trabalho escrito sobre contrato de doação

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Espírito de liberalidade como requisito da doação Os pressupostos constitutivos do contrato de doação são, segundo o artigo 940º do Código Civil: uma atribuição patrimonial geradora de enriquecimento, uma diminuição do património do doador e, a presença de espírito de liberalidade. Este último requisito, como refere o Prof. Menezes Leitão é a intenção de atribuir o correspondente benefício a outrem por simples generosidade ou espontaneidade. Ou seja, é a atribuição voluntária de uma vantagem a outrem por puro altruísmo sem qualquer intuito de vir a receber uma contrapartida como, por exemplo, o cumprimento de um dever. Consiste no elemento subjectivo do contrato de doação, e portanto, depende sempre do estado de espírito do doador. Liberalidade distingue-se assim de gratuitidade, pois esta depende da estrutura típica de cada um dos negócios jurídicos tal como aparecem regulados na lei. O fim principal subjacente à intenção do doador deve ser o de beneficiar o donatário, podendo este fim concorrer com outros intuitos ou expectativas desde que estes sejam irrelevantes. A Professora Maria do Rosário Ramalho afirma que “a referência do legislador ao espírito de

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Espírito de liberalidade como requisito da doação

Os pressupostos constitutivos do contrato de doação são, segundo o artigo 940º do Código Civil: uma atribuição patrimonial geradora de enriquecimento, uma diminuição do património do doador e, a presença de espírito de liberalidade.

Este último requisito, como refere o Prof. Menezes Leitão é a intenção de atribuir o correspondente benefício a outrem por simples generosidade ou espontaneidade. Ou seja, é a atribuição voluntária de uma vantagem a outrem por puro altruísmo sem qualquer intuito de vir a receber uma contrapartida como, por exemplo, o cumprimento de um dever. Consiste no elemento subjectivo do contrato de doação, e portanto, depende sempre do estado de espírito do doador. Liberalidade distingue-se assim de gratuitidade, pois esta depende da estrutura típica de cada um dos negócios jurídicos tal como aparecem regulados na lei.

O fim principal subjacente à intenção do doador deve ser o de beneficiar o donatário, podendo este fim concorrer com outros intuitos ou expectativas desde que estes sejam irrelevantes. A Professora Maria do Rosário Ramalho afirma que “a referência do legislador ao espírito de liberalidade não pode deixar de ser entendida como exigindo a vontade do doador de produzir enriquecimento.” A Professora crê “ser sempre necessário averiguar essa vontade para que se verifique o terceiro elemento essencial do contrato de doação: é com a intenção de dare que o doador atribui um direito ou assume uma obrigação do donatário, sem lhe exigir nenhuma contrapartida patrimonial.”

A doutrina tem identificado este requisito como a causa jurídica da doação, ou seja, é a principal razão de ser pela qual a lei qualifica este tipo contractual como uma doação.

Esta ideia de generosidade/espontaneidade que se caracteriza por animus donandi opõe-se à ideia de

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necessidade/dever que se caracteriza por animus solvendi. Expressão deste animus solvendi encontra-se no artigo 402º que se refere às obrigações naturais. Quem cumpre uma obrigação natural, não faz uma doação, apenas cumpre meros deveres de ordem moral ou social que são juridicamente reconhecidos. E portanto, não sendo o acto puramente voluntário pois não existe uma ausência completa de coacção, não pode ser determinado por um animus donandi.

Sempre que não seja visível o espírito de liberalidade, o ato não estará em condições de ser qualificado como doação. Portanto não poderá ter a qualificação de doação as ofertas de garantia por tereiros, a renúncia de direitos, o repúdio de herança ou legado e também não são considerados doação os donativos considerados conforme aos usos sociais, como refere expressamente o art.940º/2 do Código Civil.

Não se considera doação a oferta de garantias por terceiro em relação aos cumprimento da obrigação do devedor, por exemplo, o penhor e a fiança, na medida em que desse acto não resulta a intenção de provocar o aumento patrimonial. Falta, aqui, o já referido elemento subjectivo que depende sempre do estado de espírito do doador.

A renúncia a direitos não pode ser qualificada como doação, isto porque a intenção que parece expressa no acto de renúncia não é a atribuição de um benefício a outrem, por generosidade ou espontaneidade, mas antes a intenção de extinguir o próprio direito. Porém, no caso particular da remissão de créditos, a lei determina que, se esta resultar de negócio inter vivos e se se verificar o espírito de liberalidade, será havida como doação conforme consta do art. 863º/2 do Código Civil.

O mesmo motivo pelo qual a renúncia de direitos não se qualifica como doação aplica-se ao repúdio de herança e de legado. O repúdio exprime apenas a intenção de extinguir o correspondente ius delationis. O número 1 do artº2057 do CC não só confirma a doutrina do art.940º, nº2, como esclarece que a alienação da herança, quando feita gratuitamente em benefício de todos aqueles

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a quem ela caberia, se o alienante a repudiasse, não importa aceitação, e, consequentemente, atribuição patrimonial. O caso previsto no nº2 do citado artigo 2057º já é diferente. Se a renúncia é feita em favor apenas de alguns dos sucessíveis, há uma verdadeira transmissão que, quando gratuita, implica uma doação, tal como se fosse feita, não a sucessíveis, mas a estranhos.

Também não são considerados doação os donativos conforme aos usos sociais. São donativos conforme aos usos sociais aqueles que se fazem por ocasiões de aniversários, de casamento, de festas de família, etc. E têm a mesma natureza as gorjetas, quando sejam de uso corrente e sejam dadas no momento em que recebem os serviços. Efectivamente estão nesta hipótese em causo os donativos que as partes têm por uso fazer de acordo com as regras do trato social. Nestes casos, como a intenção do seu actor não é fazer uma liberalidade, ma antes o cumprir de uma obrigação resultante das regras do trato social, a lei considera que a sua realização corresponde a uma animus solvendi e não a um animus donandi, daí resultando que não sejam qualificadas como doação.

A jurisprudência tem-se pronunciado sobre esta questão, relativa ao animus donandi que caracteriza a doação.

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 2006, proc. nº 06A3608 (http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/0/2ce2b2346bbc0c488025729800367223?OpenDocument), discutiu-se, a admissibilidade de uma promessa unilateral de doação para pessoa a nomear e, sendo ela admissível, a possibilidade de execução específica da mesma. A autora intentou uma acção com processo ordinário contra o réu, alegando que este tinha prometido a um terceiro doar a quem este indicasse metade de um prédio urbano, tendo o terceiro indicado a autora como a beneficiária dessa doação. Como o réu se recusou a efectuar a doação prometida, a autora pediu que o tribunal proferisse sentença equivalente ao respectivo negócio de doação.

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As decisões das Instâncias foram no sentido de que a promessa de doação era nula.

A doutrina tem, de facto, se pronunciado sobre a admissibilidade do contrato promessa de doação. Para alguns autores, não seria este um negócio admissível em virtude de, por um lado se pôr em causa o requisito de espontaneidade, que se considera dever presidir à doação e, por outro lado, a ser admissível o negócio, ele valeria logo como doação (cf. art. 954. ° c)), não sendo consequentemente, um verdadeiro contrato-promessa.

A doutrina maioritária (nomes como Antunes Varela, Pires de Lima, Vaz Serra) tem sido no sentido de que é possível e válida a promessa de doação.

Ora, como é referido no Acórdão “sendo uma atribuição solvendi causa o contrato prometido não representa uma segunda doação, mas não pode deixar de ser considerado uma disposição (ou atribuição) gratuita feita pelo disponente a favor do beneficiário, visto ser efectuado sem nenhum correspectivo ou contraprestação por parte deste. Mas, o facto de o contrato prometido não constituir em si mesmo uma doação (por falta do espírito de liberalidade, próprio da disposição donandi causa), não impede que ele integre uma doação, visto que a sua causa (a relação jurídica subjacente) está no contrato-promessa marcada por esse espírito de liberalidade.” O Acórdão pronunciou-se neste sentido, concluindo que é válido o contrato promessa de doação.

Quanto à possibilidade de execução específica, é unânime na doutrina e na jurisprudência, que esta não é possível, exactamente pela natureza da obrigação assumida pelo promitente que se opõe à natureza da execução específica. Ou seja, é exactamente devido ao espírito de liberalidade que preside à doação que não é possível emitir uma sentença que produza os mesmos efeitos desse acto, pois esse acto tem de provir da livre espontaneidade do doador-promitente. E portanto, segundo o Acórdão, o pedido formulado pela autora não pôde proceder.

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Além disto, como é referido pelo acórdão ao citar os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, “repugna à natureza pessoal da doação e ao espírito de liberalidade que a caracteriza, que a determinação do donatário seja confiada a um terceiro” e sendo assim, “o requisito do animus donandi em princípio justifica a nulidade da cláusula que remete a um terceiro a determinação do objecto da doação.”

Posto isto, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça concluiu que a doação era nula, como bem defenderam as Instâncias, pois na doação quer a pessoa do doador quer a pessoa do donatário têm de estar determinadas.

Ao analisar o Acórdão podemos verificar a importância deste requisito, e como ele está presente em tantas (senão em quase todas) questões controversas, sendo frequentemente empregado como justificação daquilo que pode ou não pode estar subjacente ao contrato de doação. Na verdade, este requisito é o cerne do contrato de doação e absorve grande parte dos problemas suscitados pela doutrina e pela jurisprudência, e nesse sentido, sendo o seu núcleo, é incessantemente referenciado em discussões doutrinais e na resolução de litígios.

No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de Setembro de 2007, proc. Nº. 626/05 é visível a importência que este requisito tem para que um negócio jurídico possa ser considerado como doação. Na presente situação a autora intenta uma acção declarativa pedindo que os réus fossem condenados a restituir-lhe 5.000€ que alega ter entregue a título de empréstimo, contrato de mútuo mais os respectivos juros de mora. Porém os réus contentam, alegando que a autora lhes havia doado aquela quantia, ou seja, segundo estes, tratar-se-ia de um contrato de doação.

Sustenta a autora que não se encontram preenchidos os requisitos constitutivos da doação, mas antes que se mostram verificados os pressupostos do contrato de mútuo.

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O artigo 940º, nº 1, do Código Civil (CC), define a doação como “o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”.

Por outro lado, o artigo 1142º, do CC, define o mútuo como “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.

São requisitos, essencialmente, constitutivos da doação a disposição gratuita de certos bens, em benefício do donatário, ou seja, a atribuição patrimonial sem contrapartida económica, isto é, gratuitamente, independentemente de um correspondente de natureza patrimonial, à custa da diminuição da substância efectiva do património do doador, e o espírito de liberalidade, por parte do disponente, ou seja, o «animus donandi», a ideia da generosidade ou da espontaneidade, oposta à da necessidade ou do dever.

Efectivamente, para haver doação, impõe-se que a atribuição patrimonial seja gratuita, e que não exista, portanto, um correspectivo de natureza patrimonial, embora possa existir uma contrapartida de natureza moral, sem que o acto perca a característica da gratuitidade.

Porém, a doação é, desde logo, um contrato e, como tal, é necessário o concurso da vontade do proponente doador e do aceitante donatário .

Ora, o mútuo é um contrato distinto da doação, porquanto ao enriquecimento obtido, à custa do património do mutuante, através da prestação constitutiva do contrato, corresponde, como elemento típico deste, a obrigação de restituir, que neutraliza tal enriquecimento .

Os réus no entanto tentam justificar esta doação, dando alguns argumentos que não convenceram o Tribunal.

O Tribunal conclui que está-se perante um contrato de doação e não de um contrato de mútuo quando alguém, por espírito de

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liberalidade, dispõe de uma importância em dinheiro, em benefício de outrem, operando-se a atribuição patrimonial, a seu favor, sem qualquer contrapartida económica para o primeiro, que diminui o seu património, com o correspondente enriquecimento do património do segundo, que não fica obrigado à sua restituição, como forma de neutralizar tal enriquecimento. Como no caso concreto, não se verifica o último requisito da doação, e verificam-se todos os pressupostos do contrato de mútuo, o tribunal decide que quem tem razão é a autora e trata-se de um empréstimo.

Pensamos que este acórdão demonstra que o espírito de liberalidade é essencial para qualificar um contrato como contrato de doação. Temos que avaliar a intenção da autora ao entregar os 5ooo€, qual era a sua vontade, seria a de entregar esse montante com vista reavê-lo um dia ou seria a de beneficiar patrimonialmente a ré. Se a autora intenta uma acção para ver restituído esse montante é porque não o queria entregar a título definitivo, não pretendia fazer uma doação.Mais uma vez o que sobressai é o elemento subjectivo.