trajano, wilson filho_ que barulho é esse, o dos pós-modernos

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Pós-Modernos.

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  • Que Barulho Esse, o Dos Ps-Modernos?

    WILSON TRAJANO FILH01

    Desde a institucionalizao da antropologia nas universidades britnicas e americanas na virada do sculo tem-se buscado urna metfora, urna pala- vra-chave que sintetize tanto o fazer antropolgico quanto seu objeto de estudo: sociedade e cultura. Poucos exemplos so aqui suficientes, no obstante a extenso da lista: sociedade como organismo vivo (Radcliffe-Brown), antropologia como traduo (Evans-Pritchard), cultura como o superorgnico (Kroeber), cultura como texto e antropologia como interpretao (Geertz). Tal lista sugere, por sua diversidade, o paradoxo de ser o fazer antropolgico saudavelmente dinmico, mas caracterizado por uma multiplicidade de abordagens e perspectivas nem sempre complementares, experienciando uma espalhada sensao de crise permanente. Recentemente uma das linhas de frente do debate antropolgico, aquela conduzida pela federao interpretativa americana, tem proposto uma srie de novas metforas para a antropologia: dilogo, polifonia, evocao . . . Tais metforas assim como a federao que as prope esto presentes no volume Writing Culture editado por James Clifford e George Marcus.* Trata-se de uma coletnea de ensaios, apresentados originalmente num seminrio em Santa F, cujo tema central gira em torno do escrever etnogrfico. Seus atores so James Clifford, Mary Louise Pratt, Vincent Crapanzano, Renato Rosaldo, Stephen Tyler, Talal Asad, George Marcus, Michael Fischer e Paul Rabinow. Para quem no est familiarizado com esta troupe antropolgica dou c uma pequena mas vital informao: com ex

    1. Durante a elaborao desta resenha, o autor era bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq).

    * CLIFFORD, James e George E. MARCUS (orgs.). Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986, 305 pp.

    Anurio Antropolgico/86Editora Universidade de Braslia/Tempo Brasileiro, 1988

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    ceo de Talai Asad, que atua como astro-convidado da tradio britnica, de Mary Pratt, vinda da teoria literria e de Stephen Tyler, um renegado da finada etnocincia, todos os outros autores se ligam direta ou indiretamente figura de Clifford Geertz.

    No ensaio introdutrio Clifford afirma que no h a pretenso, por parte deste grupo de autores, de se constituir como uma escola ou mesmo uma tendncia (1986:4). De fato, apesar de Writing Culture ser uma espcie de variao sobre alguns temas constantes, a forma de abord-los relativamente diferenciada e internamente desigual. Por outro lado, os constantes dilogos e referncias - implcitas e explcitas - a Geertz (ver o ensaio de Rabinow:242) parecem sugerir ser este grupo parte integrante de uma frente interpretativa que envolve, entre outros, filsofos, historiadores e crticos da cultura, e que tem, na sua vertente antropolgica, Geertz como cabea de linhagem. Parece se aplicar bem aqui uma outra metfora: antropologia como estrutura segmentria (Sindzingre, 1986). A vertente antropolgica da federao interpretativa afirma-se enquanto tal atravs de sua oposio a outras vertentes antropolgicas de outras federaes (a materialista, a estruturalista, etc.) e atravs de oposies internas que a organizam.

    Duas perguntas se mostram como bvias aqui; como se constituem, a nvel terico, as oposies entre o cl interpretativo e os outros cls? Quais so as oposies significativas no interior do cl interpretativo? Respostas a estas questes, no espao de uma resenha, sero sempre incompletas e superficiais. No entanto, me atrevo e as esboo: o cl interpretativo se distancia dos outros pelas crticas que faz ao positivismo cientfico, s diversas formas de reducionismo e ao empiricismo ingnuo, e pela defesa de urna postura humanista para o fazer antropolgico e do carter provisrio e parcial de toda anlise cultural. Quanto s oposies internas que o segmentam, creio que a mais significativa aquela que, pela crtica da representao, faz surgir urna noo mais sofisticada de texto em oposio ao texto de Geertz. exatamente a partir de uma elaborao crtica da noo de cultura como texto que temas tais como a autoridade cientfica e etnogrfica, a crise da representao, recursos retricos e fazer etnogrfico, dilogo e polifonia, poder e dominao, entre outros, so objetos de reflexo em Writing Culture.

    Tendo, pois, iniciado substantivamente a leitura do livro atravs da identificao de seus temas principais e de sua localizao no debate entre as escolas, devo agora ser cauteloso acerca dos rumos a tomar. Primeiro, devo fazer justia ao livro. Trata-se de uma coletnea importante e provocativa que recupera o fazer textos como uma dimenso esquecida no debate antropol-

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    gico. Porm, mais do que recuperar esta dimenso, o livro denuncia e critica a ideologia da transparncia da representao e da imediaticidade da experincia cujas conseqncias, entre outras, so reduzir o fazer etnogrfico a uma simples questo de mtodo e criar um modo de autoridade etnogrfico que pretende ser factual e incontestvel, quando na realidade puramente retrico. Alm disto, Writing Culture saudavelmente advoga uma concepo abrangente para a etnografa, uma dimenso tica para o fazer antropolgico e uma nfase nas instncias especficas do discurso, em vez do foco na representao do mundo. Finalmente, o livro incentiva a experimentao na construo das etnografas, propondo o modelo do dilogo que sempre conduz explicitao das diversas vozes que falam e do contexto das falas.

    Contudo, a riqueza e a importncia de uma obra esto intimamente associadas conscincia de seus limites, e estes, em Writing Culture, no so to largos quanto pensam os seus autores. No que se segue farei uma resenha breve de cada um dos ensaios, apontando para o que acredito ser contradies, deficincias e mal-entendidos. Ao final elaborarei uma crtica externa, mas no sistemtica, apontando para os limites do livro.

    Leio Writing Culture como uma coletnea que se organiza em quatro sees bsicas. A primeira seo constituda pelos ensaios de Pratt, Crapan- zano e Rosaldo. Nela, os autores buscam denunciar e desmistificar o estilo realista das etnografas clssicas, focalizando temas como a constituio da autoridade do autor da etnografa e os recursos estilsticos utilizados para tal. O segundo grupo formado pelos ensaios de Clifford e Tyler, os quais se caracterizam por uma reflexo sobre as possibilidades e os limites do conhecimento antropolgico contemporneo e por sugestes de carter mais geral e terico para o alargamento destes limites. Os ensaios de Marcus e Fischer compem a terceira seo, que dedicada ao exame de formas concretas e existentes de experimentao em etnografa. Finalmente, os ensaios de Asad e Rabinow e as concluses de Marcus apontam para o tema mais sociolgico da relao entre o experimentalismo e as condies de poder e dominao. Nisto minha leitura est bastante prxima da dos editores do livro, com exceo do ensaio de Asad, que vejo como parte integrante da seo final cujo tema o poder, enquanto os editores provavelmente o localizariam na primeira seo. Por fim, devo advertir que muitas das minhas qualificaes e crticas no so textuais, mas sim baseadas no que os diversos ensaios evocam. Afinal, trata-se de uma coletnea de ensaios, uma forma que tipicamente evocativa.

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    O ensaio de Mary Louise Pratt, Fieldwork in Common Places", dedicado ao exame de como narrativas pessoais e descries impessoais se articulam nos textos etnogrficos. Atravs da leitura de crnicas de viagem (Sta- den, Burton e outras) e de etnografas clssicas (Nuer, Tikopia e outras), mostrando certas similaridades estilsticas entre elas, Pratt argumenta que a articulao de narrativas pessoais com descries impessoais objetivantes sempre foi uma prtica em uso nas crnicas de viagem, no sendo, portanto, uma inveno dos etngrafos clssicos. Da, prossegue ela, ser falso, pelo menos a nvel do texto, estabelecer uma ruptura e uma descontinuidade entre estes dois gneros. Pratt ainda detecta uma assimetria na articulao narra- o-descrio nas etnografas. Ao contrrio das crnicas de viagem, onde os dois modos tm aproximadamente a mesma importncia, quando no o caso da narrativa ser mais valorizada do que a discusso, as regras da conveno etnogrfica colocam sempre a narrao como subordinada, confiando-a aos reduzidos espaos das introdues e prefcios. Nestes reduzidos espaos, a figura do pesquisador de campo mistificada, questionada e ironizada, mas sempre de modo implcito. Como Pratt diz: nunca se toca na inexplicabilidade e injustificabilidade da presena do etngrafo segundo a perspectiva nativa (:42). A coexistncia, embora assimtrica, de narrativa e descrio no texto etnogrfico explicitada ento como uma forma de mediar a contradio que existe no interior da disciplina entre autoridade pessoal e autoridade cientfica, entre a prtica subjetivante e a objetivante (ver tambm o ensaio de Clifford: 109).

    Pratt examina ainda a etnografia de Shostak, Nisa: The Life and Words of a IKung Woman, como uma experiencia bem-sucedida de fundir estas duas prticas. A questo da autoridade etnogrfica apenas denunciada, mas nunca elaborada em profundidade. injusto criticar em um texto aquilo que ele no se prope a desvendar. Porm, a questo da autoridade etnogrfica seria melhor compreendida se no fosse uma equao mal articulada por Pratt. Afirmar a continuidade entre a etnografia e as crnicas de viagem somente pelas semelhanas entre os dois gneros no que se refere articulao de narrativa e descrio um movimento lgico com poucos fundamentos. Tomar a cena de chegada de Firth entre os Tikopia e compar-la com a chegada de Bougainville ao Taiti d um certo poder de convencimento ao seu argumento, mas este basicamente retrico. Pratt muito feliz nos seus exemplos, mas mesmo correndo o risco de ser taxado de positivista, por usar o argumento bsico da falsificabilidade, lembro de memria que no existem cenas de chegada em outras tantas etnografas clssicas como a de Fortes en-

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    tre os Tallensi, a de Turner entre os Ndembu, a de Gluckman entre os Barot- se, etc. Este meu argumento no falsifica o de Pratt, mas no mnimo sugere a necessidade de certas qualificaes. H ainda uma questo de nivel mais ge- ral que est implicada no argumento de Pratt sobre a no-descontinuidade entre etnografa e crnicas de vlagem. Esta questo, tpica da problemtica identidade/diferena, refere-se concepo do que vem a ser etnografa. Mais detalhes na ltima parte desta resenha.

    O segundo ensaio d continuidade ao tema geral discutido por Pratt: o texto de Vincent Crapanzano, HermesDilemma: The Masking of Subven- sion in Ethnographic Description. Comparando o etngrafo ao deus grego Hermes - o mensageiro que d sentido ao seu sentido - Crapanzano nota que eles dividem o mesmo problema: tornar seus textos convincentes. A diferena que Hermes fez a promessa de jamais mentir, sem que isto signifique contar toda a verdade, enquanto o etngrafo, pelo menos na verso clssico- realista, parece que no chegou a perceber o verdadeiro contedo desta promessa. Esta questo da parcialidade e da provisoriedade da interpretao cultural leva Crapanzano a discutir as estratgias empregadas pelos etngrafos para convencer os leitores e, provavelmente a eles mesmos, da preciso e da verdade de suas descries, o lugar do etngrafo no texto etnogrfico e a construo de sua autoridade atravs de artifcios retricos. Tal exame feito atravs da leitura dos textos de Catlln (um pintor americano do sculo passado) sobre uma cerimnia dos ndios Mandan, de Goethe sobre o carnaval romano e de Geertz sobre a briga de galos. Novamente vale chamar a ateno para a definio implcita de etnografa.

    Crapanzano lista os elementos que constituem a autoridade do etngrafo: sua presena nos eventos descritos, sua capacidade perceptiva, sua perspectiva desinteressada, sua objetividade e sua sinceridade (:53). Contudo, ele nota que a constituio da autoridade apenas uma das estratgias de que o etngrafo lana mo para tornar seu texto convincente. Alm desta, ele se utiliza de figuras retricas especficas. Sua leitura dos trs autores internamente convincente e sua concluso que os dispositivos retricos usados para convencer os leitores acerca de suas descries acabam por tornar as ltimas suspeitas (:53). Assim, a figura da hipotipose no texto de Catlin impossibilita o realismo pretendido, pois este ltimo requer uma certa sobriedade estilstica. Goethe, atravs do uso de demonstrativos diretos, apela aos leitores para se juntarem a ele, mas no os participantes do carnaval romano. O contato de entrada da briga de galos de Geertz d a iluso de especificidade, de uma briga particular, quando no h, na realidade, nenhuma perspectiva

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    especifica. Tudo que h a autoridade construda a partir da declarao estive l , declarao que no se faz mais ouvir aps o conto de entrada. Isto se explica pelo ato de ser a presena do etngrafo nos trs textos meramente uma presena retrica, uma presena que subverte os eventos descritos pela via da mscara da autoridade do etngrafo/autor que se localiza acima e atrs daqueles cuja experincia deveria ser descrita (:76).

    O ensaio de Crapanzano lcido e rico em detalhes de anlise. Mas no consigo evitar uma suspeita, uma indagao e uma admirao. Minha suspeita de que a estratgia adotada por Crapanzano, em suma a mesma de Pratt, no permitiria generalizar, como ele faz, sobre as formas de tornar um texto convincente. Da vou um pouco mais longe especulando se a definio ampla do que etnografa no teria facilitado tal generalizao. Afinal, os trs autores examinados por Crapanzano so antes de mais nada bons escritores que tratam o idioma literariamente. Minha indagao: se a interpretao cultural provisria e parcial, como ento resolver problemas de verificao e julgamento, se que tais problemas so significativos neste contexto em que as verdades so parciais. Crapanzano no trata desta problemtica e nem estou eu a cobrar dele qualquer resposta. Seria injusto. Porm, esta uma problemtica que no enfrentada em Writing Culture, embora esteja sempre se fazendo presente pela ausncia.2 Finalmente, fico admirado pelo fato de Crapanzano ser mais critico de Geertz do que de Catlin e Goethe, quando seria de esperar o contrrio. Por qu? Por razes sociolgicas ou psicolgicas? Ensaio uma resposta no devido momento.

    O ensaio From the Door of His Tent: The Fieldworker and the inquisitor, de Renato Rosaldo, d continuidade crtica aos cnones tradicionais do escrever etnogrfico atravs da leitura de dois textos etnogrficos: Montaillou de Ladurie e, mais uma vez, Os Nuer de Evans-Pritchard.

    O livro de Ladurie analisa a vida em uma aldeia francesa no sculo XVI atravs dos registros deixados pelo inquisidor bispo Jacques Fournier. Isto fornece a Rosaldo o pretexto para uma infeliz, mas oportuna, no contexto do livro, comparao entre o etngrafo, enquanto pesquisador de campo, e o inquisidor. Infeliz porque os termos esto invertidos. No caso em questo o inquisidor que se assemelha ao pesquisador de campo. Como no se trata de uma relao de identidade, a ordem dos termos de muita importncia. Por

    2. Exce&o a introduo de Clifford, onde tal questo mencionada e logo a seguir abandonada (op. cit: 25). Taylor, 1979 discute tal problemtica segundo a mesma perspectiva interpretativa

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    outro lado, uma comparao oportuna porque vai articular a prtica da pesquisa de campo (a do inquisidor bvia) com as relaes de poder e dominao. Apesar da incontestabilidade de suas concluses-denncias, a associao do pesquisador de campo com as relaes de poder e dominao merece algumas qualificaes que evitem mal-entendidos e reducionismos. muito simplista afirmar como Rosaldo o faz que: a seo introdutria de Os Nuer se assemelha com a de Montaillou pois realiza o trabalho de separar retoricamente o contexto da dominao colonial da produo do saber etnogrfico" (:93). Alm desta sentena ser ambigua, dando a impresso de que os aldees franceses do sculo XIV viviam uma situao de dominao colonial, acontece de novo uma inverso: na realidade, Montaillou que se assemelha aos Nuer.

    A forma como Rosaldo discute o tema da autoridade etnogrfica acrescenta algo s discusses de Crapanzano e Pratt. Como estes dois ltimos, Rosaldo afirma que um dos elementos constitutivos da autoridade a presena do pesquisador de campo nos eventos descritos. Como Crapanzano, Rosaldo tambm afirma ser esta um apresentar-se que se esconde e se nega. neste ponto que seu ensaio acrescenta uma distino que acredito ser importante na discusso do tema da autoridade etnogrfica. Rosaldo nota que a figura do autor pode ser analticamente desconstruda em trs funes que separam a) o indivduo que escreveu a obra, b) a pessoa textualizada do narrador, e c) a pessoa textualizada do pesquisador de campo (:88). Assim, o pesquisador de campo, ao aparecer na introduo das etnografas, deixa claro os laos entre sua pessoa e os contextos de dominao, mas nega as conexes entre poder e saber, ao desaparecer aps a introduo. A descrio do narrador acerca das durezas do trabalho de campo confere ao texto um ar de realismo que faz o autor aparecer como uma pessoa honesta, o que aumenta a credibilidade do texto. O realismo da narrao obtido ainda atravs de recursos retricos tais como a nominao de lugares e pessoas, apresentao de mapas, censos, datas e estatstica, e o falar por ausncias.

    Rosaldo chama a este estilo modo pastoral literrio . um modo que se caracteriza pela cortesia nas relaes que cortam fronteiras sociais, tal como na relao de Evans-Pritchard (indivduo, pesquisador e narrador) com os Nuer, ou Ladurie (indivduo e narrador) e Fournier (pesquisador) com os aldees franceses. um modo adequado para Ladurie e Evans-Pritchard, pois tanto os Nuer quanto os aldees franceses simbolizam o ponto onde a verdade neutra da etnografa pode encontrar-se consigo mesma. Este ponto abstrato est alm de toda dominao, pois a cortesia do modo pastoral justifica,

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    mas ao mesmo tempo trai, os esforos do narrador em suprimir as conexes do pesquisador de campo com as relaes de poder. Rosaldo d ainda um passo adiante na sua denncia do modo pastoral. Estando as figuras textuaii- zadas do narrador-pesquisador num contexto onde as relaes de cortesia parecem transcender a desigualdade e a dominao, resulta fcil cortesia tornar-se respeito e admirao e da, facilmente cair na condescendncia e reverncias pela simplicidade dos Nuer ou dos aldees franceses. Este modo, ento, desistoriza as culturas (ver tambm o ensaio de Clifford: 110-160).

    Os ensaios de Pratt, Crapanzano e Rosaldo denunciam que, pela via dos artifcios retricos, o texto construdo da etnografa, que se pretende convincente, verdadeiro e objetivo, ora esconde ora passa ao largo de questes tais como a articulao da subjetividade do autor com a das pessoas pesquisadas, o contexto sociolgico onde se d o encontro etnogrfico e as limitaes que este contexto impe ao saber antropolgico. Ficaram algumas perguntas no ar que sero retomadas no devido momento.

    Ps-Modern Ethnography: From Document of the Occult to Occult Document de Stephen Tyler um ensaio aforstico que, usando um procedimento quase dialtico, discute a natureza daquilo que ainda est por vir: a etnografa ps-moderna. Atravs da crtica cincia, suas formas de linguagem, sua aliana com os discursos do valor e do trabalho e seu distanciamento da praxis, Tyler desvenda um contexto sco-cultural - o mundo ps-moderno - no qual os fundamentos da cincia como representao e como conhecimento universal no mais operam enquanto tais. Tyler reserva para a etnografa uma importncia especial pois ela , neste novo contexto do mundo ps-moderno, uma forma superior de discurso ao qual todos os outros discursos so relati- vizados e no qual todos eles encontram seu sentido e sua justificao (:122). Seu modo de ser no se apresenta pela via da descrio nem da ao, metforas para o discurso da representao (cincia) e do trabalho (poltica e economia). A etnografa ps-moderna tem na evocao o seu modo privilegiado de ser, ela evoca aquilo que no pode ser conhecido discursivamente ou executado perfeitamente" (:123). O que Tyler tenta abordar uma forma de se aproximar do indizvel, daquilo que concebido mas nunca esgotado na linearidade do pensamento, as sentenas e da palavra escrita. Alm disto, Tyler sugere ainda que se resgate a dimenso tica de todo discurso e a incorpore na etnografa ps-moderna, pois esta um discurso de muitas vozes que evoca uma fantasia que rompe com o mundo do senso comum. No entanto, tal ruptura com o senso comum no realizada com o intuito de abandon-lo. Pelo contrrio, trata-se de restaur-lo.

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    Pois sendo ento a etnografa ps-moderna um comeo de urna nova jomada (:140), resta-me perguntar: para onde, em que condies, por quanto tempo, quem viaja e quanto custa? Tyler no se faz ouvir agora, sua voz se cala esperando, quem sabe, que o fluxo do seu discurso imediatamente anterior ecoe, evocando o leitor uma resposta. Porm, estar em silncio ante estas perguntas no significa estar mudo definitivamente. Pelo contrrio, o texto de Tyler bastante eloqente na utopia que vislumbra e promete: um mundo ludi- camente fragmentado, sem sujeitos e objetos, um mundo alm da dominao no qual um madrigal a muitas vozes repetidamente executado num espao transcendente, cuja acstica refora reflexes, reverberaes e ecos - fundamentos da fantasia, incitadores da evocao.

    Mas h a algo verdadeiramente espantoso, to logo se percorra as trilhas deixadas pela evocao. Este mundo vislumbrado, assim como o discurso que o revela - a etnografa ps-moderna - no so absolutamente novidade alguma no horizonte do homem e nem esto por vir, como argumenta Tyler. Na vida dos homens eles j se encontram h sculos, embora cobertos por um termo pr-moderno: religio. No penso aqui na religio que estabelece a ordem (social, cultural, cognitiva, emotiva, etc.), mas naquela que nos suspende e nos descansa; a religio como perspectiva restauradora do senso comum (Geertz, 1973:122 e Tyler:134). Asad, em uma interessante crtica a Geertz, argumenta que tal posio levaria a um paradoxo. O mundo do senso comum pensado por Geertz como nico, enquanto a religio (seus smbolos, crenas e prticas) mltipla, variando de acordo com as culturas. Contudo, se a religio restaura o senso comum, modificando-o, ela tambm confere a ele a multiplicidade que a caracteriza, desfazendo, assim, o seu carter universal (Asad, 1983:250). A crtica de Asad a Geertz aplica-se tambm ao argumento de Tyler de que a etnografa ps-moderna restaura o senso comum. Afinal, uma etnografa, mesmo ps-moderna, escrita por um antroplogo americano sobre os ndios Karaj vai restaurar o senso comum de quem, dos Ka- raj, dos Estados Unidos, do Brasil do antroplogo? de fato espantosa a relao que descubro entre religio e etnografia ps-moderna no texto de Tyler. Espantosa porque depois de os positivistas do sculo passado sonharem com o fim da religio, com a sua ultrapassagem pela cincia, assiste-se agora a um movimento inverso, onde um antipositivista prope e anuncia, com um certo alarde at, a morte da cincia e a sua sucesso pela etnografia ps- moderna, ou, mais ao gosto tradicional, pela religio.

    Por ser rico e provocante, o ensaio de Tyler chama por reflexes crticas de vrias ordens. Trata-se de um texto que tem muito de evocativo e pouco de

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    analtico. O mundo ps-moderno afirmado a partir da crise da cincia, e a partir de sua afirmao, uma nova forma de discurso etnogrfico. Contudo, a prpria afirmao do universo ps-moderno me legitima a indagar: ele um mundo historicamente construdo? Se afirmativo, continuaria sociologicamente: onde? quando? como? No entanto, estas questes so somente uma decorrncia visvel de uma problemtica mais geral. O ensaio de Tyler importante porque busca recuperar para o fazer antropolgico uma noo antiga de verdade e saber como evocao. A evocao torna acessvel aquilo que est nas bordas do indizvel; ela torna presente a diversidade sem, contudo, nome-la e, portanto, sem esgot-la. Mas porque no nomeia, apenas indica, porque no refere, mas aponta, a evocao no analisa, no separa e no classifica. No quero aqui dizer que o evocativo e o analtico sejam contraditrios por princpio, nem tampouco fazer a apologia da taxonoma e da anlise. Na realidade, creio que a evocao e a anlise podem e devem ser combinadas no fazer etnogrfico, e isto no passa de uma questo de habilidade. Contudo, o ensaio de Tyler, ao fazer a apologia da evocao, sacrifica o pensamento analtico e justifica tal sacrifcio por uma condio scio-cultural que anuncia e evoca, mas nunca analisa: o ps-moderno.

    O ensaio de Clifford, On Ethnographic Allegory", tambm uma reflexo sobre o fazer antropolgico contemporneo. Nele Clifford examina a tendncia recente de ver no texto etnogrfico diversos nveis alegricos como vozes especficas. Esta tendncia, no interior do cl interpretativo, vem no bojo de uma reavaliao epistemolgica mais geral questionadora do saber como representao. H nela um reconhecimento da alegoria e do texto etnogrfico como alegrico que nos leva a dizer de qualquer descrio no que representa ou simboliza isto ou aquilo, mas que uma estria (moralmente carregada) sobre isto ou aquilo (:100). E exatamente o reconhecimento da alegoria (padres de associao que apontam para significados adicionais), onde um nvel de significao gera sempre outros nveis, todos eles igualmente significativos, que conduz a uma nova concepo do texto etnogrfico como a articulao e o fazer-se ouvir de muitas vozes. Algumas implicaes decorrentes do reconhecimento da alegoria e da concepo do texto etnogrfico como uma polifonia so mencionados por Clifford. Primeiro, a nova nfase na pesquisa de campo como instncia geradora da etnografia. Ao contrrio do que acontecia no cl realista, a nfase agora nos elementos intersubjetivos do encontro etnogrfico. Decorrente disto, Clifford menciona simpaticamente as tendncias em incorporar narrativas pessoais e dar espao para a fala dos

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    informantes as etnografas. Terceiro, os problemas de generalizaes que da resultam.

    Clifford reconhece que as camadas de sentido no so infinitas. As possibilidades de leitura de um texto so dados pelos limites do horizonte histrico do leitor. No seu ensaio assiste-se um esforo para ultrapassar a textualiza- o e a questo da autoridade do autor. Ele simptico idia de um texto com muitas vozes, mas acaba tendo que reconhecer que mesmo como polifonia a etnografa um texto orquestrado por um autor. Da desconhecer tambm que o texto etnogrfico no s alegoria. Nele h uma constante luta para limitar os sentidos extras, luta que baliza as convenes da disciplina e do prprio gnero etnogrfico. Em momento algum fica claro o que exatamente esta luta. Obscuro como apresentado, parece que este esforo limitante realizado pelo prprio texto que passa ento a ser sujeito, objeto e contexto.

    Clifford, em certos momentos de seu ensaio, parece comungar com Tyler da utopia que este evoca. Os dois ensaios revelam a possibilidade de um mundo melhor, onde poder e hierarquia estejam totalmente separados. Evocam um horizonte que est alm de toda a dominao, onde ningum tem o poder de dar feio estrutura final das estrias contadas coletivamente, nas quais todas as vozes so igualmente ouvidas. Denunciando o poder e a dominao, eles pregam uma democracia que, em certos momentos, chega a negar o poder, ficando, assim, muito semelhante ao modo pastoral que no livro contestado. Tudo isto, argumento eu, porque falta uma perspectiva sociolgica aos dois ensaios. Como constitudo o mundo ps-moderno, quando e por que surge a tendncia de reconhecer a alegoria e as conseqncias que dela resultam, so perguntas que nestes dois ensaios encontram respostas muito incompletas. A ruptura (ou no) do ps-moderno e as novas tendncias experimentais na antropologia no so simplesmente o resultado de uma reavaliao terico-epistemolgica. So, sobretudo, adaptaes e acomodaes e mudanas no mundo social. A sociologia da mudana deveria ser, portanto, parte integral de toda e qualquer tentativa de responder s questes formuladas acima.

    "Ethnicity and Post-Modern Arts of Memory de Michael Fischer e Contemporary Problems of Ethnography in the Modern World System" de George Marcus exploram formas concretas e existentes de experimentao em etnografa. Especificamente, Michael Fischer analisa uma srie de autobiografias tnicas, descobrindo nelas modos pelos quais a prtica etnogrfica poderia ser revitalizada. Ele argumenta que as perspectivas que tais autobiografias oferecem para o tema da etnicidade sugerem novos modos para escrever e

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    ler etnografas. As autobiografias examinadas revelam para o leitor novas dimenses da etnicidade que no so sequer vislumbradas pelas abordagens sociologizantes, mostram ser a etnicidade algo dinmico, sempre reinventado e reinterpretado, orientado mais para o futuro do que para o passado. Alm disto, elas exercem a funo, sempre prometida pela antropologia, de crtica cultural, justapondo duas ou mais tradies culturais de tal maneira que o extico seja visto contra o pano de fundo do familiar e vice-versa. Fischer revela cinco estratgias estilsticas que, usadas nas autobiografias, realizam a tarefa da crtica cultural - transferncia, trabalho com sonhos, bifocalidade, interferncia e humor irnico. Segundo ele, tais estratgias podem e tm sido usadas como lies para o escrever e ler etnografas.

    Marcus procura mostrar alguns exemplos de como os etngrafos de inclinao interpretativa podem articular no espao descritivo das etnografas o domnio micro dos significados culturais com o domnio macro dos sistemas sociais abrangentes e impessoais. No corpo do ensaio, Marcus discute em detalhes dois modos de construir o texto, de modo a articular o local com o sistema social mais abrangente. O primeiro reduz-se explorao etnogrfica de situaes e lugares diversos, mas ligados pelas conseqncias das atividades que ocorrem no interior de cada um deles. A narrativa seqencial o estilo adequado para este caso. Os temas privilegiados tm sido mercados, modos de produo, distribuio e consumo. O segundo modo, examinado com mais vagar a partir da leitura do livro de Paul Willis, Learning to Labour, elaborado numa etnografa de um lugar ou situao estrategicamente selecionado, sendo o sistema social abrangente tratado como pano de fundo, mas de tal modo que no se subestime a forma pela qual este ltimo constitutivo da vida cultural do primeiro.

    Marcus conclui que o desafio de articular a vida dos sujeitos com a natureza do mundo da economia poltica tem na forma do ensaio moderno sua soluo mais feliz, isto porque o ensaio uma forma que se recusa a Impor ordem, pela escrita, num mundo cuja essncia ser fragmentado (:191).

    Os trs grupos de ensaios at agora examinados realizam, pela ordem, a denncia das convenes realistas, a fundamentao terica de novas convenes, e a exempllficao de como estas novas convenes podem e esto sendo postas em prtica. No decorrer da resenha dos ensaios individuais, j apontei para os pontos que vejo como problemticos e j elaborei uma crtica interna parcial. Talvez tenha chegado a hora de passar a uma crtica mais geral e externa, pois o ltimo grupo de ensaios que passo a resenhar, aparentemente, nos leva a um novo tema: o do poder, da dominao e do poltico.

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    No tenho como esconder que sou mais simptico a este ltimo grupo, mas tenho o dever de dizer que, tanto os ensaios de Talal Asad, the Concept of Cultural Translation in British Social Anthropology, de Paul Rablnow, Representations Are Social Facts: Modernity and Post-Modernity in Anthropology, quanto o Afterword: Ethnographic Writing and Anthropological Careers de George Marcus, no so uma parte agregada artificialmente ao livro. Pelo contrrio, eles simplesmente retomam a discusso da etnografa como texto sob um ngulo que at ento havia sido apenas sugerido.

    O exame da noo de traduo cultural na antropologia britnica leva Asad a questionar as metforas traduo e texto, para antropologia e cultura, respectivamente, como modelos gerados e irremediavelmente envolvidos nas situaes e relaes de dominao em escala global. Seu argumento central que o capitalismo industrial tambm transformador de formas de saber, de estilos de vida locais e, com estes, de formas de linguagem. Da, segue-se que existe uma desigualdade de poder entre os idiomas falados no mundo. Este poder transformador de tal maneira vasto e se entremea nas convenes lingsticas da disciplina com tamanha forma que resiste at mesmo aos experimentos individuais realizados na feitura das etnografas.

    o ensaio de Asad pessimista no seu tom geral. Ele no vislumbra um conhecimento antropolgico livre das malhas da dominao. Apenas conclui que, para entender o envolvimento da antropologia com as condies de poder, deve-se analisar as condies em que o poder entra no processo de traduo cultural. Mesmo pessimista, Asad mais realista do que os seus colegas desta coletnea, pois no utpico, nem busca um mundo ou uma antropologia que esteja alm da dominao. Implicitamente, reconhece que o poder e a dominao so ingredientes essenciais da condio humana. Asad no menciona o caso das "antropologias perifricas , e nem deve ser cobrado por isto; afinal, a antropologia britnica o foco de seu ensaio. Contudo, basta pensar no caso das antropologias realmente feitas nas periferias para vislumbrar, se no uma sada, ao menos uma posio mdia entre saber e poder. Se no se adota uma forma muito ortodoxa da teoria da dependncia, possvel, sem muito esforo, notar que a relao entre um antroplogo, digamos, brasileiro, com os grupos sociais que estuda no marcada pela mesma desigualdade que caracteriza a relao, digamos, Gellner-Berber, e isto deve transparecer nos textos produzidos por estes.

    A partir das crticas de Rorty, Hacking e, mais especialmente, de Foucault, epistemologa e ao conhecimento como representao, Rabinow examina a tendncia de pensar a etnografa como texto e as estratgias neste

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    caso adotadas: discute a questo da autoridade etnogrfica, o surgimento de uma meta-antropologia e os conceitos dilogo e polifonia. Rabinow relaciona esta nova tendncia com o surgimento de uma crise da representao e com a emergncia de uma cultura ps-moderna. Ao contrrio de Tyler, o ps-mo- derno visto por Rabinow como um evento histrico especfico e localizado. Apesar de simptico critica da representao e s tentativas de experimento com o texto etnogrfico, Rabinow tem uma viso critica da cultura ps-moder- na e dos debates, a partir desta perspectiva, acerca da escrita etnogrfica. Seu argumento de que o ps-moderno no enxerga sua prpria situao, comprometido que est com as nfases na parcialidade, na fragmentao e no fluxo. Sua situao e, na realidade, a prpria noo de situao so to instveis que no conseguem sequer tornar-se objetos de uma reflexo (:252).

    No posso aqui fazer justia complexa argumentao do seu ensaio, que vejo como um dos mais importantes do livro, porque nele h a sugesto, mas infelizmente, somente uma sugesto, de uma nova abordagem para o tema geral do livro. Tendo demonstrado, com a ajuda dos filsofos, que o conhecimento cientfico e sua verdade, percebidos como representao, so prticas sociais historicamente constituidas. Rabinow descarta como parcial qualquer tentativa de compreender o fazer etnogrfico, clssico-realista ou experimental-ps-moderno, somente pela via da reflexo terico-epistemolgi- ca. Prope que o debate sobre o escrever etnogrfico envolva uma reflexo sobre o poder no seu nvel mais mocroscpico, isto , uma reflexo sobre a poltica acadmica e editorial, as prticas cotidianas dos antroplogos nos departamentos das universidades, nos simpsios, conferncias e encontros cientficos. Em suma, prope que o debate sobre a prtica etnogrfica contempornea seja compreendido, tambm pela via de uma sociologia da prtica antropolgica, no campo e nos departamentos.

    Marcus tambm parece seguir esta mesma linha de raciocnio no seu curto Afterword. Ali ele articula a tendncia experimental com aquela experincia que constitui a identidade do antroplogo: a elaborao de uma dissertao para a obteno do grau de doutor, uma credencial profissional bsica. Vista, ento, no contexto das carreiras profissionais, Marcus argumenta que tal tendncia pode ser compreendida, em parte, como uma reao experincia de treinamento inicial, geralmente conservadora, que resulta numa dissertao de doutoramento.

    O que no fica claro se tal reao decorrente de insatisfaes tericas, existenciais, estticas ou se apenas parte de uma estratgia geral de ascenso profissional. No fica claro porque, tanto o ensaio de Rabinow,

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    quanto o de Marcus apenas sugerem a necessidade de uma sociologia do campo intelectual sem, no entanto, realiz-la. Embora no seja aqui o espao para tal sociologia, desejo relembrar alguns fatos: a partir dos anos 60, a antropologia tem crescido muito nos Estados Unidos, formando uma comunidade de tamanho suficiente para a emergncia de um mercado editorial especfico (Stocking, 1983:8). Atualmente, as universidades americanas formam mais doutores por ano do que sua capacidade de absorv-los. Um dos ltimos nmeros do Newsletter da Associao Americana de Antropologia retrata o perfil do antroplogo padro dos anos 80: mulher, tendo os Estados Unidos como rea de interesse, trabalhando fora do circuito acadmico. Estes fatos, associados com o ditado publish or perish, que est cada vez mais em evidncia, se o caso a obteno de tenure, nos conduzem a um quadro claro: sendo a academia o local privilegiado para a atuao profissional dos antroplogos e havendo mais antroplogos do que vagas nos departamentos, a concluso que o mercado profissional est muito apertado, havendo uma intensa competio para o preenchimento das poucas vagas abertas nas universidades.

    Seria um tanto leviano concluir que o experimentalismo prevalecente as etnografas de hoje uma estratgia para ascender numa carreira que oferece poucas oportunidades de trabalho. Seria ainda mais leviano prosseguir dizendo que toda a nfase na interdisciplinaridade (algo que anda lado a lado com o experimentalismo) no passa de um movimento ttico para os antroplogos ocuparem espao e vagas em outros departamentos. Contudo no creio que seja leviano afirmar que as condies do mercado de trabalho, os smbolos de prestgio no interior da cultura antropolgica e o conjunto de direitos e deve- res decorrentes das relaes estabelecidas pelos antroplogos na sua prtica cotidiana so elementos a serem levados em conta, se se quer compreender o experimentalismo hoje em voga na elaborao das etnografas. Isto no quer dizer, de modo algum, que uma sociologia do campo intelectual esgote totalmente esta questo, mas sem ela toda outra forma de resposta incompleta.

    Uma maneira de compreender mais completamente a virada hermenutica-experimental em voga em alguns setores da antropologia americana tomar como foco a economia poltica da academia. Attali argumenta que, nas sociedades capitalistas ps-industriais, a crise no uma ruptura . . . , mas uma diminuio na eficincia da produo de demanda, um excesso de repetio (1985:127). Este excesso de repetio conduz, fatalmente, a um fluxo redundante, o que significa dizer, uma perda na significao dos objetos e relaes. Num mundo onde objetos e relaes esto sempre ameaados pelo sem sentido, embora continuem a ser reproduzidos nesta ausncia, a produ

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    o de demanda pouco eficiente. De fato, h uma diminuio da demanda por respostas funcionalistas a questes antropolgicas contemporneas, e o mesmo pode ser dito das respostas provindas dos outros "ismos. Afinal de contas, elas so de antemo conhecidas. Mas o que significa, exatamente, uma pouca demanda por respostas? Quer dizer, creio eu, pouca demanda por livros, por professores, por alunos, por simpsios.. . Em suma, pouca demanda por profissionais que comungam um mesmo universo de valores, idias, smbolos e discursos; e pouca demanda por este universo em si mesmo. Portanto, a emergncia de uma tendncia experimental deve ser compreendida a partir de uma academia em crise, definida nos termos acima. A hermenutica e a experimentao alimentam a economia poltica da academia, reduzindo, temporariamente, os problemas com a diminuio da eficincia na produo de demanda, atravs de uma quebra da repetio, isto , pela introduo de uma novidade aparente. Vista deste modo, a crise da representao estaria ligada sociologia da academia, sendo, pois, inadequado compreend- la como puramente abstrata e epistemolgica.

    De fato, Writing Culture carece de uma perspectiva sociolgica. Embora este ltimo grupo de ensaios articule a problemtica do texto etnogrfico com condies de poder e dominao, tanto a nvel macroscpico quanto a nvel capilar, resta ainda ir alm da articulao em direo ao esmiuamento detalhado e substantivo da prtica social dos antroplogos. Talvez este esmiuar em detalhes nos levasse a compreender a crtica quase impedosa de Crapan- zano a Geertz como uma busca por ampliar os espaos de atuao ou, voltando metfora segmentria, como uma emergente fisso no cl interpretativo, levando, conseqentemente, fundao de novas aldeias e ao recrutamento de novos seguidores e aliados. Mas, ainda resta sempre a verso psicolgica do assassinato simblico do pai.

    Dando prosseguimento ao que penso ser limites de Writing Culture, retomo a questo da autoridade autorial. Ela denunciada como retrica e decomposta em autoridades do pesquisador de campo, do narrador e da cincia. Sua constituio nos textos etnogrficos analisada em detalhes, sua articulao com as condies de poder afirmada, mas fica em mim um sentimento de frustrao. Tento exp-lo. A questo da autoridade examinada com o intuito de mostrar os limites de um saber que se pretende objetivante. Os ensaios de Crapanzano e Clifford chegam a afirmar a parcialidade da verdade da antropologia e o carter ficcional das etnografas. Contudo, a nfase na questo da autoridade autorial me parece uma forma de evadir-se da questo central; a possibilidade de uma objetividade em antropologia. J firmei, anterior-

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    mente, que os temas da verificao e do julgamento se fazem presentes pela ausncia. O tema paralelo da objetividade, infelizmente, tambm se ausenta pela evaso fcil da discusso da autoridade.

    Frustrao maior fica ainda no que se refere forma e estilo em Writing Culture. Com exceo do ensaio de Tyler, todos os outros so formalmente organizados da mesma maneira: uma introduo na qual o tema central mencionado, a leitura de duas ou mais obras (geralmente etnografas) como corpo do ensaio, uma breve seo conclusiva. Aps a leitura dos trs primeiros ensaios, descobre-se o cdigo formal e o livro comea a tornar-se repetitivo. No fiz uma detalhada leitura do Writing Culture, mas sinto-me seguro para afirmar um lugar comum: tem o estilo sbrio e bem comportado de um texto erudito, com uma leve nfase nos recursos evocativos, o que diminui sua fora analtica. Das cinco tcnicas-tticas estilsticas mencionadas no ensaio de Fischer, encontro, com freqncia, apenas a transferncia e a interferncia. Sem mais detalhes, Geertz quase sempre o objeto da primeira e os autores do livro, os da segunda. Da, ser surpreendente um livro que advoga a experimentao formal e estilstica na construo do texto etnogrfico se mostrar como extremamente certinho, quadrado, careta mesmo. Com a exceo dos aforismos em Tyler e de alguns momentos no texto de Fischer, em que h o jogo entre a histria de sua interpretao e ela prpria, no acontece em Writing Culture praticamente nada a este nvel. Nem mesmo o recurso ao humor irnico, proposto por Fischer, posto em prtica, excetuando-se, talvez, uns poucos puns antropolgicos insossos, inodoros, incolores e inaudveis (ver o ensaio de Crapanzano: 68-9).

    Como bvio, Writing Culture um livro, um texto, e como tal no pode ir alm dos limites de si mesmo, no pode realizar-se no novo espao do ps- texto que os antroplogos ps-modernos propem nos seus textos. Alis, este ponto bem colocado por Rabinow, que critica os ps-modernistas por sua incapacidade de pensar a sua situao e a prpria situacionalidade (:252), sem, no entanto, atentar para este problema no contexto do texto coletivo do qual um dos autores. Chupar cana e assobiar ao mesmo tempo sempre foi um problema.

    Porm, pode ser argumentado que o experimentalismo advogado no livro para as etnografas, e s para elas. Nisto Writing Culture no claro. A concepo do que vem a ser uma obra etnogrfica bastante abrangente, incluindo Ladurie, Goethe, Catlin e outros autores no reconhecidos, tradicionalmente, como etngrafos. Isto saudvel, creio eu, mas apresenta um dificuldade de definio. A etnografia pensada como um texto, um gnero liter-

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    rio, o que significa dizer que diferente do romance, do conto, da novela e mesmo da crnica de viagem. Mas, ao mesmo tempo, ela tambm afirmada como semelhante a alguns destes outros gneros (ver o ensaio de Pratt). E a questo da identidade e da diferena que tambm est presente, pela ausncia, em Writing Culture. Mas esta uma questo menor. De maior importncia a relao que fica implcita entre teoria e descrio, entre etnologia e etnografa. Se for o caso de a experimentao ser advogada apenas para as etnografas, fica ento clara a existncia de um abismo entre o espao da teora e o da etnografa, que acabara levando a um divrcio entre elas, o que advogado por Sperber (1985). Creio que tal divrcio , no mnimo, litigioso, se no impossvel. Creio ainda que os autores de Writing Culture so totalmente opostos a esta idia mas a incapacidade deles de pensarem sua situao e seu texto leva, inevitavelmente, ou a assumi-la como uma conseqncia lgica, ou a confessar o fracasso parcial do projeto experimental.

    Apesar de todas estas qualificaes, algumas mais justas do que outras, Writing Culture merece e deve ser lido. provocante, intrigante, novo, mas como um produto do homem vivendo na era da repetio (cf. Attali), redundante s vezes, repetitivo quase sempre. Talvez seja uma obra mais importante para o leitor americano do que para o brasileiro, porque a conscincia literria tem estado historicamente presente no antropologizar de Antnio Cndido (cf. Peirano, 1987), de Gilberto Freyre, de Srgio Buarque de Holanda e tantos outros. verdade que Sapir foi um poeta interessante, mas sua poesia nunca adentrou sua antropologia. Reafirmo, Writing Culture importante, se por nada mais, por trazer uma conscincia esttica e tica para a antropologia e por advogar etnografas menos aborrecidas. Mas nem sempre necessrio fundamentar a experimentao. Experimente apenas. No sei exatamente a decbelagem do barulho que os ps-modernos andam por aqui a fazer, mas na antropologia americana ela , por certo, alta. Por isto, eu quero concluir afirmando que no devemos nos assustar com tal barulho, se for o caso de ele existir. Repito, Writing Culture faz mais sentido nos Estados Unidos; na realidade, ele um produto da academia americana em crise causada por problemas na produo da demanda. Embora parea apontar para questes gerais da Antropologia e, de certo modo, assim o faz, devo lembrar que o mais saliente e o mais real (ista) afirmar a existncia de antropologas. E aquelas feitas no Brasil, ndia, Nigria, Mxico . . . no so exatamente idnticas e no dividem as mesmas questes daquela feita na Amrica do Norte. Temos sempre que perguntar at onde chegou o ps-moderno.

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