relatório são tomás 2014
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RELATÓRIO FINAL CONCEPÇÕES SOBRE DIREITO À MORADIA DOS
AFETADOS PELO PROGRAMA VILA VIVA NAS VILAS SÃO TOMÁS E
AEROPORTO E NO AGLOMERADO DA SERRA, EM CONTRAPOSIÇÃO A
PROPOSTA OFICIAL DO PROGRAMA
Belo Horizonte
2014
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EQUIPE
Coordenação Geral:
Profa. Dra. Miracy Barbosa Sousa Gustin
Coordenadora de Pesquisa:
Profa. Dra. Márcia Helena Batista Corrêa da Costa
Orientadores de campo
Cíntia de Freitas Melo
Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira
Pesquisadores Extensionistas
Ananda Martins Carvalho
Cecília Reis Alves dos Santos
Eneida Crisoulo Gabriel Bueno Silva
Lívia Bastos Lages
Luiz Fernando Vasconcelos de Freitas
Matheus Moura Miranda
Paula Oliveira Mascarenhas Cançado
Thaís Lopes Santana Isaías
Thaís Firmato Fortes
Tays Natália Gomes
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 4
2 AS INTERVENÇÕES DO VILA VIVA E OS IMPACTOS NA VIDA DA
COMUNIDADE ...................................................................................................... 5
3. O DIREITO À PARTICIPAÇÃO ....................................................................... 16
4 A SITUAÇÃO DOS CARROCEIROS: OFÍCIO, RENDA E VÍNCULOS COM A
COMUNIDADE .................................................................................................... 20
4.1 Introduções ao tema dos carroceiros em Belo
Horizonte.............................................................................................................. 20
4.2 A organização dos carroceiros em meio a um contexto de inseguranças
.............................................................................................................................. 24
5. INTERPRETAÇÕES SOBRE A REALIDADE DAS
REMOÇÕES......................................................................................................... 27
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 40
REFERÊNCIAS.................................................................................................... 47
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1 INTRODUÇÃO
A Frente Reassentamentos Urbanos é parte da Linha de Pesquisa
Empoderamento de Camadas Sociais Marginalizadas, do Eixo Efetivação de
Experiências de Justiça Urbana, constitutivos do Programa Cidade e Alteridade. O
propósito da Frente Reassentamentos Urbanos é analisar os impactos das
políticas públicas de assentamentos e reassentamentos em aglomerados urbanos
na cidade de Belo Horizonte.
O programa municipal Vila Viva, iniciado em 2005, é o meio de
intervenção em vilas e favelas adotado pela Companhia Urbanizadora e de
Habitação de Belo Horizonte - URBEL. O Programa consiste em um conjunto de
ações integradas, direcionadas à urbanização, desenvolvimento social e
regularização fundiária de vilas e favelas de Belo Horizonte. Resultados de
pesquisa têm demonstrado que profundas transformações ocorrem nos núcleos
habitacionais onde o programa é implantado (MOTTA, 2013).
A primeira etapa da pesquisa contemplou o Aglomerado da Serra e as
Vilas São Tomás e Aeroporto. Concluída parte das análises, foram incorporadas
novas áreas alvo das intervenções promovidas pelo Programa, incluindo o
Aglomerado Santa Lúcia e a Vila Bandeirantes.
O presente relatório apresenta os resultados das investigações
desenvolvidas nas Vilas São Tomás e Aeroporto, áreas que vem sendo analisadas
desde a primeira etapa dos trabalhos de campo.
O modelo de pesquisa-ação adotado no estudo da realidade desses
espaços permite compreender como o tecido social das comunidades-alvo das
intervenções urbanas vem sendo alterado e quais os impactos do Programa Vila
Viva na vida das famílias. As categorias usadas como sustentação da pesquisa
são: as relações sociais, a habitação e o direito à cidade. A interseção entre essas
categorias favorece o alcance mais amplo dos problemas enfrentados pelas
comunidades.
Dentre os propósitos dos estudos, consta a preocupação em identificar
e interpretar a percepção dos moradores sobre as opções dadas pela Prefeitura
de Belo Horizonte para a remoção e reassentamento das famílias e investigar a
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transformação das demandas, expectativas e projetos de futuro dos moradores
antes e após o início das obras.
2 AS INTERVENÇÕES DO VILA VIVA E OS IMPACTOS NA VIDA DA
COMUNIDADE
A ocupação da Vila São Tomás, de acordo com depoimentos de
moradores e de funcionários do Centro Cultural São Bernardo, se deu a partir dos
anos 50, intensificando-se na década de 1960. Já a “ilha”, como também é
chamada a Vila Aeroporto, teve a ocupação iniciada na década de 1960, ambas
na grande área conhecida por “vila dos cabritos”. Na época, o córrego não era
poluído, sendo utilizado para pesca e lavagem de roupas. Segundo uma antiga
moradora, atualmente beneficiada pelo bolsa moradia: “Cada um tinha sua casa
boa, oportunidade de construir sua casa grande porque a gente tinha muito
espaço, 41 anos atrás [...]”1.
As intervenções da URBEL ocorrem a partir da formulação dos Planos
Globais Específicos - PGE. O PGE representa o instrumento de planejamento das
intervenções necessárias para regularização e urbanização das vilas e favelas da
cidade. Na aplicação dos PGEs, de acordo com informações da URBEL, a
participação da comunidade é estimulada não só no momento de concepção do
Plano, mas também em função de o financiamento das intervenções ocorrer via
Orçamento Participativo da Habitação.
Os resultados dos contatos com os moradores decorrentes dos
trabalhos de campo demonstram, no entanto, haver um descompasso entre as
proposições de participação expostas como parte das concepções dos PGEs e a
forma como de fato as famílias são envolvidas nos processos, desde a
formulação do Plano e do Projeto Executivo das intervenções, até a realização
das ações de assentamento e de remoção de parte da população-alvo.
O amadurecimento das propostas de intervenção nas vilas ocorreu
entre os anos de 2000 e 2001, período da elaboração do Plano Global Específico.
O diagnóstico resultante desse plano constatou áreas de risco geológico, traçou o
1Entrevista gravada realizada com moradora da Vila Aeroporto e líder comunitária, 2012.
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perfil socioeconômico, ambiental e físico da região, assim como possíveis
estratégias de resolução dos problemas. Em 2010 iniciou-se na região a
implementação do Programa Vila Viva, que ainda está em andamento.
Segundo dados disponibilizados pela URBEL, as intervenções na
região contemplam um investimento em torno de 98 milhões de reais (CMBH,
2010). Dentre as ações previstas constam o reassentamento de famílias que
vivem em áreas de risco próximas ao córrego, a implantação de um parque ao
longo do córrego e a construção de 561 unidades habitacionais.
Nas vilas São Tomás e Aeroporto, verificou-se o mesmo problema
identificado como resultado das intervenções urbanas no Aglomerado da Serra e
em outros aglomerados impactados pelo Vila Viva, um número alto de remoções.
A previsão das remoções contempla mais de 1.230 domicílios nas duas vilas
(PORTAL PBH, 2012) o que significa aproximadamente 30% dos domicílios (total
de domicílios: 4.017). Além disso, logo após as eleições de 2012 houve a
paralisação das obras por falta de recursos.
Um dado importante sobre as intervenções é a alteração da dinâmica
local, além das mudanças nos padrões de moradia e da ruptura dos laços
comunitários, os atrasos na conclusão das obras expõem as famílias a ambientes
inadequados, devido ao volume de lixo e entulho nas ruas. Os espaços alterados
pela presença de entulho e lixo, também precariamente iluminados, geram o
aumento da insegurança dos moradores em função das obstruções dos acessos,
principalmente à noite. A situação tem gerado outros problemas, inclusive de
limpeza e de saneamento, os focos de sujeira e acúmulo de água favorecem a
proliferação de doenças, fato que afeta o cotidiano da população. Constatou-se a
ausência do Poder Público na provisão de serviços, em ações conjuntas de
políticas voltadas para a garantia de saúde e qualidade de vida da população.
Verifica-se, portanto, uma priorização das obras de intervenção urbana, muitas
vezes executadas em períodos longos, devido a atrasos motivados por fatores
diversos, dentre os quais a dependência de repasse de recursos.
O programa atualmente é financiado por recursos oriundos do
orçamento municipal submetido ao OP – Orçamento Participativo, e trabalha com
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transferências do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC2 (URBEL,
2013). A questão dos recursos se apresenta como um problema para o Programa
Vila Viva e, por conseguinte, para os moradores das áreas alvo, pois os atrasos e
mudanças de prioridades ao longo das intervenções geram situações de
descontinuidade das obras.
O tempo decorrido entre a formulação do PGE em 2001 e a execução
da intervenção iniciada em 2011 prejudicou o acompanhamento continuado das
propostas de intervenção por parte dos moradores, desmobilizando grupos antes
organizados em associações de bairro, provocando inclusive certa sensação de
inevitabilidade da intervenção ou mesmo da impossibilidade de sua negociação
de forma menos vertical. Os relatos abaixo ilustram a situação.
Entrevistador: É que... Outro dia eu tava conversando com a Maria Lúcia
e ela falou que o centro cultural cedeu o espaço, né, pra que as reuniões
fossem aqui. O que era discutido nessas reuniões que a URBEL
convocava?
Moradora B: Quando você diz “essas reuniões” você diz assembleia
geral ou você diz reunião do grupo de referência?
Entrevistador: Qual que é a diferença dos dois?
Moradora B: A diferença é que o grupo de referência são os
multiplicadores. É um grupo pequeno que a URBEL, a princípio, tudo que
eles vão fazer, reúne esse grupo, passa primeiramente pra esse grupo, e
esse grupo se torna multiplicador, passa pra comunidade, cê entendeu?
Tudo que vai acontecer, o que tá acontecendo e então, assim, são os
multiplicadores.
Entrevistador: Esses multiplicadores são essas pessoas, no caso, da
comissão de divulgação, né? Que eles colocaram no projeto? [mostro a
folha do PGE de 2001]
Moradora B.: É porque... O grupo de referência da época do PGE foi um
e o grupo de referência que se levantou hoje, ele foi criado agora, pra
acompanhar as obras, cê entendeu? Então... São poucas as pessoas
daquela época, de 12 anos, que tão acompanhando hoje esse projeto
aqui.
Entrevistador: Por que teve essa redução?
2PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) do governo federal e por meio de financiamentos do
Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) e Caixa Econômica Federal.
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Moradora B: Muitos faleceram, entendeu?
Entrevistador: É... que já são dez anos, né...
Moradora B: É.. E muitos mudaram.
Entrevistador.: Mas mudaram por coisas próprias deles?
Moradora B: É.... Por vontade própria.
Entrevistador.: Então, essas assembleias gerais, elas aconteceram antes
da formação dos multiplicadores...!?
Moradora B: É, o grupo de referência foi tirado de dentro de uma
assembleia.
Entrevistador; Entendi. E o que que era discutido dentro dessas
assembleias gerais?
Moradora B.: Dentro da assembleia, geralmente, eles discute tudo o que
vai acontecer. Eles colocam o projeto na frente, explica pra comunidade
tudo que, né, que vai ser feito, cê entendeu? Abre pra comunidade fazer
perguntas... Então, assim, esclarece todos os pontos.
Entrevistador.: Mas então, essas assembleias, eles apresentavam o
projeto ou eles, é... Eles apresentavam, assim, o projeto pronto ou era
um espaço de discussão pra formar o projeto? Quando eles chegavam lá
o projeto já tava pronto?
Moradora B: Não. É... Durante o levantamento pra fazer o projeto atual,
de hoje, foi é.. discutido o tempo todo junto com a comunidade. Cada
etapa do projeto eles reunia a comunidade, cê entendeu? Pedia opinião,
e tudo, pra montar o projeto.
Entrevistador.: E que tipo de participação que tinha, nessas reuniões, dos
moradores, que tipo de questão que os moradores apresentavam? Que
tipo de pergunta que saía, que tipo de pedido que os moradores faziam?
Moradora B: Ó... Geralmente as pessoas queriam saber era justamente
isso mesmo: quando eu vou sair...? Cê entendeu? “Ah, eu quero sair
hoje”, e... E ficava na dúvida se realmente isso ia acontecer. Cê
entendeu? Falava “ah, não, cês tão fazendo aí o projeto e tudo, mas isso
vai acontecer mesmo? Por que até então, até começar, né, ficou
desacreditado, porque doze anos... Não são doze dias. Então, quando
surgiu, que o povo viu que ia acontecer mesmo foi um impacto muito
grande.
Entrevistador: Mas ninguém fazia, é... Alguém fazia alguma proposta
pra... Por exemplo, sei lá, o pessoal da URBEL mostrava uma avenida
que ia passar assim em tal lugar, aí, tinha algum morador, alguma
liderança que falava assim “não, não passa por aí não, passa pelo outro
lado pra ficar melhor...”, pra participar mesmo, efetivamente...
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Moradora B: Sempre... teve opiniões, sempre é... aceitaram opiniões da
comunidade porque o nosso espaço, cê entendeu? É.... É muito
reduzido, cê num tinha, num tem muita opção pra você criar aquele
projeto, aquela, aquele sonho, ocê entendeu? Não, que eu tirar avenida
daqui, eu vou passar uma avenida aqui... Não. Você num tem essa
opção de ficar escolhendo muito. Você visualiza, quem montou o projeto
foi passando o tempo todo pra comunidade: “Ó, gente, eu imaginei,
visualizei de que eu tenho que passar essa avenida aqui”, num tinha
muita opção pra passar em outro local, cê entendeu? E a gente sempre
participando a gente concorda, cê entendeu? Por que a gente sabe que
num tem outro meio.3
A remoção das famílias gerou a ruptura de vínculos constituídos há
muitos anos, em muitos casos relações consolidadas a partir de décadas de
convívio que resultaram em capital social sólido nas comunidades. O problema
das remoções torna-se cada vez mais complexo em função do baixo valor das
indenizações, impedindo o reassentamento digno das famílias removidas, fato
que tem causado sérias dificuldades na busca de novas habitações fora da
comunidade. Frisa-se que o valor das indenizações é estipulado com base
apenas na estrutura física dos imóveis, desconsiderando o direito de posse, o que
reduz o custo para o poder público, mas que é insuficiente para aquisição de uma
moradia equivalente em região com equipamentos públicos e infraestrutura
minimamente adequada. Tal situação tem gerado a fragilização e fragmentação
do capital social das comunidades impactadas. Depoimentos coletados em
atividades de imersão em campo mostram a situação comentada por moradores.
Entrevistador: O que você acha dessa separação que tá acontecendo
entre os vizinhos?
Moradora A: Ah, num é bom não, né... Porque a gente tem amizade... E
eles num vão deixar nem improvisar, né? Vai separar, cada um vai pra
um canto. A gente vai sempre entrar em contato, né, que uns vai voltar
pra aqui, né? Quem vai pegar apartamento vai voltar. Inclusive essa
menina mesmo, que é minha afilhada, ela pretende voltar, que o irmão
3 Entrevista realizada em maio de 2012 com moradores da Vila Aeroporto, beneficiária de bolsa-aluguel e
aguardando a construção das Unidades Habitacionais. Os nomes foram alterados devido ao acordo firmado entre entrevistados e entrevistadores.
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dela quer voltar pra cá. E aí ela vai voltar pra cá, quando o apartamento
tiver pronto. Muitos que já foram vai voltar. Quer dizer, saiu, pra poder
eles fazer os apartamentos, da demolição daqui, e depois quando
terminar os apartamento eles volta.
(...)
A minha vizinha que mora ali, que foi comigo lá na, comigo lá na hora
que eu fui assinar o papel lá, mais a minha irmã... Ela abriu a boca a
chorar. No entanto ela quer ir lá comigo domingo lá, eu vou lá na casa,
lá. Limpar tudo lá, pra poder levar a mudança. Ela falou que vai lá e já
quer olhar a casa por lá pra poder, quando der pra mudar, mudar pra lá.
(...)
É, pra Vespasiano, muitos tão indo pra lá. É... Igualzinho, tem gente que
mora lá na Nova Pampulha. Nova Pampulha é Vespasiano, né? E Morro
Alto... Santa Clara... Vespasiano... Tudo. Aquela região ali sempre tem
muita gente daqui que até já mudou. Inclusive a sogra da minha irmã já
tá morando lá no, na Nova Pampulha.
Entrevistador: E a senhora conhece alguém de lá ou ninguém?
Moradora A: Não, não, num conheço ninguém lá não. Conheço as
pessoa que foi daqui pra lá.4
Convém registrar que o conceito de capital social tomado como
referência nessa pesquisa significa:
O Capital Social, em uma comunidade, é constituído pelas relações de
solidariedade e confiabilidade entre os indivíduos e, fundamentalmente,
pela capacidade de mobilização e organização comunitárias, traduzindo
um senso de responsabilidade da própria comunidade sobre seus rumos
e sobre a inserção de cada um no todo. Estes elementos, supostamente
abstratos, manifestam-se em ganhos concretos sobre a resolução de
seus problemas por possibilitarem maior acesso a direitos e,
consequente melhoria da qualidade de vida. A comunidade passa a atuar
como sujeito compreensivo e atuante em seu meio social, ao invés de
mero beneficiário de doação assistencialista. (GUSTIN; MACIEL, 2004)
4 Entrevista gravada com moradora da vila São Tomás em dezembro de 2011, prestes a realizar
sua mudança para Vespasiano após ser incluída no PROAS - Programa de Reassentamento
Monitorado.
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Como apresentado no relatório parcial da presente pesquisa do total de
famílias removidas em virtude das obras do Programa Vila Viva, existe a
estimativa de reassentamento de apenas 40%5 (quarenta por cento) nas novas
unidades habitacionais construídas. Os demais moradores removidos se
distribuem entre a indenização simples e a inclusão no Programa de
Reassentamento Monitorado – PROAS, no qual se enquadram os moradores
removidos cuja benfeitoria foi avaliada em patamar abaixo de R$40.000,00. Não
há, porém, dados oficiais que esclareçam quantos moradores foram atendidos
pelo programa.
Assim, percebe-se uma profunda mudança nas relações sociais, com
alterações nas relações de vizinhança e nas redes de confiança e solidariedade
existentes nas comunidades. As ações do Programa Vila Viva provocam um claro
rompimento dos vínculos sociais das redes comunitárias existentes, gerando um
impacto na vida dos moradores. A situação demonstra haver necessidade de se
repensar estruturalmente o Programa, de forma que os propósitos de se gerar
benefícios às comunidades-alvo de fato possam ser alcançados. O ideal é que as
propostas de acompanhamento do pré e pós morar, uma tentativa que tem sido
quase sempre falha de readaptar o modo de vida dos integrantes das
comunidades, possam resultar em planos de fato executados, de forma que os
aspectos socioculturais próprios de cada localidade sejam respeitados.
A pesquisa desenvolvida pelo Programa Cidade e Alteridade e outros
resultados de investigação sobre o tema demonstram que o modelo de Política de
Habitação de Interesse Social aplicado em Belo Horizonte via Programa Vila Viva,
gera benefícios em termos das ações de urbanização de vilas e favelas, mas
concomitantemente, desencadeia outros problemas sociais graves, dentre os
quais, a mudança radical no padrão de vida dos moradores. Seja pela
padronização dos assentamentos em unidades habitacionais que altera dinâmicas
de vida já estabelecidas, seja pela realocação territorial de antigos moradores em
áreas distantes do local originário de moradia, inclusive nas cidades do entorno
da capital que compõem a Região Metropolitana. Ponto importante a ser
5Informações cedidas em entrevista gravada com técnicos da URBEL no posto de atendimento da
URBEL nas vilas São Tomás e Aeroporto em 04 de abril de 2012.
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considerado na avaliação dos impactos do Programa Vila Viva é a transferência
de problemas sociais para os municípios próximos a Belo Horizonte.
O direito à moradia adequada representa um plexo de direitos e não
apenas uma moradia em si mesma. Avalia-se que há uma perda significativa da
qualidade de vida decorrente nas ações do Programa Vila Viva. As relações
sociais tendem a se deteriorar, gerando insatisfação em parte dos afetados, e há
registros de deficiências na provisão de serviços públicos às famílias.
Para tanto, consideram-se componentes essenciais do conceito de
direito à moradia adequada:
- a moradia deve ser habitável, com condições adequadas de espaço e
proteção contra as variações ambientais;
- segurança jurídica da posse, garantindo legalmente a pessoa contra
despejos, deslocamentos forçados e outros tipos de ameaça à posse;
- localização com acesso a opções de emprego, transporte público
eficiente, serviços de saúde, escolas, cultura, lazer e outras facilidades
sociais;
- acessibilidade a pessoas portadoras de deficiência ou que necessitem
de auxílio para sua mobilidade, contemplando todos os grupos
vulneráveis;
- acesso a serviços e infraestrutura necessários à saúde, segurança,
conforto e alimentação, incluindo o acesso a recursos naturais e
materiais, água potável, energia elétrica, saneamento, iluminação,
condições de estocagem e outros serviços;
- possibilidade financeira, isto é, a pessoa precisa ter acesso a uma
moradia que possa custear sem prejudicar suas outras necessidades
básicas;
- adequação cultural, isto é, que a forma da construção, os materiais
usados e demais requisitos respeitem a expressão da identidade cultural
das comunidades e grupos sociais. (Plataforma DHESCA Brasil, 2008)6
6 As características da moradia adequada se densificaram a partir do Comentário Geral nº 4 do
Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU que busca traçar diversos parâmetros
para o conceito de moradia adequada. Cf. Comentário Geral n.º 4 do Comitê dos Direitos
Econômicos Sociais e Culturais, 1991. Disponível em:
<http://www2.ohchr.org/english/issues/housing/docs/CG4_sp.doc>. Acesso em> 04 de junho de
2014.
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Há uma inter-relação entre o direito à moradia adequada e o direito à
cidade. Aquele é um importante elemento desse, sendo que a violação do direito
à moradia e seus vários elementos acarreta em violação também ao direito a
cidades sustentáveis.
O direito à moradia dos habitantes da cidade é o núcleo central do
direito a cidades sustentáveis. As atividades, ações e funções desempenhadas na
cidade que tragam como resultado a violação coletiva do direito à moradia, como
o abandono do Estado em atender às necessidades básicas das pessoas que
vivem em assentamentos informais nas distantes periferias urbanas traz como
consequência a violação do direito a cidades sustentáveis. (SAULE JUNIOR,
2004).
O Direito à Cidade implica reconhecer uma pluralidade de interesses e
direitos que devem ser articulados com os direitos humanos de forma a assegurar
que as cidades sejam produto da justiça social.
Trilhando esse caminho é que desde o II Fórum Social Mundial,
realizado na cidade de Porto Alegre, em 2002, iniciou-se a reflexão sobre a
necessidade de inserção do direito à cidade como integrante do sistema
internacional de direitos humanos. Tal reflexão acabou por dar origem à Carta
Mundial pelo Direito à Cidade.
As lutas urbanas vêm gerando a necessidade do reconhecimento, no
sistema internacional dos direitos humanos, do Direito à cidade, definido como o
usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade e justiça
social. É compreendido como um direito coletivo dos habitantes das cidades, em
especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere a legitimidade
de ação e de organização, com base nos seus usos e costumes, com o objetivo
de alcançarem o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado.
O Direito à cidade está interligado e possui interdependência com
todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos
integralmente. Inclui, portanto, os direitos à terra, aos meios de subsistência, ao
trabalho, à saúde, à educação, à cultura, à moradia, à proteção social, à
segurança, ao meio ambiente sadio, ao saneamento, ao transporte público, ao
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lazer e à informação. Inclui também o direito à liberdade de reunião e
organização, o respeito às minorias e à pluralidade étnica, sexual e cultural; o
respeito aos imigrantes e a garantia da preservação da herança histórica e
cultural.
A partir dessa concepção de direito à cidade percebe-se que o
Programa Vila Viva precisa se adequar para garantir o exercício desses direitos
às populações afetadas. Um dos núcleos centrais da não adequação do
Programa aos princípios do Direito à Cidade são as violações relacionadas a
segurança da posse. As famílias que, muitas vezes, moravam há décadas na Vila
São Tomás e Aeroporto não possuíam segurança de posse por não serem
portadoras do título de propriedade. Tal fato tornou mais vulneráveis tais famílias,
tornando-as desprotegidas diante da municipalidade que promoveu remoções
com base apenas no valor das benfeitorias edificadas.
Tal política fere o direito à moradia e à cidade de centenas de famílias
que possuem um direito coletivo à regularização fundiária. Caberia, assim, à
Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL trabalhar na perspectiva da
regularização fundiária plena nas Vilas São Tomás e Aeroporto, priorizando a
permanência nas Vilas, com melhoria da qualidade de vida, evitando a remoção
das famílias. A forma mais adequada de se promover a urbanização é respeitando
o direito de posse dos moradores.
Importante destacar as críticas de especialistas em direito urbanístico.
O discurso da URBEL nos debates públicos mostra que o órgão ainda
não entendeu que, na nova ordem jurídico-urbanística da Constituição
Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade de 2001, existe um direito
coletivo à regularização fundiária de assentamentos informais
consolidados. Não se trata apenas de uma questão técnica e
discricionária do Poder Público, que faz o que quer, quando quer, como
quer. Mesmo que os direitos fundiários dos moradores não tenham sido
formalmente declarados, a URBEL – afinal de contas, um órgão da
“administração popular” – deveria dialogar com eles não como
beneficiários de favores do governo, mas como titulares de direitos
próprios. (FERNANDES E DOLABELA, 2010)
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O resultado das ações nas vilas São Tomás e Aeroporto pode significar
a remoção de 30% dos domicílios, sendo que as famílias serão levadas a se
contentar com indenizações pífias que não correspondem ao direito adquirido à
propriedade pelo decurso do tempo. Essas remoções já estão em andamento e
não consideram que há um verdadeiro direito subjetivo dos moradores à
regularização fundiária.
Na contramão desse pensamento houve uma inversão completa da
lógica de proteção do direito à moradia e à cidade dessas comunidades na
medida em que mais da metade das remoções foram realizadas com
indenizações que desconsideraram a dimensão declaratória do direito das
famílias ao título de propriedade, uma dentre outras formas de proteção da posse.
Nessa linha de intelecção Edésio Fernandes e Heloísa Dolabela
consideram sobre o valor das indenizações:
Em especial, tal reconhecimento deveria se traduzir no cálculo adequado
das indenizações quando a desapropriação for efetivamente necessária,
como poderia ser o caso em qualquer outra parte da cidade. Muitos dos
projetos de engenharia de grande porte que têm literalmente rasgado
várias vilas e favelas no meio – muitos deles ironicamente pagos com
recursos do PAC, que deveriam promover inclusão socioespacial – não
teriam sido considerados para outras partes da cidade “formal”, não
apenas por seus enormes custos se levados em conta os valores reais
da indenização, mas também porque a URBEL não ousaria tratar os
grupos sociais mais privilegiados da cidade, portadores de títulos
fundiários, da forma desrespeitosa como tem tratado os moradores de
vilas e favelas. O discurso “técnico” do órgão ainda se refere a
“assentamentos subnormais”, e o fato é que muitos moradores têm sido
tratados como cidadãos de segunda classe. (FERNANDES E
DOLABELA, 2010)
A partir do contexto de uma nova ordem jurídico-urbanística não é
possível admitir que centenas de pessoas sejam removidas sem a
correspondente indenização justa, que não se resume apenas aos valores
despendidos pela construção de benfeitorias, mas também a todos os elementos
citados acima que integram o direito à moradia adequada, englobando a própria
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segurança da posse materializada no reconhecimento não apenas da posse, mas
também da propriedade.
Tal concepção da forma de indenização em processos de remoção
forçada não leva em consideração que há no país uma nova ordem jurídico-
urbanística estabelecida a partir da Constituição Federal de 1988, no capítulo de
Política Urbana, artigos regulamentados pelo Estatuto da Cidade aprovado em
2001. Existe, ainda, um conjunto normativo aprovado nos anos seguintes, tal
como a Lei 12.587/2012 que instituiu as Diretrizes Nacionais de Política Urbana.
Desconsiderar esse conjunto normativo constitucional e limitar a
fundamentação dos critérios de indenização pela ótica estreita do direito civil,
observando apenas se há um título de propriedade ou não, é violar o direito à
moradia e à cidade.
3. O DIREITO À PARTICIPAÇÃO
É preciso compreender o direito à participação como elemento
integrador e fundamental na construção do direito à cidade. Tal preocupação fica
expressa no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) no art. 43, incluindo uma
lista dos instrumentos participativos propostos para a efetivação do princípio da
gestão democrática das cidades:
Art 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser
utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:
I- órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e
municipal;
II- debates, audiências e consultas públicas;
III- conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis
nacional, estadual e municipal;
IV- iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos
de desenvolvimento urbano.
Percebe-se que a partir da promulgação do Estatuto da Cidade, a
cidade ganha o status de espaço de realização da democracia. Os rumos
estabelecidos pela gestão pública devem ser fruto de deliberação ampla, coletiva
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e popular. Nesse sentido, entende-se que políticas e ações que impactam e
alteram o espaço urbano devem ser submetidas à participação, nesse sentido
cabe a administração municipal, por meio do Programa Vila Viva atuar de forma
clara e participativa.
Resultados dos estudos mostram que a condução da URBEL na
execução do Programa Vila Viva precisa aprimorar mecanismos de participação
nos processos das intervenções. O Programa tem aplicado um modelo
participativo mais formal, verificou-se que ocorrem problemas de interlocução com
os moradores em função da linguagem técnica pouco acessível. Resultando em
reclamações sobre dúvidas não esclarecidas relacionadas a ações e tomadas de
decisões, como se nota a partir dos relatos coletados em dezembro de 2011:
Entrevistador:Como foi a negociação com a URBEL?
Moradora A: Ah, com a URBEL, quer dizer, eles falou pra mim o valor da
minha casa, né, quanto que valia de tudo, né? Quanto que valer, fizeram
a medida de tudo, né? Aqui na minha casa deu R$25.207,30, o valor da
minha casa. Bem menos do que eu paguei aqui, quando eu comprei.
Entrevistador: Pois é, porque a casa é muito grande, né!?
Moradora A.: Pois é, né, mas num sei, eles colocam na lei isso. Eu
também num, num questionei não... Num fui lá reclamar nem nada não,
falei assim.. “ah... deixa pra lá”, tá bom. Aí falei assim, “Ah, como a casa
lá que eu vou comprar, eu vou pagar trinta, mas aí vai ser eu e eu e
minha irmã. [inaudível] todo mundo falava assim: “Cê vai sair no
prejuízo”. Mas eu, como eu quero, mais tarde, melhorar, né, então, vai
ser assim, porque a casa da minha irmã, lá a casa lá que eu vou pegar é
de três quartos, o problema é que minha irmã tem três filhos, eu não
tenho filhos, que ela mora aqui em cima da minha casa. Aí vai ficar com
os quartos, com a casa embaixo, e eu vou construir em cima pra mim. Lá
são três quartos, sala, cozinha, banheiro, sabe? E tem um quintalzinho,
tem pé de manga, pé de limão, é gostosinho lá. Tem lugar que eu posso
construir lá também, fazer, abrir minha loja, e eu vou construir pra mim
em cima.7
7 Entrevista gravada com moradora da Vila São Tomás em dezembro de 2011, prestes a realizar
sua mudança para Vespasiano após ser incluída no PROAS.
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A URBEL ao realizar os PGEs, institui os Grupos de Referência,
compostos por representantes dos moradores. Apesar de um discurso
preocupado com métodos participativos, na realização de reuniões e na
apresentação do projeto em assembleias, verifica-se um distanciamento fático dos
moradores das propostas apresentadas. A tendência tem sido de priorização de
uma visão mais técnica dos problemas decorrentes das intervenções urbanas
realizadas.
O princípio da gestão democrática das cidades incluída no novo marco
legal sobre direito urbanístico estabelecido para as cidades brasileiras, expressa
que a participação é fundamental para que, coletivamente se possa efetivar o
Direito à Cidade, tal como David Harvey expressa na seguinte fala:
O direito à cidade é muito mais do que uma liberdade individual de
acessar os recursos urbanos: é o direito de mundar nós mesmos
mudando a cidade. É mais do que um direito individual, uma vez que
esta transformação depende do poder que a coletividade de recriar o
processo de urbanização. A liberdade para fazer e refazer nossas
cidades e nós mesmos, que quero discutir, um dos mais preciosos e
ainda mais negligenciados dos direitos humanos (HARVEY, 2008,
tradução nossa)8
Intervenções tais como as empreendidas pela URBEL, que alteram
substancialmente a vida das pessoas nas localidades onde moram há anos
exigem procedimentos mais cuidadosos, de forma que os afetados de fato sejam
ouvidos e possam se expressar livremente, sem as amarras de um
procedimentalismo burocrático. A participação, portanto, para ser efetiva deve
acontecer em todos os momentos, do diagnóstico aos impactos pós-obras.
Outro aspecto que chama a atenção é o fato de os PGEs serem
conduzidos por empresa terceirizada pela Urbel, o que tem gerado a
descontinuidade dos processos participativos, uma vez que as ações do mercado
se movem pela eficiência e lucro, em detrimento de um processo de
8The right to the city is far more than the individual liberty to access urban resources: it is a right to
change ourselves by changing the city. It is, moreover, a common rather than an individual right
since this transformation inevitably depends upon the exercise of a collective power to reshape the
process of urbanisation. The freedom to make and remake our cities and ourselves is, I want to
argue, one of the most precious yet most neglected of our human rights.
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empoderamento que garanta a participação real. Além disso, o despreparo das
esferas técnicas de compreenderem a diversidade cultural da cidade, bem como a
não valorização de uma metodologia de participação clara que inclua esferas de
deliberação tem marcado a atuação do Programa.
De acordo com Boaventura de Sousa Santos a participação efetiva só
acontece quando “o sistema político abre mão de prerrogativas de decisão em
favor de instâncias participativas” (Santos 2003a) e a intensidade de tal
participação é tanto maior quanto mais se garante a possibilidade de participação
e deliberação dos grupos sociais envolvidos na concepção, execução, controle e
fruição da intervenção (Santos, 2007). No entanto, a Prefeitura prioriza tão
somente o caráter informativo do contato com a comunidade afetada, sendo muito
raras as situações em que a comunidade efetivamente delibera sobre alguma
questão concreta que seja de seu interesse.
É necessário garantir medidas de prevenção contra a participação de
“baixa intensidade”, ou seja, uma participação formal que tem como objetivo
informar os moradores sobre as ações que serão realizadas e sobre os impactos
que tais intervenções terão em suas vidas.
O seguinte trecho foi retirado de um texto que analisa como a URBEL
conduzia os processos de elaboração dos Planos Globais Específicos, em
particular do Aglomerado da Serra. Situação verificada também na realidade das
Vilas São Tomás e Aeroporto:
Um ponto crítico no que diz respeito ao método do PGE é o
planejamento convencional que se divide em coleta de informações,
diagnóstico e propostas, que condiz com a cadeia convencional de
planejamento, construção e uso, como se o espaço urbano fosse um
produto definido, e não um processo permanentemente em construção,
conduzido por pessoas aptas a agirem conforme suas escolhas. (KAPP;
BALTAZAR, 2011, tradução nossa) 9
9 One critical point in this respect is that the PGE method follows the conventional planning
sequence of data gathering, diagnosis and proposal, which fits in the likewise conventional chain of planning, building and using, as if an urban environment were a finished product and not an ongoing, constantly changing process, performed by people able to act according to their own choices. (Tradução dos autores)
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Conclui-se, portanto, que a proposta de participação não foi aplicada de
forma satisfatória, de modo a garantir o direito das pessoas afetadas à moradia
digna e o direito à cidade. O Programa Vila Viva na Vila São Tomás, para sua
continuidade, deve priorizar a divulgação de informações aos moradores, e,
observar condições necessárias para o aprimoramento da participação popular
para que se efetive o princípio da gestão democrática previsto no Estatuto da
Cidade e fundamental na ordem jurídica vigente.
4 A SITUAÇÃO DOS CARROCEIROS: OFÍCIO, RENDA E VÍNCULOS COM A
COMUNIDADE
4.1 Introdução ao tema dos carroceiros em Belo Horizonte
Já na época da construção da nova capital de Minas Gerais no fim do
século XIX, os carroceiros exerciam um papel fundamental para o funcionamento
da cidade, sendo responsáveis por transportar os materiais e equipamentos de
sua construção. Foram homenageados no ano de 2000 com a instituição do Dia
Municipal do Carroceiro, comemorado todo primeiro domingo de setembro.
Em Belo Horizonte existe desde 2000 o projeto “Carroça Legal”, que
visa à legalização das carroças. Os trabalhos acontecem a partir da parceria
entre a Superintendência de Limpeza Urbana – SLU, a BHTrans e a Universidade
Federal de Minas Gerais - UFMG. De acordo com o site da Prefeitura de Belo
Horizonte (PORTAL PBH, 2013), o projeto age em duas etapas: a primeira
envolve a vistoria das carroças (medição do veículo e avaliação do estado dos
pneus e freios, etc) e dos cavalos, com a conferência do cartão de vacinação dos
animais; a segunda etapa conta com um curso de 4 horas, cujo conteúdo inclui
legislação para o trânsito e a circulação autorizada, cuidados básicos com os
animais e regras de utilização das Unidades de Recebimento de Pequenos
Volumes – URPV. Após a aprovação, cumprindo as etapas previstas, as carroças
são emplacadas e os condutores recebem o Certificado de Registro e
Licenciamento do Veículo de Tração Animal – CRLVTA. Existem, atualmente,
cerca de 3 mil carroceiros cadastrados nesse sistema. Porém, de acordo com
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Pissolati “estima-se que, somados os não cadastrados, este número chegue a
pelo menos 14 mil” (PISSOLATI, 2013, p. 23).
Um extenso trabalho de pesquisa etnográfica foi realizado por Nian
Pissolati sobre os carroceiros do extremo leste de Belo Horizonte. Na etnografia,
o autor descreve e analisa os modos de vida dos carroceiros tendo como base
três eixos relacionais intrínsecos à vida carroceira: interação que se estabelece
entre homem e animal; relação espaço-temporal que organiza o universo
carroceiro e caracteriza sua presença na cidade; e as relações que se
estabelecem entre os próprios carroceiros e os diferentes agentes urbanos.
(PISSOLATI, 2013). De acordo com constatações do autor
[...] a maioria das pesquisas realizadas em Belo
Horizonte sobre os carroceiros desenvolvem-se a partir da visão
da precariedade social e tem como base estruturadora dados
quantitativos, como o de renda e escolaridade (PISSOLATI, 2013,
p. 71).
Esse tipo de abordagem acaba por ofuscar as distintas temporalidades
que convivem na cidade – e que deveriam ser pressuposto de uma convivência
multicultural levada a sério - e restringe na figura do carroceiro um executor de
determinado ofício, despido de suas dimensões culturais mais profundas.
Desconsideram, assim, que o carroceiro representa uma alteridade que compõe a
cidade, dentre muitas outras. Reforça-se, desse modo, uma marginalidade
simbólica associada à baixa escolaridade, à relação diferenciada com os animais
e à relação com os resíduos que a cidade produz (PISSOLATI, 2013) que,
somada à marginalidade geográfica na qual têm sido empurrados ao longo das
décadas, cria a equivocada impressão de que eles é que estão fora do lugar, fora
do espaço e fora de uma época.
Seleção de imagens ilustrativas da realidade dos carroceiros nas Vilas
São Tomás e Aeroporto:
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Fotografia 1. Foto tirada em 22 de agosto de 2012. Aviso da URBEL
para o afastamento dos animais dos locais das obras. A faixa está
pregada nas próprias baias dos carroceiros
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Fotografia 2. Foto tirada no dia 11 de dezembro de 2012 no local
remanescente das antigas baias dos carroceiros.
A abordagem da Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL
- sobre os carroceiros das vilas está baseada nas diretrizes do “Projeto Correção
Ambiental e Reciclagem com Carroceiros”10, ou, simplesmente, Projeto
Carroceiro, criado em 1997 pela Prefeitura de Belo Horizonte em parceria com a
Faculdade de Veterinária da UFMG. Em sua atividade local, a URBEL está
atuando no sentido de criar uma Associação de Carroceiros das Vilas São Tomás
e Aeroporto.
A partir da pesquisa etnográfica realizada nas vilas desde novembro de
2011, foi possível identificar diferentes fases do processo de intervenção do
programa de urbanização. Em determinados momentos os membros do Programa
Cidade e Alteridade: Convivência Multicultural e Justiça Urbana estiveram em
contato mais próximo com os carroceiros. Entre dezembro de 2012 e janeiro de
2013, um dos pesquisadores residiu na Vila São Tomás para a imersão
etnográfica, o que aumentou a frequência de contatos diretos com os carroceiros.
10
Disponível em http://www.vet.ufmg.br/pesqextensao/projetos/14/>. Acesso em: 23/12/2013.
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Assim como entre os carroceiros descritos na etnografia de Pissolati,
as seguintes características foram verificadas: o zelo pela própria autonomia e
controle sobre o ritmo e tempo de trabalho, além de uma organização social e
territorial fluida. Esses fatores dificultam bastante a proposta de criação da
Associação de Carroceiros, pois esta cria uma relação burocrática estabelecida
não somente entre os carroceiros e o Estado, como também estimula a
burocratização das relações entre os próprios carroceiros. Sendo o projeto
totalmente idealizado e executado pela URBEL em conjunto com a empresa
Assessoria Social e Pesquisa – ASP, que presta serviços terceirizados para a
Coordenação Social da intervenção da URBEL, verifica-se a necessidade de
atenção para que a proposta seja de fato apropriada pelos carroceiros, caso eles
queiram dar continuidade à entidade de representação frente ao poder público.
Os carroceiros das Vilas São Tomás e Aeroporto utilizarão a Unidade
de Recebimento de Pequenos Volumes - URPV localizada na Av. Washington
Luiz, 945, na divisa entre a vila Aeroporto e o bairro São Bernardo. A unidade
funciona das 08h às 17h de segunda à sexta e aos sábados das 08h às 12h e fica
próxima às baias provisórias atualmente utilizadas pelos carroceiros. Ainda que
não esteja definido exatamente o local das baias definitivas, a expectativa é que
estejam próximas ao local onde hoje funcionam as provisórias.
4.2 A organização dos carroceiros em meio a um contexto de
inseguranças
Após algumas visitas recentes ao campo, momento em que
aconteceram conversas com os carroceiros do São Tomás, obteve-se a
informação de que as reuniões entre a Urbel e os carroceiros foram iniciadas em
julho de 2013, época em que passaram a ser convocados quinzenalmente às
quintas-feiras às 18h no posto da Urbel do São Tomás. Percebe-se hesitação e
desconfiança dos carroceiros na relação com o Poder Executivo, o que envolve
muitos aspectos, e muitas vezes é difícil que haja um real diálogo sobre os
interesses mútuos e os antagônicos entre os carroceiros e o poder público.
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No dia 19 de dezembro de 2013 um dos membros da equipe
acompanhou uma dessas reuniões realizadas quinzenalmente às quintas-feiras.
Nem a URBEL nem os próprios carroceiros sabem dizer, por exemplo, quantos
carroceiros existem atualmente nas vilas São Tomás e Aeroporto. Sabe-se que
muitos deles foram removidos de suas casas pela intervenção e, a suposição é de
que muitos tenham migrado para outras regiões da cidade ainda não afetadas por
ações de urbanização. As declarações imprecisas estimam a presença de cerca
de 20 carroceiros no processo da criação da Associação.
É preocupante o fato de o poder público estar desenvolvendo um
modelo de cidade-metrópole em que a atividade dos carroceiros seja
desestimulada. De acordo com as informações expostas em entrevista realizada
com a Coordenação Social da intervenção no São Tomás no dia 11 de dezembro
de 2012, a questão dos carroceiros é nova nas atividades relacionadas ao
Programa Vila Vila:
A cidade adotou, a cidade no modo geral, adotou uma
política assim, que uma metrópole não se adéqua muito com a ideia dos
carroceiros. Que é uma atividade que vai se extinguir por ela mesma. A
São Tomás e a Vila São José, que é aquela lá, que é outra vila viva que
você conhece, aqui a realidade dos carroceiros é completamente
diferente, grande número de pessoas vive dessa atividade aqui. Então a
gente conseguiu levar essa discussão e transformar numa proposta
concreta pra cá. Então o que eu tive até o momento, e vi meus outros
colegas de coordenação de vila viva ou mesmo da estrutura da urbel
perceberem que precisa acertar.11
Até mesmo pela baixíssima adesão por parte dos carroceiros à
regulamentação e legalização propostos pela PBH e UFMG, o poder público
parece estar alheio à dimensão e à importância do ser carroceiro na cidade de
Belo Horizonte. Portanto, talvez seja esse o motivo que legitime a modificação da
atuação da SLU sobre a atividade carroceira:
11
Entrevista gravada realizada em dezembro de 2012.
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Hoje há uma diretriz de governo não mais de incentivar a
atividade carroceira, que já foi altamente incentivada. A SLU tinha uma
série de projetos voltada para a questão dos carroceiros, que hoje estão
sendo desarticuladas, assim, numa lógica de que assim: que há uma
metrópole, sim, entendo por uma metrópole, mas tem lugares em que a
atividade sobrevive fortemente, como é o caso aqui do São Tomás, né. 12
A proposta de criação da Associação partiu da URBEL, e não dos
carroceiros. Como estes não compartilham do interesse do poder público na
associação, ao menos até agora, os questionamentos costumam ser sobre
questões práticas que extrapolam os limites definidos pela equipe da URBEL
sobre o propósito de tais reuniões. Na reunião do dia 19, por exemplo, em que a
pauta única seria a definição dos nomes a ocupar a primeira diretoria da
Associação, por vezes as questões colocadas por parte dos carroceiros eram
sobre “quanto irão pagar pelas baias”, “quais taxas precisarão pagar”, “se vão
precisar dar dinheiro para o governo”, etc. Contudo, a reunião foi diversas vezes
reconduzida no sentido de atender ao objetivo inicial, a escolha dos titulares e dos
suplentes dos três cargos que serão criados: Coordenação, Tesouraria e
Secretaria.
Além desses três cargos, a reunião deveria definir ainda dois membros
para comporem o Conselho Fiscal, o que provocou grande alvoroço entre os
participantes da reunião, que rejeitaram completamente a proposta, dizendo que
aquilo era um absurdo: “colocar uns pra vigiar os outros não dá! Dá é morte!” ou
“Eu quero saber é o preço. Só saber o valor e sair”, “eu não vou fazer nada nessa
tal de associação, só vou fazer até receber as baias e depois não quero nem
saber mais disso”.
A funcionária que conduzia a reunião explicou repetidas vezes que a
ASP realizará todo o processo de registro sem qualquer custo para os carroceiros
e que a empresa dará assessoria ao funcionamento da Associação ao longo dos
primeiros seis meses.
Na reunião composta por 3 funcionárias da ASP, 12 carroceiros e um
pesquisador, ocorreu a definição dos 6 nomes para os cargos da diretoria da
12
Entrevista gravada realizada em dezembro de 2012.
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associação e de 2 possíveis nomes para a composição do Conselho Fiscal. Ficou
definido também que a próxima reunião, marcada para o dia 9 de janeiro de 2014,
seria também a Assembleia de Fundação da Associação.
5. INTERPRETAÇÕES SOBRE A REALIDADE DAS REMOÇÕES
As vilas São Tomás e Aeroporto, por causa do Programa Vila Viva,
estão sofrendo intensas transformações espaciais. Nesse processo, muitas
residências estão sendo desapropriadas por estarem nas margens do córrego
Pampulha, ou em área de risco de alagamento ou de risco geológico ou ainda
para a abertura/alargamento do sistema viário. A previsão de remoção no Plano
Global Específico (PGE) foi diversa daquela executada quando do início da obra
em 2011. O PGE (BELO HORIZONTE, 2001b), previu as remoções num total de
530 domicílios13, como aponta o Quadro 01 abaixo:
Quadro 01 - Quadro resumo de relocação (nº de domicílios) das Vilas São
Tomás e Aeroporto
13
A metodologia utilizada nos Planos Globais Específicos para definição de domicílios (Vilas São Tomás e Aeroporto) não são claras. Compreende-se que o que se definiu por domicílio foi a unidade que seria objeto de remoção com direito ao reassentamento individualizado. Em muitos casos, houve relatos de moradores que discordavam dos critérios da Urbel em definir esta “unidade” que seria objeto de indenização, por desconsiderar, por vezes, filhos que moravam em habitações construídas no mesmo terreno como uma unidade separada. Assim, a própria falta de metodologia clara da Urbel nestas distinções nos impossibilita de definir estes conceitos conforme parâmetros próprios, mas nos indica que os números ali fornecidos contabilizam o que eles compreendem por família ou domicílio, ou seja, a unidade a quem eles atribuíram o direito ao reassentamento individualizado.
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Fonte: PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE, 2001b.
Porém, após as adaptações a fim de adequar o PGE de 2001 ao
projeto executivo, as previsões de remoções nas Vilas São Tomás e Aeroporto
superam o total de 1230 famílias (PORTAL PBH, 2012). Sendo assim, o número
de remoções estimado corresponde a mais de 30% do total de domicílios das
vilas. Diante disso, busca-se compreender como se dá o processo de remoção,
quais as consequências e, além disso, qual a pertinência dessas
desapropriações.
Nas vilas São Tomás e Aeroporto, os moradores já desalojados foram
comunicados da desapropriação pela URBEL com antecedência, tiveram tempo
para procurar outra moradia e receberam a indenização antes de se mudarem.
Isso representa uma mudança positiva de postura em relação ao processo de
remoção aplicado em outras vilas da cidade. O trecho da entrevista citado ilustra
tal questão:
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Entrevistador: como é que foi a mudança assim? Você falou que não
demorou... que vocês não tiveram que sair correndo, vocês tiveram
tempo então...
Morador A: a gente teve tempo pra poder sair.
Entrevistador: você chegou a ficar no aluguel, até destruir a casa?
Morador B: a gente procurou a casa, eles deram tempo pra gente
procurar, arrumar lá tudo direitinho. Ai a gente marcou o dia da mudança,
Entrevistador: ai o dia que vocês mudaram eles pagaram ou não?
Morador B: não, eles pagam antes. Eles pagam antes e dão 10 dias pra
você poder sair. Só que a gente demorou mais que 10 dias pra sair.
Morador 3: ahhh.. eles avisaram, foram lá em casa, avisou, marcou com
a gente, fez reunião com a gente, eles avisaram direitinho, né, eles
avisaram, né. Ai quando foi na data certa, a gente tava procurando um
lugar, porque os meninos da C. estudam, né, e trabalham tudo por aqui,
né, e acostumaram aqui e num aceitaram mudar pra fora, né, então a
gente queria ficar era por aqui né, já tava tudo acostumado, todo mundo
ai, né, queria era ficar por aqui mesmo, né.14
A forma de lidar com o morador tem mudado, porém um grave
problema no processo de remoção, constatado ao longo da pesquisa, ainda
permanece: não há uma continuidade na execução do plano de demolição, o que
tem gerado violações de direitos dos moradores das vilas. A derrubada de cada
casa é iniciada assim que a forma de compensação é negociada com a família,
ou seja, este processo não é homogêneo. O que tem ocorrido nas vilas São
Tomás e Aeroporto é a permanência de famílias aguardando a indenização em
meio a quarteirões total ou parcialmente destruídos (Fotografia 03 e Fotografia
04). Isso cria uma situação de insegurança. A demolição das casas somente
poderia ocorrer quando todas as famílias definidas para remoção já tivessem se
mudado.
14
Entrevista gravada realizada em dezembro de 2012
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Fotografia 03 – Demolições parciais
Fonte: Pesquisadores de campo
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Fotografia 04 - Demolições parciais
Fonte: Pesquisadores de campo
Além dos problemas presentes no processo, há consequências sociais
e espaciais posteriores às remoções já detectadas nas vilas São Tomás e
Aeroporto. A insatisfação é demonstrada pelos entrevistados sobre as
consequências das remoções para suas relações sócio-afetivas. Alguns
entrevistados ao serem indagados sobre amigos e familiares que possuíam nas
vilas São Tomás e Aeroporto se emocionavam. Os moradores que permanecem
nas vilas sofrem com a quebra dos laços sociais. Quem é removido precisa se
readequar a novos territórios, com os quais não possui qualquer identidade.
A remoção é acompanhada por uma reconstrução do espaço e,
consequentemente, uma ressignificação. Esse processo, quando promovido por
uma política pública padronizada ou homogênea, desconsidera os significados
prévios atribuídos ao território. Ocorre a imposição de uma nova forma de
compreensão do espaço e das relações, segundo o modelo implantado. Nas vilas
São Tomás e Aeroporto é perceptível o processo de homogeneização da
paisagem e de quebra da identidade.
Considerando todos esses impactos causados nas vilas durante e
depois das remoções, questiona-se a indispensabilidade desse processo. As
intervenções do programa Vila Viva se baseiam no diagnóstico e propostas feitas
pelo Plano Global Específico (PGE). No caso das Vilas São Tomás e Aeroporto, o
PGE foi finalizado em 2001. As justificativas para os desalojamentos
apresentadas no PGE foram: risco de inundação, risco geológico e abertura/
alargamento do sistema viário. Para o presente trabalho, foi realizada uma
comparação entre imagens de satélite que mostram as áreas onde as
construções já foram removidas e mapas do PGE que justificariam as remoções.
A imagem de satélite feita em junho de 2009 (IMG. 01) mostra a
situação das vilas antes do início das intervenções do programa Vila Viva. Havia
uma alta densidade e muitas residências nas margens do Córrego Pampulha. As
imagens de junho de 2012 (IMG. 02) e agosto de 2013 (IMG. 03), feitas durante as
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obras, ressaltam a dimensão e velocidade das intervenções no território. Foram
identificadas grandes áreas das vilas ocupadas majoritariamente por residências
que ficaram vazias em um curto espaço de tempo. O contorno dessas áreas
identificadas nas imagens de satélite foi representado nos mapas do PGE a seguir
que justificariam as remoções. Mas, ao comparar o Plano com as remoções
realizadas até agosto de 2013 evidencia-se um descompasso entre os
argumentos técnicos e a situação das vilas, ou seja, áreas foram desapropriadas
sem que houvesse uma justificativa no PGE.
Imagem 01 – Vilas São Tomás e Aeroporto antes das intervenções
do Vila Viva - 2009
Fonte: Adaptado de GOOGLE EARTH, 2009
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Imagem 02 - Vilas São Tomás e Aeroporto durante as intervenções
do Vila Viva – 2012
Fonte: Adaptado de GOOGLE EARTH, 2012
Imagem 03 – Vilas São Tomás e Aeroporto durante as intervenções
do Vila Viva – 2013
Fonte: Adaptado de GOOGLE EARTH, 2013
O Diagnóstico do PGE (BELO HORIOZNTE, 2001a) definiu as zonas
críticas de risco e insalubridade com base no mapa geotécnico e de declividade
do terreno (MAP. 01) e no mapa de graus de risco (MAP. 02). A partir disso, foram
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definidas as casas que deveriam ser removidas, as casas que poderiam
permanecer no local com a necessidade de intervenção e, por fim, as casas que
não sofreriam intervenção.
O Mapa de zonas críticas para intervenção/consolidação (MAP. 03)
mostra que as casas situadas nas margens do córrego Pampulha deveriam ser
removidas devido à ocorrência de inundação, de solapamento e por causa do alto
índice de insalubridade. As demais áreas de risco e insalubridade deveriam sofrer
uma reestruturação urbana com a implantação de obras de pavimentação,
esgotamento sanitário e contenções (BELO HORIZONTE, 2000). A sobreposição
do contorno das grandes áreas modificadas pelo Vila Viva até agosto de 2013
com os mapas a seguir mostra que, em determinados lugares, não havia
necessidade de remoção segundo estes itens analisados.
Mapa 01 - Mapa geotécnico e de declividade do terreno
Fonte: Adaptado de BELO HORIZONTE, 2000
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Mapa 02 - Mapa de graus de risco
Fonte: Adaptado de BELO HORIZONTE, 2000
Mapa 03 - Mapa de zonas críticas para intervenção/ consolidação
Fonte: Adaptado de BELO HORIZONTE, 2001a
O mapa de drenagem identifica a área de risco iminente por
alagamento e também a área alagável no período de chuva. Na primeira há
possibilidade de destruição imediata de moradias, não sendo necessário para isto
chuvas elevadas em termos de duração e/ou intensidade. Já a área alagável é a:
delimitação da área atingida pelo córrego anualmente nos períodos de
chuvas fortes, de Dezembro a Fevereiro, ficando apenas as casas
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marcadas na primeira faixa em situação de risco. Apenas uma enchente
em 1989 colocou toda esta área em situação de risco, encobrindo a
maior parte das casas. (BELO HORIZONTE, 2000, p. 76)
Nesse sentido, a área alagável não corresponde às casas que devem
ser removidas. Essas são áreas que precisariam de intervenção para que as
casas nelas localizadas permanecessem (MAP. 04). Além do transbordamento do
córrego Pampulha, outra razão para alagamentos no período de chuvas fortes é o
subdimensionamento da rede de drenagem ou do tamanho e quantidade das
“bocas de lobo” (BELO HORIZONTE, 2000). Assim, os pontos críticos estão nas
margens do córrego e próximo às linhas de drenagem principais.
Mapa 04 - Mapa de Drenagem
Fonte: Adaptado de BELO HORIZONTE, 2000
Segundo a Urbel, a maioria das remoções previstas na região se
tornou necessária em função das enchentes. Anualmente, as comportas da
barragem da lagoa da Pampulha são abertas e o Córrego do Onça inunda a
região. Além das perdas materiais sofridas pelas famílias, muitos relataram a
ocorrência de mortes.
A partir das entrevistas ficou claro que o principal problema enfrentado
pela comunidade é a enchente. Segundo os moradores, aqueles que moravam
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nas proximidades do córrego sofriam em épocas das chuvas, preocupados em
garantir a segurança de seus familiares e em recuperar seus bens após as
inundações.
Num volta depois, né, a geladeira quando estraga assim num volta
depois, né? Graças a Deus a minha ainda não estragou (risos), mas eu
perdi máquina, tanquinho, microondas, porque foi de madrugada, muito
de repente, igual eu te falei, como eu tenho pai e mãe por perto e meu
irmão é cadeirante, então eu fiquei mais preocupada em ajudar eles do
que a mim mesmo, né, porque as minhas meninas eu tirei daqui e
pronto, mas a água subiu tanto que eu num conseguia me tirar eu e meu
irmão daqui... Ele ficou preso ali numa casa de dois andares, que é na
vizinha do lado, né?! Que deu apoio pra gente lá".15
Da última vez a água veio na minha casa, esse ano ainda, né...? Foi,
esse ano não. Final do ano passado, novembro!? Esse sofá que cê tá
vendo aqui ficou pura água... As duas televisão que a gente tinha, não
sobrou nenhuma, tivemos que comprar outra, então, assim, isso aqui é
lavado cê pode ver que o cheiro tá suportável... A marca, isso aqui ó... É
de água, então, assim, é muito triste cê ver a sua casa cheia d’água, a
geladeira flutuando... Né? 16
- Eles resolveram acabar com isso aqui porque era uma vergonha, isso
aqui é uma vergonha. (...) Eu nunca tive um ano de sossego nesse lugar,
em trinta e tantos anos. Aqui quando dá fim de ano você não pode viajar,
você tem que ter cavalete com três metros de altura pra você guardar
suas coisas, você não pode ter nada que presta aqui não. Foi trinta e
tantos anos nesse sofrimento.17
- Aquelas chuvas mais pesadas, ai... isso aqui já foram... já ceifaram
vidas ai nesse córrego ai. Ultimamente não é tanto, mas sempre teve
essa inundação.18
15
Entrevista moradora do São Tomás-Aeroporto, 2012.
16Entrevista com moradora, no São Tomás-Aeroporto, 2012.
17Entrevista com morador, no São Tomás-Aeroporto, 2012.
18Entrevista com morador, na Vila São Tomás-Aeroporto, 2012
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- Tinha muita enchente ali embaixo né, enchia muito, a água ali em baixo
subia um metro, um metro e meio. A minha mãe morava ali antes de
chegar aquela ponte. A casa da minha mãe quantas vezes já não
encheu? Nossa, dava dó demais ver aquele pessoal todo sair correndo
de um lado pro outro.19
Observou-se que a opção pelas remoções foi maciça neste local,
poucas casas que compunham o todo da vila permanecerão. O aumento do
número de remoções ocorreu com pouca resistência dos moradores, fato que foi
atribuído a inevitabilidade da intervenção devido ao grave problema das
enchentes.
Ressalta-se que historicamente a enchente não atingia as vilas por
completo. Existem áreas de risco nas vilas, porém, essas áreas não
compreendem toda a região do São Tomás e Aeroporto. Faz-se necessário
ressaltar esse fato, pois a partir das entrevistas, foi possível perceber certa falta
de compreensão dos moradores quanto ao motivo da remoção:
Quando enchia, a água chegava a uns 5 metros, não chegava aqui. Ai o
quê que acontece, se é São Tomás, é risco. O que eles tinham de fazer à
época era se preocupar com o córrego, ou é baixar o nível ou fazer uma
contenção de concreto do lado e do outro, que ai o pessoal que tava lá,
não ia ter problema nenhum. Mas ai eles põe S. Tomás inteiro....20
Nesse sentido, a sobreposição do contorno das grandes áreas
modificadas pelo Vila Viva até agosto de 2013 com os mapas de Drenagem,
reforça a ausência de justificativa técnica para as remoções em alguns lugares. E,
mesmo nas áreas alagáveis, há outras soluções que não a remoção: ampliação
da rede de escoamento de águas pluviais, redesenho do trajeto das redes de
drenagem, construção de contenções para água pluvial, etc.
19Entrevista com trabalhadora do Salão de Beleza, no São Tomás-Aeroporto, 2012.
20Entrevista com moradora do São Tomás-Aeroporto, 2012
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O padrão construtivo das residências poderia ser usado como
justificativa para as remoções. Mas, dados apresentados no PGE (BELO
HORIZONTE, 2000) mostram que apenas 8,02% das edificações das vilas São
Tomás e Aeroporto possuem padrão construtivo ruim. Em mais da metade dos
casos, o padrão é bom (QUA. 02).
Quadro 02 – Padrão Construtivo dos domicílios nas vilas São
Tomás e Aeroporto
Fonte: Adaptado de BELO HORIZONTE, 2000
A ampliação da rede viária foi prevista no PGE para melhorar a
acessibilidade e as possibilidades de articulação. As obras para abertura e
alargamento das vias também são usadas como justificativa para remoções. No
mapa final de Propostas do PGE (MAP. 05) é possível analisar o sistema viário
sugerido. Ainda assim, certas desapropriações realizadas até agosto de 2013
permanecem sem justificativa técnica.
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Mapa 05 – Mapa Propostas PGE
Fonte: Adaptado de BELO HORIZONTE, 2001b
O mapa a seguir representa o conjunto de todas as áreas que deveriam
obrigatoriamente ser desapropriadas de acordo os estudos e propostas
apresentados no Plano Global Específico das vilas São Tomás e Aeroporto. Além
disso, foi feita a delimitação das grandes áreas que, até agosto de 2013, sofreram
remoção. Percebe-se a ausência de justificativa técnica para a demolição de
casas na área amarela do mapa (MAP. 06)
Mapa 06 – Mapa Remoções nas Vilas São Tomás e Aeroporto
Fonte: Adaptado de GOOGLE EARTH, 2013.
As grandes remoções ocorridas até agosto de 2013 podem ter sido
definidas no Projeto Executivo, contudo não se justificam plenamente por meio
dos estudos e propostas do Plano Global Específico. Poderia o Projeto Executivo
propor remoções sem o embasamento no PGE? Considerados todos os impactos
negativos das remoções conhecidos e expostos nesse relatório, conclui-se que
algumas áreas não precisariam ser desapropriadas, podendo a administração
municipal lançar mão de outros recursos, evidenciando, portanto, iniciativas
evitáveis e a necessidade de haver uma condução mais transparente das
decisões tomadas e adequada a realidade de cada área alvo das intervenções.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Programa Vila Viva representa parte do modelo de Política
Habitacional, voltado para cumprir a função social da cidade de Belo Horizonte,
contemplando atualmente doze comunidades21.
Os resultados da pesquisa desenvolvida pelo Programa Cidade e
Alteridade tem demonstrado que existe uma lacuna entre as proposições
apresentadas pelo Vila Viva e a realidade dos processos de intervenção urbana
realizadas nas comunidades.
As percepções coletadas a partir de entrevistas realizadas com
moradores e as observações de campo demonstram haver necessidade de se
avaliar melhor a concepção de participação aplicada pelo Vila Viva. Verifica-se
haver uma padronização das fórmulas de mobilização, planejamento e das ações,
sem que as peculiaridades de cada comunidade sejam consideradas.
A participação aplicada via Grupo de Referência tende a segmentar a
comunidade, gerando distinção entre os moradores, abrindo canal de interlocução
com representações que nem sempre possuem legitimidade ou de fato se
comprometem com a diversidade do local e com posições diferenciadas
existentes entre os moradores. Verifica-se que nas comunidades tem ocorrido
situações de tensão decorrentes exatamente desses procedimentos aplicados na
implantação do Vila Viva.
Dentre as questões estruturais relativas à habitação, evidencia-se: o
reassentamento das famílias em prédios, sem levar em consideração a
quantidade de pessoas a serem alojadas em cada espaço construído; a
desconsideração dos padrões tradicionais de moradia adotados pelos moradores;
a remoção de famílias para outras localidades com indenizações insuficientes,
definidas pelas benfeitorias, sem considerar a posse dos imóveis.
21
Informações disponíveis em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=urbel&tax=8178&lang=pt_BR&;pg=5580&taxp=0&. Acesso em 10 de dezembro de 2013.
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As relações sociais são profundamente afetadas em função das
rupturas geradas pelo deslocamento das famílias, rompendo laços de vizinhança
e alterando a dinâmica do social existente, devido também ao tipo de moradia
implantado.
Aspecto importante constatado na pesquisa de campo é a falta de
integração entre as políticas públicas por parte da administração municipal.
Parece haver uma focalização nas intervenções, sem que outras demandas
sociais das comunidades sejam atendidas ou consideradas como parte do
processo que envolve as demolições, a construção das novas moradias e
abertura de vias. Os entulhos expostos por longo tempo afetam a segurança das
localidades, dificulta os deslocamentos e favorece a exposição dos moradores a
doenças pelo acúmulo de água, lixo e animais.
O acompanhamento dos moradores no pré e pós-morar precisa ser
aprimorado, podendo ser definido pela integração de políticas e,
consequentemente, de secretarias municipais atuando pelo bem estar da
população. O ideal seria que fossem contemplados nas intervenções aspectos
sociais, de saúde, esporte e lazer, cultura, educação, dentre outras áreas que
compõem o conjunto da vida das famílias nas localidades afetadas pelas obras de
urbanização.
O monitoramento proposto por meio do Programa de Assentamento de
Famílias Removidas em Decorrência de Execução de Obras Públicas (BRASIL,
1998) precisa ser melhor analisado. A análise da efetividade e eficácia desse
programa demandaria um estudo sobre a real situação das famílias removidas22.
Diante desse quadro, podem ser desenvolvidas ações no sentido de
assegurar o direito coletivo das famílias. No que toca às remoções já realizadas
em função do Vila Viva, poderiam ser avaliadas possibilidades de indenização
como forma de compensar as famílias pela não observância de seus direitos.
No que diz respeito às obras do Vila Viva na cidade de Belo Horizonte
o MP-MG, em defesa do direito social à moradia e, também da ordem urbanística
22
O Programa Cidade e Alteridade possui projeto elaborado para realização do estudo a ser
desenvolvido em parceria com o Laboratório de Estudos Socioterritoriais do Instituto de
Geociências da UFMG e a Escola de Arquitetura.
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como direito difuso, pode ajuizar ações civis públicas voltadas para a
regularização fundiária de áreas de interesse social.
Há dois instrumentos de regularização fundiária que podem ser objeto
de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o MP-MG e a Prefeitura de
Belo Horizonte como forma de proteger o direito à moradia de interesse social de
famílias carentes.
Esses instrumentos estão previstos na Lei 11.977/2009 e são
denominados demarcação urbanística e legitimação da posse. A primeira
constituí-se como a delimitação de uma área ocupada e consolidada para fins de
moradia de interesse social. A segunda é um instrumento que reconhece a posse
de moradores de áreas objeto de demarcação urbanística.
Na dicção da Lei n. 11.977/2009 veja-se o conceito desses
instrumentos:
Artigo 46 – A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas
jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de
assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a
garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções
sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
III – demarcação urbanística: procedimento administrativo pelo qual o
poder público, no âmbito da regularização fundiária de interesse social,
demarca imóvel de domínio público ou privado, definindo seus limites,
área, localização e confrontantes, com a finalidade de identificar seus
ocupantes e qualificar a natureza e o tempo das respectivas posses;
IV – legitimação de posse: ato do poder público destinado a conferir título
de reconhecimento de posse de imóvel objeto de demarcação
urbanística, com a identificação do ocupante e do tempo e natureza da
posse
A demarcação urbanística e a legitimação da posse, instrumentos que
têm utilidade complementar, podem funcionar como instrumentos de publicidade
às posses identificadas e qualificadas, por meio de atribuição de título pelo poder
público registrado no cartório de imóveis.
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A regularização fundiária, dessa forma, deveria ser prévia a qualquer
tipo de intervenção por parte da Prefeitura de Belo Horizonte, e não somente após
as obras do Programa Vila Via com a titularização de quem conseguiu uma
unidade habitacional na própria comunidade, pois, do contrário, grandes parcelas
sociais tem seu direito à moradia e à cidade violados.
As ações do Vila Viva no São Tomás e Aeroporto estão quase
chegando ao fim, agora, além dos resultados das intervenções para a população,
esboça-se o quadro do pós-morar. Trata-se de atingidos diretamente por
intervenções de urbanização e regularização fundiária, envolvendo reassentados
nas próprias localidades em novas moradias, fora do padrão tradicionalmente
experimentado pelos moradores e uma quantidade significativa de famílias
indenizadas, removidas, hoje sem acompanhamento sobre condições de
realojamento e de vida, em termos ao acesso a serviços.
Ainda que a intervenção tenha sido iniciada em 2011, somente em
julho de 2013 os carroceiros foram informados oficialmente sobre a proposta da
criação da Associação de Carroceiros para que, por meio dela, estejam
regulamentados e com acesso às baias definitivas, que ainda não foram
construídas.
O contexto de mudanças trazido pelo empreendimento pode
intensificar ainda mais a situação de incertezas por parte dos carroceiros, já que a
coexistência de práticas rurais e urbanas – ou práticas rururbanas – são vistas
como se estivessem em vias extinção por grande parte da população que vive em
grandes centros e também por parte do poder público. Agora, com o bairro
reurbanizado, a situação de marginalidade simbólica e geográfica pode acabar
sendo agravada, caso não sejam tomadas medidas que garantam aos carroceiros
o direito à cidade.
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Fotografia 5. Foto tirada dia 13 de dezembro de 2013 nas baias
provisórias construídas pela URBEL.
Ainda que a intervenção esteja na reta final, inclusive com a entrega de
8 Unidades Habitacionais – UH -, a situação dos carroceiros permanece incerta,
cheia de expectativas e hesitações por parte dos carroceiros e também por parte
do poder público.
Cabe salientar ainda que a Relatoria Especial das Nações Unidas para
o Direito à Moradia recomenda que o conceito de moradia deva incorporar
habitabilidade, não discriminação, priorização de grupos vulneráveis e adequação
cultural. Percebe-se que o conceito usado pela Prefeitura de Belo Horizonte,
prioriza pontos tais como disponibilidade de serviços, infraestrutura e
equipamentos públicos, porém, essa ênfase é dada aos reassentados nas
Unidades Habitacionais, que são compostas pela menor parte dos atingidos pelas
intervenções.
A nova moradia deve estar localizada o mais próxima possível do local
original, bem como das fontes de meios de subsistência ou outra solução
pactuada. A adequação cultural e as tradições do grupo devem ser
respeitadas. (ONU, 2011, p. 26)
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Por fim, ainda de acordo com a relatoria, a diversidade local deve ser
respeitada e integrada às obras interventivas, caso elas sejam inevitáveis, a partir
da manutenção ao acesso aos meios de subsistência, inclusive acesso à terra,
infraestrutura, recursos naturais e ambientais, fontes de renda e trabalho” (ONU,
2011). A recomendação indica a redução do impacto sobre as vidas das pessoas
pelo “uso de materiais, estruturas e organização espacial de acordo com as
preferências e necessidades culturais dos moradores (ONU, 2011).
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do Aglomerado São Tomás / Aeroporto, Vilas Suzana I e II e Vila São Miguel.
Etapa 02 – Levantamento de dados, 2000.
BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Habitação. Plano Global Específico
do Aglomerado São Tomás / Aeroporto, Vilas Suzana I e II e Vila São Miguel.
Etapa 04 – Diagnóstico, 2001a.
BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Habitação. Plano Global Específico
do Aglomerado São Tomás / Aeroporto, Vilas Suzana I e II e Vila São Miguel.
Etapa 05 - Propostas e Hierarquizações, 2001b.
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