toniol, rodrigo. integralidade, holismo e responsabilidade: etnografia da promoção de terapias...

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    Toniol, Rodrigo. Integralidade, holismo e responsabilidade: etnografia da promoode terapias alternativas/complementares no SUS. In: Ferreira, Jaqueline; Fleischer,Soraya.Etnografias em servios de sade. Rio de Janeiro: Editora Garamond. pp. 153- 178, 2014

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    outra. A isso se relacionam dois objetivos mais gerais da anlise apresentada a seguir,

    que extrapolam a singularidade do contexto observado e se prestam a estabelecer

    pontos de dilogo com outras pesquisas etnogrficas no/do SUS. Em primeiro lugar

    trata-se de poder reconhecer a multiplicidade de discursos, enunciados, atores sociais

    e prticas implicadas no sistema oficial de sade brasileiro sem, com isso, pulverizar

    as articulaes burocrticas e institucionais - no por isso no-concretas capazes de

    dar alguma unidade a essa diversidade. Ou como sugeriu a antroploga indiana

    Gayatri Chakravorty Spivak (1988), o desafio conceber as associaes que

    constituem uma poltica sem compreend-la monoliticamente. Em segundo lugar,

    interessa na produo de uma narrativa etnogrfica do/no SUS escapar de

    perspectivas reificantes que, ao deterem-se numa poltica de sade, supem que seus

    efeitos de poder esto restritos ao domnio social da sade. Em certo sentido, trata-se

    de desconfiar da preciso das aes em sade que, supostamente, so unvocas em

    seus objetivos e efeitos.

    Ao longo deste texto me deterei na anlise da elaborao e implantao da

    Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares (PNPIC) em alguns

    contextos do Rio Grande do Sul. Tal poltica tem por finalidade assegurar e promover

    o acesso, no sistema pblico de sade brasileiro, medicina tradicional chinesa,

    homeopatia, fitoterapia, ao termalismo e medicina antroposfica. Essa poltica ,

    de alguma maneira, resultado de um movimento mais amplo que vem, desde a dcada

    de 1970, procurando atribuir legitimidade aos saberes tradicionais sobre sade e

    doena.

    Em 1978, a Conferncia Internacional sobre Ateno Primria em Sade de

    Alma-Ata, na extinta Unio Sovitica, recomendou, pela primeira vez em termos

    oficiais, a formulao de polticas e regulamentaes nacionais referentes

    utilizao de remdios tradicionais de eficcia comprovada e explorao das

    possibilidades de se incorporar os detentores de conhecimento tradicional s

    atividades de ateno primria em sade, fornecendo-lhes treinamento

    correspondente.(Brasil, 2009: 17).

    Ainda em 1978, a Organizao Mundial de Sade (OMS) criou o Programa de

    Medicina Tradicional cujo objetivo era promover a integrao da Medicina

    Tradicional e Complementar/Alternativa nos sistemas nacionais de ateno sade.

    Na dcada de 1980 tal programa converteu-se em um departamento da OMS.Atualmente, segundo dados dessa Organizao, 30% de seus pases membros dispem

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    de polticas para a integrao da Medicina Complementar em seus sistemas de sade e

    mais de 60% j formularam regulaes para as Prticas Integrativas e

    Complementares (PICs) (Brasil, 2006). No continente americano, Mxico, Cuba,

    Estados Unidos e Bolvia so pioneiros na implementao desse tipo de poltica. O

    Brasil, por sua vez, tem se destacado pela acelerada incorporao das PICs no SUS e

    pela promoo de algumas terapias ainda no aprovadas noutros pases como a

    medicina antroposfica e o termalismo.

    Embora a oficializao dessa poltica no Brasil tenha ocorrido somente em

    2006, sua demanda pode ser observada desde as primeiras Conferncias Nacionais de

    Sade, quando as diretrizes do SUS ainda estavam em fase de discusso. Na 8

    Conferncia Nacional de Sade, realizada em 1986, por exemplo, aprovou-se a

    introduo de prticas alternativas de assistncia sade no mbito dos servios de

    sade, possibilitando ao usurio o acesso democrtico de escolher a teraputica

    preferida. Foi somente em 2003, contudo, que o Ministrio da Sade instituiu um

    Grupo de Trabalho para a elaborao de uma poltica nacional de terapias alternativas

    e para a realizao de diagnsticos acerca das prticas j existentes nas Unidades

    Bsicas de Sade do pas. Aps trs anos de funcionamento desse GT, seis

    teraputicas e diversas prticas corporais foram aprovadas, tornando seu oferecimento

    gratuito e universal no SUS.2

    Esse processo de institucionalizao das terapias alternativas/complementares3

    Medicina Tradicional e Complementar/Alternativa no sistema de ateno sade,

    contudo, no se deu sem controvrsias. Apenas quatro meses depois da assinatura da

    portaria que lanou a Poltica das PICs, o Sindicato Mdico do Rio Grande do Sul,

    numa ao articulada com outros sindicatos mdicos, ingressou com uma ao civil

    pblica no Tribunal Regional Federal da 4a. Regio requerendo que a Unio se

    abstenha:

    2Desde sua implantao, foram realizados concursos para a contratao de especialistas no-mdicosem diversas unidades da federao, foram promovidos mais de 5 seminrios nacionais pelo Ministrioda Sade, alm da regulamentao por parte de rgos federais (como a Agncia Nacional deVigilncia Sanitria) para o cultivo de plantas destinadas s terapias e para a criao de farmciasespecializadas em seus medicamentos. No ano de 2010, segundo os dados do Ministrio da Sade,mais de 1 milho de consultas e prticas corporais foram realizadas no mbito das PICs. Levando emconta somente a acupuntura, nesse mesmo ano, o investimento do governo federal ultrapassou 4milhes de reais Dados disponveis no SIAB (Sistema de Informao da Ateno Bsica -

    http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/).3Na tentativa de marcar a tenso permanente entre diversos atores sociais pela definio do estatutodessas teraputicas, utilizarei, como estratgia narrativa, o termo terapias alternativas/complementares.

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    a) de permitir, no mbito do SUS, a realizao de tratamento de pacientes atravsde acupuntura por profissionais que no sejam mdicos; b) de continuaroferecendo de forma generalizada, tambm do mbito do SUS, tratamentos semeficcia cientfica comprovada, tais como fitoterapia, creonoterapia e termalismosocial; c) alternativamente, a suspenso dos dispositivos da Portaria 971/2006 doMinistrio da Sade, de forma a manter a sistemtica anterior, na qual o exerccioda acupuntura era privativo dos mdicos e quaisquer tratamentos semcomprovao cientfica deveriam passar pelo consentimento informado pelo

    paciente. 4

    Ainda que as controvrsias envolvendo a legitimidade cientfica das terapias

    implicadas na PNPIC sejam aspectos importantes para sua compreenso mais geral,

    procuro neste texto dar um passo atrs e antes de pensar no debate sobre este

    contexto, refletir sobre como a implantao dessas terapias no sistema de sade

    pblico brasileiro tornou-se plausvel.Neste texto apresento, em um primeiro momento, uma narrativa etnogrfica

    em/de um Ambulatrio5 vinculado ao SUS na cidade de Porto Alegre, que atende

    exclusivamente com teraputicas integrativas e complementares em uma regio

    bastante empobrecida da cidade. Privilegiarei nessa etnografia dois aspectos

    importantes na constituio dessas terapias: a responsabilizao dos sujeitos por seus

    processos de cura e adoecimento, e a produo, circulao e consumo dos

    medicamentos homeopticos, fitoterpicos e florais. Para, em um segundo momento,deter-me na anlise de alguns documentos relativos PNPIC, concentrando-me

    sobretudo no modo pelo qual certas modulaes discursivas do princpio da

    integralidadedo SUS tornaram plausveis a oferta dessas terapias no Brasil.

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    A congregao religiosa das irms da Divina Providncia chegou ao Brasil no

    final do sculo XIX. Tendo a caridade como seu carisma congregacional, as religiosas

    construram e administraram escolas, hospitais e orfanatos em diferentes cidades. Em

    Porto Alegre, a congregao finalizou, no fim da dcada de 1960, a construo de um

    importante hospital que atendia gratuitamente toda a populao do municpio.

    Durante a dcada de 1980, no entanto, com as mudanas no sistema de sade pblica

    4

    Ao civil pblica nmero: 2006.71.00.033780-3 (RS) / 0033780-12.2006.404.7100.5Por conta de um acordo feito com os terapeutas e diretores do ambulatrio em questo, noidentificarei o bairro onde est situado, assim como trocarei o nome dos terapeutas, mdicos e usurios.

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    e com a exigncia de certo tipo de especializao para o atendimento mdico, a

    Congregao entrou em uma crise financeira e no pde mais manter a gratuidade do

    servio, tornando o hospital uma empresa com fins lucrativos. Junto crise

    financeira instaurou-se, entre as religiosas, uma crise tica. Afinal, o propsito da

    instituio hospitalar era contribuir com as obras de caridade da Congregao e no

    impedir seu exerccio. Irm Neide, enfermeira no hospital desde sua fundao,

    reconhece nesse perodo o ponto de partida para a ideia de atender populao com

    terapias alternativas/complementares:

    Desde a origem de nossa congregao o que buscamos atender as pessoas carentes.Quando aconteceu isso do hospital, ns entramos em crise. Ficamos em conflito entrens porque o povo ali em volta tendo necessidade e ns tendo que fechar as portas. Acomeamos a nos articular e tentamos encontrar uma soluo. Nesse perodocomeamos a ver que tinha cursos de terapias alternativas sendo oferecidos em umaescola chamada Ponto de Luz, eram especialmente cursos de terapia floral. A eucomecei a fazer. Depois outras religiosas tambm foram fazendo e ento nsconversamos com a comunidade e sugerimos abrir um ambulatrio que atendesse scom terapias naturais. A aceitao foi imediata. Logo no conseguimos mais darconta das filas que se formavam para o reiki, florais, auriculoterapia e outras terapias.

    Em seu perodo inicial, o Ambulatrio de Terapias Naturais e

    Complementares funcionava em um barraco alugado pelas irms na favela ao lado do

    hospital. Com o crescimento da demanda, o Ambulatrio foi transferido para outrosespaos at que, em meados dos anos 2000, passou a atender em uma casa da

    Congregao localizada na mesma comunidade, a Vila Sete de Setembro. No foi

    somente o espao fsico que mudou, as terapias oferecidas, a organizao do

    Ambulatrio e mesmo seu financiamento tambm se transformaram. Desde os anos

    2000, o Ambulatrio considerado uma ao filantrpica e, por isso, recebe repasse

    financeiro do governo do Estado e do municpio. Atualmente, em vias de se converter

    em uma Unidade Bsica de Sade, o Ambulatrio recebe encaminhamentos demdicos e profissionais dos postos de sade da cidade e atende exclusivamente com

    terapias alternativas/complementares, sendo elas: reiki, cromoterapia, fitoterapia,

    auriculoterapia, reflexologia, yoga, radiestesia, acupuntura, homeopatia, terapia floral,

    aromoterapia, massoterapia, alm de outras prticas que so oferecidas

    esporadicamente, como a medicina ayurveda.

    Se a incorporao das terapias alternativas/complementares constituem, em

    alguma medida, um marco no trajeto histrico da sade pblica brasileira, sua oferta

    gratuita tambm emblemtica para o campo dos terapeutas holsticos brasileiros.

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    Contudo, seu uso nesse contexto no visa reconhecer as supostas relaes das terapias

    alternativas/complementares com os princpios do SUS, mas serve para fazer uma

    anamnese, para apresentar um diagnstico ou uma prescrio. No Ambulatrio, aos

    sujeitos e a seus corpos a que se dirigem esses termos e no a produo das leis e

    oficialidades. Ao referir-me aos corpos dos usurios do Ambulatrio como elementos

    centrais para compreender as afeces produzidas pela introduo de certas

    perspectivas e prticas teraputicas no SUS, no estou somente assinalando uma

    perspectiva analtica possvel, mas tambm ressaltando que as PICs tornam o corpo

    um meio para a autotransformao, conhecimento e cura dos sujeitos.

    Embora agrupadas sob uma mesma nominao, as terapias

    alternativas/complementares promovidas pelo SUS so sustentadas por princpios

    bastante distintos. Para citar apenas alguns exemplos, na Medicina Tradicional

    Chinesa, o equilbrio entre o Yin e o Yang central para a promoo de sade, j para

    os cromoterapeutas o que interessa a harmonia na circulao de energia entre os

    chacras. Na homeopatia, por sua vez, fundamental restituir a fora vital dos sujeitos

    para reestabelecer sua sade. Para os terapeutas do Ambulatrio, contudo, essa

    diversidade de perspectivas sobre o que est sendo tratado o equilbrio entre Yin e

    Yan, os chacras ou a energia vital no inviabiliza o uso de diferentes terapias em um

    mesmo sujeito. Isso porque a convergncia daquilo que chamado de Prticas

    Integrativas e Complementares no est no modo de proceder das terapias, mas sim

    no lugar atribudo aos sujeitos em seu processo de cura e adoecimento. Como afirma

    Cludio, um acupunturista que atende todos os dias no Ambulatrio:

    O que torna as terapias muito parecidas que todas elas tm o mesmo objetivo: tentarfazer com que a pessoa se d conta de que ela responsvel por tudo o que se passacom ela. Uma pessoa diabtica normalmente pessimista, rancorosa e perdeu o gosto

    pela vida. Por isso que quando ela fala que diabtica isso no significa muito paramim, esse s o comeo do diagnstico e no o final. E no tratamento eu falo paraela, vou te ajudar a melhorar, mas quem tem que reequilibrar corpo, mente e esprito voc, s voc pode mudar o que tem que ser mudado.

    Sendo, portanto, a diabetes (assim como qualquer outro tipo de adoecimento)

    a manifestao somtica de um determinado modo de se relacionar com o mundo, a

    manuteno de sua sade ou o surgimento de doenas, no contexto das PICs, de

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    responsabilidade dos prprios sujeitos.6 Embora Cludio reconhea o princpio da

    responsabilizao como um aspecto caracterstico das terapias

    alternativas/complementares, isso no significa que os efeitos de seu funcionamento

    esteja restrito aos espaos, usurios e terapeutas adeptos de tais teraputicas. Nesse

    sentido, embora o princpio da responsabilizao seja central para a compreenso das

    PICs, seu funcionamento extrapola estas terapias, articulando-se com a dinmica de

    funcionamento do prprio SUS. Noutras palavras, tratam-se de concepes e

    princpios que, longe de serem alheios sade pblica brasileira, encontram nela

    possibilidades de reverberaes.

    desse modo que a promoo de teraputicas no-ortodoxas no contexto do

    SUS pode ser compreendida menos a partir de um suposto exotismo e mais como

    parte de um processo mais amplo relacionado com o crescimento de tecnologias de

    sade que intimam os indivduos a governarem a si mesmos como sujeitos

    simultaneamente de liberdade e de responsabilidade. Nikolas Rose (2011), em dilogo

    com certa analtica foucaultiana, identifica o binmio liberdade-responsabilidade,

    fomentado pela emergncia dos saberespsi no fim do sculo XIX, como um elemento

    fundamental na constituio das racionalidades polticas do liberalismo. Governar a

    liberdade dos indivduos a partir da responsabilizao sistemtica de suas aes - e

    nesse caso de seu prprio estado de sade/doena torna-se, nesse contexto, mais do

    que plausvel, desejvel. Parafraseando Rose (2011), a relao entre liberdade-

    responsabilidade est associada a um regime de subjetivao no qual os sujeitos no

    so meramente livres para escolher, mas obrigados a serem livres (Rose, 2011:32).

    Nesse sentido, o governo da liberdade tambm implica em produzir experts capazes

    de responsabilizar os sujeitos por suas prprias escolhas.

    A liberdade exercida somente quando se paga o preo de confiar nos experts daalma. Ns fomos libertados das prescries arbitrrias de autoridades religiosas e

    polticas, permitindo assim, uma srie de diferentes respostas questo de comodevemos viver. Mas fomos atados a um relacionamento com novas autoridades, queso mais profundamente subjetivadoras porque parecem emanar de nossos prprios

    6Parte da produo antropolgica sobre terapias alternativas no mbito de movimentos mstico-esotricos tambm tem insistido nesse aspecto de responsabilizao dos sujeitos por seus processos desade e doena (Amaral, 2000; Tavares, 2012; Tovey, Esathope, Adams, 2003). No caso do contextodas espiritualidades nova era, essa caracterstica comumente associada com a crescentedesinstitucionalizao das crenas religiosas e, por conseguinte, individualizao dos modos de relaocom o sagrado. Nesse sentido, assim como o acesso ao transcendente estaria estritamente relacionado

    com uma elaborao individual de sistemas de crena, a sade e a doena tambm seriam resultadosindividualizados dos modos de se colocar no mundo.

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    desejos individuais de nos realizarmos em nossa vida quotidiana, de esculpir nossassubjetividades, de descobrir quem realmente somos (Rose, 2011: 33).

    No caso das terapias alternativas/complementares aqui analisadas parece

    evidente que so os terapeutas os experts capazes de dizer, por exemplo, que o

    pessimismo dos sujeitos a causa de sua diabetes. Ao mesmo tempo que o terapeuta

    responsabiliza os sujeitos por seu adoecimento, tambm os lembra que so livres e

    capazes de mudar os comportamentos que geram sua doena. por isso que, como

    afirma Cludio, a diabetes o comeo do diagnstico [e do tratamento] e no o

    final.7

    Esse tipo de perspectiva, contudo, torna-se possvel somente quando se deixa

    de reconhecer o corpo como um substrato biolgico universalizvel cujas causas e

    tratamentos para as mesmas doenas em indivduos diferentes so iguais. Se na

    medicina aloptica a universalidade dos corpos o fundamento garantidor de que as

    mesmas doenas sejam iguais para todos, nas terapias alternativas/complementares os

    corpos que adoecem so manifestaes de uma conduta no saudvel que o prprio

    doente deve identificar e reorientar. Esse tipo de constatao remete a outro aspecto

    das Prticas Integrativas e Complementares, os medicamentos.

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    ()$%'#($*8(/9:.01)%0%#$('%/

    Parece ter sido apenas mais recentemente que pesquisas etnogrficas tenham

    problematizado a produo, regulao, uso, circulao e publicidade de

    medicamentos. No Brasil, algumas pesquisas tm avanado nessas discusses

    sublinhando no somente a possibilidade de conceb-los como objetos de pesquisa,

    mas tambm de tom-los como atalhos etnogrficos, capazes de serem usados como

    uma viapara compreender diferentes aspectos dos cuidados com a sade no mbito

    familiar e vicinal (Fleischer, 2012; Aureliano, 2012). 8O interesse antropolgico nos

    7Como venho afirmando neste texto, as noes e prticas implicadas no funcionamento de terapiasalternativas/complementares no se constituem como exceo para a sade pblica brasileiras, mas,

    pelo contrrio, esto em conformidade com os prprios princpios do SUS. Jaqueline Ferreira, ElyneEngstron e Luciana Correia Alves (2012), por exemplo, abordaram o tema da responsabilizao em umartigo sobre pacientes tuberculosos em Manguinhos, Rio de Janeiro.8 Sobre o tema no Brasil destaco a publicao recente do dossi temtico Antropologia eMedicamentos, organizado por Clarissa Martins Lima e Lecy Sartori, no peridico R@u.

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    medicamentos parece residir, portanto, na possibilidade de ir alm da aparente

    constncia de seu poder curativo. Como afirmou Van der Geest e Whyte (2011), o

    encanto dos medicamentos est na sua concretude, no fato de poderem ser

    interpretados de diferentes maneiras sem, contudo, perderem sua capacidade de

    objetificar a cura.

    Ao menos no que se refere aos medicamentos alopticos, sua eficcia parece

    estar atrelada ao pressuposto de duas universalidades. Primeiro a do corpo que o

    recebe; um substrato biolgico que deve reagir aos mesmos medicamentos de formas

    semelhantes e cujos desvios possveis so, inclusive, discriminados na bula.

    Segundo, os prprios medicamentos seriam, em si, entidades da universalidade,

    insensveis a fronteiras, capazes de manifestar a integridade de seu princpio ativo

    independentemente, ou pelo menos com fraca dependncia, do contexto de sua

    aplicao (Marras, 2012).

    No contexto das terapias alternativas/complementares, no entanto, nenhuma

    dessas duas universalidades esperada. As doenas, como assinalei na sesso

    anterior, so resultados de modos individuais de se relacionar com o mundo e no so

    o fim do tratamento, mas um indicativo do que pode estar errado. Nesse caso,

    medicamentos no tratam doenas, mas ajudam sujeitos a tomarem conscincia de seu

    prprio corpo e, sobretudo, daquelas aes que os fazem adoecer.

    Ainda que em termos gerais o Ambulatrio funcione de modo semelhante a

    uma unidade bsica de sade, com recepo, sala de espera, enfermaria para curativos

    e triagem dos usurios e consultrios, as diferenas tambm so perceptveis mesmo

    para quem chega pela primeira vez. Os ambientes so harmonizados com uma

    combinao de leos essenciais preparados por uma das terapeutas. A exceo a

    enfermaria, onde predomina o cheiro do prpolis usado nas inmeras nebulizaes

    feitas diariamente. Nos corredores que levam aos consultrios sempre possvel ouvirum repertrio de msicas instrumentais, normalmente, maias, celtas ou indianas.

    No preciso muito tempo acompanhando o cotidiano do Ambulatrio para se

    perceber a centralidade dos medicamentos. Na sala de espera, por exemplo, comum

    ouvir usurios explicarem como funcionam as terapias aos que chegam pela primeira

    vez a partir da descrio dos medicamentos ou procedimentos nelas empregados.

    Assim, so corriqueira narrativas como a de Raquel que descreve o percurso que fez

    entre as diferentes terapias do seguinte modo:

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    que o reiki e a cromoterapia feitos por uma das terapeutas do lugar ajudavam muito a

    acalmar as crianas. No entanto, o problema que levava Ana ao Ambulatrio no era

    a agitao de sua filha, mas, pelo contrrio, seu desnimo. A menina, sentada em uma

    cadeira no canto da sala, ouvia atentamente a conversa em que sua me narrava como

    ela no gostava de brincar e de interagir com outras crianas. Quando a secretria

    chamou Ana e perguntou se queria se consultar com algum terapeuta especfico, ela

    decidiu seguir o conselho das outras mes e solicitar a mdica que faz reiki. Logo

    Andressa foi atendida por Carol, nutricionista, reikiana e cromoterapeuta do

    Ambulatrio. Algumas semanas depois reencontrei Ana e Andressa e perguntei sobre

    como havia sido a primeira consulta.

    Olha, foi timo. A Carol identificou na Andressa uma chaga de tristeza. Eu fiqueimuito triste com isso, mas me dei conta que esse problema dela tinha a ver comigo.Agora ela j no tem mais, isso porque eu e ela mudamos. Eu tinha um excesso [decuidado] com ela porque j perdi uma filha e isso gerou nela a chaga da tristeza. Porisso dava tristeza, bronquite, tudo nela. A medicina tradicional [biomdica, nestecaso] t muito falha, os mdicos no do ateno para entender a pessoa, no

    percebem se ela est com um problema. E se acham alguma coisa do remdio. Evoc acha que remdio ia acabar com o problema da Andressa? No. Foi o reiki quefoi trocando as energias dela e acabando com o problema.

    Se a bronquite e at o desnimo de Andressa poderiam ser tratados com

    remdio, a cura da causa desses adoecimentos, a chaga da tristeza, algo que depende

    de uma mudana no comportamento e, ao mesmo tempo, de um tipo de teraputica

    que harmoniza a circulao energtica entre mente, corpo e esprito, como me

    definiu Carol. A partir de histrias como a de Andressa passei a buscar estratgias

    metodolgicas para que eu mesmo pudesse acessar o ambiente da consulta,

    diagnstico e tratamento dos usurios. Foi com esse mpeto que comecei, aps alguns

    meses de trabalho de campo, a consultar-me com os terapeutas do Ambulatrio.

    Assim, a partir do momento em que me dispus a engajar-me no trabalho de

    campo a partir de consultas cujo paciente era eu mesmo, que tive acesso aos

    procedimentos burocrticos necessrios para o incio do tratamento, a anamnese dos

    terapeutas, aos prprios procedimentos teraputicos, bem como passei a estabelecer

    com os outros usurios do Ambulatrio um tipo de relao em que tambm podia

    compartilhar minhas experincias com certos medicamentos e com as terapias.

    Negociei durante algum tempo este tipo de engajamento com os terapeutas e com as

    enfermeiras do Ambulatrio. Em tais conversas, situava a questo, na maior parte das

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    vezes, a partir da oposio pesquisador e usurio sublinhando que, caso aderisse s

    teraputicas, teria que explicar a opo em minha investigao. Certa manh em que

    eu voltava a tematizar o assunto em uma conversa com Amlia, enfermeira do lugar,

    ouvi de um terapeuta: Mas, Rodrigo, voc j usurio. Fazer a terapia no o mais

    importante, voc tem uma energia, sua energia se transforma quando voc vem aqui,

    sente esse cheiro, ouve essa msica, conversa com a gente. As terapias, nesse

    sentido, so apenas parte de um modo de estar atento ao corpo, s energias, aos

    cheiros, s cores, que a prpria experincia do Ambulatrio proporciona. Sem deixar

    de reconhecer a relevncia de dispor-me a ser avaliado por um terapeuta no ambiente

    de um consultrio, reconheo este momento menos como o ponto chave de uma

    suposta converso capaz de transformar o pesquisador em usurio, e mais como um

    outro tipo de engajamento num contexto ao qual j estava submetido.

    Sem ter tido contato prvio com a maior parte dessas teraputicas antes do

    incio da pesquisa, fiz o mesmo percurso da maior parte dos usurios. Relatei para a

    secretaria algumas de minhas queixas e ela mesma indicou um terapeuta. Durante a

    primeira consulta, de quase uma hora, aps responder a perguntas diversas, Renata, a

    terapeuta com quem me consultava, empregou uma tcnica diagnstica que sempre

    utiliza, a radiestesia. Com um pndulo de cristal ligado a uma corrente, pediu para que

    eu deixasse a palma de minha mo para cima e ficasse parado. Enquanto isso, pegou

    uma lista de florais plastificada e lavou na pia do consultrio, explicando-me que

    fazia isso para limpar as energias do usurio da consulta anterior. Com o pndulo

    suspenso, a terapeuta deixava o cristal pairar sobre a palma de minha mo e depois

    sobre a lista. Em cada um desses movimentos o pndulo respondia com um tipo de

    rotao o que indicava para Renata se determinado floral era ou no adequado para o

    meu caso. Quando terminou, disse ter confirmado o que imaginava, mas que pndulo,

    como instrumento radiestsico capaz de captar as energias de meu corpo, indicoualguns florais que ela no havia pensado em usar. Ao final da consulta recebi o floral

    indicado conforme a avaliao de Renata e as respostas do pndulo.

    Os medicamentos tornaram-se, desse modo, tanto um objeto de interesse de

    pesquisa, como tambm um elemento que minimamente compatibilizava a minha

    experincia do Ambulatrio com a dos usurios que so ali atendidos. A partir do uso

    que vinha fazendo daqueles medicamentos e das conversas com alguns usurios na

    sala de espera do Ambulatrio percebi uma inusitada regularidade. Nenhuma daspessoas com quem conversei, e isso tambm inclui minha prpria experincia,

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    guardava os medicamentos das terapias do Ambulatrio junto aos medicamentos

    alopticos. Diante da questo, os usurios no deixaram de mostrar espanto. Gente,

    mesmo, eu no guardo na caixa. Que loucura, ou ento, Nossa, eu nunca tinha

    reparado nisso. Tomo o remdio de presso todos os dias e deixo ele em um lugar e os

    florais, que tambm tomo todos os dias, deixo em outro. Quando compartilhei com

    Renata a constatao, sua reao foi dizer que isso era uma questo energtica, as

    pessoas no guardam esses medicamentos juntos porque eles so energeticamente

    diferentes. E mesmo sem elas se darem conta explicitamente, percebem que eles so

    coisas diferentes dos remdios alopticos. O reconhecimento da diferena de estatuto

    entre os medicamentos das terapias alternativas/complementares e os alopticos,

    portanto, parece no residir, no contexto das PICs, em aspectos formais tais como a

    existncia ou no de bula (florais no tem bula), no princpio medicamentoso de cada

    um deles ou em mesmo seus fabricantes, mas sim na energia que possuem. Desse

    modo, somos remetidos a um novo horizonte de problematizaes que nos levam a

    desestabilizar a aparente invariabilidade dos remdios, provocando-nos a reconhecer a

    existncia de multiplicidade no somente nas interpretaes sobre eles, como tambm

    em suas prprias materialidades.9

    > 1)(A/*2*)*+(+% +( .5%'$( +% =%'(1*(/ >)$%'#($*8(/9?.01)%0%#$('%/ #. ;4;

    Nesta sesso trato de apresentar um dos aspectos centrais para a plausibilidade

    da oferta de terapias alternativas/complementares no SUS, a saber: o princpio da

    9 Argumentar a existncia de uma relao intrnseca entre objetos/materiais/coisas com a vida (nosentido mais amplo da palavra) parece ser lugar comum nas cincias sociais h algum tempo. A ideiadas redes sociotnicas de Bruno Latour (1994; 2000), os ciborgues de Donna Haraway (2009) e a vida

    social das coisas de Appadurai (1990), para citar apenas alguns autores, so exemplos j conhecidos daproduo antropolgica contempornea sobre o tema. Reconhecer a existncia da relao entrehumanos e objetos, no entanto, no o mesmo que tornar os materiais por si elementos dignos deanlise. Isso no significa negar a importncia da anlise das relaes com os materiais, mas sim,colocar a relao com os humanos e no-humanos apenas como um dos fluxos possveis dos materiaise no como o nico capaz anima-los. Embora a aparncia dessa afirmao seja trivial, ela contem aradicalidade de uma proposta que no concebe os materiais pelo que eles so tal como pressupe, ou

    proporciona, a qumica - mas pelo o que eles podem ser tal como sugere a alquimia. Interessar-se poraquilo que os materiais podem ser implica conceber a vida como um processo de fluxos ininterruptosque no deixam nem humanos e nem materiais imunes aps serem atravessados por mltiploselementos desde gua, sol, energias, terra at humanos, animais, ideias, emoes, etc. No mundofenomnico, os materiais so sempre um devir, cujas caractersticas no podem ser concebidas comorestritas quilo que ele , mas devem ser pensadas a partir de seu envolvimento com os fluxos da vida

    vida essa que, em um movimento cclico e sem fim, constituda pelos materiais ao mesmo tempo queos constitui. nesse sentido, animado pelas reflexes de Tim Ingold (2011) que lano mo da ideia dematerialidade nesse texto.

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    integralidade. Com isso no estou interessado em reconstituir a trajetria histrica de

    legitimao no campo mdico das diferentes terapias alternativas/complementares

    oferecidas no SUS, 10 mas simplesmente apresentar algumas das articulaes

    conceituais, legais e burocrticas que tornaram possvel o lanamento da PNPIC em

    2006. Para tanto analiso o contexto de emergncia das Terapias

    Alternativas/Complementares como uma ao de sade para a OMS e,

    posteriormente, reflito sobre como a ideia de integralidade, central para a

    formulao da PNPIC, foi acionada no mbito da sade pblica brasileira.

    Durante o ms de setembro de 1978 a Organizao Mundial de Sade realizou

    na cidade de Alma Ata, atualmente territrio do Cazaquisto, a primeira conferncia

    sobre ateno primria. Embora contenha diretrizes de carter diversos, o relatrio

    final dessa conferncia (Alma-Ata) est significativamente marcado pelo contexto da

    Guerra Fria e pela sistematizao de dados que explicitam a oferta desigual de

    tecnologias em sade, profissionais e instituies hospitalares nos diferentes pases do

    mundo. Foi justamente a partir do reconhecimento da indisponibilidade desses

    recursos para dois teros das naes do globo que a OMS identificou a Medicina

    Tradicional como uma ao em sade. Assim, se, por um lado, esse reconhecimento

    contribuiu para a legitimao de saberes tradicionais sobre sade e doena no mbito

    de um organismo de governana global, por outro lado, tal ao est associada com a

    tentativa da OMS em tornar curandeiros, parteiras e mdicos tradicionais como parte

    integrante de seu prprio projeto de promoo sade como um direito humano

    universal. Ao considerar a medicina tradicional um modo de ateno primria, a

    OMS pde suspender a relevncia da informao sobre a falta de acesso s

    tecnologias em sade, e anunciar que a maior parte da humanidade dispunha da

    oferta de mtodos, tradicionais ou no, socialmente aceitveis para a assistncia

    sade. Foi com o intuito de promover a integrao da Medicina Tradicional eComplementar/Alternativa nos sistemas nacionais de ateno sade que esse

    organismo criou, nesse mesmo ano, o Programa de Medicina Tradicional que, em

    1980, converte-se-ia em um departamento da OMS.

    Aos poucos, as teraputicas compreendidas pelas aes desse departamento

    deixaram de estar restritas s prticas tradicionais e passaram a abarcar tambm

    terapias que ganharam maior visibilidade no contexto da contracultura em pases

    10Para trabalhos"#$%& ' (&)*+*,'-.# /'" 012" 3# 4546 7&%8 9'%%#"6 :;;?@6 ABBCD

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    como Estados Unidos e Inglaterra, tais como a cromoterapia e a radiestesia. Desse

    modo, a partir de meados dos anos de 1990, a definio oficial de medicina

    tradicional elaborada pela OMS passou a incluir uma ressalva relativa s Prticas

    Integrativas e Complementares. No livro de Orientaes gerais para metodologias em

    pesquisa e avaliao de medicina tradicional, lanado em 2000, por exemplo, a

    seguinte definio apresentada:

    A medicina tradicional tem uma longa histria. a soma total do conhecimento,habilidades e prticas baseadas nas teorias, crenas e experincias nativas dediferentes culturas, explicveis ou no, usadas na manuteno da sade, bem como

    para a preveno, diagnstico, melhoria ou tratamento de doenas fsicas e mentais.Os termos medicina complementar/alternativa/no-convencional so utilizadosalternadamente com o medicina tradicional em alguns pases. Medicina

    Complementar e Alternativa (CAM) o termo usado em alguns pases para se referira um amplo conjunto de prticas de sade que no fazem parte da tradio do prprio

    pas e no esto integradas no sistema dominante de sade. (Who, 2000:1, minhatraduo)

    No Brasil a PNPIC est mais dirigida quilo que a OMS chama de Medicina

    Complementar e Alternativa do que s Medicinas Tradicionais. As justificativas para

    o reconhecimento dessas teraputicas parecem encontrar um importante respaldo no

    princpio da integralidade, que est presente no contexto da sade pblica brasileira,

    pelo menos, desde o Movimento pela Reforma Sanitria das dcadas de 1970 e 1980.

    Na trajetria do uso poltico do conceito, segundo Ruben Arajo de Matos (2005), ele

    foi mobilizado para remeter a trs aspectos. Primeiro, para designar um modo

    horizontalizado de elaborao e execuo de polticas de sade no pas. A

    integralidade, nesse caso, diz respeito integrao entre demandas programadas e

    espontneas no mbito do funcionamento do SUS. Um segundo eixo de sentido do

    termo integralidade dirige-se ideia de totalidade, referindo-se, sobretudo, s

    polticas que procuram oferecer respostas a determinados problemas de sade levando

    em conta aspectos sociais e econmicos dos sujeitos que por eles so acometidos. Por

    fim, segundo Matos (2005), a integralidadeconsistiria em um modo de cuidado que

    extrapolaria as necessidades relativas sade do paciente e que tambm estaria atento

    quelas de outras ordens.

    Embora plural, a demanda pela integralidade constituiu-se como um aspecto

    amplamente defendido por diversos movimentos sociais nas Conferncias Nacionais

    de Sade destinadas a conceber a estrutura de funcionamento do SUS. Com isso, a

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    ")

    integralidade foi incorporada na formulao dos princpios que ordenam o SUS

    enquanto um de seus aspectos doutrinrios, ao lado da equidade e da universalidade.

    Na lei que instituiu o SUS, em setembro de 1990, assim como na primeira cartilha

    lanada pelo Ministrio da Sade com a finalidade de apresentar o sistema aos

    brasileiros, a integralidade discriminada do seguinte modo:

    1. Cada pessoa um todo indivisvel e integrante de uma comunidade;2. As aes de promoo, proteo e recuperao da sade formam tambm um todo

    indivisvel e no podem ser compartimentalizadas;3. As unidades prestadoras de servio, com seus diversos graus de complexidade,

    formam tambm um todo indivisvel configurando um sistema capaz de prestarassistncia integral. (Brasil, 1990b).

    O princpio da integralidade, portanto, remete tanto a um sistema

    organizacional que deve operar plenamente, integrando/articulando diferentes

    esferas, como tambm refere-se totalidade da pessoa.

    A relevncia dessa breve explicitao para os fins deste texto reside no fato de

    que esse princpio doutrinrio respaldou amplamente a formulao da Poltica

    Nacional de PrticasIntegrativas e Complementares. Contudo, diferena do sentido

    impresso sobre ele na lei e cartilha citadas acima, a integralidade apareceu, no

    contexto de promoo das PICs, articulada com uma ideia ausente nos documentosat agora apresentados, a saber: o holismo. Alguns trechos do relatrio do I Seminrio

    Internacional de Prticas Integrativas e Complementares, promovido pelo Ministrio

    da Sade, em 2009, ajudam a dimensionar a maneira pela qual o holismo, a partir de

    sua articulao com a integralidade, contribui para inserir temas caractersticos das

    terapias alternativas/complementares na discusso sobre sade no Brasil.

    A medicina complementar possui uma viso holstica, pela qual o indivduo vistoem sua totalidade. A doena, seu diagnstico e tratamento devem ser vistos sob

    aspectos fsicos, emocionais, espirituais, mentais e sociais, simultaneamente (Brasil,2009: 56) (grifos meus).

    J nas PICs e na medicina tradicional, de maneira geral, uma abordagem totalizante(holstica) realizada, de forma a abranger aspectos fsicos, emocionais, mentais eambientais relativos ao paciente, de forma simultnea. Assim, o ato de curar pode servisto [] como uma harmonizao (Brasil, 2009:18).

    Como se pode observar nos trechos citados, a promoo de um tratamento

    totalizante aos pacientes, antes amparada pela ideia de integralidade, desliza, no

    contexto das PICs, para o conceito de holismo. Com isso, a espiritualidadetorna-se

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    "*

    parte da viso holsticaque deve ser dispendida sobre o paciente, e a cura passa a ser

    um ato de harmonizao. Tomando como referncia os documentos que falam sobre a

    PNPIC e aqueles que a fundamentam, podemos perceber certa recorrncia da ideia de

    espiritualidade de dois modos. Primeiro para designar uma dimenso da vida humana

    a qual os profissionais da sade devem esta atentos. Emblemtico deste tipo de

    remisso a descrio do humano como um ser bio-psico-social-espiritual,

    encontrada em diversas comunicaes oficiais do ministrio da sade. As terapias

    alternativas/complementares neste caso, se afirmariam tendo um tipo de acesso

    privilegiado quilo que seja da ordem do espiritual. Um segundo conjunto de

    referncias espiritualidade diz respeito a repercusses de pesquisas que afirmar

    haver correlaes entre um sujeito espiritualizado e a manuteno da sade.

    J a integralidade constitui-se como o prprio argumento garantidor de que a

    Poltica Nacional de Prticas Integrativas e Complementares est alinhada com os

    prprios princpios doutrinrios do SUS. Contudo, como venho tentando demonstrar,

    no contexto desta poltica a integralidade,que como princpio referia-se integrao

    do sistema de sade ou ao sujeito partcipe de umsociedade, torna-se holismo. O que

    estou sugerindo que a aproximao entre o holismo e o princpio doutrinrio da

    integralidade, presente no SUS desde sua formulao, foi um passo importante no

    processo de legitimao dessas terapias na sade pblica do pas.Contudo, ainda que

    a convergncia entre o princpio da integralidade e o do holismo tenha se dado, na

    poltica nacional das PICs, por meio da ideia de totalidade, h uma diferena na

    abrangncia do que seja esse referido totalem cada um desses conceitos. Enquanto na

    perspectiva da integralidadea totalidade refere-se a um sujeito que no somente um

    todo indivisvel, como tambm integrante de uma comunidade, no holismo, o que

    est em jogo uma totalidade individualizante, cuja marca sintetizada pela trade

    corpo-mente-esprito. Isso , se a totalidade da primeira inclui um pertencimento comunidade, a da segunda incide em um sujeito que pode ser descrito como uma

    espcie de mnada. apostando na potncia deste sujeito-mnada, que Cludio

    reconhece no prprio diabtico a causa e a cura de sua doena. Trata-se de uma

    espcie de individualizao radical dos processos de sade e doena que passam a

    poder ser pensados como alheios quilo que no est compreendido no prprio

    sujeito.

    Ao tentar jogar luzes sobre o modo pelo qual o principio doutrinrio daintegralidade converteu-se, no contexto da PNPIC, em um legitimador da promoo

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    #+

    de terapias alternativas/complementares, no estou buscando denunciar desvios do

    verdadeiro fim desse conceito, mas insistindo na no-univocidade do funcionamento

    do SUS mesmo no plano da formulao das polticas de sade. Mais do que implicar a

    oferta de novos procedimentos teraputicos, o que a incluso de prticas

    alternativas/complementares no SUS parece produzir so modos especficos de

    articular corpo, cura e sade. O que procurei fazer ao longo deste texto foi,

    justamente, apresentar a maneira pela qual essas articulaes so tornadas possveis e,

    por conseguinte, tm produzido seus efeitosseja no mbito das polticas de sade no

    Brasil, seja nosprprios corpos dos sujeitos.

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