trajetória acadêmica e satisfação com a escolha profissional de universitários em meio de curso

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Trajetória Acadêmica e Satisfação com a Escolha Profissional de Universitários em Meio de Curso Marúcia Patta Bardagi * 1 2 ; Maria Célia Pacheco Lassance ** ; Ângela Carina Paradiso *** Universidade Federal do Rio Grande do Sul RESUMO Apesar da importância da formação superior para o desenvolvimento vocacional, existem poucas informações sobre características e necessidades dos universitários brasileiros. Este trabalho investigou trajetórias acadêmicas, satisfação com a escolha profissional e expectativas quanto à orientação profissional em 391 estudantes de ambos os sexos (M= 23,6 anos), de semestres intermediários em 16 cursos universitários da UFRGS. Um questionário de 13 itens foi elaborado e validado para o estudo. Os dados foram submetidos a análises quantitativas e qualitativas. A maioria dos alunos mostrou-se satisfeita (56%) ou muito satisfeita (32,2%) com a escolha profissional; 42,7% pensaram em desistir ou mudar de profissão; e 15,9% ainda pensam nisso; 59,3% dos alunos acreditam poder se beneficiar de processos de orientação profissional. Participação em atividades acadêmicas e identificação com a profissão mostraram-se importantes para a satisfação com a escolha. Implicações para futuras intervenções e para o desenvolvimento vocacional são discutidas ao final do estudo. Palavras-chave: Escolha profissional, Orientação profissional, Trajetória acadêmica. Podemos definir a escolha profissional como o estabelecimento do que fazer, de quem ser e a que lugar pertencer no mundo através do trabalho (Bohoslavsky, 1977). A formação da identidade profissional complementa a identidade pessoal e contribui para a integração da personalidade, sendo que uma boa escolha é avaliada pela forma como é tomada e pelas conseqüências cognitivas e afetivas que produz. A escolha envolve mudanças, perdas, medo do fracasso e da desvalorização (Veinstein, 1994), supõe a elaboração de lutos e conflitos consigo mesmo e com outros significativos (Bohoslavsky, 1977) e requer reavaliações constantes. Embora o futuro de um indivíduo não dependa exclusivamente de sua opção profissional e mesmo sabendo que esta opção pode ser modificada, as questões vocacionais têm se tornado cada vez mais importantes para as pessoas. Nesse sentido, a problemática vocacional e suas conseqüentes derivações teórico-metodológicas assumem, também, um papel importante na pesquisa psicológica contemporânea.

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discussão sobre escolha profissional

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Trajetria Acadmica e Satisfao com a Escolha Profissional de Universitrios em Meio de Curso

Trajetria Acadmica e Satisfao com a Escolha Profissional de Universitrios em Meio de CursoMarcia Patta Bardagi* 1 2; Maria Clia Pacheco Lassance**; ngela Carina Paradiso***Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMOApesar da importncia da formao superior para o desenvolvimento vocacional, existem poucas informaes sobre caractersticas e necessidades dos universitrios brasileiros. Este trabalho investigou trajetrias acadmicas, satisfao com a escolha profissional e expectativas quanto orientao profissional em 391 estudantes de ambos os sexos (M= 23,6 anos), de semestres intermedirios em 16 cursos universitrios da UFRGS. Um questionrio de 13 itens foi elaborado e validado para o estudo. Os dados foram submetidos a anlises quantitativas e qualitativas. A maioria dos alunos mostrou-se satisfeita (56%) ou muito satisfeita (32,2%) com a escolha profissional; 42,7% pensaram em desistir ou mudar de profisso; e 15,9% ainda pensam nisso; 59,3% dos alunos acreditam poder se beneficiar de processos de orientao profissional. Participao em atividades acadmicas e identificao com a profisso mostraram-se importantes para a satisfao com a escolha. Implicaes para futuras intervenes e para o desenvolvimento vocacional so discutidas ao final do estudo.Palavras-chave: Escolha profissional, Orientao profissional, Trajetria acadmica.

Podemos definir a escolha profissional como o estabelecimento do que fazer, de quem ser e a que lugar pertencer no mundo atravs do trabalho (Bohoslavsky, 1977). A formao da identidade profissional complementa a identidade pessoal e contribui para a integrao da personalidade, sendo que uma boa escolha avaliada pela forma como tomada e pelas conseqncias cognitivas e afetivas que produz. A escolha envolve mudanas, perdas, medo do fracasso e da desvalorizao (Veinstein, 1994), supe a elaborao de lutos e conflitos consigo mesmo e com outros significativos (Bohoslavsky, 1977) e requer reavaliaes constantes. Embora o futuro de um indivduo no dependa exclusivamente de sua opo profissional e mesmo sabendo que esta opo pode ser modificada, as questes vocacionais tm se tornado cada vez mais importantes para as pessoas. Nesse sentido, a problemtica vocacional e suas conseqentes derivaes terico-metodolgicas assumem, tambm, um papel importante na pesquisa psicolgica contempornea.A maioria das pessoas pode realizar escolhas de carreira conhecendo muito pouco sobre a totalidade das implicaes das mesmas em termos de tarefas, dificuldades e responsabilidades. No existe uma preocupao sistemtica da escola ou da famlia em ensinar a filhos ou alunos habilidades de tomada de deciso. Nesse sentido, Mller (1988) salienta que a escola, por exemplo, no ensina a escolher, a pensar, a resolver conflitos, a refletir sobre as realidades: social, cultural, histrica e profissional; se o faz, isso acontece de forma ocasional e desarticulada. A ausncia destas oportunidades ao longo do desenvolvimento vocacional, principalmente na adolescncia, pode resultar em imaturidade e insegurana nos jovens e adultos em perodos posteriores da vida profissional, muitas vezes incapacitando-os para a formulao de projetos profissionais consistentes.O desenvolvimento vocacional pode ser caracterizado como um processo que ocorre ao longo da vida do indivduo (Osipow, 1999; Savickas, 1995; Super, 1963, citado por Brown & Brooks, 1996). Decises, mudanas e dvidas vocacionais aparecem no somente no momento da adolescncia, sendo cada vez maior o nmero de pessoas colocadas em vrios pontos do desenvolvimento vocacional que buscam auxlio ou simplesmente desafiam os tcnicos da orientao profissional a elaborarem novos modelos explicativos e mtodos de ao (Prenh, 1997; Teixeira, 1998). Osipow (1999), pesquisador do tema indeciso profissional, aponta que esta, originalmente focada na questo da escolha de adolescentes, agora engloba um espectro maior da vida por causa da crescente freqncia de eventos que exigem que as pessoas reavaliem suas decises de carreira ao longo do tempo. Dvidas e incertezas passam a ser encaradas, ento, como estados que vm e vo constantemente.Rivas (1988) observa que mesmo sendo a escolha profissional um ponto comum do desenvolvimento vocacional dos indivduos, que so, em algum momento, solicitados a optar por um entre diferentes caminhos profissionais, isso no significa que esta situao tenha o mesmo significado para todos. Enquanto para muitos as decises e mudanas profissionais so vividas de forma mais tranqila, para outros muito difcil tanto se comprometer com escolhas profissionais (Hall, 1992), quanto enfrentar perodos de mudana e indeciso.O perodo da formao universitria, por exemplo, tem imposto muitas questes aos tericos e tcnicos da orientao profissional. Tradicionalmente, este um perodo de reativao das crises vocacionais (Bohoslavsky, 1977), de confrontao com a realidade ocupacional e de afirmao da escolha feita. Taylor (1982) descreve um aumento da incidncia de indeciso vocacional de estudantes universitrios desde o final da dcada de 70, sendo que este pblico se tornou a maioria da clientela dos centros de aconselhamento universitrio americanos. Uma anlise dos relatrios de exames vestibulares da UFRGS e UFSC no incio da dcada de 90 mostrou que cerca de 30% dos vestibulandos afirmaram j ter prestado vestibular para outro curso anteriormente, cerca de 40% dos jovens que entram na universidade anualmente no chegam a concluir seus cursos e apenas 16 a 19% dos jovens afirmaram estar fazendo a inscrio para o vestibular no curso desejado (Lucchiari, 1992). Ao investigarem jovens aprovados no vestibular da UFSC em 1997, Hotza e Lucchiari (1998) observaram que cerca de 25% dos aprovados j haviam iniciado outro curso superior anteriormente, sem conclu-lo.Em uma pesquisa longitudinal realizada com alunos da UFRGS desde seu ingresso no curso at a proximidade da formatura, Lassance (1997) descreveu a existncia de fases distintas na relao entre o aluno, a escolha e o curso. A primeira fase seria de entusiasmo pela vitria no vestibular, o ingresso na universidade e a expectativa com o incio da formao. A fase seguinte marca a decepo com o curso, os professores, a instituio, as condies de aprendizagem e inclui preocupaes com uma possvel re-escolha profissional. O terceiro momento mostra um aumento pelo interesse na continuidade do curso. Nesta fase, o engajamento em atividades acadmicas fundamental para a satisfao e o comprometimento. O quarto e ltimo momento observado caracteriza-se pela proximidade com o trmino do curso. A qualidade das atividades exercidas e a avaliao da formao produzem, nessa fase, as expectativas para o incio da atividade profissional. Um estudo americano, realizado com 165 formandos de 35 reas diferentes confirmou a importncia do envolvimento em atividades acadmicas, mostrando que a realizao de estgios, acompanhados ou no de trabalho na rea, aumenta a cristalizao da escolha (Brooks, Cornelius, Greenfield & Joseph, 1995).Outra dimenso importante para o entendimento do desenvolvimento vocacional, alm da dimenso individual, diz respeito s mudanas produtivas e sociais ocorridas nas ltimas dcadas e seu impacto sobre as escolhas de carreira. A principal caracterstica do trabalho na ps-modernidade a instabilidade, a incerteza quanto ao futuro (Cattani, 1996). Observa-se uma ansiedade generalizada dos profissionais inseridos no mercado, relativa busca de emprego, busca de qualificao e afirmao de projetos e estratgias de carreira. Esta ansiedade assumida tambm pelos estudantes em formao, que reproduzem j na universidade as preocupaes e inseguranas dos profissionais em atividade. Prado Filho (1992) caracteriza o desajustamento profissional como um fator epidmico no universo produtivo atual. Este desajustamento refere-se tanto s prprias dificuldades econmicas, sociais e administrativas quanto sobreposio destas dificuldades em relao ao desenvolvimento vocacional individual.H na literatura, alm de estudos com amostras universitrias, registros de alguns programas de interveno com esta populao, a maior parte deles em projetos das prprias universidades, o que demonstra um aumento da preocupao institucional com as questes vocacionais (Bohoslavsky, 1983; Pacheco, Silva, Macedo, & Pinto, 1997; Rivas, 1988). Rivas (1988), a partir de uma experincia com assessoramento na Universidade de Valncia (Espanha), apontou as principais razes descritas pelos alunos para participarem do programa: ter mais informaes sobre as possibilidades profissionais (81,6%); confrontar planos profissionais com um profissional psiclogo (41%); esclarecer dvidas sobre carreiras e reas (40%); curiosidade sobre o processo (26%); medo de tomar decises (24%); confirmar uma escolha (20%) e estar totalmente indeciso (10%). Bohoslavsky (1983) descreve detalhadamente a experincia com um programa de trabalho com os dez mil alunos da Universidade Nacional de Buenos Aires. Este trabalho teve como objetivos principais ajudar o estudante a tomar conscincia dos reais motivos de sua escolha e sua articulao ou contradio com os projetos do curso no qual entrava; oferecer informao exaustiva e verdadeira sobre os cursos, sua situao atual, seus programas, critrios, contedo e objetivos, campo de trabalho e oferecer aos alunos um contexto de reflexo acerca do projeto profissional.Estes estudos indicam que o trabalho com universitrios deve priorizar a anlise dos critrios utilizados na primeira escolha, suas influncias e a forma como foi feita (Soares, 2000), alm de incorporar processos de informao e esclarecer os motivos da insatisfao atual. Galotti (1999) salienta que educadores e psiclogos precisam ajudar as pessoas a se sentirem mais confortveis para enfrentarem processos que envolvem ambigidade e dvida, e que requerem um investimento de tempo e esforo grandes, como so os processos de deciso e mudana vocacional.Embora estes estudos iniciem discusses importantes e sugestes de interveno prprias para estudantes universitrios, ainda se observa, na rea do desenvolvimento vocacional no Brasil, uma lacuna de informaes a respeito desta populao. A maioria dos estudos nacionais concentra-se em amostras adolescentes, ou aborda questes relativas entrada no mercado de trabalho ou, ainda, conflitos de indivduos j inseridos na esfera produtiva. Estudantes universitrios, principalmente aqueles no perodo intermedirio da formao, carecem de estudos que forneam subsdios maiores para compreenso de sua problemtica vocacional especfica e para elaborao de propostas de interveno consistentes com suas necessidades.Com os objetivos de fornecer maiores informaes para o entendimento da problemtica vocacional dos estudantes universitrios em meio de curso e investigar aspectos relevantes a serem considerados na formulao de propostas de interveno com esta populao, este estudo realizou um levantamento exploratrio acerca de caractersticas relativas trajetria acadmica, nvel de satisfao com a escolha profissional e demandas de interveno em uma amostra de estudantes universitrios gachos.MTODOParticipantesParticiparam deste estudo 391 estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS )de ambos os sexos (55,9% homens e 44,1% mulheres), cursando os semestres intermedirios de 16 cursos das 4 reas de formao da universidade. Os alunos, com idades entre 18 e 64 anos (M = 23,6 anos; DP= 5,54 anos), cursavam regularmente as disciplinas do 4, 5 ou 6 semestres de seus cursos poca do estudo. Quanto s reas de formao, 44,2% dos alunos eram da rea de Humanas, 28,9% da rea de Biolgicas, 16,4% da rea de Exatas e 10,5% da rea de Letras e Artes.InstrumentoPara a realizao deste estudo foi desenvolvido um questionrio semi-estruturado composto por 13 itens. Estes itens referem-se a questes scio-demogrficas, trajetria acadmica, participao em atividades acadmicas, nvel de satisfao com a escolha profissional e interesse por processos de Orientao Profissional. Profissionais que atuam na rea da orientao profissional serviram como juzes para assegurar a validade aparente do instrumento. Um estudo piloto foi realizado com uma amostra (no includa na amostra final) de 61 estudantes de dois cursos da universidade, permitindo a depurao dos itens do questionrio e a definio dos procedimentos de rapport e aplicao. Aps anlise semntica (Pasquali, 1999), alguns itens de pouca compreenso por parte dos estudantes foram retirados da verso final do questionrio.ProcedimentoFoi realizada aplicao coletiva do instrumento em sala de aula. Inicialmente, foram feitos contatos com as direes dos respectivos institutos e/ou departamentos da universidade e foi marcado diretamente com os professores o momento da aplicao. Cada aplicao foi precedida de uma breve explicao dos objetivos do estudo e foram disponibilizadas aos alunos informaes e encaminhamentos, quando necessrio. A participao dos estudantes foi voluntria, num ndice de 91% de aquiescncia.RESULTADOSOs dados coletados foram submetidos, num primeiro momento, a anlises estatsticas descritivas e inferenciais, utilizando principalmente testes de associao qui-quadrado com anlise de resduos ajustados e regresso logstica (a fim de determinar os principais preditores do nvel de satisfao com a escolha profissional). Num segundo momento, foi realizada anlise de contedo (Bardin, 1977) das respostas discursivas, onde categorias emergentes no exclusivas foram obtidas a partir da anlise destas respostas. A Tabela 1 mostra alguns resultados quanto trajetria e envolvimento em atividades acadmicas e o nvel de satisfao com a escolha profissional. Observa-se que a maioria dos alunos refere estar satisfeita ou muito satisfeita com sua escolha profissionalTabela 1Respostas Relativas Trajetria Acadmica e Satisfao Profissional

* possvel participar de mais de uma atividadeMuitos estudantes relatam estarem envolvidos com outras atividades remuneradas (41,5%). Dentre estes, somente 25,6% esto envolvidos com atividades relacionadas ao curso em que esto. Alunos da rea de Letras e Artes possuem mais freqentemente outras atividades remuneradas do que alunos de outras reas (X2 =18,9; g.l=3; p