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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES O DESPERTAR FICCIONAL DA HISTÓRIA: o cinema como contracampo da historiografia. Tomás Mancino von der Osten Dissertação Mestrado em Arte Multimédia Especialização em Audiovisuais Dissertação orientada pela Prof a. Doutora Susana de Sousa Dias 2016

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

O DESPERTAR FICCIONAL DA HISTÓRIA:

o cinema como contracampo da historiografia.

Tomás Mancino von der Osten

Dissertação

Mestrado em Arte Multimédia

Especialização em Audiovisuais

Dissertação orientada pela Prof a. Doutora Susana de Sousa Dias

2016

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DECLARAÇÂO DE AUTORIA

Eu, Tomás Mancino von der Osten, declaro que a presente dissertação intitulada “O despertar

ficcional da história: o cinema como contracampo da historiografia”, é o resultado da minha

investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão

devidamente mencionadas na bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como

todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as

normas académicas.

O Candidato

_________________

Lisboa, 25 de Outubro de 2016.

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RESUMO

Esta dissertação é dividida em três partes que descrevem um itinerário teórico: em um

primeiro momento é proposta uma relação entre cinema e historiografia, para em seguida

abordar as especificidades da encenação do passado no cinema, e por último, a análise de

ficções históricas que revelam distintas formas cinematográficas da história. No primeiro

capítulo são comparadas as práticas do trabalho historiográfico com o trabalho de realização

de um ficção histórica no cinema, medindo a capacidade do cinema em transmitir

conhecimento sobre o passado. No segundo capítulo são investigados os modos de

visibilidade do passado a partir da questão: qual é o real da ficção histórica? O enfoque

dedica-se sobre a problemática de encenar o passado e de entrecruzar o acontecimento

histórico com uma narrativa ficcional. No terceiro capítulo foram analisadas quatro tendências

de formas cinematográficas da história, em filmes de Éric Rohmer, de Clint Eastwood, de

Roberto Rossellini, e de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub.

Palavras-Chave:

Ficção; Historiografia; Mise en scène;

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ABSTRACT

This thesis is divided in three parts that describe an theoretical itinerary: at first it is proposed

a relation between film and historiography, then it is addressed the specificities of reenacting

past events in a film, and finally, historical fictions that reveal distinct cinematic forms of

history are analyzed. In the first chapter historiographical practices are compared with the

making of an historical fiction, measuring film’s capacity to transmit knowledge about the

past. Modes of visibility of the past are investigated in the second chapter, departing from the

question: what is the “real” of historical fiction? The focus is the problem of reenacting the

past and portraying an historical event within a fictional narrative. The third chapter presents

four trends of cinematic forms of history, in films of Eric Rohmer, Clint Eastwood, Roberto

Rossellini, and Danièle Huillet and Jean-Marie Straub.

Key Words:

Fiction, Historiography, Mise en scène;

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AGRADECIMENTOS Agradeço à Sandra Mancino, Roberto Antonio von der Osten, e Marcela Mancino por serem, muito além de minha família, meus ternos amigos. Agradeço à Francisca Sousa por toda a companhia e por todo o carinho. Agradeço à Leonardo Mouramateus e Mauro Soares pelas conversas e pela vida que partilhamos em Lisboa. Agradeço à Susana de Sousa Dias pelas aulas estimulantes nas quais esta dissertação se originou, por saber diagnosticar os pontos problemáticos do texto e guiar-me na direção de como os solucionar. Agradeço à Cinemateca Portuguesa por ser um espaço exemplar de estímulo ao pensamento e à cinefilia, cujas salas e biblioteca frequentei diariamente durante a redação desta dissertação. Dedico esta dissertação à memória da minha avó Avenir Batista Correia.

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ÍNDICE GERAL

Resumo/Palavras-chave ..................................................................................................... ii

Abstract/Key-words ........................................................................................................... iii

Agradecimentos .................................................................................................................. iv

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 1

1. DUPLO INFINITO: O JOGO DE ESPELHOS ENTRE O CINEMA E A

HISTORIOGRAFIA. ............................................................................................................... 3

1.1. A ficção histórica. .......................................................................................................... 3

1.2. Perspetiva temporal. ...................................................................................................... 6

1.3. Construção dramatúrgica ............................................................................................. 9

1.4. O cineasta como historiador. ...................................................................................... 13

2. A MISE EN SCÈNE NA FICÇÃO HISTÓRICA ............................................................ 20

2.1. O real da ficção histórica ............................................................................................ 21

2.2. O efeito de época .......................................................................................................... 26

2.3. Entrecruzamento entre história e ficção ................................................................... 30

2.4. A encenação do passado .............................................................................................. 34

3. FORMAS CINEMATOGRÁFICAS DA HISTÓRIA ..................................................... 37

3.1. O espaço figurativo nas ficções históricas de Éric Rohmer ..................................... 37

3.2. O passado presente: filmes de guerra de Clint Eastwood ........................................ 47

3.3. Pedagogia da restituição: as obras didáticas de Roberto Rossellini ....................... 54

3.4. Repartir o tempo, repatriar no tempo: Danièle Huillet e Jean-Marie Straub ....... 64

CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 72

Bibliografia: ............................................................................................................................ 75

Filmes citados: ......................................................................................................................... 79

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INTRODUÇÃO

A origem desta investigação teórica remonta às objeções enfrentadas durante a escrita

do guião de uma ficção histórica. Em 2015 fui contemplado por um fundo brasileiro para o

desenvolver um guião de uma longa-metragem de ficção intitulada Continente. A narrativa do

filme é localizada nas beiras do rio Tibagi (no Paraná, sul do Brasil), no contexto da retomada

dos garimpos de diamante nos anos 1930, onde milhares de homens de todo o Brasil rumaram

com esperanças de enriquecer. Ao longo da pesquisa histórica e início da escrita do guião

deparei-me com questões que motivaram-me a dar início a esta dissertação. Os três capítulos,

que compõem esta dissertação, constroem o itinerário das reflexões que guiaram-me à

conclusão do guião e à proposta de mise en scène sob a qual o filme será realizado.

No primeiro capítulo são comparadas as práticas do trabalho historiográfico com o

trabalho de realização de um ficção histórica no cinema, de modo a encontrar pontos de

diálogo e de divergência entre as duas práticas, e aventar os limites em que a ficção histórica

pode transmitir conhecimento sobre o passado ao fazer da ficção um contracampo do

conhecimento historiográfico. O enfoque teórico, para tanto, exigiu uma abordagem

multidisciplinar através da consulta de autores da teoria cinematográfica e da filosofia da

história. Após identificar como atributos epistemológicos e discursivos da historiografia

constrangem a construção dramatúrgica de uma ficção histórica, foram postas em questão: 1.

a capacidade de uma ficção em transmitir conhecimento sobre o passado através de

procedimentos narrativos e ficcionais; 2. a subordinação da objetividade do discurso sobre o

passado ao ponto de vista do cineasta, que ao fazer da síntese do passado impõe aos

acontecimentos uma significação subjetiva que exprime uma declaração pessoal sobre a

história.

O segundo capítulo orienta-se pela questão “qual é o real da ficção histórica?” para

investigar, sob a aporia da impossibilidade de restaurar o passado, quais formas

cinematográficas são criadas pelos cineastas para permitir um modo de visibilidade ao

passado, ou seja, como cada cineasta exprime seu ponto de vista sobre a história a partir de

uma proposta de mise en scène particular. Para esse fim foi proposto o conceito de efeito de

época, composto pelo conjunto de efeitos de real organizados em uma mise en scène, de

modo a assegurar o entrecruzamento entre ficção e história como uma relação irredutível da

ficção histórica diante do real.

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No último capítulo foram analisadas quatro grandes tendências de mise en scène em

ficções históricas: reconstituir o passado a partir do espaço figurativo da época, criando uma

distância entre o tempo do espectador e o tempo passado; apresentar o passado como se fosse

presente, através da construção do espaço a partir das categorias contemporâneas à realização

do filme, criando a ilusão do espectador estar implicado no espaço representado; a terceira

tendência é a síntese das tendências anteriores, ao apresentar os acontecimentos passados

como se eles acontecessem pela primeira vez, preserva-se a unidade do tempo da ação, mas

simultaneamente propõe um distanciamento do espectador, que não é implicado ilusoriamente

no espaço, fazendo do espectador uma testemunha dos acontecimentos históricos; por último,

práticas de mise en scène que utilizam anacronias para confrontar o passado quanto a sua

persistência no presente. Para tanto foram analisados filmes de Éric Rohmer, Clint Eastwood,

Roberto Rossellini, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, relacionando formas

cinematográficas da história com as práticas analisadas no primeiro capítulo.

Para “ficcionalizar o passado” é preciso percorrer trajetos de destinos incertos, ao

animar na tela um mundo desaparecido corre-se o risco de reduzir a ficção apenas à

transmissão minuciosa de informações sobre o passado, ou em fazer de uma época passada

apenas o décor de uma narrativa ficcional. O principal objetivo deste trabalho é analisar

formas cinematográficas da história nas quais, através de escolhas de mise en scène, um

cineasta organiza um modo visibilidade do passado que exprime um ponto de vista sobre a

história e faz surgir no cinema um contracampo ao conhecimento historiográfico.

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1. DUPLO INFINITO: O JOGO DE ESPELHOS ENTRE O CINEMA E A HISTORIOGRAFIA.

1.1. A ficção histórica.

História, qual é a relação entre um mundo desaparecido, cuja imagem nos é

transmitida através da historiografia, e o mundo atual no qual vivemos? Qual a relação entre a

nossa experiência presente com os modos de vida daqueles habitaram épocas passadas?

Tornar o passado sensível como realidade é uma atribuição que o cinema ocupou, em

distintos aspectos, desde a sua origem. O cinema permitiu um modo de visibilidade do

passado avesso aos predicados epistemológicos da historiografia, e distinto das práticas do

romance e da pintura histórica. Já em 1899 George Mèlies reencenava um acontecimento

recente da história francesa em L’affaire Dreyfus. Entre 1901 e 1906 o francês Lucian

Nonguet, antes de realizar filmes de Max Linder, dedicou-se à diversos curta-metragens que

narravam acontecimentos históricos: desde filmes que reencenavam acontecimentos recentes

(como La Révolution en Russie, de 1906), até filmes animavam na tela épocas distantes (como

L’Épopée napoléonniene, de 1903, e uma série de “quadros animados” sobre a vida de Jesus

Cristo, produzidos pela Pathé e realizados com Ferdinand Zecca em 19031).

Através da ficção histórica são criadas formas cinematográficas que permitem modos

de visibilidade do passado e, através de propostas de mise en scène, restituem ao tempo

histórico o tempo humano que lhe fora subtraído. Mas a capacidade de “reconstituir” o

passado sob formas atuais, sob regimes representativos atuais, a partir de corpos e espaços

atuais, deve ser contraposta a certas objeções. O tempo humano que lhe é restituído não seria

a temporalidade presente e, portanto, distinta da experiência do tempo no passado? A ficção

histórica não seria apenas uma substituição da ausência do passado pela reprodução verosímil

de sua aparência? Afinal, no sentido imposto pela narrativa ficcional não prevalece a

conformidade com as relações humanas do presente, ao invés de resguardar as relações tais

como eram entre os indivíduos da época visada?

A grande questão sobre a ficção histórica concerne o quanto a acreditação de um

mundo desaparecido, cuja visibilidade é autorizada pela reprodução verosímil de sua

aparência e cujo sentido é transmitido por uma narrativa ficcional, é capaz de assegurar um

1 GUIBBERT, Pierre (Org.). Premiers ans du cinéma français. Perpignan: Institut Jean Vigo, 1985. p.22.

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discurso verdadeiro sobre o passado que possa ser contraposto à homologação de uma

declaração sobre o passado, própria da historiografia. Qual é o limite no qual o cinema pode

surgir, efetivamente, como contracampo da historiografia?

Da perspetiva da historiografia o cinema tornou-se um novo objeto, cuja historicidade

revela as condições da sociedade que o tornam possível. Em 1973 Marc Ferro defende a

hipótese de que o filme, documentário ou ficção, é história, pois aquilo que não aconteceu, ou

seja, “as crenças, as intenções, e o imaginário da humanidade são tão história quanto a

história”2. A relação entre cinema e historiografia não se deve, portanto, à capacidade de uma

ficção histórica em criar uma forma cinematográfica que autorize um modo de visibilidade do

passado, mas à reviravolta epistemológica da historiografia que, como bem analisou Michel

Foucault, passou a estender a “historicidade descoberta no homem aos objetos que ele

fabricara"3. O argumento central desta reviravolta era a constatação de que é impossível

"separar, singularmente no caso do cinema estadunidense, estética, economia e política"4. Mas

que na imagem cinematográfica há sempre um “grão de real”5, que resiste à ficção, já fora

constatado pela cinefilia, pelo menos desde os anos 1950, sob o axioma do filme como

documentário de sua filmagem. Antoine de Baecque argumenta que para os críticos da revista

Cahiers du Cinéma e para a Nouvelle Vague francesa “a identificação do cinema com a

história era tão forte que os permitia falar somente sobre o cinema, pois a história estava

nele”6.

É surpreendente, portanto, que a historiografia tenha demorado quase um século em

efetivamente perceber a capacidade do cinema em revelar a história de sua época. As

primeiras propostas de pensar o cinema como arquivo histórico vieram precisamente de

artistas. Em 1898 um fotógrafo polonês, Boleslav Matuszewki, escrevera uma carta ao Le

Figaro propondo um Museu de Arquivos Cinematográficos destinado aos historiadores

futuros7. Por outro lado, em 1935, no mesmo ano em que Germaine Dulac fizera Le Cinéma

au service de l'histoire (panorama sobre a história da Europa entre 1895 e 19308), o

historiador Louis Gottschalk, da Universidade de Chicago, escrevera uma carta para o 2 FERRO, Marc. Le film, une contre-analyse de la société?. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. Ano 28, n. 1, 1973. pp. 109-124; p. 113 3 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.508 4 BAECQUE, Antoine de. L'histoire-caméra. Paris: Gallimard, 2008. p. 379. 5 Cf. BONITZER, Pascal. “Le grain de réel”. in: Décadrages - peinture et cinéma. Paris: Éditions de l’Étoile, 1995. 6 BAECQUE, op. cit. p.25. 7 Ibid. p.23 8 Ibid.

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presidente da Metro-Goldwyn-Mayer exigindo que “nenhum filme de natureza histórica deve

ser oferecido ao público até que um historiador respeitável tenha a oportunidade de criticá-lo

e revisá-lo”9.

Considerar um filme somente como um objeto dentro de um recorte temporal definido

pelo historiador, ou seja, tomar um filme apenas quanto ao que ele revela do presente de sua

época, é ignorar que uma obra de arte é um sintoma que se concatena de modo caótico com o

fluxo de obras e de estases das sociedades que a precederam e a sucederão. Baecque censura

os historiadores que não veem no cinema nada mais que “um dispositivo epistemológico

inédito, jogo de espelhos entre o cinema e um estado da sociedade que o produziu”10. Em

L’histoire-caméra Baecque propõe o conceito de “forma cinematográfica da história”, que

abrange momentos nos quais o material fílmico ou uma mise en scène específica conferem um

modo de visibilidade a um acontecimento histórico, seja uma encenação do passado ou algo

que aconteça diante da câmara11. Assim Baecque esboça uma teoria na qual o cinema não é

apenas um novo objeto da historiografia, e defende a capacidade do cinema em transmitir

conhecimento sobre o passado ao lhe permitir um modo de visibilidade. O que há de interesse

naquilo que Baecque propõe é o esforço em conjugar em uma mesma teoria (e sob o conceito

de mise en scène) o filme como acontecimento, que faz do filme um testemunho de sua época

e um objeto da historiografia, e o filme como ficção histórica, no limite em que o cinema se

aproxima da historiografia ao tentar produzir uma imagem aproximada do passado.

Através do conceito de forma cinematográfica da histórica Baecque consegue levar em

consideração a dupla produção historiográfica do cinema, tanto intempestiva quanto

discursiva, mas hesita em formular os limites e a metodologia do conceito proposto. Os

critérios do que seria uma forma cinematográfica da história derivam de seu julgamento

pessoal: ora diz respeito ao profílmico, ora ao universo diegético, em certos momentos trata-

se de algo intempestivo que acontece diante da câmara, em outros são as escolhas formais dos

cineastas. O conceito é expandido para, relativamente, qualquer coisa que o autor julgue

exemplar e, assim, acaba por fazer da teoria um compêndio pessoal de recortes de

“surgimentos da história” nos filmes que analisa. O autor encontra simplificações confusas ao

relacionar procedimentos cinematográficos com modos de interpretação histórica: sobre Non,

ou a vã glória de mandar (1990), de Manoel de Oliveira, Baecque aponta o movimento de um

9 ROSENSTONE, Robert A. Visions of the past: the challenge of film to our idea of history. Cambridge: Harvard University Press, 1995. p.45 10 BAECQUE, 2008. p.27. 11 Ibid. p.20.

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travelling como “signo cinematográfico de uma história linear”, enquanto a câmara que

circunda uma árvore seria o reencontro do “mito que anima ciclicamente cada época”12.

Do texto de Baecque é preciso extrair o que há de relevante para esta dissertação, ou

seja, que a forma cinematográfica da história é “uma mise en scène escolhida por um cineasta

para dar forma à sua visão da história”13. Baecque exalta a capacidade “quase heurística do

cinema fazer ‘reconstituição’ do passado como presente: ao restituir sua espessura reflexiva à

história, oferecendo à história uma espécie de segunda chance”14. Neste contexto a ficção

histórica surge como contracampo do conhecimento historiográfico, o que não significa que o

cinema queira apoderar-se do discurso que torna o passado concebível, mas sim, propor

modelos de interpretação da história independentes dos modelos da historiografia.

A ficção histórica é a tentativa de um cineasta conciliar o real ausente do passado e o

discurso produzido sobre ele no presente através de formas cinematográficas da história, que

são propostas de mise en scène que confrontam a objeção em representar as coisas passadas e

conferem um modo de visibilidade aos acontecimentos históricos. Neste primeiro capítulo

será delimitado um primeiro conjunto de escolhas do cineasta para a realização de um filme,

escolhas que são anteriores à prática da mise en scène, será investigado em que grau estas

escolhas são homólogas no trabalho do cineasta (na preparação da realização de uma ficção

histórica) e no trabalho do historiador (na preparação da produção do texto historiográfico), e

como elas acabam por condicionar a mise en scène em uma ficção histórica.

1.2. Perspetiva temporal.

Há sempre um intervalo temporal entre a época do cineasta e a época do universo

diegético de uma ficção histórica. A perspetiva temporal do cineasta é o corte definitivo que

instaura o momento no tempo ao qual ele pertence como a “sua época”, o que assegura o

reconhecimento imediato de alteridade entre o presente do profílmico e o passado visado. Este

corte limitado pela perspetiva temporal faz com que certo aspeto da temporalidade torne-se

algo como um espaço, como diz Jean-Luc Nancy, “o tempo apresenta-se para nós como esta

espacialidade ou espaçamento de uma certa suspensão – que não é nada mais do que a epoch,

12 BAECQUE, 2008. p.12 13 Ibid. p.13 14 Ibid. p. 440.

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que, é claro, significa ‘suspensão’ em Grego”15, assim o tempo é visto como um estado de

suspensão no qual se encontra aquele que o experiencia.

Reconhecer a sua época como ponto perspectivo de origem a partir do qual, em

retrocesso, o cineasta organiza formas cinematográficas da história, é assumir uma suspensão

e espacialização do tempo que condiciona a ficção histórica, pois, como argumenta Reinhart

Koselleck, toda perspetiva tem um conteúdo temporal, uma vez que “a diferença temporal

entre a minha posição hoje e as histórias passadas investigadas deve ser levada em

consideração”16. O que faz com que uma mesma personagem historicamente célebre como

Cleópatra, seja tão distinta em um filme de 1934 (interpretada por Claudette Colbert, no filme

‘Cleopatra’, dirigido Cecil B. DeMille), da mesma personagem de um filme de 1963

(interpretada Elizabeth Taylor no 'Cleopatra' de Joseph L. Mankiewicz)? É a perspetiva

temporal que as diferencia, mas também a perspetiva espacial, ideológica, estética, etc.,

correspondentes à época em que cada filme foi realizado. Ambos os filmes apresentam

paradigmas sobre a representação da sexualidade feminina, porque mostram corpos

confinados em mise en scènes delimitadas pelas restrições de suas épocas. Uma ficção

histórica realizada nos anos 1930 ou nos anos 1960, portanto, revela as formas de

representação do passado permitidas pelo imaginário de sua época, pois um filme, como

acontecimento, revela as condições estruturais que o tornaram possível.

Similarmente, Siegfried Kracauer diz que o texto historiográfico depende da posição

do autor no tempo e no espaço, o que quer dizer que o pensamento do historiador “é moldado

por influências contemporâneas e que, por sua vez, suas preocupações com questões

contemporâneas são levados em consideração no motivo e no modo de sua devoção ao

passado”17. Mas a comparação entre estes dois filmes traz a questão de que a ficção histórica é

um objeto bastante complexo, pois mostra uma época passada (no universo diegético) ao

mesmo tempo em que testemunha a época em que foi feito (a época do profílmico). É a

própria conceção do passado que não é a mesma em 1934 e em 1963, que o passado seja

encenável e ficcionável, ou ainda, que através de um modo de visibilidade proposta por uma

mise en scène o passado seja perceptível como se fosse presente, constitui um atributo

indispensável para compreender a conceção de uma época sobre o seu passado.

15 NANCY, Jean Luc. The birth to presence. Standford: Stanford University Press, 1993. p.150. 16 KOSELLECK, Reinhart. The Practice of Conceptual History. Stanford: Stanford University Press, 2002. p. 114. 17KRACAUER, Siegfried. History – The last thing before the last. Nova Iorque: Oxford University Press, 1969. p. 63

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Ao realizar uma ficção história corre-se o risco de fazer do passado apenas uma

curiosidade, a perspetiva temporal ameaça fazer da mise en scène apenas um modo de tornar

visível aquilo de inusitado que pertence à época visada, isentando o cineasta de produzir um

pensamento substancial sobre a história. Como alertado por Ricoeur, o historiador, ou neste

caso, o cineasta, “se transforma no etnólogo dos tempos passados”18, e a história se transforma

em “uma espécie de exotismo temporal”19. Ricoeur observa que “Dilthey foi o primeiro que

tentou fundamentar todas as ciências do espírito –inclusive a história– na capacidade que o

espírito tem de se transportar para uma vida psíquica alheia, com base em signos que

‘exprimem’ (...) a experiência íntima de outrem”, o que constitui um paradoxo pois “ao abolir

a diferença entre o outrem de hoje e o outrem de outrora, ele oblitera a problemática da

distância temporal e se esquiva da dificuldade específica que está ligada à sobrevivência do

passado no presente”20.

No cinema a evidência da perspetiva temporal é característica dentro de cada filme,

seja pelos aspetos materiais, estéticos, e tecnológicos, ou pela revelação (intencional ou não)

das estruturas que o tornaram possível. A partir deste reconhecimento da perspetiva temporal

o cineasta pode realizar escolhas de mise en scène que exprimem sua visão da história, como a

tentativa de atenuar os traços perspetivos ao buscar uma forma cinematográfica análoga aos

modos de representação da época representada, como em The Artist (2001), de Michel

Hazanavicius. Em muitos casos este procedimento não é uma escolha ingênua mas sim uma

forma cinematográfica de confrontar acontecimentos históricos cujos efeitos ecoam no

presente, é o caso de A short film about the indio national (2005), de Raya Martin.

Como se não fosse possível dar sentido ao passado a partir das formas

cinematográficas contemporâneas, o filme de Raya Martin é composto por uma série de

“pequenos filmes”, que simulam newsreels ou filmes dos primórdios do cinema. Estes

pequenos filmes ora assemelham-se aos filmes de Lumière, a cena é constituída por

personagens em primeiro plano que sofrem uma ação de personagens que surgem em

profundidade do fundo de plano (por exemplo, o momento em que as mães reprimem os

filhos que observam o eclipse, elas surgem do fundo do plano e eles saem do plano também

pelo fundo, não há fora de quadro). Ora assemelham-se aos filmes de Mèlies, pelo uso

inventivo de procedimentos cinematográficos que deformam a realidade (como a animação

primitiva, na mesma cena do eclipse). Estes pequenos filmes são intercalados por cartelas que

18RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa - Tomo III. Campinas, SP: Papirus, 1997. p.250 19Ibid. p.249 20Ibid. p.250

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sugerem uma abordagem documental: “Crianças nativas testemunham um eclipse”, “Belas

nativas discutindo”, “Funeral dos nativos”, “Mães reprimem os filhos”. Mas ao longo do

filme o dispositivo é desconstruído com o surgimento de procedimentos que seriam

anacrônicos, como o uso de campo/contracampo na espantosa cena em que duas devotas

acreditam que, por milagre, uma estátua tornou-se real. Não se trata, portanto, de um espaço

tal como ele seria figurado pelo cinema do final do século XX, a forma do filme destina-se a

perturbar a letargia do passado, mas Martin não perde de vista o presente para o qual os

acontecimentos representados se dirigem, através da simulação de formas passadas ele cria

uma forma cinematográfica da história que o permite falar sobre o presente.

Outros cineastas usam anacronismos para acentuar a perspetiva temporal ao invés de a

dissimular, em La Commune (Paris, 1871) (2000) Peter Watkins põe em cena os

acontecimentos passados como se acontecessem pela primeira vez diante da câmara, utiliza

atores não profissionais e evidencia a câmara como testemunha dos acontecimentos. Dois

canais televisivos ideologicamente opostos, a televisão comunal e a de Versalhes, reportam os

eventos na ruas de Paris após a derrota de Napoleão III na Guerra Franco-Prussiana, assim

Watkins reconstitui os eventos para interrogá-los em seu interior, faz coexistirem como dupla

evidência o acontecimento passado e o presente que o interroga.

Já em filmes como Flags of our fathers (2006) e Letters from Iwo Jima (2006), de

Clint Eastwood, a perspetiva temporal não apenas é evidenciada por uma investigação sobre o

passado, iniciada no tempo contemporâneo ao filme, como é o pretexto que autoriza a

encenação dos acontecimentos passados. Como podemos observar, cada conceção sobre a

ficção histórica exprime uma distinta visão sobre a história e a possibilidade da sua

transmissão através de uma forma cinematográfica.

1.3. Construção dramatúrgica

A partir do ponto perspetivo temporal, no qual o cineasta se encontra, e do

conhecimento historiográfico acumulado sobre certa época ou certo acontecimento, o cineasta

cria uma forma cinematográfica correspondente ao seu ponto de vista sobre a história. Na

construção dramatúrgica de uma ficção histórica é preciso gerir uma seleção que impõe ao

rumo dos acontecimentos uma subordinação subjetiva, uma vez que o cineasta realiza uma

triagem entre o conhecimento historiográfico (época, local, assunto, acontecimento, costumes,

personagens, etc.) e o coeficiente de permeabilidade ficcional, ou seja, o quanto estas

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informações serão afetadas por uma narrativa. A seleção interfere, necessariamente, com

qualquer intensão de objetividade histórica, uma vez que condiciona a história ao julgamento

do cineasta sobre os acontecimentos narrados. A seleção e, posteriormente, a ordenação dos

acontecimentos, exprimem o ponto de vista do cineasta em relação aos limites da

historiografia e do cinema quanto às suas capacidades narrativas: podem oscilar desde uma

pretensão ao rigor historiográfico, até a radicalidade de uma completa ficcionalização de

acontecimentos, podem apresentar uma sucessão linear ou não dos acontecimentos, respeitar a

série cronológica ou proceder por fragmentações, etc.

Um obstáculo para a realização de uma ficção histórica está em não apenas apresentar

uma série de acontecimentos, mas em encontrar, através da significação conferida pela

narrativa, uma síntese que aponte para a totalidade. Em O romance histórico, Gyorgy Lukács

alerta sobre a tentação, na literatura, “de reproduzir inteiramente a totalidade das coisas”, pois

“há sempre um risco muito próximo de acreditar que a fidelidade histórica só pode ser

atingida por meio da totalidade”21. Na pintura o problema da seleção foi posto através de

“duas exigências contraditórias: representar todo o acontecimento, a fim de que fosse bem

compreendido, ou dele representar apenas um instante, a fim de ficar fiel ao verosímil

percetivo”22. A resposta para este problema surgiu no século XVIII ao “representar todo um

acontecimento figurando apenas um de seus instantes, contanto que se escolha o instante que

exprime a essência do acontecimento: é o que Gotthold-Ephraim Lessing, em seu tratado

Laocoon (1766), chama de o instante pregnante"23.

No cinema é possível encontrar uma forma similar ao instante pregnante, o episódio

pregnante: quando o cineasta opta por narrar um único episódio de uma série de

acontecimentos históricos, de modo a nele encontrar a essência de uma história, uma síntese

de uma totalidade que apenas pode ser sugerida. Nas ficções histórias sobre Joana D’Arc

realizadas por Cecil B. DeMille (em 1916), Victor Fleming (em 1948), e Roberto Rossellini

(em 1954), são mostrados episódios selecionados que compõem distintos mosaicos sobre a

totalidade da vida da mesma personagem. Enquanto que nas versões de Carl Th. Dreyer (em

1928) e de Robert Bresson (1963), ao contrário, apenas o processo de julgamento de Joana

D’Arc compõe a narrativa, buscando a essência de Joana D’Arc nas suas palavras e decisões

finais. Dreyer e Bresson ordenam a história em uma narrativa linear e cronológica, enquanto

que nos outros filmes a narrativa tem início em um ponto posterior (o sonho de um soldado da

21 LUKÁCS, Gyorgy. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011. p.59 22 AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 2012. p.241 23 Ibid.

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I Guerra Mundial, no filme de DeMille; a canonização, no filme de Fleming; o calvário, no

filme de Rossellini), que retrocede para mostrar os episódios da vida de Joana d’Arc,

procedendo por saltos de um episódio ao outro. Liberto da metodologia historiográfica o

cineasta pode ordenar a narrativa sem resguardar a ordem empírica dos acontecimentos, de

modo a lhes conferir uma nova significação.

Em Fort Apache (1948), de John Ford, filme inspirado na derrota de George

Armstrong Custer na Batalha de Little Bighorn, vemos como a construção dramatúrgica

exprime o ponto de vista do cineasta sobre a capacidade de um filme em narrar uma

acontecimento histórico. Sergio Toffetti observa que John Ford preocupa-se mais em “contar

as fases preparatórias de uma ação que seu momento culminante”24, de modo que a batalha em

si ocupa pouquíssimos minutos dos 125 minutos de duração do filme. Ao final do filme John

Ford realiza algo prodigioso, o que para Toffetti constitui a sua consciência histórica: o

Capitão York (interpretado por John Wayne) narra a batalha para um grupo de repórteres, e “a

narração final da derrota dura muito mais que a própria batalha”25. Em Fort Apache os

acontecimentos históricos existem em função de uma narrativa ficcional, e são apresentados

como sequencia de episódios pregnantes que se relacionam com uma totalidade, sem buscar a

espelhar.

Em um texto, historiográfico ou literário é preciso mediar o tempo através de recursos

linguísticos que implicam modos temporais, o tempo é narrado. No cinema o tempo é

revelado ao longo de uma duração, a relação entre o espectador e o tempo é imediata, sem a

mediação de recursos linguísticos. A apreensão deste tempo no cinema é determinada por

outras variantes: a ordenação das ações em uma série; a duração interna dos planos; a seleção

da duração na montagem de um plano ao seguinte; os recursos de analepse, prolepse, e elipse;

a aceleração e a desaceleração da imagem; a imagem imobilizada, etc. A duração, portanto,

não é definida somente em relação ao tempo, mas em relação às mudanças em uma totalidade.

Disso pode-se concluir que um acontecimento pode ser apreendido não apenas pela sua

duração em si, mas pela duração imposta pela ordenação de unidades de duração (um

acontecimento, uma sequência, um plano) em relação a uma duração maior que constitui o

universo diegético, composto pela série de durações.

Mas o que há na seleção, ordem e duração dos acontecimentos, implicados pela

construção dramatúrgica, que diz respeito à realização de uma ficção histórica? Afinal,

24 TOFFETTI, Sergio. On est déjà passés par ici. in DÉNIEL, Jacques; RAUGER, Jean-François; TATUM, Charles; John Ford - Penser et rêver l'histoire. Liège: Éditions Yellow Now, 2014. p.24 25 Ibid.

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qualquer filme, seja uma ficção histórica ou não, precisa selecionar, ordenar e definir as

durações dos acontecimentos que apresenta, seja no guião, na filmagem, ou na montagem. Na

ficção histórica, no entanto, estas questões são ainda mais complexas, pois a ordem e duração

de um acontecimento em uma ficção histórica têm como referente um acontecimento que de

fato existiu, e teve sua própria ordem e duração.

Uma elipse entre dois momentos de uma personagem, portanto, não tem o mesmo

valor quando suprime um trajeto percorrido por uma personagem em um filme de ficção

científica, e quando suprime um trajeto percorrido por uma personagem em uma ficção

histórica. Supondo que este trajeto suprimido pela elipse foi determinante para o

desenvolvimento de um acontecimento histórico, a elipse deixa de ser apenas uma escolha

formal. Omitir um acontecimento historicamente conhecido ou ficcionalizar um

acontecimento cujos desdobramentos são desconhecidos exprime um ponto de vista do

cineasta sobre o assunto histórico do filme. Ocultar fatos sobre uma personagem ou um local,

adicionar uma cena entre dois debates políticos, mostrar dois pontos de vista sobre uma

mesma ação, todas estas escolhas do cineasta têm valores diferentes em uma ficção histórica.

A subjetividade, expressa na construção dramatúrgica de uma ficção histórica,

condiciona as relações humanas do passado sob a capacidade do espectador contemporâneo

em aderir, perceptivelmente e afetivamente, ao universo diegético apresentado. Se por um

lado, ao tornar o passado sensível como realidade, busca-se uma analogia entre a atual

experiência cotidiana e a experiência daqueles que viveram e morreram em épocas passadas, a

acreditação do passado só é permitida a partir de parâmetros da contemporaneidade, pois

requer modelos interpretativos admitidos pelo espectador contemporâneo. Assim, se a ficção

histórica tenta restituir o tempo humano ao tempo histórico, jamais consegue o fazer a partir

da experiência temporal particular à época do universo diegético. O espaço, similarmente, só

é figurado a partir de um conceito de espaço que possa ser admitido pelo espectador

contemporâneo. Que um cineasta possa criar uma forma cinematográfica para figurar o

espaço tal como ele seria figurado na época do universo diegético, deve-se ao regime

representativo de seu tempo, que permite que o espaço seja figurado sob predicados formais e

conceituais de uma época passada.

Na construção dramatúrgica a ficção histórica encontra uma limitação em manter um

discurso verdadeiro sobre o passado, pois subordina o desenvolvimento dos acontecimentos

históricos a uma série de escolhas do cineasta, que compõem um primeiro conjunto que

delimita o ponto de vista do cineasta em relação à história. A partir do reconhecimento da

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alteridade entre a época de realização do filme e a época do universo diegético o cineasta

implementa: uma seleção dos acontecimentos e a delimitação do coeficiente imaginário em

uma ficção histórica; uma ordenação dos acontecimentos, históricos e/ou imaginários, em

uma série de durações; a delimitação das durações, seja a duração interna de um plano

expressa pelo movimento, seja a duração de um acontecimento histórico dentro do conjunto

de durações que compõe a totalidade do filme.

1.4. O cineasta como historiador.

A capacidade da ficção histórica em transmitir conhecimento sobre o passado, portanto,

é constrangida pela subordinação à narrativa ficcional e ao ponto de vista do cineasta. "Filmes

são imprecisos. Eles distorcem o passado. Eles ficcionalizam, trivializam, e romanticizam

pessoas, eventos e movimentos. Eles falsificam a história"26, estes são os argumentos que,

segundo Rosenstone, justificam a desconfiança de parte dos historiadores em relação à ficção

histórica. Os argumentos são pertinentes, mas apenas se considerarmos a história como um

sistema fechado cujo referente, a ser explicado e homologado como verdadeiro, seria a

realidade daquilo que se passou, demarcando um limite: o passado como outro. Nietzsche diz

que a história é o oposto da arte, e “somente quando a história suporta ser transformada em

obra de arte e, portanto, tornar-se pura forma artística, ela pode, talvez, conservar instintos ou

mesmo despertá-los"27. Na historiografia, tal forma de conservar os instintos da história, ou

fazer irromper a natureza de sua origem que resiste no presente, "estaria em total contradição

com o traço analítico e inartístico de nosso tempo, e até mesmo será sentida por ele como

falsificação"28.

Para entendermos este sentido de falsificação, comecemos por uma afirmação que,

embora axiomática, é inseparável do texto historiográfico e da ficção histórica, "é impossível

restaurar a totalidade do passado"29. A partir de então consideremos que as imagens que

podemos produzir do passado, sejam elas produzidas pelo texto historiográfico ou pela ficção

histórica, não são nada além de imagens falsas. Koselleck chega a afirmar que "se não é

possível restaurar o passado como tal, sou forçado a reconhecer o caráter fictício das

26 ROSENSTONE, 1995. p. 46 27 NIETZSCHE, Friedrich. “Considerações extemporâneas” in Obras incompletas. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 65 28 Ibid. 29KOSELLECK, 2002. p. 15

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atualidades passadas para ser capaz de resguardar teoricamente minhas declarações

históricas"30. Mas na historiografia esta falsificação é o resultado de uma produção debruçada

sobre elementos presentes no mundo, seus "discursos se articulam sobre um real perdido

(passado)" e "reintroduzem como relíquia, no interior de um texto fechado, a realidade que se

exilou da linguagem"31.

Não se trata de produzir uma imagem falsa, mas em reintroduzir no presente o real

ausente do passado sob uma forma cinematográfica, que só pode conferir um modo de

visibilidade fragmentado de uma totalidade desaparecida. A falsificação da ficção histórica

está em oferecer o real do passado não como uma relíquia ausente, mas em oferecer o passado

como se fosse uma realidade, e ainda, como se fosse presente. Isto não pode ser feito sem

enfrentar inúmeras objeções, e é precisamente o que constitui a forma cinematográfica da

história: um modo de visibilidade conferido ao passado através da mise en scène e de

procedimentos ficcionais que, apesar de todas as evidentes interdições, faz uma síntese de um

mundo desaparecido que exprime a totalidade a partir das partes, compostas por séries de

durações. Pela impossibilidade daquilo que ela oferece, é evidente que qualquer visão

"analítica e inartística" sobre a ficção histórica, a toma por falsificação. Mas, como argumenta

Rancière, "a separação da ideia de ficção da ideia de mentira define a especificidade do

regime representativo das artes", pois "fingir não é propor engodos, porém elaborar estruturas

inteligíveis"32. A historiografia reduz o mundo passado às práticas e às relações humanas, a

ficção histórica reintroduz as práticas e as relações humanas do passado sob a forma de um

mundo.

Um cineasta não é efetivamente um historiador, suas intencionalidades não são as

mesmas, o modelo da ficção histórica não é o texto historiográfico, mas o romance histórico e

a pintura histórica. Sacha Guitry diz ser um historiador apenas à maneira de um pintor: "Sou

um historiador como o foi Louis David quando compôs seu magnífico quadro intitulado Le

sacre de Napoléon, onde vemos, entronizada ao centro, Mme. Laetitia – ainda que

notoriamente a mãe do Imperador estivesse em Roma naquele dia"33. Sobre a realização de

um jidai geki (literalmente: drama de época), Kenji Mizoguchi diz que "não seria muito útil

perder tanto tempo num estudo meticuloso da história: quando nos preocupamos demasiado

com os factores históricos acabamos por descurar a intriga, e o resultado é que o filme acaba

30Ibid. 31CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p.51 32 RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009. p.53 33 GUITRY, Sacha apud BAECQUE, 2008. p.121

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por ser uma estupidez"34, atendo-se exclusivamente à intencionalidade ficcional de seu

trabalho. Não se trata em rejeitar a história, mas em aceitar a impossibilidade de filmá-la e, ao

mesmo tempo, afirmar a dimensão presente do cinema e sua intencionalidade ficcional. O

libanês Atlas Group, um colectivo ficcional criado por Walid Raad, leva a falsificação da arte

a um gesto mais radical ao mostrar documentos das guerras civis libanesas que são, em sua

maioria, vídeos e fotografias criadas pelo artista35. Para Mark Godfrey "o Atlas Group está

menos interessado em revelar a falácia do material que apresenta do que sugerir que somente

através da ficção pode-se criar uma imagem adequada das guerras libanesas"36, aqui a

incapacidade da historiografia em dar conta do passado é transmitida como dívida do artista

para com os mortos, dever de literalmente produzir a história através da ficção. A história e

ficção não apenas se cruzam, a ficção substitui a história como uma imagem mais justa do

passado.

“A imagem que o historiador, semelhante ao espelho, deve refletir não deve ser

deturpada, empalidecida ou deformada. Esta metáfora manifesta-se desde Luciano até pelo

menos o século XVIII”37, a ficção histórica conjuga a imagem do espelho, o como se fosse

realidade da imagem cinematográfica, com uma discurso fortemente determinado pelo ponto

de vista de quem a produz, a imagem imparcial e sem interferências é uma imagem distante

do resultado do trabalho de um cineasta. O ponto de vista do cineasta é dado como expressão

de uma subjetividade em relação à história, em oposição à objetividade historiográfica.

Mas toda historiografia está ligada a um ponto de vista, como argumenta Claude Lévi-

Strauss, se observarmos, sobre o mesmo acontecimento, "dois relatos de historiadores, de

diferentes tradições intelectuais e com alinhamentos políticos diversos (...) não ficamos de

facto nada espantados ao constatar que eles não nos contam exatamente a mesma coisa"38,

ainda que tenham consultados as mesmas fontes documentais. A solução da historiografia,

para afastar-se de seu modelo tradicional, foi romper com a subjetividade da narração dos

acontecimentos, nas palavras de François Furet, em 1968:

“O historiador dos dias de hoje (...) deixou de contar aquilo que se passou, ou seja, deixou de escolher, naquilo que se passou, o que lhe

34 MIZOGUCHI, Kenji. Mesa redonda com Kenji Mizoguchi in OLIVEIRA, Luis Miguel (Org.) Kenji Mizoguchi. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2000. p.132 35GODFREY, Mark. The Artist as Historian in October, Cambridge, n.120, 140-172, Abril de 2007. p. 145 36Ibid. 37 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto / Ed. Puc Rio, 2006. p.164 38LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1988. p.62

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parecia apropriado à sua narrativa (...) Analisando mais as estruturas que os acontecimentos, ele se interessa pelas permanências e mutações invisíveis, à longa duração”39.

A solução veio com a divisão implementada por Fernand Braudel, importante

historiador das Escola dos Annales, entre evento e estrutura, que segundo Koselleck surge

como resposta à “falsa simplificação de tomar o tempo histórico como linear ou circular”40.

Jacques Rancière considera que este paradigma científico da historiografia surge para refutar

a “cientificidade expressa em termos de leis e de causas” subjacente ao modelo narrativo,

opondo “duas mudanças de perspetivas, nos dois eixos da diacronia e da sincronia”, de modo

que no primeiro eixo “o tempo longo dos ciclos e das estruturas impor-se-ia ao tempo curto

dos acontecimentos”, e no segundo “confrontaria as histórias dos príncipes, das batalhas e dos

tratados com a espessura do social, o entrelaçamento dos modos de fazer, de ser e de

pensar”41.

O eclipse da narrativa ocorre, portanto, diante do impedimento do historiador em

manter uma objetividade na síntese do passado, ou seja, uma visão pura através da extinção

da sua subjetividade, e que proponha um método crítico à conceção do tempo histórico como

sendo linear ou circular, implícito no modelo narrativo. Koselleck esclarece que a

historiografia, então, passa a operar sob a seguinte fórmula: “‘eventos’ só podem ser narrados

e ‘estruturas’ só podem ser descritas”42. Trata-se de um deslocamento da homologação da

verdade, da narração dos acontecimentos para a descrição das estruturas que os tornaram

possíveis. Koselleck argumenta, também, que “um processo de conquista de direitos

trabalhistas tanto pode ser uma história dramática, no sentido de um ‘evento’, como também

um indicador de circunstâncias sociais, jurídicas ou econômicas de longo prazo”43, a tese de

Koselleck é que “na prática, o limite entre a narração e a descrição não pode ser mantido”44.

Chartier declara ser insuficiente a supressão do modelo narrativo pelo modelo

descritivo da historiografia pois, por mais estrutural ou conceitual que ela possa ser, será

sempre “dependente das fórmulas que governam a produção das narrativas, sejam da história

39 FURET, François. apud FERRO Marc. Le film, une contre-analyse de la société?. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. Ano 28, n. 1, 1973. p. 109-124; p. 112 40 KOSELLECK, Reinhart. 2002. p. 123 41 RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (Org.). História, Verdade e Tempo. Chapecó/SC: Argos, 2011. p.30 42 KOSELLECK, 2006. p.133 43 Ibid. p.138 44 Ibid. p.133

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ou da ficção”45. Chartier demonstra como, para certos historiadores, notadamente a partir da

obra de Hayden White, “o pertencimento da história à classe das narrativas conduz a um

passo suplementar que nega toda verdade própria ao discurso historiográfico”, e que “o

historiador, como o romancista, pode fazer livre escolha de uma modo de dispor a intriga, de

uma estratégia de explicação, de uma matriz histórica”46.

Paul Veyne, citado por Ricoeur, irá propor algo provocador, ele irá “conjugar um

rebaixamento científico da histórica com uma apologia da noção de intriga”47. Veyne defende

que se tomarmos intrinsecamente o acontecimento como “qualquer ocorrência individual e

não repetível -, nada o qualifica como histórico ou físico”, qualquer acontecimento

pertenceria tanto à historiografia quanto à ciência física, apenas “o fato de figurar numa

intriga é o que qualifica um acontecimento como histórico”48. “Os fatos só existem em

intrigas e através delas, onde eles assumem a importância relativa que lhes impõe a história

humana do drama”49, ou seja, que a fissão de núcleos atômicos de urânio tenha criado uma

reação em cadeia no dia 6 de agosto de 1945, constitui um acontecimento físico único, que

esta reação tenha sido usada em um bombardeamento nuclear contra civis japoneses, constitui

um acontecimento único cuja significação é encontrada na narrativa historiográfica, que fez

síntese dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. São duas explicações de um mesmo

acontecimento, a primeira “subsume fatos sob leis” a segunda “os integra nas intrigas”50, deste

modo a história “reinscreve o tempo da narrativa no tempo do universo” e esta reinscrição

“continua sendo a especificidade do modo referencial da historiografia"51.

A aporia é, segundo Jean-Luc Nancy, estarmos “suspensos entre ambos: ou acontece

algo que não podemos apreender em nossa representação, ou nada acontece salvo a produção

de narrativas histórico-ficcionais”52. Jacques Rancière esclarece ao separar os problemas: “o

primeiro problema concerne à relação entre história e historicidade, isto é, a relação do agente

histórico com o ser falante”, ou seja, entre o Geschichte, ou o referente real da história, e o

discurso historiográfico produzido sobre ele; o segundo problema “concerne à ideia de ficção

45 CHARTIER, Roger. La vérité entre fiction et histoire. in BAECQUE, Antoine de; DELAGE, Christian (dir.). De l’histoire au cinéma. Bruxelas: Éditions Complexe, 1998.p. 35 46 Ibid. p. 38 47 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa - Tomo I. Campinas, SP: Papirus, 1994. p.242 48 Ibid. p.243 49 VEYNE, Paul. apud RICOEUR, 1994. p.243 50 RICOEUR, 1994 p.243 51 Idem, 1997. p.317 52 NANCY, 1993. p.147

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e à relação entre racionalidade ficcional e os modos de explicação da realidade histórica e

social, entre a razão das ficções e a razão dos fatos”53.

Se “certas estruturas só podem ser apreendidas nos eventos nos quais se articulam e

por meio dos quais se deixam transparecer”54, pode-se argumentar que as ficções históricas

que narram acontecimentos e personagens completamente imaginários conservam da história

apenas as estruturas que condicionam determinada época. Rosenstone condena como “falsa

historicidade” quando, em uma ficção histórica, há uma abordagem ficcional que confunda

verosimilhança e história, de modo que a história se torne “nada mais que uma ‘aparência de

época’55, que as coisas são história, ao invés de tornarem-se história pelo que significaram

para as pessoas de uma tempo e espaço em particular”56. Proponho que, ao contrário do que

argumenta Rosenstone, os filmes que da história conservam apenas a “aparência de época”, ao

apresentar personagens e eventos imaginários podem ser os mais estruturais entre as ficções

históricas, pois o que da história conservam são apenas as estruturas sociais, econômicas,

políticas, institucionais, morais, religiosas, etc., que condicionam a experiência de mundo das

personagens. É um reducionismo dizer que a história, para estes filmes, não seria nada mais

que uma “aparência de época” ou “period look”. Estes filmes, ao invés de proporem à história

apenas uma imagem verosímil de uma época passada, propõem um dispositivo que oculta as

estruturas de uma época sob uma narrativa ficcional. Arlette Farge aponta, precisamente, que

a historiografia “experiencia muitas dificuldades em articular um personagem, um

acontecimento, um arquivo, com o mundo, isto é, o singular e o coletivo”, e exalta que isto é,

pelo contrário, o que o cinema “parece poder fazer com mais facilidade”57.

Sob esta perspetiva, portanto, em uma ficção histórica a narração dos acontecimentos é

inseparável do mundo que os cerca e suas estruturas, mas não é possível descrever estas

estruturas isolando-as da narrativa. Os acontecimentos podem ser narrados em uma ficção

histórica pois “são provocados ou sofridos por determinados sujeitos”, enquanto as estruturas

“permanecem supraindividuais e intersubjetivas”58 e só podem, portanto, ser inferidas a partir

do todo, sem serem apresentadas como estruturas de distintas instâncias do mundo, pois

“evento e estrutura estão interligados um com o outro, mas um nunca pode ser reduzido ao

53 RANCIÈRE, 2009. p.52 54 Ibid. p. 138 55 No texto, em inglês: period look. 56 ROSENSTONE,1995. p.60 57 FARGE, Arlette. “Le cinéma est la langue maternelle du XXe siècle”, Cahiers du cinéma, número especial 'Le siècle du cinéma', novembro de 2000, apud BAECQUE, Antoine de. L'histoire-caméra. Paris: Éditions Gallimard, 2008. p.33 58 KOSELLECK, 2006. p.134

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outro”59. Assim a ficção histórica anima na tela um mundo desaparecido, enquanto o texto

historiográfico fragmenta, racionaliza e sintetiza as distintas instâncias da experiência do

passado. Aquilo que o texto historiográfico só pode narrar ou descrever, a ficção histórica

apresenta como perceção, como se fosse presente, e através da mise en scène cria formas

cinematográficas da história para mostrar a história interferida pela vontade humana e por

indivíduos únicos agindo dentro de seu tempo.

59 Ibid. p. 126

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2. A MISE EN SCÈNE NA FICÇÃO HISTÓRICA

No capítulo anterior foi observado como as escolhas de um cineasta na construção da

narrativa de uma ficção histórica – ao selecionar os acontecimentos, delimitar a

permeabilidade ficcional que interpelará o conhecimento histórico, ordenação dos

acontecimentos em uma série que lhes confira sentido, e inscrevê-los em uma duração

determinada – relacionam-se com práticas e paradigmas do trabalho do historiador: o

problema da objetividade e da perspetiva, a tarefa de realizar e homologar declarações

verdadeiras ao mesmo tempo em que se leva em conta a relatividade destas declarações.

Consideremos, provisoriamente, duas distintas formas cinematográficas da história, a

primeira afasta-se da historiografia e mergulha na ficção, a segunda atém-se ao texto

historiográfico para manter-se próxima aos acontecimentos. O ponto de vista de um cineasta

sobre a história, desde aquele que defende a ficção histórica como expressão pessoal sobre o

passado até aquele que procura uma forma de anulação de sua subjetividade, é manifestado

em uma proposta de mise en scène particular. Estas divergências dizem respeito a um

problema central que não cessa de ser retomado no cinema, a relação das imagens com o real.

Serge Daney propõe uma definição, concisa porém complexa, para definir o real no

cinema: "o que não ocorre duas vezes, o que não retorna jamais"60. O real do cinema é,

portanto, a duração de um instante ao outro, única e não repetível, captada pela câmara. Mas

esta definição esconde uma questão sobre a qual tantos cineastas se aventuraram em

investigar: este real resiste mesmo quando fixado na película, sintetizado e reordenado pela

montagem, e reproduzido pela projeção cinematográfica? Jacques Aumont questiona "que

preço tem a fixação do instante tal e qual, a revelação do mundo 'tal e qual'”? E diz que "toda

a representação do século XIX hesita sobre a resposta", pois "fixar o instante é, forçosamente,

sonhar em aumentar, em um ponto crucial, seu controle sobre o real"61.

Se a ficção histórica é uma falsificação da história, pois a totalidade do passado não

pode ser restaurada, como pensar a mise en scène de uma ficção histórica sob o signo do real,

ou seja, da duração que escorre de um momento ao outro sem nunca se conservar, do que não

ocorre duas vezes? Na ficção histórica a questão do real no cinema duplica-se sobre outra

questão, particular à historiografia: "que significa o termo 'real' aplicado ao passado histórico?

60DANEY, Serge. A rampa: Cahiers du cinéma, 1970-1982. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.119 61AUMONT, Jacques. O olho interminável – cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 92

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Que estamos querendo dizer quando afirmamos que algo 'realmente' aconteceu?"62 E, por fim,

qual é o real da ficção histórica?

2.1. O real da ficção histórica

O que significa dizer que algo realmente aconteceu? Roger Chartier diz que a

dificuldade de certos historiadores em designar o real do passado tal e qual ele aconteceu está

em tentar "manter a capacidade da história em ter um discurso verdadeiro sobre o passado"63,

dizer que algo realmente aconteceu, portanto, é assumir um conceito histórico que nos permite

conceber o passado como passado. A ficção histórica retira-se da exigência de manter um

discurso verdadeiro sobre o passado, mas o faz sem negar a passalidade do passado. Se por

um lado a historiografia utiliza artifícios narrativos para fazer síntese do passado, ao afirmar

que algo realmente aconteceu, "a narrativa de ficção imita, de certa maneira, a narrativa

histórica. Contar alguma coisa é contá-la como se ela tivesse passado"64.

É a possibilidade de conceber o passado e afirmar que algo realmente aconteceu que

nos permite não apenas conceber o presente como real, mas em relacioná-lo com a sua

origem. Se assumirmos que não podemos afirmar que algo realmente aconteceu, corremos o

risco de cair na indissociação entre história e ficção que acaba por ignorar que a realidade

material e presente é condicionada pelas relações com o seu passado empírico. Concebemos o

passado como algo que foi real, é evidente que o passado não é real pois é ausente, mas ele

foi real, pois foi único e não se repetirá. O real, nesta conceção, é todo o instante que passa e

substitui o instante anterior, transformando-o em passado. E é esta a dificuldade do cinema

em apreender o real: quando o instante é fixado na imagem cinematográfica ele deixa de ser

real, pois torna-se repetível em sua unicidade. O problema é duplicado na ficção histórica,

pois se supormos que o passado não é apenas concebível mas que ele também pode ser

representado por um mise en scène, que lhe confere um modo de visibilidade, ele já não é

passado, pois o seu aspecto ausente é percebido como se fosse presente.

Qual é o real da ficção histórica? Formulemos, a priori, duas hipóteses: 1. O real da

ficção histórica é o referente profílmico, ou seja, as condições concretas da realização de um

filme, os corpos que duram em um certo espaço, aquilo que “não ocorre duas vezes” diante do

registo indicial da câmara. 2. O real da ficção histórica é o referente diegético, ou seja, não 62RICOEUR, 1997. p.242 63CHARTIER, 1998. p. 40 64RICOEUR, op. cit. p.321

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apenas os personagens e acontecimentos históricos, ou a época representada no filme, mas

estes tomados em seu vir-a-ser.

A primeira hipótese nos reenvia para a formulação de Daney sobre o real do cinema,

ela seria portanto um aspecto, entre outros, do real da ficção histórica. Para Michel Mourlet,

por não perceberem nada além desta dimensão da ficção histórica, certos historiadores só

veem as imperfeições de sua produção, adotam uma postura sarcástica ao notar que as colunas

de um palácio são feitas de papel machê65, o que seria tomar a ficção histórica apenas por uma

reprodução das aparências sempre mal realizada. Por outro lado, estes historiadores seriam

incapazes de ver, no profílmico, a verdade que se oferece à intuição de forma imediata, a

verdade de “um gesto, um olhar, um silêncio, um grito”66.

A segunda hipótese poderia ser refutada pelo argumento de que o passado empírico

não é o real da historiografia ou da ficção histórica, mas sim o referente real sobre o qual o

discurso é produzido. Esta hipótese precisa ser reformulada, portanto, sob a pergunta: qual é o

referente real da ficção histórica? É certo que o real é o profílmico testemunhado pela

câmara, mas dizer que seu referente real é o passado que foi real, ou seja, o universo diegético

representado, não é uma resposta satisfatória.

Jacques Aumont descreve como, na linguística estrutural, "o referente é o terceiro

termo da relação da significação. Ele é exterior à relação significante/significado e designa

aquilo a que se remete o signo na realidade"67. Com a pergunta “qual é o referente real da

ficção histórica?” podemos estender seu referente para, além do profílmico, o universo

diegético representado. "Esse referente pode ser real se o objeto designado pelo significado é

atestado na realidade (...) imaginário se o significado remete a uma entidade mítica"68, o que

designa um problema para a ficção histórica, uma vez que seu referente não é imaginário, mas

também não é real, pois não pode ser encontrado na realidade. Ou, se formulado de outra

forma, seu referente é real, pois foi real e sua existência pode ser atestada na realidade através

de seus rastros materiais e documentais, mas seu referente também é imaginário, uma vez que

só podemos aceder ao real do passado por um esforço de imaginação diante dos materiais que

sobrevivem no presente. Podemos apenas imaginar o modo real como um homem caminhava

na Grécia antiga, por exemplo, por mais conhecimento que tenhamos sobre seus costumes,

65 MOURLET, Michel. “Le pléplum”, in Sur un art ignoré: la mise en scène comme langage. Paris: Ramsay, 2008. p. 58 66 Ibid. 67 AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de Cinema. Campinas-SP: Papirus, 2003. p. 253 68 Ibid.

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seus calçados, sua indumentária, etc. Frederik Jameson, citado por Hayden White, propõe que

"ainda que inacessível para nós exceto na forma textual" a história "tem um referente que é

real e não meramente imaginado" que "só pode ser abordado ao passá-lo pelas suas

textualizações anteriores"69. Ou seja, ainda que só possamos aceder ao real do passado por um

esforço da imaginação, isto não faz dele um referente imaginário, pois o passado que foi real

persiste na forma presente de sua ausência, consecutivamente atualizada pela história.

O impasse da ficção histórica está em entre a impossibilidade de restaurar o passado e

a proposta de apresentar o que é ausente conferindo-lhe um modo de visibilidade, o que nos

leva a questionar se a história seria possivelmente representável. Jean-Luc Nancy descreve o

trabalho do historiador como o trabalho de representação de algo que não é representável, pois

a história em si é o vir-a-ser de uma presença70. Na ficção histórica, frequentemente os

acontecimentos são mostrados como se os dados ainda não houvessem sido lançados, como se

os acontecimentos fossem testemunhados em seu vir-a-ser. A historiografia, pelo contrário,

assume sempre o saber retrospectivo, mesmo a mais narrativa das formas historiográficas

narra a época passada como um vir-a-ser já realizado. O vir-a-ser da história, no entanto, não

é o referente final da ficção histórica, ele pode apenas ser inferido por uma mise en scène que

se mantenha próxima ao tempo representado e que mostre os acontecimentos históricos como

se fossem percebidos pelos seus contemporâneos. Esta a mais delicada investigação que um

cineasta pode realizar quando profundamente pretende aventurar-se na espessura de um tempo

passado, não se trata de rejeitar a figuração de um mundo desaparecido, mas em buscar uma

forma cinematográfica da história possível e capaz de fazer vibrar o tempo passado na

superfície presente.

O paradoxo da representação das coisas passadas é primeiramente formulado por

Platão e Aristóteles, "a aporia é dupla. É primeiramente o enigma de uma imagem que se

mostra ao mesmo tempo como presente ao espírito e como imagem de uma coisa ausente"71.

Pascal Bonitzer diz que "a representação opera sempre em uma dupla direção contraditória:

na direção da coisa, pelo viés da semelhança, e na direção de sua ausência, pela miragem,

pelo falso prestígio que ela constitui"72. Ele irá especular que, talvez, houve uma época na

qual "aquilo que representava a pintura e aquilo que ela testemunhava poderiam ser tomados

69WHITE, Hayden. The content of form: narrative discourse and historical representation. Batimore, The John Hopkins University Press, 1987. p. 147 70NANCY, 1993. p.161 71RICOEUR, Paul. “L'écriture de l'histoire et la représentation du passé”, Annales - Histoire, Sciences Sociales. número 4, 2000. p. 731-747. p. 732 72BONITZER, 1995. p.69

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como a mesma coisa: uma forma ideal, aproximada por uma ascese da semelhança, Deus,

santos, reis, heróis"73. Mas houve uma clivagem interna à representação que, segundo

Bonitzer, começou "com o classicismo, a multiplicação dos trompe-l'oeil e a exclamação de

Pascal: 'Que vaidade a pintura, que atrai a admiração pela semelhança de coisas as quais não

admiramos os originais'"74. Bonitzer considera a sobreposição de uma profundidade fictícia

sobre a superfície bidimensional da tela de cinema como “o gesto ideológico automático,

inaugural da visão de um filme, da experiência da projeção”, e “esta profundidade denota a

realidade na ficção, a realidade da ficção (...) é o que chamamos ‘a impressão de realidade’”75.

Esta contradição da imagem em ser ela mesma e a representação de outra coisa "que a

noção, proposta por Maurice Pirenne, de 'dupla realidade' perceptiva das imagens designa. (...)

Dupla realidade, já que ambos os espaços são realmente percebidos, e, até certo ponto,

percebidos como reais"76. De modo análogo, uma ficção histórica é percebida quanto ao

profílmico e quanto à época do universo diegético representado, o corpo do ator é percebido

como evidência real (o reconhecimento dos corpos e rostos de celebridades apenas acentua

esta evidência) e como portador, por procuração, de uma personagem histórica que de fato foi

real, possuiu um corpo, moveu-se no espaço, falou, participou de guerras, viveu amores e

desilusões, etc. Dupla realidade pois são indistinguíveis os limites entre a percepção do

profílmico e percepção do universo diegético, cujo referente foi real mas que na ficção

histórica só pode surgir como uma aparição fantasmática.

Não é apenas quanto à representação, no entanto, que concerne a dupla realidade da

ficção histórica, não apenas a imagem sobrepõe o real do profílmico com o seu referente real

do passado visado, quanto a narrativa ficcional sobrepõe-se às relações reais que originaram

tal acontecimento, tal época, tais personagens. Há, portanto, uma dupla realidade no nível da

significação, ou há, ao menos, uma sobreposição entre os acontecimentos tal como se

passaram e a significação que lhes é imposta pela narrativa ficcional. Esta é a dificuldade em

analisar uma ficção histórica, é certo que não se trata nem de história nem de historiografia,

mas a intencionalidade da ficção, de origem imaginária, é indissociável de sua origem em

acontecimentos ou estruturas históricas que de fato existiram.

Michel de Certeau diz que a historiografia existe entre duas posições do real: de um

73 BONITZER, 1995. p.70. 74 Ibid. Citação de Blaise Pascal em francês: "Quelle vanité que la peinture qui attire l’admiration par la ressemblance de choses dont on n’admire point les originaux." 75BONITZER, PASCAL. “Hors champs (un espace en défaut)”, Cahiers du Cinéma, número 234, dezembro de 1971, p.15 76AUMONT, 2004. p. 144

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lado “o real enquanto é o conhecido”, o postulado da historiografia; de outro “o real enquanto

implicado pela operação científica”, o resultado da análise historiográfica. E dirá que,

precisamente, “estas duas formas da realidade não podem ser nem eliminadas nem reduzidas

uma a outra. A ciência histórica existe, precisamente, na sua relação”77.

O real da ficção histórica é o impasse da formalização78, ou relação irredutível, entre

duas realidades: 1. Em seu aspecto representativo, entre o profílmico e a época visada pelo

universo diegético, ou seja, impasse da formalização entre a realidade única e não repetível

diante da câmara, que é dada como evidência do mundo presente, e a realidade única e não

repetível do passado, a qual a ficção histórica pode apenas apresentar uma imagem

fantasmática e imprecisa. No nível representativo, também há a dupla realidade entre a

evidência do corpo do ator presente e o corpo ausente do personagem, ao qual ator empresta a

sua imagem; a duração dos acontecimentos no filme e a duração real tal como se passaram; o

espaço profílmico (recriado em estúdio, recriado em computador, locações semelhantes ao

espaço real do universo diegético, locações reais onde os acontecimentos se passaram, mas já

comprometidas pelo tempo, etc.) e o espaço real onde os acontecimentos se passaram; etc. 2.

Em seu aspecto significativo, impasse da formalização entre a realidade dos acontecimentos

no passado empírico, das relações reais que o originaram, suas estruturas, sua ordem, etc., e a

intencionalidade de uma narrativa ficcional, que confere uma significação aos acontecimentos

reais.

O real não desapareceu nem está ausente, ele foi deslocado. Dos objetos, corpos,

espaços ausentes, o real é deslocado para uma forma cinematográfica particular que confere

àquilo que está ausente um modo de visibilidade através de efeitos de época. Jean-Louis

Comolli formula que para que o espectador perceba a ficção histórica como tal, ou seja, para

“fornecer um mínimo de informações, um mínimo de saber histórico” que causem um

reconhecimento imediato sobre os acontecimentos ou época representados como pertencentes

à tempos anteriores ao do espectador, é necessário “produzir um mínimo de efeitos de

época”79. O trabalho do cineasta consiste em agenciar em uma mise en scène estes efeitos de

época de modo a restituir ao presente um aspecto da realidade do passado ausente.

77 CERTEAU, 1982. p.44 78 Alan Badiou cita a definição de Jacques Lacan para o “real” como “o impasse da formalização”. Cf.BADIOU, Alain. À la recherche du réel perdu. Paris: Librairie Arthème Fayard, 2015. p. 28 79 COMOLLI, Jean-Louis. “La fiction historique”, Cahiers du Cinéma, número 278, julho de 1977. p. 5

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2.2. O efeito de época

O efeito de época é a conjugação dos dois conjuntos que constituem o real da ficção

história, o conjunto de sua representância e o da sua significância. Ou seja, os modos de

representação cinematográfica que oferecem a impressão de realidade, mas de uma realidade

de uma outra época; e a significação, através de uma narrativa ficcional, de acontecimentos ou

época que de fato foram reais. O efeito de época realiza a dupla tarefa de objetivar um modo

de visibilidade ao passado tal que o espectador perceba os referentes imaginários do universo

diegético do filme como se fossem reais, ao mesmo tempo em que, encerrando a história sob

uma narrativa, faz com que os acontecimentos históricos, que foram reais, sejam percebidos

como referentes imaginários de uma narrativa ficcional. É evidente que o espectador sabe que

se trata de um artifício e que os acontecimentos são encenados e reproduzidos na projeção,

ainda assim experimenta o filme de modo afetivo e perceptivo.

É preciso, no caso da ficção histórica, separar a ideia de ficção da ideia de mentira,

mas ao mesmo tempo negar que o que se vê é verdade, nem verdade, nem mentira: é o

enunciado da representação cinematográfica. A questão que surge é, se considerarmos que o

efeito de época funciona como um jogo ficcional entre espectador e o filme, que este jogo

evidencia o filme como artifício ao mesmo tempo em que afirma a existência de referentes

que foram reais, e que de modo semelhante no texto historiográfico a narrativa, a explicação e

a compreensão se confundem em um discurso que pretende dar significação ao passado e

homologar os acontecimentos como verdadeiros, o quê efetivamente impede que a ficção

histórica participe como prática historiográfica?

A questão precisa ser analisada com cuidado, de um lado pode-se rapidamente refutar

esta possibilidade sob os argumentos de que os modos de produção da ficção histórica

contradizem a abordagem objetiva da historiografia, que a intencionalidade ficcional é

colocada acima das evidências documentais, que o passado não pode ser restaurado, e que o

filme pode apenas apresentar uma pálida reprodução das aparências. Por outro lado, pode-se

contestar que a abordagem científica seja insatisfatoriamente objetiva, que o texto

historiográfico é tão subjetivo quanto a ficção histórica, que a historiografia carece de uma

metodologia para fazer síntese do passado e, assim, requerer a autoridade sobre a

homologação dos acontecimentos passados.

Se o efeito de época supera a objeção quanto à representação na ficção histórica – é

inequívoco que se trata de tal ator e não de tal personagem histórico, que o espaço e as

indumentárias não são “tais e quais” elas eram, ou seja, superada a aporia da dupla realidade

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da imagem –, resta a objeção quanto a significação que a narrativa ficcional confere aos

acontecimentos. E aqui a questão se complexifica, o argumento de que o texto historiográfico

está tão sujeito à subjetividade do historiador quanto o filme à subjetividade do cineasta é

insuficiente. Na ficção histórica há sempre dois elementos que transbordam o conhecimento

histórico e impedem que a ficção histórica seja um instrumento historiográfico: o grau de

realidade das filmagens que sempre resta como subproduto da imagem cinematográfica, e o

grau de ficção que sempre é adicionado à narrativa. Por mais fiel aos acontecimentos, tal

como eles de fato aconteceram, que o filme pretenda ser (e isto só se pode fazer sujeitando a

ficção aos textos historiográficos), ele está sempre submetido à intencionalidade ficcional,

que se afasta da homologação de uma verdade histórica, o que constitui a intencionalidade

historiográfica.

O efeito de época interfere precisamente na acreditação da narrativa como verdade,

mais do que isso, o efeito de época instaura o avesso da acreditação, que se sobrepõe à

suspensão da descrença, estabelece um contrato entre o espectador e a ficção histórica que

propõe algo como: é certo que estes acontecimentos foram reais e aconteceram mais ou

menos como são apresentados no filme, mas na duração desta narrativa o espectador

experienciará estes acontecimentos como se pertencessem a um universo ficcional,

imaginário. Roger Chartier distingue o “estatuto da verdade na narrativa historiográfica” do

“estatuto da verdade da narrativa historiográfica”, o primeiro remete “à refundação ou às

tentativas de refundação do regime de conhecimento específico da história”, enquanto o

segundo concerne “o contrato passado entre a escritura da história e o leitor da história quanto

à acreditação da narrativa como verdade”80.

A ficção histórica conjuga a suspensão da descrença, ou seja, o espectador experiencia

acontecimentos ficcionais como se fossem verdadeiros (sabendo que são, na verdade,

ficcionais), com o efeito de época, segundo o qual o espectador experiencia acontecimentos

que foram reais sob a formulação de uma narrativa ficcional (sabendo que, com maior ou

menos precisão, eles realmente aconteceram como mostrados). O efeito de época diz respeito

às formas cinematográficas da história empregadas pelo cineasta para produzir uma adesão

perceptiva/afetiva do espectador, a admissão da credibilidade da narrativa, e a crença na

realidade dos acontecimentos, apesar dos intervalos temporais entre a época diegética, a época

profílmica, e a época do espectador. Notadamente o efeito de época distingue-se da impressão

de realidade em filmes de fantasia, horror, ficção científica, etc., por não ter como referente

80 CHARTIER, 1998. p. 29

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diegético corpos ou relações espaciais imaginárias, refere-se a acontecimentos passados ou

que, mesmo quando ficcionais, poderiam ter acontecido em determinada época.

Isto torna-se problemático se considerássemos a ficção histórica como instrumento de

transmissão de conhecimento historiográfico: a dificuldade de depurar a ficção do passado

empírico, de discernir entre os referentes que foram reais e os referentes imaginários da

ficção, que entrecruzam-se e são irredutíveis um do outro. Através da organização das formas

cinematográficas da história o cineasta tem o controle sobre permeabilidade do grau de real

que restará no filme (e interpelará o universo diegético), e o controle sobre a permeabilidade

do grau de conhecimento historiográfico que restará na ficção. Em um filme como La

Commune (Paris, 1871) (2000), de Peter Watkins, por exemplo, há um alto grau de

permeabilidade do real das filmagens, ao mesmo tempo em que há um alto grau de

permeabilidade de conhecimento sobre os acontecimentos históricos. Watkins apresenta

ficcionalmente um contracampo da historiografia que se abre na direção do presente, no qual

as reivindicações do passado relacionem-se com as atuais, produzindo um circuito entre o

passado e o presente, entre a ficção e a realidade, entre o histórico e o atual.

Os efeitos de época, frequentemente, são organizados em uma mise en scène através

dos efeitos de real: Jean-Pierre Oudart descreve o efeito de real como a inscrição, em um

sistema figurativo, de “efeitos de realidade ótica (reflexos, sombras e luz, sobreposição dos

planos, etc.) que constituem os traços da inscrição do sujeitos sob a forma de uma ausência”81.

O efeito de época portanto, através da profusão de efeitos de realidade ótica (cujos referentes

situam-se no passado empírico), insere o espectador como sujeito ausente e observador de um

mundo que não é nem totalmente imaginário, nem totalmente real, mas um mundo que foi real

e que o efeito de época confere um modo de visibilidade. E como confere este modo de

visibilidade? Situando o espectador como ponto exterior à representação, mas mesmo

excluído da ficção histórica “o espectador é implicado fantasmaticamente, ao mesmo tempo

em que ele é inscrito como sujeito dentro do dispositivo cênico”82.

É possível, no entanto, que os efeitos de época não derivem dos efeitos de real: uma

tendência de forma cinematográfica da história tenta atenuar a evidência da perspetiva

temporal ao produzir uma imagem cinematográfica a partir da perspetiva simbólica da época

visada pelo universo diegético (como L’Anglaise et le Duc, 2001, e Perceval le Gallois, 1978,

ambos de Éric Rohmer). Nestes casos os efeitos de época não correspondem,

81 OUDART, Jean-Pierre. “L'effet de réel”, Cahiers du Cinéma, número 228, abril de 1971. p.21 82 Ibid.

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necessariamente, aos efeitos de real, pois podem ser criadas formas nas quais não sejam

visadas a perceção oticamente verosímil do mundo e a inscrição fantasmática do espectador

no espaço cênico. Nestes casos os efeitos de época procuram figurar o espaço tal como ele

seria figurado na época do universo diegético, e não tal como ele seria percebido como se

fosse presente.

Conferir ao passado um modo de visibilidade, no entanto, não é apenas produzir um

modo de realismo que produza um modelo visível análogo ao que foi real, e portanto

submeter a visibilidade das coisas passadas à sua semelhança ótica, e sim produzir formas

significantes que permitam uma concepção do passado como algo representável, não apenas

visível, mas também audível, narrável, encenável, perceptível como se fosse real e como se

fosse presente, em sua aparição fantasmática. Rancière verá nesta dupla realidade,

estabelecida pelo efeito de época, um jogo ficcional que, além da profundidade fictícia,

estabelece-se entre filme e espectador, “jogo do duplo olhar que produz a potência

documental da imagem”83, pois jamais esquecemos que os espaços são reconstituídos em

estúdios ou sobre ruínas, que as roupas foram criadas especialmente para o filme, que os

atores não são os personagens. O passado ausente é como que hipostasiado, sob seu duplo

imaginário, através do jogo ficcional permitido pela ficção histórica.

Jean-Louis Comolli argumenta que “o espetáculo é sempre um jogo, ele requer a

participação dos espectadores não como consumidores, mas como jogadores”, pois “o

simulacro não engana um espectador passivo (não há ‘espectadores passivos’): é necessário

que o espectador participe de seu próprio engodo: o simulacro é o meio que o ajuda a enganar-

se a si mesmo”84, e não seria este engodo a premissa de toda a ficção? É justamente como

Michel Mourlet descreve a premissa da ficção história, como “o desejo profundo do

espectador de escapar de seu espaço e de seu tempo”, mas defende que na ficção histórica a

“virtude dramática” ou “a crença na realidade do espetáculo, é tão forte que o espetador é

arrebatado de seu presente particular, por uma dilatação de suas virtualidades passionais”85.

Mas este “arrebatamento” do espectador de seu próprio tempo se dá por propostas específicas

de mise en scène nas quais o passado é percebido como presente – Mourlet fala

especificamente em filmes de Fritz Lang, Joseph Losey, Raoul Walsh, e Kenji Mizoguchi –,

sendo que outras formas cinematográficas podem provocar um “enraizamento” do espectador

em seu próprio tempo, e portanto uma relação de espaçamento em relação ao passado, ou

83 RANCIÈRE, Jacques. Figures de l’histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 2012. p. 31 84 COMOLLI, 1977. p.9 85 MOURLET, 2008. p.59

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ainda, a “erosão” de sucessivas camadas de tempo, que fazem o presente ser simultaneamente

aproximado e distanciado dos passados que coexistem nele – como nos filmes de Danièle

Huillet e Jean-Marie Straub. A questão da ficção histórica, portanto, já não é mais sobre qual

é o seu real ou qual o seu referente real, mas sim quais os modos de realismo possíveis a

serem empregados pelo cineasta. Se o questionamento sobre o real da ficção histórica nos

envia para uma mediação da realidade através de modos de realismo, resta investigar como

estes modos são empregados e como os efeitos de época são apresentados em uma mise en

scène.

2.3. Entrecruzamento entre história e ficção

Paul Ricoeur propõe que “por entrecruzamento da história e da ficção, entendemos a

estrutura fundamental, tanto ontológica quanto epistemológica, em virtude da qual a história e

a ficção só concretizam cada uma sua respetiva intencionalidade tomando empréstimos da

intencionalidade da outra"86. A ficção e a historiografia emprestam suas intencionalidades

uma à outra, sendo o envolvimento afetivo um possível subproduto da historiografia sem ser a

sua intencionalidade, e a cognição um possível subproduto da ficção. Assim como há um grau

do real das filmagens que resta na ficção histórica, sem necessariamente ser a sua

intencionalidade, há um grau de transmissão de conhecimento historiográfico que resta na

ficção. Através da narrativa de acontecimento históricos “tornamo-nos conscientes de que a

realidade histórica não pode ser separada do ‘artefacto literário’ (termo de Hayden White) no

qual ou através do qual ela é lida”87, ao mesmo tempo em que “uma certa ‘realidade histórica’

resta, atrás da textualidade e da subjetividade, como o real, infinito ou indefinido

desenvolvimento do tempo”88. O que nos leva a supor que, se “por um lado, a história se

serve, de algum modo, da ficção para refigurar o tempo”, por outro “a ficção se vale da

história com o mesmo objetivo”89. Ainda que não constitua a intencionalidade da ficção, não

significa que o conhecimento histórico transmitido não tenha importância ou seja acidental,

pelo contrário, a ficção permite mostrar como evidência no mundo aquilo que o texto

historiográfico só pode demonstrar ao separar do uso comum.

86 RICOEUR, 1997. p.316 87 NANCY, 1993. p.147 88 Ibid. 89 RICOEUR, op. cit, loc. cit.

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A ficção histórica, no entanto, deve mais à disposição dos acontecimentos em uma

narrativa, como nos romances históricos, e à disposição dos acontecimentos em um

enquadramento e em profundidade, como nas pinturas históricas, do que aos métodos e à

homologação de uma verdade dos textos historiográficos. Jacques Aumont argumenta que

"aprender olhando, aprender a olhar: é o tema, também gombrichiano da ‘descoberta do visual

por meio da arte’, da similitude entre ver e compreender. O tema do conhecimento pelas

aparências, que é o tema do século XIX, e o do cinema”90. Daney defende, no entanto, que o

mito do cinema como uma "relação direta com o mundo", no qual "do 'real' ao visual, e do

visual à sua versão filmada, uma mesma verdade se refletia ao infinito, sem distorção nem

perda", é encorajado por uma ideologia dominante que postula "real = visível", pois supõe um

mundo onde dizer "eu vejo" significa "eu entendo"91.

Não se trata de opor a perceção empírica da visão à cognição racionalista, a ficção

histórica incumbe-se de um duplo trabalho: apresentar aparências que transmitem

conhecimentos sobre o passado (os costumes, as relações de trabalho e de poder, a

indumentária, os gestos, a fala, etc.), e suspeitar da capacidade destas mesmas aparências em

transmitir conhecimentos sobre o passado. Walter Benjamin defendia que a legibilidade da

história fosse articulada pela sua visibilidade concreta, imanente e singular92, não se trata

"somente de ver, mas de saber, 'retomar na história o princípio de montagem': princípio

literário (...) princípio cinematográfico"93. O positivismo, que pretende que o conhecimento do

passado seja autenticado sob a reprodução das aparências de como o passado realmente foi,

deve ser subtraído da ficção histórica, trata-se de encontrar formas cinematográficas da

história que, ao articular o passado, apropriem-se "de uma reminiscência, tal como ela

relampeja no momento de um perigo"94. A ficção histórica é um discurso sobre um ausente, "o

objeto que nele circula não é senão o ausente (...) o morto é a figura objetiva de uma troca

entre vivos"95, esta ausência só confere sentido à relação entre os indivíduos e as coletividades

presentes que ela mobiliza. O desafio da ficção histórica, portanto, está em criar formas

cinematográficas capazes de, através de procedimentos ficcionais, articular o passado, não

como uma história realizada, mas o passado ausente como forma presente da origem, que não

se localiza no passado, distante e inacessível, mas no vir-a-ser do presente, portanto em 90 AUMONT, 2004. p. 51 91 DANEY, 2007. p.35 92 DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontages du temps subi. Paris: Éditions Minuit, 2010. p.14. 93 Ibid. 94 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.224. 95 CERTEAU, 1982. p. 55

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constante atualização. No cinema surgiu um gênero de ficção histórica, oriundo da literatura e

da pintura, particularmente relevante quando levamos em consideração formas que

confrontam o presente com a sua origem.

Todo o repertório dramatúrgico do western consagra a passagem para o tempo

moderno, da industrialização, da domesticação técnica da natureza, da imposição da ordem

social através do aparelho jurídico, a conquista e delimitação das fronteiras, o extermínio dos

povos autóctones, etc. Passagem, sobretudo, para a constituição dos Estados Unidos como

nação. O western, apogeu clássico da arte que nasceu moderna, promove o projeto do homem

moderno, restituindo o passado como nostalgia, sob a figura do homem rústico, que John

Wayne é o grande arquétipo. Um dos grandes temas de John Ford é o do indivíduo marcado

pela impossibilidade de estar em mundo em constante transformação, a figura do pioneiro em

confronto com as formas modernas de vida, sendo as imagens que sintetizam esta oposição: a

do cavalo (ou carruagem) e a do trem em movimento.

A estrada de ferro, como observa Aumont, transforma a perceção da geografia e

constitui uma nova experiência do tempo pela "destruição física do espaço-tempo tradicional"

e pela "substituição da moral antiga ligada à natureza, por valores novos, o desejo de

aceleração, a perda das raízes"96, a articulação destas imagens em movimento constituem a

grandeza de Ford como realizador de westerns e, por conseguinte, de ficções históricas.

Enquanto David W. Griffith, diz Sergio Toffetti, em sua participação militante busca

descrever diretamente os acontecimentos, o passado “tal como ele foi”, e assim pensa poder

contribuir em sua determinação, Ford "compreende que 'o nascimento de uma nação' se

desenvolve seguindo um itinerário no qual a geografia se torna mito antes mesmo de tomar as

conotações da história"97.

Gilles Deleuze esquematiza a tese de Leslie Fidle, no livro The return of the vanishing

american, segundo o qual a literatura demonstra que os estadunidenses substituíram a sua

história pela sua geografia: no Leste, a busca de um contato com a velha Europa; no Norte,

dos grandes novelistas, a acelerada industrialização; no Sul da confrontação entre os negros e

os brancos; no Oeste, a confrontação com os ameríndios e um novo sentido das fronteiras98.

John Ford filma o Monument Valley e faz dele o berço geográfico estadunidense por

excelência, de modo a livremente a poder situar uma paisagem texana no monumento

geológico localizado no Arizona, pois este é o espaço do encontro da um povo com a sua

96 AUMONT, 2004. p. 53 97 TOFFETTI, in: DÉNIEL; RAUGER; TATUM, 2014. p.25 98 DELEUZE, Gilles. Cine 1: Bergson y las imágenes. Buenos Aires: Cactus, 2009. p.183

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origem. John Ford, nascido no Norte dos Estados Unidos, filho de imigrantes irlandeses, faz

do Oeste estadunidense uma "representação metonímica de um presente o qual buscamos

identificar, ao mesmo tempo, a sua genealogia e a sua natureza própria"99.

André Bazin elabora uma belíssima fórmula: “o western é o contrário perfeito de uma

reconstituição histórica”100. Se John Ford dedica grande parte da sua filmografia aos westerns

devemos considerar, como Bazin, que "seria tão errôneo ignorar as referências históricas do

western quanto negar a liberdade sem embaraço de seus roteiros", pois "as relações da

realidade histórica com o western não são imediatas e diretas, mas dialéticas"101. Há uma cena

muito frequente em Ford, a vemos no desfecho de Fort Apache, a vemos em Sergeant

Rutledge (1960), a vemos em The man who shot Liberty Valance (1962), cena em que há a

uma revelação que desconstrói algo até então tido como verdadeiro, desmistificação do

campo historiográfico e, por trás desta verdade, estão sempre os heróis anônimos, fazendo

destes filmes verdadeiros monumentos aos lados ocultos da história, verdadeiros

contracampos ao campo historiográfico.

Alain Badiou diz que o real avança mascarado, então é preciso o desmascarar, mas "é

preciso o desmascarar ao mesmo tempo em que temos em conta o real da própria máscara"102,

o entrecruzamento entre ficção e história permite tanto revelar o caráter ficcional da história

quanto assegurar a capacidade de se manter um discurso sobre o passado, é exatamente o que

faz Ford no final de The man who shot Liberty Valance. Gérard Bras questiona se a verdade

está no último relato de Tom Doniphon, personagem interpretado por John Wayne, sobre que

realmente aconteceu, ou na decisão do repórter em não publicar as coisas como elas

aconteceram103. Quando Ransom Stoddard, personagem interpretado por James Stewart,

pergunta se o repórter irá publicar a história verdadeira, este o responde com a célebre frase:

This is the West, Sir. When the legend becomes fact, print the legend. Bras defende que

"mostrar o caráter mítico do mito, já é o destruir"104, Ford não apenas desmascara o mito,

como nos mostra a realidade de que existe uma máscara, ele não rejeita o discurso

99 RAUGER, Jean-François. “L'irréversible et la nostalgie”. in: DÉNIEL; RAUGER; TATUM, 2014. p.11 100 BAZIN, André. “O western ou o cinema americano por excelência”. in O Cinema - Ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. p. 202 101 Ibid. 102BADIOU, 2015. p. 22 103BRAS, Gérard. “La constitution imaginaire du peuple”. in: DÉNIEL; RAUGER; TATUM, 2014. p.87 104Ibid.

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historiográfico, mas o evidencia como uma construção. É o que argumenta Georges Didi-

Huberman ao dizer que não é necessário

“desqualificar certas imagens sob o pretexto de serem ‘manipuladas’, pois “todas as imagens do mundo são o resultado de um trabalho combinado no qual interveio a mão do homem (...) a verdadeira questão seria, portanto, saber em cada vez −em cada imagem−, o que fez a mão exatamente, em qual sentido e para quais fins a manipulação operou-se”105.

Este é o duplo trabalho da ficção histórica e o predicado epistemológico da

historiografia contemporânea, trata-se de sujeitar-se a “duas exigências mutualmente

excludentes: fazer afirmações verdadeiras e, apesar disso, admitir e considerar a relatividade

delas”106. Como argumenta Michel de Certeau, não se pode “tomar o discurso fora do gesto

que o constitui, numa relação específica com a realidade (passada) na qual ele se distingue, e

não levar em consideração, por conseguinte, os modos sucessivos dessa relação”107. O

dispositivo em The man who shot Liberty Valance consiste em "mostrar que o ponto de vista

imediato, de uma imaginação reagindo espontaneamente, deve ser criticado por um outro

ponto de vista que permite refletir sobre a sua relatividade"108. E o que é mais evidente em

John Ford é que ele desconstrói o aparato ideológico por trás do discurso historiográfico e nos

mostra a relatividade do ponto de vista através uma proposta de mise en scène, uma proposta

de forma cinematográfica da história.

2.4. A encenação do passado

Nas ficções históricas cujo universo diegético é posterior à invenção da câmara

cinematográfica e, sobretudo, posterior à invenção do fonógrafo, a questão do grau de

ficcionalização é mais fácil de ser abordada. Pode-se averiguar se certas palavras ditas por

uma liderança política durante a Segunda Guerra Mundial foram inventadas em proveito da

intencionalidade da ficção, e se outras palavras foram as mesmas que as ditas por tal pessoa.

Podemos dizer, ainda que as palavras sejam as mesmas, que a situação ou contexto em que

foram ditas divergem de como é apresentado no filme, que o modo em que as palavras foram

ditas ou o modo como tal personagem se move no espaço foram exagerados, etc. Nestes casos

105 DIDI-HUBERMAN, 2010. p. 71 106 KOSELLECK, 2006. p.161 107 CERTEAU, 1982. p.50 108 BRAS, op. cit. p.87

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torna-se mais evidente as relações entre a imagem histórica, registada in locu e o seu duplo

em uma ficção histórica. Isto pode, dependendo do grau de realismo pretendido, condicionar a

permeabilidade ficcional do filme.

Mas como acreditar naquilo que, quando não sabemos se tratar de pura invenção

ficcional, não temos métodos em saber se foi realmente dito ou feito da maneira como nos é

apresentada? Como acreditar no que surge de um esforço imaginativo e que só pode ser

afirmado sob o relativismo do provável? Comolli diz que o “como acreditar” é uma das

grandes questões do cinema, “que funda e lança a mecânica ficcional”, e que em uma ficção

histórica a questão se torna em acreditar apesar das dificuldades e dos obstáculos que

interferem com a crença, acreditar apesar “dos indícios da verdade e das provas referenciais

que empregam-se em substituir uma ordem do saber pelo jogo da crença”109. A ficção história,

portanto, torna-se “uma espécie de analisador que força ao limite mais revelador as condições

do exercício e dos riscos do jogo de toda ficção cinematográfica”110.

O efeito de época nos mostra que é através daquilo de mais imaginário que uma ficção

histórica apresenta que este jogo ficcional é disposto, e que força o limite entre a crença no

passado empírico e a crença na narrativa da ficção. O que faz que uma ficção seja “histórica”

não é o que a aproxima da historiografia mas o que a afasta, por poder conferir um modo de

visibilidade à tudo o que falta ao texto historiográfico, aquilo que só pode surgir através de

um esforço imaginativo, investir sobre a história uma carga ficcional: colocar na boca dos

personagens palavras que nunca saberemos se foram ditas, dar formas à corpos que

desconhecemos, conferir-lhes um modo de andar, falar, comer, praguejar, relacionar-se com

outras pessoas e com o espaço, em suma, circunscrever o conhecimento histórico dentro de

um mundo em movimento, criar uma forma cinematográfica para o passado.

A ficção histórica apresenta informações que só podem ser descobertas pela

investigação histórica sob uma forma que só pode ser revelada pela imagem cinematográfica.

A realidade do passado empírico, “que se exilou em linguagem”, é restituída sob a forma de

um mundo onde as pessoas trabalham segundo as relações de poder do passado, relacionam-

se de acordo com as relações morais e institucionais do passado, falam de acordo com as

estruturas linguísticas do passado, caminham e gesticulam de acordo com o seu tempo, etc.

Antoine de Baecque diz que “o cinema é a arte que dá forma à história, pois é aquela que

pode mostrar uma realidade de um momento dispondo os seus fragmentos segundo uma

109 COMOLLI, 1977. p.6 110 Ibid.

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organização original: a mise en scène. E é assim que torna visível a história”111.

Em uma ficção história, dentro de um mesmo enquadramento podemos ver distintas

organizações sociais, econômicas, morais, institucionais, etc., que em um texto historiográfico

precisam ser apresentadas separadamente. Pode-se argumentar que, similarmente, também o

fazem a pintura e o romance, mas apenas o cinema é capaz de restituir ao presente o tempo

humano do passado empírico. Podemos concluir, como Ricoeur, que “a refiguração efetiva do

tempo, tornado assim tempo humano”, só pode ser realizada “pelo entrecruzamento da

história e da ficção”112. E quando Ricoeur refere-se à ficção, não se trata apenas daquilo de

imaginário que compõe a disposição de uma narrativa ficcional, mas todo o caráter imaginário

“atestado no trabalho de pensamento que acompanha a interpretação de um resto, de um

fóssil, de uma ruína, de uma peça de museu, de um monumento”113, logo, o trabalho de ficção

também entra na prática do historiador quando ele precisa imaginar o mundo provável que os

rastros só podem sugerir. “Só lhe atribuímos seu valor de rastro, ou seja, de efeito-signo, ao

nos afigurar o contexto de vida, o ambiente social e cultural, em suma, segundo a observação

de Heidegger, o mundo que, hoje, falta, por assim dizer, ao redor da relíquia"114, ora, de modo

análogo, a ficção histórica tenta figurar esta realidade ausente ao propor um modo de

visibilidade para este mundo que falta.

Ricoeur formula que o que constitui a problemática da representação da história é que,

ao contrário da memória, a história não tem o privilégio do reconhecimento e da

reminiscência115, o que nos leva a questionar como a ficção histórica propõe uma forma

cinematográfica da história que permita, não apenas a visibilidade no presente do tempo

humano do passado, mas uma concepção do passado como algo representável? Da mesma

forma usamos a noção de história para criar narrativas historiográficas que dão sentido ao

passado, acreditamos viver dentro da história para tentar dar sentido ao tempo presente. A

mise en scène é a forma com a qual o espectador, o olhar privilegiado e central de um filme,

possa ser inserido dentro do passado como se fosse presente. E assim a mise en scène nos

ajuda a compreender que os acontecimentos não são históricos, mas sim que usamos a noção

de história para organizar os acontecimentos sob uma forma que lhes dê sentido e que faça do

passado algo concebível.

111 BAECQUE, 2008. p.48 112 RICOEUR, 1997. p.315 113 Ibid. p.320 114 Ibid. 115 RICOEUR, 2000. p. 736

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3. FORMAS CINEMATOGRÁFICAS DA HISTÓRIA

Até aqui a ficção histórica foi referida como uma abstração, como se fosse um gênero

cinematográfico com formas e práticas bem definidas, as quais se relacionariam

homogeneamente com as distintas objeções encontradas por um cineasta ao representar uma

época ou um acontecimento passado. É evidente que cada filme relaciona-se de uma forma

diferente com a dificuldade da representação das coisas passadas e com a época particular de

cada universo diegético representado. Neste capítulo será analisado como o ponto de vista de

um cineasta sobre a história é refletido nas formas cinematográficas da histórica empregadas

em uma proposta de mise en scène particular. Para tanto serão analisadas um conjunto de

ficções históricas de Éric Rohmer, de Clint Eastwood, de Roberto Rossellini, e de Danièle

Huillet e Jean-Marie Straub, para delinear quatro tendências de formas cinematográficas da

história, e demonstrar como mise en scènes heterogêneas são resultado de diferentes pontos de

vista sobre a história e sobre os possíveis modos de visibilidade do passado.

3.1. O espaço figurativo nas ficções históricas de Éric Rohmer

Em sua terceira ficção histórica Éric Rohmer realiza L’Anglaise et le Duc (2001),

adaptação da autobiografia de Grace Elliott, no qual narra em episódios a flutuante relação da

aristocrata escocesa com o Duque d’Orleães durante o Período do Terror da Revolução

Francesa. Grace Elliott não é uma heroína, não é uma figura forte da história de seu tempo, é

uma ex-amante do Duque d’Orleães cujos posicionamentos políticos são ambíguos, é uma

personagem que testemunha os acontecimentos de seu tempo e cujos atos derivam da

especificidade histórica de seu tempo. Grace Elliott não se distingue tanto de outras

personagens de Rohmer, frequentemente mulheres de classe média ou alta que não possuem

objetivos definimos ou perspetivas futuras, parecem habitar um presente puro, vivem em

trânsito ou fuga de um espaço urbano em direção ao campo ou ao litoral, o tempo procede por

elipses que conservam os segredos calados nas personagens, segredos que nos escapam. A

ambiguidade de Grace Elliott está na manutenção de seus segredos: ela se opõe à execução do

rei, mas porta uma carta dirigida à Charles Fox, político inglês amigo dos revolucionários,

suas relações com as outras personagens nunca são transparentes, nem para o espectador e

nem para as personagens.

Grace Elliott vive os acontecimentos históricos com o distanciamento de uma

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estrangeira, como os protagonistas dos romances históricos de Walter Scott analisados por

Lukács, é uma personagem que “por seu caráter e destino, põem em contato os dois lados do

conflito”116. É claro que se trata do ponto de vista de uma aristocrata britânica, e a maior

acusação contra Rohmer foi a forma injusta com a qual o povo e os revolucionários são

representados. De fato, nas ruas os soldados são bárbaros e a sua vozes são grunhidos, os

únicos representantes da população dos quais escutamos a voz são os empregados de Grace

Elliott, fiéis à sua empregadora. Mas tampouco há uma voz contrarrevolucionária substancial,

o Duque, apesar de apoiar a Revolução, é um conspirador autocentrado, e Grace Elliott

mantém-se fiel à monarquia, mas seu o posicionamento é incerto.

Experienciamos o vir-a-ser da história ao lado de uma testemunha de seu tempo, e não

de um agente histórico cujos atos foram determinantes para o destino dos acontecimentos.

Exceto o Duque d’Orleães, os personagens historicamente relevantes aparecem brevemente, e

surgem apenas em relação aos acontecimentos da vida da protagonista. Os acontecimentos

históricos da Revolução Francesa são ordenados ao redor da vida da protagonista, só surgem

em relação às consequências na vida de Grace Elliott. Os episódios históricos não são

hierarquizados pela sua importância no desenrolar na Revolução Francesa, mas como

conflitos na trajetória da personagem. A única sequência em que vemos conflitos armados,

por exemplo, é quando a Grace Elliott se expõe a uma situação de risco ao sair às ruas

parisienses.

O episódio em que Grace Elliott refugia em sua casa um monarquista ferido, desafiando

os soldados revolucionários, é notável para a composição da ambiguidade da personagem.

Não se trata de um acontecimento de grande importância histórica, Grace Elliott não o faz por

uma ideologia contrarrevolucionária, nem pelo favor que ela devia para o homem

(Champcenetz, o Governador das Tulherias), ela o faz por um sentido de respeito à vida de

um homem. O episódio traz certas semelhanças com Era notte a Roma (1960), de Roberto

Rossellini, no qual três prisioneiros de guerra são refugiados no sótão da casa de uma italiana

durante o regime fascista. Não há nada de antifascista na personagem de Rossellini, antes pelo

contrário, ela refugia os prisioneiros apenas para regatear produtos no mercado negro. Mas no

caso de Rossellini, é evidente, este encontro sensibiliza na personagem, que até então

granjeava-se em relativa harmonia com o regime fascista, uma revelação bruta das injustiças

de seu tempo, o que a transforma incontornavelmente. Já o encontro de Grace Eliott com

Champcenetz não produz uma transformação significativa, apenas reforça a posição da

116 LUKÁCS, Gyorgy. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011. p.53

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protagonista como uma estrangeira que condena a violência que testemunha, mas que não

assume um posicionamento ideológico definido. Em ambos os casos os atos humanitários são

despegados de filiações ideológicas e revelam o sentido humano da união e do amparo diante

de uma violência.

Logo no primeiro plano de L’Anglaise et le Duc instaura-se a forma cinematográfica da

história escolhida para dar visibilidade a um mundo desaparecido, para povoá-lo com o

fantasma de uma vida imaginária: um quadro estático de uma rua de Paris, estamos no final

do século XVIII, não há dúvidas. Mas, sobretudo, estamos dentro da figuração de um espaço

tal como ele seria figurado ao final do século XVIII, estamos dentro de um quadro, de uma

vista urbana. De um quadro estático ao outro o espaço é construído enquanto uma narração

explica o contexto histórico, um percurso é estabelecido e nos leva aos personagens: dois

retratos na parede, Grace Eliott e o Duque. Um cartela anuncia a última informação, o ano

1790, e os corpos imóveis dentro do quadro começam a se mover.

O que parece, em uma análise superficial, um filme estrangeiro dentro do realismo dos

outros filmes de Rohmer, é apenas um deslocamento do real visado. O filme é construído em

um profundo respeito ao realismo, não por conferir ao passado uma visibilidade como se fosse

o presente, o que Rohmer realiza é ainda mais intrigante, ele constrói uma imagem do passado

que é percebido como se fosse presente a partir de uma figuração do espaço como se fosse

passado. Rohmer encontra uma forma cinematográfica de visibilidade do passado percebido

no tempo presente, ao mesmo tempo em que a imagem é localizada no espaço passado. O

realismo de Rohmer está em respeitar o espaço figurativo da época do universo diegético,

vemos em L’Anglaise et le Duc uma construção, através de um cenário artificial, de uma

rigorosa coerência com a conceção figurativa do espaço no final do século XVIII e,

sobretudo, como ele seria representado no final do século XVIII.

Similarmente, em outra adaptação literária de outro cineasta, em Ne touchez pas la

hache (2007), de Jacques Rivette, há, em outros termos, um respeito à realidade da época do

universo diegético. Rivette busca um valor da cena e do espaço a partir das concepções da

época do universo diegético, sem deixar prolongar seus temas mais profundos. Se na ficção

histórica de Rohmer há o profundo respeito ao espaço figurativo da época, Rivette respeita o

jogo: profundo regozijo em relação aos jogos amorosos do início do século XIX, valor dos

costumes (os trajes, os bailes, o cortejo), dos gestos (como as personagens cumprimentam,

acenam, despedem), e dos objetos (o relógio o qual o criado esquece de dar corda, os sinos

pelos quais Antoinette chama seus criados), respeito aos elementos da época que compõem o

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jogo. Desta forma o filme de Rivette não apenas entranha-se nas relações humanas da época,

como, apesar de se tratar de uma narrativa ficcional escrita por Balzac, dificilmente seria

adaptável em outra época que não o início do século XIX, pois o jogo é profundamente

marcado pelo contexto histórico e social da França no período da Restauração.

Questionado sobre influências em L’Anglaise et le Duc, Rohmer diz não gostar de como

o espaço é representado, nem de como as pessoas se comportam na maioria dos filmes

históricos, “as atuações são muito século XX, muito americanas”117. A solução de Rohmer é

figurar o espaço desde o interior do tempo do universo diegético para, ao menos, atenuar a

perspetiva temporal da época em que o filme é realizado. Em Perceval le Gallois (1978)

Rohmer já propunha algo parecido: os cenários, interpretações e movimentos dos personagens

podem ser considerados teatrais ou artificiais, mas trata-se de um deslocamento do real visado

pelo realismo de Rohmer. A imagem do filme não figura um espaço análogo à experiência do

mundo, mas sim, busca a representação simbólica da experiência do mundo medieval. Trata-

se de um profundo realismo, mergulhar na conceção do mundo de acordo com os parâmetros

contemporâneos ao tempo visado pela ficção histórica. Ao final do filme, em uma cena em

que é encenado um episódio da vida de Jesus Cristo, a figuração é elaborada de acordo com o

modo como o indivíduo da Idade Média figuraria o seu passado: como na pintura medieval

europeia, Jesus Cristo é um europeu jovial, áureo, de olhos claros, e os soldados romanos que

guardam o calvário vestem-se como cavaleiros medievais. O passado, dentro do filme, é

figurado como seria figurado pelos contemporâneos do universo diegético.

No primeiro texto de Éric Rohmer publicado nos Cahiers du Cinéma, intitulado Vanité

que la peinture, podemos encontrar o imo de seu realismo, ele dissipa o sofisma segundo o

qual “onde não há intervenção do homem não há arte” argumentando que diante de uma obra

de arte é sempre “sobre o objeto pintado que o amador porta primeiro o seu olhar, e se ele

considera a obra e o criado é somente por uma reflexão secundária”, para Rohmer o realismo

não é uma busca da aparência das coisas, mas de sua beleza: “a finalidade primeira da arte é

de reproduzir, não o objeto, mas sua beleza; aquilo que chamamos de realismo não é mais que

uma busca mais escrupulosa desta beleza”118. Anos mais tarde Rohmer dirá que “ao construir

sua ficção com o próprio real, o autor de um filme é mais um demiurgo que um criador, ou, ao

117 ROHMER, Eric. Entretien – Eric Rohmer revient sur ‘L’Anglaise et le Duc’, 2010. Disponível em: <http://www.telerama.fr/cinema/eric-rohmer-revient-sur-l-anglaise-et-le-duc,51422.php>. Acesso: 25 de maio de 2016. 118 ROHMER, Éric. “Vanité que la peinture”, Cahiers du Cinéma, número 03, junho de 1951. p.24

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menos, a criação só se exerce em um segundo plano”119. Assim a noção de realismo em

Rohmer afasta-se das definições correntes, enfatiza-se mais na busca da essência da beleza

através da criação do artista do que na reprodução da aparência das coisas, é o que nos

permite considerar suas ficções históricas tão realistas quanto seus outros filmes.

Jacques Aumont aponta como a partir da perspectiva artificialis, “procurou-se copiar a

perspetiva natural processada pelo olho humano (...) uma opção ideológica ou, mais

amplamente, simbólica: fazer da visão humana a regra da representação”120, em Perceval le

Gallois, portanto, representar o espaço a partir do olho humano seria trair o real visado pelo

realismo de Rohmer. Em Perceval le Gallois os efeitos de época não produzem o efeito de

real, a imagem não é análoga ao espaço tal e qual ele era na Grã Bretanha da baixa Idade

Média, mas sim ao espaço figurativo da época, o real visado é a perspectiva simbólica da

imagem medieval e a experiência do tempo medieval. Aumont esclarece que a imagem

medieval é caracterizada pelo “retorno à teoria da imagem como expressão de uma essência,

e, somente à título acessório, contingente, como imitação da aparência”121.

O realismo de Rohmer está em tentar figurar a perspetiva simbólica medieval, ou seja,

anterior à perspetiva artificialis, ainda que contaminada pela perspetiva da imagem

cinematográfica. Mas a perspetiva não é “uma convenção arbitrária (...) cada período histórico

teve 'sua' perspetiva, isto é, uma forma simbólica de apreensão do espaço, adequada a uma

concepção do visível e do mundo"122. O desafio de Rohmer foi tentar buscar uma forma

cinematográfica para a perspectiva medieval, em uma tentativa de figurar através de uma

imagem cinematográfica um espaço anterior à perspetiva artificialis, anterior às normas de

figuração dos reflexos e das sombras, à composição volumétrica dos corpos e dos objetos, ao

respeito à manifestação física da luz, trata-se da representação de um espaço anterior ao olho

humano como centro do mundo, anterior à "inscrição do sujeito no sistema representativo da

pintura europeia”123, figuração de um espaço anterior à proliferação dos efeitos de real.

Quanto à experiência do tempo, Agambem argumenta que “toda concepção da história é

sempre acompanhada de uma certa experiência do tempo que lhe está implícita, que a

condiciona e que é preciso, portanto, trazer à luz”124, uma das grandes questões da mise en

119 ROHMER, Éric. “Le celluloid et le marbre (V): Architecture d'Apocalypse”, Cahiers du Cinéma, número 53, dezembro de 1955. p.24 120 AUMONT, 2012. p.224 121 Idem. El rostro en el cine. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1998. p.22 122 Idem, 2012. loc. cit. 123 OUDART, 1971. p.20 124 AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.111

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scène, seja em uma ficção histórica ou não, é a de exprimir esta experiência do tempo, própria

da época do universo diegético, ou própria da época em que o filme é realizado. Agamben

dirá que “a contradição fundamental do homem contemporâneo é precisamente a de não haver

ainda uma experiência do tempo adequada à sua ideia da história”125. A questão da

experiência do tempo é investigada pelo cineasta através de escolhas de mise en scène, ao

longo da realização de um filme, de modo a reagir à seguinte pergunta: uma ficção histórica

deve exprimir a experiência do tempo da época em que é produzida ou a experiência do

tempo da época do universo diegético?

Quanto à experiência do tempo medieval, Agamben esclarece que:

“A quête, ou seja, a tentativa do homem que pode conhecer o bem somente per scientiam de fazer dele experiência, exprime a impossibilidade de unir ciência e experiência em um único sujeito. Por isso, Perceval, que vê o graal, mas exime-se a ter dele experiência, é o personagem emblemático da quête, não menos que Galaad, cuja experiência do graal abisma-se no inefável. Desse ponto de vista, o graal (...) é simplesmente o que constitui a própria experiência humana como aporia”126

Em Perceval le Gallois acompanhamos esta experiência do tempo própria das quêtes

medievais, quando Perceval sai da casa materna encontra um mundo diante do qual não

possui nenhuma experiência, tudo o que faz e diz tem o frescor de uma primeira vez. Se per

scientiam os anjos são as criaturas mais bonitas já criadas, ao ver um cavaleiro e considerá-lo

a criatura mais bonita que já viu, Perceval considera-o, per experientiam, um anjo. Após

tornar-se um cavaleiro Perceval entra na corte do rei montado em seu cavalo, pois nunca vira

um cavaleiro desapear. O tempo, em Perceval le Gallois, é menos o da duração que escorre de

um instante ao outro do que o da aquisição do conhecimento através da experiência, mas a

mise en scène de Rohmer é mais complexa do que simplesmente buscar a figuração da

perspetiva e da experiência do tempo medieval, trata-se da busca por uma forma

cinematográfica da história, o que não deixa de ser uma “quête” moderna.

A particularidade do realismo de Rohmer não faz de suas ficções históricas um trabalho

de luto ou nostalgia das formas passadas, muito pelo contrário, assim como o olhar do

Renascimento sobre a Antiguidade os impulsionava à vanguarda, a pesquisa de Rohmer em

Perceval le Gallois enquadra-se em uma figuração própria do cinema moderno. Na

frontalidade e no achatamento das pinturas medievais, isto é, em sua perspetiva simbólica,

125 Ibid. p.121 126 Ibid. p.38

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Rohmer encontra afinidades com a profundidade de campo reduzida, particular à filiação

moderna que pretendia minimizar os efeitos ilusionistas. Serge Daney define como moderno

“o cinema que assumiu essa não-profundidade da imagem”, cinema que surge no pós-guerra

“sobre as ruínas de um cinema enfraquecido e desqualificado, sobre a recusa fundamental da

aparência, da direção, da cena” e “sobre um divórcio com o teatro”127. O décor da Grã-

Bretanha medieval arturiana e as pantomimas de Perceval nos enviam ao espaço figurativo da

pintura e ao repertório gestual como figurados na Idade Média (sobretudo em relação às

ilustrações de manuscritos medievais). Mas este mesmo décor no envia, simultaneamente,

para os filmes de F. W. Murnau, os cenários que se contorcem sobre as personagens e os

gestos expressivos.

A tentativa de encenar os gestos reais dos cavaleiros medievais, tal como teriam feito no

passado empírico, significaria ter de os inventar a partir do repertório gestual do presente, o

que trairia o realismo rohmeriano. Diante da impossibilidade de restaurar o passado, o mais

real e fiel à época visada seria respeitar a realidade transmitida pelas representações da época:

música, pintura, e literatura. O prazer do filme está neste jogo de contemplar a perspetiva

simbólica medieval e experimentar, não o mundo, mas a narrativa, através da experiência do

tempo medieval, mas ao mesmo tempo ainda estar em plena modernidade cinematográfica.

Em L’Anglaise et le Duc, de modo semelhante, não há mera nostalgia das formas

passadas, Rohmer precisa solicitar as mais avançadas técnicas de produção de imagem

disponíveis nos anos 2000, sendo o filme mais caro de sua carreira e o único gravado em

formato digital. Para figurar o espaço tal como seria figurado no final do século XVIII

Rohmer enquadra grandes planos estáticos de vistas urbanas de Paris em 1790. “Pedi para um

pintor, Jean-Baptiste Marot, partir de quadros existentes para reconstituir a Paris da época”,

explica Rohmer, “nós tínhamos os cenários pintados sobre os quais fazíamos avançar os

personagens filmados separadamente, segundo a técnica, hoje constante, da incrustação”128.

Esta opção de respeitar a figuração dos espaços urbanos, segundo os quadros da época, limita

a distância com a qual Rohmer filma os corpos, deste modo o cineasta tem poucas escolhas

quanto à relação justa entre a câmara e seus personagens, os corpos parecem atravessar mais

um quadro do que um espaço, o que é o mesmo que dizer que os corpos atravessam mais um

espaço figurativo da pintura europeia da época do que o espaço imediato como percebido pela

câmara cinematográfica.

127 DANEY, 2007. p.231 128 ROHMER, 2010.

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A relação com a pintura, no entanto, não se mede por composições de planos tableau:

Pascal Bonitzer explica que a função do plano tableau é dialógica, trata-se de um “discurso de

duas vozes, mistura instável do alto (a pintura) e do baixo (o cinema)” evidentes pela

“disjunção acentuada entre o movimento do plano e a imobilidade do quadro”129. Os planos

em L’Anglaise et le Duc não são dialógicos, a referência à pintura da época é evidente, mas o

espaço pictórico e o espaço cinematográfico sobrepõem-se um ao outro, não têm função

dialógica, mas sim uníssona. Aumont diz que “o espaço não é um percepto, como são o

movimento ou a luz, ele não é visto diretamente, e sim construído, a partir de percepções

visuais”130, o que Rohmer faz, a partir de suas escolhas de mise en scène, é a construção de um

espaço no qual o espaço figurativo da pintura adquire uma forma cinematográfica, e este

espaço figurativo da pintura torna-se um espaço narrativo cinematográfico. Neste processo de

dupla impurificação entre pintura e cinema, ao menos nas cenas exteriores de L’Anglaise et le

Duc, a pintura perde a qualidade centrípeta de sua moldura, que segundo Bazin “constitui uma

zona de desorientação do espaço (...) A moldura polariza o espaço para dentro, tudo o que a

tela nos mostra, ao contrário, supostamente se prolonga indefinidamente no universo”131. No

filme, como podemos observar na sequência em que Grace Elliott e sua criada, fogem pelas

ruas de Paris, no limite de um quadro surge um novo quadro, estendendo-se até as duas

chegarem ao seu destino final. Assim, nesta dupla impurificação, a moldura da pintura perde

algo de seu aspecto assim como o contracampo cinematográfico perde algo, mas ambos não

se subtraem um ao outro. O contracampo, nas cenas exteriores, não tem a natureza de

prolongamento do espaço anterior, como em uma pintura cada novo quadro forma um sistema

fechado. Quando Grace Elliott e sua criada olham pela janela, vemos o que elas veem, mas a

imagem que vemos não parece ser uma extensão de seu olhar, parece descolada do plano

anterior.

Similarmente, o quadro cinematográfico perde aquilo que nele, além do contracampo,

é o avesso da moldura: a mobilidade da câmara, condenando o olhar à imobilidade. Se por um

lado a câmara é fixa e observa de uma distância delimitada pelas vistas urbanas da época, por

outro, uma duração é investida no interior deste enquadramento, corpos movem-se de um

ponto ao outro no espaço, o quadro ganha a temporalidade do movimento, em oposição à

temporalidade da profundidade. Rohmer busca uma forma cinematográfica para figurar um

espaço anterior ao cinema, espaço dos interiores e dos panoramas urbanos da pintura do final

129 BONITZER, 1995. p.30 130 AUMONT, 2004. p. 142 131 BAZIN, 1991. p.173

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do século XVIII, mas busca, sobretudo, este espaço figurativo do qual o cinema é, de certa

forma, prefigurado.

Arlette Farge questiona a efetividade do uso dos cenários pintados em L’Anglaise et le

Duc, que só servem para “as cenas exteriores e, em particular, às cenas violentas (...) jamais

para os interiores elegantes e pacíficos dos aristocratas em seus belos salões com cenários

reais”, ela critica ainda que os planos exteriores mostram os corpos humanos do povo em

dimensões minúsculas “como marionetas animadas”, enquanto são “pessoas verdadeiras nos

interiores em cenários reais. Dois mundos separados”132. A posição de Arlette Farge é

manifestada em relação aos corpos que ocupam o espaço, e de fato, mesmo antes da

Revolução Francesa, pintores como Jean-Baptiste Greuze pintavam os interiores da população

francesa, as pinturas de interior não figuravam exclusivamente monarcas ou aristocratas.

É evidente que no filme a construção dos espaços interiores é bastante distinta dos

espaços exteriores, mas a oposição entre os espaços internos e os espaços externos é um tema

frequente nos filmes de Rohmer. Ademais, os quadros de vistas urbanas na pintura francesa

da época distinguem-se bastante dos quadros de interiores, notadamente aqueles que figuram

os interiores dos aristocratas. Em L’Anglaise et le Duc, quanto ao enquadramento do espaço, à

luz, à figuração da aristocracia, e ao repertório gestual, as cenas interiores aproximam-se

muito de quadros de pintores como Michel Garnier e Louise Le Brun. A pintura francesa do

final do século XVIII não figurava os interiores da mesma maneira que os exteriores, o acervo

do Museu Carnavalet, principal fonte consultada pelo cineasta, mostra inúmeras vistas

urbanas panorâmicas onde todos os corpos humanos são figuras diminutas, como o espaço

exterior figurado no filme.

O comentário de Farge é pertinente quanto à natureza facciosa da representação do povo

ao longo do filme, mas não pode ser reduzido ao tratamento da figuração dos corpos nos

espaços interiores e exteriores, os revolucionários são tão selvagens nos interiores quanto nos

exteriores, e os interiores reais com pessoas reais não são apenas os interiores aristocráticos,

mas também as prisões e os tribunais dos revolucionários. Farge observa também o contraste

entre as vozes da população, que no filme aparecem como insultos ou onomatopeias, frases

inacabadas quase animalescas, enquanto Grace Elliott e o Duque d’Orleães trocam belas e

132 FARGE, Arlette; JOUHAUD, Christian. L’Anglaise et le Duc – Entretien réalisé à Paris le 7 septembre par Nadia Meflah, 2001. Disponível em: <http://www.objectif-cinema.com/interviews/049.php>. Acesso: 30 de maio de 2016.

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articuladas frases133. Rohmer justifica-se apoiado sobre a fidelidade ao texto de Grace Elliott,

diz ele: "eu não pretendo procurar a verdade. Eu utilizei esta história como um romance"134.

Christian Jouhaud argumenta que autobiografia de Grace Elliott, no entanto, foi escrita apenas

em 1801 e publicado postumamente em 1869, após várias alterações, e depois “reeditada duas

vezes, em 1907 e também em 1942, data que não é insignificante pois havia um importante

programa de reedição de textos antirrevolucionários, programas evidentemente ligados ao

ódio do regime de Vichy pela Revolução”135.

Se nos ativermos apenas sobre o fato de que o filme baseia-se nas memórias de uma

aristocrata inglesa, amante do duque d’Orleães, seria inconsistente mostrar os revolucionários

como qualquer coisa além de bárbaros. O ponto de vista da narrativa é Grace Elliott, só seria

plausível revelar a violência à qual a revolução contrapõe-se caso o filme narrasse algum tipo

de transformação da personagem, uma trajetória de revelação e tomada de consciência, o que

não acontece. Assim poder-se-ia argumentar que o realismo de Rohmer vai ao ponto de,

mantendo-se sempre junto à protagonista, autora da narrativa e testemunha dos

acontecimentos, respeitar a realidade intelectual da autora. A voz do povo para Grace Eliott,

portanto, não passaria de um rugido de uma plebe rude e ignara, como está presente no filme,

e a exigência de um rigor histórico seria ignorar a natureza do filme.

O argumento de Rohmer sobre a fidelidade ao texto, no entanto, nos leva a concluir

que, se ele foi fiel ao texto e fiel à figuração do espaço da época, é na mise-en-scène que

exprime seu ponto de vista sobre os acontecimentos: é certo que houveram massacres durante

a Revolução, mas Rohmer não mostra corpos revolucionários, nos mostra apenas corpos

celerados em movimento, atendo-se somente ao aspeto violento da Revolução. Ao manter-se

sempre próximo de sua protagonista o problema de Rohmer não é mostrar a violência dos

revolucionários, mas esconder a violência à qual a Revolução se contrapõe. Rohmer diz que a

massa barbaresca vista no filme não passa dos elementos incontrolados, vândalos, criminosos

libertados da prisão pelos revolucionários136, mas as cenas em que vemos estes “elementos

incontrolados” não foram descritas por Grace Elliott: “no texto de Grace Elliott, quando ela

vai à Meudon, ela não diz como”. As cenas em que vemos conflitos armados nas ruas de Paris

foram ficcionalizadas por Rohmer: “fui eu que pensei que ela não poderia ter evitado de

atravessar a Praça da Concórdia, muito agitada no dia 10 de agosto de 1792. Massacravam-se 133 Ibid. 134ROHMER, Éric. Entretien - Éric Rohmer s’explique, Cahiers du Cinéma, número 559, agosto de 2001. p. 53. 135 FARGE; JOUHAUD, 2001. 136 ROHMER, 2010.

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os guardas suíços e a ponte da Concórdia estava coberta por cadáveres”137.

Vemos aqui o trabalho de um cineasta como historiador ao declarar seu ponto de vista

sobre acontecimentos passados através de uma mise en scène particular. Rohmer diz tratar as

memórias de Grace Elliott como um romance e não buscar a verdade, mas precisamente em

um momento de deslocamento do centro urbano ao campo, ao invés de uma elipse, como no

romance, Rohmer põe em cena Grace Elliott e sua criada atravessando o espaço de um quadro

atroz à outro, onde vemos uma multidão de corpos transgressores e cadáveres. Assim Rohmer

marca no espaço, através de uma proposta de mise en scène, uma declaração pessoal sobre a

história. Afinal, não seria este o papel do cineasta ao consultar os textos historiográficos para

realizar uma ficção histórica, desconfiar e interpelar estes textos? Não seria o papel da ficção

histórica, assim como da literatura, da poesia, das tradições orais, etc., propor contracampos

ao espaço do saber histórico?

3.2. O passado presente: filmes de guerra de Clint Eastwood

Em Flags of our fathers (2006), de Clint Eastwood, James Bradley investiga o passado

de seu pai, o soldado John Bradley, incorretamente apontado como um dos seis soldados na

icônica fotografia do levantamento da bandeira estadunidense em Iwo Jima, no final da

Segunda Guerra Mundial. No início do filme vemos o espaço devastado pela guerra, a câmara

circula um soldado, além dele vemos apenas os campos de guerra, a câmara aproxima-se do

rosto do soldado, que agora ocupa o plano inteiro, o rosto ocupa todo o quadro substituindo a

paisagem bélica, no plano seguinte percebemos tratar-se das lembranças de John Bradley, já

nos anos 2000. O filme não tenta atenuar sua perspetiva temporal, pelo contrário, a

delimitação de um tempo “presente” a partir do qual os acontecimentos passados serão

reconstituídos é a base estrutural da narrativa, James Bradley entrevista seu pai e outros

oficiais da marinha estadunidense, de modo que a narrativa proceda através de sequências de

flashbacks e de uma ordenação não-cronológica dos acontecimentos. A partir da perspetiva

temporal de James Bradley, nos anos 2000, a narrativa recua para 1944, durante a invasão de

Iwo Jima, e para 1945, as consequências da guerra nas vidas dos soldados sobreviventes.

O grande tema de Flags of our fathers é desvendar o real por trás da máscara, uma

verdade mais profunda do que aquela que se apresenta no discurso historiográfico, o

137 Ibid.

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posicionamento de Eastwood diante da história é sintetizado no discurso final de James

Bradley: “os heróis são algo que criamos, algo que precisamos. É um modo de entendermos

algo que é quase incompreensível. Se quisermos realmente honrar estes homens, devemos

lembrar deles como eles realmente foram”. Alain Badiou diz que o real avança mascarado,

então é preciso o desmascararmos, mas também "é preciso o desmascarar ao mesmo tempo

em que temos em conta o real da própria máscara"138, assim como nos filmes de John Ford

citados anteriormente, é a revelação da farsa das aparências o que mobiliza o ponto de vista de

Eastwood sobre a história.

O grande esforço da mise en scène de Eastwood é contrapor os fatos tal e qual

aconteceram e os fatos tal como foram narrados, aí a importância em encenar o levantamento

da primeira bandeira: a bandeira captada na fotografia era uma segunda bandeira, colocada

para substituir uma bandeira anterior, a própria fotografia é uma reencenação de um

acontecimento passado. Eastwood busca o acontecimento por trás da fotografia, mas a

fotografia em si não é o acontecimento, ela porta o valor simbólico da vitória, "tudo o que eles

queriam saber, era a vitória”, diz o narrador, “todos aqueles que viram aquela fotografia

pensaram que a bandeira significava a vitória”. O desconforto dos soldados, tomados como

heróis, deve-se à distância da experiência real do acontecimento em oposição à sua

apropriação simbólica, apropriação do acontecimento para fabricar heróis e, assim, sustentar o

enunciado ideológico estadunidense do pós-Guerra. Em uma cena importante, na qual um

político demagogo tenta convencer os “heróis de guerra” a angariar fundos para financiar os

campos de batalha, surge a questão: o que é mais importante, a verdade ou a história? O que

de fato aconteceu ou o modo de interpretar os acontecimentos que faz síntese do passado e lhe

confere um sentido coerente com as necessidades do presente? O mais importante é a

mitologia erigida pela foto, o mito que se torna história, a esperança e a motivação para a

população doar dinheiro para a guerra que continua. Como no final de The man who shot

Liberty Valance, a questão central da cena é a conclusão de que a população não quer a

verdade dos fatos, mas uma verdade que lhes restitua um sentido para os acontecimentos

passados. Em outra cena um homem pergunta para Ira Hayes, soldado ameríndio, se era

verdade que ele teria usado um tomahawk contra os japoneses, diante da resposta negativa de

Hayes o homem contrapõe: “Bom, diga que você usou, faz uma história melhor”. O filme é

povoado pela questão que sempre redigiu a narrativa histórica estadunidense: fabricar uma

narrativa histórica que seja uma história “aperfeiçoada”, como as epopeias gregas, uma

138BADIOU, 2015. p. 22

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história com função a mitológica de exaltar um povo predestinado. Trata-se de sustentar o

conceito de um indivíduo heroico, cujo mérito derivaria de seus feitos, para ocultar o

enunciado ideológico de uma nação imperialista.

Em um momento do filme vemos os três soldados no centro de um estádio lotado,

louvados como heróis, a câmara faz um movimento semelhante ao que fizera no início do

filme (ao redor de John Bradley no campo de guerra), agora a câmara rodeia os três heróis de

guerra, centralizados e perdidos diante de algo grande demais, seja a guerra ou o seu duplo

espetacular. Nesta cena vemos o contraste da experiência da guerra e a sua farsa no espetáculo

armado para angariar fundos para a guerra. Em uma entrevista sobre a experiência durante a

Segunda Guerra Mundial, John Ford é questionado sobre quem realmente viu o desembarque

das tropas estadunidenses na Normandia, Ford responde: “Ninguém o viu realmente, pois a

cena era tão vasta quanto o mundo, e o acontecimento tão vasto que a própria história”139, a

dimensão de um acontecimento é sempre grande demais para ser representada, e o próprio

filme debruça-se sobre esta impossibilidade.

Em oposição às ficções históricas de Rohmer, a construção do espaço não está

delimitada pelo espaço figurativo da época do universo diegético, não tenta encontrar uma

forma cinematográfica para o espaço como ele seria figurado nos anos 1940. Em Flags of our

fathers o espaço é figurado a partir dos códigos e das técnicas dos anos 2000, Eastwood faz o

avesso de Rohmer: ele constrói uma imagem do passado que é percebido como se fosse

passado a partir de uma figuração do espaço como se fosse presente.

Em Flags of our fathers, assim como em L’Anglaise et le Duc, vemos o uso de técnicas

de criação e incrustação de imagens digitais em grandes vistas panorâmicas, mas ao contrário

do filme de Rohmer, o uso da tecnologia não conduz a uma atenuação da perspetiva temporal

para buscar o espaço figurativo da época, os efeitos especiais no filme de Eastwood

conduzem a um espaço como figurado pelo imaginário cinematográfico da época em que é

produzido. O uso das técnicas digitais de manipulação de imagem, que em ambos os filmes

funcionam para criar imensos quadros que dificilmente seriam possíveis de outra maneira,

criam duas opostas formas cinematográficas de figurar o espaço do passado.

No filme de Rohmer, o uso do digital fixa o espectador como aquele que contempla, cria

uma distância entre espectador e representação, reforça a representação enquanto tal. No filme

de Eastwood, o espectador ora contempla distantes imagens aterrorizantes da guerra

139 FORD, John. “Nous avons filmé le débarquement à omaha beach - entretien avec Pete Martin / The american legion, juin 1964”. In: DÉNIEL; RAUGER; TATUM, 2014. p.129

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(implicado no espaço, mas de uma “distância segura”), ora é inserido como sujeito no interior

do espaço representado. Bonitzer diz que “a realidade convertida inteiramente em imagem” é

um sonho estadunidense, e que isto não é apenas um princípio estético mas “uma ideologia

que penetra vários aspectos da vida estadunidense” à qual podemos relacionar, no cinema,

“toda a escola estadunidenses dos efeitos especiais”140. O que constrói, no filme de Eastwood,

um jogo irônico: o tema da impossibilidade de representar a experiência da guerra surge em

um filme que, ao seguir os códigos do gênero, tenta representar a experiência da guerra a

partir dos efeitos de real, ou seja, implicando fantasmaticamente o espectador no espaço

cênico.

Em Flags of our fathers podemos considerar o hiperrealismo dos efeitos especiais

pretende fazer do filme uma forma do passado exilar-se em sua semelhança, vemos frotas

imensuráveis de navios de guerra, aviões bombardeando a ilha, milhares de soldados

desembarcando na praia, e destas vistas panorâmicas mergulhamos no espaço da ação. Na

cena do desembarque em Iwo Jima o espectador entra na ilha ao lado dos soldados, ombro à

ombro, cria-se a ilusão de que o espectador está presente dentro da representação como um

sujeito, o espaço da ação o rodeia e é apresentado segundo uma unidade espacial respeitada de

um corte ao outro, onde quer que a câmara se dirija o espectador testemunha a profusão dos

efeitos de real. Não há a bidimensionalidade dos planos de Rohmer, a câmara circula pelo

espaço, cria um espaço volumoso e objetivo.

O espectador participa de uma identificação não apenas emocional, mas também física

com os personagens, o próprio espaço da ilha condiciona como o espectador o percebe: a água

do mar nas lentes da câmara, câmara treme ao correr ao lado dos soldados, lampejos de

bombas ou nuvens de fumaça obstruem a imagem. Assim como David Bordwell define a

narração clássica, em Flags of our fathers trata-se de uma narração que “nos fornece

indicações para a construção da temporalidade, da espacialidade e da lógica (causalidade,

paralelismos) da história, sempre de modo a fazer com que os eventos 'à frente da câmara'

sejam nossa principal fonte de informações”141. O som constrói o espaço fora de campo e

completa a imersão perceptiva do espectador no espaço representado, ouvem-se os aviões

sobrevoarem os soldados como se sobrevoassem os espectadores, são fisicamente sentidas as

vibrações das bombas e dos tiroteios que ecoam ao longe.

Mas, como observa Bonitzer, “um plano não é uma percepção (mesmo se ele funciona

140 BONITZER, 1995. p.11 141 BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos. In: RAMOS, Fernão (org). Teoria contemporânea do cinema. São Paulo: Senac, 2005. p.289

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como ‘imagem-percepção’), é um agenciamento de volumes, de massas, de formas, de

movimentos”142, se em diversos momentos a narração insere o espectador de forma

perceptiva, ela nunca assume um ponto de vista fixo. “O quadro não é o limite vago do campo

visual, é um corte de espaço que cria a articulação, a disjunção de um campo e de um fora de

campo”143, em Flags os our fathers, ora a câmara enquadra a paisagem vasta e distante da

guerra, ora a câmara move-se junto aos soldados que embarcam na ilha, ora recua para

observá-los do alto, ora alterna-se entre dois soldados em um diálogo. A câmara pode estar

em qualquer lugar, desde que não rompa a unidade da ação, como diz Gilles Deleuze, “a

montagem americana é orgânico-ativa, é errôneo acusá-la de se ter submetido à narração —

ao contrário, é a narratividade que decorre desta concepção da montagem”144.

Em muitos momentos vemos o ponto de vista dos japoneses, escondidos em abrigos

na terra, vemos o que eles veem: os soldados americanos atravessando a praia de Iwo Jima.

Com estes breves planos dos pontos de vista dos japoneses é construído um espaço informe, o

espaço que ocupam é indeterminado, novamente estamos ao lado dos soldados

estadunidenses, sabemos que os japoneses estão escondidos, mas não sabemos onde estão.

Eles estão por todos os lados, ocupam espaços fantasmáticos. Os corpos dos japoneses, nestas

cenas, são corpos que veem a ação sem ocupar, concretamente, um lugar no espaço. A

problemática da objetividade, portanto, duplica-se sobre a natureza do dispositivo cênico, a

abolição do “Eu” do autor seria impossível: o cinema implica não apenas em um

posicionamento subjetivo do cineasta, mas também o posicionamento físico de uma câmara,

que insere o espectador como observador do espaço cênico, e que não deixa de expressar um

julgamento estético e ideológico sobre aquilo que se filma. Como diz Jacques Rivette “fazer

um filme é mostrar certas coisas, mas é ao mesmo tempo, e pela mesma operação, mostrá-las

por um certo ângulo; sendo estes dois atos rigorosamente indissociáveis”145. E este ângulo,

este posicionamento da câmara implica em um recorte de uma realidade cuja totalidade

apenas pode ser sugerida.

Ao contrário de L’Anglaise et le Duc, onde os eventos históricos só aparecem em

função dos conflitos da personagem, no filme de Eastwood a experiência da guerra e os

conflitos internos dos protagonistas existem em função do acontecimento central, de modo

que a construção dramatúrgica seja organizada a partir deste acontecimento. Ao contrário de

142 BONITZER, 1995. p.21 143 Ibid. 144 DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.40 145 RIVETTE, Jacques. De l’abjection. In: Cahiers du Cinéma, número 120, junho de 1961. p. 55.

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Grace Elliott, que apenas testemunha os acontecimentos de sua época, os personagens de

Flags of our fathers participam dos acontecimentos históricos (o desembarque em Iwo Jima,

os conflitos armados, o levantamento da bandeira), e o espectador acompanha o drama das

consequências dos acontecimentos na vida de cada um dos três soldados sobreviventes que

aparecem na mítica fotografia.

A dramatização de acontecimentos históricos, no entanto, constitui um problema quanto

à objetividade histórica, pois a identificação com os personagens e envolvimento emocional

com o drama torna a ficção histórica incapaz de contornar o problema do ponto de vista a

partir do qual o espectador é envolvido com o acontecimento. Assim como em L’Anglaise et

le Duc, em Flags of our fathers, o envolvimento emocional do espectador é sempre dirigido

para um lado dos conflitos narrados, no filme de Rohmer nunca acompanhamos as

desventuras dos revolucionários, no filme de Eastwood nunca acompanhamos as dificuldades

dos japoneses. A solução de Eastwood foi realizar um segundo filme, Letters from Iwo Jima

(2006), narrando a batalha de Iwo Jima a partir do ponto de vista dos japoneses. Hannah

Arendt diz que a “imparcialidade, e com ela toda a historiografia verdadeira, vem ao mundo

quando Homero decide cantar os feitos dos Troianos não menos que os dos Aqueus, e louvar

a glória de Heitor não menos que a grandeza de Aquiles”146, a imparcialidade é proposta por

Eastwood não como a objetividade assegurada pela descrição das estruturas, mas como

tentativa de fazer síntese dos acontecimentos a partir da narração dos dois lados da batalha.

Letters from Iwo Jima inicia-se de modo semelhante que Flags of our fathers, desde o

princípio evidencia a perspectiva temporal, o filme dirige-se da época contemporânea à

realização rumo ao passado visado pelo universo diegético, vemos o espaço atual em ruínas e

sobre a imagem o ano: 2005. Eastwood filma os mesmo planos que vemos em Flags of our

fathers, o mesmo ponto de vista dos japoneses que observam os soldados estadunidenses, mas

agora são os espaços vazios da atualidade, armas e trincheiras abandonadas. São os mesmos

pontos de vista, as mesmas perspetivas espaciais vistas décadas depois da batalha, ou seja, a

partir de distinta perspetiva temporal. Pesquisadores japoneses cavam dentro de uma gruta e

encontram algo que, ao final do filme, descobriremos tratar-se das cartas que compõe a

narrativa do filme. Em Letters from Iwo Jima os soldados japoneses, que antes eram inimigos

fantasmáticos, agora tornam-se corpos tangíveis, indivíduos que possuem seus próprios

dramas pessoais.

146 ARENDT, Hannah. Between Past and Future – Six exercises in Political Thought. Nova Iorque: The Viking Press, 1961. p. 51

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É um equívoco, no entanto, acreditar que a multiplicidade de pontos de vista,

permitida pela narrativa cinematográfica, assegura a imparcialidade do cineasta. Koselleck

considera que, na tradição judaico-cristã, foi precisamente ao integrar o ponto de vista e as

vitórias de seus oponentes que o sentido de sua própria história foi adquirido, por acreditarem

ser o povo escolhido eles “puderam integrar as potências orientais na sua própria história”147.

A objetividade não é garantida pela multiplicidade dos pontos de vista, nem pela apresentação

dos acontecimentos em si, pois o modo como cada acontecimento é apresentado também é

condicionado pelo julgamento que se tem sobre ele148: “se Luís XVI – para citarmos Gentz –

foi assassinado, executado ou só punido, essa é a questão que interessa à história, e não o

‘fato’ de que uma lâmina de guilhotina separou-lhe a cabeça e o tronco”.149

Em um breve plano vemos as esquadras estadunidenses, o mesmo plano que vimos em

Flags of our fathers, a imponência bélica da marinha americana contrasta-se com

precariedade das estruturas defensivas dos japoneses na ilha. Em Flags of our fathers os

inimigos não têm rosto, os japoneses são “invisíveis”, ocupam um espaço indeterminado, o

que é uma forma de descrever a sua estratégia de guerra. Os estadunidenses, em Letters from

Iwo Jima, também são inimigos sem rosto, mas são vistos por sua ostensividade, pelas

máquinas que ocupam e sujeitam o espaço. No primeiro filme os inimigos (os japoneses) são

caracterizados pelo seu ocultamento no quadro, enquanto no segundo filme os inimigos (os

estadunidenses) são caracterizados por ocupar todo o quadro, com suas máquinas de guerra.

Bonitzer diz que “a estrutura do quadro, da tela, da imagem, primeiramente supõe uma

escolha (mesmo se inconsciente), uma separação do que é mostrado e do que é escondido,

uma organização (mesmo se sumária) daquilo que é mostrado, e uma rejeição do que é

escondido”150, a potência bélica dos japoneses é definida pela rarefação, enquanto a dos

estadunidenses é definida pela saturação.

São postos em cena dois distintos valores do corpo, no ponto de vista estadunidense o

herói é definido por aquilo que é revelado, em Flags of our fathers a presença de um corpo,

notadamente na espetacularização do herói, mesmo se constituído por uma farsa, vale mais

que o corpo ausente do soldado morto que realmente estava na fotografia. Já no ponto de vista

dos japoneses os heróis são aqueles que não se deixam revelar, os homens de honra são os que

se sacrificam pela nação, valem mais os corpos que se literalmente tornam-se ausentes no

147 KOSELLECK, 2006. p.127 148 Ibid. p. 185 149 Ibid. 150 BONITZER, 1995. p.20

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espaço (cena dos suicídios com as granadas) do que os corpos presentes (os soldados sem

honra, que fogem e se entregam para os estadunidenses, são friamente assassinados).

A mise en scène do desembarque na ilha e a estratégia da batalha reagem às mesmas

questões: ao desembarcar na ilha, os estadunidenses, que ocupam ostensivamente todo o

quadro, encontram a ilha vazia e precisam literalmente mostrarem-se aos japoneses para dar

início à batalha. As escolhas de mise en scène e as estratégias de guerra, que definiram o curso

dos acontecimentos históricos, misturam-se em uma mesma forma cinematográfica. No início

do filme o General Tadamichi Kuribayashi encena como seria a chegada dos estadunidenses,

põe seu assistente para correr como se fosse um soldado americano que desembarca na ilha,

move o corpo no espaço para antever os movimentos dos inimigos, e assim cria a estratégia

do ocultamento para confrontar a ostensividade bélica estadunidense. Nos filmes de guerra

podemos observar como as questões de mise en scène não são assim tão diferentes das

questões estratégicas de uma guerra: o agenciamento dos corpos no espaço, onde posicioná-

los, para onde e quando movê-los, etc. É preciso mover um corpo pelo espaço para descobrir

como enquadrá-lo, da mesma forma que é preciso mover um corpo no espaço para descobrir

como encurralá-lo, a mise en scène é um jogo de xadrez e o quadro é um calabouço de corpos

em movimento, como um embuste militar bem arquitetado.

3.3. Pedagogia da restituição: as obras didáticas de Roberto Rossellini

A modernidade cinematográfica surge com a Segunda Guerra, “com o novo sentido

que seu horror provocou, conduzindo o cinema, através do documentário, a um novo

realismo”151, uma forma cinematográfica que mostraria “o primeiro rosto propriamente

humano do cinema”152. Neste sentido “o cinema do pós-Guerra parece buscar o retrato melhor

que os outros, visto que tem a ver, mais do que os demais ideais do rosto cinematográfico,

com um ideal de verdade”153. Ao contrário do valor do rosto em todo o cinema anterior e

durante a guerra, no pós-Guerra “a identificação entre o rosto cinematográfico e o rosto

humano é, então, tão intensa que ficará como uma espécie de evidencia, de herança deste

momento da história”154.

151 AUMONT, 1998 p.116. 152 Ibid. 153 Ibid. p.134. 154 Ibid. p.125.

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Dos escombros da Segunda Guerra cada nação forjou um campo historiográfico

mediado pelos discursos ideológicos de seu interesse (Flags of our fathers revela como este

processo ocorreu nos Estados Unidos). Destes mesmos escombros Rossellini erigiu

monumentos à humanidade, rasgando no interior discurso historiográfico a possibilidade de

um contracampo composto pelos corpos e rostos humanos que resistiram entre as ruínas. A

criança alemã, o soldado negro americano, o líder comunista da resistência, a mulher italiana,

Rossellini construiu um imenso inventário de seres humanos que sobreviveram à Guerra. Em

oposição ao feitos narrados pela historiografia, Rossellini apresenta como contracampo os

próprios rostos daqueles que viveram a guerra, de modo a neles tentar encontrar alguma

verdade que resista ao horror testemunhado. De acordo com Alan Bergala a grande questão do

cinema moderno era: “como pode a verdade emergir nos filmes”155? Foi o que Rossellini

investigou com seus filmes no período imediatamente após a Segunda Guerra, como pode um

filme conservar algo de real e assim revelar algum aspecto verdadeiro do mundo atual?

Entre Il generale Della Rovere (1959) e Il messia (1975), ele realizou diversas ficções

históricas, a maioria delas realizadas para a televisão europeia, Rossellini vê no amplo alcance

da televisão um espaço para criar possibilidades concretas para que os espectadores percebam

que a história é algo que determina profundamente sua existência quotidiana. Em 1973

Rossellini diz se considerar mais um cientista ou artesão do que um artista, diz que “o cinema

precisa tornar-se científico, precisa aprender a distribuir conhecimento e consciência”156. Tag

Gallagher argumenta que, em L’età di Cosimo de Medici (1972-1973), mini série em três

episódios realizada para a televisão italiana, Rossellini “apresenta a arte renascentista como

um instrumento de pesquisa, e não de autoexpressão”, como na cena em que a catedral de

Brunelleschi é admirada, não pela sua beleza, “mas pela materialização dos maravilhosos

cálculos de Brunelleschi”157. Segundo Gallagher, Rossellini esboçou um “vasto plano de não

recontar mas reviver a história do conhecimento humano em centenas de filmes”158.

Seriam estes filmes uma ruptura com o projeto de cinema idealizado por Rossellini

após a Segunda Guerra? Rossellini diz em 1965: “é isto o que senti, a necessidade de fazer

155 BERGALA, Alain. Roberto Rossellini e a invenção do cinema moderno. In: CERANTOLA, Neva; OLIVEIRA, Luis Miguel; Roberto Rossellini e o cinema revelador. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2007. p.217. 156 ROSSELLINI, Roberto. apud GALLAGHER, Tag. Rossellini’s History Films—Renaissance and Enlightenment, 2008. Disponível em: < https://www.criterion.com/current/posts/984-eclipse-series-14-rossellini-s-history-films-renaissance-and-enlightenment>. Acesso: 06 de agosto de 2016. 157 Ibid. 158 Ibid.

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qualquer coisa de diferente. Em um certo momento eu me senti inútil”159. De forma alguma se

trata de uma ruptura, pois a questão do cinema de Rossellini mantém-se a mesma, em cada

uma de suas ficções históricas encontramos a busca de uma representação de profunda

identidade das personagens históricas como corpos e rostos humanos, e não personagens

encerrados em um texto. Em sua primeira entrevista para os Cahiers du Cinema, ao comentar

a cena da pesca de atum em Stromboli (1950), Rossellini diz: “Eu sei o quanto uma espera é

importante para chegar a um ponto, então não descrevo o ponto, mas a espera”160. Ora, La

prise du pouvoir par Louis XIV (1966), que é mais um filme sobre uma tomada de

consciência do que uma tomada de poder, é um filme inteiro sobre uma espera, que o

espectador pacientemente acompanha até a tomada de consciência final. Como diz Jean-

André Fieschi, a progressão da espera não se dirige a uma verdade subjetiva, mas a uma

verdade objetiva da história161. Rossellini exalta a precisão de La prise du pouvoir par Louis

XIV (1966): "É de um rigor histórico absoluto: um ensaio sobre a técnica de um golpe de

estado"162, diz também que os filmes que faz "não são para exaltar um personagem, mas para

examinar um personagem e uma época, o que é completamente diferente"163. Ou seja, é

apenas a questão central de seu cinema que é deslocada, já não se trata da busca de uma

verdade revelada pela imagem cinematográfica, mas em criar uma forma cinematográfica da

histórica capaz de manter um discurso verdadeiro sobre o passado. Nestes filmes, portanto, a

questão transforma-se em: como pode a verdade histórica emergir nas ficções históricas?

A pedagogia de Rossellini baseia-se em uma crença tenaz de que a encenação dos

acontecimentos passados pode ser um meio para transmitir conhecimento sobre a história,

pois, como diz Rossellini, “a arte faz você entender através da emoção aquilo que você é

absolutamente incapaz de entender através do intelecto”164. Adriano Aprà argumenta que, em

suas ficções históricas, Rossellini não quer mais desvelar a verdade “mas propor um método

suscetível de conduzir à verdade”, Rossellini faz como que a sua “atitude diante de uma certa

159 ROSSELLINI, Roberto. Sur l’Età del ferro. In: Cahiers du Cinéma, número 169, agosto de 1965. p. 62. 160 ROSSELLINI, Roberto. Entretien avec Roberto Rossellini. In: Cahiers du Cinéma, número 37, julho de 1954. p.10 161 FIESCHI, Jean-André. Dov'è Rossellini?. In: Cahiers du Cinéma, número 131, maio de 1962. p.22 162 ROSSELLINI, Roberto. La prise du pouvoir par Louis XIV. In: CERANTOLA, Neva; OLIVEIRA, Luis Miguel. Op. Cit. p.491 163 ROSSELLINI, Roberto. Os ossos do ofício (2) – entrevista. In: CERANTOLA, Neva; OLIVEIRA, Luis Miguel. Op. Cit. p.92 164 GALLAGHER, 2008.

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realidade torne-se o próprio objetivo e fundamento da obra: o objeto observado é apenas o

pretexto para provocar e purificar o olhar que o observa”165.

Ao limite, podemos dizer que a mise en scène de Rossellini encontra-se em um ponto

mediano entre um realismo que respeita o espaço tal como seria figurado na época do

universo diegético, e uma realismo que busca uma experiência tangível dos acontecimentos

através da profusão dos efeitos de real. Neste sentido L’età di Cosimo de Medici é exemplar: a

mise en scène conjuga uma composição da frontalidade e perspetiva do quattrocento com a

mobilidade do câmara e a movimentação dos corpos na profundidade do espaço. Se todo o

Renascimento “trabalha sobre a questão do ponto de vista, sobre a questão: o que fazer do

ponto de vista? Esta questão determina todo o espírito da composição do quadro, toda a

concepção do espaço construído através desta composição”166, Rossellini faz desta questão

uma questão cinematográfica: onde posicionar a câmara de modo a poder observar

objetivamente os acontecimentos na cena? Esta busca por um ponto de vista justo constitui a

moral do modo de olhar de Rossellini, e em suas ficções históricas ele encontra, em parte

condicionado pelo orçamento destes filmes, uma solução para observar o passado: a

teleobjetiva.

Na primeira cena do primeiro episódio de L’età di Cosimo de Medici, no funeral do

pai de Cosimo de Medici, a câmara esquadrinha o espaço, frequentemente encontrando novos

enquadramentos através do uso da teleobjetiva. A câmara encontra um ponto fixo a partir do

qual observar a cena, observa os acontecimentos frontalmente, mas ao passo que os corpos se

movimentam no espaço é preciso encontrar novos pontos de vista para os observar. O mesmo

procedimento encontramos em todas as suas ficções históricas, como na cena em que os

médicos fazem a sangria em Mazarin, em La prise du pouvoir par Louis XIV. Este constante

desligamento do ponto perspetivo é a definição do sistema de figuração do espaço em

Rossellini, jamais há um enquadramento definitivo, pois o real não possui uma estase que

possa ser captada pela câmara. Luiz Carlos de Oliveira Júnior define a escola rosselliniana

como aquela onde o ponto limítrofe é “um olhar que se desliga do centro do quadro, já não se

fixa ansiosamente sobre os aspectos ‘importantes’ do mundo, pois prefere estar atento ao

insignificante, perder-se no fluxo sensório-temporal da realidade fenoménica”167.

165 APRÀ, Adriano. Le nouvel âge de Rossellini. In: Cahiers du Cinéma, número 169, agosto de 1965. p. 61 166 BONITZER, 1995. p.52 167OLIVEIRA JUNIOR, Luiz Carlos. A mise en scène no cinema: Do clássico ao cinema de fluxo. Campinas-SP: Papirus, 2013. p.194

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A teleobjetiva cria um sistema que desnatura a profundidade de campo, os corpos que

se afastam da câmara em diversos momentos crescem no quadro ao invés de diminuir,

modernidade cinematográfica que persiste em Rossellini. Bonitzer argumentará que

precisamente “esta aparência – o efeito de diminuição do objeto segundo seu distanciamento

– que será questionada por todos os lados pela modernidade. A partir de então, o que está

mais longe parecerá tão próximo quanto o que está mais próximo”168, é precisamente o que a

teleobjetiva permite fazer com o espaço cênico, subtrair-lhe da hierarquia da profundidade de

campo. Nas ficções históricas de Rossellini, portanto, espaço figurativo torna-se um plano

cartesiano sobre o qual a câmara se debruça e, constantemente, encontra novos

enquadramentos, construindo um espaço cujas potencialidades são expandidas, o que

Gallagher chama de um “estilo pictórico fluido”169. Bonitzer diz que a teleobjetiva não produz

uma nova ilusão, mas sim uma nova verdade, “cujo efeito é de uma desrealização tendencial

do sentimento de espaço, trazido por uma apercepção múltipla do tempo”170. O uso que

Rossellini faz da teleobjetiva faz com que o acontecimento possa ser observado em um único

plano, sem romper a unidade da ação, preservando tanto a unidade espacial quanto temporal,

pois “é no tempo assim como no espaço que as coisas, as imagens, os seres são telescopados,

se projetam e se misturam”171.

Aqui a tendência da forma cinematográfica da história de Rossellini diferencia-se

bastante das de Rohmer e Eastwood: em Rohmer tratava-se de preservar a figuração do

espaço da época, em Eastwood preservar a unidade da ação, apesar da multiplicação dos

pontos de vista. Em Rossellini trata-se de encontrar um ponto de vista a partir do qual

observar a cena e respeitá-lo ao máximo em sua duração, sem romper a unidade da ação, mas

constantemente a reenquadrando o espaço cênico. Mas no cinema clássico a construção de um

espaço objetivado e a manutenção da unidade da ação (e, portanto, a sensação de um tempo

contínuo), visa o ocultamento da instância narrativa, para acentuar os efeitos de identificação

e de imersão do espectador como sujeito no espaço. Já nas ficções históricas de Rossellini, o

espectador está sempre distante do espaço cênico, e a teleobjetiva apenas acentua esta

distância, o espectador nunca tem a ilusão de estar inserido no espaço ao lado dos corpos dos

168 BONITZER, 1995. p.45. 169 GALLAGHER, Tag. “Making reality”, Senses of Cinema, número 32, julho de 2004. Disponível em: <http://sensesofcinema.com/2004/feature-articles/rossellini_television/>. Acesso: 13 de agosto de 2016. 170 BONITZER, loc. cit. 171 Ibid.

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personagens, pelo contrário, a ilusão é de estar ao lado da câmara, ao lado de Rossellini, um

professor que nos mostra os acontecimentos.

Assim a manutenção da unidade da ação restitui à humanidade do presente o tempo

humano subtraído da historiografia, fazendo da duração interna ao plano um contracampo às

possibilidades da historiografia. Mas, como observado anteriormente, a experiência do tempo

só pode restituída ao passado através da introdução de uma temporalidade que possa ser

identificada como tal pelo espectador contemporâneo, que adere ao tempo do universo

diegético da narrativa, e testemunha a gênese dos acontecimentos históricos como o fariam os

seus contemporâneos. Como na cena em L’età di Cosimo de Medici na qual os personagens

conversam sobre Joana D’Arc, uma notícia “atual” dentro da época do universo diegético,

trata-se de um recurso muito utilizado por Rossellini para comentar a história: os grandes

acontecimentos da época são incorporados à intriga, à experiência do mundo e ao destino das

personagens da ficção.

É evidente que, do ponto de vista historiográfico, as ficções históricas de Rossellini

são imprecisas, como argumenta Gallagher:

“é fácil escrever em um livro: ‘Cosimo de Medici cumprimentou o embaixador veneziano’. Outra coisa é fornecer roupas, sala, mobílias, ambiência, iluminação, sem contar as palavras, tons de voz, comportamento, emoções, e os próprios corpos de Cosimo e do embaixador. Tudo isto será inevitavelmente impreciso em um filme. Como eram as pessoas naquela época? Como era Florença? Nós podemos apenas imaginar”172

A pedagogia de Rossellini é tomar o espectador pelas mãos, e acompanhá-lo ao longo

da história, através deste do jogo de acreditar apesar das inevitáveis das objeções que

obstruem a acreditação. Rossellini figura um espaço povoado por corpos humanos, corpos que

agem dentro de seu tempo, indivíduos cujas existências podem ser equiparadas às nossas, e

assim encontra uma identidade entre a experiência de um mundo desaparecido e a nossa

experiência cotidiana. Jean Douchet diz que “Rossellini torna-nos testemunhas aniquiladas”

ao proporcionar a “passagem brusca do lugar de observador para o papel de testemunha”173.

Se o trabalho da história, como diz Certeau, “consiste em criar ausentes, em fazer, de signos

dispersos na superfície de uma atualidade, vestígios de realidades ‘históricas’ ausentes porque

outras”174, Rossellini nos mostra que o trabalho do cineasta está em, apesar da impossibilidade

172 GALLAGHER, 2008. 173 DOUCHET, Jean. A febril inquietação do instante. In: CERANTOLA; OLIVEIRA, 2007. p.423 174 CERTEAU, 1982. p. 56

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de restaurar o tempo passado, criar uma forma cinematográfica para um pseudo-presença de

um mundo desaparecido, povoar este espaço com duplos fantasmáticos dos corpos ausentes,

tornar sensíveis estes “signos dispersos na superfície da atualidade”, para assim conduzir a

uma verdade.

O cinema sobrepõe, aos corpos ausentes do passado, uma outra ausência, tão

misteriosa quanto a primeira, a impressão no filme dos corpos, gestos e olhares reais daqueles

que estiveram presentes diante da câmara. A ficção histórica é um cenotáfio para os tempos

passados, um sepulcro onde os corpos ausentes adquirem uma presença metonímica. Na

ficção histórica, portanto, o corpo de uma personagem histórica ou imaginária é transmitido

através da presença real do corpo humano de um ator, enquanto que na literatura e no texto

historiográfico há a liberdade, como argumenta Badiou, de “não revelar os corpos, cuja

infinidade visível escapa à descrição mais detalhada”175. Sobre a questão do corpo histórico

Jean-Louis Comolli dedicou uma artigo, em 1977, nos Cahiers du Cinéma, precisamente

intitulado La fiction historique, no qual ele questiona que “se a mise en scène de uma ficção é

a atribuição de corpos imaginários aos corpos reais, as coisas se complicam com as ficções

históricas”176, pois os corpos imaginários possuem um modelo referencial que de fato existiu.

Comolli exemplifica a questão a partir de dois personagens em La Marseillaise

(1938), de Jean Renoir: Bomier, um personagem imaginário, e Luís XVI, um personagem

histórico. Quanto ao primeiro pouco importa sua relação com um referente real, seu corpo só

existe em função do corpo do ator, já o corpo de Luís XVI é confrontado pelo corpo do ator,

Pierre Renoir177. Dupla realidade dos corpos, um corpo no cinema é sempre o corpo da

personagem e algo mais, impasse da formalização, percebemos simultaneamente o corpo

supostamente conhecido da personagem histórica e o corpo do ator. Mas em La Marseillaise

“Pierre Renoir não se contenta em não apagar seu próprio corpo atrás do corpo suposto de

Luís XVI (...) Ele põe este corpo, o seu, à frente; sublinhando a sua realidade e a sua

presença”178. Como observou Daney, o ator de cinema “é um objeto paradoxal. Não podemos

separar sua imagem de todos os filmes em que ele aparece”179. A imagem do corpo de Luís

XVI em La Marseillaise é inseparável da imagem do corpo de Pierre Renoir e, por

conseguinte, do que ele representa dentro do repertório cultural francês e de todos os outros

personagens por ele interpretados. Mas no filme de Renoir esta “sobreposição imaginária” dos 175 BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p.104 176 COMOLLI, 1977. p. 6 177 Ibid. p. 8 178 Ibid. p.12 179 DANEY, 2007. p.187

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corpos se dá em razão de “tomar a sério o lugar central do corpo do Rei no sistema

monárquico” e “marcar a sua desvalorização no momento da revolução”180. Deste modo

Renoir usa a dupla realidade dos corpos em uma ficção histórica como forma cinematográfica

de exprimir seu ponto de vista sobre a história.

Nos filmes de Rossellini esta sobreposição é atenuada pelo uso frequente de atores não

profissionais, cujos corpos são desconhecidos pelo público. É certo que o corpo que vemos

em La prise du pouvoir... não é Luís XIV, mas o corpo que vemos não estabelece nenhuma

relação com o mundo fora do filme e, assim, o corpo do ator se apaga atrás do corpo que ele

substitui. Aqui ressurge o tema da vidência através de um estado de sonambulismo das

personagens de Rossellini, os corpos que vemos em suas ficções históricas estão como que

em um estado de estupor, mergulhados na espessura de um tempo passado. Segundo Aumont,

já em Francesco giullare di Dio (1950), primeira ficção histórica de Rossellini, “o filme

retrata, de fato, alguém que não é nem são Francisco nem o ator anônimo que lhe empresta

seu corpo, ou melhor, que é um e outro através de sua condição comum de frade

franciscano”181.

O que é singular nas ficções históricas de Rossellini é este sentimento de identificação

entre o espectador e as grandes personagens da história como corpos humanos (sejam elas

Louis XIV, Sócrates, ou Jesus Cristo), a intensidade da comunhão em serem humanos, ao

mostrá-los na simplicidade de seus cotidianos, nivelados com os outros homens, os vemos em

cenas de plena e frágil humanidade. Rossellini desembaraça-se de um obstáculo comum em

diversas ficções históricas, a reverência ao personagem: “acabo de terminar Descartes. Se há

um personagem repugnante, é Descartes, porque era um cobarde, um preguiçoso, um

amargurado horrível”182, diz Rossellini.

A pedagogia de Rossellini, portanto, procede por esta apresentação de corpos que

animam um mundo desaparecido, atendo-se a esta revelação, quase tangível, do mundo como

evidência, como se tudo acontecesse pela primeira vez, recusando qualquer explicação além

daquilo que nos é mostrado. Rossellini, assim, opõe ao texto a duração de um tempo humano

e a evidência de um mundo objetivado, ao revelar os pequenos acontecimentos cotidianos

com tanto rigor quanto revela os grandes acontecimentos históricos, e ao buscar nestes na

experiência cotidiana do passado uma identidade com a experiência do tempo presente. Como

180 COMOLLI, 1977. p.12 181 AUMONT, 1998. p. 140 182 ROSSELLINI, Roberto. Os ossos do ofício (2) - entrevista. In: CERANTOLA; OLIVEIRA, 2007. p.93.

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diz Deleuze, a didática de Rossellini “não consiste em reportar discursos e mostrar coisas,

mas em destacar a estrutura simples do discurso, o ato de fala, e a fabricação cotidiana de

objetos, pequenos ou grandes trabalhos, artesanato ou indústria”183. O olhar erradica qualquer

ideia de causalidade entre os acontecimentos, não procura um sentido no real, a não ser o de

tornar o real sensível como realidade.

Por um lado Rossellini não apresenta datas, e em diversos momentos não sabemos

exatamente quem são os personagens. Como ironiza Gallagher, sobre Blaise Pascal (1972),

em um parágrafo de uma enciclopédia saberíamos mais sobre a importância do filósofo,

enquanto que “no filme, é o cotidiano da vida no século dezassete que vivemos, e cabe à nós

decidir a sua importância (...) É menos importante seguir os argumentos de Pascal do que se

relacionar com as suas emoções ao elaborar estes argumentos”184. Por outro lado, em diversos

momentos um personagem ignora algo sobre o mundo representado, pretexto para que outro

personagem ofereça uma informação histórica, que se dirige mais ao espectador do que à

personagem.

Ao filmar a vida de filósofos – Socrate (1971), Blaise Pascal (1972), Augustino

d’Ippona (1972), Cartesius (1974), Il messia (1975) –, Rossellini põe em cena não apenas o

problema de reencenar acontecimentos passados, mas de como criar uma forma

cinematográfica que faça justiça ao pensamento destes filósofos. Como sintetiza Rancière, a

grande questão destes filme é: “como representar o corpo do filósofo enquanto suporte de

certos enunciados e sujeito interveniente num determinado tempo?”185, tendo em vista que

"querer dar corpo no ecrã à palavra do filósofo é correr o risco de, ao invés, ver a palavra e a

imagem anularem-se mutuamente”186. Rossellini, assim, interessa-se menos pelo pensamento

dos filósofos do que o modo como este pensamento surge e é mobilizado em suas vidas,

mostra que a verdadeira filosofia destes indivíduos endereçava-se aos seus modos de viver,

como ocupavam o mundo no interior de seu tempo, como se relacionavam com os outros, e

como as condições das épocas em que viveram possibilitaram o surgimento de tais

pensamentos. Se o pensamentos destes filósofos está presente nos filmes, as palavras surgem

apenas de maneira acessória, contornando o risco “de as ideias serem contaminadas pela

183 DELEUZE, 2007. p. 293 184 GALLAGHER, 2008. 185 RANCIÈRE, Jacques. Os intervalos do cinema. Lisboa: Orfeu Negro, 2012. p.117. 186 Ibid. p.114.

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debilidade dos corpos que lhe dão uma vida sensível; ou de os corpos serem devorados pelo

enunciado das ideias às quais eles emprestam a sua aparência”187.

Rossellini escolhe personagens historicamente determinantes, sujeitos que não apenas

testemunham mas intervém no mundo de suas épocas, mas há diversos momentos, em certo

grau estranhos à narrativa, em que a um anônimo é conferida uma voz que enuncia com

autoridade uma declaração sobre seu tempo. O projeto de Rossellini não está em busca a

realidade, mas em “impor a nossa fantasia sobre a história e fazer uma nova realidade”188. É o

que acontece na sequência de abertura de La prise du pouvoir par Louis XIV, único momento

que ouvimos os serviçais do palácio do rei conversarem em um momento de folga: um deles

diz “O Rei, o Rei. Afinal é um homem como outro qualquer. Na Inglaterra cortaram a cabeça

do rei e não houve nem sequer terramoto ou eclipse”, e outro responde “Não fale assim! Se

não houvesse Rei não haveria palácio, e sem palácio não teríamos trabalho”. Esta afirmação,

no início do filme, da igualdade entre os trabalhadores e o déspota rima com o último plano

do filme, no qual Louis XIV troca de roupa sem ajuda de seus súditos, despe-se da carga

histórica e é visto na maior nudez da sua dimensão humana, pleno em sua mortalidade.

Desconstrói-se toda a dimensão mitológica do rei, desenvolvida exaustivamente ao longo do

filme, assim Rossellini nos mostra Louis XIV na fragilidade de sua intimidade, de seus

pensamentos e seus temores, mostra-nos na duração de um plano a passagem do tempo

histórico ao tempo humano: eis o homem, apesar da história.

A busca de uma “nova realidade” permite que, em determinados momentos, Rossellini

coloque na boca de personagens historicamente determinados palavras que constituem o

pensamento do próprio cineasta e que, apenas em um grau imaginário, poderiam ter sido ditos

pelos personagens. Este entrecruzamento entre história e ficção permite que, como na cena ao

início de La prise du pouvoir par Louis XIV, Rossellini insira comentários pessoais sobre a

história e, frequentemente, comentários sobre a gênese da luta de classes. Mas em diversos

momentos estes comentários descolam-se do tempo e parecem surgir como uma intervenção

do cineasta sobre aquilo que ele nos mostra. No segundo episódio de L’età di Cosimo de

Medice, Alberti diz algo que é a descrição do projeto pedagógico de Rossellini: “Uma pessoa

não pode ser somente um cura, ou somente um acadêmico de textos antigos, ou somente um

escultor, somente um pintor, somente um padre ou um mercador. Cada arte contém partes de

todas as outras, pois a arte da humanidade habita a mesma realidade que o mundo onde todas

as coisas, apesar de parecerem estar separadas, vivem juntas. E somente unidas elas podem 187 Ibid. p.128). 188 GALLAGHER, 2008.

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ser conhecidas, possuídas, e amadas”. Rossellini cria uma forma cinematográfica na qual a

história e a ficção sobrepõem-se para construir uma “nova realidade” do passado, mas o faz

em respeito a um extremo rigor historiográfico (aquilo que Alberti diz descreve o projeto

pedagógico de Rossellini, mas também condiz com o pensamento de Alberti).

Apesar de estar liberta da homologação de um discurso verdadeiro sobre o passado, o

trabalho de uma ficcionalização do passado, portanto, é uma forma da humanidade tal como

ela é reconciliar-se com a humanidade tal como ela foi. Esta reconciliação é possível através

de propostas de mise en scène que confiram formas cinematográficas à história, e que

transmitam uma experiência sensível do passado, ao fazer a passagem do tempo histórico ao

tempo humano (ainda que submetido aos parâmetros da temporalidade contemporânea ao

cineasta), pela figuração do espaço como um espaço da experiência humana, e pela

identificação de corpos históricos com corpos humanos.

3.4. Repartir o tempo, repatriar no tempo: Danièle Huillet e Jean-Marie Straub

Na Antiguidade as especulações “sobre a natureza da história no sentido de um

progresso histórico e sobre o destino histórico das nações, suas ascensões e quedas” levaram

que o movimento da história fosse identificado a um movimento circular, pois o movimento

da história era “construído à imagem da vida biológica”189. A narratividade da história, quanto

à sucessão cronológica e à linearidade, também supõe uma identidade entre história e

natureza, de modo que o tempo histórico seja apreendido através de uma espacialização do

tempo (circularidade, linearidade, época, século, era, etc.). Segundo Kosselleck foi a tríade da

Antiguidade, Idade Média, e Modernidade que instaurou a sucessão cronológica como modelo

de representação do tempo através até hoje vigente190.

Neste modelo, onde a irrepresentável duração do tempo é metonimicamente

apreendida sob a sua espacialização, a noção de sucessão faz com que cada novo espaço de

tempo suprima aquele que o antecede. Mas pode-se pôr em questão, como Foucault, se a

história não seria “o nó inextrincável de tempos diferentes, que lhe são estranhos e que são

heterogêneos uns em relação aos outros"191. Um modelo que evidenciaria esta

heterogeneidade do tempo pode ser suposto no cinema, na qual categorias a-históricas são

189 ARENDT, 1961. p. 43. 190 KOSELLECK, 2002. p. 8 191 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.510

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articuladas em relação a um objeto historicamente determinado. Não é possível, por exemplo,

considerar que o realismo seja uma categoria historicamente determinada sem enfrentar

vigorosas objeções, cada tempo possui não apenas uma forma particular de representar o real,

mas um conceito particular de realidade. O realismo na arte é transversal ao conceito de

progressão e sucessão do tempo, que a Vênus de Willendorf não seja considerada “realista” é

ignorar as formas de representação da realidade próprias à humanidade do paleolítico. As

noções de estilo em arte retroativamente reorganizam o discurso de um tempo sobre formas

dos tempos que o antecedem. Kosselleck propõe que é preciso “aprender a descobrir a

simultaneidade do não-simultâneo em nossa história”192, pois

“todas as dimensões temporais estão sempre entrecruzadas, e seria contradizer a experiência se definíssemos o ‘presente’ como, por exemplo, um daqueles momentos acumulados do passado rumo ao futuro ou, contrariamente, que escorre como pontos intangíveis da transição do futuro ao passado. De modo puramente retórico, toda a história poderia ser definida como um presente permanente no qual o passado e o futuro estão contidos, ou como o contínuo entrecruzamento do passado e do futuro que faz qualquer presente constantemente desaparecer”.193

É o que encontramos extensivamente na obra de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub: se

desde a Antiguidade as noções da história solicitam a construção de um modelo de

espacialização do tempo, seus filmes propõem um modelo de espacialização do tempo que

não supõe uma sucessão cronológica, trata-se de uma representação do tempo a partir da

estratificação de tempos heterogéneos, como camadas geológicas umas sobre as outras. Ao

contrário das ficções históricas analisadas até aqui, os filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie

Straub não figuram um espaço desaparecido, nem propõem uma mise en scène que apresente

o passado enquanto passado ou o passado como se fosse presente, mas uma estratificação do

espaço-tempo que propõe uma temporalidade caótica. Deleuze dirá que nestes filmes “a

história é inseparável da terra, a luta de classes ocorre debaixo da terra, e, se queremos

apreender um acontecimento, não devemos mostrá-lo, não devemos passar ao longo do

acontecimento, mas entranhar-nos nele, passar por todas as camadas geológicas que são sua

história interna”194.

Kosselleck descreve uma pintura de Albrecht Altdorfer que ajuda a entender o princípio

da forma cinematográfica da história propostos por Danièle Huillet e Jean-Marie Straub,

192 KOSELLECK, op. cit. p. 8 193 Ibid. p. 30 194 DELEUZE, 2007. p. 302

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refere-se a um panorama da Batalha de Isso, na qual Alexandre, o Grande derrota os Persas no

século IV a.C. Em primeiro lugar, aparecem inscritos nas bandeiras dos exércitos o balanço

final da guerra em números de combatentes, mortos e prisioneiros, mesmo que estes

combatentes apareçam ainda vivos na cena da batalha, “trata-se de um sabido anacronismo,

do qual Altdorfer lançou mão no intuito de tornar a representação da batalha manifestamente

fiel”195. Em oposição à representação da totalidade por uma de suas partes, como na noção do

“instante pregnante”, Altdorfer opta por sobrepor camadas heterogéneas dos tempos que

constituem a totalidade do acontecimento. Em segundo lugar, “a maioria dos persas

assemelha-se, dos pés ao turbante, aos turcos, que, no mesmo ano de composição do quadro

(1529), sitiaram Viena, sem resultado. Em outras palavras, Altdorfer captou um

acontecimento histórico que era, ao mesmo tempo, contemporâneo para ele”196.

De modo semelhante, nos filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, na

profundidade da imagem atual persistem resíduos de tempos heterogéneos, sendo que o

elemento mais evidente desta conceção de tempo é a coexistência de ruínas como resistência

do passado no presente, mas isto também toma forma nos corpos, nos gestos e nas palavras.

A arqueologia do tempo em seus filmes subtrai da história a oposição entre o que é lembrado

e o que é esquecido, entre é que é narrado e o que é descrito, entre o que é de importância

historiográfica e o que não é, para produzir um modelo da história como uma espiral, no qual

sob cada ponto do tempo jazem inúmeros outros que resistem em repouso. O trabalho do

cineasta é, precisamente, perturbar este descanso dos tempos subterrâneos para confrontá-los

com a superfície da atualidade, como faz Altdorfer em seu quadro.

Neste ponto é evidente que a “simultaneidade do não-simultâneo” nos é mostrada

através do anacronismo, que é para o historiador o 'pecado irremissível', aquilo que deve ser

evitado à todo custo dentro da historiografia. Jacques Rancière esclarece que o anacronismo

não se trata da confusão das datas, mas da confusão das épocas, não é uma cronologia

defeituosa, "o anacrônico é o que não pertence ou não convém ao tempo em que é situado"197.

A homologação de um discurso verdadeiro sobre o passado depende, portanto, da operação

historiográfica de resgate do tempo e, a partir desta asserção, o anacronismo estabelece-se

como uma ameaça a verosimilhança da narrativa. Em relação aos filmes de Danièle Huillet e

Jean-Marie Straub, no entanto, não se pode perder de vista que o anacronismo não diz respeito

195 KOSELLECK, 2006. p.22 196 Ibid. 197 RANCIÈRE, 2011. p.42.

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a um abalo do verosímil de um universo diegético, pois em seus filmes o tempo é uma

profundidade e não uma linha cronológica.

Em oposição ao sentido negativo do conceito, Georges Didi-Huberman extrai do

"anacronismo" a sua "virtude dialética", pois o anacronismo parece ser "interno aos próprios

objetos dos quais tentamos fazer história"198. O que Didi-Huberman faz é introduzir o

anacronismo como princípio de montagem do tempo e não como equívoco na ordem do

tempo histórico. Ele distingue dois anacronismos: o primeiro diz respeito à "ficção que

autoriza todas as discordâncias na ordem temporal”199, e que propõe um encerramento a

história ('la fermeture à l'histoire'); enquanto o segundo diz respeito à "complexificação dos

modelos de tempo, do gênero das montagens anacrônicas introduzidas por Marcel Proust e

James Joyce (...) que supõe uma fenomenologia não trivial do tempo humano"200, e permite

uma abertura da história ('une ouverture de l'histoire').

Seria trivial pensar os filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub sob a primeira

definição de anacronismo, ou seja, como uma “cronologia defeituosa”. Seria, sobretudo, uma

questão mal colocada, pois, ao contrário das ficções históricas analisadas até aqui, seus filmes

não buscam uma mise en scène dos acontecimentos passados, mas sim uma mise en scène que

possibilite uma abertura da história, uma mise en scène de um tempo selvagem. O que é

proposto não é um modo de visibilidade do passado ou de legibilidade de um saber histórico,

não se trata de representar um tempo passado, mas de mostrar a perturbação dos tempos

selvagens na superfície atual. As formas cinematográficas da história de Straub-Huillet

propõem modos de rasgar o tempo, fatiá-lo em camadas para encontrar a temporalidade não-

domesticado por trás da temporalidade historiográfica. Constrói-se assim um contracampo da

ordem imposta pelo campo historiográfico, trata-se de mostrar que tempos heterogéneos

resistem na superfície da atualidade como as ervas que irrompem do asfalto e nos lembram

que, atrás da ilusão de uma suposta ordem, a civilização é uma ficção construída pela

humanidade para acreditar que ela tem o domínio sobre a natureza.

Em contraste à conotação negativa conferida pela historiografia ao conceito de

anacronismo, Rancière propõe um modo de conexão chamado anacronia: um acontecimento,

uma palavra, uma sequência significante que toma "o tempo de frente para trás" e que faz

"circular o sentido de uma maneira que escapa a toda contemporaneidade, a toda a identidade

198 DIDI-HUBERMAN, 2009. p.16. 199 Ibid. p.38. 200 Ibid.

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do tempo com ele mesmo"201. Em seu livro Figures III, Gérard Genette distingue duas

temporalidades: 1. 'tempo da história', ou seja, refere-se à "ordem temporal da sucessão de

eventos dentro da diegese"202; 2. 'tempo da narrativa', refere-se à "ordem pseudo-temporal da

disposição destes eventos na narrativa"203. Genette trata por anacronia narrativa as "diferentes

formas de discordância entre a ordem da história e a da narrativa"204, o que deixa implícita a

existência, hipotética, de "uma espécie de grau zero que seria a perfeita coincidência temporal

entre a narrativa e a história"205. A anacronia é, para Genette, uma qualidade da disposição

dos acontecimentos em uma narrativa.

O anacronismo será aqui delimitado quanto ao que diz respeito à verosimilhança dentro

da época do universo diegético: pode surgir na ficção histórica como cronologia defeituosa

(que alimenta toda uma "literatura" que policia os erros históricos), pode ser involuntário ou

deliberado, à serviço do desenvolvimento da narrativa fílmica ou utilizado como recurso

estético (como nos westerns spaghetti). A anacronia, por sua vez, pertence ao arranjo formal

de um filme, é um modo de conexão do tempo que opera por montagem. Uma anacronia pode

ser sinônimo de um 'paralelismo temporal', no qual vamos de uma época à outra, ou pode ser

uma montagem interna ao enquadramento, como Danièle Huillet e Jean-Marie Straub fazem

frequentemente em seus filmes, criando sentido através de camadas de tempo dentro de uma

mesma unidade temporal, o plano. É evidente que os dois conceitos se atravessam, um

anacronismo pode aparecer como solução para um problema dramatúrgico (e assim, agir

sobre o arranjo formal do filme), a anacronia, por sua vez, muitas vezes é anacrônica, e

ameaça a verosimilhança do relato (interfere na verosimilhança do universo diegético).

Foi observado, por Fréderique Fleck, que o conceito de anacronia surge como

neologismo de anacronismo, substituindo o sufixo “-ismo” pelo sufixo “-ia”, que serve para

designar tanto estados patológicos (anorexia, amnésia, insónia), como uma qualidade moral

(modéstia, elegância, inocência)206. Mas o sufixo “-ia” também participa, nas línguas latinas,

na formação de topônimos com designação de "terra dos _"207 (e.g., Itália, Ibéria, Grécia). A

anacronia remove os objetos do fluxo de uma sucessão cronológica e os remonta a uma 201 RANCIÈRE, 2011. p. 49. 202 GENETTE, Gérard. Figures III. Paris: Le Seuil, 1972. p.78. 203 Ibid. 204 Ibid. p.79. 205 Ibid. 206 FLECK, Frédérique. Anachroni(sm)e - Mise au point sur les notions d'anachronisme et d'anachronie. In: Revue Fabula – La recherche en littérature, outubro de 2011. Disponível em: <http://www.fabula.org/atelier.php?Anachronisme_et_anachronie>. Acesso em: 12 de abril de 2015. 207 COUTO, Hildo Honrório do. Ecolinguística - estudo das relações entre língua e meio-ambiente. Brasília: Thesaurus, 2007. p. 177.

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mesma “pátria” no tempo, um mesmo tempo que oblitera a cronologia historiográfica, para

tornar possível não apenas uma visibilidade dos acontecimentos do passado, mas uma

legibilidade e cognoscibilidade do tempo como estratificação de tempos heterogéneos. A

anacronia é uma ruptura que torna possível que o ver se articule com o saber, e que a

legibilidade do passado se articule com a sua visibilidade. Se o anacronismo diz respeito a

uma incoerência do verosímil dentro do universo diegético, a anacronia diz respeito a uma

qualidade do tempo dentro do mundo “real”, o entrecruzamento de tempos heterogêneos que

constitui a experiência presente.

O que vemos nos filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub é este tempo repartido

e repatriado em um espaço de tempo comum, onde tempos heterogéneos partilham uma

mesma experiência presente. Como em Fortini Cani (1976), filme no qual, segundo Daney,

“a câmara percorre muitas vezes os campos italianos onde, durante a Segunda Guerra, as

populações civis foram massacradas. O conteúdo do plano, strictu sensu, é portanto o que se

esconde: os cadáveres sob a terra”208. Ao espectador não é oferecido nenhum conhecimento

sobre o passado, mas a sensação do presente e da imagem cinematográfica como um túmulo

dos tempos subjacentes, os espectadores são “intimados a saber ou a se calar em nome do

respeito aos mortos – e sobretudo àqueles mortos. Coalescência impossível entre o percebido

e o sabido, o conteúdo de uma percepção e a percepção de um saber”209.

É o que faz com que Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer ou Peut-être

qu’un jour Rome se permettra de choisir à son tour (1969), adaptação da tragédia “Othon”, de

Pierre Corneiile, inicie com uma panorâmica sobre a cidade de Roma que dispõe em um

mesmo plano (temporal e cinematográfico) o capitólio romano, os quartieri popolari, uma

árvore no alto de uma colina, e uma caverna onde os comunistas escondiam suas armas. Este

plano inicial opera por estratificação de tempos heterogêneos, anacronia porque dispõe

deliberadamente, em um mesmo plano, objetos que apontam para temporalidades distintas,

estabelece uma conexão destas temporalidades de modo a propor, na abertura do filme, uma

abertura do tempo. Não há, no entanto, nenhum anacronismo pois estas camadas de tempo

não desconstroem a verosimilhança da narrativa, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub filmam

os tempos que resistem no presente. Eis a importância em subir a câmara para enquadrar as

árvores e as pedras, o plano aponta para a presença de objetos que remontam à tempos

históricos distintos que, por sua vez, coexistem com a dimensão a-histórica da natureza. Um

plano em um filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub nos mostra, como diz Deleuze, "o 208 DANEY, 2007. p.173. 209 Ibid.

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fundamento oculto do tempo, quer dizer, sua diferenciação em dois jorros, o dos presentes

que passam e o dos passados que se conservam"210.

No segundo plano do filme vemos Othon e Albin a observar Roma desde um ponto

alto, um enquadramento cuidadoso deixa ao fundo, entre os dois personagens, apenas

edifícios antigos e árvores altas que, salvo ao escrutínio de algum historiador, pertencem à

mesma época que a indumentária das figuras em primeiro plano (tempo diegético: ano 69

d.C.). Nada na imagem é, para o espectador, imediatamente anacrônico, mas no som

identificamos a primeira montagem no tempo: da Roma que Othon observa emerge o intenso

ruído dos automóveis, das buzinas, da vida urbana de 1969, ruído que continua quando as

personagens começam a falar o texto, escrito por Corneille em 1664, que remonta à Roma

imperial de 69 d.C. (mas cujo primeiro relato, por Tácito, data do ano 100 d.C.), montagem

simultânea de tempos não-simultâneos.

No terceiro plano do filme, novamente, não há anacronismos na imagem, desta vez o

tempo representado é o de uma vista da cidade de Roma em 1969, mas na ordenação do filme

este plano pode ser considerado como o ponto de vista de Othon, que contempla Roma.

Primeira anacronia por montagem dos planos, ou seja, primeira anacronia da ordem da

imagem mas que acontece no intervalo entre um plano e outro. Na pista sonora temos ainda a

anacronia que atravessa todo o filme, exceto o primeiro plano, do tempo diegético (ano 69)

interpelado pelo tempo das filmagens (ano 1969) e pelo texto da tragédia de Corneille (ano

1664). A heterogeneidade é salientada pelo modo como o texto é pronunciado por atores de

diferentes nacionalidades, assim preserva-se menos a significação das palavras e acentua-se

mais o ritmo dos versos alexandrinos, criando uma fala polifônica que, como observou Agnès

Perrais, faz do filme “uma experiência de escuta”211.

O quarto plano do filme, enfim, é o momento em que a composição das anacronias

alcança seu ponto de maior estratificação dos tempos, vemos Othon e Albin em primeiro

plano e, enquadrada ao fundo, a paisagem urbana: os prédios, as máquinas, os postes de

eletricidade. Há a disposição em um mesmo quadro de todos os tempos que compõem o

filme, montagem do tempo por camadas no interior de uma mesma unidade de tempo fílmico.

Da perspetiva do tempo diegético temos a anacronia no espaço, que liga a Roma de 69 à

210 DELEUZE, 2007. p.121. 211 PERRAIS, Agnès. Política del texto en el cine: Othon. In: Revista Lumière, especial “Internacional Straub”, 2011. Disponível em: <http://www.elumiere.net/exclusivo_web/internacional_straub/textos/othon_parrais.php>. Acesso em: 05 de maio de 2015.

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Roma de 1969, e a anacronia na fala, que liga os eventos históricos de 69 aos versos

alexandrinos da França do século XVII.

Mas Straub diz que “um filme histórico não existe, não pode ser feito, o que se pode

fazer é uma reflexão sobre o passado” e relembra o que Jacques Rivette disse sobre o filme

Intolerance (1916), de D.W. Griffith: “é um documento, não sobre a Babilônia, mas sobre a

época em que foi rodado”212. O que Danièle Huillet e Jean-Marie Straub fazem é remover os

objetos da imobilidade do tempo historiográfico para os repatriar no vir-a-ser de um tempo

não regido pela linearidade causal. Danièle Huillet e Jean-Marie Straub fazem um filme sobre

a resistência do texto ao tempo, ao mesmo tempo em que atestam que, como uma ruína, o

texto só conserva resíduos de sua forma primordial.

Pode-se pôr em questão que, ao dispor em um mesmo enquadramento, no qual o

espaço do universo diegético confronta-se com o espaço real, ou em uma mesma duração

sonora, na qual a palavra confronta-se com os sons do espaço, que a anacronia nos filmes de

Danièle Huillet e Jean-Marie Straub são menos montagens do que colagens de tempos

heterógenos, uma vez que o tempo ganha uma profundidade pantanosa e a anacronia não é

percebida de forma extensiva na serialização de um plano ao outro, mas na intensidade de

uma mesma duração. Aumont diz que diante de uma colagem “o próprio olhar não lida mais

com intervalos, com partes ocas entre elementos da obra, e sim com uma espécie de cintilação

através da qual essas superfícies estilhaçadas ameaçam a unidade do olhar”213, algo

semelhante pode ser percebido em Les yeux ne veulent pas..., nos quais a colagem das

camadas de tempo não é percebida como inverosímil, pelo contrário, a revelação de uma

realidade composta pela sobreposição de tempos heterogêneos obriga o espectador a

apreender algo daquilo que lhe é revelado.

212HUILLET, Danièle; STRAUB, Jean-Marie. Entrevista com Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. In: Revista Lumière, especial “Internacional Straub”, 2011. Disponível em: <http://www.elumiere.net/exclusivo_web/internacional_straub/textos/othon_entrevista.php>. Acesso em: 02 de maio de 2015. 213 AUMONT, 2004. p. 100.

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CONCLUSÃO

No fim de sua vida, Max Jacob imaginou um mundo como um duplo infinito, “um

mundo dividido sobre duas superfícies sensíveis, de um lado o cinema, do outro a história, no

centro, sobre a terra, um espelho refletindo um sobre o outro, a morte e seus milhões de

fantasmas”214. Um campo historiográfico, um contracampo cinematográfico, um jogo de

espelhos. O conceito de campo no cinema é, grosseiramente, aquilo que é mostrado pela

imagem, “é a porção de espaço tridimensional que é percebida a cada instante na imagem

fílmica”215. O campo seria, por analogia, a historiografia, aquilo que é revelado através do

trabalho dos historiadores e que constitui o campo do saber histórico. O contracampo, por sua

vez, não é apenas o fora-de-campo que transborda pelas bordas da imagem, não é apenas o

conjunto de elementos que compõe o universo diegético mas não existem no interior da

imagem e estão “imaginariamente ligados ao campo, por um vínculo sonoro, narrativo e até

mesmo visual”216: o contracampo é “uma figura de decupagem que supõe uma alternância”217

entre dois planos, na qual “o ponto de vista adotado no contracampo é inverso daquele

adotado no plano precedente e a figura formada dos dois planos sucessivos é chamada de

campo-contracampo”218.

A ficção histórica permite um modo de visibilidade do passado povoado pela

humanidade tomada no frescor da experiência cotidiana. Sobre o cinema Agambem dirá que

"uma sociedade que perdeu seus gestos procura reapropriar-se daquilo que perdeu e, ao

mesmo tempo, registar a perda”219, é o que faz a ficção histórica ao animar na tela os corpos

reais, que proporcionam um modo de visibilidade aos corpos ausentes e inacessíveis, assim “o

cinema reconduz as imagens para a pátria do gesto”220. Em contiguidade ao campo

historiográfico, a ficção histórica restitui um novo uso aos gestos do passado como realidade

fenoménica apresentada na duração de um tempo humano, algo que o texto historiográfico só

pode esboçar uma pálida figura.

Mas não basta fazer do cinema uma memória, um túmulo de corpos ausentes destinado

214 BAECQUE, 2008. p.49 215 AUMONT; MARIE, 2003. p.42. 216 Ibid. p.132 217 Ibid. p.61 218 Ibid. p.62 219 AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. In: Artefilosofia, Ouro Preto, n.4, p.9-16, Janeiro de 2008. p.11. 220 Ibid. p.12.

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aos olhos e aos corações dos espectadores presentes. Como defende Foucault, é preciso “fazer

da história uma contra-memória e de desdobrar consequentemente toda uma outra forma de

tempo"221. Ao longo desta dissertação foram analisadas distintas formas cinematográficas da

história que, através do entrecruzamento entre ficção e história, produzem um contracampo ao

conhecimento historiográfico, um despertar ficcional da história. Jean-Luc Nancy diz que a

ideia de história deve revelar ou produzir a ideia de humanidade, “ou a humanidade como

ideia como a completa forma presente da humanidade”222, é precisamente à humanidade como

ideia que se destina a intencionalidade da ficção histórica. A ficção permite que imprecisões

históricas, como as ficcionais disputas de roleta russa durante a Guerra do Vietnam, em Deer

Hunter (1978), de Michael Chimino, tornem-se um duro comentário sobre a natureza da

guerra. São estas formas que permitem que acontecimentos ou personagens imaginários,

anacronismo e anacronias, possam exprimir o ponto de vista do cineasta sobre a história.

Nesta dissertação foram delineadas quatro tendências de formas cinematográficas da

história: a primeira, cuja mise en scène recorre a um realismo figurativo, evidenciada nos

filmes de Éric Rohmer, tende à acentuação da alteridade entre o espaço atual e o espaço da

época representada, através de uma mise en scène que constrói um distanciamento entre a

experiência atual e a do passado, fazendo com que o passado seja racionalizado como tal,

como um mundo desaparecido. O procedimento de Rohmer consiste em criar uma forma

cinematográfica que respeite a perspectiva simbólica da época do universo diegético, um

dupla impurificação entre o cinema e a pintura, isto é, uma forma cinematográfica que figure

o espaço tal como ele seria figurado pelos contemporâneos da época visada. Trata-se de

buscar uma forma cinematográfica que surja do ventre do tempo, atenuando assim as marcas

da perspectiva temporal na qual o filme é realizado.

A segunda tendência, analisada nos filmes de Clint Eastwood, pode ser identificada com

o cinema clássico, e consiste em evidenciar a perspectiva temporal do cineasta para propor um

modo em que o passado seja percebido como se fosse presente. A mise en scène é

caracterizada pela construção de um espaço objetivado que produz a ilusão de imersão do

espectador como sujeito dentro do espaço figurado, pela manutenção da unidade da ação para

criar a sensação de uma duração contínua apesar da multiplicidade dos pontos de vista, e pelo

ocultamento ou abrandamento das marcas da instância narrativa. Trata-se de, a partir do atual,

buscar uma forma cinematográfica para a experiência do passado empírico.

221 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia, a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p.33 222 NANCY, 1993. p.149.

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A terceira tendência, de Roberto Rossellini, restitui o tempo humano subtraído do tempo

historiográfico ao produzir uma experiência sensível do passado, mas o faz através da

introdução de uma temporalidade que possa ser identificada como tal pelo espectador

contemporâneo. Consiste em uma mise en scène que transita constantemente entre as duas

tendências anteriores: propõe um espaço objetivado e uma unidade da ação, o mundo como

evidência em uma espécie de “vir a ser”; ao mesmo tempo em que situa o espectador fora do

espaço cênico, para que o acontecimento possa ser observado do exterior, e assim possa surgir

uma revelação de uma verdade histórica que o espectador não participa, mas testemunha.

Rossellini ab-roga o “eu”, sugerido pela ilusão de que o espectador está dentro da

representação como sujeito, em nome de um “nós”, no qual o espectador presente e a

humanidade ausente partilham uma experiência comum, através da abertura de uma nova

realidade que comporta um novo espaçamento de tempo entre passado, presente e futuro.

Por fim, a tendência dos filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, não produz um

modo de visibilidade do passado, mas sim anacronias, formas cinematográficas de repartir o

tempo em camadas para encontrar, na profundidade do tempo, uma temporalidade selvagem,

na qual coexistem diversos tempos na superfície da atualidade. Não se trata de um

enraizamento do espectador no presente, ao assegurar a perspetiva temporal, ou em

ilusoriamente suprimir o intervalo entre o presente e o passado, mas em revelar para o

espectador, na duração de um mesmo plano (cinematográfico), que o conceito de tempo

implicado pela historiografia ofusca a heterogeneidade dos tempos que coexistem em um

mesmo plano (temporal).

A ficção histórica como contracampo da historiografia não pretende revogar a

autoridade historiográfica em homologar de um discurso verdadeiro sobre o passado, mas sim

interpelar este discurso com um duplo que permita a passagem do tempo histórico ao tempo

humano, ao fazer uma síntese do passado através de uma narrativa ficcional que crie uma

experiência sensível do passado e, assim, uma identidade entre a existência daqueles que

viveram em outras época e a experiência cotidiana do indivíduo contemporâneo ao filme. O

cinema como contracampo da história acrescenta espaços ao campo historiográfico, espaços

contíguos e que não anulam o campo do saber da historiografia. Trata-se da construção de

uma contra-memória da história, que não a substitui, mas recorre à alternância de pontos de

vista no interior do discurso historiográfico. Pois de qualquer aspecto da realidade há sempre

um outro viés a partir do qual ele pode ser observado e, assim, podem ser reveladas outras

faces de sua superfície caleidoscópica.

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Cleopatra (1934), de Cecil B. DeMille

Cleopatra (1963), de Joseph L. Mankiewicz

Die Antigone des Sophokles nach der Hölderlinschen Übertragung für die Bühne bearbeitet

von Brecht 1948 (Suhrkamp Verlag) (1992), de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub

Era notte a Roma (1960), de Roberto Rossellini

Flags of our fathers (2006), de Clint Eastwood

Fort Apache (1948), de John Ford

Giovanna d’Arco al rogo (1954), de Roberto Rossellini

Intolerance (1916), D.W. Griffith

Joan of Arc (1948), de Victor Fleming

Joan the woman (1916), de Cecil B. DeMille

L’Anglaise et le Duc (2001), de Éric Rohmer

L’età di Cosimo de Medici (1972), de Roberto Rossellini

La commune (Paris, 1871), de Peter Watkins

La Marseillaise (1938), de Jean Renoir

La passion de Jeanne D’Arc (1928), de Carl Th. Dreyer

La prise du pouvoir par Louis XIV (1966)

Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer ou Peut-être qu’un jour Rome se permettra de

choisir à son tour (1969), de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub

Letters from Iwo Jima (2006), de Clint Eastwood

Il generale Della Rovere (1959), de Roberto Rossellini

Il messia (1975), de Roberto Rossellini

Ne touchez pas la hache (2007), de Jacques Rivette

Non, ou a vã glória de mandar (1990), de Manoel de Oliveira

Perceval le Gallois (1978), de Éric Rohmer

Procès de Jeanne D’Arc (1962), de Robert Bresson

Sergeant Rutledge (1960), de John Ford

Stromboli (1950), de Roberto Rossellini

The Artist (2001), de Michel Hazanavicius

The man who shot Liberty Valance (1962), de John Ford