trabalho docente nas universidades federais

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CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 105-120, 2011 105 Denise Lemos TRABALHO DOCENTE NAS UNIVERSIDADES FEDERAIS: tensões e contradições Denise Lemos * Este artigo analisa o trabalho docente nas Universidades Federais, em especial na Universidade Federal da Bahia, entre 2005 e 2008, a partir do fenômeno da precarização social do trabalho e da consequente alienação do trabalhador, baseando-se nos resultados de pesquisa de doutorado reali- zada na UFBA. Descreve as dimensões fundamentais desse processo: a multiplicidade de tarefas, a captação de recursos internos e externos para a pesquisa, as contradições entre a formação e as demandas do sistema universitário, a sobrecarga de trabalho e suas consequências, como ausência do lazer, perda de controle sobre o projeto acadêmico e adoecimento. Conclui que a principal con- tradição vivida pelo docente é a de que a autonomia percebida por ele não é a exercida, uma vez que está submetido a diversos controles internos e externos do sistema meritocrático, cujas exigências ultrapassam a capacidade física e psíquica do professor para responder adequadamente. Entretan- to, compreender o processo de alienação é a base para a transformação e emancipação daqueles que possuem o papel fundamental de desenvolver as capacidades do outro. PALAVRAS-CHAVE: alienação, precarização, trabalho docente, universidade, educação superior. O PROCESSO DE PRECARIZAÇÃO E ALIE- NAÇÃO NO TRABALHO Vivemos, hoje, um processo contraditório no que diz respeito ao trabalho, expresso na se- guinte situação: apesar de as condições de traba- lho terem melhorado em parte, e a despeito do fato de também, em parte, ter sido reduzida a distância entre planejamento e execução, aumen- tando a participação em determinados temas, a subjetividade produzida continua resultante de uma existência inautêntica e estranhada nos ter- mos que coloca Antunes (1999). Segundo esse autor, tais benefícios obtidos pelos trabalhadores têm sido largamente compensados pelo capital, uma vez que o pensar, o agir e o propor dos tra- balhadores estão voltados totalmente para os ob- jetivos intrínsecos das empresas. Mais complexificada, a aparência de maior liberdade no espaço produtivo tem como contrapartida o fato de que as personificações no trabalho devem se converter ainda mais em personificações do capital. Se assim não fizerem, se não demonstra- rem aptidões (vontade, disposição, desejo), tra- balhadores serão substituídos por outros que de- monstrem perfil e atributos para aceitarem esses novos desafios (Antunes, 1999). Essa contradição vai se configurar como uma dimensão fundamental no processo de precarização do trabalho na contemporaneidade, que é definido por Thebaud-Mony e Druck (2007) como um “ Processo social constituído por uma amplificação e institucionalização da instabilida- de e da insegurança, expressa nas novas formas de organização do trabalho – onde a terceirização/ subcontratação ocupa um lugar central – e no recuo do papel do Estado como regulador do mer- cado de trabalho e da proteção social” (apud Druck, 2009, p.10). Segundo as autoras, trata-se de um processo que atinge todos os trabalhado- res, independentemente de seu estatuto. A precarização do trabalho tem aprofundado a alienação, na medida em que instrumentos * Professora Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos da Universidade Federal da Bahia - IHAC/UFBA. Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos – CRH/FFCH/UFBA e consultora do Núcleo de Psicologia Social da Bahia. Estrada de São Lázaro, 197. Federação, Cep: 40.210-730. Salvador, Bahia – Brasil. [email protected]

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    Denise Lemos

    TRABALHO DOCENTE NAS UNIVERSIDADES FEDERAIS:tenses e contradies

    Denise Lemos*

    Este artigo analisa o trabalho docente nas Universidades Federais, em especial na UniversidadeFederal da Bahia, entre 2005 e 2008, a partir do fenmeno da precarizao social do trabalho e daconsequente alienao do trabalhador, baseando-se nos resultados de pesquisa de doutorado reali-zada na UFBA. Descreve as dimenses fundamentais desse processo: a multiplicidade de tarefas, acaptao de recursos internos e externos para a pesquisa, as contradies entre a formao e asdemandas do sistema universitrio, a sobrecarga de trabalho e suas consequncias, como ausnciado lazer, perda de controle sobre o projeto acadmico e adoecimento. Conclui que a principal con-tradio vivida pelo docente a de que a autonomia percebida por ele no a exercida, uma vez queest submetido a diversos controles internos e externos do sistema meritocrtico, cujas exignciasultrapassam a capacidade fsica e psquica do professor para responder adequadamente. Entretan-to, compreender o processo de alienao a base para a transformao e emancipao daqueles quepossuem o papel fundamental de desenvolver as capacidades do outro.PALAVRAS-CHAVE: alienao, precarizao, trabalho docente, universidade, educao superior.

    O PROCESSO DE PRECARIZAO E ALIE-NAO NO TRABALHO

    Vivemos, hoje, um processo contraditriono que diz respeito ao trabalho, expresso na se-guinte situao: apesar de as condies de traba-lho terem melhorado em parte, e a despeito dofato de tambm, em parte, ter sido reduzida adistncia entre planejamento e execuo, aumen-tando a participao em determinados temas, asubjetividade produzida continua resultante deuma existncia inautntica e estranhada nos ter-mos que coloca Antunes (1999). Segundo esseautor, tais benefcios obtidos pelos trabalhadorestm sido largamente compensados pelo capital,uma vez que o pensar, o agir e o propor dos tra-balhadores esto voltados totalmente para os ob-jetivos intrnsecos das empresas. Maiscomplexificada, a aparncia de maior liberdade

    no espao produtivo tem como contrapartida ofato de que as personificaes no trabalho devemse converter ainda mais em personificaes docapital. Se assim no fizerem, se no demonstra-rem aptides (vontade, disposio, desejo), tra-balhadores sero substitudos por outros que de-monstrem perfil e atributos para aceitarem essesnovos desafios (Antunes, 1999).

    Essa contradio vai se configurar comouma dimenso fundamental no processo deprecarizao do trabalho na contemporaneidade,que definido por Thebaud-Mony e Druck (2007)como um Processo social constitudo por umaamplificao e institucionalizao da instabilida-de e da insegurana, expressa nas novas formasde organizao do trabalho onde a terceirizao/subcontratao ocupa um lugar central e norecuo do papel do Estado como regulador do mer-cado de trabalho e da proteo social (apudDruck, 2009, p.10). Segundo as autoras, trata-sede um processo que atinge todos os trabalhado-res, independentemente de seu estatuto.

    A precarizao do trabalho tem aprofundadoa alienao, na medida em que instrumentos

    * Professora Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes eCincias Prof. Milton Santos da Universidade Federal daBahia - IHAC/UFBA. Pesquisadora do Centro de RecursosHumanos CRH/FFCH/UFBA e consultora do Ncleo dePsicologia Social da Bahia.Estrada de So Lzaro, 197. Federao, Cep: 40.210-730.Salvador, Bahia Brasil. [email protected]

  • cada vez mais sofisticados tm sido desenvolvi-dos pelo capital para subordinar o trabalhador,forando-o a vivenciar uma condio de traba-lho deteriorada cotidianamente nas organizaes,com um impacto significativo do ponto de vistafsico e psquico.

    Dejours (1987) argumenta que, do choqueentre um indivduo dotado de uma histria perso-nalizada, de uma identidade, e a organizao do tra-balho, portadora de uma injuno despersonalizante,em que o desejo do capital se sobrepe ao desejodo trabalhador, emerge uma vivncia de sofrimentopsquico. Para o autor, o comportamento condici-onado e o tempo recortado pela organizao dotrabalho formam uma verdadeira sndromepsicopatolgica que o operrio, para evitar algopior, se v obrigado a reforar, tornando-se o ar-teso do seu prprio sofrimento.

    O autor considera que a pressoorganizacional geradora de um sofrimento ps-quico no permite que ele seja revelado em ter-mos de ansiedade ou cansao, ou qualquer ou-tro sintoma de natureza mental, mas apenas f-sico, que o aceitvel. Segundo o autor, sretirar a presso que o sofrimento desaparecer.A alienao, no sentido psiquitrico, equiva-lente ao conceito marxista dos manuscritos de1844, que seria a substituio da vontade pr-pria do sujeito pela do objeto. Nesse sentido,passaria pelas ideologias defensivas, em que osujeito acabaria por confundir seus desejos pr-prios com a injuno organizacional que substi-tui seu livre arbtrio. O indivduo acabaria portolerar tudo sem fazer triunfar sua prpria von-tade. A organizao do trabalho seria o veculoda vontade de um outro, a tal ponto poderosaque, no fim, o trabalhador se sente habitado peloestranho. A alienao seria uma verdade clnicaque, no caso do trabalho, toma a forma de umconflito em que o desejo do trabalhador capitu-lou frente injuno patronal. Ele argumentaainda que, se deve haver uma luta por novasrelaes sociais, ela deveria passar por um pro-cesso de desalienao. Pergunta tambm se aprevalncia concedida s mudanas nas relaes

    de produo arrisca a passar por cima da aliena-o sem transform-la, e se o desmantelamentodos mecanismos de alienao no uma condi-o necessria, mas insuficiente para um proje-to de transformao social. Acrescenta:

    ... que felicidade seria essa, louvada por uma so-ciedade, que no teria por fundamento (funda-mento no objetivo) a libertao da vida mental?Libertao de seu exerccio no trabalho e na ati-vidade produtiva?(Dejours, 1987, p.138).

    Conclui dizendo que qualquer que seja oregime poltico considerado, na medida em quepretende superar os obstculos socioeconmicos felicidade, dever ser julgado por sua capaci-dade de levar em conta a relao conflituosa en-tre organizao do trabalho e o aparelho mental.

    A ALIENAO NO MBITO DA EDUCAO

    Trazendo o debate para o campo da edu-cao, Frigotto (1994) considera que os novosconceitos utilizados globalizao, integrao,flexibilidade, competitividade, qualidade total,pedagogia da qualidade e a defesa da educaogeral, formao polivalente e valorizao do tra-balhador constituem uma

    imposio das novas formas de sociabilidadecapitalista, tanto para estabelecer um novo pa-dro de acumulao, quanto para definir as for-mas concretas de integrao dentro da nova re-organizao da economia mundial (1994, p.41).

    O autor argumenta que h uma mudananos interesses dos homens de negcio em rela-o educao e formao humana, devidos novas bases que a reconverso tecnolgica eredefinio do padro de acumulao capitalistademandam na reproduo da fora de trabalho.(Frigotto, 1994, p.34). Para ele, a redescobertada dimenso humana muito mais um sinal delimite do que de auto-negao da forma capita-lista de relao humana. Portanto, a valorizaoda educao bsica geral, a revalorizao daformao geral do trabalhador (desde o ensino

  • bsico ps-graduao) como forma de obtertrabalhadores com capacidade de abstrao, fle-xveis, polivalentes e criativos, atende a uma l-gica do mercado, caracterizada pela diferencia-o, segmentao e excluso.

    Os novos jarges do discurso empresarialde polivalncia, flexibilidade, integrao e traba-lho enriquecido passam a ocupar um espao sig-nificativo em congressos, seminrios, encontros,nos mais diversos mbitos, inclusive de modo cres-cente nas universidades, que aderiram s ideiasda qualidade total, sem qualificar essa qualida-de. Entretanto, a excluso provocada por essemodelo adotado nas empresas to significativa,que se tornou fundamental ir alm da apologia davalorizao do trabalhador e da sua formao ge-ral e polivalente, buscando o seu efetivo sentidopoltico-prtico. Em outras palavras, desvendarqual a educao que convm ao desenvolvimen-to empresarial nos tempos atuais.

    A consequncia, no campo da educao eda formao, um processo de subordinaoque resulta na busca pela delimitao de con-tedos e pela gesto do processo educativo. Noplano dos contedos, a educao geral, abstrata,vem demarcada pela exigncia da polivalnciaou de conhecimentos que permitam apolicognio. (Frigotto, 1994, p.52).

    Entretanto, essas exigncias vm permeadasde conflitos e contradies, pois, ao tempo em quese esperam trabalhadores altamente qualificados,inteligentes, flexveis, com viso global e com umaexcelente estrutura emocional, essas mesmas ca-ractersticas enfrentam dificuldades de se concre-tizar quando se deparam com a estreiteza da lgicado mercado e do lucro, transformando-se, nessesentido, num processo de desqualificao.

    O TRABALHO DOCENTE NAS UNIVERSIDA-DES FEDERAIS

    O exame do papel e das atividades desen-volvidas pelo professor universitrio, hoje, podelanar luzes sobre o impacto das transformaes

    operadas no contexto das polticas neoliberais,que implicaram alteraes significativas no pro-cesso do trabalho e no sistema de gesto dasUniversidades Federais, a partir da dcada de1990, como tambm pode alimentar o debatesobre a questo da autonomia e da identidadecom e no trabalho docente.

    Mancebo e Franco (2003) esclarecem que,no processo de flexibilizao do trabalho docen-te, algumas mudanas afetam o docente, geran-do uma perda de identidade, pela transfigura-o das atividades do ensino e da pesquisa. Oensino flexibilizado pelos cursos de curta dura-o, o ensino a distncia e o aligeiramento decurrculos insere-se num processo em que a mer-cadoria deve ser produzida de forma rpida e deacordo com critrios de eficincia e produtivi-dade. E acrescentam que, nesse contexto, a di-menso interrogativa e crtica do trabalho do-cente, prpria ao espao universitrio, subtra-da, retirando a formao e a prtica profissio-nal, assim como a produo de conhecimento,do campo da poltica e da tica. (2003, p.34).

    O acesso ao conhecimento sempre obteveimportncia na luta competitiva, mas, no contex-to atual, adquire novas nfases. As rpidas mu-danas de gostos, de necessidades e dos sistemasde produo flexveis implicam uma corrida parao desenvolvimento da ltima tcnica, para a aqui-sio da mais recente descoberta, como um fatorvital para obter vantagem competitiva. A produ-o do conhecimento ganha notvel expanso, masum conhecimento tcnico, receita para resoluode problemas imediatos. a transformao dosaber em mercadoria-chave.

    O termo docncia tem sido tradicional-mente usado para expressar o trabalho do pro-fessor, mas existe um conjunto de funes queultrapassam o exerccio da docncia. As funesformativas convencionais, como ter um bomconhecimento sobre sua matria e saber explic-la, foram se tornando mais complexas. Com opassar dos tempos e com o surgimento de novascondies de trabalho massificao dos estu-dantes, diviso de contedos, incorporao de

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    novas tecnologias, associao do trabalho em salade aula com o acompanhamento do aprendizadoem empresas , as funes docentes passaram porum processo de ampliao e complexificao. Hoje,oficialmente, as universidades pblicas atribu-em aos professores quatro funes: o ensino, apesquisa, a administrao e a extenso. A Cons-tituio de 1988 definiu a funo das universida-des em termos da indissociabilidade entre ensino,pesquisa e extenso, e essa formulao permaneceat os dias atuais como objeto de interpretao edebate dentro da comunidade universitria.

    A MULTIPLICIDADE DAS ATIVIDADES DO-CENTES

    Botom (1996) considera que existe umadificuldade de localizar e definir o que caracte-riza a responsabilidade primeira ou maior da ins-tituio universitria, onde convivem exignciasdiversas, de muitos agentes, com formaes va-riadas, e diante de tarefas voltadas para mlti-plos assuntos. Para ele, o professor universitrioprecisa ser um profissional mltiplo. Precisa serum tcnico e especialista num campo de traba-lho, mas tambm precisa ser competente comopesquisador ou cientista em uma rea do conhe-cimento. J temos a duas profisses, mas exis-tem outras exigncias: ele precisa ser um profes-sor de nvel superior capaz de ensinar e prepararprofissionais, para realizar as tarefas mais com-plexas da sociedade. E, alm disso, precisa estarapto para ser um administrador, pois vai defron-tar-se com a necessidade de gerenciar projetosde pesquisa e de ensino, coordenar grupos detrabalho e rgos da estrutura administrativauniversitria, como departamentos, cursos etc.E ainda precisa ser um escritor razovel.

    Uma das consequncias das mltiplas ati-vidades do professor, dessa polivalncia, a in-tensificao e a sobrecarga de trabalho, o que,por sua vez, gera a necessidade de trabalhar notempo de lazer, com consequncias em termosde desgaste fsico e psquico, assim como difi-

    culdades na relao familiar. De acordo comBotom (1996), as dificuldades permanecemquando, diante de tantas facetas do papel do-cente, a sua preparao desigual no atendimentodas demandas da vida na universidade. A ps-graduao, que deveria capacit-lo para ser umprofessor universitrio (mestre de nvel superi-or) e um cientista (doutor em uma rea do co-nhecimento), tem aumentado a sua especializa-o tcnica em um assunto e em tcnicas de pes-quisa. O resultado que os professores se prepa-ram mais para a dimenso de especialista e depesquisador do que em relao s demais exi-gncias (Botom, 1996). E o autor analisa que:

    O profissional desenvolve uma experincia que,com frequncia muito grande, no o leva a com-pletar as lacunas em sua formao, mas a desen-volver e fortalecer o que aceito, o que funcionaou o que lhe d poder, capacidade de influnciano meio social ou institucional. Com isso, con-solida-se um poder cada vez maior, que o leva aagir sobre os demais e sobre a instituio, demaneira a consolidar no o que vale a pena a lon-go prazo, para a instituio e para a sociedade,mas o que o leva a ganhar, sentir-se seguro, obtermais poder, ser aceito e reconhecido (p.29).

    E ainda acrescenta, citando Matus (1987),que o experiencialismo com baixo capital inte-lectual (pouco preparo ou preparo desequilibra-do para as mltiplas funes na universidade),leva a consolidar aspectos fortuitos, acidentais eirrelevantes (os mais bvios e aparentes em ge-ral) das prticas dirias.

    Outra tica sobre essa mesma questo trazida por Frigotto (2001), quando chama a aten-o para as diferentes formas de polivalncia,uma vez que existem tipos de atividadespolivalentes, que no demandam nenhuma qua-lificao maior, tratando-se, apenas, de intensi-ficao do trabalho, cuja consequncia, na prti-ca, a desqualificao do trabalhador.

    Na pesquisa de doutorado sobre o traba-lho docente na Universidade Federal da Bahia,realizada por Lemos (2007), em que foram ana-lisadas as condies, a organizao e as relaesinterpessoais no trabalho, com o foco nas cate-gorias conceituais da alienao e autonomia no

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    trabalho, os professores entrevistados relataramser praticamente impossvel atender a todas asdemandas do papel de docente, sendo necess-rio usar o tempo de lazer, o que resulta em des-gaste fsico e psquico e adoecimento

    Wernick (2000), num estudo realizadotambm na UFBA sobre condies de sade etrabalho mostrou que, devido condio inade-quada das salas de aula e dos mveis, ao risco deviolncia pessoal e natureza em si do processode trabalho (presso, sobrecarga), dentre outrosfatores, os professores trouxeram queixas relati-vas a cansao mental (44,6%), dor nas pernas(36,1%), rinite (28,1%), rouquido (25,9%) e es-quecimento (25%). Entre as doenas mais fre-quentes registradas registram-se: varizes nas per-nas (25,3% nas mulheres e 11,3% nos homens)e hipertenso arterial (17,1% nas mulheres e19,7% nos homens). A pesquisa tambm de-monstrou uma associao positiva entre as con-dies gerais de trabalho e a ocorrncia de dis-trbios psquicos menores (tenso, cansao, tris-teza, alteraes no sono, diminuio de energia,sintomas somticos), que foram constatados por18,7% dos pesquisados. Um dado importante dapesquisa que os professores que informarampossuir um alto grau de controle de suas ativi-dades e alta demanda de trabalho foram os quemais estavam propensos a adoecer (maiorpercentual de distrbios psquicos menores).

    Lipp (2002), ao listar os fatores estressoresdo professor que atua na ps-graduao, colo-cou foco nas tarefas administrativas (elaboraode currculos, relatrios, projetos) demandadaspelas agncias externas, no excesso de informa-o recebida, nas demandas tecnolgicas e nainvaso do trabalho docente no horrio de des-canso. Segundo a autora, o docente vai fisica-mente para casa, mas o trabalho no termina.Segundo ela,

    ... so teses para ler, projetos para avaliar, relat-rios para escrever, e-mails para responder, celu-lares que tocam em casa, computadores port-teis que acompanham o professor e garantem oseu trabalho no horrio de lazer (2002, p.60).

    o trabalho invadindo o espao pessoal eprivado, impedindo que o professor vivencieoutras dimenses da vida, descanse, pense e re-faa as energias para enfrentar o cotidiano noincio da semana.

    Francisco de Oliveira (2009), ao analisar atese de doutorado de Pedro Floriano Ribeiro (2010),que investigou as sete Universidades Federais maisricas do sudeste brasileiro, sintetiza dizendo que aprodutividade decuplicou em nmero de artigosem revistas indexadas, docentes e pesquisadores,quintuplicou o nmero de alunos de ps-gradua-o e duplicou o nmero de alunos de graduao.Do outro lado, houve uma regresso salarial dosdocentes, diminuio da relao funcionrio / do-cente e funcionrio /aluno, ocasionando maior ex-plorao do trabalho. Segundo ele, Dos funcion-rios e professores entrevistados todos tomam al-gum tipo de neurolptico para manter a concen-trao, alguns no veem os filhos nem pela manhnem noite. o produtivismo aplicado lgicaacadmica, o grande fracasso da universidade(Oliveira, 2009, p.48).

    A FORMAO DOCENTE E A QUALIDADE DEENSINO

    Em funo das caractersticas estruturaisdescritas acima, a controvrsia bsica da formaodocente gira em torno da dupla orientao: ensinoe pesquisa. Um maior status tem sido atribudo pesquisa pela instituio universitria, transforman-do-a num componente bsico da identidade e doreconhecimento do docente universitrio. O quetem sido avaliado nos concursos de ingresso e pro-moo so os mritos das pesquisas, que os profes-sores tendem a priorizar, por causa dos efeitos eco-nmicos e de status no campo acadmico, umavez que, o destino prioritrio dos investimentospara a formao do pessoal orientado principal-mente para a pesquisa. Isso faz com que, contradi-toriamente, a docncia transforme-se em uma ati-vidade marginal dos docentes. A partir da, desen-volve-se a crena de que, para ser um bom profes-

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    sor universitrio, necessrio ser um bom pesqui-sador. Pesquisar representa um nvel de desenvol-vimento intelectual superior, uma capacidade paraver as coisas de forma mais rigorosa e sistemtica,um maior conhecimento dos assuntos que transi-tam no campo cientfico (Zabalza, 2004).

    Entretanto, na prtica, o que se observa a existncia, muitas vezes, de excelentes pesqui-sadores que so professores medocres, quer pelautilizao de uma linguagem complexa e poucoaccessvel, quer pela dificuldade de relaciona-mento com os alunos, ou pelas aulas muitocentradas no contedo, sem preocupao com aforma de comunicao. Inclusive, algumas ve-zes, no h conexo entre o contedo de sala deaula e aquele oriundo da pesquisa.

    Na pesquisa sobre trabalho docente naUFBA, emergiu a percepo de que a distnciacultural oriunda de geraes diferentes dos pro-fessores e dos alunos seria o motivo de afasta-mento dos professores mais antigos da gradua-o, em funo do esforo exigido para respon-der s demandas desses alunos. Alguns profes-sores expressaram sua preocupao pela deman-da da tcnica, do prtico, do imediato porparte dos alunos, e da dificuldade de estimul-los para a busca de um conhecimento amplo,crtico e socialmente referenciado (Lemos, 2007).

    Carvalho (2009) considera como foco dacrise universitria hoje a hegemonia da fragmen-tao dos ramos do saber. Segundo o autor, en-quanto a Universidade no empreender areligao da cultura cientfica com a cultura dashumanidades, a crise no se resolver. Ele pon-dera: ... no se trata de uma negao das disci-plinas tecnocientficas, mas de sua insero numcontexto mais amplo. assim que se formam osverdadeiros intelectuais. (p.50)

    A tendncia a performatividade e o conceitode qualidade de ensino

    Cowen (1996 apud Leite et al., 2003), aoanalisar a contemporaneidade da misso das uni-

    versidades, descreve a tendncia da performati-vidade. H uma insistncia governamental sobrea ideia de produto, que cuidadosamente medi-do por sua performance. A consequncia imedia-ta para a cultura universitria percebida atravsdos efeitos corrosivos da redefinio dos contro-les de qualidade e, tambm, pelo deslocamentodas lideranas acadmicas em direo s necessi-dades administrativas, observando-se, a partir da,um enfraquecimento dos recursos financeiros,pedaggicos, humanos e de pesquisa. Segundo oautor, trata-se de um projeto poltico explcito,estruturado a partir de desafios externos eextranacionais, uma vez que, a universidade aarena correta para a interligao entre negcios,indstria e Estado.

    Segundo Sobrinho (2001), a retrica doconceito de qualidade usado no mbito educacio-nal oriunda do Banco Mundial, que opera umdeslocamento, associando-a sempre noo deeficincia que, em sua forma tima, se chamaexcelncia. Essa qualidade mxima deve serquantificada, avaliada e comparada, estimulandoa competio entre as instituies pelos parcosfinanciamentos. A insistncia na excelncia visaa selecionar os melhores, os mais dotados, paratir-los do suposto marasmo geral e disponibilizaros melhores meios. O autor explica:

    O preo da excelncia de algumas instituies o desaparecimento de muitas outras, que, embo-ra no preencham aqueles requisitos decompetitividade no mercado aberto, certamente,cumprem relevantes funes, cuja qualidadedeve ser avaliada, por outros critrios, que asse-gurem um desenvolvimento social mais iguali-trio, e, em que a excelncia no seja um privil-gio de poucos e a excluso de muitos (Sobrinho,2001, p.164).

    Quando, ento, se fala em um novo per-fil que oriente um programa de formao do-cente emerge o modelo de competncia, ampla-mente na moda nas empresas hoje. E quandose examina que competncias seriam essas, sur-gem caractersticas voltadas para a personalidadedo profissional, tal como prope Masetto (2003):adaptabilidade ao novo, criatividade, autonomia,

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    comunicao, iniciativa e cooperao. Segundo oautor, profissionais intercambiveis, que combi-nem imaginao com ao.

    Esse modelo proposto, aliado racionalidadeda meritocracia, termina por se constituir numaoutra moda empresarial, que o empreende-dorismo, intimamente relacionado com a questoda empregabilidade, o qual mascara a realidade doprojeto neoliberal de enxugamento das empresas edemisso em massa, atribuindo s pessoas a res-ponsabilidade pelo seu desemprego, em ltima ins-tncia.

    Parece, ento, ser esse o perfil adequado paraadaptar o professor ao processo de flexibilizaodo trabalho, no qual as Universidades pblicas, medida que so privatizadas por dentro e,concomitantemente, adotam o modelo da pro-dutividade e da rentabilidade empresarial, tam-bm demandam professores flexveis, capazes dese adaptar rapidamente aos cursos-relmpago, aavaliaes quantitativas por produo, a prazosreduzidos e a resultados de aplicao imediata.Essa viso pode ser claramente deduzida, porexemplo, em algumas linhas de ao propostaspor Masetto (2003): formao profissional simul-tnea com a formao acadmica, por meio deum currculo dinmico e flexvel, que integreteoria e prtica; desestabilizao dos currculosfechados, acabados e prontos.

    Outra dimenso trazida por Sobrinho(2001), quando considera que essa concepo deUniversidade, medida pela sua eficincia emcorresponder s demandas do mercado, operaum estreitamento da funo pblica, uma vezque a funo poltica neutralizada pela funoeconmica. A Universidade vista como umainstituio que deve dar respostas objetivas, tc-nicas, eficientes a uma sociedade modelada pelatecnologia. Citando Morin (1994, p.90) e Petrella(1994, p.10), o autor considera que tecnologiza-o da epistemologia, nos termos de Morin,correspondem o sobredesenvolvimento da espe-cializao, o predomnio do tcnico sobre o po-ltico, a desqualificao do cidado pelo especia-lista. A tecnologia torna-se cada vez mais

    incontrolvel e constitui-se como o mais impor-tante indicador do progresso da sociedade. Oautor salienta que no se trata da negao datecnologia, mas da necessidade de sua politizao,ou seja, traz-la para o campo do debate pbli-co, da cidadania.

    Segundo Bianchi e Braga (2009), os crit-rios de eficcia quantitativa e monetria so ade-quados para orientar a aquisio de fortunas, masapresentam graves problemas quando aplicados produo de conhecimento e s atividades depesquisa e ensino. Os autores exemplificam coma aprovao da lei de inovao tecnolgica, em2005, pelo governo Lula. Segundo eles,

    ... essa lei coroou o processo pelo qual o poderda acumulao capitalista sob domnio das fi-nanas e a consequente presso sobre o sistemanacional de produo e difuso do conhecimen-to cientfico aprofundaram a alienao das ativi-dades acadmicas (2009, p.54).

    A percepo do aluno

    Por outro lado, o aluno tambm est sub-metido a essa complexa teia de tenses e contra-dies e encontra dificuldades de compreendere ser compreendido pelo docente. Suas princi-pais percepes:

    ... o professor sabe muito, mas no sabe ensinar,o professor um profissional competente em suarea, mas d aula para ele mesmo, o professorreclama que ganha muito pouco e, por isso, nose dedica ao magistrio como deveria, o profes-sor no se dedica s sala de aula, ento, falta,negligencia e comenta, frequentemente, que temcoisas mais importantes para fazer, o professor autoritrio tanto na ao docente quanto na ava-liao (Leite et al., 2003, p.62).

    Configura-se, assim, uma dupla presso,caracterizada, de um lado, pelas demandasinstitucionais que dirigem o professor muito maispara a pesquisa do que para o ensino, pela crenade que, se ele um bom profissional ou possuittulos, est apto para ensinar; por outro lado, osalunos so oriundos de cursos de nvel mdio cadavez mais pragmticos, direcionados para o vesti-

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    bular, pautados em receitas rpidas e prontas. Essasituao gera um choque de perspectivas e valo-res que transforma a relao ensino aprendiza-gem numa tenso e num confronto permanenteentre professores e alunos, redundando, em algu-mas situaes, num pacto de mediocridade, ondeo professor finge que ensina e o aluno, o interes-sado no diploma, finge que aprende.

    Vasconcelos (2003) investigou a opinio dealunos de ps-graduao de um curso deMetodologia do Ensino Superior no perodo de1990 a 1995, com uma amostragem de 200 alu-nos. Era um grupo bastante heterogneo em ter-mos de formao e de interesses: alguns j eramprofessores e, portanto, consideravam-se sufici-entemente treinados para tal; outros no preten-diam exercer a docncia a princpio; e outros erambastante motivados a obter ou melhorar os co-nhecimentos na rea. Embora o curso tenha al-canado 86% de satisfao dos alunos, com rela-o s suas expectativas, foram feitas as seguintescrticas e sugestes: aumento da carga horria,utilizao de maior quantidade de tcnicas ao longoda disciplina, o que foi interpretado pela pesqui-sadora como receitas prontas de como dar aula,necessidade de apostila do curso. Por outro lado,consideraram enriquecedora a oportunidade depoder repensar a prpria prtica.

    O professor universitrio encontra-se, en-to, no centro de contradies: consagrado pelodiploma de mestre, mas, na prtica, questiona-do em relao sua competncia de ensinar; formado em pesquisa, mas tem de captar recur-sos para pesquisar, o que demanda tempo paraatender a uma burocracia administrativa que ter-mina interferindo na prpria pesquisa; deman-dado em termos de mudana na forma de ensi-nar pelos alunos, e a sua progresso funcional estatus profissional dependem primordialmente donmero de publicaes e outras atividades queno incluem o resultado efetivo na sala de aula.

    Parece claro que a formao docente vol-tada para um redimensionamento dos conte-dos, da metodologia e relao entre professor ealuno necessria, mas no suficiente, uma

    vez que, como vimos, existe uma organizaodo trabalho sistmica que transcende o compor-tamento em sala de aula e o perfil do professor,condicionando a sua ao.

    Cunha (1998) realizou um estudo, em1989, sobre o professor universitrio considera-do bom pelos alunos. Esses professores desen-volvem um grande nmero de habilidades deensino: fazer perguntas, variar estmulos, orga-nizar o contexto das aulas, apresentar muitasqualidades humanas e afetivas no trato com osalunos e com o contedo do ensino. Entretanto,esses professores ainda trabalham na perspecti-va reprodutiva do conhecimento, e essa umaposio aceita pelos alunos. Os professores socapazes de apresentar o melhor contedo, a serdesenvolvido em sala de aula, mas no conhe-cem procedimentos sobre como fazer o alunochegar ao mapeamento prprio da aprendiza-gem. O bom professor relata os resultados desuas pesquisas, mas pouco estimula o aluno afazer as suas prprias.

    Os professores objeto desse estudo consi-deraram ter sido a sua histria como alunos oque mais influenciou na repetio de atitudesconsideradas positivas ou no esforo de fazerexatamente o contrrio do que faziam seus pro-fessores que foram avaliados negativamente.

    O PROFESSOR EMPREENDEDOR: a capta-o interna e externa de recursos

    Alm do ensino, da pesquisa e da exten-so, na viso de Zabalza (2004), atualmente, no-vas funes so agregadas ao trabalho do docen-te, as quais tornam o exerccio profissional maiscomplexo. Trata-se do business, ou seja, a bus-ca de financiamento, a negociao de projetos econvnios com empresas e instituies, as asses-sorias, a participao como especialista em di-versas instncias cientficas, alm das relaesinstitucionais com outras Universidades, em-presas e instituies, buscando reforar o car-ter terico e prtico da formao e, em alguns

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    casos, seu carter internacional.A quantidade de formulrios a serem pre-

    enchidos para obteno de recursos assim comoaqueles que so necessrios para a prestao decontas, dentro de prazos exguos, constitui umadimenso que emerge com o papel do professorde captador interno de recursos ao sistemaeducacional do governo, mas externo Univer-sidade. Implica a agregao de uma srie de ati-vidades administrativas ao trabalho docente, paraas quais o professor no conta com apoio emtermos de recursos humanos por parte da Uni-versidade, causando um excessivo envolvimentocom atividades-meio que, muitas vezes, concor-rem com o desenvolvimento da pesquisa e doensino em si mesmos.

    O papel de captador de recursos exter-nos Universidade e ao sistema educacional dogoverno, pode, por um lado, resultar na possibi-lidade de desenvolvimento de um relevante pro-jeto de pesquisa e extenso acadmica, mas, poroutro, significar uma distoro dos objetivos es-senciais da instituio, um processo deprivatizao por dentro da Universidade pbli-ca. E a pode se estabelecer uma contradio: aomesmo tempo em que a Universidade precisarelacionar-se com os diversos setores da socie-dade, essa mesma relao pode significar umprocesso de alienao institucional.

    Americano da Costa (1999) chama aten-o para o fato de que algumas dessas iniciati-vas, como a cobrana por atividades desenvolvi-das pela Universidade, j esto ferindo o princ-pio constitucional da gratuidade do ensino (Art.205-IV), ratificado pela LDB (Art.3-VI), restritoagora, para cursos acadmicos de graduao eps-graduao (mestrado e doutorado). Almdisso, fica instituda a cobrana geral pela pres-tao de servios via fundaes privadas.

    Segundo a autora, na medida em que cri-trios e objetivos, padres e prazos so defini-dos pelos clientes e no pelos pesquisadores, aautonomia universitria se transforma emheteronomia. E acrescenta que as consequnciasso:

    ... a quebra do princpio constitucional degratuidade do ensino nos estabelecimentos ofi-ciais, a quebra do princpio da isonomia salariale a perda da autonomia universitria, peloatrelamento das suas atividades lgica do mer-cado e aos interesses privados.

    A Universidade, como instituio produ-tora de conhecimento a ser disponibilizado soci-almente, necessita relacionar-se com os diversosagentes sociais, inclusive as empresas, desde queas pesquisas encomendadas sejam submetidas auma avaliao tica em termos do objeto, comcontrole do processo e dos resultados. impor-tante assinalar que, mesmo nos convnios cominstituies pblicas, nos quais o beneficirio a maioria da populao, na relao com os agen-tes do Estado, a questo da autonomia da gestodo processo e a utilizao dos resultados so di-menses a serem analisadas, tendo em perspec-tiva os objetivos essenciais da Universidade e asnecessidades da populao.

    Filgueiras (1998) considera que existe umanecessidade cada vez mais intensa de as universi-dades se relacionarem com os segmentos econ-micos e sociais. Entretanto, chama a ateno paraas diferentes naturezas das duas instituies; deum lado, as empresas, que buscam resultados ime-diatos, essenciais para se manterem no mercado;do outro, as universidades que, por caractersticasintrnsecas do trabalho didtico-cientfico, exigemuma dinmica distinta. A natureza do trabalho in-telectual exige amadurecimento e debates, o quecontrasta com os prazos curtos e rgidos das em-presas. Outras exigncias esto relacionadas com adifuso dos resultados para a comunidade acad-mica e o controle social dos recursos envolvidos, oque pode envolver questes ticas sobre a autono-mia da produo do conhecimento e a administra-o do recurso pblico.

    Sobrinho (2001) considera que, quando auniversidade se aproxima demasiadamente dasempresas, pode terminar se confundido com elas,ao passo que, se mantm uma distncia crtica,os significados concretos e a relao adquiremconsistncia, e a universidade crtica preservasua identidade e autonomia (p.167).

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    A maioria dos professores entrevistadosna pesquisa realizada na UFBA concorda com aspesquisas encomendadas por instituies pbli-cas ou privadas, desde que sejam submetidas auma avaliao tica. Um professor opinou que oque existe pouco, que deveriam existir maisencomendas, motivadas pela necessidade de re-solver problemas sociais concretos. Alguns pro-fessores foram radicalmente contra esse tipo deviso, considerando que quem paga define a di-reo do trabalho. Outra percepo que o pro-blema central reside em saber quem vai se apro-priar dos resultados do trabalho dessa pesquisa,na sociedade e no interior da universidade, as-sim como indagar sobre a origem dos recursosque iro financiar o estudo (Lemos, 2007).

    A existncia de uma regulamentao dauniversidade, que defina princpios compatveiscom as suas caractersticas essenciais, com osseus objetivos centrais de formao e gerao deconhecimento, poderia ser til no sentido de re-duzir a desigualdade entre as unidades, em ter-mos das condies de trabalho, devido no s sdiferentes capacidades de captao de recursos,como tambm devido s diferentes ticas eposicionamentos ideolgicos. Assim como podeser igualmente til que cada rea do conheci-mento ou cada departamento possam clarear oque seria a sua referncia social para a defini-o dos contedos do ensino e dos temas de pes-quisa (2007).

    A AUTONOMIA NO TRABALHO: as diversasticas e dimenses

    A complexa teia de determinaes

    Existe um conjunto de diferentes nveisda gesto do ensino superior que terminam porafetar o cotidiano do professor, significando tam-bm um conjunto permanente de tensesinstitucionais. Nesse sentido, consideramos que,tendo como pano de fundo o Plano Diretor daReforma do Estado, a Reforma Administrativa e

    Previdenciria e a poltica para as InstituiesFederais de Ensino Superior, a srie de instru-mentos legais (LDB, decretos e portarias) temaumentado o poder de interveno do Estado navida universitria, como, por exemplo, na esco-lha de dirigentes, na poltica de avaliao(ENADE), na nova sistemtica de avaliao daps-graduao (CAPES), na nova regulamenta-o do FIES, na formulao de novas diretrizescurriculares, no contingenciamento, congelamen-to e liberao de recursos, na definio da polti-ca salarial e de vagas de docentes e discentes.

    Essas medidas atingem, de forma signifi-cativa, o elemento central definidor do ensinosuperior, que a autonomia docente, ao mesmotempo em que colocam os professores como re-ceptculo de uma forte presso, definida por umaburocracia estatal e institucional, dirigida poruma racionalidade estranha (a da produtivida-de) em relao s caractersticas intrnsecas dofazer universitrio, cuja funo fundamental construir coletivamente o conhecimento, torn-lo acessvel populao e formar pessoas quepossam assumir uma postura crtica e criativadiante dos desafios da realidade.

    Como essa teia complexa de medidas esua motivao poltica no so visveis para oconjunto da sociedade, a dimenso que poss-vel acessar, alm da degradao fsica, a con-cepo de que a crise pela qual passa a Universi-dade determinada pelo baixo desempenho dosprofessores, sua falta de comprometimento coma instituio universitria e o excesso de liberda-de de atuao. A partir dessa linha de racioc-nio, o professor vai se caracterizando como odepositrio, o bode expiatrio das mazelas dosistema e, ao reagir s estratgias de avaliao econtrole, rotulado de corporativista. Esse oembate ideolgico posto pela hegemonia do pen-samento neoliberal, que busca desqualificar tudoque pblico, especialmente os funcionrios.Chau (2001) questiona essa viso e indaga se oque se chama de corporativismo no seria umareao legtima de um grupo profissional que,na ausncia de leis que protejam seus direitos,

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    vm-se na obrigao de se articular e assumiresse papel.

    O processo de controle do desempenho aca-dmico do docente

    A questo do financiamento interno e ex-terno uma forma importante de controle da pro-duo do trabalho docente, mas ainda existemoutros mecanismos acionados por rgos acad-micos, que visam a outro tipo de controle: o dodesempenho acadmico. Do ponto de vista da es-trutura do Estado, trs rgos interferem maisdiretamente na gesto das IFES (Instituies Fe-derais do Ensino Superior): a SESU (Secretariade Ensino Superior) do MEC (Ministrio de Edu-cao e Cultura), o CNE (Conselho Nacional deEducao) e o INEP (Instituto Nacional de Estu-dos Pedaggicos). Cabe SESU a formulao depolticas que, quase sempre, so referendadas peloMinistro, sendo que, nos ltimos anos, sua ativi-dade se expandiu, passando a produzir decretose portarias que direcionam os rumos do ensinosuperior, como, por exemplo, o credenciamentode instituies, a autorizao e o reconhecimentode cursos, sendo responsvel, consequentemente,pelo estabelecimento do padro de qualidade aque as IFES devem atender. Por outro lado, o or-amento das IFES tambm submetido SESU,o que origina presses por aumento de recursos,situao que a SESU no tem competncia pararesolver, uma vez que depende das decises darea econmica. Outro rgo importante na con-duo da poltica do ensino superior o INEP,cuja funo historicamente era a de desenvolverpesquisas e reflexes sobre a educao e teve seupapel cada vez mais ampliado, no sentido de pro-duzir de dados, realizar censos dos diversos n-veis educacionais, inclusive criando novos meca-nismos de avaliao, a exemplo do ENEM e doENADE. O CNE um rgo que funciona de for-ma autnoma, podendo criar polticas para o en-sino, embora dependa da chancela do Ministro(Soares, 2002).

    Se a essa estrutura acrescentarmos o Mi-nistrio da Fazenda, o do Planejamento e a CasaCivil (rgos participantes da elaborao do Pro-jeto de Lei da reforma universitria), verificamosa existncia de uma complexa teia de relaesinstitucionais, uma superestrutura de gesto, doensino superior, em especial das IFES. Aconsequncia um aumento do controle, que setorna cada vez mais efetivo, como possvel vis-lumbrar na ampliao das funes da SESU edo INEP, que passam progressivamente a exercerum papel controlador no geral, e, especificamen-te, no nvel didtico-cientfico. Todo esse aparatoestrutural termina por gerar uma sobrecarga dedemandas para a instituio e para o docente.

    Uma das consequncias dessa superestru-tura de controle a perda progressiva da auto-nomia docente sobre o seu objeto de trabalho,sobre o fazer acadmico. A entrada (ENEM) e asada (ENADE) dos alunos da graduao so ava-liadas por instncias extrnsecas universidade.As diretrizes curriculares tambm so definidasexternamente. Os programas de ps-graduaoobedecem a uma avaliao de desempenho queos classifica de acordo com o mrito obtido. Ospesquisadores tambm so classificados de acor-do com a sua produtividade cientfica, medida apartir de critrios definidos extrinsecamente. E,mais recentemente, foi criado o SINAES (Siste-ma Nacional de Avaliao do Ensino Superior) ea CONAES (Comisso Nacional de Avaliao doEnsino Superior). Assim, a autonomia relativado docente vai cada vez mais se restringindo eat se transformando numa iluso de autono-mia (Lemos, 2007).

    Outra consequncia a que aponta Botom(1996), quando considera que, como no h cla-reza em relao aos objetivos institucionais, orisco seria de transformar a instituio num es-critrio de despachantes, onde predominariamrotinas, normas, formulrios, pedidos e progra-mas (destacando-se os de fomento e outros go-vernamentais). Esse predomnio facilitaria o exer-ccio de convenincias polticas ou pessoais degrupos e indivduos, principalmente se estive-

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    rem no governo, na direo ou na administraoda instituio. Nesse sentido, todo o esforo eenergia que deveriam estar direcionados para osobjetivos finais da instituio do ensino superi-or estariam sendo desviados e perdidos nessasatividades burocrticas, que terminam por cum-prir o papel de impedir que processos mais au-tnomos e emancipatrios se desenvolvam, umavez que o professor dedica parcela significativade seu tempo a preencher formulrios, a apre-sentar projetos e propostas demandados pelasdiversas instncias administrativas.

    Segundo Botom (1992), essa dinmica dopoder, em que alguns grupos se apossam de te-mas e recursos, pode, tambm, ser gerada pelapoltica de financiar centros de excelncia, o quetende a significar uma estratgia de cooptaode algumas instituies em detrimento da eman-cipao do sistema universitrio como um todo.Trata-se de uma estratgia de poder do Estado.A autonomia no algo esttico, absoluto, quealgum concede a outro: uma forma de relaci-onamento. Para o autor, esse relacionamento temsido dificultado pela falta de clareza do contratosocial da universidade com o pas. O autor de-fende que a autonomia deve ser conquistada pelaafirmao da identidade, o que diferente danfase na defesa pela fora. Ele considera queconcorrer, ou disputar as verbas liberadas porprojetos do Governo, traduz-se numa busca deautonomia por cooptao e no por emancipa-o do sistema universitrio, o que se daria atra-vs de recursos liberados em funo de planos eoramentos anuais.

    Mancebo e Franco (2003) argumentam queo governo estimula uma dinmica de competi-o administrada, na qual conveniente quedepartamentos e institutos concorram entre sipelas verbas e pelo sucesso, o que significa pro-fessores e estudantes disputando as bolsas, asmigalhas, as vagas nas salas das instituies p-blicas. Segundo as autoras, a competio omotor do desempenho coletivo, e convm, decerto modo, que todos sejam mal aquinhoados,para sentirem, na devida medida, a importncia

    da disputa (p.194).O processo da autonomia docente vai se

    configurando como a principal contradio vivi-da no contexto das universidades federais, a partirda percepo dos professores, que a consideramcomo a dimenso mais importante do trabalhodocente, o que justifica, muitas vezes, a sua op-o profissional. Essa contradio expressa dediversas formas: se, de um lado, a autonomia valorizada como o aspecto mais fundamental namotivao para o trabalho, de outro, essa mes-ma autonomia gera um no-cumprimento, porparte de alguns, das regras coletivas que, porsua vez, tambm no esto claras, sendo neces-sria, nesse caso, uma autonomizao, umaindividualizao. Se a autonomia implica em li-berdade na definio do contedo do trabalho,esse mesmo exerccio isola e impede de conhe-cer o trabalho do outro, o que gera, possivel-mente, conflitos de saber e poder, com aliena-o do processo coletivo.

    Bianchi e Braga (2009), ao consideraremque a perda da autonomia docente crescente,comparam o trabalho docente com o do homemtaylorizado, cujo objetivo mximo era reprodu-zir, de modo automtico, um conjunto muitosimples de movimentos no menor tempo poss-vel. Na distopia da universidade neoliberal, opesquisador deve se submeter a um conjuntodeterminado de rotinas intelectuais no menortempo possvel. Se, num caso, empilha-se car-vo, no outro, produzem-se papers (p.55).

    Nesse sentido, existe um nvel geral dedesinformao do sindicato que representa agrande maioria dos professores das IFES e pelaprpria universidade1 a respeito do que tem sidoproduzido, em termos de anlises e propostas,para o sistema universitrio e para o trabalhodocente. Dessa forma, o ncleo central e invis-

    1 Por exemplo, foi possvel constatar o desconhecimento dosistema de avaliao institucional PAIUB, de caractersti-cas emancipadoras, por quase todos os professores entre-vistados. Um sistema que, se fosse implantado, poderiarepresentar uma importante contribuio para a elabora-o de um projeto acadmico construdo coletivamente eum avano na luta pela autonomia universitria, por seconstituir numa proposta que traduzia os princpios maisessenciais da democracia interna.

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    vel da contradio o fato de que o grau deautonomia percebido pelos professores nocorresponde ao grau de autonomia existente,quando se consideram todos os mbitos da vidainstitucional, ou seja, a autonomia percebida no a autonomia exercida.

    Bourdieu e Passeron (1995) argumentamque o poder de violncia simblica, especifica-mente no seu efeito tambm simblico, s podeacontecer na medida em que o poder arbitrrioresponsvel pela imposio de valores jamais apa-rece em sua completa verdade, ou seja, na medi-da em que a arbitrariedade cultural do contedoque est sendo inculcado no totalmente revela-da, no h transparncia. O desconhecimento daverdade objetiva do poder exatamente sua con-dio de exerccio. O poder arbitrrio, de imposi-o, s pelo fato de ser ignorado como tal, faz-seobjetivamente reconhecido como autoridade le-gtima, o que termina por refor-lo.

    Para os autores, os exames e os mecanismosde avaliao so as expresses mais visveis dasopes implcitas do sistema de educao, namedida em que impem como digna umadefinio de saber que oferece um dosinstrumentos mais eficazes para o processo deinculcao dos valores da cultura dominante. Apartir dessa perspectiva, os docentes no soconcebidos como sujeitos centrais nodesenvolvimento de propostas, com capacidadee direito de participao, mas so agentes de ummodelo a implementar, ou, quando so, terminampor constituir uma elite no processo de cooptaopara defender o modelo institudo. SegundoSaforcada (2006), se o conceito de autonomia serefere autogesto e ao autogoverno, fica difcilpensar como ela poderia ser exercida sem sujeitos.

    Fvero (2000) observa que a autonomia um direito educacional, um princpio inerente atividade universitria, e no ordem jurdica.Assim entendida, a autonomia causa primriada atividade universitria. A partir dessaperspectiva, a autora considera que existem trstipos de autonomia:

    A autonomia didtico-cientfica implica em es-tabelecer seus objetivos, organizando o ensino, apesquisa e a extenso; criar organizar e extinguircursos; elaborar o calendrio escolar; fixar nor-mas e seleo, admisso e promoo, outorgarttulos acadmicos. Do ponto de vista adminis-trativo, significa a liberdade para organizar-se,estabelecer seu quadro de pessoal em articula-o com o ministrio. No que tange autonomiade gesto financeira e patrimonial, significa quea instituio tem competncia para propor e exe-cutar seu oramento, receber recursos para paga-mento de pessoal, despesas de capital e de ou-tros custeios, gerir seu patrimnio, receber doa-es, subvenes, bem como realizar operaesde crdito ou de financiamento com a aprovaodo poder pblico competente (2000, p.62).

    Entretanto, Chau (2001), examinando arelao da universidade com outros sistemas,conclui ser ela uma instituio completamen-te heternoma em suas diversas dimenses: aeconmica (oramentos, bolsas, financiamentosde pesquisa), a educacional (currculos, progra-mas, sistemas de crditos, formas de avaliao,revalidao de ttulos e diplomas, credenciamentode cursos de ps-graduao, critrios para fixara graduao e a ps-graduao, julgamento decurrculos e ttulos, a carreira docente etc.), asocial e poltica (professores, servidores e estu-dantes no decidem quanto aos servios que de-sejam prestar nem a quem). E Fantinatti (1998)acrescenta que a aparente autonomia constituir-se-ia numa iluso, numa contradio. A sensa-o de autonomia e controle sobre o trabalhoseria ento um fetiche.

    A percepo dos professores sobre a suaautonomia no trabalho, na pesquisa realizada naUFBA, de uma forma geral, restrita ao cotidia-no do trabalho, sala de aula, ao fato de noexistir um chefe imediato, excluindo a conside-rao sobre o controle exercido pelos outrosmbitos de determinao institucional. A gran-de maioria dos professores entrevistados desco-nhece o processo progressivo de perda da auto-nomia da universidade no mbito financeiro,assim como tambm no foi possvel, para eles,perceber a progressiva introduo de mecanis-mos de avaliao e de controle pelo Estado, prin-cipalmente, na dcada de 90. Muitos desconhe-

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    cem, inclusive, a natureza desses mecanismos,enquanto que outros os percebem como legti-mos, necessrios, e desconhecem as propostasemancipadoras geradas dentro da prpria insti-tuio. H tambm os que legitimam a busca derecursos na iniciativa privada como alternativade financiamento da universidade.

    Em sntese, h um nvel geral dedesinformao sobre aquilo que tem sido produzi-do, tanto pelo sindicato, que representa a grandemaioria dos professores das IFES, quanto pela pr-pria universidade, em termos de anlises e propos-tas para o sistema universitrio e para o trabalhodocente. Dessa forma, a contradio invisvel ofato de que o grau de autonomia percebido pelosprofessores no corresponde ao grau de autono-mia existente, quando se consideram todos os m-bitos da vida institucional, ou seja, a autonomiapercebida pelo professor muito maior do que aautonomia que, de fato, possvel exercer.

    CONSIDERAES FINAIS

    O professor, dentro desse processo, vai fi-cando progressivamente imprensado por umasuperposio de tenses, contradies e contro-les institucionais que chegam at o cotidiano doseu trabalho. Ele reage a esse supercontrole iso-lando-se, reproduzindo o modelo autoritrio,inserindo-se na corrida pela titulao e publica-o, competindo com os pares, enfim, critican-do algumas dimenses, mas lutando, dirigindosuas energias na busca da sua insero no mode-lo proposto. Essas contradies se superpemda seguinte maneira: a carreira no o desenvolvecomo professor, e sim como pesquisador; parapesquisar, precisa acionar a habilidade decaptador de recursos, para a qual no foi habili-tado; quando consegue recursos externos, correo risco de ser visto como possuidor de uma vidadupla; se no consegue recursos, sente-sedesprestigiado e revoltado, por possuir uma altaqualificao profissional e um retorno salarialincompatvel com o seu grau de conhecimento.

    Na medida em que o Estado orienta a car-reira para a pesquisa (atravs de recursos e re-compensas), transforma o ensino em algo me-nos importante, at mesmo aversivo para algunsprofessores. Quando estimula a competio, atra-vs do financiamento individual externo e dosistema meritocrtico, gera o esgaramento dovnculo social e conflitos interpessoais, criando,muitas vezes, um clima de trabalho desfavor-vel integrao do conhecimento. Ao cooptaruma parcela dos professores (os excelentes,nota 7), o Estado fragiliza a organizao coletivae descaracteriza o papel poltico do professor,que passivamente assume o papel de observa-dor crtico; quando intensifica o trabalho comdemandas perifricas docncia, deixa-o semtempo para o lazer e para a vida cultural, consti-tuindo, assim, uma organizao do trabalho quefacilita o adoecimento e a alienao.

    Mszaros (2005, p.166), pensando a edu-cao para alm do capital, argumenta que oprocesso histrico muda pela ao de seres hu-manos, uma vez que nenhum poder dominantepode transformar a diversidade e a complexida-de de vises num todo homogneo e inerte. Ereafirma a necessidade de um processo de con-tra internalizao que no se restrinja negao,mas que proponha uma alternativa abrangente,concretamente sustentvel ao que existe.

    Cabe, portanto, aos ncleos crticos dasuniversidades a tarefa de construo de uma redeque possa assumir uma prxis de resgate dosvalores fundamentais do processo educativoemancipador que definem uma instituio comouniversidade.

    (Recebido para publicao em 23 de novembro de 2010)(Aceito em 11 de fevereiro de 2011)

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    TRABALHO DOCENTE NAS UNIVERSIDADES ...

    Denise Lemos - Doutora em Cincias Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Professora Adjunto doInstituto de Humanidades, Artes e Cincias Prof. Milton Santos da Universidade Federal da Bahia IHAC/UFBA. Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos CRH/FFCH/UFBA e consultora do Ncleo de Psicolo-gia Social da Bahia. Atua nas reas de Psicologia Social, Sociologia do Trabalho, Processos de Comunicaoe Relacionamento Interpessoal, Processos grupais, Processos de Aprendizagem, Mudana e Subjetividade.nfase em Teorias e Tcnicas Grupais e Organizao do trabalho. autora do livro Revoluo no trabalho?Ncleo de Psicologia da Bahia, 2002 e de artigos publicados pelo Caderno CRH; Universidade e Sociedade(Braslia).

    TEACHING JOBS IN FEDERALUNIVERSITIES: tensions and contradictions

    Denise Lemos

    This paper examines the teaching work inpublic universities, especially at the FederalUniversity of Bahia in Portuguese, UFBA,between 2005 and 2008, from the phenomenon ofthe precarization of labor and the consequentalienation of the worker, based on the results ofdoctoral research in UFBA. It describes the funda-mental dimensions of this process: the multiplicityof tasks, , internal and external fundraising forresearch, contradictions between training and thedemands of the university system, work overloadand its consequences, such as absence of leisure,loss of control over the academic project andillness. It concludes that the main contradictionexperienced by the teachers is that the autonomyperceived by them is not the one exercised, sinceit is subjected to various internal and externalcontrols of the meritocratic system, whose demandsexceed the physical and psychic capacity of theteacher to respond appropriately . However,understanding the process of alienation is the basisfor transformation and emancipation of those whohave a fundamental role in developing thecapacities of others.

    KEYWORDS: alienation, precarization, teaching,university and higher education.

    LENSEIGNEMENT DANS LES UNIVERSITSFDRALES: tensions et contradictions

    Denise Lemos

    Cet article prsente le travail desprofesseurs dans les Universits Fdrales et toutspcialement au sein de lUniversit Fdrale deBahia, entre 2005 et 2008. On y analyse lephnomne de prcarisation sociale du travailet, par consquent, dalination des travailleurs partir des donns de la recherche de doctoratralise UFBA. On y dcrit les dimensionsfondamentales de ce processus: la multiplicitdes tches, la demande de fonds internes etexternes pour la recherche, les contradictionsentre la formation et les exigences du systmeuniversitaire, la surcharge de travail et sesconsquences tels que labsence de loisirs, la pertede contrle du projet acadmique et le fait detomber malade. On en arrive la conclusion quela principale contradiction pour lenseignant estcelle de lautonomie dont il ne dispose pascomme il le devrait, tant donn quil est soumis divers contrles internes et externes du systmemritocratique dont les exigences vont au-delde ses capacits physiques et psychiques pourquil puisse y rpondre de manire adquate.Cependant la comprhension de ce processusdalination constitue la base de la transformationet de lmancipation de ceux qui jouent un rlefondamental dans le dveloppement descapacits de lautre.

    MOTS-CLS: alination, prcarisation, travail delenseignant, universit, enseignement suprieur.