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    A DESCONSTRUO DO FEMININO EM GRIMM E MARINA COLASANTI: A Filha do Moleiro, Rumpelstisequim e a Moa Tecel.

    Maximiliano Torres

    Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ

    No mundo atual, onde a supremacia do pensamento racional/cientificista encontra-se abalada por

    inmeras razes (entre elas a Teoria do Caos), uma forma alternativa do saber ganha novo impulso e

    fora, levando a ns, e a Cincia, a reconsiderar os conceitos de mistrio e sobrenatural, dando-nos a

    oportunidade de buscar respostas na transcendncia, na vivncia mgica do mundo.

    Muito j se falou do carter transcendente e mtico/simblico dos contos de fadas. Concordamos

    plenamente com a usual idia da importncia do pensamento mgico-potico dos contos de fadas, que

    habitam e incrementam o imaginrio individual e coletivo. Estamos, pois, num ambiente fecundo e

    propcio ao regresso do maravilhoso, do onrico e do fantstico. Neste momento, observamos a

    redescoberta do interesse pelos temas inaugurais/mticos, considerados como possveis portais de acesso

    ao desvendamento de primgenas e profundas verdades humanas.

    Neste contexto inserimos a mulher e sua busca, atravs do tempo, de uma identidade feminina.

    certo que tal procura foi espelhada e registrada pela produo literria de cada poca, principalmente

    atravs do pensamento mgico dos contos de fadas.

    Diversos tericos, a partir de Freud, tentaram explicar e explicitar questes difceis, delicadas e

    contraditrias acerca da feminilidade, abordando seus matizes biolgicos, anatmicos, sociais, histricos,

    culturais e comportamentais. Contudo, Jung e Lacan utilizaram-se freqentemente do pensamento

    mtico/simblico para respaldar suas anlises e concluses sobre o eterno desejo de individuao da

    mulher. E exatamente a que, em nossa proposta, a Literatura e a Psicanlise aproximam-se e

    entrecruzam-se: no maravilhoso, isto , no transcendente dos contos de fadas e nas teorias de Jung e

    Lacan.

    Os contos de fadas tm em sua origem muitas controvrsias. Os textos fontes ou matrizes desse

    caudal da literatura folclrica e popular so de origem annima e coletiva. Os vestgios mais remotos

    remontam a sculos antes de Cristo - 25.000 anos a.C.1 - e tm nascedouro em fontes orientais e clticas

    que, a partir da Idade Mdia, foram incorporados por textos de fontes europias.

    1 Vide Marie Louise Von Franz, A Interpretao dos Contos de Fadas. 1981.

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    A despeito das controvrsias, unnime a constatao de que os contos de fadas foram

    inicialmente criados para os adultos ou, ao menos, sem uma preocupao com a faixa etria do leitor.

    Somente no ano de 1697 que Charles Perrault inaugura a literatura infantil (voltada basicamente para a

    criana), com o livro Contos da minha Me Gansa. Em fins do sculo XVIII, os irmos Grimm (os

    Fillogos Jacob e Wilhelm) recolhem da memria popular as tradicionais narrativas maravilhosas, e no

    incio do sculo XIX (1812-1822) comeam a public-las com o ttulo de Contos de fadas para crianas e

    adultos. A partir de 1835, Andersen consegue a fuso do pensamento mgico dos contos de fadas (de

    origens arcaicas) com o novo pensamento racionalista daqueles tempos, inaugurando assim a Literatura

    Infantil Romntica.

    O que nos ponto pacfico o fato de que os Contos de Fadas podem ser benficos para qualquer

    idade e entendidos/abordados sob mltiplos aspectos. Benficos no sentido de personificar questes

    ancestrais e misteriosas da humanidade e nos possibilitar a aventura de imergir em seus desvos. E,

    como no existe apenas uma interpretao para os Contos de Fadas (por estar inserido na pliade literria),

    eles podem ser abordados/interpretados sob vrios ngulos (antropolgico, social, histrico, literrio, etc)

    dos quais o analtico/simblico, utilizado aqui, apenas um; apenas uma chave de leitura.

    O mito e a ideologia sempre foram elementos de alicerce nas narrativas maravilhosas - antigas e

    atuais. O processo de endosso do mtico ao ideolgico, testifica-se pela reduplicao dos modelos

    narrativos. Ao despir suas roupagens exteriores e desvelar os personagens, encontramos uma mesma

    estrutura que repousa no maniquesmo preenchedor de um conhecido vazio textual, estimulando a criao

    de antteses - positivo e negativo; claro e escuro; sonho e realidade, e tantas outras variantes reduplicadas

    numa mensagem ideolgica j denunciada.

    Enquadramos, desta forma, os contos dos Grimm como narrativas de estrutura simples, por

    possuir vinculao com uma forma de narrar que repousa sobre a oralidade. De comportamento ingnuo,

    natural e primitivo, esta maneira de narrar reveladora de interesses convencionais quanto ao

    comportamento social e literrio. Possui, ainda, uma forma cmoda do contar, no modificando o pblico

    nem o sistema.

    Em contrapartida, a narrativa de estrutura complexa, causa um distanciamento entre o indivduo e

    a realidade, a medida que possui uma forma crtica do real e autocrtica de narrar. Sua complexidade

    reside no fato de que os aspectos simblicos e mticos so trabalhados de maneiras diferentes sobre as

    quais repousam os valores da sociedade, numa postura crtica e ideolgica.

    Assim na narrativa de estrutura simples parece haver uma atrao normal entre o mito e a ideologia, enquanto na narrativa de estrutura complexa, mito e ideologia so submetidos a um tratamento custico, denunciador de outras realidades. A narrativa de estrutura complexa, uma

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    inverso do ideolgico e uma recriao do mtico a tal ponto que o mito a um elemento aspectual e acessrio, mas nunca estruturante. (SantAnna, 1984 : 19)

    Com base nesta teoria, enquadramos os contos de Marina Colasanti como narrativas de estrutura

    complexa, visto que sua escrita reflete uma ideologia crtica acerca dos valores sociais, visando a

    mudanas de atitudes na cultura. Ela realiza o resgate dos mitos que aparecem, basicamente, como suporte

    para a valorizao de um discurso do corpo2, de uma voz feminina calada por vrios anos de represso,

    sugerindo a manifestao dos desejos de individuao e ascenso.

    Baseando-nos, tambm, na teoria de Roland Barthes, consideramos cada narrativa como um

    texto, como processo de produo de sentido, um espao de significncia, no qual cruzam-se outros

    textos - intertextualidade - e que, no por determinismo, mas apenas por citar 3 inscreve na histria o seu

    cdigo. Barthes oferece-nos um exemplo de leitura do plural de sentido des-velado no texto. Exemplo

    de suma importncia, pois no se trata de estabelecer ou dar um sentido ao texto, porm trata-se em

    dispor da apreciao da obra para a pluralidade. Sentido aqui visto, essencialmente, como uma

    correlao, ou seja, remete a um outro momento do texto (intra-textual) ou a um outro lugar necessrio

    para a leitura da narrativa (inter-textual).

    Ao conceito de intertextualidade, Barthes, assim como Kristeva4, define-o como a permutao de

    textos, na qual vrios enunciados cruzam-se, relativizam-se, destroem-se, no espao da significncia.

    Enfatiza, principalmente, a colaborao de textos posteriores para a compreenso da obra.

    E nesta perspectiva, que frisamos as palavras de Terry Eagleton:

    No h comeos nem fins, no h seqncias que no possam ser invertidas, nenhuma hierarquia de nveis de textos para nos dizer o que mais significativo ou menos significativo. Todos os textos literrios so tecidos a partir de outros textos literrios, no no sentido convencional de que trazem traos ou influncias, mas no sentido mais radical de que cada palavra, frase ou segmento um trabalho feito sobre outros escritos que antecederam ou cercaram a obra individual. No existe nada como originalidade literria, nada como a primeira obra literria: toda literatura intertextual. ( Eagleton, 1983 : 148).

    2 Podemos considerar a sua escrita como tpica do gnero feminino, pois observamos caractersticas marcantes deste tipo de escritura, tais como: a importncia que a autora atribui ao como se diz em detrimento do o que se diz; a preocupao com o som das palavras; a inflexo da voz; o tom oralizante da escrita; o ritmo e os movimentos respiratrios do texto (freqentemente circular). Seu discurso atravessado pelo corpo (o corpo do narrador), numa busca pela materialidade da palavra, que procura fazer do signo a coisa em si. 3 Barthes joga o sentido deste verbo em tauromaquia: citar, significa aqui chamar outro texto a comparecer. 4 KRISTEVA, Julia. Semanlise. So Paulo, Perspectiva, 1989.

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    Desta forma, so os contos clssicos, em suas estruturas e temas, os textos fontes/matrizes para os

    atuais contos de fadas. Percebemos claramente traos intertextuais nos contos de Marina Colasanti.

    neste sentido que detectamos no Conto moderno A Moa Tecel, resqucios do conto tradicional dos

    Grimm A Filha do Moleiro. No entanto, a autora resgata os contos de fadas e os seus elementos - castelos,

    prncipes, princesas, reis... - no com um texto oral, como faziam os irmos Grimm, mas literrio. Ela

    revisita estes elementos e valores, dialogando com eles, e imprimindo sobre os mesmos um olhar atual,

    dando-lhe novos sentidos, numa releitura.

    Portanto, Marina Colasanti, como todos os escritores, no original - no sentido atribudo por

    Terry Eagleton -, utiliza, geralmente, a intertextualidade em seus textos. Consideramos que, por vezes,

    pode valer-se deste recurso de forma inconsciente, mas que, com freqncia, este um artifcio usado de

    forma consciente, visto que seus contos so, repetidamente, uma retomada de imagens clssicas, mticas e

    arquetpicas, da histria da humanidade.

    A MULHER NOS CONTOS DE FADAS: A BUSCA DIACRNICA DA IDENTIDADE FEMININA

    Os desejos de individuao e de identidade no so privilgios femininos, mas sem dvida,

    caracterizam o feminino.

    Freud questiona se a psicanlise teria parmetros conclusivos sobre o que especfico do

    masculino e do feminino. Afirma que os dados biolgicos e anatmicos seriam insuficientes para definir o

    que masculino e o que feminino, atribudos na cultura e na literatura, s funes reais e simblicas - as

    marcas e alegorias5 do feminino e do masculino - inerentes ao homem e mulher.

    Freud faz equivaler masculino a ativo e feminino a passivo, advertindo, no entanto, que

    podem ser influenciados pelo social. Tanto as meninas como os meninos podem ter atitudes femininas e

    masculinas. Ambos vivem as identificaes e ligaes da fase pr-edipiana; ambos tm complexos

    edipianos masculinos e femininos. Desta forma, lana as bases para uma anlise do feminino, que

    retomada posteriormente por Lacan.

    Este segundo terico usou o conceito freudiano e foi alm. Em seu estudo sobre a sexualidade

    feminina, Freud teria ido at a posio histrica, isto , uma fase subjetiva - limitada e conturbada - que

    5 Etimologicamente, alegoria quer dizer discurso que faz entender outro, linguagem que

    oculta outra. (Moiss, 1974 : 15) Consideramos aqui, alegoria como toda a concretizao de

    idias, ideologias, qualidades abstratas ou imaginrias, atravs de figuras, imagens e/ou palavras

    metafricas, de cunho simblico e de carter, muitas vezes, retrico.

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    a mulher pode ocupar frente feminilidade. Para Lacan, a psicanlise a escritura que vai ordenar a

    sexuao para todos os seres falantes. Essa escritura no significa aspectos anatmicos, mas posies

    subjetivas que os seres falantes podem ocupar frente a sexualidade.

    Lacan postula a diviso do sujeito em feminino e masculino, no em funo dos dois tipos de

    sexo, mas em funo dos dois tipos de gozo: um todo flico e outro no-todo flico. Desta forma, a mulher

    por estar no-toda na funo flica, tem acesso a um outro tipo de gozo: o gozo do Outro. Por ser fora-da-

    linguagem, o gozo do Outro permanece na ordem do indizvel, imprimindo feminilidade um ar de

    incompletude eterna. H, tambm, um lado irracional e misterioso na feminilidade. Algo de luz e sombra,

    prazer e dor. A mulher um rascunho que o homem escreve no af de seu desejo, e a mulher o personifica

    ou o rejeita. justamente a que encontramos a resposta para a dificuldade dos homens em compreender e

    apreender as mulheres, ou melhor dizendo, o ponto de vista feminino.

    Deste modo, para Lacan, no existe uma classe feminina, como h uma do masculino. As

    mulheres so nicas, e s podem ser vistas e consideradas individualmente. No h mulher - artigo

    definido - para designar o universal, pois no h nela um significante que lhe seja especfico. Segundo

    Lacan, a mulher no existe. E justamente esta inexistncia concreta que vai promover a sua existncia

    enquanto ideal: tanto para os homens quanto para as mulheres - que se norteiam, desde suas origens, na

    busca de uma identidade feminina. Para ele, a representao simblica da mulher , teoricamente,

    inalcanvel, s sendo conseguida via maternidade. No entanto, isto a situaria como mulher somente

    enquanto me.

    No existindo uma classe das mulheres, a relao entre um elemento do conjunto masculino e um

    do conjunto feminino no pode ser estabelecida, ou seja, no pode ser escrita. Lacan conclui: a relao

    sexual no existe. Na ordem da escritura ela permanece impossvel, embora os parceiros tentem realiz-la

    na cpula, na tentativa de escrev-la. Ento, entre um ser e outro, h, desde sempre, um abismo, uma

    enorme distncia, uma descontinuidade.6 Somos, pois, por natureza, seres descontnuos. E este o

    nosso maior desconforto, a nossa maior inconformao e, por conseguinte, a nossa maior busca. Se a

    relao sexual se escrevesse, no haveria a falta; no haveria o desejo.

    Esta abordagem Lacaniana nos remete ao mito da androginia, explicitado no Banquete 7 Platnico.

    Segundo o relato de Aristfanes, o comedigrafo, no princpio haveria trs gneros compostos por dois

    seres, com quatro braos, quatro pernas e dois rostos: o masculino formado por duas partes masculinas, o

    feminino formado por duas partes femininas e o andrgino formado por uma parte masculina e outra

    feminina. A alegoria de Um Ser Completo, harmnico, pleno. Porm, por serem dotados de imensa

    6 Termo usado por Georges Bataille em seu livro O Erotismo . Para o filsofo francs, somos seres descontnuos, pessoas que individualmente morrem, numa aventura enigmtica, marcada, contudo, pela nostalgia da continuidade perdida. Um dos pilares de sua leitura potico-filosfica a tenso entre duas noes ontolgicas fundamentais: a descontinuidade e a continuidade do ser. 7 PLATO. O Banquete. In: Dilogos: Mnon, Banquete, Fedro. Trad. Jorge Paleikat. Porto Alegre, Globo, 1945.

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    fora, decidiram afrontar os deuses. Ento Zeus, rei do Olimpo, como castigo, dividiu-os. E desde ento os

    seres partidos passaram a se procurar incessantemente. Na busca da completude primordial.

    No descompromisso do relato mtico, percebemos que a sensao desta nostalgia da androginia

    perdida comanda, na espcie humana, o desejo de substituir o inexorvel isolamento do ser, a sua

    incmoda descontinuidade, por um sentimento, mesmo que irreal e fugaz, de continuidade primgena e

    profunda. O ser humano vive aspirando a este ser que lhe falta e que est irremediavelmente perdido.

    Conclumos ento que, para Lacan, a feminilidade frgil e vacilante, carecendo sempre de uma

    identificao que a represente. Ela um vir-a-ser, como j alertava Freud. Contudo, a feminilidade estaria

    mais alm e seria passvel de ser alcanada.

    Para fugir deste vazio que a remete morte, a mulher busca, incansvel, atravs dos tempos, uma

    identidade.

    Nos textos analisados, observamos uma busca da continuidade. Atravs dos encontros amorosos

    das personagens, a unio homem-mulher tradicionalmente enfatizada como nica possibilidade de

    realizao individual, de auto-realizao existencial. No conto recolhido pelos Grimm, a filha do moleiro

    uma jovem de rara beleza voltada para os bens exteriores, considerada pelo pai to perfeita que seria capaz

    de transformar palha em ouro. De fato, com a ajuda de um homenzinho pequenino (o inconsciente

    representado pela classe masculina), consegue realizar a faanha e, assim, pode ser cobiada pelo mais

    valoroso pretendente: o rei. Claro , que o rei se enamora do exterior, de sua beleza e dom, e acaba

    casando-se com ela. Contudo, o homenzinho fez jovem rainha uma srie de exigncias, dentre elas,

    entregar-lhe o seu primeiro filho com o rei. Realizada fica, por um tempo, a rainha, embevecida pela

    fugaz sensao de continuidade. Contudo, sua identidade s alcanada atravs da maternidade. O

    homenzinho reaparece cobrando-lhe o filho e ela teme perder a sua identidade. Ele a prope uma

    charada: descobrir o seu nome. Por trs dias ela tenta, em vo, arriscando os possveis nomes do

    homenzinho, at que decide enviar um mensageiro floresta (aqui simbolicamente interpretada como um

    mergulho no mundo interior) que descobre o nome do ano: Rumpelstilsequim, que desnorteado (como as

    emoes inconscientes) com a descoberta, afunda-se at a cintura e rasga-se em duas metades. Desfaz-se,

    ento, as foras masculinas opressoras, e ela pode, assim, incorporar definitivamente a sua identidade.

    Do processo de individuao e autoconhecimento, a dor companheira inseparvel. A filha do

    moleiro era ftil, voltada to somente para as aparncias. Como mulher, almejava construir sua identidade,

    e o homenzinho que a auxilia nesta viagem interior. Todos temos nossos anes algozes, que para uns o

    medo, para outros a insegurana. Todos temos, cedo ou tarde, que descobrir seus nomes e subjug-los. E

    ela busca, inicialmente, a completude no prottipo do homem ideal/idealizado: o rei. Em consonncia com

    o sistema patriarcal, onde a mulher s plena no papel de esposa e me - a harmonia vem atravs do

    sentimento de maternidade (atravs do elo entre matriz e feto).

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    A figura feminina, neste conto, reafirma as marcas, alegorias e esteretipos aos quais as mulheres

    foram aprisionadas por sculos ou milnios. Ratifica a idia de que apenas ser vencedora e feliz a mulher

    casada, me de famlia, trabalhadeira, bem dotada (para enriquecer o parceiro) e submissa.

    No conto moderno de Marina Colasanti - A Moa Tecel - o enfoque , tambm, a mulher

    enclausurada, confinada aos afazeres domsticos, que busca a completude num companheiro. Contudo, a

    personagem ao se deparar com a dominao e os caprichos do parceiro, desiste do sonho da maternidade e

    do felizes para sempre. Nesta narrativa, a autora questiona a alternativa imperativa do casamento, da

    famlia, e fornece a opo de sua personagem adentrar o processo de individuao por outras vias,

    permanecendo sozinha, atravs de um comportamento de transgresso: a destruio do parceiro. a

    manifestao do discurso do desejo - de liberdade, de independncia - e o direcionamento da libido para

    outros fins que no o casamento. Ressalta, desta forma, uma personagem que, embora conscientemente

    incompleta e descontnua, possui a escolha de um estar feliz diferente das tradies.

    Em nossa leitura dos suportes mticos destes dois contos, examinamos a marca de uma

    intertextualidade, constantemente presente. No conto A Moa Tecel, Marina Colasanti remete-nos ao

    conto dos Grimm. Eles de fato se tocam em diversos pontos, como por exemplo, na figura da mulher que,

    com o seu extraordinrio dom, consegue transformar a realidade sua volta e a si mesma. Somos levados,

    tambm, ao mito de Penlope, filha de Icrio e da ninfa Peribia, que foi desposada, sua revelia, pelo

    vencedor de uma corrida de carros: Ulisses. Smbolo perfeito da fidelidade, lealdade e subservincia

    conjugal, Penlope reflete o papel da mulher propagado ao longo dos tempos pelas sociedades patriarcais.

    Como Penlope, a Filha do Moleiro e a Moa tecel fiam seus destinos e submetem-se aos desgnios e

    caprichos dos maridos. No entanto, a moa tecel rompe com estas marcas do feminino, impostas

    culturalmente, no momento em que decide abrir mo desta forma, tradicionalmente veiculada, de

    felicidade, optando por uma realizao atravs da liberdade de ser.

    Outro suporte mtico em que se sustentam as narrativas o mito das Parcas - Cloto, Lquesis e

    tropos - que fiavam, dobavam e cortavam o fio da vida. Consoante as fiandeiras, a Filha do Moleiro e a

    Moa Tecel criam, do a vida e, se optarem, podem romp-la, utilizando um poder originalmente

    atribudo s mulheres, porm suprimido, ao longo da Histria, por uma ideologia repressora.

    O Movimento Feminista, at os anos 60, tinha como meta o paradigma de igualdade , no qual o

    masculino era o modelo e o ideal a ser seguido. Nos anos 70, o neofeminismo reformula a definio de

    igualdade, que assumiu a conotao de afirmao da diferena. Mais tarde, essa igualdade foi substituda

    pela busca e inveno da identidade e do desejo femininos: a mulher no quer mais ser o espelho do

    homem, nem mesmo o seu avesso ou contrrio; quer encontrar a sua prpria marca, seus valores e direitos,

    suas satisfaes e desgnios prprios, sua feminilidade, sua identidade; aquilo que a faz ser nico, numa

    mudana de conscincia e de atitude. a busca de uma reconciliao entre o real e a fantasia, o prazer e o

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    trabalho, a sensibilidade e a razo, estigmatizados como antagnicos e heterogneos pelo mundo moderno

    mecanizado, pela sociedade repressiva.

    Investigar os contos de fadas tradicionais ou modernos nos possibilita o mergulho nesta

    reconciliao, numa poca em que a mulher ainda est em suave desabrochar de suas potencialidades. Tais

    narrativas nos propiciam um tipo de conhecimento alternativo da natureza humana, um saber que

    congemina contrrios; que nos esclarece aquilo que a razo no consegue adentrar e s o potico capaz

    de apreender.

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