tradução (cap 2 e 6) de suplementos de schopenhauer

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  • Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer - Vol. 3, Nmeros 1 e 2 - 1 e 2 semestres de 2012 - ISSN: 2179-3786 - pp. 326-347.

    Traduo dos captulos 2 e 6 do Tomo II (Suplementos) de O mundo como vontade e como representao

    Dax MoraesProfessor no Curso de Filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (CaC/UERN),

    Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).E-mail: [email protected]

    [22]1 CAPTULO 2

    PARA A DOUTRINA DO CONHECIMENTO INTUITIVO,

    OU DO ENTENDIMENTO

    Em toda idealidade transcendental o mundo objetivo conserva uma realidade [Realitt]

    emprica: contudo, o objeto no coisa em si; mas real [real] enquanto objeto emprico2. Entretanto, o

    espao somente em minha cabea; mas minha cabea no espao emprica3. A lei da causalidade,

    alis, jamais pode servir para eliminar o Idealismo, formando uma ponte entre as coisas em si e nosso

    conhecimento delas e, por conseguinte, no efeito de seu emprego, assegurando a realidade absoluta do

    mundo que se apresenta: mas isto de maneira alguma suspende a relao causal dos objetos entre si,

    nem aquela incontestavelmente reconhecida entre cada corpo prprio e os demais objetos materiais4.

    1 A numerao entre colchetes corresponde paginao da terceira edio das obras completas de Arthur Schopenhauerprimeiramente editadas por Frauenstdt, em seis volumes: Arthur Schopenhauers Smmtliche Werke. Ed. Julius Frauenstdt.Leipzig: Brockaus, 1877. Tambm foi consultada, em busca de eventuais correes e atualizao ortogrfica, a ArthurSchopenhauers Smtliche Werke em doze volumes, Stuttgart.2 Trata-se de uma afirmao fundamental compreenso da doutrina da representao de Schopenhauer. Aqui se exprime arecusa a toda forma de realismo, j expressa em sua Dissertao sobre a qudrupla raiz do princpio de razo suficiente . Oreal diz respeito representao, ao objeto da experincia, no coisa em si, de modo que toda realidade (Realitt) transcendentalmente ideal, o que tem por consequncia a afirmao de que toda intuio intelectual (v. WWV I/MVR I, 4-5).3 A sentena de Schopenhauer Zwar ist der Raum nur in meinem Kopf; aber empirisch ist mein Kopf im Raum motivauma traduo radical, explicitando um aparente paradoxo: o espao, enquanto forma da intuio, est na minha cabea, nona coisa em si; por sua vez, minha cabea, enquanto objeto emprico real, representada no espao (que ocupa), ou seja,minha cabea est no espao que est em minha cabea, onde se situam todos os objetos da experincia enquanto objetos.Apenas empiricamente minha cabea alguma coisa e, como toda experincia supe intuio espacial, o espao emminha cabea que a coloca no espao representado como exterior. (cf. WWV I/MVR I, 5-6)4 Crtico das doutrinas racionalistas defensoras do que se convencionou denominar intuio intelectual expresso a que, apropsito, Schopenhauer chegar a atribuir novo significado , tambm recusa o empirismo materialista como alternativa.Defender que o fato de se testemunhar relaes causais entre objetos e entre estes e o crebro explica a origem doconhecimento ou a realidade essencial das coisas no suprime a idealidade transcendental da prpria lei da causalidade, jimplcita em toda experincia possvel trata-se, segundo o prprio Schopenhauer, de uma petio de princpio. Alm disso,parte do pressuposto equivocado de diferenciar objeto e representao (cf. WWV I/MVR I, 5; v. tb. 7). Por outro lado, oupor isso mesmo, a lei da causalidade nos dada em toda realidade. Desse modo, no mnimo ingnuo lanar mo dacausalidade natural para se refutar o intelectualismo dizendo que todo conhecimento se origina nas sensaes. O usoilegtimo da lei da causalidade consiste na pretenso de, recorrendo-se a ela, ultrapassar o conhecimento de fenmenos, ouseja, estabelecer uma ponte entre nossas representaes e as coisas em si mesmas tomando-as por objetos em si,independentes do sujeito.

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    Mas a lei da causalidade somente liga os fenmenos, no os ultrapassa. Somos e permanecemos com

    eles no mundo dos objetos, isto , dos fenmenos ou, dito propriamente, das representaes. Todavia,

    [23] sendo assim necessrio somente o fenmeno e no havendo direito para se aplicar [a lei da

    causalidade] ao mundo das coisas em si mesmas, a totalidade de tal mundo da experincia permanece

    primeiramente pelo conhecimento de um sujeito, sua condio necessria, e ento causado pelas formas

    especiais de nossa intuio e nossa apreenso. At o sujeito ele mesmo (uma vez que s ele

    cognoscente) pertence apenas ao fenmeno de cuja totalidade constitui a outra metade5.

    Sem a aplicao da lei da causalidade no se poderia entrementes vir intuio um mundo

    objetivo: pois essa intuio , como frequentemente salientei, essencialmente intelectual e no

    simplesmente sensvel6. Os sentidos do simplesmente sensaes, que ainda esto muito distantes das

    intuies. Locke distinguiu na intuio a poro das percepes sensoriais sob o nome de qualidades

    secundrias, que ele com razo negou s coisas em si mesmas. Mas Kant, levando mais longe o mtodo

    de Locke, distinguiu, alm disso, e negou s coisas em si, o que pertinente ao beneficiamento7 daquela

    matria (percepes sensoriais) pelo crebro, e da resultou que tudo aquilo que Locke deixou s coisas

    em si como qualidades primrias, a saber, extenso, figura, solidez etc., eram conceitos, graas a que,

    5 Em resumo, o sujeito a condio do objeto intelectual, diferente do objeto imediato (i.e. o prprio corpo) que se encontraobjetivamente dentre outros objetos no mundo dos fenmenos, nele existente segundo as formas que condicionam oconhecimento; enquanto cognoscente, o sujeito contrapartida do conhecido (seu objeto) e, assim, incognoscvel e distintode toda representao de um eu. A causalidade ento posta pelo sujeito e por ele reconhecida, de modo que todanecessidade causal diz respeito to-somente aos fenmenos representados, em nada concernente s coisas em si. Apertinncia do sujeito ao mundo fenomnico, portanto, no deve ser interpretada como um fazer parte do conjunto dosobjetos, mas em ser a ele subjacente a priori. Uma vez que apenas os objetos agem uns sobre os outros enquanto sujeitos causalidade, o objeto imediato o simples meio pelo qual o sujeito pode perceber objetos em geral segundo as conexesentre o crebro e os sentidos, imperceptveis em si e por si mesmos, justamente porque no h mediao entre o sujeito e oprprio corpo. (v. WWV I/MVR I, 2/6)6 V. nota 4. Mundo objetivo significa mundo real, porm no no sentido do realismo, como entidade independente do sujeito.Sendo assim, a intuio que se tem do mundo objetivo intelectual, pois intelectuais so seus objetos, no coisas em siindependentes de nossas faculdades cuja percepo dependesse apenas dos sentidos. graas ao intelecto que os sentidosdesempenham seu papel mediador e este se torna possvel, mas sempre condicionado. Os sentidos no pensam, como algunsfilsofos chegaram a defender v. mais adiante ; a pura sensao no produz representao alguma na medida em que asformas de toda representao so intelectuais, de modo que no crebro que aparecem, no nos rgos sensoriais. Isto,contudo, no conduz a um solipsismo como habitualmente se interpreta, pois o prprio sujeito se constitui na relaocognitiva com objetos, de modo que o intelectualismo schopenhaueriano no se resolve nisto. As doutrinas da intuiointelectual que a estimam como capaz de apreender coisas em si ou produzir imagens alheias a ela so, portanto, falsas. Emsntese, a afirmao schopenhaueriana de que h apenas intuies intelectuais significa que todo objeto conhecido representao de um intelecto. Assim, Schopenhauer, radicalizando o idealismo transcendental, supera o sensualismoempirista derrubando, pois, seu potencial ctico e o prprio intelectualismo realista, ou idealismo absoluto, como ficaclaro a seguir. Aps a breve retomada de algumas teses lanadas nos 1-7 do primeiro tomo, tratando fundamentalmente daforma originria do mundo como representao i.e. ser objeto para um sujeito , tem incio aqui a parte original epropriamente dita suplementar, comeando por uma mais pormenorizada crtica da tradio mais recente enfatizando-se asrelaes entre os sentidos, o crebro e o entendimento.7 O termo beneficiamento procura traduzir, aqui como em passagens subsequentes, o alemo Verarbeitung mantendo aconotao de que se trata de um processo pelo qual a matria-prima do conhecimento, os dados sensveis na intuio, depoisde conformados s formas a priori de tempo e espao e lei da causalidade, passam pelo processo de abstrao, pelo qual talmatria como que transformada e adequada pelo intelecto humano de modo a ser representada por conceitos. Assim, porbeneficiamento pretende-se indicar o carter produtivo-transformador do conhecimento humano mediante os dadossensveis em que se sustenta.

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    em Kant, a coisa em si se torna um x totalmente desconhecido8. Em Locke, por conseguinte, a coisa

    em si algo incolor, sem rudo, inodoro, inspido, nem quente nem frio, nem macio nem duro, nem liso

    nem spero; todavia permanece algo extenso, figurado, impenetrvel, em repouso ou em movimento,

    dotado de medida e nmero. Em Kant, porm, ela teve tambm todas estas ltimas propriedades postas

    de lado; porque somente por meio de tempo, espao e causalidade9 elas so possveis, mas apenas em

    nosso intelecto (crebro)10 surgem assim, como cores, sons, odores etc. nos nervos dos rgos

    sensoriais. A coisa em si, em Kant, se tornou no-espacial, inextensa, incorprea. O que ento est a no

    mundo objetivo, os sentidos fornecem para a intuio na proporo do que para isto fornece a funo

    cerebral (espao, tempo, causalidade), como na proporo da massa dos nervos sensoriais para a massa

    cerebral, depois da extrao [Abzug] daquelas outras partes empregadas pelo pensamento propriamente

    dito11 [eigentlichen Denken], isto , as representaes abstratas, e que portanto escapam aos animais.

    8 Locke, no segundo captulo do livro IV do Ensaio acerca do entendimento humano, define a intuio como o grau primeiroe imediato de conhecimento, logo, o mais perfeito, compreendendo-a como a percepo imediata do acordo ou desacordo deduas ou mais ideias. No entanto, essas ideias, conforme exposto j no livro II, so previamente impressas na mente graas apercepes sensoriais. A percepo, por sua vez, depende de que a mente note a impresso sensvel, conforme se l nocaptulo IX do livro II. Desse modo, os sentidos no produzem conhecimento por si ss. No segundo captulo deste livro,Locke defende que as qualidades correspondentes s ideias simples esto nas prprias coisas que nos afetam; afinal, semelas, uma vez que a mente no produz ideias a partir do nada, no h ideias que permitam qualquer conhecimento intuitivo eas operaes que viabilizam a combinao de ideias simples em ideias complexas ou mesmo a qudrupla raiz de todaintuio de acordo ou desacordo: identidade ou diversidade, relao, coexistncia ou conexo necessria e existncia real.Por isso, as qualidades conhecidas intuitivamente, imediatamente, so sempre secundrias, na medida em que so derivadas,ou seja, no pertencem s coisas mesmas, mas s operaes da mente. Como, no entanto, h percepes que no se referem anenhum rgo sensitivo em particular, embora somente sejam perceptveis, segundo Locke, por meio dos objetos, como queos constituindo, se lhes deu o nome de qualidades primrias. Kant mostrar, contudo, que mesmo o que percebemos j previamente conformado pela mente de modo que nada do que se percebe pode ser legitimamente atribudo coisa mesma,ou seja, que todo corpo extenso em si mesmo, por exemplo. Diramos, pois, que em Locke ainda persiste algo de realismo decerto, no epistemolgico, mas ontolgico, pois a dependncia a que submetida a mente obriga suposio de umarealidade exterior subsistente em si e por si mesma; a coisa em si , com efeito, alguma coisa dotada, como tal, dedeterminaes apreensveis direta ou indiretamente pelos sentidos. 9 A lei da causalidade, como sabido, consiste naquilo a que Schopenhauer reduz todas as categorias do entendimentoestabelecidas por Kant. Aqui, como em muitos lugares, Schopenhauer se exprime como se isto j fosse a tese de Kant, umavez que Schopenhauer cr apenas sintetizar o que j dissera seu antecessor. Com efeito, no , e o prprio Schopenhauer odeclara nas diversas ocasies em que critica a doutrina kantiana do entendimento. 10 A esta altura ainda bastante complexo explicar (e justificar) de modo to coeso quanto preciso a identificao operadapor Schopenhauer entre crebro e intelecto (Intellekt), j pressuposta no uso anterior feito da palavra crebro, mas aindano avanada nos captulos correspondentes do primeiro tomo, mesmo porque pertence a sua teoria das sensaes. Afinal,Schopenhauer no um materialista; toda matria, ainda que em sentido mais stricto, representao, um objeto intelectual,como j foi visto. Isto, por sua vez, nos faz reconhecer que a identificao j era implcita desde o comeo. Ordinariamente,em O mundo como vontade e representao, matria empregado em sentido lato, correspondendo ainda a causalidadena medida em que abrange toda a gama dos objetos da intuio emprica. Do ponto de vista da representao, a realidademais imediata meu prprio corpo. Como o intelecto impalpvel (razo pela qual tradicionalmente se o estimou comopoder da alma), tratando-se de um conceito relativo ao rgo ou faculdade responsvel pelo conhecimento, do ponto devista de sua concretude intuitiva, desprezada a abstrao tardia que o vincula alma, o intelecto se manifesta como crebro,ou seja, o crebro consiste no fenmeno objetivo e material do rgo cognitivo central, ligando-se aos rgos sensoriaisperifricos por intermdio dos nervos. Cuidado necessrio, contudo, para que no se confunda o intelecto assim descritocom a inteligncia de que se ocupar Schopenhauer ao discorrer sobre a possibilidade humana de vislumbrar o mundo comoVontade e, assim, entrever o em-si.11 Na terminologia de Schopenhauer, vale dizer, pensamento tem um significado bastante desinflado, restrito representao conceitual, que sempre deriva de intuies empricas. O mundo intuitivo, que absolutamente nada contm deabstrato razo pela qual seu contedo consiste no saldo obtido pela subtrao de todo contedo conceitual , consistenaquilo que imediatamente informado pelos sentidos segundo as condies a priori da intuio que do forma a esta

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    Logo, os nervos dos rgos sensoriais conferem aos [24] objetos fenomenais [erscheinenden Objekten]

    cor, som, sabor, odor, temperatura etc.; ento o crebro lhes confere extenso, forma, impenetrabilidade,

    mobilidade etc. 12, em suma, o que representvel somente por meio de tempo, espao e causalidade.

    Quo pequena a parte dos sentidos na intuio, em contrapartida do intelecto, tambm testemunha a

    comparao entre o aparelho nervoso para recepo das impresses e aquele para seu beneficiamento

    [Verarbeiten]; a massa dos nervos de todos os rgos sensoriais muito pequena comparada do

    crebro, mesmo nos animais, cujo crebro, visto que propriamente no pensa, i.e. no abstrai, serve

    somente para que se produza a intuio, sendo esta perfeita [vollkommen] onde h uma massa [cerebral]

    considervel, portanto, nos mamferos; isto mesmo depois de extrados os cerebelos, cuja funo

    organizar a direo dos movimentos13.

    Sobre a deficincia dos sentidos para a impresso das intuies intuitivas das coisas, como

    tambm sobre a fonte no-emprica das intuies de espao e tempo, conservou-se, como confirmao

    das verdades kantianas, pela via negativa, uma convico muito exemplar no excelente livro de Thomas

    Reid14: Inquiry into the human mind, first edition 1764, 6th edition 1810 [Investigao da mente

    matria e a constituem como tal no intelecto. O que mais tarde, conforme s operaes da mente, se produz na conscincia,como qualidades genricas que constituem os conceitos, resulta de um processo de abstrao (i.e. extrao, ato de trazer parafora) de elementos comuns a uma pluralidade de dados empricos. Destitudos da faculdade de abstraes e, portanto, depensamento, os animais vivem encerrados na imediaticidade presente, uma vez que lhes escapa tudo que no sejaestritamente particular e atual. Para Schopenhauer, os sentidos e as funes cerebrais operam em sinergia, de maneira que omundo representado segundo a constituio natural do aparato cognitivo, ficando mais claro agora em que sentido crebroe intelecto so identificveis. Sobre a proporcionalidade entre as faculdades e seus rgos, ver exemplo a seguir.12 Portanto, o que ainda Locke atribua, na condio de qualidades primrias, coisa em si, ou objeto dos sentidos,Schopenhauer, a partir de Kant, afirma como obra do entendimento.13 Algum cuidado necessrio, ao menos a esta altura da doutrina de Schopenhauer, na compreenso de seu exemplo.Schopenhauer, reconhecendo a fora das cincias naturais em sua poca neste caso, a Biologia, que gozava de imensurvelestima, como ainda hoje e s quais dedicou estudos, faz uma explcita analogia, j aludida imediatamente antes, entre opoder das faculdades e a medida dos rgos a elas vinculados. Trata-se de dizer que testemunhamos na anatomia a verdadede que os sentidos pouco contribuem para o conhecimento quando comparados funo do crebro, mesmo mutilado,valendo isto para humanos e animais. Inclusive, justamente por no possurem crebro que a plantas, diferentes dosanimais, careceriam de entendimento e, portanto, de intuies propriamente ditas, assim como os animais carecem depensamento. Trata-se, em suma, da tradicional questo acerca do que se sente de modo passivo e o que se conhece de modoativo. O referido cuidado para que se no interprete Schopenhauer como um naturalista do tipo que encontra, na anatomia,a explicao para o modo de ser do conhecimento; a anatomia fornece antes um testemunho, uma manifestao fenomenalde algo mais profundo, essencial, metafsico, de que as cincias naturais no podem dar conta: o fato de que a constituiodas formas de vida seguem os graus de objetivao da Vontade, isto , como a Vontade se fenomeniza na natureza, tema dolivro II de O mundo como vontade e representao. porque a realidade se radica no intelecto e no nos sentidos (ou fora docorpo) que a massa cerebral maior dos que a dos nervos sensoriais; o crebro que produz o mundo (como representao),no o sujeito, tampouco a Vontade. Uma teoria segundo a qual o crebro aumenta por causa dos sentidos mais e maisrefinados no contato com o ambiente externo (interacionismo) consiste na tomada do efeito pela causa; maior o crebro,maior e mais complexo o prprio mundo. Muito embora Schopenhauer admita que o mundo natural absolutamentedeterminstico e que, portanto, o corpo sofre efeitos e causa tantos outros, a perspectiva do mundo como Vontade (se queesta expresso pode ser tida como rigorosamente legtima, contra o que se poder argumentar em momento propcio) vemdenunciar especificamente a deficincia de toda e qualquer explicao naturalista, visto que, j condicionada peloentendimento, consiste em mera representao que nada diz da coisa em si.14 Thomas Reid (1710-1796), filsofo religioso escocs, contemporneo de Hume, tendo fundado a Escola Escocesa doSenso Comum, recusava as consequncias cticas do pensamento de seu conterrneo. A obra referida por Schopenhauerainda tinha acrescentado a seu ttulo sobre os Princpios do Senso Comum, e fora publicada no ano que Reid passou aocupar a cadeira de Adam Smith na Universidade de Glasgow.

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    humana, 1 ed. de 1764, 6 ed. de 1810]. Este recoloca a doutrina de Locke de que a intuio seja um

    produto dos sentidos, demonstrando de modo slido e perspicaz que nenhuma sensao tem a mnima

    semelhana com o mundo intuitivamente conhecido, especialmente que as cinco qualidades primrias

    de Locke (extenso, figura, solidez, movimento, nmero) no podem ser de modo algum fornecidas por

    nenhum dos sentidos15. Ele [Reid], a seguir, deixou a pergunta pela formao e origem da intuio

    totalmente insolvel. Assim, apesar de desconhecer Kant por completo, ele fornece, por assim dizer, por

    regula falsi, uma slida prova para a intelectualidade da intuio (exposta em primeiro lugar

    propriamente por mim, a partir da doutrina kantiana16) e para a descoberta de Kant da origem

    apriorstica dos seus elementos fundamentais, o espao, o tempo e a causalidade, do que primeiramente

    se deduzem aquelas propriedades primeiras lockeanas, sendo por seu intermdio que estas ltimas

    facilmente se constroem. O livro de Thomas Reid muito [25] instrutivo e digno de ser lido, dez vezes

    mais do que tudo de filosfico que foi escrito depois de Kant tomado em conjunto. Uma outra prova

    indireta para sua doutrina, embora pela via do erro, forneceram os filsofos sensualistas franceses, que,

    desde Condillac nas pegadas de Locke, se cansaram de efetivamente demonstrar que todas as nossas

    representaes e pensamentos recaem sobre simples sensaes (penser cest sentir [pensar sentir]),

    que eles denominam, segundo o processo de Locke, ideias simples, e por cujas associaes e

    comparaes simplesmente deve se construir todo o mundo objetivo em nossa cabea. Estes senhores

    realmente tm des ides bien simples [ideias bem simples]: divertido ver como eles, privados tanto da

    profundidade do filsofo alemo como da honestidade do ingls, viram para l e para c aquela matria

    pobre da sensao e procuram torn-la importante para dela compor o fenmeno to cheio de sentido do

    mundo-representao e do mundo-pensamento. Mas o homem que construram deveria ser, falando

    15 impreciso falar em uma doutrina lockeana da produo da intuio pelos sentidos, que so simples (e exclusivas) fontesdo material da intuio, no esgotando suas possibilidades, como foi observado na nota 8. Afinal, as operaes mentais, acomear pela ateno, passando pela comparao das ideias, so o que efetivam qualquer conhecimento ou conscincia domundo externo e da prpria interioridade. No fica to claro, at este momento, se Schopenhauer assim o interpreta, contudo.Parece acertado dizer que Locke distingue aquilo que pertinente estritamente mediao dos sentidos, as qualidadessecundrias, que portanto variam segundo a constituio dos rgos sensoriais, daquilo que primordialmente pertinente coisa percebida como condio mesma de sua perceptibilidade, denominado qualidades primrias. De fato, para Locke, aimpresso de uma coisa extensa advm dos sentidos (viso, tato), j que a intuio, para ele, consiste na percepo de acordoou desacordo entre ideias, mas, por sua vez, a percepo de algo como extenso consiste em uma atividade mental. De todomodo, o que est em jogo aqui, em primeiro lugar, o problema da origem das qualidades primrias se o objeto ou osujeito , e, em segundo lugar, o problema do potencial ctico do empirismo, j aludido na nota 6. A propsito, a tese queconsagrou Hume, a saber, que a ideia de conexo necessria consiste em uma crena, j preconizada por Locke no captuloXXVI do livro II de seu Ensaio, onde se l: para se ter a ideia de causa e efeito basta considerar qualquer ideia simples ousubstncia como comeando a existir pela operao de alguma outra, sem saber o modo desta operao (grifos nossos) este no-saber, que Locke atribua a uma operao imediata da mente que intuitivamente percebe, graas experincia, umarelao, Hume afirmar taxativamente ser uma crena oriunda do hbito.16 Aqui, como em inmeras ocasies, Schopenhauer, com razo e modstia parte, clama para si a originalidade de sua teoriado conhecimento sem nunca deixar omissa a sua filiao (sempre crtica) a Kant. Alis, se a doutrina kantiana a fonte daschopenhaueriana, sua originalidade decorre justamente da reviso radical da doutrina do entendimento implicando, porconseguinte, a recusa de quase todo o resto , que nada mais tem de predicativo. Poder-se-ia dizer que o entendimento, emSchopenhauer, uma faculdade muda e mesmo incapaz de produzir uma conscincia propriamente dita, sendo sua crticafundamental a Kant a insero ilegal de conceitos puros no entendimento.

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  • DAX MORAES

    anatomicamente, um anencephalus [anencfalo], um tte de crapaud [cabea-de-sapo17], somente

    dotado de rgos sensoriais, sem crebro. Para citar como exemplo somente um par das melhores

    tentativas em inumerveis desta espcie, nomeio Condorcet no incio de seu livro Des progrs de

    lesprit humain [Dos progressos do esprito humano] e Tourtual sobre a viso no segundo volume dos

    Scriptores ophthalmologici minores, edio Justus Radius (1828).

    O sentimento [Gefhl] de deficincia de uma explicao simplesmente sensualista para a

    intuio manifesta-se igualmente, pouco antes da apario da assero pronunciada pela filosofia

    kantiana, naquela de que ns, excitados pela sensao, no temos apenas representaes das coisas, mas

    as coisas mesmas imediatamente percebidas18, apesar de situadas fora de ns; sem dvida isto

    incompreensvel. E isto no foi visto de modo mais ou menos idealista, mas declarado do ponto de vista

    realista habitual. O louvado Euler19 pesou bem e precisamente esta assero em suas Cartas a uma

    princesa alem, v. 2, p. 68. Eu penso ento que as sensaes (os sentidos) contm ainda mais um

    pouco do que julgam os filsofos. Elas no so somente percepes vazias de determinadas impresses

    feitas no crebro20; elas do alma [26] no s ideias das coisas; elas tambm lhe apresentam objetos

    reais [stellen ihr auch wirklich Gegenstnde vor], que existem fora dela, embora no se possa

    compreender como isto propriamente se d. Esta opinio se explica pelo seguinte: apesar de a intuio

    nos proporcionar, como demonstrei suficientemente21, o emprego consciente22 a priori da lei da

    causalidade, neste caso, todavia, chega com a viso o ato do entendimento, por meio do qual, de modo

    algum com clara conscincia, ns passamos do efeito causa; da no se separa a sensao da

    representao da matria bruta, formada primeiramente pelo entendimento. Ainda menos pode vir

    17 Trata-se de uma denominao popular para anencefalia, fazendo referncia ao aspecto da cabea de recm-nascidosacometidos por esta m-formao fetal, que no implica, necessariamente, a ausncia total de crebro. 18 Trata-se do mais radical realismo sensualista que, alis, corresponde ao que pressupe o senso comum mais rudimentar eacrtico, que despreza o contrassenso que h em se conceber uma percepo pura e sem mistura de algo que nos chega conscincia passando por uma srie de rgos e nervos. Os partidrios desse modo de pensar no apenas supem que osrgos sensoriais sejam perfeitos e adequados a seus objetos, uma maravilha da natureza, como se rebelam contra toda formade questionamento desta perfeio, atribuindo, ao contrrio, aos sentimentos e reflexo a deturpao e complexificao doque em verdade simples e evidente por si mesmo. No toa que esse modo de pensar consiste precisamente naquele quemais repele a crtica filosfica das supostas obviedades. 19 Leonard Paul Euler (1707-1783) foi um importante matemtico suo de Basileia. As referidas cartas, escritas em SoPetersbugo entre 1768 e 1772, foram publicadas em trs volumes sob o ttulo Lettres a une Princesse dAllemagne surquelques sujets de physique et de philosophie (Cartas a uma princesa da Alemanha sobre alguns assuntos de fsica e defilosofia). 20 Eis a concepo lockeana, conforme exposto em notas acima, aqui criticada por Euler. Ou seja, as sensaes que seimprimem no crebro mediante a ateno, sendo ento percebidas, tornando-se ideias na mente, por si ss e isoladamente,seriam vazias at que a intuio lhes conferisse sentido mediante suas operaes comparativas.21 SG/PR e WWV I/MVR I.22 Note-se que se trata de uma conscincia concreta, pr-reflexiva, que no se confunde com a compreenso ordinria,subjetiva e abstrata, de conscincia como um estado mental como a conscincia de si, das prprias operaes, de se terum eu etc. uma conscincia imediata dos objetos do entendimento oriundos da sensibilidade que representam, a prpriamatria e contedo real dos conceitos. Tal imediaticidade no que no haja meios, mas, sim, que no h intuies oupensamentos mediadores oculta o processo e, assim, faz crer que a sensao, a representao e a coisa so o mesmo. Nessevazio o sensualista acredita encontrar sua prova.

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    conscincia uma diferena entre objeto e representao, que, alis, no tem lugar23; mas ns tomamos

    todas as coisas mesmas como imediatamente verdadeiras, isto , como situadas fora de ns; embora seja

    certo que somente a sensao pode ser imediata, esta se encontra na regio abaixo de nossa pele24. Isto

    assim explicvel: o fora de ns uma determinao [Bestimmung] exclusivamente espacial, o espao

    mesmo uma forma de nossa faculdade intuitiva, isto , uma funo de nosso crebro; portanto, o fora

    de ns, para onde ns transferimos objetos, por motivo da sensao visual, jaz dentro de nossas prprias

    cabeas: pois a est todo cenrio25. Mais ou menos como ns vemos no teatro montanhas, floresta e

    mar, porm tudo permanece ali dentro da casa. Com isto se torna compreensvel que ns intuamos de

    modo inteiramente imediato a coisa com a determinao fora de..., mas no uma representao nela

    mesma diferente de coisas situadas no exterior. Pois no espao e, por conseguinte, tambm fora de ns

    esto somente as coisas enquanto as representamos: da estas coisas que ns intumos em tal medida

    imediatamente serem de fato exatamente o mesmo que nossas representaes, no simples cpias suas,

    e, como tais, existirem [vorhanden] somente em nossa cabea. Enfim, no contemplamos as coisas

    situadas no exterior, como diz Euler, imediatamente nelas mesmas; pelo contrrio: as coisas

    contempladas como situadas fora de ns so somente nossas representaes e por isso uma de nossas

    apreenses [Wahrgenommenes] imediatas. Todas as observaes mais acertadas e justas nas palavras de

    Euler fornecem, portanto, uma nova confirmao da esttica transcendental kantiana [27] e da minha

    teoria da intuio nela apoiada como, alis, a do Idealismo. As suprarreferidas imediaticidade e

    inconscincia com que ns, pela intuio, fazemos o passo da sensao para sua causa deixa-se

    explicar por um processo anlogo nas representaes abstratas, ou pensamento. Na leitura e na escuta,

    ns s recebemos palavras, mas vamos diretamente destas para os conceitos denominados por meio

    delas, isto , como se ns recebssemos imediatamente os conceitos: pois no nos tornamos nem um

    23 Conforme exposto no incio do captulo questo retomada logo a seguir e comentado nas notas, a identidade entreobjeto e representao proposta por Schopenhauer se ope ao realismo na medida em que, j vimos, todo objeto intelectual,e isto graas excluso da coisa em si como termo da relao identitria. Onde o senso comum reconhece a evidncia deuma realidade exterior, Schopenhauer aponta a prova de que o mundo conhecido s existe como representao,distanciando-se de uma compreenso ingnua da natureza de nossas percepes.24 Ou seja, no rigor do termo, nenhuma representao pode ser imediata, como diz o termo Vorstellung, cujo prefixo jindica um meio, um espao entre uma coisa e outra, um vo entre sujeito e objeto em relao, sendo a mediao feita aquipelos rgos nervosos e condies intelectuais da experincia. Desse modo, Schopenhauer reconhece a imediaticidade comque os sentidos seriam estimulados, mas, ao contrrio de significar uma evidncia da exterioridade do objeto, isto se realizamediante a afetao sofrida pela superfcie do corpo e isto, por sua vez, graas ao que se encontra imediatamente debaixodela, a saber, a periferia de nosso sistema nervoso. Do ponto de vista do sujeito, contudo, trata-se de uma apreenso imediatae inconsciente, como tradicionalmente se compreende intuio na Filosofia. 25 V. acima, n. 3. A metfora do mundo como teatro, da realidade como encenao, muito cara a Schopenhauer, queaparentemente se inspira na repetidamente aludida tragdia de Caldern de La Barca La vida es sueo. Embora o verboalemo stellen permita a acepo de fingir, como quando se diz ich stelle mich, a conotao, a nosso favor, bem maisforte em portugus, onde representar, na linguagem comum, logo adquire a rica acepo de desempenhar um papel,atuar como, seja no sentido de agir de modo a ser tomado por outro, um personagem em verdade fictcio, ou seja, fazerparecer, como no sentido de agir em nome de outro, ou seja, em lugar de outro, como um membro de um grupo que semanifesta em seu lugar ou um mensageiro que fala em nome de outro. Eis em que concretamente consiste o mundo dasrepresentaes.

    Traduo dos captulos 2 e 6 do Tomo II (Suplementos) de O mundo como vontade e como representao 332

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    pouco conscientes dos passos em sua direo. Por isso, s vezes, no sabemos em que idioma acaso

    lemos ontem, coisa de que nos recordamos no que concerne ao dia de hoje. Contudo, torna-se

    perceptvel que semelhante passo tem lugar todas as vezes quando alguma vez ele falha, isto , quando

    ns, na recreao [Zerstreuung], lemos descuidadamente [gedankenlos] e ento nos damos conta de que

    ns havamos recebido cada palavra, mas nenhum conceito. Somente quando ns omitimos conceitos

    abstratos para as figuras da fantasia26 nos tornamos conscientes da converso.

    Alis, a inconscincia da percepo emprica com que se d o passo da sensao para suas

    causas s se encontra propriamente na intuio em sentido estrito, a saber, no lugar da viso; entretanto,

    ele se d com maior ou menor clareza de conscincia em todas as outras percepes sensoriais, pois

    que, na apreenso pelos quatro sentidos mais grosseiros, sua realidade se deixa constatar, de fato,

    efetivamente.27 Apalpamos no escuro uma coisa, por tanto tempo e em todos os lados, at que ns

    possamos construir, a partir seus diferentes efeitos sobre as mos, a causa dos mesmos como figura

    determinada. Alm disso, quando algo escorregadio ao tato, ns s vezes procuramos refletir se temos

    alguma gordura ou leo nas mos; normalmente, tambm, se temos as mos muito quentes quando o

    contato frio. s vezes, duvidamos em um som se foi s interior ou efetivamente uma afeco dos

    ouvidos oriunda de fora; em seguida, se ressoa prximo e fraco ou distante e forte; depois, de que

    direo veio; finalmente, se foi a voz de homens, de animais ou de instrumentos: assim, no efeito dado,

    ns investigamos em direo causa. No odor e no gosto [28] cotidiana a incerteza sobre a natureza

    da causa objetiva do efeito sentido: [embora] to inequivocamente separados cheguem a ns. Para que o

    passo do efeito para a causa acontea de modo inteiramente inconsciente na viso, e desta maneira se

    produza a aparncia, como esta espcie de percepo foi totalmente imediata, existente s na sensao

    sem atuao do entendimento, isto tem sua razo [Grund] parcialmente na elevada convenincia28

    26 Figuras da fantasia, neste caso, so as palavras que, produzidas posteriormente s ideias gerais, so utilizadas para adenominao dos conceitos (v. cap. 6). Aqui a traduo francesa de Burdeau comete um grave deslize ao dizer: somentequando ns passamos de conceitos abstratos a signos figurados, isto , palavras escritas, que temos conscincia datransposio. Evidentemente, esta verso desconsidera por completo e mesmo inverte o que Schopenhauer acabara de dizerem seu exemplo, pelo qual o autor afirma: apenas se tem conscincia do processo quando ele no acontece, quando o passono tem lugar, sem mencionar que o prprio caminho o oposto, a saber, so as palavras escritas a ir ao encontro dosconceitos; quando no damos ateno ao que est escrito, a informao oriunda da viso como que encontra seu caminhonatural bloqueado, de modo que seu significado passa em branco.27 Naturalmente, esta realidade intuitiva, referindo-se ordem representacional. A afirmao de Schopenhauer simplesde se compreender: enquanto as causas daquilo que vemos parecem evidentes, irrefletidas, o mesmo no se d com osdemais sentidos a no ser quando nossos olhos nos esclarecem, seja pela viso atual, seja pela lembrana de algo j visto disto o prprio autor d exemplos a seguir. Alis, cabe observar a relativa fidelidade de Schopenhauer tradio quecompreende a intuio como espcie de viso, bem como a primazia deste sentido sobre os demais, sobretudo em Plato, quechegou a derivar da seu conceito de Ideia como objeto da contemplao, ou theoria, a viso do suprassensvel.28 Optou-se por convenincia em vez de perfeio no por uma simples questo de elegncia, tanto menos por se tratarde uma traduo rigorosamente literal. Convir, do latim convenire, isto , vir ao encontro em sua totalidade(Voll-kommen), estar de acordo, adaptado, indica com grande preciso o que pretende dizer Schopenhauer, a saber, aconformidade e a proporo de faculdades intelectuais e rgos sensoriais. O termo perfeio, que indica algo acabado,pronto, definitivo, a que nada se pode acrescentar, d margem a alguns vcios de leitura pelo quais se poderiainadvertidamente vincular Schopenhauer tradicional doutrina da suma racionalidade da natureza em si como obra de umser onisciente, bom e todo-poderoso. Sua doutrina, ao contrrio, nos ensina que a racionalidade da natureza pertence a nosso

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    [Vollkommenheit] dos rgos, parcialmente no tipo de efeito exclusivamente retilneo da luz. Esta ltima

    [a viso] j capaz de guiar a impresso mesma ao lugar da causa e ento o olho tem aberta a

    capacidade de perceber, com exatido e numa s visada, todas as nuances da luz, sombra, cor e

    contorno, bem como os dados segundo os quais o entendimento avalia a distncia; deste modo acontece

    a atuao do entendimento sobre as impresses desse sentido, com tanta rapidez e segurana que muito

    pouco se permite chegar conscincia, como o soletrar durante leitura; por meio disso, portanto, a

    aparncia se produz como se a sensao mesma j desse os objetos imediatamente. Contudo, a operao

    do entendimento, vigente no reconhecimento da causa pelo efeito, mais importante precisamente na

    viso29: em virtude de tornar simples a percepo dupla intuda com dois olhos; em virtude de tornar

    reordenada a impresso, que se converte de ponta-cabea sobre a retina em decorrncia do cruzamento

    dos raios na pupila, graas perseguio da causa, que encontra na mesma direo o caminho de volta,

    ou, como se diz, ns vemos a coisa em p, apesar de sua imagem no olho estar invertida; em virtude de

    aquela atuao do entendimento, afinal, tornar grandeza e distncia avaliadas em nossa intuio

    imediata a partir de cinco dados diferentes, que Thomas Reid descreveu muito bem e claramente. Eu

    expliquei tudo isto, bem como as demonstraes que provam irrefutavelmente a intelectualidade da

    intuio, j em 1816 em meu ensaio Sobre a viso e as cores (segunda edio de 1854), com

    importantes acrscimos na adaptao corrigida para o latim quinze anos depois, que, sob o ttulo

    Theoria colorum physiologica eademque primaria [Teoria fisiolgica fundamental das cores], se

    encontra editada por Justus Radius, em 1830, no terceiro volume dos Scriptores [29] ophthalmologici

    minores, profunda e minuciosamente detalhada, todavia, na segunda edio de minha dissertao Sobre

    o princpio de razo30, 21. Para ali, enfim, eu remeto [o leitor] sobre este importante assunto a fim de

    no encher ainda mais o presente esclarecimento.

    Entretanto, uma observao conclusiva na esttica pode encontrar aqui seu lugar. Em virtude da

    demonstrada intelectualidade da intuio, a vista de uma coisa bela, p. ex. um belo panorama, de fato

    modo de representao e por ele se produz, sendo assim dada a priori graas ao intelecto. Por sua vez, perfeiosignificaria apenas o carter inequvoco da intuio, o que no o caso no presente momento em que o autor refere-seapenas ao sentido da viso; de todo modo, com esta ressalva, admite a primazia da viso graas a esta Vollkommenheit. Arelativa perfeio da viso se acaso se permite falar em perfeio relativa diz respeito ao grau de imediaticidade dasintuies calcadas no visvel relativamente ao palatvel, ao tangvel, ao audvel. A gradao confirmada pela palavraelevada, intil se se tratasse de uma perfeio propriamente dita, mas muito adequada em se tratando de uma conveninciaprivilegiada. Em ocorrncia anterior, o vocbulo vollkommen foi traduzido como perfeio, uma vez que ali se tratava,especialmente, da perfeio da intuio nos mamferos, pois estes, em toda a natureza, so os nicos capazes de intuiespropriamente ditas tal como Schopenhauer as compreende. Desse modo, podemos adotar perfeio no que se refere aoentendimento, com ressalvas de que isto no implica realismo epistemolgico, mas sugere-se que se d preferncia aconvenincia quando se trata da relao entre os objetos e os rgos pelos quais se produzem no crebro, ou seja, por viade nossa sensibilidade e nosso entendimento.29 Os exemplos seguintes so de notvel importncia no sentido de esclarecer, a despeito de sua imediaticidade, em quecontribuem as faculdades estritamente intelectuais/cerebrais (ativas) para os rgos da viso (passivos), salientando-se aindamais nossa inconscincia acerca do processo.30 Trata-se da verso revista e ampliada, de 1847, da dissertao Sobre a qudrupla raiz do princpio de razo suficiente,primeira grande obra de Schopenhauer, publicada originalmente em 1813. Aqui, a referncia do autor abrevia o ttulo.

    Traduo dos captulos 2 e 6 do Tomo II (Suplementos) de O mundo como vontade e como representao 334

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    um fenmeno cerebral. A pureza e a perfeio do mesmo, pois, no dependem somente do objeto, mas

    tambm da constituio do crebro, a saber, de sua forma e seu tamanho, da delicadeza de sua textura e

    do fomento de sua atividade por meio da energia dos pulsos das veias cerebrais31. Por conseguinte, a

    imagem do mesmo panorama em diferentes cabeas, mesmo que os olhos tenham igual acuidade, fica

    determinada to diferentemente como a primeira e a ltima impresses de um clich de cobre muito

    usado. Nisto se baseia a grande diferena da capacidade de fruir a bela natureza e, por conseguinte,

    tambm de imit-la, isto , de produzir os mesmos fenmenos cerebrais por meio de uma causa

    completamente heterognea, a saber, as manchas de cor sobre uma tela.

    Alis, a aparente imediaticidade baseada na total intelectualidade da intuio, em virtude de que

    ns, como diz Euler, apreendemos a coisa mesma e como situada fora de ns, anloga ao modo como

    ns sentimos as partes de nossos prprios corpos, sobretudo quando elas doem, sendo a maioria dos

    casos em que logo as sentimos32. Como cremos perceber a coisa imediatamente ali onde ela est,

    enquanto isto efetivamente acontece no crebro, assim tambm ns sentimos a dor de um membro nele

    mesmo, enquanto esta do mesmo modo se torna sentida no crebro, para onde a conduz o nervo das

    partes afetadas. Por isso, somente so sentidas as afeces de tais partes, cujos nervos vo para o

    crebro, mas no daquelas cujos nervos fazem parte do sistema ganglionar; a no ser que uma afeco

    excessivamente forte insista em voltar at o crebro, onde geralmente ela s se d a conhecer como

    aptica indisposio e sempre sem [30] exata determinao de sua localizao. Por isso, tambm, no

    so sentidos os ferimentos de um membro cujo tronco nervoso cortado ou interrompido. Por isso,

    31 Pressupostas as observaes feitas na nota 13, reiteramos que este trecho no significa a adeso absoluta de Schopenhauer biometria to em voga no sculo XIX que, hoje, to corriqueira. Os mdicos nos mensuram e computadores avaliamnossas propores deste o tero materno. Entusiasta da Biologia como testemunha da correo de sua metafsica,Schopenhauer encontra na conformao fisiolgica a medida da capacidade representacional, razo pela qual ele tantas vezesrecorre aos achados daquela cincia em seus exemplos tirados do mundo natural. A boa atividade cerebral depender de suaboa constituio fisiolgica; esta, porm, depender da perfeio com que a Vontade se manifesta no mundo dos fenmenoscomo corpo. Isto parte, desde Foucault, em especial, as consequncias da biometria, levada aos mais bizarros excessos como pelos nazistas, para se citar um caso paradigmtico e do conhecimento geral , tm sido objeto de duras crticas nasCincias Humanas em geral, especialmente no ramo das Cincias Sociais em seu embate contra o naturalismo. Por polmicaque seja a perspectiva de Schopenhauer, que parece indicar (e de fato indica) uma proporo direta entre inteligncia econstituio fisiolgica de que, mais adiante, no captulo 6, teremos exemplo muito mais polmico! , deve-se levar emconta, antes de tudo, o sentido geral e mais imediato de suas asseres, sob pena de obliterao de sua doutrina: estabelecer aprimazia do intelecto/crebro sobre as sensaes/sentidos no que concerne ao modo como o mundo se d para ns, no comoalgo exterior visto, mas interior intudo, no como algo que est fora e chega a ns, mas que est em ns como existentefora. Em seguida, o autor j alude sua doutrina do gnio artstico, tematizada no livro III de O mundo como vontade erepresentao. Trata-se, neste ltimo caso, de atingir pela inteligncia uma representao universal, a saber, a Ideia.32 V. WWV I/MVR I, 6. Importante aqui observar a aluso famosa tese de Schopenhauer acerca do corpo como objetoimediato da intuio. Desde j fica claro que, ao percebemos nosso prprio corpo como algo distinto de nossa mente,conscientemente, o percebemos como representao, ou seja, trata-se de um objeto intelectual. O corpo que conhecemos,enquanto conhecido reflexivamente por um sujeito, mediato. Por isso mesmo a dor, que est em nosso crebro, sentidacomo situada em alguma outra parte do corpo e imediatamente percebida. O carter mediato de nosso conhecimentoconsciente do objeto imediato ser tema de captulo posterior. Alm disto, a afirmao veraz de que ns tomamosconscincia das partes de nosso prprio corpo quando elas doem ou causam incmodo no deixa de ser uma contribuiopara a tese schopenhaueriana acerca da positividade da dor, bem como do prazer como simples meio para suprimi-la, ou seja,do carter negativo deste ltimo.

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    enfim, quem perdeu um membro, s vezes, ainda sente dor nele, porque os nervos que vo at o crebro

    ainda existem. Portanto, em ambos os fenmenos aqui comparados, o que se d no crebro

    apreendido como exterior a ele: na intuio, [o crebro] estica o seu tentculo at o mundo exterior pela

    mediao do entendimento; na sensao dos membros, pela mediao dos nervos.

    [67] CAPTULO 6

    PARA A DOUTRINA DO CONHECIMENTO ABSTRATO,

    OU RACIONAL

    A impresso exterior sobre os sentidos, junto disposio [Stimmung] que se produz sozinha e

    por si mesma em ns, desaparece com a presena das coisas33. Portanto, elas no podem constituir a

    experincia propriamente dita, cuja lio para o porvir deve conduzir nossa ao. A imagem dessa

    impresso, aquela que a fantasia guarda, j imediatamente mais fraca do que a impresso, a cada dia

    se enfraquece mais e se apaga por completo com o tempo34. Nem o desaparecimento instantneo das

    impresses nem o desaparecimento sucessivo das imagens a elas submetidas esto livres da fora do

    tempo; consequentemente, apenas uma coisa est: o conceito35. Assim, nele deve estar fixada a

    experincia instrutiva e s ele se presta a assegurar a conduo de nossos passos na vida. Eis por que diz

    Sneca com retido: Si vis tibi omnia subjicere, te subjice rationi [Se queres tudo submeter a ti, te

    submetas razo] (Epstola 37). E acrescento, para cobrir [berlegen] os outros na vida efetiva, esteja

    coberto [berlegt], isto , proceda segundo conceitos, que a condio indispensvel36. Um to

    33 Como se constatar ao longo do captulo, Schopenhauer combate aqui o sensualismo que defendia algo como umconhecimento/pensamento dos sentidos, como se estes, sozinhos, fossem capazes de conhecer. Como rgos passivos,aquilo que transmitem ao crebro no permanece neles, mas se perde quando cessa a afetao imediata pelo objeto. Sem aparticipao de faculdades estritamente intelectuais, a sensao no pode produzir memria nem experincia, cada sensao nica e instantnea, o mesmo se dando com qualquer sentimento interno por ela produzido em ns. Desse modo,Schopenhauer refutar a tese que defende intuies sensveis, bem como o empirismo estrito. Como foi visto no captulo 2,toda intuio intelectual. Agora, Schopenhauer afirmar que todo pensamento abstrato e, portanto, dependente deconceitos. 34 Tambm a faculdade da imaginao no basta reteno definitiva de uma impresso sensvel. A imagem mentalproduzida j , em sua origem, empalidecida em relao impresso que reflete. Portanto, uma ideia, em Schopenhauer, nopode ser simplesmente a imagem mental produzida mediante a excitao dos sentidos.35 Assim como tempo, espao e causalidade constituem o conhecimento intuitivo, o conceito o elemento fundamental doconhecimento abstrato. Os dados sensveis, enquanto tais, produzem-se como que mecanicamente segundo a constituiodos organismos, determinando a natureza temporal e impermanente dos produtos da imaginao que deles decorrem.Resultantes de uma atividade intelectual, os conceitos conservam sua independncia com relao ao tempo, emborapermaneam como meras representaes secundrias; dependem das intuies, representaes primrias, mas pertencem intelectualidade. 36 Se apenas o conceito no sofre com a ao do tempo, devendo nele se fixar a experincia e, portanto, nele se baseiamnossas aes, uma livre traduo do jogo semntico utilizado por Schopenhauer diria: colocar-se sobre os outrosdeterminando-lhes o agir exige que se esteja colocado sob conceitos, ou seja, submetido reflexo, ao pensamento. Uma vezque o verbo alemo berlegen significa tanto colocar-se acima de quanto refletir, pensar em, a traduo pelo verbocobrir assume duas conotaes, a saber: agir em lugar de algum e abrigar-se sob algo. Interessante observar que, se

    Traduo dos captulos 2 e 6 do Tomo II (Suplementos) de O mundo como vontade e como representao 336

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    importante utenslio da inteligncia, como o conceito, no pode evidentemente ser idntico palavra,

    este simples som que, como a impresso dos sentidos na presena ou como o fantasma da audio,

    emudece com o tempo. Por sua vez, o conceito uma representao cuja clara conscincia e cuja

    conservao esto ligadas palavra: eis por que os gregos primeiramente chamaram por um nome

    palavra, conceito, proporo, pensamento e razo: 37. Contudo, o conceito to

    completamente diferente das palavras a que est ligado quanto das intuies de que se forma. Ele de

    uma natureza totalmente distinta dessas impresses dos sentidos. Porm, ele pode agregar dentro e em

    torno de si todos os resultados da intuio, bem como restitu-los depois do mais longo perodo,

    inalterados e no diminudos: da primeiramente se produz a experincia38. A intuio, ainda que junto

    s sensaes, no conserva o conceito, mas seu essencial [Wesentliches, Essentielles] em todo aspecto

    [Gestalt] variante, quando substitutos o satisfazem. Assim, [68] as flores no se deixam conservar, mas

    sim seu leo etreo, sua essncia, com mesmo odor e mesmas foras39. O agir que tivera corretos

    em Sneca, a mxima remete sujeio do poder natureza como signo de sabedoria, bem como ao domnio-de-si, emSchopenhauer isto adquire um tom contemporneo, qual seja, relativo ao carter dominador da racionalidade moderna, nova concepo, formulada por Bacon, de que saber poder. O poder no mais busca legitimidade na sabedoria; ele seutiliza do saber como instrumento para sua prpria afirmao. O carter instrumental da racionalidade evidenciado logo aseguir.37 Embora seu carter intelectual garanta ao conceito a permanncia de que os sons so destitudos, sua fixao nainteligncia depende da palavra na medida em que, por meio desta, no enquanto objeto sensvel, mas sim enquanto signoracionalmente determinado, torna-se possvel memoriz-lo. Com isto Schopenhauer indica uma breve teoria dos signoslingusticos pela qual o conceito abstrato pode se ligar a um dado intuitivo independente de possuir ou no contedoemprico. A palavra lembrada um objeto intelectual vinculado ao conceito, fixvel graas a isto, no um fugaz objeto dossentidos. Reconhecendo esse vnculo, segundo Schopenhauer, os gregos no faziam distino ao dizerem logos, que, emverdade, no dizia tanto respeito fala quanto a seu sentido, no sendo por outro motivo que uma fala sem significado, aindaque pronunciada e reconhecida, era considerada ilgica, irracional. Podemos unir as palavras de tal modo a proferirmosScrates no Scrates, mas, com isso, nada dito, pela simples razo de que tais palavras, meramente faladas, unidasdesse modo, no remetem a conceito algum, tampouco a algo real. O que lemos at aqui consiste em uma nova abordagemdo que dito em meio exposio do 8 do primeiro tomo, onde o foco incide sobre a diferena entre humanos e animais estes ltimos, desprovidos de razo e, portanto, de conceitos, viveriam limitados ao presente. O que se segue aprofundarquestes mencionadas apenas de passagem naquele lugar, bem como no 9, onde se concede espao privilegiado aprincpios de uma lgica geral dos conceitos e juzos.38 Schopenhauer aqui lana uma tese audaciosa: no basta a memria para que se derive, mesmo no homem, a experincia,como Aristteles chegara a afirmar na Metafsica (980 b 28-29); ainda necessrio o conceito. Considerada a fugacidade dosdados sensveis e das imagens que produzem, sua fixao na memria depende da vinculao a conceitos, os quais, por suavez, se fixam graas s palavras. Isto parece significar que o ato de nomear e definir se encontra nas bases de todaexperincia propriamente dita, ou seja, capaz de constituir efetivo conhecimento sobre o que quer que seja. Portanto, a merarepetio de impresses no capaz de gerar conhecimento, pois, para isso, as diferentes impresses singulares devem serreunidas sob a unidade de um conceito. Do mesmo modo, as palavras no so apenas auxiliares da memria como pensaramoutros filsofos, mas sua condio. Conceitos ou ideias gerais no o so por terem sido extrados de vrios objetos (cf.WWV I/MVR I, 9), no devendo ser explicados pelas relaes de semelhana de impresses ou concordncia deideias, que so antes efeitos do que causas da representao abstrata nisto consistiria novo equvoco do sensualismoempirista. Em suma, graas ao modo de representao da razo que as intuies no se perdem no fluxo temporal, sem oque uma simples faculdade da memria se tornaria ineficaz a longo prazo; isto porque, como vimos anteriormente, enquantoconscincia imediata e no discursiva, a intuio no h de bastar reflexo, repetio e conservao do que experimentado em todas as suas determinaes singulares.39 intuio pertence apenas a matria-prima do conceito, a essncia, ou seja, o que se d como . O que, no entanto, se hde conservar, neste caso, no o que caracteriza uma dada flor singular, mas o que caracteriza suas similares, donde conceitoe nome comuns a todas. Uma determinada flor est sob o mesmo conceito e recebe o mesmo nome de todas as suassemelhantes, muito embora, segundo Schopenhauer, esta seja uma qualidade acidental, no essencial aos conceitos (cf.WWV I/MVR I, 9).

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    conceitos por orientao geral, no resultado, vem encontrar-se com a efetividade planejada40. Pode-se

    calcular o valor inestimvel do conceito, e por conseguinte da razo, quando o olhar se lana sobre a

    quantidade e a diferena infinitas de coisas e situaes existentes aps e ao lado uma da outra e se

    reflete que, apesar disto, fala e escrita (os signos do conceito) so capazes de nos trazer notcia exata de

    cada coisa e cada relao, de quando e onde se deram; porque relativamente poucos conceitos

    apreendem [befassen] e representam [vertreten] justamente uma infinidade de coisas e situaes. Na

    reflexo propriamente dita, a abstrao [Abstraktion] um atirar ao solo bagagens inteis em prol do

    mais fcil manejo para c e para l dos conhecimentos comparativos e em formao. Deixa-se de lado

    com isso o muito de inessencial [Unwesentliche]41 que h no caminho das coisas reais, que somente gera

    confuses, e opera-se com as poucas, mas essenciais, determinaes [Bestimmungen] pensadas in

    abstracto. Mas justamente porque os conceitos gerais [Allgemeinbegriffe] somente se formam por

    abstrao [Wegdenken] e omisso de determinaes existentes, e portanto, quanto mais gerais, mais

    vazios, o uso de tal procedimento se limita ao beneficiamento42 de nossos conhecimentos j adquiridos,

    ao qual tambm pertence a concluso a partir das premissas neles contidas43. Novas compreenses

    fundamentais, pelo contrrio, somente so tiradas do intuitivo, o conhecimento cheio e rico, com ajuda

    40 Considerando que se trata aqui de uma racionalidade instrumentalizada, portanto, do princpio do agir de fato em vista deinteresses, Schopenhauer no est discutindo a ao moral, mas pragmtica. Neste restrito mbito em verdade, o mbitodas aes cotidianas , pautar-se em conceitos apropriadamente concebidos contribui para o efetivo sucesso de nossosplanos. Trata-se da ao baseada no conhecimento emprico indicada j no incio do captulo, que considera o mundo comorepresentao, no como vontade , do modo comum de agir. Como sabido, a ao moral, segundo Schopenhauer, se fundaem algo muito distinto, nada abstrato, a saber, a compaixo. Desse modo, o que dito no presente captulo no suprime, nemsubstitui, nem entra em conflito com o que Schopenhauer diz acerca da ao justa, moral, pois se trata de uma perspectivacompletamente distinta. Aqui, Schopenhauer aborda a utilidade e mesmo a necessidade do conceito no mundo das aeshumano, a que ele denomina mundo prtico sem evocar a noo kantiana de razo (pura) prtica, que ele, alis, recusa.41 A traduo de Unwesentliche pelo neologismo inessencial visa reforar o papel fundamental da abstrao naconstituio do conceito, a saber, preservar da intuio to somente o geral, o essencial, o comum, o que relevante para oconceito, independente da possibilidade de esta generalidade, essencialidade, abarcar uma multiplicidade de indivduos. Atraduo por insignificante no comportaria suficientemente o sentido que se pretende transmitir, at porqueinsignificante, derivadamente, adquire a acepo de pouco ou nada digno de nota. Em verdade, so justamente estasinsignificncias que distinguem cada ente como singular, nico, instantneo e irrepetvel, de modo que tal traduo poderiaincorrer no erro de exprimir o contrrio do que defende Schopenhauer. Desprezando-as, o conceito se afasta, na mesmaproporo, da concretude imediata e real da intuio, podendo justamente por isso funcionar como instrumento deplanificao, previso e classificao, reduzindo cada coisa e situao a uma classe genrica. Mais acima, quandoSchopenhauer pusera lado a lado as palavras Wesentliches e Essentielles tambm se poderia ter optado por traduzir seu[contedo] significativo, essencial, mas ali, alm de soar redundante, parecia prematuro indicar o sentido pretendido comsignificativo, bem como foraria em demasiado a traduo. Ademais, comumente se testemunha a preferncia deSchopenhauer por termos latinizados, tais como Intellekt, Abstraktion, de maneira a considerarmos legtima a traduopor uma nica palavra, essencial, reconhecendo a mera indicao de correspondncia.42 V. nota 7, acima.43 Sendo assim, conceitos, relativamente pobres e vazios por natureza, nada acrescentam ao nosso conhecimento; so apenasteis. A partir do que conhecemos, podemos proceder a um refinamento, como quando depuramos um conceito no sentido degarantir ou estender sua universalidade. Do mesmo modo, no silogismo, evidenciamos um conhecimento inerente apremissas admitidas em conjunto, as quais, por sua vez, explicitam sob a forma de juzos o que j diz o conceito geral a quese referem por exemplo, no conceito de homem j est includa sua mortalidade, assim como j inerente ao conceito deScrates a qualidade de ser homem, concluindo-se, a partir dos dois simples conceitos que Scrates mortal. Ou seja,juzos no geram conhecimento; apenas o exprimem. Tal perspectiva, to aparentada ao nominalismo, parece contrariar adoutrina kantiana sobre o valor dos juzos sintticos.

    Traduo dos captulos 2 e 6 do Tomo II (Suplementos) de O mundo como vontade e como representao 338

  • DAX MORAES

    da razo [Urtheilskraft]. Porque, alm disso, o contedo e a extenso do conceito esto em relao

    inversa, tanto mais h [de essencial] sob um conceito, tanto menos [de particular] nele pensado; assim

    os conceitos formam um efeito-degrau, uma hierarquia, do mais especfico ao mais geral, de cuja

    extremidade inferior se aproxima o realismo escolstico e, na superior, o nominalismo quase com

    justia se conserva44. Porque o conceito mais especfico j quase o indivduo, portanto quase real; e o

    conceito mais geral, p. ex., o ser (isto , o infinitivo da cpula), quase nada alm de uma palavra. Eis

    por que sistemas filosficos que se detm em tais conceitos muito gerais sem descer para o real, de fato,

    so quase s papo-furado [Wortkram]45. [69] Pois toda abstrao [Abstraktion] s ocorre a no abstrair

    [Wegdenken]46; neste caso, quanto mais longe se prossegue, tanto menos sobra. Quando leio filosofemas

    modernos, que avanam muito apenas em abstraes, no obstante toda ateno, em pouco tempo eu

    quase nada mais posso pensar; porque mal alcano alguma matria para o pensamento, apenas com

    cascas vazias devo operar, o que d uma sensao semelhante produzida na tentativa de lanar um

    corpo muito leve: a fora est a, e tambm o esforo; mas falta ao objeto poder receb-lo para se

    produzir o outro momento do movimento. Quem quiser experimentar isto, leia os escritos de um

    schellingiano e, melhor ainda, de um hegeliano. Conceitos simples deveriam ser propriamente

    44 Nesta comparao, Schopenhauer relaciona os nveis extremos da hierarquia dos conceitos s escolas queprofundamente se opunham no perodo medieval. De um lado, aqueles que defendiam a realidade do contedo de conceitospuramente inteligveis, tais como o maior, o melhor, bem supremo, perfeio, Deus, ser etc., perspectivaadotada mesmo por crticos racionalistas da escolstica como Descartes. Ao realismo racionalista e seu otimismoepistemolgico Schopenhauer dirigir severas crticas em toda sua obra. No outro extremo, temos a longa tradionominalista britnica radicada no pensamento de Ockham, por cuja famosa navalha pretendia desinflar os conceitos do quefosse meramente inteligvel afirmando que o contedo dos mesmos advm da experincia. Da perspectiva nominalista asdoutrinas da abstrao tiram sua fora maior, tendendo ao ceticismo, como ocorre em Hume. Com ressalvas, algumas dasquais j indicadas, Schopenhauer se mostra mais simptico a este ponto de vista. Coloc-lo no nvel superior no significauma aprovao irrestrita, mas dizer que os conceitos, conforme pensados pelos nominalistas, tm maior contedo intuitivo,enquanto aqueles pensados pelos realistas so vazios na proporo de sua universalidade. Desse modo, observamos aconfuso expressa na clssica traduo francesa de Burdeau, que encerra o trecho dizendo que o realismo escolstico e onominalismo no esto longe de ter ambos razo. Afinal de contas, embora haja conceitos constitudos de uma forma e deoutra, o que est em questo quanto se pode atribuir de realidade a seus contedos, no que Schopenhauer no assume umaposio relativista. O exemplo a seguir confirma nossa posio. tambm digno de se observar que, aqui, a hierarquiasugerida por Schopenhauer evoca a quantidade de contedo de um conceito, enquanto que, no 9 do primeiro tomo, ametfora utilizada diz o inverso, uma vez que, ali, vincula o mximo de contedo concretude da intuio e, portanto, aosandares mais prximos do solo firme, ao passo que o mnimo de contedo remete queles mais prximos das nuvens, maisdescolados da realidade. Esta metfora aludida em seguida.45 O termo Wortkram, difcil de traduzir diretamente, indica que se trata de palavras de nfimo significado, desprezveis. Aopo por papo-furado tem em vista a avaliao profundamente depreciativa de Schopenhauer em relao aos sistemasfilosficos, sobretudo a ele contemporneos, que giram em torno de conceitos to vazios como absoluto ou esprito.Logo adiante se seguir uma crtica dessa moderna filosofia. A propsito, a palavra Krmergeist, literalmente espritode dono de mercearia, se refere a pessoas que apenas pensam em tirar vantagem de tudo, o que se aplica aos adversrios deSchopenhauer a seu ver, ou seja, clebres professores que, com sua pretensa filosofia, s tm em vista sua prprianotoriedade. 46 J introduzida a crtica aos sistemas filosficos da poca, esta sentena se conecta crtica de Schopenhauer queles queno fazem da realidade, mas de meras palavras, o objeto da filosofia, uma das mais difundidas acusaes contra as querelasescolsticas. Nisto consiste o abstrair de abstraes e no de intuies: toda a ocupao filosfica consiste em verter omundo intuitivo em conceitos, mas tal tarefa se degrada quando a filosofia se dedica exclusivamente discusso deconceitos, ou seja, abstraindo deles novos conceitos pretensamente mais profundos que, na verdade, so cada vez maisvazios.

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    indissolveis; logo, eles nunca podem ser o sujeito de um juzo analtico: isto eu tomo como impossvel;

    visto que, quando se pensa um conceito, tambm se deve poder indicar seu contedo. O que se costuma

    citar como exemplo de conceitos simples no mais, de modo algum, conceito, mas, em parte,

    sensaes puras, algo como uma cor determinada, em parte, as nossas formas da intuio conscientes a

    priori; portanto, os elementos ltimos do conhecimento intuitivo47. Isto para o sistema de todo nosso

    pensamento o mesmo que o granito na Geognosia48, a ltima base slida, que tudo sustenta e alm da

    qual no se pode ir. Para a clareza de um conceito, requerido no somente que se o decomponha em

    suas notas definitrias, mas ainda, no caso de serem elas tambm abstratas, que se possa analisar mais

    uma vez, e incessantemente, at que se isole o conhecimento intuitivo, consequentemente, at que se

    mostre a coisa concreta49 cuja clara intuio se encobre atravs das ltimas abstraes e, desta maneira,

    assegura a realidade, como tambm sobre ela se assentam todas as abstraes mais elevadas. Por isso,

    no suficiente a explicao usual de que o conceito esteja claro to-logo se possa citar suas notas

    definitrias: pois a decomposio destas notas definitrias talvez conduza sem cessar somente a

    conceitos, sem que, por fim, intuies jazam no fundo dando realidade a todos aqueles conceitos.

    Tome-se, p. ex., o conceito Esprito e se o analise em suas notas definitrias, um ente pensante,

    volitivo, imaterial, simples, [70] que no ocupa espao, indestrutvel; assim, no entanto, nada

    pensado com clareza; porque os elementos deste conceito no se deixam comprovar pelas intuies;

    pois um ente pensante sem crebro como em ente que digere sem estmago. Propriamente claras

    [Klar] so somente intuies, no conceitos: estes podem ser, no mximo, distintos [deutlich]50. Por isso

    tambm, por absurdo que fosse, se relacionou e se empregou claro e confuso como sinnimos,

    explicando-se o conhecimento intuitivo por um abstrato confuso porque s este ltimo seria claro.

    Inicialmente, Duns Scotus fez isto, mas tambm Leibniz tinha na base este modo de ver, sobre o qual se

    47 Conceitos simples, ao contrrio dos compostos, no podem ser divididos em partes, notas definitrias. Schopenhauer noadmite denominar simples os conceitos cuja anlise explicita predicados implicados no sujeito. O simples, portanto, spode se referir ao que h de imediato na intuio. 48 Estudo da estrutura da Terra. Trata-se de uma parte da Geologia, no o mesmo que esta cincia.49 Importante observar que, no obstante o objeto intuitivo seja intelectual, enquanto imediato e puro, Schopenhauer odenomina concreto em oposio quilo que dele se abstrai em vista do conceito geral (cf. WWV I/MVR I, 9). Logo, acoisa concreta no um objeto exterior subsistente, tampouco a coisa em si, mas o objeto real em nosso intelecto, ou seja,o dado do entendimento, sobre o qual como que se acumulam camadas de abstraes e abstraes de abstraes at que seufundo comum se cubra totalmente. No conceito como tal, portanto, encontramos apenas composies de conceitos; todadefinio de um conceito-sujeito remete a novos conceitos-predicados, notas definitrias do primeiro. Este processoanaltico, portanto, no se aplica a conceito propriamente ditos simples.50 Aproveita-se, nesta traduo, para apontar para a crtica schopenhaueriana dos dogmas acerca da clareza e distino dasideias da razo. Enquanto a clareza, segundo o autor, pertence luz da intuio, nica capaz de assegurar nossosconhecimentos, conceitos bem formados a partir dela, respeitando-a, ou seja, dotados de tanto contedo real quanto possvel,podem no ser to claros, mesmo porque, enquanto abstraes, antes encobrem sua matria obscurecendo-a. No entanto,podem ser distintos, no sentido de serem bem determinados com relao a outros conceitos de que se diferenciam por meiode suas notas definitrias. Est em jogo o grau de correspondncia entre significante (signo lingustico) e significado (o dadodo entendimento). At aqui, todavia, Schopenhauer vinha usando o termo deutlich no sentido tradicional de clareza, o que,certamente, no se pode manter em portugus neste contraste final sem ambiguidade.

    Traduo dos captulos 2 e 6 do Tomo II (Suplementos) de O mundo como vontade e como representao 340

  • DAX MORAES

    assenta sua identitas indiscernibilium: veja-se a refutao do prprio Kant na pgina 275 da primeira

    edio da Crtica da razo pura.

    Atingiu-se acima a estreita ligao do conceito com a palavra, portanto, da fala com a razo,

    assentada no seguinte fundamento ltimo. Toda a nossa conscincia, com suas percepes interiores e

    exteriores, tem, via de regra, o tempo como sua forma. Os conceitos, entretanto, formados por meio de

    abstrao como representaes completamente universais e diferentes de todas as coisas particulares,

    tm, nesta qualidade, uma existncia, por assim dizer, objetiva, a qual, porm, no pertence sequncia

    temporal51. Por isso, eles precisam se remeter presena imediata de uma conscincia [de algo]

    individual para que possam, por conseguinte, se inserir em uma sequncia temporal, ser puxados, por

    assim dizer, de volta para baixo52, para a natureza da coisa particular, se individualizar e ento se tornar

    ligados a uma representao sensorial [sinnliche Vorstellung]: a palavra. , pois, [a palavra] o signo

    sensorial [sinnliche Zeichen] do conceito e, como tal, o meio necessrio para sua fixao, isto , para

    que se faa uma ideia sua na conscincia segundo a forma do tempo e assim se produza uma ligao

    entre a razo, cujos objetos puramente universais [allgemeine] so os universalia que no conhecem

    nem lugar nem momento, e a conscincia sensorial, simplesmente animal, atada ao tempo. Somente

    graas a esse meio nos so possveis e esto disponveis a reproduo arbitrria, a recordao e a

    conservao dos conceitos, e primeiramente por seu intermdio as operaes de exame com os mesmos,

    enfim, de julgar, concluir, comparar, delimitar etc. Entretanto, [71] s vezes acontece que os conceitos

    ocupem a conscincia tambm sem seu signo; de vez em quando percorremos to rapidamente uma

    cadeia de concluses que no pudemos pensar nas palavras em tal tempo. Semelhantes [casos] so s

    excees, que supem uma extensa prtica da razo, a qual somente se pde alcanar por intermdio da

    linguagem. Como o uso da razo est muito ligado linguagem, vemos nos surdos-mudos que, se no

    aprenderam nenhuma espcie de linguagem, mal demonstram mais inteligncia do que os orangotangos

    e os elefantes: pois eles tm a razo quase s em potentia, no em actu53.

    51 Uma vez que, para Schopenhauer, todo objeto real objeto intelectual, no h problemas em admitir a existncia objetivade conceitos, mas apenas em certa medida. A ressalva se justifica, claro, no por no haver correspondncia entre oconceito e algum objeto exterior; tal correspondncia sempre mera iluso. A justificativa a relativa falta de contedoreal na proporo da universalidade do conceito. Portanto, embora se trate de um objeto do intelecto, enquanto tal existenterealmente, o mesmo no se pode dizer de seu contedo, a que falta a total e segura concretude da intuio. Tudo aquilo que concreto , por definio, particular, um isto; enquanto universal, o conceito escapa completamente s determinaestemporais e isto mesmo o preserva do emudecimento.52 O conceito, medida que se torna mais abstrato, se torna mais distante das coisas que se encontram aqui embaixo, emnossa intuio, ou seja, os objetos particulares do mundo real. Trata-se de faz-los descerem de sua universalidade de voltapara a particularidade do percebido. V. acima nota 44.53 A concluso acerca dos surdos-mudos inevitvel se se admite que o exerccio da razo e mesmo a fixao dasexperincias depende de conceitos e palavras. Orangotangos e elefantes esto entre os animais mais inteligentes, mas aindaassim desprovidos de razo, de modo que a proximidade intelectual em relao a eles bastante funesta. possvel que odesenvolvimento de uma linguagem convencional de sinais pudesse servir de contraponto a esta dificuldade, como o prprioautor admite. O caso anlogo, porm menos grave, ao que empiristas como Locke pensavam sobre os limites doconhecimento intuitivo em cegos de nascena, o que tambm facilmente compreensvel mediante a importnciafundamental da viso em sua doutrina e na do prprio Schopenhauer, conforme se v no captulo 2. Ainda assim, fica claro

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    Palavra e linguagem so, portanto, o meio indispensvel para o pensamento claro. Porm, como

    toda mquina, todo meio ao mesmo tempo incomoda e obstaculiza; assim tambm a linguagem: pois ela

    fora a um apoio seguro, a formas permanentes, as infinitas nuances, pensamentos movedios e

    modificveis, e assim ela os fixa, tornando-os prisioneiros. Este obstculo removido atravs do

    aprendizado de muitas lnguas. Pois, com isto, o pensamento moldado de uma forma para a outra, mas

    em cada imagem sua se modifica um pouco, liberta-se mais e mais de qualquer forma e invlucro; por

    meio disso sua mais prpria essncia entra claramente na conscincia e tambm recupera sua

    mutabilidade original54. As lnguas antigas, porm, prestam este servio muitssimo melhor do que as

    novas; pois, graas a sua grande diferena com relao a estas, o mesmo pensamento expresso agora

    de maneira totalmente outra, enfim, deve tomar uma forma extremamente diferente; acrescente-se que a

    gramtica mais perfeita das lnguas antigas torna possvel uma construo mais artstica e mais perfeita

    do pensamento e de suas conexes. Por isso, talvez pudesse um grego ou romano ficar satisfeito com

    sua lngua. Mas quem nada compreende alm de um nico dos modernos patos tem esta deficincia

    logo denunciada na escrita e no discurso, enquanto seu pensamento, amarrado firmemente a formas to

    miserveis, estereotipadas, deve ficar desajeitado e montono. Entretanto, como tudo o gnio substitui,

    tambm isto55, como o caso de Shakespeare.

    que a cegueira, do ponto de vista schopenhaueriano no por si mesma prejudicial razo quanto aquisio deexperincias e exerccio desta faculdade. Por outro lado, uma escrita para cegos absolutamente incapaz de lhes forneceruma imensa gama de contedos intuitivos fundamentais vida espiritual. A questo , em suma, bastante polmica, pois adependncia da razo face aos sentidos implica sempre algum grau de dficit cognitivo e mesmo experiencial no queconcerne a cegos e surdos, uma consequncia certamente indesejvel na medida em que interpe ressalvas no princpio deigualdade entre os homens.54 De fato, o aprendizado de lnguas estrangeiras, quando se d de modo apropriado, de grande valor at mesmo paraaprimorarmos o conhecimento de nossa prpria lngua, permitindo-nos utiliz-la com maior preciso. Temos dois bonsexemplos disto quando, especialmente em lnguas aparentadas, reconhecemos palavras similares ou pouco utilizadas emnosso idioma, aprimorando o vocabulrio ou nos fazendo ter conscincia de um universo semntico mais amplo em razodos diferentes usos aqui e acol ou, ainda, pelo contrrio, reconhecermos com maior clareza nuances de sentido, comumenteobscurecidas no uso dirio. Alm disso, especialmente quando se trata de lnguas mais estranhas nossa, aprimoramos nossacompreenso de sintaxe, fundamental para que se capte a organizao lingustica do pensamento em outra cultura. De ummodo ou de outro, o que talvez explique a eventual preferncia de Schopenhauer por palavras latinizadas a exemplo deInteresse, Abstraktion , o exerccio comparativo entre as lnguas tende a promover o cuidado no uso dos termos nosentido de melhor explicitarmos o que pretendemos dizer. Assim, o reconhecimento de que nenhuma traduo uma merasubstituio de palavras, em si mesmas apenas arbitrrias, exige-nos um esforo pela captao do pensamento em questo,devendo se reger por ele a verso, pois a ele deve se adequar nosso lxico e nossa gramtica.55 Burdeau opta por remeter o pronome dieses ao obstculo, assim traduzindo: S o gnio pode superar este obstculocomo supera tudo. No entanto, o verbo ersetzen tem o sentido de se depositar algo suprindo uma falta, podendo ser umasubstituio, uma restituio. Embora no se possa apontar uma incorreo no que a verso francesa expressa, que pode sermais apropriadamente considerada uma parfrase, optamos por manter o sentido, que julgamos ser o original, de que a obrade gnio, ainda que escrita nas lnguas modernas que Schopenhauer acaba de menosprezar, reduzindo-as a patos, capazde valer pelo conhecimento de lnguas mortas. Ou seja, ler a obra de um gnio recente como ler a obra de um antigo. Arazo disto que, de acordo com a doutrina do gnio, este capaz de superar as formas fixas da linguagem corrente, de fatosuperando-as na medida em que toma por modelo a Ideia, exprimindo uma representao mais imediata da Vontade, da coisaem si. A ruptura de forma e invlucro da linguagem se d especialmente na alegoria potica, sobretudo na poesia trgica,mas, justamente por escapar por completo s amarras de qualquer linguagem padronizada, a msica tem o lugar culminantena ordem esttica estabelecida por Schopenhauer no livro III.

    Traduo dos captulos 2 e 6 do Tomo II (Suplementos) de O mundo como vontade e como representao 342

  • DAX MORAES

    Do que eu expus no 9 do primeiro volume, a saber, que as palavras de um discurso so

    perfeitamente compreendidas sem representaes intuitivas para ocasionar imagens em nosso crebro56,

    [72] Burke j ofereceu uma discusso corretssima e muito minuciosamente detalhada em sua Inquiry

    into the sublime and beautiful [Investigao do sublime e do belo], parte 5, cap. 4 e 557; s que ele tirou

    disto a concluso completamente falsa de que ns ouvimos, percebemos e usamos as palavras sem

    qualquer representao (idea) para ligar a elas; ele deveria, de fato, concluir que nem todas as

    representaes (ideas) so imagens intuitivas (images), mas que justamente os simples conceitos

    (abstract notions), que devem ser designados atravs de palavras, e, em virtude de sua natureza, no so

    intuitivos, apenas porque palavras comunicam meros conceitos universais, que so absolutamente

    diferentes das representaes intuitivas, na narrao de um acontecimento, p. ex., todos os ouvintes

    recebero o mesmo conceito; s quando, posteriormente, se deseja que eles ilustrem o fato, cada um

    combinado a uma outra imagem disto em sua fantasia, a qual difere consideravelmente da justeza que s

    o testemunho ocular possui. Nisto jaz a razo prxima [nchste Grund] ( qual se associam ainda

    outras) por que cada fato necessariamente desfigurado atravs das sucessivas transmisses

    [Weitererzhlen]: ou seja, o segundo narrador comunica conceitos que ele abstraiu de sua imaginao

    [Phantasiebilde], aos quais o terceiro, por sua vez, combina uma outra imagem ainda mais desviada,

    que ele agora novamente muda em conceitos, e assim sucessivamente. Quem estiver secamente

    satisfeito em ficar imvel mediante os conceitos que lhe comunicamos e estes passar adiante ser o mais

    fiel reprter.

    A melhor e mais razovel discusso que pude encontrar em algum lugar sobre a essncia e a

    natureza dos conceitos est nos Essays on the powers of human mind, de Thomas Reid [Ensaios sobre

    os poderes da mente humana], Vol. 2, essay 5, cap. 658. Ela foi em seguida desaprovada por Dugald

    Stewart59 em seu Philosophy of the human mind [Filosofia da mente humana]: sobre este, desejo dizer

    somente, de modo breve, para no dissipar papel por sua causa, que ele pertenceu queles tantos que

    alcanam uma fama imerecida atravs de favor e amigos; por isso, eu posso somente desagravar no

    perdendo horas com os escritos dessa mente rasa.

    Alis, que a razo a faculdade das representaes abstratas e o entendimento a das intuitivas, j

    reconhecera o principesco escolstico Pico della Mirandola, [73] uma vez que, em seu livro De

    56 Arthur Schopenhauers Smmtliche Werke. Ed. Julius Frauenstdt. Leipzig: Brockaus, 1877. Vol. II, p. 47-48.57 Ttulo abreviado do tratado de esttica A philosophical inquiry into the origin of our ideas of the sublime and the beautiful(Uma investigao filosfica da origem de nossas ideias do sublime e do belo), de 1757, do filsofo e poltico irlandsEdmund Burke (1729-1797). Os captulos a que Schopenhauer se refere, pertencentes ltima parte da obra, dedicadaespecialmente palavra, tratam, respectivamente, dos Efeitos das palavras e de Exemplos de que palavras podem afetarsem suscitar imagens.58 O quinto ensaio, dedicado abstrao, traz como tema de seu sexto captulo as opinies dos filsofos acerca dosuniversais. A obra em questo foi publicada em 1827.59 Filsofo escocs (1753-1828), foi aluno de Thomas Reid em 1771.

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    imaginatione, cap. 11, distingue cuidadosamente entendimento e razo, esta como a faculdade

    discursiva peculiar aos homens, e aquela, porm, como o intuitivo modo de conhecer do anjo,

    aparentado ao de Deus. Tambm Spinoza caracteriza muito justamente a razo como a faculdade para

    formao de conceitos universais: tica, II, prop. 40, esc. 2. No precisam ser mencionados outros

    casos semelhantes, seno por causa das farsas que todos os filosofastros na Alemanha tm motivado nos

    ltimos cinquenta anos com o conceito de razo, quando, sob este nome, com desavergonhada ousadia,

    eles quiseram encarnar uma faculdade completamente inventada, um conhecimento imediato,

    metafsico, chamado suprassensvel, sendo, no entanto, a verdadeira razo denominada entendimento,

    mas o entendimento propriamente dito, muito desconhecido para eles, deixado totalmente de lado, teve

    suas funes intuitivas imputadas sensibilidade60.

    Como em todas as coisas deste mundo, a cada meio de explicao, a cada vantagem, a cada

    preferncia tambm se vinculam de imediato novas desvantagens; o mesmo vale para a razo, que d

    aos homens to grande primazia sobre os animais; com suas desvantagens peculiares, abre desvios que o

    animal jamais pode tomar61. Atravs dela alcana-se uma espcie totalmente nova, inacessvel ao

    animal, de motivos, de poder sobre seu querer [Willen]62; a saber, os motivos abstratos, os simples

    pensamentos, que de maneira alguma so deduzidos sempre da prpria experincia, mas muitas vezes s

    chegam a ela atravs do discurso e do exemplo do outro, atravs da tradio e da escrita. Tornado

    acessvel o pensamento, ele j est aberto tambm ao erro. Cedo ou tarde, todo erro s deve causar

    danos, e tanto maiores quanto maior ele for. O erro individual, quem o acolhe, deve expiar uma vez e,

    muitas vezes, pagar caro: o mesmo valer na dimenso dos erros em comum de todos os povos. Por

    isso, para que no se repitam muitas vezes, que cada erro, onde quer que se o encontre, seja perseguido

    e erradicado como um inimigo da humanidade, e que a erros no se d nenhum privilgio ou sano. O

    pensador deve atac-los; ainda que a humanidade, igual a um doente cuja lcer