tomás mancino von der osten dissertação mestrado em arte...
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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES
O DESPERTAR FICCIONAL DA HISTÓRIA:
o cinema como contracampo da historiografia.
Tomás Mancino von der Osten
Dissertação
Mestrado em Arte Multimédia
Especialização em Audiovisuais
Dissertação orientada pela Prof a. Doutora Susana de Sousa Dias
2016
DECLARAÇÂO DE AUTORIA
Eu, Tomás Mancino von der Osten, declaro que a presente dissertação intitulada “O despertar
ficcional da história: o cinema como contracampo da historiografia”, é o resultado da minha
investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão
devidamente mencionadas na bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como
todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as
normas académicas.
O Candidato
_________________
Lisboa, 25 de Outubro de 2016.
ii
RESUMO
Esta dissertação é dividida em três partes que descrevem um itinerário teórico: em um
primeiro momento é proposta uma relação entre cinema e historiografia, para em seguida
abordar as especificidades da encenação do passado no cinema, e por último, a análise de
ficções históricas que revelam distintas formas cinematográficas da história. No primeiro
capítulo são comparadas as práticas do trabalho historiográfico com o trabalho de realização
de um ficção histórica no cinema, medindo a capacidade do cinema em transmitir
conhecimento sobre o passado. No segundo capítulo são investigados os modos de
visibilidade do passado a partir da questão: qual é o real da ficção histórica? O enfoque
dedica-se sobre a problemática de encenar o passado e de entrecruzar o acontecimento
histórico com uma narrativa ficcional. No terceiro capítulo foram analisadas quatro tendências
de formas cinematográficas da história, em filmes de Éric Rohmer, de Clint Eastwood, de
Roberto Rossellini, e de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub.
Palavras-Chave:
Ficção; Historiografia; Mise en scène;
iii
ABSTRACT
This thesis is divided in three parts that describe an theoretical itinerary: at first it is proposed
a relation between film and historiography, then it is addressed the specificities of reenacting
past events in a film, and finally, historical fictions that reveal distinct cinematic forms of
history are analyzed. In the first chapter historiographical practices are compared with the
making of an historical fiction, measuring film’s capacity to transmit knowledge about the
past. Modes of visibility of the past are investigated in the second chapter, departing from the
question: what is the “real” of historical fiction? The focus is the problem of reenacting the
past and portraying an historical event within a fictional narrative. The third chapter presents
four trends of cinematic forms of history, in films of Eric Rohmer, Clint Eastwood, Roberto
Rossellini, and Danièle Huillet and Jean-Marie Straub.
Key Words:
Fiction, Historiography, Mise en scène;
iv
AGRADECIMENTOS Agradeço à Sandra Mancino, Roberto Antonio von der Osten, e Marcela Mancino por serem, muito além de minha família, meus ternos amigos. Agradeço à Francisca Sousa por toda a companhia e por todo o carinho. Agradeço à Leonardo Mouramateus e Mauro Soares pelas conversas e pela vida que partilhamos em Lisboa. Agradeço à Susana de Sousa Dias pelas aulas estimulantes nas quais esta dissertação se originou, por saber diagnosticar os pontos problemáticos do texto e guiar-me na direção de como os solucionar. Agradeço à Cinemateca Portuguesa por ser um espaço exemplar de estímulo ao pensamento e à cinefilia, cujas salas e biblioteca frequentei diariamente durante a redação desta dissertação. Dedico esta dissertação à memória da minha avó Avenir Batista Correia.
v
ÍNDICE GERAL
Resumo/Palavras-chave ..................................................................................................... ii
Abstract/Key-words ........................................................................................................... iii
Agradecimentos .................................................................................................................. iv
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 1
1. DUPLO INFINITO: O JOGO DE ESPELHOS ENTRE O CINEMA E A
HISTORIOGRAFIA. ............................................................................................................... 3
1.1. A ficção histórica. .......................................................................................................... 3
1.2. Perspetiva temporal. ...................................................................................................... 6
1.3. Construção dramatúrgica ............................................................................................. 9
1.4. O cineasta como historiador. ...................................................................................... 13
2. A MISE EN SCÈNE NA FICÇÃO HISTÓRICA ............................................................ 20
2.1. O real da ficção histórica ............................................................................................ 21
2.2. O efeito de época .......................................................................................................... 26
2.3. Entrecruzamento entre história e ficção ................................................................... 30
2.4. A encenação do passado .............................................................................................. 34
3. FORMAS CINEMATOGRÁFICAS DA HISTÓRIA ..................................................... 37
3.1. O espaço figurativo nas ficções históricas de Éric Rohmer ..................................... 37
3.2. O passado presente: filmes de guerra de Clint Eastwood ........................................ 47
3.3. Pedagogia da restituição: as obras didáticas de Roberto Rossellini ....................... 54
3.4. Repartir o tempo, repatriar no tempo: Danièle Huillet e Jean-Marie Straub ....... 64
CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 72
Bibliografia: ............................................................................................................................ 75
Filmes citados: ......................................................................................................................... 79
1
INTRODUÇÃO
A origem desta investigação teórica remonta às objeções enfrentadas durante a escrita
do guião de uma ficção histórica. Em 2015 fui contemplado por um fundo brasileiro para o
desenvolver um guião de uma longa-metragem de ficção intitulada Continente. A narrativa do
filme é localizada nas beiras do rio Tibagi (no Paraná, sul do Brasil), no contexto da retomada
dos garimpos de diamante nos anos 1930, onde milhares de homens de todo o Brasil rumaram
com esperanças de enriquecer. Ao longo da pesquisa histórica e início da escrita do guião
deparei-me com questões que motivaram-me a dar início a esta dissertação. Os três capítulos,
que compõem esta dissertação, constroem o itinerário das reflexões que guiaram-me à
conclusão do guião e à proposta de mise en scène sob a qual o filme será realizado.
No primeiro capítulo são comparadas as práticas do trabalho historiográfico com o
trabalho de realização de um ficção histórica no cinema, de modo a encontrar pontos de
diálogo e de divergência entre as duas práticas, e aventar os limites em que a ficção histórica
pode transmitir conhecimento sobre o passado ao fazer da ficção um contracampo do
conhecimento historiográfico. O enfoque teórico, para tanto, exigiu uma abordagem
multidisciplinar através da consulta de autores da teoria cinematográfica e da filosofia da
história. Após identificar como atributos epistemológicos e discursivos da historiografia
constrangem a construção dramatúrgica de uma ficção histórica, foram postas em questão: 1.
a capacidade de uma ficção em transmitir conhecimento sobre o passado através de
procedimentos narrativos e ficcionais; 2. a subordinação da objetividade do discurso sobre o
passado ao ponto de vista do cineasta, que ao fazer da síntese do passado impõe aos
acontecimentos uma significação subjetiva que exprime uma declaração pessoal sobre a
história.
O segundo capítulo orienta-se pela questão “qual é o real da ficção histórica?” para
investigar, sob a aporia da impossibilidade de restaurar o passado, quais formas
cinematográficas são criadas pelos cineastas para permitir um modo de visibilidade ao
passado, ou seja, como cada cineasta exprime seu ponto de vista sobre a história a partir de
uma proposta de mise en scène particular. Para esse fim foi proposto o conceito de efeito de
época, composto pelo conjunto de efeitos de real organizados em uma mise en scène, de
modo a assegurar o entrecruzamento entre ficção e história como uma relação irredutível da
ficção histórica diante do real.
2
No último capítulo foram analisadas quatro grandes tendências de mise en scène em
ficções históricas: reconstituir o passado a partir do espaço figurativo da época, criando uma
distância entre o tempo do espectador e o tempo passado; apresentar o passado como se fosse
presente, através da construção do espaço a partir das categorias contemporâneas à realização
do filme, criando a ilusão do espectador estar implicado no espaço representado; a terceira
tendência é a síntese das tendências anteriores, ao apresentar os acontecimentos passados
como se eles acontecessem pela primeira vez, preserva-se a unidade do tempo da ação, mas
simultaneamente propõe um distanciamento do espectador, que não é implicado ilusoriamente
no espaço, fazendo do espectador uma testemunha dos acontecimentos históricos; por último,
práticas de mise en scène que utilizam anacronias para confrontar o passado quanto a sua
persistência no presente. Para tanto foram analisados filmes de Éric Rohmer, Clint Eastwood,
Roberto Rossellini, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, relacionando formas
cinematográficas da história com as práticas analisadas no primeiro capítulo.
Para “ficcionalizar o passado” é preciso percorrer trajetos de destinos incertos, ao
animar na tela um mundo desaparecido corre-se o risco de reduzir a ficção apenas à
transmissão minuciosa de informações sobre o passado, ou em fazer de uma época passada
apenas o décor de uma narrativa ficcional. O principal objetivo deste trabalho é analisar
formas cinematográficas da história nas quais, através de escolhas de mise en scène, um
cineasta organiza um modo visibilidade do passado que exprime um ponto de vista sobre a
história e faz surgir no cinema um contracampo ao conhecimento historiográfico.
3
1. DUPLO INFINITO: O JOGO DE ESPELHOS ENTRE O CINEMA E A HISTORIOGRAFIA.
1.1. A ficção histórica.
História, qual é a relação entre um mundo desaparecido, cuja imagem nos é
transmitida através da historiografia, e o mundo atual no qual vivemos? Qual a relação entre a
nossa experiência presente com os modos de vida daqueles habitaram épocas passadas?
Tornar o passado sensível como realidade é uma atribuição que o cinema ocupou, em
distintos aspectos, desde a sua origem. O cinema permitiu um modo de visibilidade do
passado avesso aos predicados epistemológicos da historiografia, e distinto das práticas do
romance e da pintura histórica. Já em 1899 George Mèlies reencenava um acontecimento
recente da história francesa em L’affaire Dreyfus. Entre 1901 e 1906 o francês Lucian
Nonguet, antes de realizar filmes de Max Linder, dedicou-se à diversos curta-metragens que
narravam acontecimentos históricos: desde filmes que reencenavam acontecimentos recentes
(como La Révolution en Russie, de 1906), até filmes animavam na tela épocas distantes (como
L’Épopée napoléonniene, de 1903, e uma série de “quadros animados” sobre a vida de Jesus
Cristo, produzidos pela Pathé e realizados com Ferdinand Zecca em 19031).
Através da ficção histórica são criadas formas cinematográficas que permitem modos
de visibilidade do passado e, através de propostas de mise en scène, restituem ao tempo
histórico o tempo humano que lhe fora subtraído. Mas a capacidade de “reconstituir” o
passado sob formas atuais, sob regimes representativos atuais, a partir de corpos e espaços
atuais, deve ser contraposta a certas objeções. O tempo humano que lhe é restituído não seria
a temporalidade presente e, portanto, distinta da experiência do tempo no passado? A ficção
histórica não seria apenas uma substituição da ausência do passado pela reprodução verosímil
de sua aparência? Afinal, no sentido imposto pela narrativa ficcional não prevalece a
conformidade com as relações humanas do presente, ao invés de resguardar as relações tais
como eram entre os indivíduos da época visada?
A grande questão sobre a ficção histórica concerne o quanto a acreditação de um
mundo desaparecido, cuja visibilidade é autorizada pela reprodução verosímil de sua
aparência e cujo sentido é transmitido por uma narrativa ficcional, é capaz de assegurar um
1 GUIBBERT, Pierre (Org.). Premiers ans du cinéma français. Perpignan: Institut Jean Vigo, 1985. p.22.
4
discurso verdadeiro sobre o passado que possa ser contraposto à homologação de uma
declaração sobre o passado, própria da historiografia. Qual é o limite no qual o cinema pode
surgir, efetivamente, como contracampo da historiografia?
Da perspetiva da historiografia o cinema tornou-se um novo objeto, cuja historicidade
revela as condições da sociedade que o tornam possível. Em 1973 Marc Ferro defende a
hipótese de que o filme, documentário ou ficção, é história, pois aquilo que não aconteceu, ou
seja, “as crenças, as intenções, e o imaginário da humanidade são tão história quanto a
história”2. A relação entre cinema e historiografia não se deve, portanto, à capacidade de uma
ficção histórica em criar uma forma cinematográfica que autorize um modo de visibilidade do
passado, mas à reviravolta epistemológica da historiografia que, como bem analisou Michel
Foucault, passou a estender a “historicidade descoberta no homem aos objetos que ele
fabricara"3. O argumento central desta reviravolta era a constatação de que é impossível
"separar, singularmente no caso do cinema estadunidense, estética, economia e política"4. Mas
que na imagem cinematográfica há sempre um “grão de real”5, que resiste à ficção, já fora
constatado pela cinefilia, pelo menos desde os anos 1950, sob o axioma do filme como
documentário de sua filmagem. Antoine de Baecque argumenta que para os críticos da revista
Cahiers du Cinéma e para a Nouvelle Vague francesa “a identificação do cinema com a
história era tão forte que os permitia falar somente sobre o cinema, pois a história estava
nele”6.
É surpreendente, portanto, que a historiografia tenha demorado quase um século em
efetivamente perceber a capacidade do cinema em revelar a história de sua época. As
primeiras propostas de pensar o cinema como arquivo histórico vieram precisamente de
artistas. Em 1898 um fotógrafo polonês, Boleslav Matuszewki, escrevera uma carta ao Le
Figaro propondo um Museu de Arquivos Cinematográficos destinado aos historiadores
futuros7. Por outro lado, em 1935, no mesmo ano em que Germaine Dulac fizera Le Cinéma
au service de l'histoire (panorama sobre a história da Europa entre 1895 e 19308), o
historiador Louis Gottschalk, da Universidade de Chicago, escrevera uma carta para o 2 FERRO, Marc. Le film, une contre-analyse de la société?. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. Ano 28, n. 1, 1973. pp. 109-124; p. 113 3 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.508 4 BAECQUE, Antoine de. L'histoire-caméra. Paris: Gallimard, 2008. p. 379. 5 Cf. BONITZER, Pascal. “Le grain de réel”. in: Décadrages - peinture et cinéma. Paris: Éditions de l’Étoile, 1995. 6 BAECQUE, op. cit. p.25. 7 Ibid. p.23 8 Ibid.
5
presidente da Metro-Goldwyn-Mayer exigindo que “nenhum filme de natureza histórica deve
ser oferecido ao público até que um historiador respeitável tenha a oportunidade de criticá-lo
e revisá-lo”9.
Considerar um filme somente como um objeto dentro de um recorte temporal definido
pelo historiador, ou seja, tomar um filme apenas quanto ao que ele revela do presente de sua
época, é ignorar que uma obra de arte é um sintoma que se concatena de modo caótico com o
fluxo de obras e de estases das sociedades que a precederam e a sucederão. Baecque censura
os historiadores que não veem no cinema nada mais que “um dispositivo epistemológico
inédito, jogo de espelhos entre o cinema e um estado da sociedade que o produziu”10. Em
L’histoire-caméra Baecque propõe o conceito de “forma cinematográfica da história”, que
abrange momentos nos quais o material fílmico ou uma mise en scène específica conferem um
modo de visibilidade a um acontecimento histórico, seja uma encenação do passado ou algo
que aconteça diante da câmara11. Assim Baecque esboça uma teoria na qual o cinema não é
apenas um novo objeto da historiografia, e defende a capacidade do cinema em transmitir
conhecimento sobre o passado ao lhe permitir um modo de visibilidade. O que há de interesse
naquilo que Baecque propõe é o esforço em conjugar em uma mesma teoria (e sob o conceito
de mise en scène) o filme como acontecimento, que faz do filme um testemunho de sua época
e um objeto da historiografia, e o filme como ficção histórica, no limite em que o cinema se
aproxima da historiografia ao tentar produzir uma imagem aproximada do passado.
Através do conceito de forma cinematográfica da histórica Baecque consegue levar em
consideração a dupla produção historiográfica do cinema, tanto intempestiva quanto
discursiva, mas hesita em formular os limites e a metodologia do conceito proposto. Os
critérios do que seria uma forma cinematográfica da história derivam de seu julgamento
pessoal: ora diz respeito ao profílmico, ora ao universo diegético, em certos momentos trata-
se de algo intempestivo que acontece diante da câmara, em outros são as escolhas formais dos
cineastas. O conceito é expandido para, relativamente, qualquer coisa que o autor julgue
exemplar e, assim, acaba por fazer da teoria um compêndio pessoal de recortes de
“surgimentos da história” nos filmes que analisa. O autor encontra simplificações confusas ao
relacionar procedimentos cinematográficos com modos de interpretação histórica: sobre Non,
ou a vã glória de mandar (1990), de Manoel de Oliveira, Baecque aponta o movimento de um
9 ROSENSTONE, Robert A. Visions of the past: the challenge of film to our idea of history. Cambridge: Harvard University Press, 1995. p.45 10 BAECQUE, 2008. p.27. 11 Ibid. p.20.
6
travelling como “signo cinematográfico de uma história linear”, enquanto a câmara que
circunda uma árvore seria o reencontro do “mito que anima ciclicamente cada época”12.
Do texto de Baecque é preciso extrair o que há de relevante para esta dissertação, ou
seja, que a forma cinematográfica da história é “uma mise en scène escolhida por um cineasta
para dar forma à sua visão da história”13. Baecque exalta a capacidade “quase heurística do
cinema fazer ‘reconstituição’ do passado como presente: ao restituir sua espessura reflexiva à
história, oferecendo à história uma espécie de segunda chance”14. Neste contexto a ficção
histórica surge como contracampo do conhecimento historiográfico, o que não significa que o
cinema queira apoderar-se do discurso que torna o passado concebível, mas sim, propor
modelos de interpretação da história independentes dos modelos da historiografia.
A ficção histórica é a tentativa de um cineasta conciliar o real ausente do passado e o
discurso produzido sobre ele no presente através de formas cinematográficas da história, que
são propostas de mise en scène que confrontam a objeção em representar as coisas passadas e
conferem um modo de visibilidade aos acontecimentos históricos. Neste primeiro capítulo
será delimitado um primeiro conjunto de escolhas do cineasta para a realização de um filme,
escolhas que são anteriores à prática da mise en scène, será investigado em que grau estas
escolhas são homólogas no trabalho do cineasta (na preparação da realização de uma ficção
histórica) e no trabalho do historiador (na preparação da produção do texto historiográfico), e
como elas acabam por condicionar a mise en scène em uma ficção histórica.
1.2. Perspetiva temporal.
Há sempre um intervalo temporal entre a época do cineasta e a época do universo
diegético de uma ficção histórica. A perspetiva temporal do cineasta é o corte definitivo que
instaura o momento no tempo ao qual ele pertence como a “sua época”, o que assegura o
reconhecimento imediato de alteridade entre o presente do profílmico e o passado visado. Este
corte limitado pela perspetiva temporal faz com que certo aspeto da temporalidade torne-se
algo como um espaço, como diz Jean-Luc Nancy, “o tempo apresenta-se para nós como esta
espacialidade ou espaçamento de uma certa suspensão – que não é nada mais do que a epoch,
12 BAECQUE, 2008. p.12 13 Ibid. p.13 14 Ibid. p. 440.
7
que, é claro, significa ‘suspensão’ em Grego”15, assim o tempo é visto como um estado de
suspensão no qual se encontra aquele que o experiencia.
Reconhecer a sua época como ponto perspectivo de origem a partir do qual, em
retrocesso, o cineasta organiza formas cinematográficas da história, é assumir uma suspensão
e espacialização do tempo que condiciona a ficção histórica, pois, como argumenta Reinhart
Koselleck, toda perspetiva tem um conteúdo temporal, uma vez que “a diferença temporal
entre a minha posição hoje e as histórias passadas investigadas deve ser levada em
consideração”16. O que faz com que uma mesma personagem historicamente célebre como
Cleópatra, seja tão distinta em um filme de 1934 (interpretada por Claudette Colbert, no filme
‘Cleopatra’, dirigido Cecil B. DeMille), da mesma personagem de um filme de 1963
(interpretada Elizabeth Taylor no 'Cleopatra' de Joseph L. Mankiewicz)? É a perspetiva
temporal que as diferencia, mas também a perspetiva espacial, ideológica, estética, etc.,
correspondentes à época em que cada filme foi realizado. Ambos os filmes apresentam
paradigmas sobre a representação da sexualidade feminina, porque mostram corpos
confinados em mise en scènes delimitadas pelas restrições de suas épocas. Uma ficção
histórica realizada nos anos 1930 ou nos anos 1960, portanto, revela as formas de
representação do passado permitidas pelo imaginário de sua época, pois um filme, como
acontecimento, revela as condições estruturais que o tornaram possível.
Similarmente, Siegfried Kracauer diz que o texto historiográfico depende da posição
do autor no tempo e no espaço, o que quer dizer que o pensamento do historiador “é moldado
por influências contemporâneas e que, por sua vez, suas preocupações com questões
contemporâneas são levados em consideração no motivo e no modo de sua devoção ao
passado”17. Mas a comparação entre estes dois filmes traz a questão de que a ficção histórica é
um objeto bastante complexo, pois mostra uma época passada (no universo diegético) ao
mesmo tempo em que testemunha a época em que foi feito (a época do profílmico). É a
própria conceção do passado que não é a mesma em 1934 e em 1963, que o passado seja
encenável e ficcionável, ou ainda, que através de um modo de visibilidade proposta por uma
mise en scène o passado seja perceptível como se fosse presente, constitui um atributo
indispensável para compreender a conceção de uma época sobre o seu passado.
15 NANCY, Jean Luc. The birth to presence. Standford: Stanford University Press, 1993. p.150. 16 KOSELLECK, Reinhart. The Practice of Conceptual History. Stanford: Stanford University Press, 2002. p. 114. 17KRACAUER, Siegfried. History – The last thing before the last. Nova Iorque: Oxford University Press, 1969. p. 63
8
Ao realizar uma ficção história corre-se o risco de fazer do passado apenas uma
curiosidade, a perspetiva temporal ameaça fazer da mise en scène apenas um modo de tornar
visível aquilo de inusitado que pertence à época visada, isentando o cineasta de produzir um
pensamento substancial sobre a história. Como alertado por Ricoeur, o historiador, ou neste
caso, o cineasta, “se transforma no etnólogo dos tempos passados”18, e a história se transforma
em “uma espécie de exotismo temporal”19. Ricoeur observa que “Dilthey foi o primeiro que
tentou fundamentar todas as ciências do espírito –inclusive a história– na capacidade que o
espírito tem de se transportar para uma vida psíquica alheia, com base em signos que
‘exprimem’ (...) a experiência íntima de outrem”, o que constitui um paradoxo pois “ao abolir
a diferença entre o outrem de hoje e o outrem de outrora, ele oblitera a problemática da
distância temporal e se esquiva da dificuldade específica que está ligada à sobrevivência do
passado no presente”20.
No cinema a evidência da perspetiva temporal é característica dentro de cada filme,
seja pelos aspetos materiais, estéticos, e tecnológicos, ou pela revelação (intencional ou não)
das estruturas que o tornaram possível. A partir deste reconhecimento da perspetiva temporal
o cineasta pode realizar escolhas de mise en scène que exprimem sua visão da história, como a
tentativa de atenuar os traços perspetivos ao buscar uma forma cinematográfica análoga aos
modos de representação da época representada, como em The Artist (2001), de Michel
Hazanavicius. Em muitos casos este procedimento não é uma escolha ingênua mas sim uma
forma cinematográfica de confrontar acontecimentos históricos cujos efeitos ecoam no
presente, é o caso de A short film about the indio national (2005), de Raya Martin.
Como se não fosse possível dar sentido ao passado a partir das formas
cinematográficas contemporâneas, o filme de Raya Martin é composto por uma série de
“pequenos filmes”, que simulam newsreels ou filmes dos primórdios do cinema. Estes
pequenos filmes ora assemelham-se aos filmes de Lumière, a cena é constituída por
personagens em primeiro plano que sofrem uma ação de personagens que surgem em
profundidade do fundo de plano (por exemplo, o momento em que as mães reprimem os
filhos que observam o eclipse, elas surgem do fundo do plano e eles saem do plano também
pelo fundo, não há fora de quadro). Ora assemelham-se aos filmes de Mèlies, pelo uso
inventivo de procedimentos cinematográficos que deformam a realidade (como a animação
primitiva, na mesma cena do eclipse). Estes pequenos filmes são intercalados por cartelas que
18RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa - Tomo III. Campinas, SP: Papirus, 1997. p.250 19Ibid. p.249 20Ibid. p.250
9
sugerem uma abordagem documental: “Crianças nativas testemunham um eclipse”, “Belas
nativas discutindo”, “Funeral dos nativos”, “Mães reprimem os filhos”. Mas ao longo do
filme o dispositivo é desconstruído com o surgimento de procedimentos que seriam
anacrônicos, como o uso de campo/contracampo na espantosa cena em que duas devotas
acreditam que, por milagre, uma estátua tornou-se real. Não se trata, portanto, de um espaço
tal como ele seria figurado pelo cinema do final do século XX, a forma do filme destina-se a
perturbar a letargia do passado, mas Martin não perde de vista o presente para o qual os
acontecimentos representados se dirigem, através da simulação de formas passadas ele cria
uma forma cinematográfica da história que o permite falar sobre o presente.
Outros cineastas usam anacronismos para acentuar a perspetiva temporal ao invés de a
dissimular, em La Commune (Paris, 1871) (2000) Peter Watkins põe em cena os
acontecimentos passados como se acontecessem pela primeira vez diante da câmara, utiliza
atores não profissionais e evidencia a câmara como testemunha dos acontecimentos. Dois
canais televisivos ideologicamente opostos, a televisão comunal e a de Versalhes, reportam os
eventos na ruas de Paris após a derrota de Napoleão III na Guerra Franco-Prussiana, assim
Watkins reconstitui os eventos para interrogá-los em seu interior, faz coexistirem como dupla
evidência o acontecimento passado e o presente que o interroga.
Já em filmes como Flags of our fathers (2006) e Letters from Iwo Jima (2006), de
Clint Eastwood, a perspetiva temporal não apenas é evidenciada por uma investigação sobre o
passado, iniciada no tempo contemporâneo ao filme, como é o pretexto que autoriza a
encenação dos acontecimentos passados. Como podemos observar, cada conceção sobre a
ficção histórica exprime uma distinta visão sobre a história e a possibilidade da sua
transmissão através de uma forma cinematográfica.
1.3. Construção dramatúrgica
A partir do ponto perspetivo temporal, no qual o cineasta se encontra, e do
conhecimento historiográfico acumulado sobre certa época ou certo acontecimento, o cineasta
cria uma forma cinematográfica correspondente ao seu ponto de vista sobre a história. Na
construção dramatúrgica de uma ficção histórica é preciso gerir uma seleção que impõe ao
rumo dos acontecimentos uma subordinação subjetiva, uma vez que o cineasta realiza uma
triagem entre o conhecimento historiográfico (época, local, assunto, acontecimento, costumes,
personagens, etc.) e o coeficiente de permeabilidade ficcional, ou seja, o quanto estas
10
informações serão afetadas por uma narrativa. A seleção interfere, necessariamente, com
qualquer intensão de objetividade histórica, uma vez que condiciona a história ao julgamento
do cineasta sobre os acontecimentos narrados. A seleção e, posteriormente, a ordenação dos
acontecimentos, exprimem o ponto de vista do cineasta em relação aos limites da
historiografia e do cinema quanto às suas capacidades narrativas: podem oscilar desde uma
pretensão ao rigor historiográfico, até a radicalidade de uma completa ficcionalização de
acontecimentos, podem apresentar uma sucessão linear ou não dos acontecimentos, respeitar a
série cronológica ou proceder por fragmentações, etc.
Um obstáculo para a realização de uma ficção histórica está em não apenas apresentar
uma série de acontecimentos, mas em encontrar, através da significação conferida pela
narrativa, uma síntese que aponte para a totalidade. Em O romance histórico, Gyorgy Lukács
alerta sobre a tentação, na literatura, “de reproduzir inteiramente a totalidade das coisas”, pois
“há sempre um risco muito próximo de acreditar que a fidelidade histórica só pode ser
atingida por meio da totalidade”21. Na pintura o problema da seleção foi posto através de
“duas exigências contraditórias: representar todo o acontecimento, a fim de que fosse bem
compreendido, ou dele representar apenas um instante, a fim de ficar fiel ao verosímil
percetivo”22. A resposta para este problema surgiu no século XVIII ao “representar todo um
acontecimento figurando apenas um de seus instantes, contanto que se escolha o instante que
exprime a essência do acontecimento: é o que Gotthold-Ephraim Lessing, em seu tratado
Laocoon (1766), chama de o instante pregnante"23.
No cinema é possível encontrar uma forma similar ao instante pregnante, o episódio
pregnante: quando o cineasta opta por narrar um único episódio de uma série de
acontecimentos históricos, de modo a nele encontrar a essência de uma história, uma síntese
de uma totalidade que apenas pode ser sugerida. Nas ficções histórias sobre Joana D’Arc
realizadas por Cecil B. DeMille (em 1916), Victor Fleming (em 1948), e Roberto Rossellini
(em 1954), são mostrados episódios selecionados que compõem distintos mosaicos sobre a
totalidade da vida da mesma personagem. Enquanto que nas versões de Carl Th. Dreyer (em
1928) e de Robert Bresson (1963), ao contrário, apenas o processo de julgamento de Joana
D’Arc compõe a narrativa, buscando a essência de Joana D’Arc nas suas palavras e decisões
finais. Dreyer e Bresson ordenam a história em uma narrativa linear e cronológica, enquanto
que nos outros filmes a narrativa tem início em um ponto posterior (o sonho de um soldado da
21 LUKÁCS, Gyorgy. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011. p.59 22 AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 2012. p.241 23 Ibid.
11
I Guerra Mundial, no filme de DeMille; a canonização, no filme de Fleming; o calvário, no
filme de Rossellini), que retrocede para mostrar os episódios da vida de Joana d’Arc,
procedendo por saltos de um episódio ao outro. Liberto da metodologia historiográfica o
cineasta pode ordenar a narrativa sem resguardar a ordem empírica dos acontecimentos, de
modo a lhes conferir uma nova significação.
Em Fort Apache (1948), de John Ford, filme inspirado na derrota de George
Armstrong Custer na Batalha de Little Bighorn, vemos como a construção dramatúrgica
exprime o ponto de vista do cineasta sobre a capacidade de um filme em narrar uma
acontecimento histórico. Sergio Toffetti observa que John Ford preocupa-se mais em “contar
as fases preparatórias de uma ação que seu momento culminante”24, de modo que a batalha em
si ocupa pouquíssimos minutos dos 125 minutos de duração do filme. Ao final do filme John
Ford realiza algo prodigioso, o que para Toffetti constitui a sua consciência histórica: o
Capitão York (interpretado por John Wayne) narra a batalha para um grupo de repórteres, e “a
narração final da derrota dura muito mais que a própria batalha”25. Em Fort Apache os
acontecimentos históricos existem em função de uma narrativa ficcional, e são apresentados
como sequencia de episódios pregnantes que se relacionam com uma totalidade, sem buscar a
espelhar.
Em um texto, historiográfico ou literário é preciso mediar o tempo através de recursos
linguísticos que implicam modos temporais, o tempo é narrado. No cinema o tempo é
revelado ao longo de uma duração, a relação entre o espectador e o tempo é imediata, sem a
mediação de recursos linguísticos. A apreensão deste tempo no cinema é determinada por
outras variantes: a ordenação das ações em uma série; a duração interna dos planos; a seleção
da duração na montagem de um plano ao seguinte; os recursos de analepse, prolepse, e elipse;
a aceleração e a desaceleração da imagem; a imagem imobilizada, etc. A duração, portanto,
não é definida somente em relação ao tempo, mas em relação às mudanças em uma totalidade.
Disso pode-se concluir que um acontecimento pode ser apreendido não apenas pela sua
duração em si, mas pela duração imposta pela ordenação de unidades de duração (um
acontecimento, uma sequência, um plano) em relação a uma duração maior que constitui o
universo diegético, composto pela série de durações.
Mas o que há na seleção, ordem e duração dos acontecimentos, implicados pela
construção dramatúrgica, que diz respeito à realização de uma ficção histórica? Afinal,
24 TOFFETTI, Sergio. On est déjà passés par ici. in DÉNIEL, Jacques; RAUGER, Jean-François; TATUM, Charles; John Ford - Penser et rêver l'histoire. Liège: Éditions Yellow Now, 2014. p.24 25 Ibid.
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qualquer filme, seja uma ficção histórica ou não, precisa selecionar, ordenar e definir as
durações dos acontecimentos que apresenta, seja no guião, na filmagem, ou na montagem. Na
ficção histórica, no entanto, estas questões são ainda mais complexas, pois a ordem e duração
de um acontecimento em uma ficção histórica têm como referente um acontecimento que de
fato existiu, e teve sua própria ordem e duração.
Uma elipse entre dois momentos de uma personagem, portanto, não tem o mesmo
valor quando suprime um trajeto percorrido por uma personagem em um filme de ficção
científica, e quando suprime um trajeto percorrido por uma personagem em uma ficção
histórica. Supondo que este trajeto suprimido pela elipse foi determinante para o
desenvolvimento de um acontecimento histórico, a elipse deixa de ser apenas uma escolha
formal. Omitir um acontecimento historicamente conhecido ou ficcionalizar um
acontecimento cujos desdobramentos são desconhecidos exprime um ponto de vista do
cineasta sobre o assunto histórico do filme. Ocultar fatos sobre uma personagem ou um local,
adicionar uma cena entre dois debates políticos, mostrar dois pontos de vista sobre uma
mesma ação, todas estas escolhas do cineasta têm valores diferentes em uma ficção histórica.
A subjetividade, expressa na construção dramatúrgica de uma ficção histórica,
condiciona as relações humanas do passado sob a capacidade do espectador contemporâneo
em aderir, perceptivelmente e afetivamente, ao universo diegético apresentado. Se por um
lado, ao tornar o passado sensível como realidade, busca-se uma analogia entre a atual
experiência cotidiana e a experiência daqueles que viveram e morreram em épocas passadas, a
acreditação do passado só é permitida a partir de parâmetros da contemporaneidade, pois
requer modelos interpretativos admitidos pelo espectador contemporâneo. Assim, se a ficção
histórica tenta restituir o tempo humano ao tempo histórico, jamais consegue o fazer a partir
da experiência temporal particular à época do universo diegético. O espaço, similarmente, só
é figurado a partir de um conceito de espaço que possa ser admitido pelo espectador
contemporâneo. Que um cineasta possa criar uma forma cinematográfica para figurar o
espaço tal como ele seria figurado na época do universo diegético, deve-se ao regime
representativo de seu tempo, que permite que o espaço seja figurado sob predicados formais e
conceituais de uma época passada.
Na construção dramatúrgica a ficção histórica encontra uma limitação em manter um
discurso verdadeiro sobre o passado, pois subordina o desenvolvimento dos acontecimentos
históricos a uma série de escolhas do cineasta, que compõem um primeiro conjunto que
delimita o ponto de vista do cineasta em relação à história. A partir do reconhecimento da
13
alteridade entre a época de realização do filme e a época do universo diegético o cineasta
implementa: uma seleção dos acontecimentos e a delimitação do coeficiente imaginário em
uma ficção histórica; uma ordenação dos acontecimentos, históricos e/ou imaginários, em
uma série de durações; a delimitação das durações, seja a duração interna de um plano
expressa pelo movimento, seja a duração de um acontecimento histórico dentro do conjunto
de durações que compõe a totalidade do filme.
1.4. O cineasta como historiador.
A capacidade da ficção histórica em transmitir conhecimento sobre o passado, portanto,
é constrangida pela subordinação à narrativa ficcional e ao ponto de vista do cineasta. "Filmes
são imprecisos. Eles distorcem o passado. Eles ficcionalizam, trivializam, e romanticizam
pessoas, eventos e movimentos. Eles falsificam a história"26, estes são os argumentos que,
segundo Rosenstone, justificam a desconfiança de parte dos historiadores em relação à ficção
histórica. Os argumentos são pertinentes, mas apenas se considerarmos a história como um
sistema fechado cujo referente, a ser explicado e homologado como verdadeiro, seria a
realidade daquilo que se passou, demarcando um limite: o passado como outro. Nietzsche diz
que a história é o oposto da arte, e “somente quando a história suporta ser transformada em
obra de arte e, portanto, tornar-se pura forma artística, ela pode, talvez, conservar instintos ou
mesmo despertá-los"27. Na historiografia, tal forma de conservar os instintos da história, ou
fazer irromper a natureza de sua origem que resiste no presente, "estaria em total contradição
com o traço analítico e inartístico de nosso tempo, e até mesmo será sentida por ele como
falsificação"28.
Para entendermos este sentido de falsificação, comecemos por uma afirmação que,
embora axiomática, é inseparável do texto historiográfico e da ficção histórica, "é impossível
restaurar a totalidade do passado"29. A partir de então consideremos que as imagens que
podemos produzir do passado, sejam elas produzidas pelo texto historiográfico ou pela ficção
histórica, não são nada além de imagens falsas. Koselleck chega a afirmar que "se não é
possível restaurar o passado como tal, sou forçado a reconhecer o caráter fictício das
26 ROSENSTONE, 1995. p. 46 27 NIETZSCHE, Friedrich. “Considerações extemporâneas” in Obras incompletas. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 65 28 Ibid. 29KOSELLECK, 2002. p. 15
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atualidades passadas para ser capaz de resguardar teoricamente minhas declarações
históricas"30. Mas na historiografia esta falsificação é o resultado de uma produção debruçada
sobre elementos presentes no mundo, seus "discursos se articulam sobre um real perdido
(passado)" e "reintroduzem como relíquia, no interior de um texto fechado, a realidade que se
exilou da linguagem"31.
Não se trata de produzir uma imagem falsa, mas em reintroduzir no presente o real
ausente do passado sob uma forma cinematográfica, que só pode conferir um modo de
visibilidade fragmentado de uma totalidade desaparecida. A falsificação da ficção histórica
está em oferecer o real do passado não como uma relíquia ausente, mas em oferecer o passado
como se fosse uma realidade, e ainda, como se fosse presente. Isto não pode ser feito sem
enfrentar inúmeras objeções, e é precisamente o que constitui a forma cinematográfica da
história: um modo de visibilidade conferido ao passado através da mise en scène e de
procedimentos ficcionais que, apesar de todas as evidentes interdições, faz uma síntese de um
mundo desaparecido que exprime a totalidade a partir das partes, compostas por séries de
durações. Pela impossibilidade daquilo que ela oferece, é evidente que qualquer visão
"analítica e inartística" sobre a ficção histórica, a toma por falsificação. Mas, como argumenta
Rancière, "a separação da ideia de ficção da ideia de mentira define a especificidade do
regime representativo das artes", pois "fingir não é propor engodos, porém elaborar estruturas
inteligíveis"32. A historiografia reduz o mundo passado às práticas e às relações humanas, a
ficção histórica reintroduz as práticas e as relações humanas do passado sob a forma de um
mundo.
Um cineasta não é efetivamente um historiador, suas intencionalidades não são as
mesmas, o modelo da ficção histórica não é o texto historiográfico, mas o romance histórico e
a pintura histórica. Sacha Guitry diz ser um historiador apenas à maneira de um pintor: "Sou
um historiador como o foi Louis David quando compôs seu magnífico quadro intitulado Le
sacre de Napoléon, onde vemos, entronizada ao centro, Mme. Laetitia – ainda que
notoriamente a mãe do Imperador estivesse em Roma naquele dia"33. Sobre a realização de
um jidai geki (literalmente: drama de época), Kenji Mizoguchi diz que "não seria muito útil
perder tanto tempo num estudo meticuloso da história: quando nos preocupamos demasiado
com os factores históricos acabamos por descurar a intriga, e o resultado é que o filme acaba
30Ibid. 31CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p.51 32 RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009. p.53 33 GUITRY, Sacha apud BAECQUE, 2008. p.121
15
por ser uma estupidez"34, atendo-se exclusivamente à intencionalidade ficcional de seu
trabalho. Não se trata em rejeitar a história, mas em aceitar a impossibilidade de filmá-la e, ao
mesmo tempo, afirmar a dimensão presente do cinema e sua intencionalidade ficcional. O
libanês Atlas Group, um colectivo ficcional criado por Walid Raad, leva a falsificação da arte
a um gesto mais radical ao mostrar documentos das guerras civis libanesas que são, em sua
maioria, vídeos e fotografias criadas pelo artista35. Para Mark Godfrey "o Atlas Group está
menos interessado em revelar a falácia do material que apresenta do que sugerir que somente
através da ficção pode-se criar uma imagem adequada das guerras libanesas"36, aqui a
incapacidade da historiografia em dar conta do passado é transmitida como dívida do artista
para com os mortos, dever de literalmente produzir a história através da ficção. A história e
ficção não apenas se cruzam, a ficção substitui a história como uma imagem mais justa do
passado.
“A imagem que o historiador, semelhante ao espelho, deve refletir não deve ser
deturpada, empalidecida ou deformada. Esta metáfora manifesta-se desde Luciano até pelo
menos o século XVIII”37, a ficção histórica conjuga a imagem do espelho, o como se fosse
realidade da imagem cinematográfica, com uma discurso fortemente determinado pelo ponto
de vista de quem a produz, a imagem imparcial e sem interferências é uma imagem distante
do resultado do trabalho de um cineasta. O ponto de vista do cineasta é dado como expressão
de uma subjetividade em relação à história, em oposição à objetividade historiográfica.
Mas toda historiografia está ligada a um ponto de vista, como argumenta Claude Lévi-
Strauss, se observarmos, sobre o mesmo acontecimento, "dois relatos de historiadores, de
diferentes tradições intelectuais e com alinhamentos políticos diversos (...) não ficamos de
facto nada espantados ao constatar que eles não nos contam exatamente a mesma coisa"38,
ainda que tenham consultados as mesmas fontes documentais. A solução da historiografia,
para afastar-se de seu modelo tradicional, foi romper com a subjetividade da narração dos
acontecimentos, nas palavras de François Furet, em 1968:
“O historiador dos dias de hoje (...) deixou de contar aquilo que se passou, ou seja, deixou de escolher, naquilo que se passou, o que lhe
34 MIZOGUCHI, Kenji. Mesa redonda com Kenji Mizoguchi in OLIVEIRA, Luis Miguel (Org.) Kenji Mizoguchi. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2000. p.132 35GODFREY, Mark. The Artist as Historian in October, Cambridge, n.120, 140-172, Abril de 2007. p. 145 36Ibid. 37 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto / Ed. Puc Rio, 2006. p.164 38LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1988. p.62
16
parecia apropriado à sua narrativa (...) Analisando mais as estruturas que os acontecimentos, ele se interessa pelas permanências e mutações invisíveis, à longa duração”39.
A solução veio com a divisão implementada por Fernand Braudel, importante
historiador das Escola dos Annales, entre evento e estrutura, que segundo Koselleck surge
como resposta à “falsa simplificação de tomar o tempo histórico como linear ou circular”40.
Jacques Rancière considera que este paradigma científico da historiografia surge para refutar
a “cientificidade expressa em termos de leis e de causas” subjacente ao modelo narrativo,
opondo “duas mudanças de perspetivas, nos dois eixos da diacronia e da sincronia”, de modo
que no primeiro eixo “o tempo longo dos ciclos e das estruturas impor-se-ia ao tempo curto
dos acontecimentos”, e no segundo “confrontaria as histórias dos príncipes, das batalhas e dos
tratados com a espessura do social, o entrelaçamento dos modos de fazer, de ser e de
pensar”41.
O eclipse da narrativa ocorre, portanto, diante do impedimento do historiador em
manter uma objetividade na síntese do passado, ou seja, uma visão pura através da extinção
da sua subjetividade, e que proponha um método crítico à conceção do tempo histórico como
sendo linear ou circular, implícito no modelo narrativo. Koselleck esclarece que a
historiografia, então, passa a operar sob a seguinte fórmula: “‘eventos’ só podem ser narrados
e ‘estruturas’ só podem ser descritas”42. Trata-se de um deslocamento da homologação da
verdade, da narração dos acontecimentos para a descrição das estruturas que os tornaram
possíveis. Koselleck argumenta, também, que “um processo de conquista de direitos
trabalhistas tanto pode ser uma história dramática, no sentido de um ‘evento’, como também
um indicador de circunstâncias sociais, jurídicas ou econômicas de longo prazo”43, a tese de
Koselleck é que “na prática, o limite entre a narração e a descrição não pode ser mantido”44.
Chartier declara ser insuficiente a supressão do modelo narrativo pelo modelo
descritivo da historiografia pois, por mais estrutural ou conceitual que ela possa ser, será
sempre “dependente das fórmulas que governam a produção das narrativas, sejam da história
39 FURET, François. apud FERRO Marc. Le film, une contre-analyse de la société?. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. Ano 28, n. 1, 1973. p. 109-124; p. 112 40 KOSELLECK, Reinhart. 2002. p. 123 41 RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (Org.). História, Verdade e Tempo. Chapecó/SC: Argos, 2011. p.30 42 KOSELLECK, 2006. p.133 43 Ibid. p.138 44 Ibid. p.133
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ou da ficção”45. Chartier demonstra como, para certos historiadores, notadamente a partir da
obra de Hayden White, “o pertencimento da história à classe das narrativas conduz a um
passo suplementar que nega toda verdade própria ao discurso historiográfico”, e que “o
historiador, como o romancista, pode fazer livre escolha de uma modo de dispor a intriga, de
uma estratégia de explicação, de uma matriz histórica”46.
Paul Veyne, citado por Ricoeur, irá propor algo provocador, ele irá “conjugar um
rebaixamento científico da histórica com uma apologia da noção de intriga”47. Veyne defende
que se tomarmos intrinsecamente o acontecimento como “qualquer ocorrência individual e
não repetível -, nada o qualifica como histórico ou físico”, qualquer acontecimento
pertenceria tanto à historiografia quanto à ciência física, apenas “o fato de figurar numa
intriga é o que qualifica um acontecimento como histórico”48. “Os fatos só existem em
intrigas e através delas, onde eles assumem a importância relativa que lhes impõe a história
humana do drama”49, ou seja, que a fissão de núcleos atômicos de urânio tenha criado uma
reação em cadeia no dia 6 de agosto de 1945, constitui um acontecimento físico único, que
esta reação tenha sido usada em um bombardeamento nuclear contra civis japoneses, constitui
um acontecimento único cuja significação é encontrada na narrativa historiográfica, que fez
síntese dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. São duas explicações de um mesmo
acontecimento, a primeira “subsume fatos sob leis” a segunda “os integra nas intrigas”50, deste
modo a história “reinscreve o tempo da narrativa no tempo do universo” e esta reinscrição
“continua sendo a especificidade do modo referencial da historiografia"51.
A aporia é, segundo Jean-Luc Nancy, estarmos “suspensos entre ambos: ou acontece
algo que não podemos apreender em nossa representação, ou nada acontece salvo a produção
de narrativas histórico-ficcionais”52. Jacques Rancière esclarece ao separar os problemas: “o
primeiro problema concerne à relação entre história e historicidade, isto é, a relação do agente
histórico com o ser falante”, ou seja, entre o Geschichte, ou o referente real da história, e o
discurso historiográfico produzido sobre ele; o segundo problema “concerne à ideia de ficção
45 CHARTIER, Roger. La vérité entre fiction et histoire. in BAECQUE, Antoine de; DELAGE, Christian (dir.). De l’histoire au cinéma. Bruxelas: Éditions Complexe, 1998.p. 35 46 Ibid. p. 38 47 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa - Tomo I. Campinas, SP: Papirus, 1994. p.242 48 Ibid. p.243 49 VEYNE, Paul. apud RICOEUR, 1994. p.243 50 RICOEUR, 1994 p.243 51 Idem, 1997. p.317 52 NANCY, 1993. p.147
18
e à relação entre racionalidade ficcional e os modos de explicação da realidade histórica e
social, entre a razão das ficções e a razão dos fatos”53.
Se “certas estruturas só podem ser apreendidas nos eventos nos quais se articulam e
por meio dos quais se deixam transparecer”54, pode-se argumentar que as ficções históricas
que narram acontecimentos e personagens completamente imaginários conservam da história
apenas as estruturas que condicionam determinada época. Rosenstone condena como “falsa
historicidade” quando, em uma ficção histórica, há uma abordagem ficcional que confunda
verosimilhança e história, de modo que a história se torne “nada mais que uma ‘aparência de
época’55, que as coisas são história, ao invés de tornarem-se história pelo que significaram
para as pessoas de uma tempo e espaço em particular”56. Proponho que, ao contrário do que
argumenta Rosenstone, os filmes que da história conservam apenas a “aparência de época”, ao
apresentar personagens e eventos imaginários podem ser os mais estruturais entre as ficções
históricas, pois o que da história conservam são apenas as estruturas sociais, econômicas,
políticas, institucionais, morais, religiosas, etc., que condicionam a experiência de mundo das
personagens. É um reducionismo dizer que a história, para estes filmes, não seria nada mais
que uma “aparência de época” ou “period look”. Estes filmes, ao invés de proporem à história
apenas uma imagem verosímil de uma época passada, propõem um dispositivo que oculta as
estruturas de uma época sob uma narrativa ficcional. Arlette Farge aponta, precisamente, que
a historiografia “experiencia muitas dificuldades em articular um personagem, um
acontecimento, um arquivo, com o mundo, isto é, o singular e o coletivo”, e exalta que isto é,
pelo contrário, o que o cinema “parece poder fazer com mais facilidade”57.
Sob esta perspetiva, portanto, em uma ficção histórica a narração dos acontecimentos é
inseparável do mundo que os cerca e suas estruturas, mas não é possível descrever estas
estruturas isolando-as da narrativa. Os acontecimentos podem ser narrados em uma ficção
histórica pois “são provocados ou sofridos por determinados sujeitos”, enquanto as estruturas
“permanecem supraindividuais e intersubjetivas”58 e só podem, portanto, ser inferidas a partir
do todo, sem serem apresentadas como estruturas de distintas instâncias do mundo, pois
“evento e estrutura estão interligados um com o outro, mas um nunca pode ser reduzido ao
53 RANCIÈRE, 2009. p.52 54 Ibid. p. 138 55 No texto, em inglês: period look. 56 ROSENSTONE,1995. p.60 57 FARGE, Arlette. “Le cinéma est la langue maternelle du XXe siècle”, Cahiers du cinéma, número especial 'Le siècle du cinéma', novembro de 2000, apud BAECQUE, Antoine de. L'histoire-caméra. Paris: Éditions Gallimard, 2008. p.33 58 KOSELLECK, 2006. p.134
19
outro”59. Assim a ficção histórica anima na tela um mundo desaparecido, enquanto o texto
historiográfico fragmenta, racionaliza e sintetiza as distintas instâncias da experiência do
passado. Aquilo que o texto historiográfico só pode narrar ou descrever, a ficção histórica
apresenta como perceção, como se fosse presente, e através da mise en scène cria formas
cinematográficas da história para mostrar a história interferida pela vontade humana e por
indivíduos únicos agindo dentro de seu tempo.
59 Ibid. p. 126
20
2. A MISE EN SCÈNE NA FICÇÃO HISTÓRICA
No capítulo anterior foi observado como as escolhas de um cineasta na construção da
narrativa de uma ficção histórica – ao selecionar os acontecimentos, delimitar a
permeabilidade ficcional que interpelará o conhecimento histórico, ordenação dos
acontecimentos em uma série que lhes confira sentido, e inscrevê-los em uma duração
determinada – relacionam-se com práticas e paradigmas do trabalho do historiador: o
problema da objetividade e da perspetiva, a tarefa de realizar e homologar declarações
verdadeiras ao mesmo tempo em que se leva em conta a relatividade destas declarações.
Consideremos, provisoriamente, duas distintas formas cinematográficas da história, a
primeira afasta-se da historiografia e mergulha na ficção, a segunda atém-se ao texto
historiográfico para manter-se próxima aos acontecimentos. O ponto de vista de um cineasta
sobre a história, desde aquele que defende a ficção histórica como expressão pessoal sobre o
passado até aquele que procura uma forma de anulação de sua subjetividade, é manifestado
em uma proposta de mise en scène particular. Estas divergências dizem respeito a um
problema central que não cessa de ser retomado no cinema, a relação das imagens com o real.
Serge Daney propõe uma definição, concisa porém complexa, para definir o real no
cinema: "o que não ocorre duas vezes, o que não retorna jamais"60. O real do cinema é,
portanto, a duração de um instante ao outro, única e não repetível, captada pela câmara. Mas
esta definição esconde uma questão sobre a qual tantos cineastas se aventuraram em
investigar: este real resiste mesmo quando fixado na película, sintetizado e reordenado pela
montagem, e reproduzido pela projeção cinematográfica? Jacques Aumont questiona "que
preço tem a fixação do instante tal e qual, a revelação do mundo 'tal e qual'”? E diz que "toda
a representação do século XIX hesita sobre a resposta", pois "fixar o instante é, forçosamente,
sonhar em aumentar, em um ponto crucial, seu controle sobre o real"61.
Se a ficção histórica é uma falsificação da história, pois a totalidade do passado não
pode ser restaurada, como pensar a mise en scène de uma ficção histórica sob o signo do real,
ou seja, da duração que escorre de um momento ao outro sem nunca se conservar, do que não
ocorre duas vezes? Na ficção histórica a questão do real no cinema duplica-se sobre outra
questão, particular à historiografia: "que significa o termo 'real' aplicado ao passado histórico?
60DANEY, Serge. A rampa: Cahiers du cinéma, 1970-1982. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.119 61AUMONT, Jacques. O olho interminável – cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 92
21
Que estamos querendo dizer quando afirmamos que algo 'realmente' aconteceu?"62 E, por fim,
qual é o real da ficção histórica?
2.1. O real da ficção histórica
O que significa dizer que algo realmente aconteceu? Roger Chartier diz que a
dificuldade de certos historiadores em designar o real do passado tal e qual ele aconteceu está
em tentar "manter a capacidade da história em ter um discurso verdadeiro sobre o passado"63,
dizer que algo realmente aconteceu, portanto, é assumir um conceito histórico que nos permite
conceber o passado como passado. A ficção histórica retira-se da exigência de manter um
discurso verdadeiro sobre o passado, mas o faz sem negar a passalidade do passado. Se por
um lado a historiografia utiliza artifícios narrativos para fazer síntese do passado, ao afirmar
que algo realmente aconteceu, "a narrativa de ficção imita, de certa maneira, a narrativa
histórica. Contar alguma coisa é contá-la como se ela tivesse passado"64.
É a possibilidade de conceber o passado e afirmar que algo realmente aconteceu que
nos permite não apenas conceber o presente como real, mas em relacioná-lo com a sua
origem. Se assumirmos que não podemos afirmar que algo realmente aconteceu, corremos o
risco de cair na indissociação entre história e ficção que acaba por ignorar que a realidade
material e presente é condicionada pelas relações com o seu passado empírico. Concebemos o
passado como algo que foi real, é evidente que o passado não é real pois é ausente, mas ele
foi real, pois foi único e não se repetirá. O real, nesta conceção, é todo o instante que passa e
substitui o instante anterior, transformando-o em passado. E é esta a dificuldade do cinema
em apreender o real: quando o instante é fixado na imagem cinematográfica ele deixa de ser
real, pois torna-se repetível em sua unicidade. O problema é duplicado na ficção histórica,
pois se supormos que o passado não é apenas concebível mas que ele também pode ser
representado por um mise en scène, que lhe confere um modo de visibilidade, ele já não é
passado, pois o seu aspecto ausente é percebido como se fosse presente.
Qual é o real da ficção histórica? Formulemos, a priori, duas hipóteses: 1. O real da
ficção histórica é o referente profílmico, ou seja, as condições concretas da realização de um
filme, os corpos que duram em um certo espaço, aquilo que “não ocorre duas vezes” diante do
registo indicial da câmara. 2. O real da ficção histórica é o referente diegético, ou seja, não 62RICOEUR, 1997. p.242 63CHARTIER, 1998. p. 40 64RICOEUR, op. cit. p.321
22
apenas os personagens e acontecimentos históricos, ou a época representada no filme, mas
estes tomados em seu vir-a-ser.
A primeira hipótese nos reenvia para a formulação de Daney sobre o real do cinema,
ela seria portanto um aspecto, entre outros, do real da ficção histórica. Para Michel Mourlet,
por não perceberem nada além desta dimensão da ficção histórica, certos historiadores só
veem as imperfeições de sua produção, adotam uma postura sarcástica ao notar que as colunas
de um palácio são feitas de papel machê65, o que seria tomar a ficção histórica apenas por uma
reprodução das aparências sempre mal realizada. Por outro lado, estes historiadores seriam
incapazes de ver, no profílmico, a verdade que se oferece à intuição de forma imediata, a
verdade de “um gesto, um olhar, um silêncio, um grito”66.
A segunda hipótese poderia ser refutada pelo argumento de que o passado empírico
não é o real da historiografia ou da ficção histórica, mas sim o referente real sobre o qual o
discurso é produzido. Esta hipótese precisa ser reformulada, portanto, sob a pergunta: qual é o
referente real da ficção histórica? É certo que o real é o profílmico testemunhado pela
câmara, mas dizer que seu referente real é o passado que foi real, ou seja, o universo diegético
representado, não é uma resposta satisfatória.
Jacques Aumont descreve como, na linguística estrutural, "o referente é o terceiro
termo da relação da significação. Ele é exterior à relação significante/significado e designa
aquilo a que se remete o signo na realidade"67. Com a pergunta “qual é o referente real da
ficção histórica?” podemos estender seu referente para, além do profílmico, o universo
diegético representado. "Esse referente pode ser real se o objeto designado pelo significado é
atestado na realidade (...) imaginário se o significado remete a uma entidade mítica"68, o que
designa um problema para a ficção histórica, uma vez que seu referente não é imaginário, mas
também não é real, pois não pode ser encontrado na realidade. Ou, se formulado de outra
forma, seu referente é real, pois foi real e sua existência pode ser atestada na realidade através
de seus rastros materiais e documentais, mas seu referente também é imaginário, uma vez que
só podemos aceder ao real do passado por um esforço de imaginação diante dos materiais que
sobrevivem no presente. Podemos apenas imaginar o modo real como um homem caminhava
na Grécia antiga, por exemplo, por mais conhecimento que tenhamos sobre seus costumes,
65 MOURLET, Michel. “Le pléplum”, in Sur un art ignoré: la mise en scène comme langage. Paris: Ramsay, 2008. p. 58 66 Ibid. 67 AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de Cinema. Campinas-SP: Papirus, 2003. p. 253 68 Ibid.
23
seus calçados, sua indumentária, etc. Frederik Jameson, citado por Hayden White, propõe que
"ainda que inacessível para nós exceto na forma textual" a história "tem um referente que é
real e não meramente imaginado" que "só pode ser abordado ao passá-lo pelas suas
textualizações anteriores"69. Ou seja, ainda que só possamos aceder ao real do passado por um
esforço da imaginação, isto não faz dele um referente imaginário, pois o passado que foi real
persiste na forma presente de sua ausência, consecutivamente atualizada pela história.
O impasse da ficção histórica está em entre a impossibilidade de restaurar o passado e
a proposta de apresentar o que é ausente conferindo-lhe um modo de visibilidade, o que nos
leva a questionar se a história seria possivelmente representável. Jean-Luc Nancy descreve o
trabalho do historiador como o trabalho de representação de algo que não é representável, pois
a história em si é o vir-a-ser de uma presença70. Na ficção histórica, frequentemente os
acontecimentos são mostrados como se os dados ainda não houvessem sido lançados, como se
os acontecimentos fossem testemunhados em seu vir-a-ser. A historiografia, pelo contrário,
assume sempre o saber retrospectivo, mesmo a mais narrativa das formas historiográficas
narra a época passada como um vir-a-ser já realizado. O vir-a-ser da história, no entanto, não
é o referente final da ficção histórica, ele pode apenas ser inferido por uma mise en scène que
se mantenha próxima ao tempo representado e que mostre os acontecimentos históricos como
se fossem percebidos pelos seus contemporâneos. Esta a mais delicada investigação que um
cineasta pode realizar quando profundamente pretende aventurar-se na espessura de um tempo
passado, não se trata de rejeitar a figuração de um mundo desaparecido, mas em buscar uma
forma cinematográfica da história possível e capaz de fazer vibrar o tempo passado na
superfície presente.
O paradoxo da representação das coisas passadas é primeiramente formulado por
Platão e Aristóteles, "a aporia é dupla. É primeiramente o enigma de uma imagem que se
mostra ao mesmo tempo como presente ao espírito e como imagem de uma coisa ausente"71.
Pascal Bonitzer diz que "a representação opera sempre em uma dupla direção contraditória:
na direção da coisa, pelo viés da semelhança, e na direção de sua ausência, pela miragem,
pelo falso prestígio que ela constitui"72. Ele irá especular que, talvez, houve uma época na
qual "aquilo que representava a pintura e aquilo que ela testemunhava poderiam ser tomados
69WHITE, Hayden. The content of form: narrative discourse and historical representation. Batimore, The John Hopkins University Press, 1987. p. 147 70NANCY, 1993. p.161 71RICOEUR, Paul. “L'écriture de l'histoire et la représentation du passé”, Annales - Histoire, Sciences Sociales. número 4, 2000. p. 731-747. p. 732 72BONITZER, 1995. p.69
24
como a mesma coisa: uma forma ideal, aproximada por uma ascese da semelhança, Deus,
santos, reis, heróis"73. Mas houve uma clivagem interna à representação que, segundo
Bonitzer, começou "com o classicismo, a multiplicação dos trompe-l'oeil e a exclamação de
Pascal: 'Que vaidade a pintura, que atrai a admiração pela semelhança de coisas as quais não
admiramos os originais'"74. Bonitzer considera a sobreposição de uma profundidade fictícia
sobre a superfície bidimensional da tela de cinema como “o gesto ideológico automático,
inaugural da visão de um filme, da experiência da projeção”, e “esta profundidade denota a
realidade na ficção, a realidade da ficção (...) é o que chamamos ‘a impressão de realidade’”75.
Esta contradição da imagem em ser ela mesma e a representação de outra coisa "que a
noção, proposta por Maurice Pirenne, de 'dupla realidade' perceptiva das imagens designa. (...)
Dupla realidade, já que ambos os espaços são realmente percebidos, e, até certo ponto,
percebidos como reais"76. De modo análogo, uma ficção histórica é percebida quanto ao
profílmico e quanto à época do universo diegético representado, o corpo do ator é percebido
como evidência real (o reconhecimento dos corpos e rostos de celebridades apenas acentua
esta evidência) e como portador, por procuração, de uma personagem histórica que de fato foi
real, possuiu um corpo, moveu-se no espaço, falou, participou de guerras, viveu amores e
desilusões, etc. Dupla realidade pois são indistinguíveis os limites entre a percepção do
profílmico e percepção do universo diegético, cujo referente foi real mas que na ficção
histórica só pode surgir como uma aparição fantasmática.
Não é apenas quanto à representação, no entanto, que concerne a dupla realidade da
ficção histórica, não apenas a imagem sobrepõe o real do profílmico com o seu referente real
do passado visado, quanto a narrativa ficcional sobrepõe-se às relações reais que originaram
tal acontecimento, tal época, tais personagens. Há, portanto, uma dupla realidade no nível da
significação, ou há, ao menos, uma sobreposição entre os acontecimentos tal como se
passaram e a significação que lhes é imposta pela narrativa ficcional. Esta é a dificuldade em
analisar uma ficção histórica, é certo que não se trata nem de história nem de historiografia,
mas a intencionalidade da ficção, de origem imaginária, é indissociável de sua origem em
acontecimentos ou estruturas históricas que de fato existiram.
Michel de Certeau diz que a historiografia existe entre duas posições do real: de um
73 BONITZER, 1995. p.70. 74 Ibid. Citação de Blaise Pascal em francês: "Quelle vanité que la peinture qui attire l’admiration par la ressemblance de choses dont on n’admire point les originaux." 75BONITZER, PASCAL. “Hors champs (un espace en défaut)”, Cahiers du Cinéma, número 234, dezembro de 1971, p.15 76AUMONT, 2004. p. 144
25
lado “o real enquanto é o conhecido”, o postulado da historiografia; de outro “o real enquanto
implicado pela operação científica”, o resultado da análise historiográfica. E dirá que,
precisamente, “estas duas formas da realidade não podem ser nem eliminadas nem reduzidas
uma a outra. A ciência histórica existe, precisamente, na sua relação”77.
O real da ficção histórica é o impasse da formalização78, ou relação irredutível, entre
duas realidades: 1. Em seu aspecto representativo, entre o profílmico e a época visada pelo
universo diegético, ou seja, impasse da formalização entre a realidade única e não repetível
diante da câmara, que é dada como evidência do mundo presente, e a realidade única e não
repetível do passado, a qual a ficção histórica pode apenas apresentar uma imagem
fantasmática e imprecisa. No nível representativo, também há a dupla realidade entre a
evidência do corpo do ator presente e o corpo ausente do personagem, ao qual ator empresta a
sua imagem; a duração dos acontecimentos no filme e a duração real tal como se passaram; o
espaço profílmico (recriado em estúdio, recriado em computador, locações semelhantes ao
espaço real do universo diegético, locações reais onde os acontecimentos se passaram, mas já
comprometidas pelo tempo, etc.) e o espaço real onde os acontecimentos se passaram; etc. 2.
Em seu aspecto significativo, impasse da formalização entre a realidade dos acontecimentos
no passado empírico, das relações reais que o originaram, suas estruturas, sua ordem, etc., e a
intencionalidade de uma narrativa ficcional, que confere uma significação aos acontecimentos
reais.
O real não desapareceu nem está ausente, ele foi deslocado. Dos objetos, corpos,
espaços ausentes, o real é deslocado para uma forma cinematográfica particular que confere
àquilo que está ausente um modo de visibilidade através de efeitos de época. Jean-Louis
Comolli formula que para que o espectador perceba a ficção histórica como tal, ou seja, para
“fornecer um mínimo de informações, um mínimo de saber histórico” que causem um
reconhecimento imediato sobre os acontecimentos ou época representados como pertencentes
à tempos anteriores ao do espectador, é necessário “produzir um mínimo de efeitos de
época”79. O trabalho do cineasta consiste em agenciar em uma mise en scène estes efeitos de
época de modo a restituir ao presente um aspecto da realidade do passado ausente.
77 CERTEAU, 1982. p.44 78 Alan Badiou cita a definição de Jacques Lacan para o “real” como “o impasse da formalização”. Cf.BADIOU, Alain. À la recherche du réel perdu. Paris: Librairie Arthème Fayard, 2015. p. 28 79 COMOLLI, Jean-Louis. “La fiction historique”, Cahiers du Cinéma, número 278, julho de 1977. p. 5
26
2.2. O efeito de época
O efeito de época é a conjugação dos dois conjuntos que constituem o real da ficção
história, o conjunto de sua representância e o da sua significância. Ou seja, os modos de
representação cinematográfica que oferecem a impressão de realidade, mas de uma realidade
de uma outra época; e a significação, através de uma narrativa ficcional, de acontecimentos ou
época que de fato foram reais. O efeito de época realiza a dupla tarefa de objetivar um modo
de visibilidade ao passado tal que o espectador perceba os referentes imaginários do universo
diegético do filme como se fossem reais, ao mesmo tempo em que, encerrando a história sob
uma narrativa, faz com que os acontecimentos históricos, que foram reais, sejam percebidos
como referentes imaginários de uma narrativa ficcional. É evidente que o espectador sabe que
se trata de um artifício e que os acontecimentos são encenados e reproduzidos na projeção,
ainda assim experimenta o filme de modo afetivo e perceptivo.
É preciso, no caso da ficção histórica, separar a ideia de ficção da ideia de mentira,
mas ao mesmo tempo negar que o que se vê é verdade, nem verdade, nem mentira: é o
enunciado da representação cinematográfica. A questão que surge é, se considerarmos que o
efeito de época funciona como um jogo ficcional entre espectador e o filme, que este jogo
evidencia o filme como artifício ao mesmo tempo em que afirma a existência de referentes
que foram reais, e que de modo semelhante no texto historiográfico a narrativa, a explicação e
a compreensão se confundem em um discurso que pretende dar significação ao passado e
homologar os acontecimentos como verdadeiros, o quê efetivamente impede que a ficção
histórica participe como prática historiográfica?
A questão precisa ser analisada com cuidado, de um lado pode-se rapidamente refutar
esta possibilidade sob os argumentos de que os modos de produção da ficção histórica
contradizem a abordagem objetiva da historiografia, que a intencionalidade ficcional é
colocada acima das evidências documentais, que o passado não pode ser restaurado, e que o
filme pode apenas apresentar uma pálida reprodução das aparências. Por outro lado, pode-se
contestar que a abordagem científica seja insatisfatoriamente objetiva, que o texto
historiográfico é tão subjetivo quanto a ficção histórica, que a historiografia carece de uma
metodologia para fazer síntese do passado e, assim, requerer a autoridade sobre a
homologação dos acontecimentos passados.
Se o efeito de época supera a objeção quanto à representação na ficção histórica – é
inequívoco que se trata de tal ator e não de tal personagem histórico, que o espaço e as
indumentárias não são “tais e quais” elas eram, ou seja, superada a aporia da dupla realidade
27
da imagem –, resta a objeção quanto a significação que a narrativa ficcional confere aos
acontecimentos. E aqui a questão se complexifica, o argumento de que o texto historiográfico
está tão sujeito à subjetividade do historiador quanto o filme à subjetividade do cineasta é
insuficiente. Na ficção histórica há sempre dois elementos que transbordam o conhecimento
histórico e impedem que a ficção histórica seja um instrumento historiográfico: o grau de
realidade das filmagens que sempre resta como subproduto da imagem cinematográfica, e o
grau de ficção que sempre é adicionado à narrativa. Por mais fiel aos acontecimentos, tal
como eles de fato aconteceram, que o filme pretenda ser (e isto só se pode fazer sujeitando a
ficção aos textos historiográficos), ele está sempre submetido à intencionalidade ficcional,
que se afasta da homologação de uma verdade histórica, o que constitui a intencionalidade
historiográfica.
O efeito de época interfere precisamente na acreditação da narrativa como verdade,
mais do que isso, o efeito de época instaura o avesso da acreditação, que se sobrepõe à
suspensão da descrença, estabelece um contrato entre o espectador e a ficção histórica que
propõe algo como: é certo que estes acontecimentos foram reais e aconteceram mais ou
menos como são apresentados no filme, mas na duração desta narrativa o espectador
experienciará estes acontecimentos como se pertencessem a um universo ficcional,
imaginário. Roger Chartier distingue o “estatuto da verdade na narrativa historiográfica” do
“estatuto da verdade da narrativa historiográfica”, o primeiro remete “à refundação ou às
tentativas de refundação do regime de conhecimento específico da história”, enquanto o
segundo concerne “o contrato passado entre a escritura da história e o leitor da história quanto
à acreditação da narrativa como verdade”80.
A ficção histórica conjuga a suspensão da descrença, ou seja, o espectador experiencia
acontecimentos ficcionais como se fossem verdadeiros (sabendo que são, na verdade,
ficcionais), com o efeito de época, segundo o qual o espectador experiencia acontecimentos
que foram reais sob a formulação de uma narrativa ficcional (sabendo que, com maior ou
menos precisão, eles realmente aconteceram como mostrados). O efeito de época diz respeito
às formas cinematográficas da história empregadas pelo cineasta para produzir uma adesão
perceptiva/afetiva do espectador, a admissão da credibilidade da narrativa, e a crença na
realidade dos acontecimentos, apesar dos intervalos temporais entre a época diegética, a época
profílmica, e a época do espectador. Notadamente o efeito de época distingue-se da impressão
de realidade em filmes de fantasia, horror, ficção científica, etc., por não ter como referente
80 CHARTIER, 1998. p. 29
28
diegético corpos ou relações espaciais imaginárias, refere-se a acontecimentos passados ou
que, mesmo quando ficcionais, poderiam ter acontecido em determinada época.
Isto torna-se problemático se considerássemos a ficção histórica como instrumento de
transmissão de conhecimento historiográfico: a dificuldade de depurar a ficção do passado
empírico, de discernir entre os referentes que foram reais e os referentes imaginários da
ficção, que entrecruzam-se e são irredutíveis um do outro. Através da organização das formas
cinematográficas da história o cineasta tem o controle sobre permeabilidade do grau de real
que restará no filme (e interpelará o universo diegético), e o controle sobre a permeabilidade
do grau de conhecimento historiográfico que restará na ficção. Em um filme como La
Commune (Paris, 1871) (2000), de Peter Watkins, por exemplo, há um alto grau de
permeabilidade do real das filmagens, ao mesmo tempo em que há um alto grau de
permeabilidade de conhecimento sobre os acontecimentos históricos. Watkins apresenta
ficcionalmente um contracampo da historiografia que se abre na direção do presente, no qual
as reivindicações do passado relacionem-se com as atuais, produzindo um circuito entre o
passado e o presente, entre a ficção e a realidade, entre o histórico e o atual.
Os efeitos de época, frequentemente, são organizados em uma mise en scène através
dos efeitos de real: Jean-Pierre Oudart descreve o efeito de real como a inscrição, em um
sistema figurativo, de “efeitos de realidade ótica (reflexos, sombras e luz, sobreposição dos
planos, etc.) que constituem os traços da inscrição do sujeitos sob a forma de uma ausência”81.
O efeito de época portanto, através da profusão de efeitos de realidade ótica (cujos referentes
situam-se no passado empírico), insere o espectador como sujeito ausente e observador de um
mundo que não é nem totalmente imaginário, nem totalmente real, mas um mundo que foi real
e que o efeito de época confere um modo de visibilidade. E como confere este modo de
visibilidade? Situando o espectador como ponto exterior à representação, mas mesmo
excluído da ficção histórica “o espectador é implicado fantasmaticamente, ao mesmo tempo
em que ele é inscrito como sujeito dentro do dispositivo cênico”82.
É possível, no entanto, que os efeitos de época não derivem dos efeitos de real: uma
tendência de forma cinematográfica da história tenta atenuar a evidência da perspetiva
temporal ao produzir uma imagem cinematográfica a partir da perspetiva simbólica da época
visada pelo universo diegético (como L’Anglaise et le Duc, 2001, e Perceval le Gallois, 1978,
ambos de Éric Rohmer). Nestes casos os efeitos de época não correspondem,
81 OUDART, Jean-Pierre. “L'effet de réel”, Cahiers du Cinéma, número 228, abril de 1971. p.21 82 Ibid.
29
necessariamente, aos efeitos de real, pois podem ser criadas formas nas quais não sejam
visadas a perceção oticamente verosímil do mundo e a inscrição fantasmática do espectador
no espaço cênico. Nestes casos os efeitos de época procuram figurar o espaço tal como ele
seria figurado na época do universo diegético, e não tal como ele seria percebido como se
fosse presente.
Conferir ao passado um modo de visibilidade, no entanto, não é apenas produzir um
modo de realismo que produza um modelo visível análogo ao que foi real, e portanto
submeter a visibilidade das coisas passadas à sua semelhança ótica, e sim produzir formas
significantes que permitam uma concepção do passado como algo representável, não apenas
visível, mas também audível, narrável, encenável, perceptível como se fosse real e como se
fosse presente, em sua aparição fantasmática. Rancière verá nesta dupla realidade,
estabelecida pelo efeito de época, um jogo ficcional que, além da profundidade fictícia,
estabelece-se entre filme e espectador, “jogo do duplo olhar que produz a potência
documental da imagem”83, pois jamais esquecemos que os espaços são reconstituídos em
estúdios ou sobre ruínas, que as roupas foram criadas especialmente para o filme, que os
atores não são os personagens. O passado ausente é como que hipostasiado, sob seu duplo
imaginário, através do jogo ficcional permitido pela ficção histórica.
Jean-Louis Comolli argumenta que “o espetáculo é sempre um jogo, ele requer a
participação dos espectadores não como consumidores, mas como jogadores”, pois “o
simulacro não engana um espectador passivo (não há ‘espectadores passivos’): é necessário
que o espectador participe de seu próprio engodo: o simulacro é o meio que o ajuda a enganar-
se a si mesmo”84, e não seria este engodo a premissa de toda a ficção? É justamente como
Michel Mourlet descreve a premissa da ficção história, como “o desejo profundo do
espectador de escapar de seu espaço e de seu tempo”, mas defende que na ficção histórica a
“virtude dramática” ou “a crença na realidade do espetáculo, é tão forte que o espetador é
arrebatado de seu presente particular, por uma dilatação de suas virtualidades passionais”85.
Mas este “arrebatamento” do espectador de seu próprio tempo se dá por propostas específicas
de mise en scène nas quais o passado é percebido como presente – Mourlet fala
especificamente em filmes de Fritz Lang, Joseph Losey, Raoul Walsh, e Kenji Mizoguchi –,
sendo que outras formas cinematográficas podem provocar um “enraizamento” do espectador
em seu próprio tempo, e portanto uma relação de espaçamento em relação ao passado, ou
83 RANCIÈRE, Jacques. Figures de l’histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 2012. p. 31 84 COMOLLI, 1977. p.9 85 MOURLET, 2008. p.59
30
ainda, a “erosão” de sucessivas camadas de tempo, que fazem o presente ser simultaneamente
aproximado e distanciado dos passados que coexistem nele – como nos filmes de Danièle
Huillet e Jean-Marie Straub. A questão da ficção histórica, portanto, já não é mais sobre qual
é o seu real ou qual o seu referente real, mas sim quais os modos de realismo possíveis a
serem empregados pelo cineasta. Se o questionamento sobre o real da ficção histórica nos
envia para uma mediação da realidade através de modos de realismo, resta investigar como
estes modos são empregados e como os efeitos de época são apresentados em uma mise en
scène.
2.3. Entrecruzamento entre história e ficção
Paul Ricoeur propõe que “por entrecruzamento da história e da ficção, entendemos a
estrutura fundamental, tanto ontológica quanto epistemológica, em virtude da qual a história e
a ficção só concretizam cada uma sua respetiva intencionalidade tomando empréstimos da
intencionalidade da outra"86. A ficção e a historiografia emprestam suas intencionalidades
uma à outra, sendo o envolvimento afetivo um possível subproduto da historiografia sem ser a
sua intencionalidade, e a cognição um possível subproduto da ficção. Assim como há um grau
do real das filmagens que resta na ficção histórica, sem necessariamente ser a sua
intencionalidade, há um grau de transmissão de conhecimento historiográfico que resta na
ficção. Através da narrativa de acontecimento históricos “tornamo-nos conscientes de que a
realidade histórica não pode ser separada do ‘artefacto literário’ (termo de Hayden White) no
qual ou através do qual ela é lida”87, ao mesmo tempo em que “uma certa ‘realidade histórica’
resta, atrás da textualidade e da subjetividade, como o real, infinito ou indefinido
desenvolvimento do tempo”88. O que nos leva a supor que, se “por um lado, a história se
serve, de algum modo, da ficção para refigurar o tempo”, por outro “a ficção se vale da
história com o mesmo objetivo”89. Ainda que não constitua a intencionalidade da ficção, não
significa que o conhecimento histórico transmitido não tenha importância ou seja acidental,
pelo contrário, a ficção permite mostrar como evidência no mundo aquilo que o texto
historiográfico só pode demonstrar ao separar do uso comum.
86 RICOEUR, 1997. p.316 87 NANCY, 1993. p.147 88 Ibid. 89 RICOEUR, op. cit, loc. cit.
31
A ficção histórica, no entanto, deve mais à disposição dos acontecimentos em uma
narrativa, como nos romances históricos, e à disposição dos acontecimentos em um
enquadramento e em profundidade, como nas pinturas históricas, do que aos métodos e à
homologação de uma verdade dos textos historiográficos. Jacques Aumont argumenta que
"aprender olhando, aprender a olhar: é o tema, também gombrichiano da ‘descoberta do visual
por meio da arte’, da similitude entre ver e compreender. O tema do conhecimento pelas
aparências, que é o tema do século XIX, e o do cinema”90. Daney defende, no entanto, que o
mito do cinema como uma "relação direta com o mundo", no qual "do 'real' ao visual, e do
visual à sua versão filmada, uma mesma verdade se refletia ao infinito, sem distorção nem
perda", é encorajado por uma ideologia dominante que postula "real = visível", pois supõe um
mundo onde dizer "eu vejo" significa "eu entendo"91.
Não se trata de opor a perceção empírica da visão à cognição racionalista, a ficção
histórica incumbe-se de um duplo trabalho: apresentar aparências que transmitem
conhecimentos sobre o passado (os costumes, as relações de trabalho e de poder, a
indumentária, os gestos, a fala, etc.), e suspeitar da capacidade destas mesmas aparências em
transmitir conhecimentos sobre o passado. Walter Benjamin defendia que a legibilidade da
história fosse articulada pela sua visibilidade concreta, imanente e singular92, não se trata
"somente de ver, mas de saber, 'retomar na história o princípio de montagem': princípio
literário (...) princípio cinematográfico"93. O positivismo, que pretende que o conhecimento do
passado seja autenticado sob a reprodução das aparências de como o passado realmente foi,
deve ser subtraído da ficção histórica, trata-se de encontrar formas cinematográficas da
história que, ao articular o passado, apropriem-se "de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo"94. A ficção histórica é um discurso sobre um ausente, "o
objeto que nele circula não é senão o ausente (...) o morto é a figura objetiva de uma troca
entre vivos"95, esta ausência só confere sentido à relação entre os indivíduos e as coletividades
presentes que ela mobiliza. O desafio da ficção histórica, portanto, está em criar formas
cinematográficas capazes de, através de procedimentos ficcionais, articular o passado, não
como uma história realizada, mas o passado ausente como forma presente da origem, que não
se localiza no passado, distante e inacessível, mas no vir-a-ser do presente, portanto em 90 AUMONT, 2004. p. 51 91 DANEY, 2007. p.35 92 DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontages du temps subi. Paris: Éditions Minuit, 2010. p.14. 93 Ibid. 94 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.224. 95 CERTEAU, 1982. p. 55
32
constante atualização. No cinema surgiu um gênero de ficção histórica, oriundo da literatura e
da pintura, particularmente relevante quando levamos em consideração formas que
confrontam o presente com a sua origem.
Todo o repertório dramatúrgico do western consagra a passagem para o tempo
moderno, da industrialização, da domesticação técnica da natureza, da imposição da ordem
social através do aparelho jurídico, a conquista e delimitação das fronteiras, o extermínio dos
povos autóctones, etc. Passagem, sobretudo, para a constituição dos Estados Unidos como
nação. O western, apogeu clássico da arte que nasceu moderna, promove o projeto do homem
moderno, restituindo o passado como nostalgia, sob a figura do homem rústico, que John
Wayne é o grande arquétipo. Um dos grandes temas de John Ford é o do indivíduo marcado
pela impossibilidade de estar em mundo em constante transformação, a figura do pioneiro em
confronto com as formas modernas de vida, sendo as imagens que sintetizam esta oposição: a
do cavalo (ou carruagem) e a do trem em movimento.
A estrada de ferro, como observa Aumont, transforma a perceção da geografia e
constitui uma nova experiência do tempo pela "destruição física do espaço-tempo tradicional"
e pela "substituição da moral antiga ligada à natureza, por valores novos, o desejo de
aceleração, a perda das raízes"96, a articulação destas imagens em movimento constituem a
grandeza de Ford como realizador de westerns e, por conseguinte, de ficções históricas.
Enquanto David W. Griffith, diz Sergio Toffetti, em sua participação militante busca
descrever diretamente os acontecimentos, o passado “tal como ele foi”, e assim pensa poder
contribuir em sua determinação, Ford "compreende que 'o nascimento de uma nação' se
desenvolve seguindo um itinerário no qual a geografia se torna mito antes mesmo de tomar as
conotações da história"97.
Gilles Deleuze esquematiza a tese de Leslie Fidle, no livro The return of the vanishing
american, segundo o qual a literatura demonstra que os estadunidenses substituíram a sua
história pela sua geografia: no Leste, a busca de um contato com a velha Europa; no Norte,
dos grandes novelistas, a acelerada industrialização; no Sul da confrontação entre os negros e
os brancos; no Oeste, a confrontação com os ameríndios e um novo sentido das fronteiras98.
John Ford filma o Monument Valley e faz dele o berço geográfico estadunidense por
excelência, de modo a livremente a poder situar uma paisagem texana no monumento
geológico localizado no Arizona, pois este é o espaço do encontro da um povo com a sua
96 AUMONT, 2004. p. 53 97 TOFFETTI, in: DÉNIEL; RAUGER; TATUM, 2014. p.25 98 DELEUZE, Gilles. Cine 1: Bergson y las imágenes. Buenos Aires: Cactus, 2009. p.183
33
origem. John Ford, nascido no Norte dos Estados Unidos, filho de imigrantes irlandeses, faz
do Oeste estadunidense uma "representação metonímica de um presente o qual buscamos
identificar, ao mesmo tempo, a sua genealogia e a sua natureza própria"99.
André Bazin elabora uma belíssima fórmula: “o western é o contrário perfeito de uma
reconstituição histórica”100. Se John Ford dedica grande parte da sua filmografia aos westerns
devemos considerar, como Bazin, que "seria tão errôneo ignorar as referências históricas do
western quanto negar a liberdade sem embaraço de seus roteiros", pois "as relações da
realidade histórica com o western não são imediatas e diretas, mas dialéticas"101. Há uma cena
muito frequente em Ford, a vemos no desfecho de Fort Apache, a vemos em Sergeant
Rutledge (1960), a vemos em The man who shot Liberty Valance (1962), cena em que há a
uma revelação que desconstrói algo até então tido como verdadeiro, desmistificação do
campo historiográfico e, por trás desta verdade, estão sempre os heróis anônimos, fazendo
destes filmes verdadeiros monumentos aos lados ocultos da história, verdadeiros
contracampos ao campo historiográfico.
Alain Badiou diz que o real avança mascarado, então é preciso o desmascarar, mas "é
preciso o desmascarar ao mesmo tempo em que temos em conta o real da própria máscara"102,
o entrecruzamento entre ficção e história permite tanto revelar o caráter ficcional da história
quanto assegurar a capacidade de se manter um discurso sobre o passado, é exatamente o que
faz Ford no final de The man who shot Liberty Valance. Gérard Bras questiona se a verdade
está no último relato de Tom Doniphon, personagem interpretado por John Wayne, sobre que
realmente aconteceu, ou na decisão do repórter em não publicar as coisas como elas
aconteceram103. Quando Ransom Stoddard, personagem interpretado por James Stewart,
pergunta se o repórter irá publicar a história verdadeira, este o responde com a célebre frase:
This is the West, Sir. When the legend becomes fact, print the legend. Bras defende que
"mostrar o caráter mítico do mito, já é o destruir"104, Ford não apenas desmascara o mito,
como nos mostra a realidade de que existe uma máscara, ele não rejeita o discurso
99 RAUGER, Jean-François. “L'irréversible et la nostalgie”. in: DÉNIEL; RAUGER; TATUM, 2014. p.11 100 BAZIN, André. “O western ou o cinema americano por excelência”. in O Cinema - Ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. p. 202 101 Ibid. 102BADIOU, 2015. p. 22 103BRAS, Gérard. “La constitution imaginaire du peuple”. in: DÉNIEL; RAUGER; TATUM, 2014. p.87 104Ibid.
34
historiográfico, mas o evidencia como uma construção. É o que argumenta Georges Didi-
Huberman ao dizer que não é necessário
“desqualificar certas imagens sob o pretexto de serem ‘manipuladas’, pois “todas as imagens do mundo são o resultado de um trabalho combinado no qual interveio a mão do homem (...) a verdadeira questão seria, portanto, saber em cada vez −em cada imagem−, o que fez a mão exatamente, em qual sentido e para quais fins a manipulação operou-se”105.
Este é o duplo trabalho da ficção histórica e o predicado epistemológico da
historiografia contemporânea, trata-se de sujeitar-se a “duas exigências mutualmente
excludentes: fazer afirmações verdadeiras e, apesar disso, admitir e considerar a relatividade
delas”106. Como argumenta Michel de Certeau, não se pode “tomar o discurso fora do gesto
que o constitui, numa relação específica com a realidade (passada) na qual ele se distingue, e
não levar em consideração, por conseguinte, os modos sucessivos dessa relação”107. O
dispositivo em The man who shot Liberty Valance consiste em "mostrar que o ponto de vista
imediato, de uma imaginação reagindo espontaneamente, deve ser criticado por um outro
ponto de vista que permite refletir sobre a sua relatividade"108. E o que é mais evidente em
John Ford é que ele desconstrói o aparato ideológico por trás do discurso historiográfico e nos
mostra a relatividade do ponto de vista através uma proposta de mise en scène, uma proposta
de forma cinematográfica da história.
2.4. A encenação do passado
Nas ficções históricas cujo universo diegético é posterior à invenção da câmara
cinematográfica e, sobretudo, posterior à invenção do fonógrafo, a questão do grau de
ficcionalização é mais fácil de ser abordada. Pode-se averiguar se certas palavras ditas por
uma liderança política durante a Segunda Guerra Mundial foram inventadas em proveito da
intencionalidade da ficção, e se outras palavras foram as mesmas que as ditas por tal pessoa.
Podemos dizer, ainda que as palavras sejam as mesmas, que a situação ou contexto em que
foram ditas divergem de como é apresentado no filme, que o modo em que as palavras foram
ditas ou o modo como tal personagem se move no espaço foram exagerados, etc. Nestes casos
105 DIDI-HUBERMAN, 2010. p. 71 106 KOSELLECK, 2006. p.161 107 CERTEAU, 1982. p.50 108 BRAS, op. cit. p.87
35
torna-se mais evidente as relações entre a imagem histórica, registada in locu e o seu duplo
em uma ficção histórica. Isto pode, dependendo do grau de realismo pretendido, condicionar a
permeabilidade ficcional do filme.
Mas como acreditar naquilo que, quando não sabemos se tratar de pura invenção
ficcional, não temos métodos em saber se foi realmente dito ou feito da maneira como nos é
apresentada? Como acreditar no que surge de um esforço imaginativo e que só pode ser
afirmado sob o relativismo do provável? Comolli diz que o “como acreditar” é uma das
grandes questões do cinema, “que funda e lança a mecânica ficcional”, e que em uma ficção
histórica a questão se torna em acreditar apesar das dificuldades e dos obstáculos que
interferem com a crença, acreditar apesar “dos indícios da verdade e das provas referenciais
que empregam-se em substituir uma ordem do saber pelo jogo da crença”109. A ficção história,
portanto, torna-se “uma espécie de analisador que força ao limite mais revelador as condições
do exercício e dos riscos do jogo de toda ficção cinematográfica”110.
O efeito de época nos mostra que é através daquilo de mais imaginário que uma ficção
histórica apresenta que este jogo ficcional é disposto, e que força o limite entre a crença no
passado empírico e a crença na narrativa da ficção. O que faz que uma ficção seja “histórica”
não é o que a aproxima da historiografia mas o que a afasta, por poder conferir um modo de
visibilidade à tudo o que falta ao texto historiográfico, aquilo que só pode surgir através de
um esforço imaginativo, investir sobre a história uma carga ficcional: colocar na boca dos
personagens palavras que nunca saberemos se foram ditas, dar formas à corpos que
desconhecemos, conferir-lhes um modo de andar, falar, comer, praguejar, relacionar-se com
outras pessoas e com o espaço, em suma, circunscrever o conhecimento histórico dentro de
um mundo em movimento, criar uma forma cinematográfica para o passado.
A ficção histórica apresenta informações que só podem ser descobertas pela
investigação histórica sob uma forma que só pode ser revelada pela imagem cinematográfica.
A realidade do passado empírico, “que se exilou em linguagem”, é restituída sob a forma de
um mundo onde as pessoas trabalham segundo as relações de poder do passado, relacionam-
se de acordo com as relações morais e institucionais do passado, falam de acordo com as
estruturas linguísticas do passado, caminham e gesticulam de acordo com o seu tempo, etc.
Antoine de Baecque diz que “o cinema é a arte que dá forma à história, pois é aquela que
pode mostrar uma realidade de um momento dispondo os seus fragmentos segundo uma
109 COMOLLI, 1977. p.6 110 Ibid.
36
organização original: a mise en scène. E é assim que torna visível a história”111.
Em uma ficção história, dentro de um mesmo enquadramento podemos ver distintas
organizações sociais, econômicas, morais, institucionais, etc., que em um texto historiográfico
precisam ser apresentadas separadamente. Pode-se argumentar que, similarmente, também o
fazem a pintura e o romance, mas apenas o cinema é capaz de restituir ao presente o tempo
humano do passado empírico. Podemos concluir, como Ricoeur, que “a refiguração efetiva do
tempo, tornado assim tempo humano”, só pode ser realizada “pelo entrecruzamento da
história e da ficção”112. E quando Ricoeur refere-se à ficção, não se trata apenas daquilo de
imaginário que compõe a disposição de uma narrativa ficcional, mas todo o caráter imaginário
“atestado no trabalho de pensamento que acompanha a interpretação de um resto, de um
fóssil, de uma ruína, de uma peça de museu, de um monumento”113, logo, o trabalho de ficção
também entra na prática do historiador quando ele precisa imaginar o mundo provável que os
rastros só podem sugerir. “Só lhe atribuímos seu valor de rastro, ou seja, de efeito-signo, ao
nos afigurar o contexto de vida, o ambiente social e cultural, em suma, segundo a observação
de Heidegger, o mundo que, hoje, falta, por assim dizer, ao redor da relíquia"114, ora, de modo
análogo, a ficção histórica tenta figurar esta realidade ausente ao propor um modo de
visibilidade para este mundo que falta.
Ricoeur formula que o que constitui a problemática da representação da história é que,
ao contrário da memória, a história não tem o privilégio do reconhecimento e da
reminiscência115, o que nos leva a questionar como a ficção histórica propõe uma forma
cinematográfica da história que permita, não apenas a visibilidade no presente do tempo
humano do passado, mas uma concepção do passado como algo representável? Da mesma
forma usamos a noção de história para criar narrativas historiográficas que dão sentido ao
passado, acreditamos viver dentro da história para tentar dar sentido ao tempo presente. A
mise en scène é a forma com a qual o espectador, o olhar privilegiado e central de um filme,
possa ser inserido dentro do passado como se fosse presente. E assim a mise en scène nos
ajuda a compreender que os acontecimentos não são históricos, mas sim que usamos a noção
de história para organizar os acontecimentos sob uma forma que lhes dê sentido e que faça do
passado algo concebível.
111 BAECQUE, 2008. p.48 112 RICOEUR, 1997. p.315 113 Ibid. p.320 114 Ibid. 115 RICOEUR, 2000. p. 736
37
3. FORMAS CINEMATOGRÁFICAS DA HISTÓRIA
Até aqui a ficção histórica foi referida como uma abstração, como se fosse um gênero
cinematográfico com formas e práticas bem definidas, as quais se relacionariam
homogeneamente com as distintas objeções encontradas por um cineasta ao representar uma
época ou um acontecimento passado. É evidente que cada filme relaciona-se de uma forma
diferente com a dificuldade da representação das coisas passadas e com a época particular de
cada universo diegético representado. Neste capítulo será analisado como o ponto de vista de
um cineasta sobre a história é refletido nas formas cinematográficas da histórica empregadas
em uma proposta de mise en scène particular. Para tanto serão analisadas um conjunto de
ficções históricas de Éric Rohmer, de Clint Eastwood, de Roberto Rossellini, e de Danièle
Huillet e Jean-Marie Straub, para delinear quatro tendências de formas cinematográficas da
história, e demonstrar como mise en scènes heterogêneas são resultado de diferentes pontos de
vista sobre a história e sobre os possíveis modos de visibilidade do passado.
3.1. O espaço figurativo nas ficções históricas de Éric Rohmer
Em sua terceira ficção histórica Éric Rohmer realiza L’Anglaise et le Duc (2001),
adaptação da autobiografia de Grace Elliott, no qual narra em episódios a flutuante relação da
aristocrata escocesa com o Duque d’Orleães durante o Período do Terror da Revolução
Francesa. Grace Elliott não é uma heroína, não é uma figura forte da história de seu tempo, é
uma ex-amante do Duque d’Orleães cujos posicionamentos políticos são ambíguos, é uma
personagem que testemunha os acontecimentos de seu tempo e cujos atos derivam da
especificidade histórica de seu tempo. Grace Elliott não se distingue tanto de outras
personagens de Rohmer, frequentemente mulheres de classe média ou alta que não possuem
objetivos definimos ou perspetivas futuras, parecem habitar um presente puro, vivem em
trânsito ou fuga de um espaço urbano em direção ao campo ou ao litoral, o tempo procede por
elipses que conservam os segredos calados nas personagens, segredos que nos escapam. A
ambiguidade de Grace Elliott está na manutenção de seus segredos: ela se opõe à execução do
rei, mas porta uma carta dirigida à Charles Fox, político inglês amigo dos revolucionários,
suas relações com as outras personagens nunca são transparentes, nem para o espectador e
nem para as personagens.
Grace Elliott vive os acontecimentos históricos com o distanciamento de uma
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estrangeira, como os protagonistas dos romances históricos de Walter Scott analisados por
Lukács, é uma personagem que “por seu caráter e destino, põem em contato os dois lados do
conflito”116. É claro que se trata do ponto de vista de uma aristocrata britânica, e a maior
acusação contra Rohmer foi a forma injusta com a qual o povo e os revolucionários são
representados. De fato, nas ruas os soldados são bárbaros e a sua vozes são grunhidos, os
únicos representantes da população dos quais escutamos a voz são os empregados de Grace
Elliott, fiéis à sua empregadora. Mas tampouco há uma voz contrarrevolucionária substancial,
o Duque, apesar de apoiar a Revolução, é um conspirador autocentrado, e Grace Elliott
mantém-se fiel à monarquia, mas seu o posicionamento é incerto.
Experienciamos o vir-a-ser da história ao lado de uma testemunha de seu tempo, e não
de um agente histórico cujos atos foram determinantes para o destino dos acontecimentos.
Exceto o Duque d’Orleães, os personagens historicamente relevantes aparecem brevemente, e
surgem apenas em relação aos acontecimentos da vida da protagonista. Os acontecimentos
históricos da Revolução Francesa são ordenados ao redor da vida da protagonista, só surgem
em relação às consequências na vida de Grace Elliott. Os episódios históricos não são
hierarquizados pela sua importância no desenrolar na Revolução Francesa, mas como
conflitos na trajetória da personagem. A única sequência em que vemos conflitos armados,
por exemplo, é quando a Grace Elliott se expõe a uma situação de risco ao sair às ruas
parisienses.
O episódio em que Grace Elliott refugia em sua casa um monarquista ferido, desafiando
os soldados revolucionários, é notável para a composição da ambiguidade da personagem.
Não se trata de um acontecimento de grande importância histórica, Grace Elliott não o faz por
uma ideologia contrarrevolucionária, nem pelo favor que ela devia para o homem
(Champcenetz, o Governador das Tulherias), ela o faz por um sentido de respeito à vida de
um homem. O episódio traz certas semelhanças com Era notte a Roma (1960), de Roberto
Rossellini, no qual três prisioneiros de guerra são refugiados no sótão da casa de uma italiana
durante o regime fascista. Não há nada de antifascista na personagem de Rossellini, antes pelo
contrário, ela refugia os prisioneiros apenas para regatear produtos no mercado negro. Mas no
caso de Rossellini, é evidente, este encontro sensibiliza na personagem, que até então
granjeava-se em relativa harmonia com o regime fascista, uma revelação bruta das injustiças
de seu tempo, o que a transforma incontornavelmente. Já o encontro de Grace Eliott com
Champcenetz não produz uma transformação significativa, apenas reforça a posição da
116 LUKÁCS, Gyorgy. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011. p.53
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protagonista como uma estrangeira que condena a violência que testemunha, mas que não
assume um posicionamento ideológico definido. Em ambos os casos os atos humanitários são
despegados de filiações ideológicas e revelam o sentido humano da união e do amparo diante
de uma violência.
Logo no primeiro plano de L’Anglaise et le Duc instaura-se a forma cinematográfica da
história escolhida para dar visibilidade a um mundo desaparecido, para povoá-lo com o
fantasma de uma vida imaginária: um quadro estático de uma rua de Paris, estamos no final
do século XVIII, não há dúvidas. Mas, sobretudo, estamos dentro da figuração de um espaço
tal como ele seria figurado ao final do século XVIII, estamos dentro de um quadro, de uma
vista urbana. De um quadro estático ao outro o espaço é construído enquanto uma narração
explica o contexto histórico, um percurso é estabelecido e nos leva aos personagens: dois
retratos na parede, Grace Eliott e o Duque. Um cartela anuncia a última informação, o ano
1790, e os corpos imóveis dentro do quadro começam a se mover.
O que parece, em uma análise superficial, um filme estrangeiro dentro do realismo dos
outros filmes de Rohmer, é apenas um deslocamento do real visado. O filme é construído em
um profundo respeito ao realismo, não por conferir ao passado uma visibilidade como se fosse
o presente, o que Rohmer realiza é ainda mais intrigante, ele constrói uma imagem do passado
que é percebido como se fosse presente a partir de uma figuração do espaço como se fosse
passado. Rohmer encontra uma forma cinematográfica de visibilidade do passado percebido
no tempo presente, ao mesmo tempo em que a imagem é localizada no espaço passado. O
realismo de Rohmer está em respeitar o espaço figurativo da época do universo diegético,
vemos em L’Anglaise et le Duc uma construção, através de um cenário artificial, de uma
rigorosa coerência com a conceção figurativa do espaço no final do século XVIII e,
sobretudo, como ele seria representado no final do século XVIII.
Similarmente, em outra adaptação literária de outro cineasta, em Ne touchez pas la
hache (2007), de Jacques Rivette, há, em outros termos, um respeito à realidade da época do
universo diegético. Rivette busca um valor da cena e do espaço a partir das concepções da
época do universo diegético, sem deixar prolongar seus temas mais profundos. Se na ficção
histórica de Rohmer há o profundo respeito ao espaço figurativo da época, Rivette respeita o
jogo: profundo regozijo em relação aos jogos amorosos do início do século XIX, valor dos
costumes (os trajes, os bailes, o cortejo), dos gestos (como as personagens cumprimentam,
acenam, despedem), e dos objetos (o relógio o qual o criado esquece de dar corda, os sinos
pelos quais Antoinette chama seus criados), respeito aos elementos da época que compõem o
40
jogo. Desta forma o filme de Rivette não apenas entranha-se nas relações humanas da época,
como, apesar de se tratar de uma narrativa ficcional escrita por Balzac, dificilmente seria
adaptável em outra época que não o início do século XIX, pois o jogo é profundamente
marcado pelo contexto histórico e social da França no período da Restauração.
Questionado sobre influências em L’Anglaise et le Duc, Rohmer diz não gostar de como
o espaço é representado, nem de como as pessoas se comportam na maioria dos filmes
históricos, “as atuações são muito século XX, muito americanas”117. A solução de Rohmer é
figurar o espaço desde o interior do tempo do universo diegético para, ao menos, atenuar a
perspetiva temporal da época em que o filme é realizado. Em Perceval le Gallois (1978)
Rohmer já propunha algo parecido: os cenários, interpretações e movimentos dos personagens
podem ser considerados teatrais ou artificiais, mas trata-se de um deslocamento do real visado
pelo realismo de Rohmer. A imagem do filme não figura um espaço análogo à experiência do
mundo, mas sim, busca a representação simbólica da experiência do mundo medieval. Trata-
se de um profundo realismo, mergulhar na conceção do mundo de acordo com os parâmetros
contemporâneos ao tempo visado pela ficção histórica. Ao final do filme, em uma cena em
que é encenado um episódio da vida de Jesus Cristo, a figuração é elaborada de acordo com o
modo como o indivíduo da Idade Média figuraria o seu passado: como na pintura medieval
europeia, Jesus Cristo é um europeu jovial, áureo, de olhos claros, e os soldados romanos que
guardam o calvário vestem-se como cavaleiros medievais. O passado, dentro do filme, é
figurado como seria figurado pelos contemporâneos do universo diegético.
No primeiro texto de Éric Rohmer publicado nos Cahiers du Cinéma, intitulado Vanité
que la peinture, podemos encontrar o imo de seu realismo, ele dissipa o sofisma segundo o
qual “onde não há intervenção do homem não há arte” argumentando que diante de uma obra
de arte é sempre “sobre o objeto pintado que o amador porta primeiro o seu olhar, e se ele
considera a obra e o criado é somente por uma reflexão secundária”, para Rohmer o realismo
não é uma busca da aparência das coisas, mas de sua beleza: “a finalidade primeira da arte é
de reproduzir, não o objeto, mas sua beleza; aquilo que chamamos de realismo não é mais que
uma busca mais escrupulosa desta beleza”118. Anos mais tarde Rohmer dirá que “ao construir
sua ficção com o próprio real, o autor de um filme é mais um demiurgo que um criador, ou, ao
117 ROHMER, Eric. Entretien – Eric Rohmer revient sur ‘L’Anglaise et le Duc’, 2010. Disponível em: <http://www.telerama.fr/cinema/eric-rohmer-revient-sur-l-anglaise-et-le-duc,51422.php>. Acesso: 25 de maio de 2016. 118 ROHMER, Éric. “Vanité que la peinture”, Cahiers du Cinéma, número 03, junho de 1951. p.24
41
menos, a criação só se exerce em um segundo plano”119. Assim a noção de realismo em
Rohmer afasta-se das definições correntes, enfatiza-se mais na busca da essência da beleza
através da criação do artista do que na reprodução da aparência das coisas, é o que nos
permite considerar suas ficções históricas tão realistas quanto seus outros filmes.
Jacques Aumont aponta como a partir da perspectiva artificialis, “procurou-se copiar a
perspetiva natural processada pelo olho humano (...) uma opção ideológica ou, mais
amplamente, simbólica: fazer da visão humana a regra da representação”120, em Perceval le
Gallois, portanto, representar o espaço a partir do olho humano seria trair o real visado pelo
realismo de Rohmer. Em Perceval le Gallois os efeitos de época não produzem o efeito de
real, a imagem não é análoga ao espaço tal e qual ele era na Grã Bretanha da baixa Idade
Média, mas sim ao espaço figurativo da época, o real visado é a perspectiva simbólica da
imagem medieval e a experiência do tempo medieval. Aumont esclarece que a imagem
medieval é caracterizada pelo “retorno à teoria da imagem como expressão de uma essência,
e, somente à título acessório, contingente, como imitação da aparência”121.
O realismo de Rohmer está em tentar figurar a perspetiva simbólica medieval, ou seja,
anterior à perspetiva artificialis, ainda que contaminada pela perspetiva da imagem
cinematográfica. Mas a perspetiva não é “uma convenção arbitrária (...) cada período histórico
teve 'sua' perspetiva, isto é, uma forma simbólica de apreensão do espaço, adequada a uma
concepção do visível e do mundo"122. O desafio de Rohmer foi tentar buscar uma forma
cinematográfica para a perspectiva medieval, em uma tentativa de figurar através de uma
imagem cinematográfica um espaço anterior à perspetiva artificialis, anterior às normas de
figuração dos reflexos e das sombras, à composição volumétrica dos corpos e dos objetos, ao
respeito à manifestação física da luz, trata-se da representação de um espaço anterior ao olho
humano como centro do mundo, anterior à "inscrição do sujeito no sistema representativo da
pintura europeia”123, figuração de um espaço anterior à proliferação dos efeitos de real.
Quanto à experiência do tempo, Agambem argumenta que “toda concepção da história é
sempre acompanhada de uma certa experiência do tempo que lhe está implícita, que a
condiciona e que é preciso, portanto, trazer à luz”124, uma das grandes questões da mise en
119 ROHMER, Éric. “Le celluloid et le marbre (V): Architecture d'Apocalypse”, Cahiers du Cinéma, número 53, dezembro de 1955. p.24 120 AUMONT, 2012. p.224 121 Idem. El rostro en el cine. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1998. p.22 122 Idem, 2012. loc. cit. 123 OUDART, 1971. p.20 124 AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.111
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scène, seja em uma ficção histórica ou não, é a de exprimir esta experiência do tempo, própria
da época do universo diegético, ou própria da época em que o filme é realizado. Agamben
dirá que “a contradição fundamental do homem contemporâneo é precisamente a de não haver
ainda uma experiência do tempo adequada à sua ideia da história”125. A questão da
experiência do tempo é investigada pelo cineasta através de escolhas de mise en scène, ao
longo da realização de um filme, de modo a reagir à seguinte pergunta: uma ficção histórica
deve exprimir a experiência do tempo da época em que é produzida ou a experiência do
tempo da época do universo diegético?
Quanto à experiência do tempo medieval, Agamben esclarece que:
“A quête, ou seja, a tentativa do homem que pode conhecer o bem somente per scientiam de fazer dele experiência, exprime a impossibilidade de unir ciência e experiência em um único sujeito. Por isso, Perceval, que vê o graal, mas exime-se a ter dele experiência, é o personagem emblemático da quête, não menos que Galaad, cuja experiência do graal abisma-se no inefável. Desse ponto de vista, o graal (...) é simplesmente o que constitui a própria experiência humana como aporia”126
Em Perceval le Gallois acompanhamos esta experiência do tempo própria das quêtes
medievais, quando Perceval sai da casa materna encontra um mundo diante do qual não
possui nenhuma experiência, tudo o que faz e diz tem o frescor de uma primeira vez. Se per
scientiam os anjos são as criaturas mais bonitas já criadas, ao ver um cavaleiro e considerá-lo
a criatura mais bonita que já viu, Perceval considera-o, per experientiam, um anjo. Após
tornar-se um cavaleiro Perceval entra na corte do rei montado em seu cavalo, pois nunca vira
um cavaleiro desapear. O tempo, em Perceval le Gallois, é menos o da duração que escorre de
um instante ao outro do que o da aquisição do conhecimento através da experiência, mas a
mise en scène de Rohmer é mais complexa do que simplesmente buscar a figuração da
perspetiva e da experiência do tempo medieval, trata-se da busca por uma forma
cinematográfica da história, o que não deixa de ser uma “quête” moderna.
A particularidade do realismo de Rohmer não faz de suas ficções históricas um trabalho
de luto ou nostalgia das formas passadas, muito pelo contrário, assim como o olhar do
Renascimento sobre a Antiguidade os impulsionava à vanguarda, a pesquisa de Rohmer em
Perceval le Gallois enquadra-se em uma figuração própria do cinema moderno. Na
frontalidade e no achatamento das pinturas medievais, isto é, em sua perspetiva simbólica,
125 Ibid. p.121 126 Ibid. p.38
43
Rohmer encontra afinidades com a profundidade de campo reduzida, particular à filiação
moderna que pretendia minimizar os efeitos ilusionistas. Serge Daney define como moderno
“o cinema que assumiu essa não-profundidade da imagem”, cinema que surge no pós-guerra
“sobre as ruínas de um cinema enfraquecido e desqualificado, sobre a recusa fundamental da
aparência, da direção, da cena” e “sobre um divórcio com o teatro”127. O décor da Grã-
Bretanha medieval arturiana e as pantomimas de Perceval nos enviam ao espaço figurativo da
pintura e ao repertório gestual como figurados na Idade Média (sobretudo em relação às
ilustrações de manuscritos medievais). Mas este mesmo décor no envia, simultaneamente,
para os filmes de F. W. Murnau, os cenários que se contorcem sobre as personagens e os
gestos expressivos.
A tentativa de encenar os gestos reais dos cavaleiros medievais, tal como teriam feito no
passado empírico, significaria ter de os inventar a partir do repertório gestual do presente, o
que trairia o realismo rohmeriano. Diante da impossibilidade de restaurar o passado, o mais
real e fiel à época visada seria respeitar a realidade transmitida pelas representações da época:
música, pintura, e literatura. O prazer do filme está neste jogo de contemplar a perspetiva
simbólica medieval e experimentar, não o mundo, mas a narrativa, através da experiência do
tempo medieval, mas ao mesmo tempo ainda estar em plena modernidade cinematográfica.
Em L’Anglaise et le Duc, de modo semelhante, não há mera nostalgia das formas
passadas, Rohmer precisa solicitar as mais avançadas técnicas de produção de imagem
disponíveis nos anos 2000, sendo o filme mais caro de sua carreira e o único gravado em
formato digital. Para figurar o espaço tal como seria figurado no final do século XVIII
Rohmer enquadra grandes planos estáticos de vistas urbanas de Paris em 1790. “Pedi para um
pintor, Jean-Baptiste Marot, partir de quadros existentes para reconstituir a Paris da época”,
explica Rohmer, “nós tínhamos os cenários pintados sobre os quais fazíamos avançar os
personagens filmados separadamente, segundo a técnica, hoje constante, da incrustação”128.
Esta opção de respeitar a figuração dos espaços urbanos, segundo os quadros da época, limita
a distância com a qual Rohmer filma os corpos, deste modo o cineasta tem poucas escolhas
quanto à relação justa entre a câmara e seus personagens, os corpos parecem atravessar mais
um quadro do que um espaço, o que é o mesmo que dizer que os corpos atravessam mais um
espaço figurativo da pintura europeia da época do que o espaço imediato como percebido pela
câmara cinematográfica.
127 DANEY, 2007. p.231 128 ROHMER, 2010.
44
A relação com a pintura, no entanto, não se mede por composições de planos tableau:
Pascal Bonitzer explica que a função do plano tableau é dialógica, trata-se de um “discurso de
duas vozes, mistura instável do alto (a pintura) e do baixo (o cinema)” evidentes pela
“disjunção acentuada entre o movimento do plano e a imobilidade do quadro”129. Os planos
em L’Anglaise et le Duc não são dialógicos, a referência à pintura da época é evidente, mas o
espaço pictórico e o espaço cinematográfico sobrepõem-se um ao outro, não têm função
dialógica, mas sim uníssona. Aumont diz que “o espaço não é um percepto, como são o
movimento ou a luz, ele não é visto diretamente, e sim construído, a partir de percepções
visuais”130, o que Rohmer faz, a partir de suas escolhas de mise en scène, é a construção de um
espaço no qual o espaço figurativo da pintura adquire uma forma cinematográfica, e este
espaço figurativo da pintura torna-se um espaço narrativo cinematográfico. Neste processo de
dupla impurificação entre pintura e cinema, ao menos nas cenas exteriores de L’Anglaise et le
Duc, a pintura perde a qualidade centrípeta de sua moldura, que segundo Bazin “constitui uma
zona de desorientação do espaço (...) A moldura polariza o espaço para dentro, tudo o que a
tela nos mostra, ao contrário, supostamente se prolonga indefinidamente no universo”131. No
filme, como podemos observar na sequência em que Grace Elliott e sua criada, fogem pelas
ruas de Paris, no limite de um quadro surge um novo quadro, estendendo-se até as duas
chegarem ao seu destino final. Assim, nesta dupla impurificação, a moldura da pintura perde
algo de seu aspecto assim como o contracampo cinematográfico perde algo, mas ambos não
se subtraem um ao outro. O contracampo, nas cenas exteriores, não tem a natureza de
prolongamento do espaço anterior, como em uma pintura cada novo quadro forma um sistema
fechado. Quando Grace Elliott e sua criada olham pela janela, vemos o que elas veem, mas a
imagem que vemos não parece ser uma extensão de seu olhar, parece descolada do plano
anterior.
Similarmente, o quadro cinematográfico perde aquilo que nele, além do contracampo,
é o avesso da moldura: a mobilidade da câmara, condenando o olhar à imobilidade. Se por um
lado a câmara é fixa e observa de uma distância delimitada pelas vistas urbanas da época, por
outro, uma duração é investida no interior deste enquadramento, corpos movem-se de um
ponto ao outro no espaço, o quadro ganha a temporalidade do movimento, em oposição à
temporalidade da profundidade. Rohmer busca uma forma cinematográfica para figurar um
espaço anterior ao cinema, espaço dos interiores e dos panoramas urbanos da pintura do final
129 BONITZER, 1995. p.30 130 AUMONT, 2004. p. 142 131 BAZIN, 1991. p.173
45
do século XVIII, mas busca, sobretudo, este espaço figurativo do qual o cinema é, de certa
forma, prefigurado.
Arlette Farge questiona a efetividade do uso dos cenários pintados em L’Anglaise et le
Duc, que só servem para “as cenas exteriores e, em particular, às cenas violentas (...) jamais
para os interiores elegantes e pacíficos dos aristocratas em seus belos salões com cenários
reais”, ela critica ainda que os planos exteriores mostram os corpos humanos do povo em
dimensões minúsculas “como marionetas animadas”, enquanto são “pessoas verdadeiras nos
interiores em cenários reais. Dois mundos separados”132. A posição de Arlette Farge é
manifestada em relação aos corpos que ocupam o espaço, e de fato, mesmo antes da
Revolução Francesa, pintores como Jean-Baptiste Greuze pintavam os interiores da população
francesa, as pinturas de interior não figuravam exclusivamente monarcas ou aristocratas.
É evidente que no filme a construção dos espaços interiores é bastante distinta dos
espaços exteriores, mas a oposição entre os espaços internos e os espaços externos é um tema
frequente nos filmes de Rohmer. Ademais, os quadros de vistas urbanas na pintura francesa
da época distinguem-se bastante dos quadros de interiores, notadamente aqueles que figuram
os interiores dos aristocratas. Em L’Anglaise et le Duc, quanto ao enquadramento do espaço, à
luz, à figuração da aristocracia, e ao repertório gestual, as cenas interiores aproximam-se
muito de quadros de pintores como Michel Garnier e Louise Le Brun. A pintura francesa do
final do século XVIII não figurava os interiores da mesma maneira que os exteriores, o acervo
do Museu Carnavalet, principal fonte consultada pelo cineasta, mostra inúmeras vistas
urbanas panorâmicas onde todos os corpos humanos são figuras diminutas, como o espaço
exterior figurado no filme.
O comentário de Farge é pertinente quanto à natureza facciosa da representação do povo
ao longo do filme, mas não pode ser reduzido ao tratamento da figuração dos corpos nos
espaços interiores e exteriores, os revolucionários são tão selvagens nos interiores quanto nos
exteriores, e os interiores reais com pessoas reais não são apenas os interiores aristocráticos,
mas também as prisões e os tribunais dos revolucionários. Farge observa também o contraste
entre as vozes da população, que no filme aparecem como insultos ou onomatopeias, frases
inacabadas quase animalescas, enquanto Grace Elliott e o Duque d’Orleães trocam belas e
132 FARGE, Arlette; JOUHAUD, Christian. L’Anglaise et le Duc – Entretien réalisé à Paris le 7 septembre par Nadia Meflah, 2001. Disponível em: <http://www.objectif-cinema.com/interviews/049.php>. Acesso: 30 de maio de 2016.
46
articuladas frases133. Rohmer justifica-se apoiado sobre a fidelidade ao texto de Grace Elliott,
diz ele: "eu não pretendo procurar a verdade. Eu utilizei esta história como um romance"134.
Christian Jouhaud argumenta que autobiografia de Grace Elliott, no entanto, foi escrita apenas
em 1801 e publicado postumamente em 1869, após várias alterações, e depois “reeditada duas
vezes, em 1907 e também em 1942, data que não é insignificante pois havia um importante
programa de reedição de textos antirrevolucionários, programas evidentemente ligados ao
ódio do regime de Vichy pela Revolução”135.
Se nos ativermos apenas sobre o fato de que o filme baseia-se nas memórias de uma
aristocrata inglesa, amante do duque d’Orleães, seria inconsistente mostrar os revolucionários
como qualquer coisa além de bárbaros. O ponto de vista da narrativa é Grace Elliott, só seria
plausível revelar a violência à qual a revolução contrapõe-se caso o filme narrasse algum tipo
de transformação da personagem, uma trajetória de revelação e tomada de consciência, o que
não acontece. Assim poder-se-ia argumentar que o realismo de Rohmer vai ao ponto de,
mantendo-se sempre junto à protagonista, autora da narrativa e testemunha dos
acontecimentos, respeitar a realidade intelectual da autora. A voz do povo para Grace Eliott,
portanto, não passaria de um rugido de uma plebe rude e ignara, como está presente no filme,
e a exigência de um rigor histórico seria ignorar a natureza do filme.
O argumento de Rohmer sobre a fidelidade ao texto, no entanto, nos leva a concluir
que, se ele foi fiel ao texto e fiel à figuração do espaço da época, é na mise-en-scène que
exprime seu ponto de vista sobre os acontecimentos: é certo que houveram massacres durante
a Revolução, mas Rohmer não mostra corpos revolucionários, nos mostra apenas corpos
celerados em movimento, atendo-se somente ao aspeto violento da Revolução. Ao manter-se
sempre próximo de sua protagonista o problema de Rohmer não é mostrar a violência dos
revolucionários, mas esconder a violência à qual a Revolução se contrapõe. Rohmer diz que a
massa barbaresca vista no filme não passa dos elementos incontrolados, vândalos, criminosos
libertados da prisão pelos revolucionários136, mas as cenas em que vemos estes “elementos
incontrolados” não foram descritas por Grace Elliott: “no texto de Grace Elliott, quando ela
vai à Meudon, ela não diz como”. As cenas em que vemos conflitos armados nas ruas de Paris
foram ficcionalizadas por Rohmer: “fui eu que pensei que ela não poderia ter evitado de
atravessar a Praça da Concórdia, muito agitada no dia 10 de agosto de 1792. Massacravam-se 133 Ibid. 134ROHMER, Éric. Entretien - Éric Rohmer s’explique, Cahiers du Cinéma, número 559, agosto de 2001. p. 53. 135 FARGE; JOUHAUD, 2001. 136 ROHMER, 2010.
47
os guardas suíços e a ponte da Concórdia estava coberta por cadáveres”137.
Vemos aqui o trabalho de um cineasta como historiador ao declarar seu ponto de vista
sobre acontecimentos passados através de uma mise en scène particular. Rohmer diz tratar as
memórias de Grace Elliott como um romance e não buscar a verdade, mas precisamente em
um momento de deslocamento do centro urbano ao campo, ao invés de uma elipse, como no
romance, Rohmer põe em cena Grace Elliott e sua criada atravessando o espaço de um quadro
atroz à outro, onde vemos uma multidão de corpos transgressores e cadáveres. Assim Rohmer
marca no espaço, através de uma proposta de mise en scène, uma declaração pessoal sobre a
história. Afinal, não seria este o papel do cineasta ao consultar os textos historiográficos para
realizar uma ficção histórica, desconfiar e interpelar estes textos? Não seria o papel da ficção
histórica, assim como da literatura, da poesia, das tradições orais, etc., propor contracampos
ao espaço do saber histórico?
3.2. O passado presente: filmes de guerra de Clint Eastwood
Em Flags of our fathers (2006), de Clint Eastwood, James Bradley investiga o passado
de seu pai, o soldado John Bradley, incorretamente apontado como um dos seis soldados na
icônica fotografia do levantamento da bandeira estadunidense em Iwo Jima, no final da
Segunda Guerra Mundial. No início do filme vemos o espaço devastado pela guerra, a câmara
circula um soldado, além dele vemos apenas os campos de guerra, a câmara aproxima-se do
rosto do soldado, que agora ocupa o plano inteiro, o rosto ocupa todo o quadro substituindo a
paisagem bélica, no plano seguinte percebemos tratar-se das lembranças de John Bradley, já
nos anos 2000. O filme não tenta atenuar sua perspetiva temporal, pelo contrário, a
delimitação de um tempo “presente” a partir do qual os acontecimentos passados serão
reconstituídos é a base estrutural da narrativa, James Bradley entrevista seu pai e outros
oficiais da marinha estadunidense, de modo que a narrativa proceda através de sequências de
flashbacks e de uma ordenação não-cronológica dos acontecimentos. A partir da perspetiva
temporal de James Bradley, nos anos 2000, a narrativa recua para 1944, durante a invasão de
Iwo Jima, e para 1945, as consequências da guerra nas vidas dos soldados sobreviventes.
O grande tema de Flags of our fathers é desvendar o real por trás da máscara, uma
verdade mais profunda do que aquela que se apresenta no discurso historiográfico, o
137 Ibid.
48
posicionamento de Eastwood diante da história é sintetizado no discurso final de James
Bradley: “os heróis são algo que criamos, algo que precisamos. É um modo de entendermos
algo que é quase incompreensível. Se quisermos realmente honrar estes homens, devemos
lembrar deles como eles realmente foram”. Alain Badiou diz que o real avança mascarado,
então é preciso o desmascararmos, mas também "é preciso o desmascarar ao mesmo tempo
em que temos em conta o real da própria máscara"138, assim como nos filmes de John Ford
citados anteriormente, é a revelação da farsa das aparências o que mobiliza o ponto de vista de
Eastwood sobre a história.
O grande esforço da mise en scène de Eastwood é contrapor os fatos tal e qual
aconteceram e os fatos tal como foram narrados, aí a importância em encenar o levantamento
da primeira bandeira: a bandeira captada na fotografia era uma segunda bandeira, colocada
para substituir uma bandeira anterior, a própria fotografia é uma reencenação de um
acontecimento passado. Eastwood busca o acontecimento por trás da fotografia, mas a
fotografia em si não é o acontecimento, ela porta o valor simbólico da vitória, "tudo o que eles
queriam saber, era a vitória”, diz o narrador, “todos aqueles que viram aquela fotografia
pensaram que a bandeira significava a vitória”. O desconforto dos soldados, tomados como
heróis, deve-se à distância da experiência real do acontecimento em oposição à sua
apropriação simbólica, apropriação do acontecimento para fabricar heróis e, assim, sustentar o
enunciado ideológico estadunidense do pós-Guerra. Em uma cena importante, na qual um
político demagogo tenta convencer os “heróis de guerra” a angariar fundos para financiar os
campos de batalha, surge a questão: o que é mais importante, a verdade ou a história? O que
de fato aconteceu ou o modo de interpretar os acontecimentos que faz síntese do passado e lhe
confere um sentido coerente com as necessidades do presente? O mais importante é a
mitologia erigida pela foto, o mito que se torna história, a esperança e a motivação para a
população doar dinheiro para a guerra que continua. Como no final de The man who shot
Liberty Valance, a questão central da cena é a conclusão de que a população não quer a
verdade dos fatos, mas uma verdade que lhes restitua um sentido para os acontecimentos
passados. Em outra cena um homem pergunta para Ira Hayes, soldado ameríndio, se era
verdade que ele teria usado um tomahawk contra os japoneses, diante da resposta negativa de
Hayes o homem contrapõe: “Bom, diga que você usou, faz uma história melhor”. O filme é
povoado pela questão que sempre redigiu a narrativa histórica estadunidense: fabricar uma
narrativa histórica que seja uma história “aperfeiçoada”, como as epopeias gregas, uma
138BADIOU, 2015. p. 22
49
história com função a mitológica de exaltar um povo predestinado. Trata-se de sustentar o
conceito de um indivíduo heroico, cujo mérito derivaria de seus feitos, para ocultar o
enunciado ideológico de uma nação imperialista.
Em um momento do filme vemos os três soldados no centro de um estádio lotado,
louvados como heróis, a câmara faz um movimento semelhante ao que fizera no início do
filme (ao redor de John Bradley no campo de guerra), agora a câmara rodeia os três heróis de
guerra, centralizados e perdidos diante de algo grande demais, seja a guerra ou o seu duplo
espetacular. Nesta cena vemos o contraste da experiência da guerra e a sua farsa no espetáculo
armado para angariar fundos para a guerra. Em uma entrevista sobre a experiência durante a
Segunda Guerra Mundial, John Ford é questionado sobre quem realmente viu o desembarque
das tropas estadunidenses na Normandia, Ford responde: “Ninguém o viu realmente, pois a
cena era tão vasta quanto o mundo, e o acontecimento tão vasto que a própria história”139, a
dimensão de um acontecimento é sempre grande demais para ser representada, e o próprio
filme debruça-se sobre esta impossibilidade.
Em oposição às ficções históricas de Rohmer, a construção do espaço não está
delimitada pelo espaço figurativo da época do universo diegético, não tenta encontrar uma
forma cinematográfica para o espaço como ele seria figurado nos anos 1940. Em Flags of our
fathers o espaço é figurado a partir dos códigos e das técnicas dos anos 2000, Eastwood faz o
avesso de Rohmer: ele constrói uma imagem do passado que é percebido como se fosse
passado a partir de uma figuração do espaço como se fosse presente.
Em Flags of our fathers, assim como em L’Anglaise et le Duc, vemos o uso de técnicas
de criação e incrustação de imagens digitais em grandes vistas panorâmicas, mas ao contrário
do filme de Rohmer, o uso da tecnologia não conduz a uma atenuação da perspetiva temporal
para buscar o espaço figurativo da época, os efeitos especiais no filme de Eastwood
conduzem a um espaço como figurado pelo imaginário cinematográfico da época em que é
produzido. O uso das técnicas digitais de manipulação de imagem, que em ambos os filmes
funcionam para criar imensos quadros que dificilmente seriam possíveis de outra maneira,
criam duas opostas formas cinematográficas de figurar o espaço do passado.
No filme de Rohmer, o uso do digital fixa o espectador como aquele que contempla, cria
uma distância entre espectador e representação, reforça a representação enquanto tal. No filme
de Eastwood, o espectador ora contempla distantes imagens aterrorizantes da guerra
139 FORD, John. “Nous avons filmé le débarquement à omaha beach - entretien avec Pete Martin / The american legion, juin 1964”. In: DÉNIEL; RAUGER; TATUM, 2014. p.129
50
(implicado no espaço, mas de uma “distância segura”), ora é inserido como sujeito no interior
do espaço representado. Bonitzer diz que “a realidade convertida inteiramente em imagem” é
um sonho estadunidense, e que isto não é apenas um princípio estético mas “uma ideologia
que penetra vários aspectos da vida estadunidense” à qual podemos relacionar, no cinema,
“toda a escola estadunidenses dos efeitos especiais”140. O que constrói, no filme de Eastwood,
um jogo irônico: o tema da impossibilidade de representar a experiência da guerra surge em
um filme que, ao seguir os códigos do gênero, tenta representar a experiência da guerra a
partir dos efeitos de real, ou seja, implicando fantasmaticamente o espectador no espaço
cênico.
Em Flags of our fathers podemos considerar o hiperrealismo dos efeitos especiais
pretende fazer do filme uma forma do passado exilar-se em sua semelhança, vemos frotas
imensuráveis de navios de guerra, aviões bombardeando a ilha, milhares de soldados
desembarcando na praia, e destas vistas panorâmicas mergulhamos no espaço da ação. Na
cena do desembarque em Iwo Jima o espectador entra na ilha ao lado dos soldados, ombro à
ombro, cria-se a ilusão de que o espectador está presente dentro da representação como um
sujeito, o espaço da ação o rodeia e é apresentado segundo uma unidade espacial respeitada de
um corte ao outro, onde quer que a câmara se dirija o espectador testemunha a profusão dos
efeitos de real. Não há a bidimensionalidade dos planos de Rohmer, a câmara circula pelo
espaço, cria um espaço volumoso e objetivo.
O espectador participa de uma identificação não apenas emocional, mas também física
com os personagens, o próprio espaço da ilha condiciona como o espectador o percebe: a água
do mar nas lentes da câmara, câmara treme ao correr ao lado dos soldados, lampejos de
bombas ou nuvens de fumaça obstruem a imagem. Assim como David Bordwell define a
narração clássica, em Flags of our fathers trata-se de uma narração que “nos fornece
indicações para a construção da temporalidade, da espacialidade e da lógica (causalidade,
paralelismos) da história, sempre de modo a fazer com que os eventos 'à frente da câmara'
sejam nossa principal fonte de informações”141. O som constrói o espaço fora de campo e
completa a imersão perceptiva do espectador no espaço representado, ouvem-se os aviões
sobrevoarem os soldados como se sobrevoassem os espectadores, são fisicamente sentidas as
vibrações das bombas e dos tiroteios que ecoam ao longe.
Mas, como observa Bonitzer, “um plano não é uma percepção (mesmo se ele funciona
140 BONITZER, 1995. p.11 141 BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos. In: RAMOS, Fernão (org). Teoria contemporânea do cinema. São Paulo: Senac, 2005. p.289
51
como ‘imagem-percepção’), é um agenciamento de volumes, de massas, de formas, de
movimentos”142, se em diversos momentos a narração insere o espectador de forma
perceptiva, ela nunca assume um ponto de vista fixo. “O quadro não é o limite vago do campo
visual, é um corte de espaço que cria a articulação, a disjunção de um campo e de um fora de
campo”143, em Flags os our fathers, ora a câmara enquadra a paisagem vasta e distante da
guerra, ora a câmara move-se junto aos soldados que embarcam na ilha, ora recua para
observá-los do alto, ora alterna-se entre dois soldados em um diálogo. A câmara pode estar
em qualquer lugar, desde que não rompa a unidade da ação, como diz Gilles Deleuze, “a
montagem americana é orgânico-ativa, é errôneo acusá-la de se ter submetido à narração —
ao contrário, é a narratividade que decorre desta concepção da montagem”144.
Em muitos momentos vemos o ponto de vista dos japoneses, escondidos em abrigos
na terra, vemos o que eles veem: os soldados americanos atravessando a praia de Iwo Jima.
Com estes breves planos dos pontos de vista dos japoneses é construído um espaço informe, o
espaço que ocupam é indeterminado, novamente estamos ao lado dos soldados
estadunidenses, sabemos que os japoneses estão escondidos, mas não sabemos onde estão.
Eles estão por todos os lados, ocupam espaços fantasmáticos. Os corpos dos japoneses, nestas
cenas, são corpos que veem a ação sem ocupar, concretamente, um lugar no espaço. A
problemática da objetividade, portanto, duplica-se sobre a natureza do dispositivo cênico, a
abolição do “Eu” do autor seria impossível: o cinema implica não apenas em um
posicionamento subjetivo do cineasta, mas também o posicionamento físico de uma câmara,
que insere o espectador como observador do espaço cênico, e que não deixa de expressar um
julgamento estético e ideológico sobre aquilo que se filma. Como diz Jacques Rivette “fazer
um filme é mostrar certas coisas, mas é ao mesmo tempo, e pela mesma operação, mostrá-las
por um certo ângulo; sendo estes dois atos rigorosamente indissociáveis”145. E este ângulo,
este posicionamento da câmara implica em um recorte de uma realidade cuja totalidade
apenas pode ser sugerida.
Ao contrário de L’Anglaise et le Duc, onde os eventos históricos só aparecem em
função dos conflitos da personagem, no filme de Eastwood a experiência da guerra e os
conflitos internos dos protagonistas existem em função do acontecimento central, de modo
que a construção dramatúrgica seja organizada a partir deste acontecimento. Ao contrário de
142 BONITZER, 1995. p.21 143 Ibid. 144 DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.40 145 RIVETTE, Jacques. De l’abjection. In: Cahiers du Cinéma, número 120, junho de 1961. p. 55.
52
Grace Elliott, que apenas testemunha os acontecimentos de sua época, os personagens de
Flags of our fathers participam dos acontecimentos históricos (o desembarque em Iwo Jima,
os conflitos armados, o levantamento da bandeira), e o espectador acompanha o drama das
consequências dos acontecimentos na vida de cada um dos três soldados sobreviventes que
aparecem na mítica fotografia.
A dramatização de acontecimentos históricos, no entanto, constitui um problema quanto
à objetividade histórica, pois a identificação com os personagens e envolvimento emocional
com o drama torna a ficção histórica incapaz de contornar o problema do ponto de vista a
partir do qual o espectador é envolvido com o acontecimento. Assim como em L’Anglaise et
le Duc, em Flags of our fathers, o envolvimento emocional do espectador é sempre dirigido
para um lado dos conflitos narrados, no filme de Rohmer nunca acompanhamos as
desventuras dos revolucionários, no filme de Eastwood nunca acompanhamos as dificuldades
dos japoneses. A solução de Eastwood foi realizar um segundo filme, Letters from Iwo Jima
(2006), narrando a batalha de Iwo Jima a partir do ponto de vista dos japoneses. Hannah
Arendt diz que a “imparcialidade, e com ela toda a historiografia verdadeira, vem ao mundo
quando Homero decide cantar os feitos dos Troianos não menos que os dos Aqueus, e louvar
a glória de Heitor não menos que a grandeza de Aquiles”146, a imparcialidade é proposta por
Eastwood não como a objetividade assegurada pela descrição das estruturas, mas como
tentativa de fazer síntese dos acontecimentos a partir da narração dos dois lados da batalha.
Letters from Iwo Jima inicia-se de modo semelhante que Flags of our fathers, desde o
princípio evidencia a perspectiva temporal, o filme dirige-se da época contemporânea à
realização rumo ao passado visado pelo universo diegético, vemos o espaço atual em ruínas e
sobre a imagem o ano: 2005. Eastwood filma os mesmo planos que vemos em Flags of our
fathers, o mesmo ponto de vista dos japoneses que observam os soldados estadunidenses, mas
agora são os espaços vazios da atualidade, armas e trincheiras abandonadas. São os mesmos
pontos de vista, as mesmas perspetivas espaciais vistas décadas depois da batalha, ou seja, a
partir de distinta perspetiva temporal. Pesquisadores japoneses cavam dentro de uma gruta e
encontram algo que, ao final do filme, descobriremos tratar-se das cartas que compõe a
narrativa do filme. Em Letters from Iwo Jima os soldados japoneses, que antes eram inimigos
fantasmáticos, agora tornam-se corpos tangíveis, indivíduos que possuem seus próprios
dramas pessoais.
146 ARENDT, Hannah. Between Past and Future – Six exercises in Political Thought. Nova Iorque: The Viking Press, 1961. p. 51
53
É um equívoco, no entanto, acreditar que a multiplicidade de pontos de vista,
permitida pela narrativa cinematográfica, assegura a imparcialidade do cineasta. Koselleck
considera que, na tradição judaico-cristã, foi precisamente ao integrar o ponto de vista e as
vitórias de seus oponentes que o sentido de sua própria história foi adquirido, por acreditarem
ser o povo escolhido eles “puderam integrar as potências orientais na sua própria história”147.
A objetividade não é garantida pela multiplicidade dos pontos de vista, nem pela apresentação
dos acontecimentos em si, pois o modo como cada acontecimento é apresentado também é
condicionado pelo julgamento que se tem sobre ele148: “se Luís XVI – para citarmos Gentz –
foi assassinado, executado ou só punido, essa é a questão que interessa à história, e não o
‘fato’ de que uma lâmina de guilhotina separou-lhe a cabeça e o tronco”.149
Em um breve plano vemos as esquadras estadunidenses, o mesmo plano que vimos em
Flags of our fathers, a imponência bélica da marinha americana contrasta-se com
precariedade das estruturas defensivas dos japoneses na ilha. Em Flags of our fathers os
inimigos não têm rosto, os japoneses são “invisíveis”, ocupam um espaço indeterminado, o
que é uma forma de descrever a sua estratégia de guerra. Os estadunidenses, em Letters from
Iwo Jima, também são inimigos sem rosto, mas são vistos por sua ostensividade, pelas
máquinas que ocupam e sujeitam o espaço. No primeiro filme os inimigos (os japoneses) são
caracterizados pelo seu ocultamento no quadro, enquanto no segundo filme os inimigos (os
estadunidenses) são caracterizados por ocupar todo o quadro, com suas máquinas de guerra.
Bonitzer diz que “a estrutura do quadro, da tela, da imagem, primeiramente supõe uma
escolha (mesmo se inconsciente), uma separação do que é mostrado e do que é escondido,
uma organização (mesmo se sumária) daquilo que é mostrado, e uma rejeição do que é
escondido”150, a potência bélica dos japoneses é definida pela rarefação, enquanto a dos
estadunidenses é definida pela saturação.
São postos em cena dois distintos valores do corpo, no ponto de vista estadunidense o
herói é definido por aquilo que é revelado, em Flags of our fathers a presença de um corpo,
notadamente na espetacularização do herói, mesmo se constituído por uma farsa, vale mais
que o corpo ausente do soldado morto que realmente estava na fotografia. Já no ponto de vista
dos japoneses os heróis são aqueles que não se deixam revelar, os homens de honra são os que
se sacrificam pela nação, valem mais os corpos que se literalmente tornam-se ausentes no
147 KOSELLECK, 2006. p.127 148 Ibid. p. 185 149 Ibid. 150 BONITZER, 1995. p.20
54
espaço (cena dos suicídios com as granadas) do que os corpos presentes (os soldados sem
honra, que fogem e se entregam para os estadunidenses, são friamente assassinados).
A mise en scène do desembarque na ilha e a estratégia da batalha reagem às mesmas
questões: ao desembarcar na ilha, os estadunidenses, que ocupam ostensivamente todo o
quadro, encontram a ilha vazia e precisam literalmente mostrarem-se aos japoneses para dar
início à batalha. As escolhas de mise en scène e as estratégias de guerra, que definiram o curso
dos acontecimentos históricos, misturam-se em uma mesma forma cinematográfica. No início
do filme o General Tadamichi Kuribayashi encena como seria a chegada dos estadunidenses,
põe seu assistente para correr como se fosse um soldado americano que desembarca na ilha,
move o corpo no espaço para antever os movimentos dos inimigos, e assim cria a estratégia
do ocultamento para confrontar a ostensividade bélica estadunidense. Nos filmes de guerra
podemos observar como as questões de mise en scène não são assim tão diferentes das
questões estratégicas de uma guerra: o agenciamento dos corpos no espaço, onde posicioná-
los, para onde e quando movê-los, etc. É preciso mover um corpo pelo espaço para descobrir
como enquadrá-lo, da mesma forma que é preciso mover um corpo no espaço para descobrir
como encurralá-lo, a mise en scène é um jogo de xadrez e o quadro é um calabouço de corpos
em movimento, como um embuste militar bem arquitetado.
3.3. Pedagogia da restituição: as obras didáticas de Roberto Rossellini
A modernidade cinematográfica surge com a Segunda Guerra, “com o novo sentido
que seu horror provocou, conduzindo o cinema, através do documentário, a um novo
realismo”151, uma forma cinematográfica que mostraria “o primeiro rosto propriamente
humano do cinema”152. Neste sentido “o cinema do pós-Guerra parece buscar o retrato melhor
que os outros, visto que tem a ver, mais do que os demais ideais do rosto cinematográfico,
com um ideal de verdade”153. Ao contrário do valor do rosto em todo o cinema anterior e
durante a guerra, no pós-Guerra “a identificação entre o rosto cinematográfico e o rosto
humano é, então, tão intensa que ficará como uma espécie de evidencia, de herança deste
momento da história”154.
151 AUMONT, 1998 p.116. 152 Ibid. 153 Ibid. p.134. 154 Ibid. p.125.
55
Dos escombros da Segunda Guerra cada nação forjou um campo historiográfico
mediado pelos discursos ideológicos de seu interesse (Flags of our fathers revela como este
processo ocorreu nos Estados Unidos). Destes mesmos escombros Rossellini erigiu
monumentos à humanidade, rasgando no interior discurso historiográfico a possibilidade de
um contracampo composto pelos corpos e rostos humanos que resistiram entre as ruínas. A
criança alemã, o soldado negro americano, o líder comunista da resistência, a mulher italiana,
Rossellini construiu um imenso inventário de seres humanos que sobreviveram à Guerra. Em
oposição ao feitos narrados pela historiografia, Rossellini apresenta como contracampo os
próprios rostos daqueles que viveram a guerra, de modo a neles tentar encontrar alguma
verdade que resista ao horror testemunhado. De acordo com Alan Bergala a grande questão do
cinema moderno era: “como pode a verdade emergir nos filmes”155? Foi o que Rossellini
investigou com seus filmes no período imediatamente após a Segunda Guerra, como pode um
filme conservar algo de real e assim revelar algum aspecto verdadeiro do mundo atual?
Entre Il generale Della Rovere (1959) e Il messia (1975), ele realizou diversas ficções
históricas, a maioria delas realizadas para a televisão europeia, Rossellini vê no amplo alcance
da televisão um espaço para criar possibilidades concretas para que os espectadores percebam
que a história é algo que determina profundamente sua existência quotidiana. Em 1973
Rossellini diz se considerar mais um cientista ou artesão do que um artista, diz que “o cinema
precisa tornar-se científico, precisa aprender a distribuir conhecimento e consciência”156. Tag
Gallagher argumenta que, em L’età di Cosimo de Medici (1972-1973), mini série em três
episódios realizada para a televisão italiana, Rossellini “apresenta a arte renascentista como
um instrumento de pesquisa, e não de autoexpressão”, como na cena em que a catedral de
Brunelleschi é admirada, não pela sua beleza, “mas pela materialização dos maravilhosos
cálculos de Brunelleschi”157. Segundo Gallagher, Rossellini esboçou um “vasto plano de não
recontar mas reviver a história do conhecimento humano em centenas de filmes”158.
Seriam estes filmes uma ruptura com o projeto de cinema idealizado por Rossellini
após a Segunda Guerra? Rossellini diz em 1965: “é isto o que senti, a necessidade de fazer
155 BERGALA, Alain. Roberto Rossellini e a invenção do cinema moderno. In: CERANTOLA, Neva; OLIVEIRA, Luis Miguel; Roberto Rossellini e o cinema revelador. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2007. p.217. 156 ROSSELLINI, Roberto. apud GALLAGHER, Tag. Rossellini’s History Films—Renaissance and Enlightenment, 2008. Disponível em: < https://www.criterion.com/current/posts/984-eclipse-series-14-rossellini-s-history-films-renaissance-and-enlightenment>. Acesso: 06 de agosto de 2016. 157 Ibid. 158 Ibid.
56
qualquer coisa de diferente. Em um certo momento eu me senti inútil”159. De forma alguma se
trata de uma ruptura, pois a questão do cinema de Rossellini mantém-se a mesma, em cada
uma de suas ficções históricas encontramos a busca de uma representação de profunda
identidade das personagens históricas como corpos e rostos humanos, e não personagens
encerrados em um texto. Em sua primeira entrevista para os Cahiers du Cinema, ao comentar
a cena da pesca de atum em Stromboli (1950), Rossellini diz: “Eu sei o quanto uma espera é
importante para chegar a um ponto, então não descrevo o ponto, mas a espera”160. Ora, La
prise du pouvoir par Louis XIV (1966), que é mais um filme sobre uma tomada de
consciência do que uma tomada de poder, é um filme inteiro sobre uma espera, que o
espectador pacientemente acompanha até a tomada de consciência final. Como diz Jean-
André Fieschi, a progressão da espera não se dirige a uma verdade subjetiva, mas a uma
verdade objetiva da história161. Rossellini exalta a precisão de La prise du pouvoir par Louis
XIV (1966): "É de um rigor histórico absoluto: um ensaio sobre a técnica de um golpe de
estado"162, diz também que os filmes que faz "não são para exaltar um personagem, mas para
examinar um personagem e uma época, o que é completamente diferente"163. Ou seja, é
apenas a questão central de seu cinema que é deslocada, já não se trata da busca de uma
verdade revelada pela imagem cinematográfica, mas em criar uma forma cinematográfica da
histórica capaz de manter um discurso verdadeiro sobre o passado. Nestes filmes, portanto, a
questão transforma-se em: como pode a verdade histórica emergir nas ficções históricas?
A pedagogia de Rossellini baseia-se em uma crença tenaz de que a encenação dos
acontecimentos passados pode ser um meio para transmitir conhecimento sobre a história,
pois, como diz Rossellini, “a arte faz você entender através da emoção aquilo que você é
absolutamente incapaz de entender através do intelecto”164. Adriano Aprà argumenta que, em
suas ficções históricas, Rossellini não quer mais desvelar a verdade “mas propor um método
suscetível de conduzir à verdade”, Rossellini faz como que a sua “atitude diante de uma certa
159 ROSSELLINI, Roberto. Sur l’Età del ferro. In: Cahiers du Cinéma, número 169, agosto de 1965. p. 62. 160 ROSSELLINI, Roberto. Entretien avec Roberto Rossellini. In: Cahiers du Cinéma, número 37, julho de 1954. p.10 161 FIESCHI, Jean-André. Dov'è Rossellini?. In: Cahiers du Cinéma, número 131, maio de 1962. p.22 162 ROSSELLINI, Roberto. La prise du pouvoir par Louis XIV. In: CERANTOLA, Neva; OLIVEIRA, Luis Miguel. Op. Cit. p.491 163 ROSSELLINI, Roberto. Os ossos do ofício (2) – entrevista. In: CERANTOLA, Neva; OLIVEIRA, Luis Miguel. Op. Cit. p.92 164 GALLAGHER, 2008.
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realidade torne-se o próprio objetivo e fundamento da obra: o objeto observado é apenas o
pretexto para provocar e purificar o olhar que o observa”165.
Ao limite, podemos dizer que a mise en scène de Rossellini encontra-se em um ponto
mediano entre um realismo que respeita o espaço tal como seria figurado na época do
universo diegético, e uma realismo que busca uma experiência tangível dos acontecimentos
através da profusão dos efeitos de real. Neste sentido L’età di Cosimo de Medici é exemplar: a
mise en scène conjuga uma composição da frontalidade e perspetiva do quattrocento com a
mobilidade do câmara e a movimentação dos corpos na profundidade do espaço. Se todo o
Renascimento “trabalha sobre a questão do ponto de vista, sobre a questão: o que fazer do
ponto de vista? Esta questão determina todo o espírito da composição do quadro, toda a
concepção do espaço construído através desta composição”166, Rossellini faz desta questão
uma questão cinematográfica: onde posicionar a câmara de modo a poder observar
objetivamente os acontecimentos na cena? Esta busca por um ponto de vista justo constitui a
moral do modo de olhar de Rossellini, e em suas ficções históricas ele encontra, em parte
condicionado pelo orçamento destes filmes, uma solução para observar o passado: a
teleobjetiva.
Na primeira cena do primeiro episódio de L’età di Cosimo de Medici, no funeral do
pai de Cosimo de Medici, a câmara esquadrinha o espaço, frequentemente encontrando novos
enquadramentos através do uso da teleobjetiva. A câmara encontra um ponto fixo a partir do
qual observar a cena, observa os acontecimentos frontalmente, mas ao passo que os corpos se
movimentam no espaço é preciso encontrar novos pontos de vista para os observar. O mesmo
procedimento encontramos em todas as suas ficções históricas, como na cena em que os
médicos fazem a sangria em Mazarin, em La prise du pouvoir par Louis XIV. Este constante
desligamento do ponto perspetivo é a definição do sistema de figuração do espaço em
Rossellini, jamais há um enquadramento definitivo, pois o real não possui uma estase que
possa ser captada pela câmara. Luiz Carlos de Oliveira Júnior define a escola rosselliniana
como aquela onde o ponto limítrofe é “um olhar que se desliga do centro do quadro, já não se
fixa ansiosamente sobre os aspectos ‘importantes’ do mundo, pois prefere estar atento ao
insignificante, perder-se no fluxo sensório-temporal da realidade fenoménica”167.
165 APRÀ, Adriano. Le nouvel âge de Rossellini. In: Cahiers du Cinéma, número 169, agosto de 1965. p. 61 166 BONITZER, 1995. p.52 167OLIVEIRA JUNIOR, Luiz Carlos. A mise en scène no cinema: Do clássico ao cinema de fluxo. Campinas-SP: Papirus, 2013. p.194
58
A teleobjetiva cria um sistema que desnatura a profundidade de campo, os corpos que
se afastam da câmara em diversos momentos crescem no quadro ao invés de diminuir,
modernidade cinematográfica que persiste em Rossellini. Bonitzer argumentará que
precisamente “esta aparência – o efeito de diminuição do objeto segundo seu distanciamento
– que será questionada por todos os lados pela modernidade. A partir de então, o que está
mais longe parecerá tão próximo quanto o que está mais próximo”168, é precisamente o que a
teleobjetiva permite fazer com o espaço cênico, subtrair-lhe da hierarquia da profundidade de
campo. Nas ficções históricas de Rossellini, portanto, espaço figurativo torna-se um plano
cartesiano sobre o qual a câmara se debruça e, constantemente, encontra novos
enquadramentos, construindo um espaço cujas potencialidades são expandidas, o que
Gallagher chama de um “estilo pictórico fluido”169. Bonitzer diz que a teleobjetiva não produz
uma nova ilusão, mas sim uma nova verdade, “cujo efeito é de uma desrealização tendencial
do sentimento de espaço, trazido por uma apercepção múltipla do tempo”170. O uso que
Rossellini faz da teleobjetiva faz com que o acontecimento possa ser observado em um único
plano, sem romper a unidade da ação, preservando tanto a unidade espacial quanto temporal,
pois “é no tempo assim como no espaço que as coisas, as imagens, os seres são telescopados,
se projetam e se misturam”171.
Aqui a tendência da forma cinematográfica da história de Rossellini diferencia-se
bastante das de Rohmer e Eastwood: em Rohmer tratava-se de preservar a figuração do
espaço da época, em Eastwood preservar a unidade da ação, apesar da multiplicação dos
pontos de vista. Em Rossellini trata-se de encontrar um ponto de vista a partir do qual
observar a cena e respeitá-lo ao máximo em sua duração, sem romper a unidade da ação, mas
constantemente a reenquadrando o espaço cênico. Mas no cinema clássico a construção de um
espaço objetivado e a manutenção da unidade da ação (e, portanto, a sensação de um tempo
contínuo), visa o ocultamento da instância narrativa, para acentuar os efeitos de identificação
e de imersão do espectador como sujeito no espaço. Já nas ficções históricas de Rossellini, o
espectador está sempre distante do espaço cênico, e a teleobjetiva apenas acentua esta
distância, o espectador nunca tem a ilusão de estar inserido no espaço ao lado dos corpos dos
168 BONITZER, 1995. p.45. 169 GALLAGHER, Tag. “Making reality”, Senses of Cinema, número 32, julho de 2004. Disponível em: <http://sensesofcinema.com/2004/feature-articles/rossellini_television/>. Acesso: 13 de agosto de 2016. 170 BONITZER, loc. cit. 171 Ibid.
59
personagens, pelo contrário, a ilusão é de estar ao lado da câmara, ao lado de Rossellini, um
professor que nos mostra os acontecimentos.
Assim a manutenção da unidade da ação restitui à humanidade do presente o tempo
humano subtraído da historiografia, fazendo da duração interna ao plano um contracampo às
possibilidades da historiografia. Mas, como observado anteriormente, a experiência do tempo
só pode restituída ao passado através da introdução de uma temporalidade que possa ser
identificada como tal pelo espectador contemporâneo, que adere ao tempo do universo
diegético da narrativa, e testemunha a gênese dos acontecimentos históricos como o fariam os
seus contemporâneos. Como na cena em L’età di Cosimo de Medici na qual os personagens
conversam sobre Joana D’Arc, uma notícia “atual” dentro da época do universo diegético,
trata-se de um recurso muito utilizado por Rossellini para comentar a história: os grandes
acontecimentos da época são incorporados à intriga, à experiência do mundo e ao destino das
personagens da ficção.
É evidente que, do ponto de vista historiográfico, as ficções históricas de Rossellini
são imprecisas, como argumenta Gallagher:
“é fácil escrever em um livro: ‘Cosimo de Medici cumprimentou o embaixador veneziano’. Outra coisa é fornecer roupas, sala, mobílias, ambiência, iluminação, sem contar as palavras, tons de voz, comportamento, emoções, e os próprios corpos de Cosimo e do embaixador. Tudo isto será inevitavelmente impreciso em um filme. Como eram as pessoas naquela época? Como era Florença? Nós podemos apenas imaginar”172
A pedagogia de Rossellini é tomar o espectador pelas mãos, e acompanhá-lo ao longo
da história, através deste do jogo de acreditar apesar das inevitáveis das objeções que
obstruem a acreditação. Rossellini figura um espaço povoado por corpos humanos, corpos que
agem dentro de seu tempo, indivíduos cujas existências podem ser equiparadas às nossas, e
assim encontra uma identidade entre a experiência de um mundo desaparecido e a nossa
experiência cotidiana. Jean Douchet diz que “Rossellini torna-nos testemunhas aniquiladas”
ao proporcionar a “passagem brusca do lugar de observador para o papel de testemunha”173.
Se o trabalho da história, como diz Certeau, “consiste em criar ausentes, em fazer, de signos
dispersos na superfície de uma atualidade, vestígios de realidades ‘históricas’ ausentes porque
outras”174, Rossellini nos mostra que o trabalho do cineasta está em, apesar da impossibilidade
172 GALLAGHER, 2008. 173 DOUCHET, Jean. A febril inquietação do instante. In: CERANTOLA; OLIVEIRA, 2007. p.423 174 CERTEAU, 1982. p. 56
60
de restaurar o tempo passado, criar uma forma cinematográfica para um pseudo-presença de
um mundo desaparecido, povoar este espaço com duplos fantasmáticos dos corpos ausentes,
tornar sensíveis estes “signos dispersos na superfície da atualidade”, para assim conduzir a
uma verdade.
O cinema sobrepõe, aos corpos ausentes do passado, uma outra ausência, tão
misteriosa quanto a primeira, a impressão no filme dos corpos, gestos e olhares reais daqueles
que estiveram presentes diante da câmara. A ficção histórica é um cenotáfio para os tempos
passados, um sepulcro onde os corpos ausentes adquirem uma presença metonímica. Na
ficção histórica, portanto, o corpo de uma personagem histórica ou imaginária é transmitido
através da presença real do corpo humano de um ator, enquanto que na literatura e no texto
historiográfico há a liberdade, como argumenta Badiou, de “não revelar os corpos, cuja
infinidade visível escapa à descrição mais detalhada”175. Sobre a questão do corpo histórico
Jean-Louis Comolli dedicou uma artigo, em 1977, nos Cahiers du Cinéma, precisamente
intitulado La fiction historique, no qual ele questiona que “se a mise en scène de uma ficção é
a atribuição de corpos imaginários aos corpos reais, as coisas se complicam com as ficções
históricas”176, pois os corpos imaginários possuem um modelo referencial que de fato existiu.
Comolli exemplifica a questão a partir de dois personagens em La Marseillaise
(1938), de Jean Renoir: Bomier, um personagem imaginário, e Luís XVI, um personagem
histórico. Quanto ao primeiro pouco importa sua relação com um referente real, seu corpo só
existe em função do corpo do ator, já o corpo de Luís XVI é confrontado pelo corpo do ator,
Pierre Renoir177. Dupla realidade dos corpos, um corpo no cinema é sempre o corpo da
personagem e algo mais, impasse da formalização, percebemos simultaneamente o corpo
supostamente conhecido da personagem histórica e o corpo do ator. Mas em La Marseillaise
“Pierre Renoir não se contenta em não apagar seu próprio corpo atrás do corpo suposto de
Luís XVI (...) Ele põe este corpo, o seu, à frente; sublinhando a sua realidade e a sua
presença”178. Como observou Daney, o ator de cinema “é um objeto paradoxal. Não podemos
separar sua imagem de todos os filmes em que ele aparece”179. A imagem do corpo de Luís
XVI em La Marseillaise é inseparável da imagem do corpo de Pierre Renoir e, por
conseguinte, do que ele representa dentro do repertório cultural francês e de todos os outros
personagens por ele interpretados. Mas no filme de Renoir esta “sobreposição imaginária” dos 175 BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p.104 176 COMOLLI, 1977. p. 6 177 Ibid. p. 8 178 Ibid. p.12 179 DANEY, 2007. p.187
61
corpos se dá em razão de “tomar a sério o lugar central do corpo do Rei no sistema
monárquico” e “marcar a sua desvalorização no momento da revolução”180. Deste modo
Renoir usa a dupla realidade dos corpos em uma ficção histórica como forma cinematográfica
de exprimir seu ponto de vista sobre a história.
Nos filmes de Rossellini esta sobreposição é atenuada pelo uso frequente de atores não
profissionais, cujos corpos são desconhecidos pelo público. É certo que o corpo que vemos
em La prise du pouvoir... não é Luís XIV, mas o corpo que vemos não estabelece nenhuma
relação com o mundo fora do filme e, assim, o corpo do ator se apaga atrás do corpo que ele
substitui. Aqui ressurge o tema da vidência através de um estado de sonambulismo das
personagens de Rossellini, os corpos que vemos em suas ficções históricas estão como que
em um estado de estupor, mergulhados na espessura de um tempo passado. Segundo Aumont,
já em Francesco giullare di Dio (1950), primeira ficção histórica de Rossellini, “o filme
retrata, de fato, alguém que não é nem são Francisco nem o ator anônimo que lhe empresta
seu corpo, ou melhor, que é um e outro através de sua condição comum de frade
franciscano”181.
O que é singular nas ficções históricas de Rossellini é este sentimento de identificação
entre o espectador e as grandes personagens da história como corpos humanos (sejam elas
Louis XIV, Sócrates, ou Jesus Cristo), a intensidade da comunhão em serem humanos, ao
mostrá-los na simplicidade de seus cotidianos, nivelados com os outros homens, os vemos em
cenas de plena e frágil humanidade. Rossellini desembaraça-se de um obstáculo comum em
diversas ficções históricas, a reverência ao personagem: “acabo de terminar Descartes. Se há
um personagem repugnante, é Descartes, porque era um cobarde, um preguiçoso, um
amargurado horrível”182, diz Rossellini.
A pedagogia de Rossellini, portanto, procede por esta apresentação de corpos que
animam um mundo desaparecido, atendo-se a esta revelação, quase tangível, do mundo como
evidência, como se tudo acontecesse pela primeira vez, recusando qualquer explicação além
daquilo que nos é mostrado. Rossellini, assim, opõe ao texto a duração de um tempo humano
e a evidência de um mundo objetivado, ao revelar os pequenos acontecimentos cotidianos
com tanto rigor quanto revela os grandes acontecimentos históricos, e ao buscar nestes na
experiência cotidiana do passado uma identidade com a experiência do tempo presente. Como
180 COMOLLI, 1977. p.12 181 AUMONT, 1998. p. 140 182 ROSSELLINI, Roberto. Os ossos do ofício (2) - entrevista. In: CERANTOLA; OLIVEIRA, 2007. p.93.
62
diz Deleuze, a didática de Rossellini “não consiste em reportar discursos e mostrar coisas,
mas em destacar a estrutura simples do discurso, o ato de fala, e a fabricação cotidiana de
objetos, pequenos ou grandes trabalhos, artesanato ou indústria”183. O olhar erradica qualquer
ideia de causalidade entre os acontecimentos, não procura um sentido no real, a não ser o de
tornar o real sensível como realidade.
Por um lado Rossellini não apresenta datas, e em diversos momentos não sabemos
exatamente quem são os personagens. Como ironiza Gallagher, sobre Blaise Pascal (1972),
em um parágrafo de uma enciclopédia saberíamos mais sobre a importância do filósofo,
enquanto que “no filme, é o cotidiano da vida no século dezassete que vivemos, e cabe à nós
decidir a sua importância (...) É menos importante seguir os argumentos de Pascal do que se
relacionar com as suas emoções ao elaborar estes argumentos”184. Por outro lado, em diversos
momentos um personagem ignora algo sobre o mundo representado, pretexto para que outro
personagem ofereça uma informação histórica, que se dirige mais ao espectador do que à
personagem.
Ao filmar a vida de filósofos – Socrate (1971), Blaise Pascal (1972), Augustino
d’Ippona (1972), Cartesius (1974), Il messia (1975) –, Rossellini põe em cena não apenas o
problema de reencenar acontecimentos passados, mas de como criar uma forma
cinematográfica que faça justiça ao pensamento destes filósofos. Como sintetiza Rancière, a
grande questão destes filme é: “como representar o corpo do filósofo enquanto suporte de
certos enunciados e sujeito interveniente num determinado tempo?”185, tendo em vista que
"querer dar corpo no ecrã à palavra do filósofo é correr o risco de, ao invés, ver a palavra e a
imagem anularem-se mutuamente”186. Rossellini, assim, interessa-se menos pelo pensamento
dos filósofos do que o modo como este pensamento surge e é mobilizado em suas vidas,
mostra que a verdadeira filosofia destes indivíduos endereçava-se aos seus modos de viver,
como ocupavam o mundo no interior de seu tempo, como se relacionavam com os outros, e
como as condições das épocas em que viveram possibilitaram o surgimento de tais
pensamentos. Se o pensamentos destes filósofos está presente nos filmes, as palavras surgem
apenas de maneira acessória, contornando o risco “de as ideias serem contaminadas pela
183 DELEUZE, 2007. p. 293 184 GALLAGHER, 2008. 185 RANCIÈRE, Jacques. Os intervalos do cinema. Lisboa: Orfeu Negro, 2012. p.117. 186 Ibid. p.114.
63
debilidade dos corpos que lhe dão uma vida sensível; ou de os corpos serem devorados pelo
enunciado das ideias às quais eles emprestam a sua aparência”187.
Rossellini escolhe personagens historicamente determinantes, sujeitos que não apenas
testemunham mas intervém no mundo de suas épocas, mas há diversos momentos, em certo
grau estranhos à narrativa, em que a um anônimo é conferida uma voz que enuncia com
autoridade uma declaração sobre seu tempo. O projeto de Rossellini não está em busca a
realidade, mas em “impor a nossa fantasia sobre a história e fazer uma nova realidade”188. É o
que acontece na sequência de abertura de La prise du pouvoir par Louis XIV, único momento
que ouvimos os serviçais do palácio do rei conversarem em um momento de folga: um deles
diz “O Rei, o Rei. Afinal é um homem como outro qualquer. Na Inglaterra cortaram a cabeça
do rei e não houve nem sequer terramoto ou eclipse”, e outro responde “Não fale assim! Se
não houvesse Rei não haveria palácio, e sem palácio não teríamos trabalho”. Esta afirmação,
no início do filme, da igualdade entre os trabalhadores e o déspota rima com o último plano
do filme, no qual Louis XIV troca de roupa sem ajuda de seus súditos, despe-se da carga
histórica e é visto na maior nudez da sua dimensão humana, pleno em sua mortalidade.
Desconstrói-se toda a dimensão mitológica do rei, desenvolvida exaustivamente ao longo do
filme, assim Rossellini nos mostra Louis XIV na fragilidade de sua intimidade, de seus
pensamentos e seus temores, mostra-nos na duração de um plano a passagem do tempo
histórico ao tempo humano: eis o homem, apesar da história.
A busca de uma “nova realidade” permite que, em determinados momentos, Rossellini
coloque na boca de personagens historicamente determinados palavras que constituem o
pensamento do próprio cineasta e que, apenas em um grau imaginário, poderiam ter sido ditos
pelos personagens. Este entrecruzamento entre história e ficção permite que, como na cena ao
início de La prise du pouvoir par Louis XIV, Rossellini insira comentários pessoais sobre a
história e, frequentemente, comentários sobre a gênese da luta de classes. Mas em diversos
momentos estes comentários descolam-se do tempo e parecem surgir como uma intervenção
do cineasta sobre aquilo que ele nos mostra. No segundo episódio de L’età di Cosimo de
Medice, Alberti diz algo que é a descrição do projeto pedagógico de Rossellini: “Uma pessoa
não pode ser somente um cura, ou somente um acadêmico de textos antigos, ou somente um
escultor, somente um pintor, somente um padre ou um mercador. Cada arte contém partes de
todas as outras, pois a arte da humanidade habita a mesma realidade que o mundo onde todas
as coisas, apesar de parecerem estar separadas, vivem juntas. E somente unidas elas podem 187 Ibid. p.128). 188 GALLAGHER, 2008.
64
ser conhecidas, possuídas, e amadas”. Rossellini cria uma forma cinematográfica na qual a
história e a ficção sobrepõem-se para construir uma “nova realidade” do passado, mas o faz
em respeito a um extremo rigor historiográfico (aquilo que Alberti diz descreve o projeto
pedagógico de Rossellini, mas também condiz com o pensamento de Alberti).
Apesar de estar liberta da homologação de um discurso verdadeiro sobre o passado, o
trabalho de uma ficcionalização do passado, portanto, é uma forma da humanidade tal como
ela é reconciliar-se com a humanidade tal como ela foi. Esta reconciliação é possível através
de propostas de mise en scène que confiram formas cinematográficas à história, e que
transmitam uma experiência sensível do passado, ao fazer a passagem do tempo histórico ao
tempo humano (ainda que submetido aos parâmetros da temporalidade contemporânea ao
cineasta), pela figuração do espaço como um espaço da experiência humana, e pela
identificação de corpos históricos com corpos humanos.
3.4. Repartir o tempo, repatriar no tempo: Danièle Huillet e Jean-Marie Straub
Na Antiguidade as especulações “sobre a natureza da história no sentido de um
progresso histórico e sobre o destino histórico das nações, suas ascensões e quedas” levaram
que o movimento da história fosse identificado a um movimento circular, pois o movimento
da história era “construído à imagem da vida biológica”189. A narratividade da história, quanto
à sucessão cronológica e à linearidade, também supõe uma identidade entre história e
natureza, de modo que o tempo histórico seja apreendido através de uma espacialização do
tempo (circularidade, linearidade, época, século, era, etc.). Segundo Kosselleck foi a tríade da
Antiguidade, Idade Média, e Modernidade que instaurou a sucessão cronológica como modelo
de representação do tempo através até hoje vigente190.
Neste modelo, onde a irrepresentável duração do tempo é metonimicamente
apreendida sob a sua espacialização, a noção de sucessão faz com que cada novo espaço de
tempo suprima aquele que o antecede. Mas pode-se pôr em questão, como Foucault, se a
história não seria “o nó inextrincável de tempos diferentes, que lhe são estranhos e que são
heterogêneos uns em relação aos outros"191. Um modelo que evidenciaria esta
heterogeneidade do tempo pode ser suposto no cinema, na qual categorias a-históricas são
189 ARENDT, 1961. p. 43. 190 KOSELLECK, 2002. p. 8 191 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.510
65
articuladas em relação a um objeto historicamente determinado. Não é possível, por exemplo,
considerar que o realismo seja uma categoria historicamente determinada sem enfrentar
vigorosas objeções, cada tempo possui não apenas uma forma particular de representar o real,
mas um conceito particular de realidade. O realismo na arte é transversal ao conceito de
progressão e sucessão do tempo, que a Vênus de Willendorf não seja considerada “realista” é
ignorar as formas de representação da realidade próprias à humanidade do paleolítico. As
noções de estilo em arte retroativamente reorganizam o discurso de um tempo sobre formas
dos tempos que o antecedem. Kosselleck propõe que é preciso “aprender a descobrir a
simultaneidade do não-simultâneo em nossa história”192, pois
“todas as dimensões temporais estão sempre entrecruzadas, e seria contradizer a experiência se definíssemos o ‘presente’ como, por exemplo, um daqueles momentos acumulados do passado rumo ao futuro ou, contrariamente, que escorre como pontos intangíveis da transição do futuro ao passado. De modo puramente retórico, toda a história poderia ser definida como um presente permanente no qual o passado e o futuro estão contidos, ou como o contínuo entrecruzamento do passado e do futuro que faz qualquer presente constantemente desaparecer”.193
É o que encontramos extensivamente na obra de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub: se
desde a Antiguidade as noções da história solicitam a construção de um modelo de
espacialização do tempo, seus filmes propõem um modelo de espacialização do tempo que
não supõe uma sucessão cronológica, trata-se de uma representação do tempo a partir da
estratificação de tempos heterogéneos, como camadas geológicas umas sobre as outras. Ao
contrário das ficções históricas analisadas até aqui, os filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie
Straub não figuram um espaço desaparecido, nem propõem uma mise en scène que apresente
o passado enquanto passado ou o passado como se fosse presente, mas uma estratificação do
espaço-tempo que propõe uma temporalidade caótica. Deleuze dirá que nestes filmes “a
história é inseparável da terra, a luta de classes ocorre debaixo da terra, e, se queremos
apreender um acontecimento, não devemos mostrá-lo, não devemos passar ao longo do
acontecimento, mas entranhar-nos nele, passar por todas as camadas geológicas que são sua
história interna”194.
Kosselleck descreve uma pintura de Albrecht Altdorfer que ajuda a entender o princípio
da forma cinematográfica da história propostos por Danièle Huillet e Jean-Marie Straub,
192 KOSELLECK, op. cit. p. 8 193 Ibid. p. 30 194 DELEUZE, 2007. p. 302
66
refere-se a um panorama da Batalha de Isso, na qual Alexandre, o Grande derrota os Persas no
século IV a.C. Em primeiro lugar, aparecem inscritos nas bandeiras dos exércitos o balanço
final da guerra em números de combatentes, mortos e prisioneiros, mesmo que estes
combatentes apareçam ainda vivos na cena da batalha, “trata-se de um sabido anacronismo,
do qual Altdorfer lançou mão no intuito de tornar a representação da batalha manifestamente
fiel”195. Em oposição à representação da totalidade por uma de suas partes, como na noção do
“instante pregnante”, Altdorfer opta por sobrepor camadas heterogéneas dos tempos que
constituem a totalidade do acontecimento. Em segundo lugar, “a maioria dos persas
assemelha-se, dos pés ao turbante, aos turcos, que, no mesmo ano de composição do quadro
(1529), sitiaram Viena, sem resultado. Em outras palavras, Altdorfer captou um
acontecimento histórico que era, ao mesmo tempo, contemporâneo para ele”196.
De modo semelhante, nos filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, na
profundidade da imagem atual persistem resíduos de tempos heterogéneos, sendo que o
elemento mais evidente desta conceção de tempo é a coexistência de ruínas como resistência
do passado no presente, mas isto também toma forma nos corpos, nos gestos e nas palavras.
A arqueologia do tempo em seus filmes subtrai da história a oposição entre o que é lembrado
e o que é esquecido, entre é que é narrado e o que é descrito, entre o que é de importância
historiográfica e o que não é, para produzir um modelo da história como uma espiral, no qual
sob cada ponto do tempo jazem inúmeros outros que resistem em repouso. O trabalho do
cineasta é, precisamente, perturbar este descanso dos tempos subterrâneos para confrontá-los
com a superfície da atualidade, como faz Altdorfer em seu quadro.
Neste ponto é evidente que a “simultaneidade do não-simultâneo” nos é mostrada
através do anacronismo, que é para o historiador o 'pecado irremissível', aquilo que deve ser
evitado à todo custo dentro da historiografia. Jacques Rancière esclarece que o anacronismo
não se trata da confusão das datas, mas da confusão das épocas, não é uma cronologia
defeituosa, "o anacrônico é o que não pertence ou não convém ao tempo em que é situado"197.
A homologação de um discurso verdadeiro sobre o passado depende, portanto, da operação
historiográfica de resgate do tempo e, a partir desta asserção, o anacronismo estabelece-se
como uma ameaça a verosimilhança da narrativa. Em relação aos filmes de Danièle Huillet e
Jean-Marie Straub, no entanto, não se pode perder de vista que o anacronismo não diz respeito
195 KOSELLECK, 2006. p.22 196 Ibid. 197 RANCIÈRE, 2011. p.42.
67
a um abalo do verosímil de um universo diegético, pois em seus filmes o tempo é uma
profundidade e não uma linha cronológica.
Em oposição ao sentido negativo do conceito, Georges Didi-Huberman extrai do
"anacronismo" a sua "virtude dialética", pois o anacronismo parece ser "interno aos próprios
objetos dos quais tentamos fazer história"198. O que Didi-Huberman faz é introduzir o
anacronismo como princípio de montagem do tempo e não como equívoco na ordem do
tempo histórico. Ele distingue dois anacronismos: o primeiro diz respeito à "ficção que
autoriza todas as discordâncias na ordem temporal”199, e que propõe um encerramento a
história ('la fermeture à l'histoire'); enquanto o segundo diz respeito à "complexificação dos
modelos de tempo, do gênero das montagens anacrônicas introduzidas por Marcel Proust e
James Joyce (...) que supõe uma fenomenologia não trivial do tempo humano"200, e permite
uma abertura da história ('une ouverture de l'histoire').
Seria trivial pensar os filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub sob a primeira
definição de anacronismo, ou seja, como uma “cronologia defeituosa”. Seria, sobretudo, uma
questão mal colocada, pois, ao contrário das ficções históricas analisadas até aqui, seus filmes
não buscam uma mise en scène dos acontecimentos passados, mas sim uma mise en scène que
possibilite uma abertura da história, uma mise en scène de um tempo selvagem. O que é
proposto não é um modo de visibilidade do passado ou de legibilidade de um saber histórico,
não se trata de representar um tempo passado, mas de mostrar a perturbação dos tempos
selvagens na superfície atual. As formas cinematográficas da história de Straub-Huillet
propõem modos de rasgar o tempo, fatiá-lo em camadas para encontrar a temporalidade não-
domesticado por trás da temporalidade historiográfica. Constrói-se assim um contracampo da
ordem imposta pelo campo historiográfico, trata-se de mostrar que tempos heterogéneos
resistem na superfície da atualidade como as ervas que irrompem do asfalto e nos lembram
que, atrás da ilusão de uma suposta ordem, a civilização é uma ficção construída pela
humanidade para acreditar que ela tem o domínio sobre a natureza.
Em contraste à conotação negativa conferida pela historiografia ao conceito de
anacronismo, Rancière propõe um modo de conexão chamado anacronia: um acontecimento,
uma palavra, uma sequência significante que toma "o tempo de frente para trás" e que faz
"circular o sentido de uma maneira que escapa a toda contemporaneidade, a toda a identidade
198 DIDI-HUBERMAN, 2009. p.16. 199 Ibid. p.38. 200 Ibid.
68
do tempo com ele mesmo"201. Em seu livro Figures III, Gérard Genette distingue duas
temporalidades: 1. 'tempo da história', ou seja, refere-se à "ordem temporal da sucessão de
eventos dentro da diegese"202; 2. 'tempo da narrativa', refere-se à "ordem pseudo-temporal da
disposição destes eventos na narrativa"203. Genette trata por anacronia narrativa as "diferentes
formas de discordância entre a ordem da história e a da narrativa"204, o que deixa implícita a
existência, hipotética, de "uma espécie de grau zero que seria a perfeita coincidência temporal
entre a narrativa e a história"205. A anacronia é, para Genette, uma qualidade da disposição
dos acontecimentos em uma narrativa.
O anacronismo será aqui delimitado quanto ao que diz respeito à verosimilhança dentro
da época do universo diegético: pode surgir na ficção histórica como cronologia defeituosa
(que alimenta toda uma "literatura" que policia os erros históricos), pode ser involuntário ou
deliberado, à serviço do desenvolvimento da narrativa fílmica ou utilizado como recurso
estético (como nos westerns spaghetti). A anacronia, por sua vez, pertence ao arranjo formal
de um filme, é um modo de conexão do tempo que opera por montagem. Uma anacronia pode
ser sinônimo de um 'paralelismo temporal', no qual vamos de uma época à outra, ou pode ser
uma montagem interna ao enquadramento, como Danièle Huillet e Jean-Marie Straub fazem
frequentemente em seus filmes, criando sentido através de camadas de tempo dentro de uma
mesma unidade temporal, o plano. É evidente que os dois conceitos se atravessam, um
anacronismo pode aparecer como solução para um problema dramatúrgico (e assim, agir
sobre o arranjo formal do filme), a anacronia, por sua vez, muitas vezes é anacrônica, e
ameaça a verosimilhança do relato (interfere na verosimilhança do universo diegético).
Foi observado, por Fréderique Fleck, que o conceito de anacronia surge como
neologismo de anacronismo, substituindo o sufixo “-ismo” pelo sufixo “-ia”, que serve para
designar tanto estados patológicos (anorexia, amnésia, insónia), como uma qualidade moral
(modéstia, elegância, inocência)206. Mas o sufixo “-ia” também participa, nas línguas latinas,
na formação de topônimos com designação de "terra dos _"207 (e.g., Itália, Ibéria, Grécia). A
anacronia remove os objetos do fluxo de uma sucessão cronológica e os remonta a uma 201 RANCIÈRE, 2011. p. 49. 202 GENETTE, Gérard. Figures III. Paris: Le Seuil, 1972. p.78. 203 Ibid. 204 Ibid. p.79. 205 Ibid. 206 FLECK, Frédérique. Anachroni(sm)e - Mise au point sur les notions d'anachronisme et d'anachronie. In: Revue Fabula – La recherche en littérature, outubro de 2011. Disponível em: <http://www.fabula.org/atelier.php?Anachronisme_et_anachronie>. Acesso em: 12 de abril de 2015. 207 COUTO, Hildo Honrório do. Ecolinguística - estudo das relações entre língua e meio-ambiente. Brasília: Thesaurus, 2007. p. 177.
69
mesma “pátria” no tempo, um mesmo tempo que oblitera a cronologia historiográfica, para
tornar possível não apenas uma visibilidade dos acontecimentos do passado, mas uma
legibilidade e cognoscibilidade do tempo como estratificação de tempos heterogéneos. A
anacronia é uma ruptura que torna possível que o ver se articule com o saber, e que a
legibilidade do passado se articule com a sua visibilidade. Se o anacronismo diz respeito a
uma incoerência do verosímil dentro do universo diegético, a anacronia diz respeito a uma
qualidade do tempo dentro do mundo “real”, o entrecruzamento de tempos heterogêneos que
constitui a experiência presente.
O que vemos nos filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub é este tempo repartido
e repatriado em um espaço de tempo comum, onde tempos heterogéneos partilham uma
mesma experiência presente. Como em Fortini Cani (1976), filme no qual, segundo Daney,
“a câmara percorre muitas vezes os campos italianos onde, durante a Segunda Guerra, as
populações civis foram massacradas. O conteúdo do plano, strictu sensu, é portanto o que se
esconde: os cadáveres sob a terra”208. Ao espectador não é oferecido nenhum conhecimento
sobre o passado, mas a sensação do presente e da imagem cinematográfica como um túmulo
dos tempos subjacentes, os espectadores são “intimados a saber ou a se calar em nome do
respeito aos mortos – e sobretudo àqueles mortos. Coalescência impossível entre o percebido
e o sabido, o conteúdo de uma percepção e a percepção de um saber”209.
É o que faz com que Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer ou Peut-être
qu’un jour Rome se permettra de choisir à son tour (1969), adaptação da tragédia “Othon”, de
Pierre Corneiile, inicie com uma panorâmica sobre a cidade de Roma que dispõe em um
mesmo plano (temporal e cinematográfico) o capitólio romano, os quartieri popolari, uma
árvore no alto de uma colina, e uma caverna onde os comunistas escondiam suas armas. Este
plano inicial opera por estratificação de tempos heterogêneos, anacronia porque dispõe
deliberadamente, em um mesmo plano, objetos que apontam para temporalidades distintas,
estabelece uma conexão destas temporalidades de modo a propor, na abertura do filme, uma
abertura do tempo. Não há, no entanto, nenhum anacronismo pois estas camadas de tempo
não desconstroem a verosimilhança da narrativa, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub filmam
os tempos que resistem no presente. Eis a importância em subir a câmara para enquadrar as
árvores e as pedras, o plano aponta para a presença de objetos que remontam à tempos
históricos distintos que, por sua vez, coexistem com a dimensão a-histórica da natureza. Um
plano em um filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub nos mostra, como diz Deleuze, "o 208 DANEY, 2007. p.173. 209 Ibid.
70
fundamento oculto do tempo, quer dizer, sua diferenciação em dois jorros, o dos presentes
que passam e o dos passados que se conservam"210.
No segundo plano do filme vemos Othon e Albin a observar Roma desde um ponto
alto, um enquadramento cuidadoso deixa ao fundo, entre os dois personagens, apenas
edifícios antigos e árvores altas que, salvo ao escrutínio de algum historiador, pertencem à
mesma época que a indumentária das figuras em primeiro plano (tempo diegético: ano 69
d.C.). Nada na imagem é, para o espectador, imediatamente anacrônico, mas no som
identificamos a primeira montagem no tempo: da Roma que Othon observa emerge o intenso
ruído dos automóveis, das buzinas, da vida urbana de 1969, ruído que continua quando as
personagens começam a falar o texto, escrito por Corneille em 1664, que remonta à Roma
imperial de 69 d.C. (mas cujo primeiro relato, por Tácito, data do ano 100 d.C.), montagem
simultânea de tempos não-simultâneos.
No terceiro plano do filme, novamente, não há anacronismos na imagem, desta vez o
tempo representado é o de uma vista da cidade de Roma em 1969, mas na ordenação do filme
este plano pode ser considerado como o ponto de vista de Othon, que contempla Roma.
Primeira anacronia por montagem dos planos, ou seja, primeira anacronia da ordem da
imagem mas que acontece no intervalo entre um plano e outro. Na pista sonora temos ainda a
anacronia que atravessa todo o filme, exceto o primeiro plano, do tempo diegético (ano 69)
interpelado pelo tempo das filmagens (ano 1969) e pelo texto da tragédia de Corneille (ano
1664). A heterogeneidade é salientada pelo modo como o texto é pronunciado por atores de
diferentes nacionalidades, assim preserva-se menos a significação das palavras e acentua-se
mais o ritmo dos versos alexandrinos, criando uma fala polifônica que, como observou Agnès
Perrais, faz do filme “uma experiência de escuta”211.
O quarto plano do filme, enfim, é o momento em que a composição das anacronias
alcança seu ponto de maior estratificação dos tempos, vemos Othon e Albin em primeiro
plano e, enquadrada ao fundo, a paisagem urbana: os prédios, as máquinas, os postes de
eletricidade. Há a disposição em um mesmo quadro de todos os tempos que compõem o
filme, montagem do tempo por camadas no interior de uma mesma unidade de tempo fílmico.
Da perspetiva do tempo diegético temos a anacronia no espaço, que liga a Roma de 69 à
210 DELEUZE, 2007. p.121. 211 PERRAIS, Agnès. Política del texto en el cine: Othon. In: Revista Lumière, especial “Internacional Straub”, 2011. Disponível em: <http://www.elumiere.net/exclusivo_web/internacional_straub/textos/othon_parrais.php>. Acesso em: 05 de maio de 2015.
71
Roma de 1969, e a anacronia na fala, que liga os eventos históricos de 69 aos versos
alexandrinos da França do século XVII.
Mas Straub diz que “um filme histórico não existe, não pode ser feito, o que se pode
fazer é uma reflexão sobre o passado” e relembra o que Jacques Rivette disse sobre o filme
Intolerance (1916), de D.W. Griffith: “é um documento, não sobre a Babilônia, mas sobre a
época em que foi rodado”212. O que Danièle Huillet e Jean-Marie Straub fazem é remover os
objetos da imobilidade do tempo historiográfico para os repatriar no vir-a-ser de um tempo
não regido pela linearidade causal. Danièle Huillet e Jean-Marie Straub fazem um filme sobre
a resistência do texto ao tempo, ao mesmo tempo em que atestam que, como uma ruína, o
texto só conserva resíduos de sua forma primordial.
Pode-se pôr em questão que, ao dispor em um mesmo enquadramento, no qual o
espaço do universo diegético confronta-se com o espaço real, ou em uma mesma duração
sonora, na qual a palavra confronta-se com os sons do espaço, que a anacronia nos filmes de
Danièle Huillet e Jean-Marie Straub são menos montagens do que colagens de tempos
heterógenos, uma vez que o tempo ganha uma profundidade pantanosa e a anacronia não é
percebida de forma extensiva na serialização de um plano ao outro, mas na intensidade de
uma mesma duração. Aumont diz que diante de uma colagem “o próprio olhar não lida mais
com intervalos, com partes ocas entre elementos da obra, e sim com uma espécie de cintilação
através da qual essas superfícies estilhaçadas ameaçam a unidade do olhar”213, algo
semelhante pode ser percebido em Les yeux ne veulent pas..., nos quais a colagem das
camadas de tempo não é percebida como inverosímil, pelo contrário, a revelação de uma
realidade composta pela sobreposição de tempos heterogêneos obriga o espectador a
apreender algo daquilo que lhe é revelado.
212HUILLET, Danièle; STRAUB, Jean-Marie. Entrevista com Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. In: Revista Lumière, especial “Internacional Straub”, 2011. Disponível em: <http://www.elumiere.net/exclusivo_web/internacional_straub/textos/othon_entrevista.php>. Acesso em: 02 de maio de 2015. 213 AUMONT, 2004. p. 100.
72
CONCLUSÃO
No fim de sua vida, Max Jacob imaginou um mundo como um duplo infinito, “um
mundo dividido sobre duas superfícies sensíveis, de um lado o cinema, do outro a história, no
centro, sobre a terra, um espelho refletindo um sobre o outro, a morte e seus milhões de
fantasmas”214. Um campo historiográfico, um contracampo cinematográfico, um jogo de
espelhos. O conceito de campo no cinema é, grosseiramente, aquilo que é mostrado pela
imagem, “é a porção de espaço tridimensional que é percebida a cada instante na imagem
fílmica”215. O campo seria, por analogia, a historiografia, aquilo que é revelado através do
trabalho dos historiadores e que constitui o campo do saber histórico. O contracampo, por sua
vez, não é apenas o fora-de-campo que transborda pelas bordas da imagem, não é apenas o
conjunto de elementos que compõe o universo diegético mas não existem no interior da
imagem e estão “imaginariamente ligados ao campo, por um vínculo sonoro, narrativo e até
mesmo visual”216: o contracampo é “uma figura de decupagem que supõe uma alternância”217
entre dois planos, na qual “o ponto de vista adotado no contracampo é inverso daquele
adotado no plano precedente e a figura formada dos dois planos sucessivos é chamada de
campo-contracampo”218.
A ficção histórica permite um modo de visibilidade do passado povoado pela
humanidade tomada no frescor da experiência cotidiana. Sobre o cinema Agambem dirá que
"uma sociedade que perdeu seus gestos procura reapropriar-se daquilo que perdeu e, ao
mesmo tempo, registar a perda”219, é o que faz a ficção histórica ao animar na tela os corpos
reais, que proporcionam um modo de visibilidade aos corpos ausentes e inacessíveis, assim “o
cinema reconduz as imagens para a pátria do gesto”220. Em contiguidade ao campo
historiográfico, a ficção histórica restitui um novo uso aos gestos do passado como realidade
fenoménica apresentada na duração de um tempo humano, algo que o texto historiográfico só
pode esboçar uma pálida figura.
Mas não basta fazer do cinema uma memória, um túmulo de corpos ausentes destinado
214 BAECQUE, 2008. p.49 215 AUMONT; MARIE, 2003. p.42. 216 Ibid. p.132 217 Ibid. p.61 218 Ibid. p.62 219 AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. In: Artefilosofia, Ouro Preto, n.4, p.9-16, Janeiro de 2008. p.11. 220 Ibid. p.12.
73
aos olhos e aos corações dos espectadores presentes. Como defende Foucault, é preciso “fazer
da história uma contra-memória e de desdobrar consequentemente toda uma outra forma de
tempo"221. Ao longo desta dissertação foram analisadas distintas formas cinematográficas da
história que, através do entrecruzamento entre ficção e história, produzem um contracampo ao
conhecimento historiográfico, um despertar ficcional da história. Jean-Luc Nancy diz que a
ideia de história deve revelar ou produzir a ideia de humanidade, “ou a humanidade como
ideia como a completa forma presente da humanidade”222, é precisamente à humanidade como
ideia que se destina a intencionalidade da ficção histórica. A ficção permite que imprecisões
históricas, como as ficcionais disputas de roleta russa durante a Guerra do Vietnam, em Deer
Hunter (1978), de Michael Chimino, tornem-se um duro comentário sobre a natureza da
guerra. São estas formas que permitem que acontecimentos ou personagens imaginários,
anacronismo e anacronias, possam exprimir o ponto de vista do cineasta sobre a história.
Nesta dissertação foram delineadas quatro tendências de formas cinematográficas da
história: a primeira, cuja mise en scène recorre a um realismo figurativo, evidenciada nos
filmes de Éric Rohmer, tende à acentuação da alteridade entre o espaço atual e o espaço da
época representada, através de uma mise en scène que constrói um distanciamento entre a
experiência atual e a do passado, fazendo com que o passado seja racionalizado como tal,
como um mundo desaparecido. O procedimento de Rohmer consiste em criar uma forma
cinematográfica que respeite a perspectiva simbólica da época do universo diegético, um
dupla impurificação entre o cinema e a pintura, isto é, uma forma cinematográfica que figure
o espaço tal como ele seria figurado pelos contemporâneos da época visada. Trata-se de
buscar uma forma cinematográfica que surja do ventre do tempo, atenuando assim as marcas
da perspectiva temporal na qual o filme é realizado.
A segunda tendência, analisada nos filmes de Clint Eastwood, pode ser identificada com
o cinema clássico, e consiste em evidenciar a perspectiva temporal do cineasta para propor um
modo em que o passado seja percebido como se fosse presente. A mise en scène é
caracterizada pela construção de um espaço objetivado que produz a ilusão de imersão do
espectador como sujeito dentro do espaço figurado, pela manutenção da unidade da ação para
criar a sensação de uma duração contínua apesar da multiplicidade dos pontos de vista, e pelo
ocultamento ou abrandamento das marcas da instância narrativa. Trata-se de, a partir do atual,
buscar uma forma cinematográfica para a experiência do passado empírico.
221 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia, a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p.33 222 NANCY, 1993. p.149.
74
A terceira tendência, de Roberto Rossellini, restitui o tempo humano subtraído do tempo
historiográfico ao produzir uma experiência sensível do passado, mas o faz através da
introdução de uma temporalidade que possa ser identificada como tal pelo espectador
contemporâneo. Consiste em uma mise en scène que transita constantemente entre as duas
tendências anteriores: propõe um espaço objetivado e uma unidade da ação, o mundo como
evidência em uma espécie de “vir a ser”; ao mesmo tempo em que situa o espectador fora do
espaço cênico, para que o acontecimento possa ser observado do exterior, e assim possa surgir
uma revelação de uma verdade histórica que o espectador não participa, mas testemunha.
Rossellini ab-roga o “eu”, sugerido pela ilusão de que o espectador está dentro da
representação como sujeito, em nome de um “nós”, no qual o espectador presente e a
humanidade ausente partilham uma experiência comum, através da abertura de uma nova
realidade que comporta um novo espaçamento de tempo entre passado, presente e futuro.
Por fim, a tendência dos filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, não produz um
modo de visibilidade do passado, mas sim anacronias, formas cinematográficas de repartir o
tempo em camadas para encontrar, na profundidade do tempo, uma temporalidade selvagem,
na qual coexistem diversos tempos na superfície da atualidade. Não se trata de um
enraizamento do espectador no presente, ao assegurar a perspetiva temporal, ou em
ilusoriamente suprimir o intervalo entre o presente e o passado, mas em revelar para o
espectador, na duração de um mesmo plano (cinematográfico), que o conceito de tempo
implicado pela historiografia ofusca a heterogeneidade dos tempos que coexistem em um
mesmo plano (temporal).
A ficção histórica como contracampo da historiografia não pretende revogar a
autoridade historiográfica em homologar de um discurso verdadeiro sobre o passado, mas sim
interpelar este discurso com um duplo que permita a passagem do tempo histórico ao tempo
humano, ao fazer uma síntese do passado através de uma narrativa ficcional que crie uma
experiência sensível do passado e, assim, uma identidade entre a existência daqueles que
viveram em outras época e a experiência cotidiana do indivíduo contemporâneo ao filme. O
cinema como contracampo da história acrescenta espaços ao campo historiográfico, espaços
contíguos e que não anulam o campo do saber da historiografia. Trata-se da construção de
uma contra-memória da história, que não a substitui, mas recorre à alternância de pontos de
vista no interior do discurso historiográfico. Pois de qualquer aspecto da realidade há sempre
um outro viés a partir do qual ele pode ser observado e, assim, podem ser reveladas outras
faces de sua superfície caleidoscópica.
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Giovanna d’Arco al rogo (1954), de Roberto Rossellini
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Joan of Arc (1948), de Victor Fleming
Joan the woman (1916), de Cecil B. DeMille
L’Anglaise et le Duc (2001), de Éric Rohmer
L’età di Cosimo de Medici (1972), de Roberto Rossellini
La commune (Paris, 1871), de Peter Watkins
La Marseillaise (1938), de Jean Renoir
La passion de Jeanne D’Arc (1928), de Carl Th. Dreyer
La prise du pouvoir par Louis XIV (1966)
Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer ou Peut-être qu’un jour Rome se permettra de
choisir à son tour (1969), de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub
Letters from Iwo Jima (2006), de Clint Eastwood
Il generale Della Rovere (1959), de Roberto Rossellini
Il messia (1975), de Roberto Rossellini
Ne touchez pas la hache (2007), de Jacques Rivette
Non, ou a vã glória de mandar (1990), de Manoel de Oliveira
Perceval le Gallois (1978), de Éric Rohmer
Procès de Jeanne D’Arc (1962), de Robert Bresson
Sergeant Rutledge (1960), de John Ford
Stromboli (1950), de Roberto Rossellini
The Artist (2001), de Michel Hazanavicius
The man who shot Liberty Valance (1962), de John Ford