

Estados Unidos desde criança, entrou para a área de relações públicas quando já tinha

desenvolvido uma carreira de sucesso no jornalismo. Ele defendia a “teoria da

persuasão”, segundo a qual os públicos podem ser convencidos sobre determinado

assunto se a mensagem sustentar os mesmos valores e interesses deles. O trabalho de

Bernays consistia em acentuar algumas tendências na mídia e “capitalizá-las” conforme

os interesses de seus clientes. Essa teoria foi consolidada no livro de sua autoria que é

considerado a primeira obra existente sobre relações públicas, Crystallizing public

opinion, publicado em 1923 (TYE, 2001, p.24).72

70 O mais famoso agente de imprensa foi Phineas Barnum (1810-1891), que utilizava em seus comunicados

uma linguagem “hiperbólica” para chamar a atençao dos jornalistas, repleta de “disfunções”, como o

desvituarmento da realidade, uma de suas especialidades. Quando Barnum morreu, o jornal London Times

o definiu como “um enganador inofensivo” (NASSAR, 2007, p.39). 71 Chaparro (1996, p.135), por exemplo, considera o manifesto de Ivy Lee “hipócrita”, pois antes de se

tornar relações públicas, Lee havia sido um jornalista conceituado e possuía amigos nos postos de direção

da imprensa. “Na prática, atuando como fonte, inventou técnicas e procedimentos de influência nas

decisões jornalísticas, para divulgar informações, tendo em vista o objetivo principal de construir a nova

imagem pública de Rockfeller”, uma referência ao empresário que se tornou cliente de Lee em 1914. 72 No mesmo ano em que publicou seu primeiro livro, Bernays assumiu a recém-criada cátedra de relações

públicas da Universidade de Nova Iorque (NASSAR, 2007, p.45).

109

Na época, ele [Bernays] considerava as relações públicas como

sendo mais ou menos um sinônimo de propaganda, que ele definia

como “a manipulaçao consciente e inteligente dos hábitos e opiniões

organizados das massas”. Ao longo de toda a sua carreira, Bernays

descreveu as relações públicas como a ciência de criar

circunstâncias, montar eventos que fossem calculados para se

destacar como notícias, mas que ao mesmo tempo não parecessem

encenados. “Eventos de mídia” encenados eram claramente uma

característica definidora da agência que Bernays começou em 1919

(LATTIMORE, 2012, p.44).

Essa técnica de “criar” eventos para a mídia acabou sendo definida nas

relações públicas como spin. Em propaganda, o termo spin representa o fornecimento de

uma interpretação tendenciosa de um evento ou campanha com o objetivo de persuadir a

opinião pública a favor ou contra algo ou alguém. Já nas relações públicas, spin implica o

uso de táticas enganosas e manipuladoras, com o objetivo de influenciar a opinião

pública. Os encarregados dessas tarefas no trabalho de relações públicas são

denominados spin doctors (HARCUP, 2014, p.286).

Aqui neste trabalho, entendemos manipulação como a distorção deliberada de

uma determinada informação. Embora possam ser identificados indícios de manipulação

em algumas opções editoriais adotadas na Voz do Brasil, principalmente na cobertura de

assuntos de interesse do governo, não se pretendeu, nesta pesquisa, desenvolver-se uma

análise do programa sob a ótica da manipulação.73

A Voz do Brasil como “mídia da fonte”

Enquanto veículo de comunicação oficial, a Voz do Brasil tem sido usada

como mídia alternativa de distribuição de conteúdos sobre os atos do governo. No

complexo cenário atual de produção e difusão da informação, em que a imprensa

perdeu a hegemonia de definir o que é notícia e de pautar a agenda do debate na

esfera pública, o cidadão passou a ser impactado por diversos conteúdos, oriundos das

mais diversas fontes – como blogs, perfis “influenciadores” das redes sociais, veículos

criados diretamente no ambiente digital e o que chamamos de mídia tradicional .

Entre essas fontes encontram-se novos veículos informativos diretamente

ligados a organizações públicas ou privadas. Sao “mídias” a serviço dessas

73 No caso da Voz do Brasil, seria necessário, para essa abordagem, uma análise das origens da

manipulação, suas implicações em um veículo de comunicação, assim como dos interesses e objetivos,

institucionais ou particulares, escusos ou involuntários, que a caracterizariam no programa de rádio. No

nosso entendimento, isso poderia render uma outra pesquisa acadêmica específica com esse fim.

110

organizações ou instituições, que veiculam conteúdos do interesse delas ou que

contribuam para a construção de uma imagem pública. Chico Sant’Anna define

esses conteúdos como “jornalismo corporativo” e esses veículos como “mídias das

fontes”:

São mídias difusoras de um jornalismo corporativo, mantidas e

administradas por atores sociais que até então desempenhavam

apenas o papel de fontes de informação. (...) Deter uma visibilidade

pública é o objetivo desses grupos. Estar inserido na esfera pública é

a meta (SANT’ANNA, 2004, p.107).

Essas “mídias das fontes” reproduzem algumas etapas do processo de

produção jornalística, de tal forma que as informações veiculadas ao público são

“coletadas, selecionadas, tratadas editorialmente, filtradas e difundidas” por

empresas que possuem seus próprios interesses corporativos (SANT’ANNA, 2004,

p.107).

Utilizada como “mídia da fonte”, a Voz do Brasil dedica-se a “informar” o

público sobre os atos do Poder Executivo, no entanto traveste como “notícias”

informações muitas vezes de interesse institucional do governo federal – e que não

respeitam as regras definidas pelo Manual de Jornalismo da EBC.

A natureza jurídica da EBC e a subordinação da Voz do Brasil à

Presidência da República não permitem que seja praticado o jornalismo no programa.

Conforme demonstrado ao longo desta dissertação, as tentativas, nesse sentido,

sucumbiram às pressões do campo político-institucional.74

A característica de peça de relações públicas oficial poderia ser motivo

de questionamento por parte da sociedade, já que se trata de um veículo financiado

com recursos públicos. Se considerada ainda a obrigatoriedade de transmissão por

todas as emissoras do país, em um regime democrático como o brasileiro, o mérito

desse questionamento passa a ser outro: por que a Voz do Brasil deve continuar

existindo?

Para Bucci, a obrigatoriedade mina qualquer autoridade natural ou moral

que o programa possa reivindicar. Afinal, a Voz do Brasil foi criada na década de

1930, em uma sociedade que era integrada pelo rádio, cujo horário nobre era às 19

horas, com o objetivo de garantir ao governo o controle sobre os meios de

comunicação.

74 No sentido de Bourdieu.

111

Todas aquelas condições que tornavam a Voz do Brasil

compreensível, ainda que inaceitável, desapareceram. Hoje, além de

inaceitável, a Voz do Brasil é incompreensível. Incompreensível do

ponto de vista ético, do ponto de vista funcional, do ponto de vista

institucional (BUCCI, 2015a).

Quando o governo se incumbe da função de informar a população sobre os

atos do governo, corre-se o risco de os interesses institucionais se sobreporem aos

interesses dos cidadãos. Em um regime democrático, se isso acontecer, estaremos

diante de um trabalho de relações públicas – não de jornalismo nem de comunicação

pública.

112

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Numa sociedade democrática, a imprensa desempenha um papel

importante na vigilância dos poderes constituídos, do uso de recursos e da ges tão da

coisa pública, e na fiscalização da atuação das corporações privadas. O jornalismo

tem a sua origem ligada aos movimentos democráticos, que defendiam a ideia de que

o poder emana do povo e deve ser exercido em nome dele.

Desde o século XIX, a imprensa foi considerada, por boa parte dos teóricos

da democracia, como um dos principais sustentáculos da esfera pública. Sem a imprensa,

dificilmente as sociedades contemporâneas conseguiriam se informar sobre as questões

coletivas, o que poderia inviabilizar um debate público autônomo em relação ao Estado.

Surgido com a tarefa de mediar o debate público, o jornalismo contribui para

formar cidadãos e permitir a eles o acesso às informações necessárias para que formem as

próprias opiniões, tenham livre arbítrio e possam livremente eleger seus governantes.

Para garantir uma independência editorial em relação aos poderes

constituídos, a imprensa tradicionalmente optou pela existência como empresa privada.

Essa característica garante a independência em relação ao poder político – e permite que

a imprensa informe aos cidadãos sobre os assuntos que interessam a eles e sobre os quais

eles têm o direito de serem informados – mesmo que isso não seja do interesse dos

governantes de turno.

Não cabe ao Estado exercer esse papel que é próprio da imprensa. Se o

aparato oficial se volta para essa função, o debate público passa a ter uma mediação

“viciada”. Além disso, a estrutura estatal não fornece os fundamentos para o

exercício do jornalismo – o máximo que consegue fazer é um trabalho de relações

públicas ou de comunicação institucional do governo.

Procuramos demonstrar, nesta dissertação, que a Voz do Brasil prestou-se,

durante quase toda a sua história, ao papel de porta-voz do governo federal, sendo em

muitas oportunidades parte de um projeto oficial de relações públicas – à exceção de

apenas dois períodos específicos demonstrados no Capítulo 1.

Essa característica de porta-voz se deu a despeito da existência de

diretrizes que definem o modelo de “jornalismo” a ser seguido pelos profissionais

que trabalham na Voz do Brasil. Conforme demonstrado neste trabalho, essas

diretrizes foram formalmente estabelecidas desde o ano de 2005, e ainda está

vigente um Manual de Jornalismo, lançado em 2013. O compromisso com a verdade

113

preconizado pelo Manual não se sustenta quando analisamos o conteúdo da Voz do

Brasil conforme critérios de noticiabilidade, especialmente em episódios de alto

impacto para a população e de grande interesse da sociedade em geral, conforme

mostrado no Capítulo 2.

Também a diretriz do Manual para que a Voz do Brasil transmita

informações com honestidade, fidelidade e precisão, por meio de um processo ético,

isento e independente, foi contrastada com os recursos retóricos aos quais o programa

recorre para legitimar determinadas ações do governo. As informações veiculadas

pelo programa são embaladas por recursos retóricos e visam ressaltar a agenda de

interesse do governo – seja na abordagem do conteúdo, seja na priorização de temas

destacados no programa, tal qual demonstrado no Capítulo 3.

Enquanto peça de relações públicas do Poder Executivo, a Voz do Brasil

produz um conteúdo que se assemelha mais a press-releases radiofônicos do que a

notícias sobre atos do governo federal – embora esse conteúdo seja apresentado no

programa como se fosse “notícia”. Ao moldar seus conteúdos aos interesses do governo,

a Voz do Brasil deixa de fazer comunicação de interesse público e, devido à sua

vinculação à estrutura do poder central, não dá aos seus profissionais espaço para o

exercício do jornalismo, como se mostrou no Capítulo 4.

A Voz do Brasil, que nos seus cânones se propõe a praticar um jornalismo de

interesse do cidadão, prestou-se, ao longo de quase toda sua história, ao serviço de

legitimação ideológica das forças políticas no poder.

Tornou-se, assim, peça de relações públicas do Poder Executivo federal.

114

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APÊNDICES

Apêndice A - Entrevista de Carlos Marchi concedida ao autor – 15 jul 2015

Pergunta – O Sr. foi presidente da EBN no primeiro ano da Nova República. O Sr.

trabalhou na campanha do candidato Tancredo Neves e aí foi indicado para a EBN?

Como se chegou àquele projeto editorial para a Voz do Brasil?

Carlos Marchi – Realmente carece contar uma pequena história, porque a nossa chegada

à EBN veio no bojo de uma história muito mais ampla do que até a própria EBN. Em

janeiro de 1984, estava começando a campanha das Diretas, um dia eu estava de plantão

no Jornal do Brasil, em Brasília, estava sozinho, era um domingo, comecei a ligar para as

pessoas – a gente fazia isso nos plantões de domingo, quando não tinha nenhuma notícia

evidente no ar –, a gente ligava para os políticos para garimpar alguma coisa, para ver se

“pescava” alguma informaçao nova e precisa.

Naquele domingo, eu liguei para um amigo meu, o governador do Ceará na época, o

famoso Totó, Luiz Gonzaga Mota, e logo no começo da ligação ele disse: (com voz

sussurrante) “Marchi, eu nao posso falar muito com você porque eu tô afônico, entao nao

vai dar pra gente conversar muito”. Uma hora depois, quando eu desliguei o telefone, eu

tinha uma interrogação na cabeça: ele tinha me dito muitas coisas que eu julgava não

entender, porque, acima de tudo, se ele estava afônico e, no preâmbulo, ele tinha dito que

não podia falar muito, por que ele tinha ficado uma hora no telefone comigo?

Eu voltei a ligar para ele e disse claramente: “Totó, você me disse alguma coisa que eu

não consegui perceber”. Ele disse: “Nao, pois é, você sabe essa coisa de telefone como

é...”, e aí começou a dizer algumas coisas por sinais, e eu entendi, por esses sinais, que

ele estava tentando acenar para mim para uma aproximação entre Tancredo Neves e

alguns governadores mais liberais do PDS. Eu liguei em seguida para o Roberto

Magalhães, que era um desses governadores, e ele, embora sem dizer nem 30% do que

disse o Totó, sinalizou com algumas simpatias nesse sentido.

Eu me enchi de coragem e mandei a manchete do dia seguinte do Jornal do Brasil – e isso

aconteceu nas vésperas do comício das Diretas de Sao Paulo: “Tancredo prepara sua

candidatura pela via indireta”. Evidente que a manchete foi uma bomba e, no dia do

comício, quando Tancredo chegou ao palanque – e ele não poderia deixar de ir – foi

cercado por jornalistas e toda a imprensa só perguntava uma coisa: e aquela manchete do

JB? Aí o Tancredo disse que aquela manchete era obra de um mentiroso, irresponsável e

leviano. Quando eu olhei para trás, estava a redação toda do JB olhando pra mim, olhava

120

para a televisão, olhava pra mim, pensando assim: esse cara é um mentiroso, inventou a

manchete.

Nesse momento, o Jornal do Brasil já estava sob domínio do senhor Paulo Maluf – fui

entender esse processo agora, quando fui escrever o livro do Castelinho, e entendi os

meandros do Jornal do Brasil, e agora eu sei, o Jornal do Brasil já estava praticamente

vendido ao Maluf – e eu fiquei muito mal no Jornal do Brasil, porque eu cobria a

oposição. Passei mais uns meses e, no final das contas, o Rio tinha desautorizado minhas

matérias. Mas como as minhas matérias eram boas, elas iam para o Rio sem a minha

assinatura, ou então em nome do chefe de reportagem, que na época era o Abdias Silva.

Eu estava defenestrado no Jornal do Brasil.

Em junho, dois amigos meus me perguntaram se seu queria ser assessor de imprensa do

Tancredo. Tancredo já estava montando a sua estrutura.

Pergunta – Entre esses dois momentos, o senhor não teve um contato com Tancredo?

Marchi – Não, absolutamente nenhum. Esses dois amigos se chamavam Fernando Lira,

que era muito meu amigo pessoal, e o outro, que era um pouquinho menos amigo,

chamava-se Fernando Henrique Cardoso. Os dois me levaram pessoalmente ao Tancredo.

Eu me lembro até hoje do dia em que entrei na sala do Tancredo; o Fernando Lira que era

mais falastrao foi na frente e disse: “Dr. Tancredo, estamos trazendo aqui o Carlos

Marchi para ser seu assessor, do qual já tínhamos falado com o senhor. Esse é o Carlos

Marchi”.

E aí o Tancredo, que estava em pé diante da mesa, ajeitando alguns papéis, disse:

“Fernando, eu conheço o Carlos Marchi há mais de 15 anos, você nao precisa me

apresentar ele”. Eu cheguei e parei em frente da mesa e ele continuava ajeitando os

papéis, não olhava para mim. E atrás dele, o Fernando Lira e o Fernando Henrique

enfileirados, empertigados.

E aí eu disse ao Tancredo: “Dr. Tancredo, o Sr. já me conhece bem, mas eu vou fazer o

Sr. me conhecer um pouco melhor: eu quero dizer que eu sou aquele jornalista

irresponsável, leviano e mentiroso que fez aquela manchete do Jornal do Brasil no dia tal

de janeiro”. Ele disse assim: “Que manchete?” Eu falei: “Aquela manchete: ‘Tancredo

prepara sua candidatura pela via indireta’, que lhe deu tantos problemas.” Ele falou: “Eu

não me lembro”. E nao olhava pra mim. Virava papel, tirava daqui, botava pra lá, tirava

daqui, botava pra lá. Eu insisti: “Bom, eu acho que, se eu vier trabalhar com o Sr., nao

tem como eu trabalhar sem tratar desse assunto cara a cara, com toda a crueza que esse

121

assunto merece”. Eu me lembro que olhei, de soslaio, para o lado e vi que o Fernando

Henrique estava assim: (sussurrando) “Para, porra! Nao provoca, nao provoca! Chega!”

(Gesticula com a mão, fazendo o sinal de negação com as duas mãos.)

Os políticos têm um timing que só eles sabem mensurar. O Dr. Tancredo finalmente

botou as maos na mesa e aí sim olhou nos meus olhos e falou assim: “Deixa eu te falar:

vamos parar de falar de bobagem e vamos falar do que é sério. Isso daqui vai ser uma

guerra; você está disposto a entrar numa guerra?” Eu falei: “Claro, se nao tivesse nao

estava aqui”. E ele falou: “Entao é isso o que interessa, vamos juntos”. E eu comecei a

trabalhar com Tancredo a partir daquele momento.

Na verdade, nós já trazíamos – eu vou já te dizer quem é o “nós” – uma tendência a juntar

forças e a celebrar acordos político-ideológicos amplos para enfrentar a ditadura, já era de

um tempo atrás.

Em 1975-76, nós começamos a montar, em Brasília, um monte de jornalistas jovens, um

grupo para tomar o sindicato, que na época era uma coisa extremamente importante do

ponto de vista da democracia.

Pergunta – Mas era pelego o Sindicato?

Marchi – Era pelego e nós, jovens, começamos a montar uma oposição sindical. Éramos

eu, o Helio Doyle, o Armando Rollemberg, Andrei Almeida, enfim vários outros amigos.

Ali se juntavam, num caldeirão, muitas tendências de esquerda: nessa época, eu era do

Partidão, o Andrei também era do Partidão, o Helio Doyle era da ala vermelha, do PC do

B, o Armandinho Rollemberg não era exatamente uma coisa definida, mas ele estava

naquela linhagem que mais adiante desaguaria no PT, assim como o Helio, enfim, nós

fizemos uma frente e tomamos o Sindicato, tendo como candidato a presidente o

Castelinho. A gente sentiu que os jovens não podiam assumir aquilo, porque não teria

credibilidade entre a categoria, para ganhar os votos indecisos.

Essa experiência já tinha nos dado uma força muito grande. A gente ganhou o sindicato e,

logo em seguida, em 1980, houve a reeleição do sindicato e eu fui ser vice-presidente da

Fenaj, nesse mesmo acordão de forças unidas. Em 1983, eu saí da Fenaj e voltei pro

jornalismo, no Jornal do Brasil. Em 1984, começou a acontecer isso, então essa tendência

de juntar forças era muito óbvia, já estava mais ou menos encaminhada. (10:50)

Nesse momento, em que a gente começou a juntar forças em torno do processo de

redemocratização, a gente perdeu metade desses companheiros: o pessoal que estava

122

tendendo para o lado do PT se foi, virou petista, até porque o PT já estava fundado, assim

mesmo nós éramos um grupo mais que ponderável.

Eu me lembro que a gente começou a trabalhar de uma forma muito ampla e muito

generosa; eu era muito ligado ao pessoal de comunicação da UNB – e a gente juntou

muitos professores da UnB, o Murilo Cesar Ramos, o Salomão Amorim, o Venício Lima.

E esses professores acionaram outras universidades, a Bahia estava muito próxima da

gente, o pessoal de São Paulo começou a se aproximar muito rapidamente, o pessoal de

Santa Catarina, o pessoal de Curitiba, tudo em Universidades federais. Nós começamos a

trabalhar a ideia de um projeto de comunicação institucional para um governo

democrático.

Isso tudo tinha um patrocínio acima da gente, que era uma figura notável sob todos os

sentidos, que era a deputada Cristina Tavares, que tinha uma grande liderança no PMDB

da época, no PMDB autêntico. Ela conseguiu cobertura em todos os sentidos para essa

generosa união que se fazia. Cobertura em termos de alguma proteção, pois era preciso na

época, uma certa institucionalidade dentro do Congresso, a gente começou a trabalhar

junto de Comissões técnicas do Congresso, começou a se reunir no Congresso, pois um

problema pra gente era um local de reunião. Nós éramos todos relativamente pobres,

tínhamos casas pequenas, não podíamos fazer reunião com 50 pessoas. Ela acionava isso,

e a gente começou a fazer reuniões, por exemplo, no apartamento de deputada dela, um

apartamento imenso, com uma sala muito grande.

A gente fazia reuniões bastante produtivas nesse sentido. E essas reuniões começaram a

se encaminhar para projetos. Talvez essa seja a grande diferença que você vai captar entre

a Voz do Brasil que sempre se fez e a Voz do Brasil que se fez naquele período, porque

[ela] era parte desse projeto maior. A gente entendia que cada comunicação institucional,

acima de tudo, tinha de ser pública, não estatal. (14:00) Esse era um fundamento

essencial pra gente. Não era um serviço que a gente prestaria ao governo, era um serviço

que a gente prestaria à sociedade.

Portanto, a gente tinha aí engatado e subentendido o compromisso da absoluta verdade,

da não mistificação, da não demagogia. A gente sabia que isso era pouco praticável

quando a política se explicitasse, quando a gente tivesse no poder – ia ser um negócio

extremamente complicado. Mas a gente pretendia estender isso até onde desse. A gente

sabia que era por um tempo, era apenas uma coisa que a gente ia plantar, sabia que não

era para todo o sempre, mas a ideia era essa: estender o mais que fosse possível.

123

Evidente que a gente contava com o governo Tancredo – a gente não contava com o

governo Sarney. Esse foi o primeiro tombo que a gente levou.

No governo Tancredo, a gente tinha uma previsão razoável de como essas coisas iriam se

desenvolver, porque a gente tinha por trás da gente Fernando Lira, o Fernando Henrique,

que começava a crescer politicamente, a Cristina Tavares, o grupo jovem dos autênticos

(do PMDB) – eles todos nos dariam cobertura – e vários outros deputados que nem eram

tão autênticos assim nos ajudaram muito. Eu me lembro, por exemplo, do Carlos Santana,

que veio da Arena e era do PDS, e nos ajudou intensamente.

Bom, isso tudo veio se desenvolvendo ao longo da campanha do Tancredo. Quando

chegou no final da campanha, a gente já tinha praticamente um projeto pronto. Então, a

gente fez uma das coisas mais pragmáticas que a política pode produzir: a gente fez uma

grande reunião na casa da Cristina (Tavares) – eu me lembro que, como não cabia todo

mundo sentado nas cadeiras, nos sofás, tinha gente sentada no chão todo –, fechou o

projeto que foi entregue ao Tancredo – projeto do que seria essa comunicação setor por

setor –, e o setor crucial era o Ministério das Comunicações.

E fizemos mais do que isso; a Cristina abriu a reuniao dizendo assim: “Hoje, cada um vai

dizer aqui o que quer ser no novo governo, para nao dar briga lá na frente”. Ficou uma

timidez, um constrangimento, porque dá a impressão de que você está querendo arrumar

um emprego, e não era isso. Mas era uma forma política de a gente chegar na frente, de a

esquerda chegar na frente – porque ali era todo mundo de esquerda.

Vários se candidataram a cargos, por exemplo, no controle da radiodifusão – no Dentel

da época –, muita gente estava de olho na Radiobrás, evidentemente que tinha as

assessorias de comunicação de cada ministério, que tinham de seguir determinado

parâmetro, determinado padrão, mas um negócio delicado, porque que dependia da

confiança do ministro – o ministro levaria seu assessor -, mas de qualquer maneira a

gente queria impor certos padrões de comportamento. Tinha um pessoal que queria cuidar

de publicidade especificamente e eu fui o único que disse assim: “Eu quero a EBN”. As

pessoas olharam para mim, porque a EBN era “bucha”, era o cabo do guarda-chuva.

Ninguém queria a EBN, porque não dava muito prestígio, não dava dinheiro. Mas eu

sabia que o outro lado estava minado e não podia dizer.

Pergunta – Minado por quê?

Marchi – Mais ou menos por (volta de) outubro, final de outubro, eu arriscaria dizer que

era o dia 25 ou 26 de outubro de 1984, eu estava em casa, morava no Lago Norte, e tocou

124

meu telefone, eu atendi, eram 6 horas da manhã. Era o Aécio (Neves). \e o Aécio disse

assim: “O que você está fazendo?” Pô, cara, nao deve ser muito difícil adivinhar... às 6

horas da manha. Ele era um garoto, era meio o “mascote” da campanha. Ele falou assim:

“Vai para o escritório. Queria te contar um negócio”. Senti que era alguma coisa

importante e fui. Cheguei lá, não tinha ninguém, só o segurança da noite, a gente entrou

ficou lá no fundo e me disse: “Tem um negócio que eu preciso falar pra porque eu não

aguento segurar. Mas você tem que jurar pra mim que você não vai dizer nem um

milímetro do que eu vou te contar. E eu quero que você interprete isso como uma coisa

de absoluta confiança. Se você quiser perder a minha confiança, você conte isso a

alguém.”

Nesse momento, ele me falou: “Eu nao dormi essa noite. Eu estou vindo de casa, e vou te

contar um negócio: Vô fechou com o Antônio Carlos (Magalhaes)”.

Pergunta – O que era crucial...

Marchi – Ganhamos a eleição. Naquele dia, eu passei a saber que nós tínhamos ganhado

a eleiçao e eu tinha que chegar todo dia com aquela cara de “bunda” olhando pros lados,

dizendo “nossa, estamos lutando amargamente por um final honroso”, mas eu sabia que a

gente ia chegar.

Então, quando as discussões se encaminharam para, por exemplo, ter o controle do

Ministério das Comunicações, eu já sabia que isso não era possível. Era evidente que

aquele acordo, naquela noite, abrangia o Ministério das Comunicações.

Pergunta – Ele virou ministro das Comunicações do governo Sarney...

Marchi – Evidente. Mas era mais do que óbvio que a primeira coisa que ele pediria ao

Tancredo seria o Ministério das Comunicações. Eu, como pedi a EBN, acabei sendo um

dos poucos... Eu fique nesse movimento. Eu falei com todo o entorno do Tancredo – eu

nao liguei pro Tancredo e disse “eu quero ser presidente da EBN” – e eu tinha um projeto

na mão, que a gente tinha feito e que seria trabalhado.

Pergunta – E que vinha desse grupo de jornalistas e professores...

Marchi – Que vinha desse grupo.

Pergunta – O Sr. ainda tem esse documento?

125

Marchi – Eu não tenho mais cópia disso. Eu me lembro que o nosso documento foi

fechado com o Salomão, professor da UnB, o Murilo Cesar Ramos e o Venício Lima. Eu

cheguei pro Fernando Lira, que no finalzinho a gente já sabia que ia ser ministro da

Justiça – isso encaminhou uma facilitação pra mim, porque a EBN era subordinada ao

Ministério da Justiça, não sei por que, era uma coisa absurda, mas era isso –, e aí eu

fiquei muito tranquilo em relação aos meus passos. Mas quem trabalhou muito por mim

foi o Fernando Henrique.

E eu me lembro que, na antevéspera da posse, no dia 13, eu encontrei com o Fernando

Henrique nao sei aonde e me disse: “O teu decreto já está assinado. Nao fala pra

ninguém”. Depois eu descobri que o Tancredo, naquele dia 13, tinha assinado 4 decretos

de nomeação: o primeiro deles, por ordem de importância, era o do presidente da

Petrobrás, os outros dois eu não me lembro, e o quarto era a minha nomeação.

Curiosamente, essa nomeação assinada pelo Tancredo foi publicada no Diário Oficial e

eu tomei posse na EBN com um decreto assinado pelo Tancredo, que nunca foi

presidente da República. Para se ver o que é a institucionalidade de um processo de

redemocratização.

Pergunta – Como foi o início do seu trabalho, após a posse de Sarney?

Marchi – Eu tomei posse, e comecei a implantar o projeto. Eu aprendi politicamente

como é que se fazia isso. Eram quatro diretores na EBN e eu me lembro que eu queria

levar, evidentemente, os outros três. Estabeleceu-se, nos primeiros dias da Nova

República, um processo que se chamava nihil obstat 75 da Aliança Democrática; as

nomeações eram feitas da seguinte maneira: tinha um papelzinho, com pouquíssimos

dados – nome do indicado, cargo, indicação e, embaixo, o que referendava aquilo era um

carimbinho redondinho [faz gesto indicando um diâmetro com cerca de 2 centímetros],

com uma “A” e um “D” dentro, Aliança Democrática. E em cima daquilo, como se fosse

o carimbo de um médico que faz uma receita, a rubrica do Marco Maciel. Com dez dias

de governo, meu amigo, sem aquilo, você não entrava em lugar nenhum, não passava.

Eu ainda não tinha percebido, mas naquele momento já tinha começado a briga Frente

Liberal-PMDB, Ulysses (Guimarães) e Aureliano (Chaves), ou quem fosse o líder,

Antônio Carlos (Magalhães).

75 Do latim, “nada impede”. Nihil obstat era uma autorização dada pelos censores da Igreja Católica, sem a

qual não poderiam ser publicados livros.

126

Só que eu decidi as nomeações da EBN no primeiro e no segundo dia, eu arranjei

padrinhos para os outros diretores. E os diretores foram Luiz Roberto Serrano, que tinha

o apadrinhamento de Ulysses e, portanto, era inquestionável, eu vinha indicado pelo

próprio Tancredo, eu indiquei o diretor financeiro, pois sem financeiro eu não vou, que

era um sujeito seríssimo, que trabalhava na área financeira do MEC, Emerson Almeida.

Quem me indicou o Emerson foi um tio de minha então mulher [apelidado de Biju], que

era um funcionário de longuíssima data do MEC, que eu conhecia de dentro de casa, e

que foi ser meu assessor de “putarias”, aquele que indicava o “vai dar merda”, ele

chegava pra mim e dizia assim: “nao assina isso, porque vai dar merda”. Ou entao: “Isso

aqui você pode assinar”. Nos três primeiros dias eu consegui nomear. No quarto, foi o

Luiz Gonzaga Mota, que era professor da UnB, que era do grupo de pensadores e foi ser

diretor de Planejamento, um cargo que eu criei, que não tinha na EBN, para pensar a

modernização da EBN. O Luiz Gonzaga Mota, eu disse que ele tinha sido indicado pelo

Carlos Santana – o Carlos Santana ligou para não-sei-quem e disse: “E meu mesmo”.

Carlos Santana nunca tinha visto o Luiz Gonzaga Mota na vida...

Isso facilitou muito o nosso projeto.

Pergunta – Quer dizer que o Sr. conseguiu logo de cara ter a aprovação desses nomes e

montar a equipe?

Marchi – Sim, e aí a gente começou a montar uma redação da utopia – como o Eugênio

(Bucci) de certa forma conseguiu fazer. Só que para o Eugênio foi mais fácil porque o

partido dele era hegemônico. No meu caso não era.

Mas a gente abriu o projeto na mesa e disse: “Vamos por aqui”.

Claro que a gente tinha um grande inimigo, que era a absoluta incapacidade de gestão,

porque, de todo mundo ali, ninguém nunca tinha gerido “porra” nenhuma. Nós éramos

repórteres de jornal. Mas eu tinha, do meu lado, o fabuloso Biju, que era o tio da minha

mulher, que conhecia todas as “putarias” de dentro do MEC.

Por exemplo, num dos primeiros dias, eu dei uma assim de grande gestor público. Eu

recebi a direção do Bradesco, os pagamentos dos funcionários da EBN eram feitos pelo

Bradesco, e tinha uma malandragem que o Biju me apontou: com aquela “puta” inflaçao

da época, a EBN mandava o cheque pro Bradesco e o pagamento era feito seis dias

depois. Veio a direção do Bradesco conversar comigo, pois era uma conta importante,

eram 1.200 funcionários, e eles disseram é tal, primeiro pagamento, para não atrasar, o

pagamento de março, e eu falei: “Muito bem, entao”. Tinha aquele monte de folhas e

127

papéis, eu assinei tudo, entreguei pra eles e no finalzinho fiz menção de que acabou a

reuniao, e o diretor do Bradesco em Brasília falou assim: “Mas o Sr. esqueceu do

cheque”. Eu falei assim: “O cheque vai na véspera do pagamento, para dar o tempo de

ser compensado”. Quer dizer: o dinheiro sai da EBN aqui, entra na conta dos funcionários

ali. E ele respondeu: “Mas assim nao é possível”. E eu falei: “Entao o Bradesco acabou

de perder a Folha de pagamento da EBN”. “Daremos um jeito, daremos um jeito”. No

mês seguinte, como o Banco do Brasil não podia aceitar, a gente botou num banco

estatal, não sei se o Banerj ou o Banco do Rio Grande do Sul.

E a gente então começou a implantar o tal projeto.

Já trabalhei em muitas redações boas, no Jornal do Brasil, o Globo, no Estadão duas

vezes, mas aquela redação da EBN foi uma das melhores que eu já vi até hoje. Por

exemplo, a diretora de Redação era a Rosvita Saueressig, que tinha uma cultura

jornalística preciosa e, segundo, ela sabe ser vigorosa e rigorosa ao mesmo tempo; tinha

um menino que está hoje em Santa Catarina, César Valente, que era muito bom também;

o chefe de reportagem era o Zanoni Antunes.

Ao mesmo tempo em que a gente começou a fazer bom jornalismo, a gente começou a

bater nos muros da política.

Pergunta – Essa “redaçao da utopia” foi montada, começou a ser implantado novo

projeto, houve alguma resistência dentro do corpo de funcionários da EBN?

Marchi – Tinha (na EBN) muito burocrata, muita gente que não trabalhava, e nós

começamos a atacar isso de forma inábil. Também éramos todos garotos novos, não

sabíamos direito como tocar a coisa. Um dos nossos compromissos era reduzir o quadro

(de funcionários) da EBN em geral, mas reduzir principalmente o quadro administrativo.

A EBN tinha, em números redondos, 1.200 funcionários, eram 400 na área fim e 800 na

área meio.

Então eu comecei, de todas as maneiras, a tentar me desfazer desses funcionários da área

meio. Primeiro fizemos um programa de demissão incentivada, não me lembro

exatamente como era, não existia na época esses programas estruturados como são hoje,

mas a gente pagava a mudança se o cara fosse mudar de cidade, tinha algumas vantagens

que permitiam o incentivo.

Depois a gente começou a ceder funcionários para outros órgãos, mas o outro órgão

pagava o salário, e assim eu aliviava a conta. Quando eu saí (da EBN, em 1986), estava

meio a meio.

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O primeiro muro em que a gente bateu foi assim: nós pegamos uns 10 nomes de pessoas

que eram notoriamente malufistas e justiçamos em praça pública. Demitimos. Ficou

claramente explicitado – e eu tenho que reconhecer hoje – que houve um certo

sentimento de revenge, que era uma bobagem naquele momento. E o presidente era o

Sarney, que era das hostes adversárias.

Eu me lembro que recebi um telefonema do Fernando Cesar (assessor do Sarney), que do

ponto de vista do valor político valia menos que eu, porque eu era próximo do Tancredo,

e ele nao teria coragem de me dizer: “Marchi, reveja essas demissões”. Porque Sarney

não era propriamente um presidente, ele era um subpresidente que tinha eventualmente

assumido o governo, e Tancredo estava vivo naquele momento. Fernando César tinha

sido meu colega de Jornal do Brasil durante muito tempo, éramos amigos. Ele me ligou e

disse: “O presidente está pedindo para que você reveja essas demissões”. Eu disse: “Eu

não posso voltar atrás, Fernando. Você sabe o valor político-ideológico que isso tem na

praça, todo mundo sabe o que a gente fez”. Ele insistiu, eu resisti, e no dia seguinte eu

recebi uma ligação do Sarney, pedindo para rever as demissões. E eu resisti novamente.

Eu comecei a ver que fazer jornalismo com independência dentro de um governo, ainda

mais um governo pluripartidário, era muito complicado.

Além do telefone do Sarney, eu comecei a receber telefonemas de colegas meus

jornalistas, principalmente os que cobriam a Câmara e que eram muito ligados a todos os

partidos: “Pô, que bobagem, você está tirando o fulano, bota ele de volta, para com isso,

etc.” Isso foi um fator de intenso desgaste, até que a gente venceu a parada, nao os

readmitimos, mas ficou uma cicatriz, que depois seria devidamente cobrada pelo Sarney.

E foram se sucedendo os fatos.

A segunda batida foi quando, um belo, dia o Serrano entrou na sala e disse assim: “Nós

temos uma entrevista do Brizola; a gente bota no ar ou não?” Eu disse: “Faça o seguinte:

distribui a matéria antes para os jornais, para ver a repercussão que vai ter, e aí a gente

descobre se vai botar na Voz do Brasil ou nao”. E a gente botou a matéria na rede, via

telex, e cinco minutos depois tocou meu telefone, a minha linha direta – tinha um telefone

que só tinha um botão, e eu descobri que aquilo era uma linha direta com o porta-voz do

Planalto – e era o Fernando César, para me dizer: “Você acabou de soltar uma entrevista

com o Brizola”. Eu disse assim: “E de interesse do público brasileiro”. “Mas Brizola é

oposiçao!” Eu disse: “O que a gente reclamava é que antigamente eles nao davam espaço

pra gente, agora a gente nao pode fazer a mesma coisa”. E ele falou: “Mas você nao

entende: assim que você botou no ar, o general Ivan Mendes de Almeida destacou a folha

129

– o general Ivan Mendes de Almeida era o ministro do SNI (Serviço Nacional de

Informações) –, levou para o presidente e você precisa ver a cara com que ele botou a

folha na frente do presidente. Com o EBN entre parênteses grifado em vermelho e o

nome Brizola também. E aí seguiu-se uma conversa entre ele e o presidente, e o

presidente disse: “Esse pessoal que está lá (na EBN) é meio rebelde, tal...” Eu comecei a

pensar que o nosso projeto ia durar menos do que a gente tinha imaginado. Depois desse

telefonema, eu liguei para o Serrano e falei: “Ponha o Brizola no ar na Voz do Brasil,

porque vai ser o nosso álibi. Se ele demitir a gente, podemos dizer que demitiu porque

fizemos bom jornalismo”. O Serrano ficou até meio assustado na hora,

E assim a gente foi, de topada em topada, com pressão dos dois lados. Uma das primeiras

coisas que a gente fez foi estruturar um quadro de salários, porque era uma bagunça,

passamos a ter um quadro de carreira em que se tinha repórter 1, 2, 3 e 4, e tinha redator

1, 2, 3 e 4. E esse plano de carreira aprovado pela gente dizia que ninguém poderia entrar

como repórter 4, tinha que entrar como repórter 1. Isso, de certa maneira, começou a frear

as indicações.

A gente começou a lidar com uma questão que era previsível: os repórteres começaram a

sentir que liberdade para fazer as coisas. Eles começaram a se mostrar senhores dessa

liberdade; em seguida eles começaram a se achar administradores dessa liberdade. E

começaram a afrontar ministros em entrevistas. Choviam reclamações. E então, eu que

tinha dito antes para as pessoas que “vale tudo” pra fazer jornalismo, tive que chegar para

eles e dizer para maneirarem, porque não podia ser assim. As pessoas têm que começar a

se acostumar com as situações. Mas o ser humano, nesse sentido, é inadministrável.

Quando você diz a ele “Você tem liberdade”, ele sai para enfrentar o mundo, enfrentar os

moinhos de vento.

Foram firmados acordos, mais ou menos amplos com a Telan (argentina), a portuguesa

Nope (que, durante o governo socialista de Mario Soares, era comandada pelo jornalista

Carlos Caceres Monteiro, que ele havia conhecido nos tempos de sindicalismo, e que

trazia muita notícia dos países africanos de língua portuguesa), com a Efe espanhola, com

a France Presse, com a Ansa). Não era a diversidade ideal, mas era uma diversidade que

permitia que a EBN se desvinculasse da via hegemônica do jornalismo dos EUA.]

Se você me perguntar se eu comuniquei a alguém (do governo) o que eu estava fazendo,

vou dizer que sim, ao Fernando Lira, mas ele era meu amigo e eu falava pra ele que era

uma boa – e era isso que ele queria saber. Pois não havia cultura no Brasil do que era uma

agência de notícias estatal. Nenhuma.

130

Alguns setores, principalmente os setores militares, começaram a ver com alguma

preocupaçao, e a todo tempo chegavam “sinais”, boa parte deles originários do SNI,

dessa desconfiança inicial plantada com o Ivan Mendes, de que a gente era um bando de

comunistas que tinha tomado a parte do governo.

Pergunta – Eles seguramente tinham as fichas de vocês e sabiam quem era do Partidão,

etc.

Marchi – Sim, mas Serrano não tinha sido de partido nenhum, nem o Luiz Gonzaga

Mota, que era professor da UnB, o Emerson muito menos, e isso, de certa maneira, dava

o mínimo de confiança para manter o projeto.

Pergunta – Mas o que de fato acabou com esse projeto na EBN?

Marchi – O que derrubou a gente foi, primeiro, esse ato desastrado de ter demitido esses

10, porque esses 10 tinham uma penetração muito grande na imprensa de Brasília. Eu me

lembro de que tinha um cara chamado Marcone Formiga que tinha uma coluna no

Correio Braziliense – para quem mora em Brasília, todos os jornais são importantes,

Estadão, Folha, O Globo, mas o Correio Braziliense é o primeiro que você lê, é o

primeiro impacto, é o primeiro a chegar na casa das pessoas – e essa coluna era o

“Ancelmo Goes” da época no Correio, e esse Marcone Formiga se especializou em

publicar notinhas contra a gente – incontáveis vezes ele publicou uma nota assim: “O

presidente da EBN, Carlos Marchi, está com os dias contados...”

Chegou dezembro (de 1985), houve a reforma do ministério e o Fernando Lira saiu.

Quando o Fernando Lira saiu, a gente pensou: “Nao teremos mais tempo, a gente tem que

correr para implantar dignamente um projeto digno do nome”. Sabia que nao poderia

levar até o fim, mas a gente queria implantar uma série de coisas que fossem difíceis de

reverter depois, que criassem história, que criassem vínculo.

E para isso, eu tinha muito apoio do Carlos Santana, que era ministro da Saúde e que,

como tinha vindo do PDS e da Arena, enchia muito os ouvidos do Sarney em favor da

gente. Mas quando houve a reforma do ministério, o que havia de esquerda no governo

pulou fora. E ainda se tinha os olhares gananciosos do pessoal do PFL, da Frente

Liberal...

Pergunta – Eles queriam levar a EBN para o Ministério das Comunicações, segundo

relato de Lilian Perosa...

131

Marchi – Eu me lembro de uma vez, que o assessor do ACM, um cara liso, muito

escorregadio, indefinível, me ligou e disse: “O ministro gostaria de te ver, de te conhecer

melhor, conversar”. E entao marcamos uma data e eu fui lá. Cheguei e nao esperaram

nem dois minutos para me introduzir no gabinete do ministro e pensei: “Pô, estou

importante...”

Eu entrei, estava o ACM lá numa mesa falando ao telefone, ele acenou para mim um

aceno largo, e ficou falando no telefone quase uma hora. Quando desligou, chegou até

mim e disse assim: “Mas e aí, fulano me falou que você queria falar comigo. O que você

manda?” Aquela altura eu já estava me lixando e disse: “Ministro, tem um engano aqui.

Ele me disse que o Sr. queria falar comigo.” Na maior cara de pau, o que ele queria é que

eu engatasse alguma conversa do tipo “me protege, me dá uma força”. Evidentemente

que essa coisa não se cristalizou ali, naquele momento.

Eu fui embora pensado: “Esse cara está de olho na EBN mesmo”.

O Lira já tinha saído em dezembro e a gente começou a correr o ano de 1986

completamente desprotegido. É claro que eu saí buscando outro tipo de proteção, porque

quando está no governo você tem que ter esse tipo de proteção, se não você não fica.

E um dos guarda-chuvas que eu encontrei mais interessante naquele momento foi

conseguir vender para o Itamaraty a ideia de que esses acordos (com agências de notícias

estrangeiras) eram interessantíssimos para o comércio internacional brasileiro. Na época,

o chefe do Departamento de Promoção Comercial era o embaixador Paulo de Tarso Flexa

de Lima comprou completamente o meu projeto. Ele disse: “Você vai ser o meu grande

aliado”. E tinha um detalhe: o Paulo de Tarso era mais que amigo do ACM. E quando o

ACM começou a avançar sobre a gente, o Paulo de Tarso nos protegia, dizendo que

estávamos trabalhando em conjunto. Até a crise final.

Quando desatou a crise final, entrou um ministro chamado Paulo Brossard, que o meu

amigo Zanoni (Antunes), chefe de reportagem, chamava de Souza Pinto, porque o nome

dele era Paulo Brossard Souza Pinto. Paulo Brossard é gaúcho, e gaúcho sempre trabalha

em “patota”, quando um gaúcho assume um cargo de direção, vai trazendo os amigos do

Sul, um atrás do outro, não sabe trabalhar em equipe. (...)

Pergunta – O livro de Lilian Perosa vincula a sua saída da EBN à gestão do Brossard no

ministério, dizendo que ele um ministro mais conservador que o Lira. Você concorda?

Marchi – Não tinha nada a ver com a qualidade do trabalho jornalístico que a gente

estava fazendo. Brossard é um cara extremamente conservador; eu cobri ele durante anos

132

e anos no Senado, depois na vida lá em Brasília. Quando ele tomou posse, fomos na

cerimônia, e eu fui cumprimentá-lo e ele foi absolutamente seco; ele me conhecia do

Senado, há muito tempo, ele podia ter dito: “nao quero falar com você agora” ou entao

“oh, meu amigo, venha cá me dê um abraço”; mas ele nao fez nem uma coisa nem outra,

ele foi extremamente seco. Eu pensei: “Bom, nao temos espaço”. E a gente durou ainda

muito tempo com ele, seis ou sete meses. Eu saí em junho ou julho.

E aí a coisa começou a se dar aos trambolhões. Mas não teve nenhuma relação com ser

mais conservador ou menos conservador, até porque quem me substituiu não jogou fora o

nosso projeto.

Pergunta – Houve alguma pressão do ponto de vista jornalístico para a EBN cobrir o

Plano Cruzado, lançado em fevereiro de 1986?

Marchi – O que houve no Plano Cruzado que eu me lembro muito bem é que nós

acreditávamos naquele governo como quem acredita na ressureição de Jesus Cristo. Ele

era a única saída para o Brasil, nós acreditávamos que podia e que tinha que dar certo.

Então, na época, todo mundo acreditava no Plano Cruzado – se pegar a cobertura da

imprensa da época, foi muito muito favorável, porque as pessoas estavam sufocadas pela

inflação, pelos males da economia e queriam uma saída e queriam acreditar que aquela

saída era boa, exequível.

Eu não me lembro de nenhuma pressão, pouquíssimas vezes eu recebi um telefonema do

Planalto para cobrir ou deixar de cobrir alguma coisa. Tinha aquele episódio do Brizola,

em que a gente acabou vencendo a parada, porque líderes oposicionistas continuaram

saindo na Voz do Brasil aqui e acolá, e a gente acabou se envolvendo em uma outra

discussão que não me interessava muito: eu queria notabilizar a EBN como agência

noticiosa brasileira , não como produtora da Voz do Brasil, tanto que cheguei a levar ao

Sarney um projeto para acabar com a Voz do Brasil. E o Sarney deu pulo da cadeira, e

dizia assim: “Você nao é do Nordeste, você nao sabe o que que é a Voz do Brasil no

Nordeste. Leva esse projeto pro Congresso e mostra para um deputado do interior do

Nordeste e pergunta para ele o que ele acha. Ele vai pular na sua carótida”. E ele entao

me desencorajou completamente – “Nao faça isso!” No tocar do projeto, nós dávamos

muito mais atenção à agência noticiosa do que à Voz do Brasil.

Pergunta – Na sua opinião, como o conceito de conceito de comunicação pública e

compromisso com o interesse do cidadão foi posto em prática na EBN daquela época?

133

Marchi – Havia muito a ideia – e eu confesso que eu partilhava dessa ideia naquela

época, mas hoje acho que o mundo mudou – a respeito do papel do Estado como

distribuidor de informações. Eu tinha uma noção muito estrita quando falava em

distribuição de informações, e não tinha base teórica para falar disso.

Na verdade, eu tinha feito Comunicação na UFRJ numa época muito difícil, 1970-71, e

praticamente não se tinha aula, era um inferno, o Dops estava lá todo dia (o Dops era do

lado da escola, e a escola era isolada na Praça da República), e eu tinha aula de

Matemática 1 e Matemática 2, e eu me perguntava o que eu estava estudando ali, eu

estava lá porque queria aprender a fazer jornal. E eu acabei abandonando a escola, até

porque no segundo ano eu fui ser repórter especial do Globo e pensei “O que eu posso

querer mais?”. Assim me faltou essa base teórica, e eu procurei suprir, ao longo dos anos,

mas quando eu encontrei esse grupo – já eram meus amigos, mas eu não me sentava com

eles para discutir Teoria da Comunicação, a gente lia McLuhan e Althusser, mas lia

atabalhoadamente, de forma rasa. Eu confesso que eu era discípulo dessas pessoas, eles

tinham muita base teórica – eu me lembro do Othon (Jambeiro Barbosa), que era

professor da Bahia, conhecia muito de Teoria da Comunicação –, então a gente

embarcava um pouco na canoa deles.

E a gente fazia uma espécie de “meio termo”, que era muito interessante: eu e outros

colegas trazíamos o pragmatismo político, o dia a dia da política, como é que se

realizavam as coisas, como é que se abordavam as pessoas, como é que se ganhava

espaço, e eles traziam a teoria.

A gente fazia uma média disso e é evidente que um professor desses não poderia ter sido

presidente da EBN, porque ele não conhecia o jogo político.

Eu acho muito interessante se você pudesse conversar com o Murilo (Cesar Ramos).

Advindo do Partidão, eu tinha muito ainda aquela ideia de dar excelência estatal, de que o

Estado pode fazer tudo; eu acreditava que a EBN, num dado momento, poderia concorrer

com a Agência JB, com a Agência Estado e com a Agência Globo, que na época era

nascente – a Agência Folha nem existia nessa época.

A agência Estado caiu matando na gente. Eu me lembro de que houve um editorial “A

Tass Cabocla”.

E eu me lembro, que cedinho em casa, o Fernando Cesar me ligou e disse: “Você viu o

editorial do Estadao?”, e eu nao tinha visto e ele completou “a Tass cabocla”. Eu disse

pra tirar da mesa do presidente, mas ele me disse que o Sarney já tinha lido em casa e que

era a primeira coisa que ele comentou quando chegou ao Palácio.

134

Então, era uma guerrilha e a gente achava que não podia enfrentar isso – eu sabia que não

poderia enfrentar isso nem no governo Tancredo, quanto mais no governo Sarney.

A gente tinha muito essa noção de que o Estado poderia suprir essas coisas, até que eu

entendi, hoje, que absolutamente o Estado não pode ser provedor de informações, não

pode ser um distribuidor de informações, porque não tem isenção para fazer isso. A gente

era muito stalinista. A gente era muito contaminado por essa coisa estatista...

Pergunta – Ao lado de uma até certa ingenuidade, de achar que não haveria interferência

política...

Marchi – A gente sabia que ia haver, mas a gente achava que era possível a gente resistir,

e que principalmente que era possível montar uma blindagem – que poderia ter sido o

acordo com a Abrajori, ou negociar com jornais. Eu me lembro que tentei negociar com

jornais, mas, por exemplo, o Estadão não queria sentar na mesa comigo para conversar.

Tentei marcar uma visita ao Estadão, para falar com o meu amigo Antônio Carlos

Pereira, chefe dos editorialistas, e ele me disse que eles não tinham interesse em

conversar comigo. Foi aí que agente sentiu que o buraco era mais embaixo.

135

Apêndice B – Entrevista de Eugênio Bucci ao autor – 27 jul 2015

Pergunta – Qual o conceito de comunicação pública com o qual o Sr. trabalha?

Eugênio Bucci – O conceito de comunicaçao pública está melhor explicado no livro “O

Estado de Narciso”, que tem um capítulo inteiro dedicado a debulhar essa conversa toda,

em que há vários conceitos diferentes, há linhas diferentes, e ali eu chego à seguinte

conclusão: Nós precisamos de um conceito que “corte” um lado e outro e que diferencie

uma comunicação (pública) das demais. Os conceitos existentes são muito flexíveis:

“comunicaçao pública é toda comunicaçao que tematiza um assunto de interesse público”

– então o Programa do Ratinho poderia ser considerado comunicação pública; esse é o

problema: tem várias investidas diferentes, passando pelo espaço público político, e

acabamos não saindo do lugar.

E vendo tudo isso, e pensando no ambiente institucional em que isso se dá no Brasil, eu

proponho um conceito em dois níveis: nós obrigatoriamente temos, no primeiro nível,

que a comunicação pública é aquela para a qual concorre o dinheiro público – de algum

jeito. Porque, se não, toda comunicação é pública. Devemos lembrar que a televisão é

concessão pública, então eu tenho um caminho para dizer que toda comunicação da TV,

por ser prestação de um serviço público, assim definido na Constituição, poderia se

chamar de comunicação pública. Então eu chego, nesses termos, àquele paradoxo do Tim

Maia: “Tudo é tudo e nada é nada”. E entao o conceito nao me serve para nada.

Como eu recorto algo que seja identificável e tenha a capacidade de ser igual a si mesmo

e diferente do que o cerca? É definindo, nesse primeiro plano, que a comunicação pública

é aquela para a qual concorre especificamente o recurso público, equipes públicas, de

funcionários públicos, equipamento público, etc. Tem participação (do poder público) ali.

Eu não posso também dizer que uma ONG faça comunicação pública, embora isso seja

de interesse público, porque de novo eu chego no Tim Maia: “Tudo é tudo e nada é

nada”. E eu nao consigo estabelecer uma diferença entre a campanha “Criança

Esperança” e a “Voz do Brasil”. Pois aí o conceito nao me adianta.

É aquele para o qual concorre o dinheiro público. Sendo isso, a comunicação pública leva

consigo, é marcada por certas obrigações, certos deveres, ela deve observar certos

princípios, pois afinal de contas ela é feita com recursos, todos, públicos. Então a

comunicação pública se define também pelo dever de observar os princípios

constitucionais, entre eles e principalmente o da impessoalidade – e claro que também o

da legalidade, o da economicidade, etc.

136

Pergunta – Isso está na Constituição?

Bucci – O princípio da impessoalidade está na Constituição.

Pergunta – Não especificamente em relação à comunicação, mas em relação às estatais...

Bucci – Isso, mas mesmo para a comunicação, e em várias passagens da Constituição

existem observações e determinações ou princípios em que há claramente a adaptação do

princípio da impessoalidade para aquela prática pública, por exemplo o impedimento de

que propaganda ou a comunicação de governos façam a identificação da pessoa que é o

governante. Isso é a aplicação do princípio da impessoalidade na comunicação pública.

Então, o que define a comunicação pública é o fato de que ela usa recursos públicos –

dinheiro, trabalho, equipamentos – e ela, por isso, se obriga a observar os princípios

constitucionais. Fora do que, ela agride a Constituição ou ela é ilegal. Simplesmente. E o

que acontece no Brasil é um festival de ilegalidades – em todos os sentidos. Então, o que

orientou a elaboração dos Documentos da Radiobrás foram essas noções.

Pergunta – E os Seminários sobre TV Pública desenvolvidos em Brasília, foram

anteriores a esses Documentos?

Bucci – Os seminários de Televisão pública são posteriores. E deu-se o contrário; não

estou aqui nem faltando pelo excesso nem por escassez de modéstia. Porque, no primeiro

Seminário de Televisão Púbica, dos oito grupos de discussão quatro eram dirigidos por

gente da Radiobrás. Naquela altura, já existiam os princípios do jornalismo da Radiobrás,

já existiam os protocolos, e coisas que se desenvolveram. A Radiobrás era uma das

organizadoras daquele Seminário, era o Ministério da Cultura e a Radiobrás.

Pergunta – Diante desse conceito de comunicaçao pública, o Sr. diz no livro (“Em

Brasília, 19 horas”) que a TV Pública é algo que nao é possível de existir. Vale para rádio

também?

Bucci – Vale, vale. Eu falo de radiodifusão. E acho que não existe. Nós temos alguns

“ensaios” disso, a TV Cultura e a Rádio Cultura, atualmente, um pouco – e depois que eu

saí –, a TV Brasil – que é hoje uma televisão melhor do que a que existia no meu tempo,

é mais bem feita, tem mais alcance nacional, tem um conteúdo mais independente do que

eu consegui fazer, e é hoje, possivelmente, a melhor experiência que nós temos depois da

137

TV Cultura – que eu ainda reputo como sendo a principal experiência de rádio e televisão

pública no Brasil.

Pergunta – Voltando à Radiobrás, o Sr. pode concluir, a partir da sua experiência, que

era possível fazer um jornalismo na empresa e na Voz do Brasil especificamente?

Bucci – Acho que não, mas isso precisa ser circunstanciado. A primeira coisa que precisa

ser dita: é possível fazer jornalismo numa empresa pública? Existe uma grande discussão

a respeito. E a minha resposta é sim.

O conceito de empresa pública é um pouco “alargado”, porque ela pode ser uma estatal,

como pode ser uma empresa da sociedade, mas com características de ser pública por não

ser comercial, e por ser de uma gestão aberta, com um Conselho, com uma gestão

fiscalizada pelos poderes públicos, por diversos instrumentos, entre eles o próprio

Ministério Público, pelas casas legislativas. São critérios que afiançam essa questão.

O que me leva a dizer que é possível fazer jornalismo numa organização desse tipo: além

da BBC, da Radio France, que são experiências conhecidas e com passado incontestável,

existem experiências muito boas e contemporâneas na National Public Radio, NPR, que

pratica um jornalismo de altíssimo nível.

Eles não são empresas estatais, mas eles são claramente empresas públicas, garantidas

por regimes públicos, ou seja, por regramentos de ordem pública – inclusive a lei – e com

um lugar na radiodifusão assegurado nos Estados Unidos pelo marco regulatório daquele

mercado que é de responsabilidade do FCC, uma agência reguladora que já tem 80 anos.

Então, embora a proprietária das emissoras associadas à National Public Radio não seja a

figura do Estado, são os regramentos públicos que decidem e que estruturam o lugar de

existência dessas organizações. E elas se beneficiam, eventualmente, de recursos públicos

dos mais diversos e não têm finalidade comercial – o que é fundamental.

Definitivamente, elas não são organizações com fins de lucro e tudo o mais. E ali se faz

jornalismo. Portanto, nós podemos dizer que é possível fazer jornalismo (numa empresa

pública), não em função de um wishful thinking ou de uma utopia, mas em função da

experiência real que mostra isso. A BBC é uma claríssima expressão de empresa pública,

em todos os sentidos.

Agora, poderíamos fazer jornalismo na Voz do Brasil? Não! Mas aquilo poderia ser muito

melhor do que tem sido. O primeiro passo para isso, como eu sempre preconizei, é que

ela não pode ser obrigatória. Mas a Voz do Brasil tem um problema: é um tipo de

comunicação completamente anacrônica, suas premissas já foram revogadas há muito

138

tempo, ela não deveria mais existir nessa forma. E o problema é o seguinte: na Voz do

Brasil, o objeto da notícia, o narrador da notícia e a fonte da notícia é o governo.

Não há, de saída, a interlocução necessária para que se estabeleça o jornalismo, não há o

pressuposto necessário. Portanto, não se pode falar em jornalismo ali, e, na melhor das

hipóteses, poderia haver um proselitismo mais civilizado, uma prestação de serviço um

pouco mais desinteressada, mais voltada ao direito do cidadão à informação.

A gente tentou forçar nessa linha, com consciência sobre isso, mas não foi possível.

Alguma coisa ficou, mas...

Pergunta – Com qual a definição de jornalismo o Sr. trabalha?

Bucci – Em relação ao conceito de jornalismo, até por necessidade das nossas escolas, eu

trabalhei nisso – e em dois ou três textos meus eu tento investigar em que termos nós

podemos estabelecer um conceito de jornalismo.

Por que precisamos fazer essa discussão no Brasil? Porque o Brasil não teve coragem de

fazer a diferenciação entre jornalismo e assessoria de imprensa. O que é um grande

embaraço para o desenvolvimento das duas atividades. Nenhuma outra sociedade

democrática, uma sociedade livre, sociedade de mercado, isso se verifica da mesma

maneira.

São duas atividades diferentes.

Então o maior problema de se falar de jornalismo hoje, na cultura jornalística do Brasil, é

[o fato de] as escolas acharem que assessoria de imprensa é jornalismo. Nas diretrizes

curriculares do MEC, a assessoria de imprensa é descrita como uma especialização do

jornalismo, como o jornalismo econômico. E quando eu falo de um conceito de

jornalismo, eu também não quero aqui falar o que já foi falado, pois o conceito de

jornalismo é óbvio, em todo lugar. Mas no Brasil ele é fator de confusão.

Pergunta – Só no Brasil ou em outros países também?

Bucci – Não, eu nunca achei. Diploma obrigatório é praticamente só no Brasil – no Chile

tem, por causa de uma reescritura de algo que havia na ditadura, e temos os países que

não são democráticos. Acho que na Venezuela tem... Em todo lugar, jornalista é um

profissional e o assessor de imprensa é outro. No Brasil, o jornalista e o assessor de

imprensa estão no mesmo sindicato.

O Código de Ética do Sindicato dos Jornalistas tem passagens hilariantes. O artigo 12,

por exemplo: “O jornalista deve, ressalvadas as especificidades da assessoria de

139

imprensa, ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e

instituições envolvidas na cobertura jornalística”. Ouvir os dois lados, ouvir as pessoas

afetadas por um fato é o primeiro dever do jornalista, porque ele tem o dever da verdade,

da transparência, e o dever da liberdade. Como é que o artigo 12 que fala dos deveres do

jornalista, diz que “o jornalista deve... a nao ser quando nao deve”. Entao o assessor de

imprensa não tem que ouvir os dois lados...

Pergunta – Pode mentir, portanto...

Bucci – Não, eles não estão dizendo isso. Eles estão dizendo que não precisa ouvir os

outros lados. O assessor de imprensa não precisa mentir. O assessor de imprensa pode

fazer um trabalho excepcional, superimportante para a democracia, para o esclarecimento

da sociedade, ético. Só que é outra profissão. Esse é o ponto fulcral da nossa discussão.

Na nossa cultura jornalística, assessoria de imprensa é uma especialidade do jornalismo, é

uma forma de jornalismo – e muita gente fala isso com as melhores das intenções, não é

gente interessada em lesar o direito à informação, falam sinceramente, acreditam nisso.

Como é que o jornalista (que atua como assessor de imprensa), que tem o dever de ouvir

os vários lados, fica dispensado desse dever – que é o primeiro dos deveres listados no

artigo 12.

E tem o artigo 7o: “O jornalista nao pode realizar cobertura jornalística para o meio de

comunicação em que trabalha sobre organizações públicas, privadas ou não-

governamentais, da qual seja assessor, empregado, prestador de serviço ou proprietário”.

Olha o que está escrito: um jornalista que trabalha para a Folha de S.Paulo não pode fazer

uma matéria sobre o PMDB, se ele for assessor do PMDB. Ele não pode fazer uma

matéria sobre o PMDB, mas ele pode ser jornalista num veículo jornalístico e assessor de

imprensa. Ele não pode fazer matéria, mas ele pode defender os interesses. E eles

emendaram isso depois: “...nem utilizar o referido veículo para defender os interesses

dessas instituições”.

O mais importante que está dito neste artigo nao é o que diz que “nao pode”, mas o que

tacitamente ele autoriza que o jornalista trabalhe para outra organização. Isso não

aconteceria em nenhum lugar do mundo; isso é óbvio. Mas no Brasil não é óbvio. Nós

precisamos discutir esse assunto, precisamos aprofundar esse conceito de jornalismo,

porque nós vivemos num país que não sabe a diferença ente assessoria de imprensa e

jornalismo. As escolas não sabem; o MEC não sabe – as diretrizes curriculares do MEC

estabelecem que assessoria de imprensa é uma especialização do jornalismo. Essas

140

diretrizes foram aprovadas faz 3 ou 4 anos, não é uma coisa dos anos 60. É por isso que

temos de fazer a discussão do conceito de jornalismo.

Mas nesse país, com essa cultura, a Voz do Brasil é “jornalismo”. Eles falam: “Agora, o

repórter fulano de tal...” Eu trabalhei lá. Só que ele nao está fazendo uma reportagem, ele

vai entrevistar um ministro que manda demitir ele.

É o governo falando do governo, a partir de fontes do governo. E o que é pior: para o

governo. Porque a Voz do Brasil é feita para o governo escutar e ficar contente. Essa é a

receita. Pois a Voz do Brasil fala coisas que os rincões não entendem. Esse é um dado

curioso: o ouvinte da Voz do Brasil é o “aspone” do governante, do ministro, que diz a ele

“Saiu na Voz do Brasil, ministro, saiu legal, o Sr. saiu muito bem...” O ministro vai ficar

contente e vai achar que as pessoas estão ouvindo e estão entendendo. Mas as pessoas

nao sabem o que é “escoamento da safra de graos”. Esse é o problema. Para saber se dá

para fazer jornalismo, é preciso saber o que é jornalismo. Então, nesse país, nessa

situação, essa é que é a discussão. Não daria para fazer jornalismo nessa Voz do Brasil.

Aí a gente chega na questão institucional. A Radiobrás é uma estatal, é responsável pela

Voz do Brasil, e aqui cabe fazer uma distinção porque as pessoas acham que estatal é

governamental, mas não é. As Forças Armadas são estatais, o Supremo Tribunal Federal

é estatal, a TV Câmara é estatal. O problema é que, na Radiobrás, a Presidência da

República decide quem é o Conselho de Administração, que é um órgão obrigatório em

toda estatal.

Pergunta – Esse Conselho tem mandato?

Bucci – O Conselho tem mandato. Mas o real poder de gestão é do Conselho de

Administração e a equipe é designada pelo governo, com mandato – e essa é uma

inovação que não havia antes – mas é uma empresa inteiramente dependente em mais de

um sentido – não apenas econômico – do governo federal. Hierarquicamente,

culturalmente...

E o programa Voz do Brasil é “do” governo federal. A relaçao com o governo é quase de

uma prestaçao de serviço; o “cliente” é o governo, ainda que formalmente nao seja assim,

é isso que acontece: o cliente é o governo federal. Aquele é um horário “do” governo

federal, assim como existe uma parte do horário, depois, do Poder Legislativo e os

minutos do Poder Judiciário. A Voz do Brasil, portanto, é um programa do Poder

Executivo, não é a Radiobrás que faz aquilo, é uma atividade do governo – a Radiobrás

presta um serviço para o governo.

141

Pergunta – O que fazer com isso?

Bucci – A Voz do Brasil poderia até continuar, mas ele não poderia jamais ser

obrigatória. A obrigatoriedade acaba com a autoridade natural, com a autoridade moral

que ela poderia ter, e ela não teria de ter tudo isso de duração. Aquilo foi pensado num

mundo, nos anos 30, em que o Brasil era integrado pelas emissoras de rádio. E naquele

tempo as rádios comerciais eram fraquíssimas, as emissoras surgiram como rádio-clube,

rádios mais ou menos comunitárias, e aquilo era do governo, tudo era do governo. Era o

jeito de você integrar o país. Às sete horas da noite era o horário nobre do rádio, o rádio

reinava, o Estado era autoritário, era um mundo completamente diferente.

Todas aquelas condições que tornavam a Voz do Brasil compreensível, ainda que

inaceitável, desapareceram. Hoje, além de inaceitável, a Voz do Brasil é incompreensível.

Incompreensível do ponto de vista ético, do ponto de vista funcional, do ponto de vista

institucional, e também incompreensível do ponto de vista discursivo, pois as pessoas não

entendem o que eles falam.

Eu não sei se o cenário é de se pensar uma comunicação pública com a Voz do Brasil. Ela

tem que desaparecer. Ou fica. É um programa que quem quiser usa, quem não quiser não

usa. A Voz do Brasil não serve para nada. Só serve para deixar a autoridade contente. E

qual autoridade fica mais contente? É o baixo clero. Por isso aquilo é irrevogável.

Pergunta – Como foi criada a missão da Radiobrás?

Bucci – A Radiobrás fazia proselitismo abertamente, e era usada pessoalmente pelo poder

em caráter pessoal. Um caso exemplar é as câmeras da Radiobrás gravando as festas da

dona Dulce Figueiredo, que não tinha nenhum interesse público, nenhuma função

pública. Assim como existia a cozinha, a piscina do Palácio do Planalto, existia a

Radiobrás, e era a agência de fotografia do governante, uma história espantosa.

Ora, esse uso [da coisa pública] não encontra justificativa em nenhum lugar. Então o

nosso truque foi: a lei não diz que é para fazer isso; a lei não diz que é para fazer

publicidade do governo; a lei não diz que é para ser porta-voz do governo; a lei não diz

que é para fazer assessoria de imprensa ou relações públicas. A lei diz que ela tem que

explorar emissoras de rádio – e o que define o papel das emissoras de rádio está na

Constituição, que não diz isso. Então, não temos que fazer o que a lei não diz que nós

temos que fazer.

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Eu falei: o uso que está sendo dado não encontra amparo na lei. Então eu usei leis – às

vezes até a ditadura – para afirmar o princípio da impessoalidade. Isso aqui tem que ser

de interesse público, assim como uma escola tem que ser de interesse público, um

hospital tem que ser de interesse público, qualquer instituição pública tem que ser de

interesse público e não pode fazer propaganda pessoal.

Isso instaurou ali dentro uma zona de conflito, que foi terrível, e que só poderia terminar

da forma como terminou.

Pergunta – Mas o Sr. saiu da Radiobrás em 2007 e as diretrizes definidas em sua gestão

não foram revogadas, certo?

Bucci – Nada, é uma coisa incrível. A abertura da Voz do Brasil até hoje é a mesma, que

nós fizemos. Os marcos ficaram lá. E até recentemente – eu estive lá em algumas

ocasiões –, as balizas eram basicamente essas. Se tentou ir mais longe – e eu acredito que

tentaram mesmo.

Pergunta – Então por que o projeto não avançou?

Bucci – A Radiobrás tem sido pensada como uma extensão do aparato de comunicação

do partido / governo. Isso aparece naquele documento da Secom que vazou no começo do

ano (2015); aquilo é uma confissão de um modo de pensar e está tudo ali. Ou seja: a Voz

do Brasil, a propaganda, os blogueiros progressistas – conceito que apareceu

recentemente –, sao “armas” ou uma estratégia militar que você aciona num momento ou

no outro. É assim que ela é pensada.76

Pergunta – E o Sr. já disse em outra oportunidade que isso não é coisa de um partido

específico...

Bucci – Não é coisa de um partido: é uma unanimidade suprapartidária. Nunca ninguém

chegou no governo e fez alguma coisa diferente. E não acredito que vá mudar agora.

Acho que é uma agenda que vai crescer. É um dos sintomas ou uma das evidências

ultrajantes do atraso brasileiro. É um tremendo de um atraso você ter na televisão um

governo gastando rios de dinheiro – no [livro] O Estado de Narciso eu levanto algumas

76 Documento vazado à imprensa em março de 2015, intitulado “Onde estamos”, supostamente de autoria

do então titular da Secom, Thomas Traumann. Disponível em

<https://drive.google.com/file/d/0B7o7oCE5m YbIanZsYjN3eXg5MWs/view?pli=1>. Acesso em 31 mar

2015.

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dessas cifras – para falar que o governo é legal e que se preocupa com as crianças, com os

aposentados, com os trabalhadores. Isso tinha de ser interrompido, isso é uma distorção

que afeta a reprodução do poder, e conspira contra a alternância do poder.

Pergunta – Quando chegou à Radiobrás em 2003, o Sr. tinha esperança de mudar esse

quadro?

Bucci – Eu tinha a esperança. Mas foi-se desenhando no horizonte um desencanto muito

grande, não é um vexame menor o que vem por aí, mas eu achava que havia jeito de dar

uma nivelada por cima na vida institucional e me cabia ajudar parte da comunicação. Eu

acreditava que a gente poderia fazer mais do que fez, mas a agenda não era aquela, e não

deu certo. Alguma coisa, você mesmo constatou, vai ficando; um pouco da cultura a

gente conseguiu mudar – tanto que não teve uma regressão, mas é difícil. Eu acho que

isso vai vir numa outra onda, em outro momento. Parece que algumas manifestações,

algumas correntes de manifestantes contra o governo têm uma proposta de extinção da

publicidade governamental. Eu acho boa essa ideia, porque o Estado não tem necessidade

de se comunicar; o Estado e o governo têm o dever prestar contas, mas devem de prestar

contas para a sociedade; quem faz propaganda de uma causa é o partido. E essa separação

é fundamental para o funcionamento da democracia, porque se o Estado vira um partido,

o resultado é desastroso – temos tantos exemplos – o Estado não tem que ditar o modo de

vida, é uma coisa tão simples, tão básica, mas aqui nós estamos fazendo o contrário.

Ainda.

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Impresso na Alphagraphics Faria Lima – SP, em outubro de 2015, em papel sulfite A4 produzido

com fibras de celulose de eucalipto, plantado em áreas de reflorestamento.