tom jobim e a modernidade musical brasileira 1953 1958

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Fbio Guilherme Poletto

Tom Jobim e a Modernidade Musical Brasileira 1953-1958

Dissertao apresentada ao Curso de Ps Graduao em Histria da Universidade Federal do Paran, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Marcos Napolitano

Curitiba, 2004

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a todos os que de alguma maneira colaboraram para a realizao deste trabalho. Aos professores Ana Maria Burmester e Renan Frigheto pelos questionamentos e pela postura aberta que demonstraram em suas classes, e ainda pela pacincia e bom humor com que conduziram-me nesta histria... Aos professores Selma Reis e Luis Carlos Ribeiro pelas importantes contribuies no Exame de Qualificao. s secretrias Luci e Dris pela tolerncia e auxlio em todas as questes institucionais. Aos colegas das classes e de orientao, a todos sou imensamente grato. Agradeo ainda ao CNPq pelo apoio em forma de Bolsa que veio em boa hora permitir a concluso deste trabalho. Aos familiares, pelo afeto incondicional e apoio em todos os momentos, especialmente meu irmo Antonio Csar, ombro amigo nas horas mais difceis. Um especial agradecimento aos amigos Ernando Guedes, pela descoberta da msica, Cssio Buseto, pelas longussimas conversas sobre os jeitos do Brasil, Paulo Reis e Andr Egg pelas Reunies de Conjuntura, ao Dr. Carlos, pela acolhida, pelos livros e discos, enfim, a todos aqueles amigos que realmente importam e fazem a diferena em nossa existncia. Tambm gostaria de agradecer aos profissionais do Instituto Antonio Carlos Jobim, no Rio de Janeiro, especialmente Gleise Cruz, sempre atenciosa e disposta a auxiliar e ao Paulo Jobim que permitiu meu acesso aos arquivos do Instituto, especialmente aos registros de imprensa, elementos cruciais da pesquisa. Duas pessoas em especial foram fundamentais para a realizao deste trabalho. Ao meu orientador e amigo Marcos Napolitano, pela orientao rigorosa e amiga e por todas as qualidades que o tornam uma pessoa realmente especial. Serei eternamente grato a ele. Finalmente, para minha companheira Ana, pelo amor e amizade, pela compreenso e carinho nestes dias difceis. Este trabalho para o Seu Bem...

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ndiceIntroduo.............................................................................................................................03 Captulo I: Tom Jobim e o discurso da modernidade musical brasileira 1.1. A construo de hierarquias na msica popular.............................................................09 1.2. O pensamento concretista e a modernidade bossanovista..............................................12 1.3. Jos Ramos Tinhoro e o afastamento da tradio........................................................19 1.4. Ruy Castro e o Brasil ideal............................................................................................24 1.5. Srgio Cabral e os rumos da msica brasileira..............................................................32 1.6. O imperativo da modernizao......................................................................................38 1.7. Ruptura, assepsia e evoluo: os parmetros da modernidade......................................47 Captulo II: Uma releitura da trajetria de Tom Jobim: entre a afirmao esttica e a disputa por espaos 2.1. O compositor e o arranjador...........................................................................................57 2.2. A parceria com Vincius de Morais...............................................................................71 Captulo III: As canes de Jobim: mltiplas propostas (1953/1958) 3.1. A anlise da cano e suas possibilidades......................................................................90 3.2. As canes de Jobim: leituras e anlises........................................................................99 3.2.1. Tereza da praia.........................................................................................................100 3.2.2. Hino ao sol................................................................................................................106 3.2.3. Foi a noite.................................................................................................................108 3.2.4. Eu no existo sem voc................................ ............................................................114 3.2.5. Sucedeu assim...........................................................................................................118 3.2.6. Mgoa.......................................................................................................................122 3.3. Mltiplos projetos........................................................................................................125 4. Consideraes finais........................................................................................................131 5. Referncias Bibliogrficas..............................................................................................135 6. Anexos.............................................................................................................................142

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Resumo

Este trabalho aborda e problematiza a trajetria do compositor Antnio Carlos Jobim no perodo anterior ao surgimento da Bossa Nova, mais precisamente, no intervalo entre os anos 1953/1958. Com o surgimento e asceno da Bossa Nova como projeto de cano moderna, organizam-se tambm novos critrios para a avaliao de obras musicais, que trazem consigo no s a consagrao de Tom Jobim como principal articulador do movimento, mas tambm a desqualificao de elementos considerados ultrapassados esteticamente. No entanto, a atuao de Jobim neste momento de redefinio do gosto musical reflete uma multiplicidade de projetos, refletidos em obras que apontam tanto para elementos posteriormente incorporados quanto rejeitados pela esttica bossanovista. Atravs de fontes escritas e musicais expomos e analisamos os meandros desta trajetria, bem como a percepo da crtica de vis histrico sobre o tema.

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INTRODUO:

Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927/1994) uma unanimidade nacional. A sua condio de mestre torna-o reverenciado como um dos grandes autores do sculo XX, pilar da musicalidade brasileira, divulgador do Brasil e sua cultura no exterior, bastando enfim lembrar que convencionou-se cham-lo maestro, substantivo que em seu caso, adjetivo. Por outro lado, formou-se um senso comum que liga a trajetria de Jobim ao surgimento da Bossa Nova, o que, em grande medida corresponderia ao surgimento de uma msica popular moderna no Brasil. Jobim considerado o pai da Bossa Nova, criador da Bossa Nova. Neste sentido, seu genial talento seria promotor de um gnero renovador, transformando a msica popular brasileira em um produto alta cultura. Este trabalho procura mergulhar em um perodo relativamente ignorado da trajetria do compositor, buscando lanar novos elementos para o entendimento de seu real papel no cenrio da msica popular da dcada de 50 e das consequncias desta atuao na promoo de novos postulados de gosto musical. A sua apresentao divide-se em trs partes, procurando examinar historicamente a trajetria de Tom Jobim no perodo que vai de 1953 a 1958. Um problema central discutido aqui, e que perpassa praticamente todas as anlises sobre a produo musical do perodo refere-se a modernizao1 da cano. Modernizao que encarada, por um certo tipo de crtica de vis histrico da msica popular como um processo que atinge seu pice com o surgimento da Bossa Nova, esta sim tomada como legtima manifestao da moderna cano brasileira. Em certo sentido, a categoria moderno assumida em sua positividade, definindo valores estticos na1

As categorias modernidade, modernizao e modernismo sero amplamente citadas ao longo deste trabalho. So entendidas aqui a partir da definio de Nestor Garcia Canclini (2000). Assim a modernidade encarada como uma etapa histrica; a modernizao como um processo scio econmico que vai con struindo a modernidade e os modernismos como projetos culturais que renovam as prticas simblicas com um sentido experimental ou crtico. Canclini:2000, 23. Quando estiverem grafadas em itlico entretanto, representam conceitos particularizados, filtrados da argumentao dos autores analisados em cada momento. J a qualificao moderno indica um juzo de valor estabelecido como forma de distino de determinadas obras musicais e/ou compositores/intrpretes, ainda que apresente diferentes matizes para cada autor consultado, variando ainda a sua conotao como se ver no Captulo II na arena de debates sobre a modernizao da cano, que se configura no recorte em questo.

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confirmao de um novo cnone para a msica popular. Partimos da premissa de que o estabelecimento destes novos critrios gera por sua vez modalidades de consagrao para a obra de Tom Jobim, bem como para toda a msica popular no s do perodo, como tambm de um passado prximo. Assim, se tentar propor uma discusso de como e quando a modernizao ganha foros de necessidade imperativa para a msica popular, atuando como vetor fundamental na consagrao de obras artsticas. Outra questo fundamental refere-se ao exame de um tipo de viso da produo musical dos anos 50 e da trajetria de Antonio Carlos Jobim, efetuado por agentes tomados aqui como fontes para uma discusso sobre as percepes da modernidade no mbito da cano popular. Nesse sentido, a trajetria e as obras de Jobim veiculadas no perodo do recorte podem funcionar como elementos chave no aprofundamento do debate sobre o processo de modernizao da cano, na medida em que remetem a elementos musicais no considerados pela crtica histrica em questo. A preocupao principal deste estudo cotejar a anlise musical das obras selecionadas, inseridas em um contexto de poca, com as diversas avaliaes organizadas historicamente em torno delas. A comparao acreditamos, pode revelar as bases que informam os juzos de valor em cada poca, e que atuam decisivamente na consagrao de determinados repertrios e/ou no esquecimento de outros. Quanto ao recorte escolhido, ele representa uma opo metodolgica, na medida em que circunscreve a anlise da trajetria do compositor a um perodo relativamente ignorado pela crtica em questo, embora de grande produo musical e atuao decisiva de Jobim no cenrio da msica popular e na promoo de novos postulados de gosto musical. Embora possa parecer paradoxal, a escolha do ano de 1958 como balizamento final neste estudo (alm disso, ano de gravao do disco Chega de saudade, considerado o grande dbut da Bossa Nova) no indica necessariamente a tcita aceitao de uma noo de marco zero historiogrfico em geral inferida esta data. Interessa-nos sobretudo, observar em torno de quais elementos esta noo de marco zero constituda e, em que medida ela regula um tipo de consagrao para a produo jobiniana. Assim, o primeiro captulo concentra-se no exame das principais correntes da critica de vis histrico que se debruaram sobre a trajetria de Tom Jobim em sua

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maioria marcadas pelo memorialismo jornalstico procurando filtrar os elementos que organizam a consagrao do compositor e sua participao na promoo da modernidade. Em um sentido mais amplo, o texto comenta e analisa as bases histricas que perpassam a viso destes autores sobre Tom Jobim e o cenrio onde atua. No segundo captulo, analisada a insero de Tom Jobim no cenrio musical da poca, delineando os dilogos, seus interlocutores, alm da relao do compositor com o mercado, os elementos de sua consagrao como arranjador, compositor, e finalmente, sua atuao em conjunto com outros artistas, particularmente o poeta Vincius de Morais (1913-1980). Paralelamente, so descritas algumas obras e seu impacto junto audincia da poca, como evidncias da relao de Jobim com o pblico e a crtica e, de certa forma, tambm reveladores das caractersticas deste(s) pblico(s) e desta crtica. O terceiro captulo promove um exame mais detalhado de algumas obras singulares da trajetria de Tom Jobim no perodo em foco. Tal proposio est embasada na hiptese de uma leitura sincrnica das diversas propostas que o compositor parece encarnar, ao revelar temticas e materiais musicais tambm prximos um tipo de musicalidade enraizada nos repertrios da poca, principalmente do rdio, alm de influncias variadas de gneros estrangeiros. Preferiu-se nesta anlise a delimitao de um grupo restrito de canes veiculadas comercialmente no perodo, na medida em que parecem representar possveis dilogos de Tom Jobim com a cena musical de seu tempo. Neste sentido, outras leituras destas obras tambm estaro sendo conjugadas na anlise, ao passo em que se verifica nelas, importantes vetores de como a produo jobiniana era encarada por parte no s dos msicos de diferentes procedncias como tambm do mercado musical. A escolha das canes aqui analisadas levou em considerao trs vetores: A qualificao de algumas obras reveladoras de ingredientes antecipadores da modernidade; Sucessos comerciais que viabilizaram a carreira do cancionista Jobim; Obras onde se revelam as suas leituras de gneros estrangeiros. Neste terceiro captulo, ainda so estabelecidos os pressupostos metodolgicos que norteiam a investigao em curso, atravs do cruzamento das tcnicas analticas

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presentes nos trabalhos de Luiz Tatit (Tatit:1996), Walter Garcia (Garcia:1999) e Jos Paulo Tin (Tin:2001), principalmente.

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Captulo I: Tom Jobim na crtica da modernidade musical brasileira

1.1. A construo de hierarquias na msica popular

A anlise das implicaes culturais que o signo musical tende a exercer em audincias variadas pode demandar uma investigao historiogrfica na medida em que se busca inferir a atuao de agentes histricos, na delimitao e consagrao de determinados ideais estticos, materializados em repertrios, obras paradigmticas ou ainda, compositores cannicos. Isto porque a multiplicidade de interpretaes geradas pelo signo musical pode gerar posturas singulares a partir dos diferentes nveis de entendimento de cada espectador, como bem demonstrou Arnaldo Contier:Os sentidos enigmticos e polissmicos dos signos musicais favorecem os mais diversos tipos de escutas ou interpretaes verbalizadas ou no de um pblico ou de intelectuais envolvidos pelos valores culturais e mentais, altamente matizados e aceitos por uma comunidade ou sociedade (Contier: 1991,151).

Neste sentido, convm questionar os caminhos que tornam determinados conceitos, abstrados de interpretaes particulares da obra de arte, relevantes a ponto de formularem regras gerais de fruio, ou ainda, articularem algum tipo de pensamento crtico e histrico. Em outras palavras, como determinados autores ou obras tornam-se paradigmas de verdades coletivas, quando a percepo dos significados na obra musical pode ser e costuma ser objeto de construo individual? Analisando o sucesso da carreira de Beethoven na Viena de 1790-1800, Tia DeNora questiona a Ideologia C arismtica que forjou a consagrao do compositor como um gnio da msica (DeNora:1995). Discordando da deformao historiogrfica que faz com que esta ideologia se perpetue, argumenta que o sucesso de Beethoven e sua reputao de gnio surgem, ain da em sua poca, como resultado ...da interao entre 9

seus esforos artsticos e os interesses de certas redes sociais com as transformaes das convenes musicais e seus critrios estticos, as inovaes do discurso, bem como da prpria cultura musical do sculo XVIII (DeNora: 1995,36). Neste sentido, Beethoven promove e promovido no bojo destas alteraes, devido seus contatos dentro da aristocracia vienense, com quem mantinha relaes simbiticas. O exame dos meios pelos quais a msica decodificada e recebida por suas audincias e como esta usada na construo de identidades de grupo, parte do pressuposto de que, assim como na msica erudita e apesar das diferenas de linguagem entre ambas a msica popular exerceria certa relevncia para suas audincias (Regev:1992,1). Seguindo este raciocnio, concebe-se que significados especficos encontrados em obras artsticas as mais diversas (e aqui tambm inclui-se a msica popular) tornam-se importantes culturalmente para determinados grupos, podendo ser utilizados como legitimadores de pontos de vista, no estabelecimento de relaes de poder. Assim, a consagrao de obras de arte e seus autores/artistas estaria ligada prticas culturais que expressariam a viso de mundo e principalmente, os conceitos estticos e interpretativos de grupos especficos com relao quelas obras/artistas. Ou, como define Jos Miguel Wisnik:A prtica da msica pelos grupos sociais mais diversos envolve mltiplos e complexos ndices de identidade e de conflito, o que pode faz-la amada, repelida, endeusada ou proibida. Sendo sempre comprometida, uma terra-de-ningum ideolgica. (Wisnik: 1987,115)

Desta forma, fundamental questionar como os significados que determinados grupos encontram em diferentes obras ou autores tornam-se aceitos socialmente como verdadeiros ou autnticos. E ainda, quais estratgias so utilizadas na conformao de tais hierarquias. Para Motti Regev (Regev:1992), o surgimento de uma hierarquia artstica, a consagrao de obras clssic as e a coroao de certos artistas seriam resultantes de lutas culturais em busca de legitimao e reconhecimento. Parte destas estratgias seriam a construo de ideologias estticas e critrios de julgamento que tornam-se aceitas socialmente. Para o autor, este um ponto que desmistificaria uma inclinao emocional em prender-se ao conceito de que o valor musical uma caracterstica imanente da obra 10

musical. Por outro lado, necessrio avaliar que a fortuna crtica no se organiza somente em funo de uma rede de leituras ativadas por outrem a respeito de uma obra especfica. Outras relaes pblicas colaboram nesta construo, em particular, os discursos que os prprios artistas elaboram sobre sua produo e que podem variar de acordo com as peculiaridades do momento histrico vivido, os interlocutores, meios de divulgao, etc. (Canclini:2000) O deslindamento de tais estratgias demandaria um cotejamento entre o objeto em si e as diversas interpretaes geradas por ele em atores diferentes, que por sua vez, estariam inseridos em realidades particulares. Desta forma, Contier sugere que:A anlise intrnseca de uma obra deve ser o primeiro momento para a compreenso do universo polissmico que envolve o objeto artstico. Entretanto, torna-se imprescindvel estabelecer mediaes entre o fato artstico e o Estado, a Igreja, entre outras instituies de uma formao histrica cronologicamente determinada, objetivando detectar as razes das leituras em torno do imaginrio artstico (Contier: 1991, 72 grifo nosso)

No caso aqui proposto, a investigao das estratgias de consagrao envolvidas no surgimento de novas linguagens musicais no Brasil, ao longo dos anos 50, conduz percepo de um plano historiogrfico que tende, de maneira geral, a conformar um tipo de recepo para a msica popular em grande parte tributrio dos projetos artsticoideolgicos idealizados pelos organizadores desta historiografia2. Desta forma, as leituras individuais das obras adquirem fora de verdade histrica na confirmao de determinados projetos, ao mesmo tempo em que se procura escapar dos aspectos desviantes e/ou problematizantes da atuao dos agentes diretamente envolvidos com o processo, ou seja, os artistas. No caso especfico da crtica de vis historiogrfico que trata da msica brasileira produzida ao longo da dcada de 1950, possvel observar a presena de um discurso cuja orientao parte da prerrogativa bsica de que a msica conteria, em si, as verdades e a fora, em ltima instncia responsveis pela sua permanncia e influncia nas audincias presentes e futuras. Neste sentido, tal noo tende a encobrir as avaliaes

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Conforme a exposio organizada ainda neste captulo, por exemplo, a influncia do movimento da poesia concreta na configurao de um estatuto moderno para a msica popular, a partir dos anos 60 e derivado de seus projetos construtivos no campo potico. Ver especialmente Campos:1968.

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estticas e os juzos de valor formalizados a respeito tanto da produo musical do perodo como um todo, quanto na produo individual dos compositores, como no caso em questo: a produo musical e a trajetria artstica de Tom Jobim no perodo 1953-1958, e est na raiz da desqualificao do passado imediato da pr Bossa Nova. Os diversos meandros desta crtica, tomada aqui como fonte de um tipo de leitura da produo musical dos anos 50 formulada ao longo das ltimas dcadas, informam por outro lado, diferentes percepes da modernizao da cano brasileira, no raro tributrias dos prprios projetos de asceno de novas linguagens artsticas, como no caso dos crticos, msicos e poetas ligados poesia Concreta.

1.2. O pensamento concretista e a modernidade musical bossanovista.

Impulsionada basicamente pelos movimentos concretistas na poesia em convergncia com os abstracionistas na pintura, esta corrente capitaneada pelos poetas paulistas Augusto e Haroldo de Campos, alm de Dcio Pignatari, procurou exercer sua influncia no cenrio artstico, a partir de 1952, articulando basicamente dois planos: nacional: ruptura com o passado imediato; dilogo com a vertente oswaldiana de 22; sincronia da produo potica com seu tempo, a civilizao tcnica; predominncia da forma sobre o contedo. internacional: compassamento com as experincias de vanguarda internacionais, o que demonstra implicitamente uma valorao positiva dessas vanguardas; identificao da linguagem potica com as novas imagens da comunicao massiva, e o noreconhecimento do carter aurtico da produo potica, colocando-a pari passu com outras manifestaes identificadas como artes menores (Arruda:2000). Entretanto, a partir das discusses sobre o engajamento musical ocorridas ao longo da dcada de 1960 que o grupo ligado aos concretos orienta e catalisa um tipo de

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pensamento mais sistemtico sobre a msica popular produzida na dcada anterior3. Pensamento este tributrio das posies universalizantes que defendiam para a poesia e para a pintura, mas que orientaram tambm uma corrente de anlise sobre a Bossa Nova que, inevitavelmente acabou por refletir-se em sua avaliao da obra de Tom Jobim. Neste contexto que surge o trabalho de Augusto de Campos, intitulado Balano da Bossa, composto por uma srie de artigos, organizado pelo poeta e ensasta em torno de uma perspectiva comum, escritos por diferentes autores ...interessados numa viso evolutiva da msica popular, especialmente voltados para os caminhos imprevisveis da inveno. Coerente com a proposta de um texto -manifesto, o autor enfatiza a natureza do trabalho, definido como um ...livro parcial, de par tido, polmico. Contra. Definitivamente contra a Tradicional Famlia Musical. Contra o nacionalismo-nacionalide em msica (...) Contra os velhaguardies de tmulos e tabus, idlatras dos tempos idos. (Campos:1968,14) A proposta bsica do livro consiste em redefinir padres de escuta para uma nova concepo musical, a qual parecia encontrar nos jovens baianos representantes da vanguarda tropicalista os legtimos representantes da moderna msica popular brasileira, inaugurada com os procedimentos da Bossa Nova. A importncia deste trabalho , ainda hoje, enorme pois com ele, articula-se a base de todo um pensamento crtico que vai ser incorporado como modo de recepo sobre toda a msica popular produzida em sua esteira (Napolitano:2002); mas no s isso: estendendo, como se ver mais adiante, seus juzos de valor para a produo musical de perodos ainda anteriores dcada de 60. Neste sentido, o livro radicaliza o corte epistemolgico definido por Caetano, centrando-se na defesa das correntes vanguardistas e na organizao de um quadro de valores estticos que no s vo corroborar as anlises da produo musical brasileira como um todo mas tambm sero incorporadas e largamente citadas, em diferentes momentos4.

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A partir da clebre entrevista de Caetano Veloso para a revista Civilizao Brasileira (1966), parece haver uma convergncia entre as posies estticas do compositor baiano e o grupo ligado aos concretos, entre os quais tambm quela poca j se distinguia a figura do maestro Jlio Medaglia (Napolitano:1998b). 4 Marcos Napolitano chama a ateno para este ponto: Muitas obras foram publicadas na dcada de 60, constituindo-se mais como fontes do que como referncias bibliogrficas. De qualquer modo, pelo seu carter analtico, criaram tradies de anlise que vem sendo reiteradas, muitas vezes sem a devida crtica histrica (Napolitano: 1998,7). Por outro lado, quanto Balano da Bossa, afirma: Produzido dentro de um determinado debate cultural e ideolgico, ele acabou se transformando em referncia bibliogrfica de cunho acadmico, frequentemente tomada em sua positividade factual (Napolitano: 1998b,139)

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Neste sentido, o refinado pensamento crtico formulado a partir destes artfices ganha fora de verdade histrica ao longo do tempo, orientando e definindo paradigmas de obras a serem seguidas ou rejeitadas. Ao mesmo tempo em que concentram seus esforos em empreender um diagnstico da situao cultural da poca (1968), seus autores apontam para o desabrochar autoconsciente da cano brasileira representado, nestes termos, pela Bossa Nova. Neste contexto, a Bossa Nova valorizada justamente por redefinir padres de escuta, centrados agora na ...sutileza interpretativa, novas harmonias, funcionalidade e adensamento dos elementos estruturais da cano (harmonia-ritmo-melodia) que deixavam de ser vistos como um mero apoio ao canto (Napolitano:2002,62). So fixados ainda, os marcos iniciais do movimento em torno do LP Chega de Saudade (1959), de Joo Gilberto, que contava com gravaes de Chega de saudade e Bim Bom5. Os autores ressaltam alguns procedimentos observados em Desafinado (1958) e Samba de uma nota s (1960), consideradas no livro, manifestos da nova esttica. Alm disso, o prprio carter informativo do grupo bossanovista tende a articul-lo sob a forma de um movimento: organizado, autogerado, e consciente, ao mesmo tempo em que se assume uma postura vanguardista de busca de atualizao. Um dos artigos mais importantes do livro, escrito pelo musiclogo Brasil Rocha Britto ainda em 1960, organiza um quadro histrico onde uma nova concepo ope-se a modelos mais tradicionais, indicando uma ruptura, uma ...experincia nova para um auditrio habituado a msicas de cunho mais conservador (Britto in Campos: 1968,20). Neste ponto, o autor traa dois perfis indicativos de um pensamento evolutivo em direo uma nova concepo do nacional na msica: o pianista e intrprete Dick Farney trataria as obras brasileiras dentro de uma concepo jazzistica, porm sem a inteno de integrar os novos processos uma linguagem coerente; j Johnny Alf partiria da incorporao de elementos do Bebop e do Cool Jazz em suas estruturas, metamorfoseandoos paulatinamente em procedimentos ...mais integrados ao esprito do populrio brasileiro (Britto in Campos:1968,20). Como pano de fundo de afirmao da nova concepo estaria a superao dos remanescentes interpretativos do romantismo, processo esse que, para o autor, j teria sido5

Composies de Tom Jobim com Vincius de Morais e de Joo Gilberto, respectivamente.

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realizado pela msica erudita. Esta seria a maior contribuio da Bossa Nova em termos de filosofia esttica, servindo ao mesmo tempo como moeda de combate e de crtica uma concepo acentuadamente dionisaca (que) vem impregnando a msica popular no s brasileira como de vrias outras etnias (Britto in Campos:1968,23-24). Seriam exemplos de lugares comuns a serem superados: bel canto, operismos, efeitos fceis. A tentativa de alinhamento com outras artes de vanguarda eruditas torna-se perceptvel no tratamento dado Tom Jobim, enaltecendo a sua formao musical e procurando ressaltar o seu domnio do mtier. Assim, a primeira composio integrada concepo bossanovista seria Hino ao sol6 (1954), cano interpretada por Dick Farney, destacando que ... deste momento em diante, acelera -se o processo de renovao (Britto in Campos:1968,20). Acompanhando este raciocnio, o autor destaca Tom Jobim como terico e animador do movimento que reuniria vrios compositores p artidrios de uma mesma concepo sobre a renovao do populrio. Interessa observar, dentro das justificativas do autor, a existncia de uma linha convergente de atuaes, fruto de ideais estticos comuns em relao renovao da msica popular da poca. A nova concepo posicionava -se, desta forma, contrria ... submsica, mal idealizada, mal elaborada, de explorao das convenincias puramente comerciais (...) que vive s custas de recursos fceis e extramusicais, categoria na qual se pode incluir grande parte da produo dos ltimos anos (Britto in Campos:1968,26). O autor ainda reitera que o samba-cano teria se afirmado com a Bossa Nova, aps ter sido ameaado de diluio no Bolero (gnero eleito como inimigo nmero um da modernidade), ...no tanto pela pouca evidncia impressa marcao rtmica do acompanhamento como, entre outros fatores, pelo no uso de configuraes rtmicas na prpria melodia, capazes de caracteriz-lo (Britto in Campos:1968,31). Pode-se observar nesta afirmao do crtico a utilizao de um parmetro de criao notadamente bossanovista7 para a avaliao das obras contra as quais a Bossa Nova firmou-se. Neste sentido, a utilizao de clulas rtmicas como caracterizadoras do gnero6

Composta por Jobim e Billy Blanco e parte integrante da Sinfonia do Rio de Janeiro. Para a lista completa dos fonogramas citados, ver Anexo I. 7 Cf. Tatit, ao ponderar sobre o projeto musical bossanovista, observa a preocupao meldica como ...um outro aspecto do projeto geral do movimento de 1958: a estilizao do samba ou a incorporao de sua essncia rtmica. Isso no apenas com relao batida de acompanhamento mas, sobretudo, ao tratamento da

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musical no s na famosa batida do v iolo, mas tambm na articulao meldica, surgem como moeda de combate tanto para a afirmao bossanovista quanto para a concomitante desqualificao de gneros hbridos como o samba-cano abolerado. Quanto a Hino ao Sol, importante filtrar os elementos que condicionam a elaborao de um novo cnone. Assim, dois aspectos parecem ganhar destaque: a importncia do tipo de interpretao vocal no caso, a articulao precisa, sem prolongamentos e com pouco uso do vibrato de Dick Farney e procedimentos de metalinguagem entre arranjo e letra, como no caso do trecho ...como um pingo de chuva que cai de manh..., onde a palavra pingo comentada pela orquestra8. Convm ressaltar entretanto que, ao mesmo tempo em que lanava a Sinfonia do Rio de Janeiro, de onde o autor retira a cano paradigma deste ideal, Tom Jobim tambm aparecia em disco com outras obras, com um tipo de registro diferente do proposto em Hino ao sol. Mesmo depois do lanamento da Sinfonia o compositor iria produzir obras cujas diretrizes apontavam muito mais para um tipo de esttica a ser evitada e/ou combatida pelos bossanovistas mais renitentes9. Alguns anos depois do artigo de Rocha Britto, outro personagem importante a teorizar sobre a nova concepo, o maestro Jlio Medaglia marcari a o debate com posicionamentos ainda mais radicais e combativos em relao ao tipo de interpretao e repertrio predominantes nos anos 50, numa posio claramente dicotmica. Assim, no artigo Balano da Bossa, publicado originalmente em 1966, encarrega ria-se de sacramentar o discurso que colocava a Bossa Nova como paradigma de msica popularlinha meldica do canto que, atravs de suas sucessivas tematizaes, deveriam indicar as novas clulas bsicas da rtmica brasileira (Tatit:1996,167) 8 Contudo, neste caso, um procedimento de metalinguagem diferente do utilizado por Jobim/Mendona em Desafinado ou Samba de uma nota s. Em Hino ao sol a palavra pingo ganha dimenso ao ser comentada, sem entretanto, estar inserida na construo meldica e/ou harmnica da frase, como nos outros casos citados. Vale lembrar que os arranjos da Sinfonia so de autoria de Radams Gnatalli. Ainda sobre os procedimentos de metalinguagem nas composies de Jobim, ver: Wisnik:1997, Mammi:1992, Souza:1995. 9 Pode-se observar por exemplo o samba-cano Teu Castigo, composto em parceria com o tambm compositor e pianista Newton Mendona (1927-1960) e lanado em 06/1956 na voz de Dalva de Oliveira, com arranjo do prprio Jobim. Esta cano, lanada depois da Sinfonia explora praticamente todos os aspectos considerados ultrapassados pelos tericos concretistas: a temtica da vingana pelo amor mal correspondido, a interpretao dramtica, os prolongamentos das vogais especialmente nos finais de frase, em grandes vibratos e ainda, a escrita orquestral, permeada por uma concepo de dinmica onde o passional atua como vetor fundamental. Por outro lado, a prpria escolha de Dalva de Oliveira como intrprete desta cano pode exemplificar como a atuao de Jobim no cenrio musical da poca no se limita ao estatuto moderno.

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moderna, tal qual era entendida por seus adeptos, como se observa no captulo sugestivamente intitulado Divisor de guas:De um lado permaneceriam aqueles que p ossuam uma viso ampla, viva, progressiva e aberta s novas formas de expresso musical popular e, no outro lado, refugiar-se-iam todos os saudosistas que tentavam apoiar-se em argumentos anacrnicos para justificar a sua incapacidade de perceber coisas novas. (Medaglia in Campos:1968,74)

A sua percepo da produo musical da dcada de 50 assenta-se sobre a idia de decadncia, tendo o Bolero e sua possvel influncia no cenrio da poca uma ao deformante:Nos anos 50 no foi diferente. medida q ue se aproximava o final da dcada, o chamado sambacano dominava inteiramente o repertrio musical como uma espcie de bolero nacional, nas vozes de ngela Maria, Cauby Peixoto, Dalva de Oliveira, Irms Batista, Maysa, Nora Ney e outros. Era o trgico cantado na base do ningum me ama, ningum me quer... (Medaglia:1984)

A atuao de Tom Jobim no perodo retratada no entanto, de forma peculiar, na medida em que apresentaria duas etapas, condicionadas diferentes comportamentos artsticos, definidos para uma posio mais progressista a partir do contato do compositor com violonista e intrprete Joo Gilberto. Nesta perspectiva, Jobim teria revelado:...dois tipos de comportamento artstico, um anterior e outro posterior ao seu contato com o b aiano bossa nova. Basta ouvir o LP Cano do amor demais onde Elizeth canta suas composies, por ele mesmo orquestradas. Os arranjos so melachrinianos, cheios de glissandos de harpas, violinadas furiosas, tudo muito ao sabor das orquestraes bolerescas e kitsch dos anos 50 (Medaglia:1984,05).

Neste sentido importante salientar a impermeabilidade da crtica modernizante frente diversidade de projetos que o prprio Jobim parece personificar, institudo como o principal compositor da Bossa Nov a. Ainda que pesem as diferentes concepes dos prprios integrantes do movimento acerca da dimenso do carter de ruptura destas propostas, na argumentao de Medaglia sobressai a idia de uma ao vanguardista, redentora um s golpe dos arcasmos da cano dos anos 50. Em outras

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palavras, a Bossa Nova institui-se como gnero modernizante per se, concorrendo para isso o gnio de Jobim, depois de devidamente convertido por Joo Gilberto. A opo por um ou outro comportamento artstico a que se refere o autor demonstra o grau de radicalizao das propostas modernizantes desta vanguarda, refratrias posicionamentos identificados com o clima musical dos anos 50, julgado kitsch. Sua cruzada parece ser contra uma concepo que julgavam atrasada, que dominava o repertrio da dcada de 50, representada por uma msica popular de carter regionalizado (baies e marchinhas carnavalescas) por um lado, e por outro, impregnada de sonoridades latinizadas onde imperava o que Jos Miguel Wisnik chamou de romantismo de massas (Wisnik: 1987). Essa noo de cultura, repleta de arcasmos e romantismos, totalmente avessa s aspiraes do grupo que vai ser combatida, ao projetarem retrospectivamente para o movimento bossanovista um outro tipo de sensibilidade, mai s condizente com as suas interpretaes da modernidade. Em outras palavras, possvel interpretar que, com os olhares voltados para o Tropicalismo, os Concretos recuperam na Bossa Nova a gnese da modernidade, articulando ambos os movimentos em torno de aspiraes comuns tambm ao Concretismo potico. Desta forma, a atuao destes artfices extrapola a recuperao do sentido potico da cano (Contier:1991), propondo, simultneamente ao iderio esttico, tambm um projeto historiogrfico implcito, ao estabelecer a gnese de procedimentos modernos em compositores e intrpretes do passado. A prpria noo de evoluo musical presente nos inmeros artigos do livro, figurando de maneira intrnseca aos juzos de valor, encerra em si uma concepo diacrnica do tempo histrico, que procura estabelecer, ainda que em uma perspectiva no rigorosamente linear, uma linhagem de obras e autores que conduzem um tipo idealizado de obra de arte moderna10. Neste sentido, um equivalente artstico materializado nos procedimentos bossanovistas e tropicalistas, respectivamente. Coerentemente com este projeto e com a formulao vanguardista de ruptura, a valorizao da produo de Jobim organizada a partir de sua compatibilidade com estes ideais, inclusive com o estabelecimento de obras antecipadoras, em perspectiva histrica. Enquanto isso, toda uma outra produo do compositor realizada durante o mesmo perodo,

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Santuza Naves aponta para a construo, pelo grupo concretista, de um paideuma da cano no Brasil, ... no sentido de valorizar a cano que foi inovadora em sua poca. (Naves:2003, 256)

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constitui-se uma equao de difcil soluo por apresentar elementos dissonantes a esse cnone. E qual seria a noo de modernidade intrnseca ao pensamento elaborado pelos Concretos? Como essa noo perpassa suas avaliaes de obras musicais? Na sua escuta sobressaem a preocupao com aspectos formais e o rigor na construo artstica derivadas por sua vez, de suas prprias diretrizes com relao criao potica donde o seu elogio ao tipo de composio mais alinhada estes ideais. A atitude combativa registrada nos artigos de Balano da Bossa revela por sua vez, os juzos de valor inseridos no pensamento dos participantes do livro que, mesmo operando em diferentes matizes, acabou instituindo a Bossa Nova como a interface musical de valores como a funcionalidade, a racionalidade e o despojamento caractersticos dos movimentos vanguardistas da poesia concreta. Por outro lado, a nfase em valorizar-se uma atitude inovadora, dos principais criadores da Bossa Nova, estaria ligada uma vontade de defender uma postura mais internacionalista para a msica popular, em contraposio s posies dos idelogos do n acional-popular 11 (Napolitano & Villaa:1998c).

1.3. Jos Ramos Tinhoro e o rompimento da tradio

O jornalista e historiador Jos Ramos Tinhoro confirmou-se ainda nos anos 60 como um dos crticos mais contundentes da Bossa Nova, da produo musical de Tom Jobim, alm de fomentador de inmeras polmicas com as vanguardas concretista e tropicalista. Como jornalista, no incio daquela dcada, Tinhoro noticiou o fracasso do famoso show de Bossa Nova realizado no Carnegie Hall12, denunciando o artifi cialismo

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Vale lembrar, um debate cada vez mais acalorado entre os dois grupos, no ano de 1968, com a emergncia do Tropicalismo. Cf. Napolitano & Villaa:1998c 12 Este evento, realizado por iniciativa do produtor norte americano Sidney Frei com auxlio institucional do Itamaraty, suscitou inmeras polmicas, quando da volta dos principais artistas participantes para o Brasil. Basicamente, organizou-se um quadro onde se opuseram os defensores e detratores do show, tendo como baliza a medida do sucesso da Bossa Nova no exterior. No obstante tal discusso, necessrio frisar que para Jobim, tal empreendimento resultou na oportunidade de iniciar uma trajetria em solo americano, com

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de um evento que, em sua opinio, mostrava aos americanos uma cpia mal acabada do jazz, motivo ltimo do malogro da iniciativa. Foi entretanto, em 1966 que Tinhoro demarcou com suas anlises o cenrio de discusses sobre a msica popular, com a publicao em livro de uma srie de artigos escritos ao longo de 1961-1965 para diversos jornais. Trata-se do volume Msica popular: um tema em debate, dividido em trs partes: Introduo ao debate, Problemas e Estudos 13, proposio que segundo seu autor, colocava ...em nvel superior a discusso do tema da msica popular, at hoje prejudicado pelo preconceito cultural das elites (Tinhoro:1966, 13). No prefcio, Tinhoro justificava a sua perspectiva, ao analisar que a cultura urbana receberia um tratamento depreciativo pelos folcloristas14, ...que se interessam pelo povo com o paternalismo de autnticos senhores feudais da cultura (Tinhoro: 1966, 13). Neste sentido, e vislumbrando na cano engajada15 daquele momento um quadro onde uma ...juv entude universitria da classe mdia busca uma ponte de contato com o povo, Tinhoro revelava a sua concepo de cultura popular urbana, tomada como ...uma manifestao viva de camadas da populao submetidas a uma determinada colocao na escala social, e a determinados tipos de relaes com os elementos de outras camadas (Tinhoro: 1966, 13). Como demonstrativo do calor do debate produzido neste momento especfico, Tinhoro auto proclamava-se reacionariamente em defesa da cultura que ...representa o o estgio de semi-analfabetismo das camadas mais baixas da populao (Tinhoro: 1966, 14) e contra a chamada evoluo no mbito da msica popular e aqui o autor parece dialogar diretamente com os artfices da chamada linha evolutiva16 considerando-a ...o encontro dessa cultura com a semi-erudita, ou mesmo erudita, atualmente ao alcance da

convites para gravaes e atuaes em programas de TV. A reportagem em questo, foi publicada na revista O Cruzeiro, de 08/12/1962. Napolitano:1999. 13 Estaremos examinando aqui especialmente os captulos Introduo ao debate e Problemas. A terceira parte do livro, Estudos, focaliza espe cialmente o Choro, a chamada Msica de barbeiros e o Carnaval Carioca, respectivamente. 14 O pensamento folclorista e suas implicaes no cenrio de atuao de Tom Jobim neste momento ser melhor analisado no captulo II deste trabalho. 15 Para mais anlises sobre a configurao de um tipo especfico de cano produzido ao longo da dcada de 60, e sobre o debate que se configura neste momento, ver especialmente Napolitano: 1998; Treece: 2000. 16 Sobre a tese da linha evolutiva e suas implicaes na formulao de uma narrativa de cunho historiogrfico para a msica popular brasileira, ver especialmente Napolitano:1999.

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classe mdia (Tinhoro:1966, 14). Tinhoro balizava sua posio, em defesa da cultura das camadas mais baixas ponderando que esta cultura ou sua percepo dela conteria em seu mago valores permanentes e histricos, considerados pelo autor como autnticos, enquanto a cultura da classe mdia representaria valores transitrios e alienados (Tinhoro: 1966, 14). Neste sentido, para Tinhoro a pretendi da evoluo no campo da cultura musical popular tal qual queriam seus antagonistas, no se realizava concretamente pois no pressupunha a alterao da estrutura scio econmica, fator determinante em sua anlise. Para Tinhoro, a Bossa Nova refletia um movimento iniciado ainda nos anos 30 com a profissionalizao da msica popular, onde a prpria dinmica capitalista de explorao do trabalho teria paulatinamente expropriado os criadores das autnticas tradies musicais nesse caso as classes baixas de suas manifestaes. A sua anlise conduzida a partir da tipificao do samba como artefato cultural inerente s classes baixas que gradativamente incorporado ao consumo das classes mdias, sendo que, a cada nova etapa de asceno social o elemento original desta manifestao sofreria novas estilizaes, de acordo com a classe social de destino. Assim, Tinhoro organiza um quadro histrico onde conviveriam o samba original e vrios produtos estilizados, condicionados em sua produo ao longo do sculo XX s mudanas da estrutura socio-econmica da cidade do Rio de Janeiro:...os netos dos negros da zona da Sade subiram os morros tocados pela valorizao do centro urbano e continuaram a cultivar o samba batucado logo conhecido por samba de morro; a baixa classe mdia aderiu ao samba sincopado (o samba de gafieira); a camada mais acima descobriu o samba-cano, e, finalmente, a alta classe mdia forou o aboleramento do ritmo do samba-cano, a fim de torn-lo equivalente ao balano dos fox-blues tocados por orquestras de gosto internacional no escurinho das boates (Tinhoro, 1966,21)

No entanto, a apropriao indevida da tradio do samba teria subtrado s criaes de compositores no oriundos daqueles meios sociais seminais qualquer tipo de originalidade, causada pela perda dos referenciais de origem. Assim, Tinhoro avalia que a Bossa Nova no possuiria mais qualquer tipo de ligao com a tradio pelo fato de que os jovens de Copacabana viveriam separados socialmente das camadas m ais pobres e humildes, ...pretos e mestios que, afinal, detinham, por assim dizer, a chave folclrica das

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festas e ritmos populares: as pastorinhas, os ranchos, os blocos (...) e, finalmente o prprio samba (Tinhoro:1966, 46). Por outro lado, haveria uma macia influncia de matrizes estrangeiras, especialmente da msica americana, nestas geraes afastadas do convvio com a tradio, resultado da poltica da Boa Vizinhana, que trazia consigo a ...invaso do mercado brasileiro pela produo comercial das fbricas norte-americanas... (Tinhoro:1966, 50). Como componente fundamental neste processo de aculturao, Tinhoro avalia o trabalho executado pelos semi -eruditos, categoria de msicos advinda de conservatrios e cujo domnio das tcnicas de orquestrao seria fundamental na elaborao de novos arranjos para o samba-cano17. Tais agentes seriam cruciais na medida em que funcionariam como reelaboradores, a servio das fbricas estrangeiras, de um gnero por si s hbrido e malevel a ponto de acomodar novas vestimentas, ao gosto alienado da classe mdia:Ora, como o pblico potencialmente comprador de discos era a classe mdia, foi o gosto alienado que se imps ao gosto geral e, assim, todos os meios de divulgao o disco, o rdio e depois a televiso foram postos a servio da msica norte-americana e, no campo da msica brasileira, da que mais parecesse com essa msica dominante (Tinhoro: 1966, 58)

Esta influncia seria musicalmente revelada na substituio gradativa da variedade e a malcia de ritmo dos instrumentos de percusso para ...o virtuosismo dos instrumentos de sopro, que passariam a comandar as aes, numa polifonia transplantada do jazz (Tinhoro:1966, 51). Assim, desejosos em realizar um similar nacional ao cool jazz a que haviam se acostumado, as novas geraes ou, no caso especfico dos msicos ligados Bossa Nova, os jovens de Copacabana teriam rompido com o ltimo parmetro que ainda restava intacto da herana do samba popular: o ritmo. Para o autor, isto se dava pela incapacidade destes em sentir na pele aquela batida, produzindo uma esquematizao do ritmo original, reduzindo e simplificando a linguagem a acompanhamentos base de violo18 e orquestra.

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Para Tinhoro o samba-cano seria o gnero histricamente mais utilizado nestes processos de infiltrao da msica americana. Avalia tambm que estas influncias j ocorriam desde a dcada de 20, porm no com a fora revelada durante os anos da Poltica da Boa Vizinhana. 18 Walter Garcia discute com acuidade a definio de Tinhoro para as simplificaes rtmicas na execuo violonstica da Bossa Nova, especialmente no captulo IV. Garcia:1999.

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Tom Jobim inserido neste quadro como um dos orquestradores formados por influncia da msica americana, e sua atuao no campo da msica popular se daria ...pela frustrao das ambies no campo da msica erudita (Tinhoro:1966, 38). Entretanto, o autor relata que Jobim teria uma atuao perifrica nos meios musicais da poca, conseguindo projeo justamente a partir da associao por volta de 1959, com o grupo de intrpretes, compositores e instrumentistas liderados por Ronaldo Bscoli, que teriam institucionalizado o termo Bossa Nova, nas pginas da revista Manchete, da qual este ltimo era reprter. Tom Jobim portanto, no configura um captulo especial na argumentao do autor, constando antes como um bem acabado exemplo de um quadro geral de alienao do gosto na msica popular urbana produzida no Brasil, naquele momento. Neste sentido, sua perspectiva analtica acaba por organizar juzos de valor com relao produo do compositor, condicionada uma crtica radical ao gosto alienado, travestido na Bossa Nova:...bem examinado, um fox trot composto por Lamartine Babo, na dcada de 30, mais brasileiro que um samba bossa nova atual de Antonio Carlos Jobim, porque no tempo de Lamartine Babo a admirao pela msica do irmo mais desenvolvido ainda no tinha atingido o refinamento da verdadeira lavagem cerebral, que consistiu em pensar musicalmente em termos jazzsticos, quando, sob o nome de bossa nova, se conseguiu a esquematizao rtmica capaz de universalmente assimilada (Tinhoro: 1966, 63)

Desta forma, para Tinhoro, a Bossa Nova corresponderia no plano cultural, tentativa de modernizao industrial amparada em tecnologias importadas empreendida por Juscelino Kubitschek, representando a contrapartida equivocada e um tanto eufrica das classes mdias ao desenvolvimentismo juscelinista. No plano musical entretanto, ao invs de modernizao, essa msica configuraria a separao definitiva da tradio, que faria com que o movimento bossanovista ficasse circunscrito ao pequeno grupo de jovens que a criara. Em um sentido mais estrito, a Bossa Nova como produto cultural refletiria um desejo de asceno social das classes mdias, por uma msica popular de carter universalizado, por oposio ao elemento tradicional. No entanto, o desejo de parecer moderno, de certa forma alimentado nesta pro duo, estaria assentado sob valores

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fluidos19, identificados com uma noo da modernidade imposta por uma admirao injustificvel pelos centros dominantes, e portanto, ilegtima. Com o passar dos anos, Tinhoro desenvolveu uma obra importante e mesmo, pioneira no estudo da msica popular brasileira, com a incorporao de grande nmero de fontes primrias, tanto documentais como sonoras. Sua anlise contudo, permaneceu tributria de conceitos formulados ainda nos anos 60, onde observava um contnuo afastamento das classes populares detentoras das legtimas tradies musicais representativas da nacionalidade dos meios de produo musical, cada vez mais dominados pela indstria global do entretenimento. Neste sentido, Tom Jobim representaria um dos artfices mximos desta expropriao, ao construir uma obra musical afastada dos referenciais da brasilidade, constituindo -se como compositor, alvo ideal das crticas de Tinhoro, ao longo de toda a sua trajetria.

1.4. Ruy Castro e o Brasil Ideal:

O escritor, jornalista e crtico musical Ruy Castro articulador de um pensamento bastante influente sobre a msica popular brasileira, ainda que organizado em diretrizes um tanto diferentes da crtica Concretista. Publicado em diversas revistas e cadernos culturais de jornais e expresso de maneira mais sistemtica em publicaes de maior flego como Chega de Saudade: a histria e as hstrias da Bossa Nova (1990) e A onda que se ergueu no mar: novos mergulhos na Bossa Nova (2001), seus escritos esto entre as obras mais lidas sobre a msica popular brasileira dos ltimos dez anos. Dada a enorme quantidade de reedies, principalmente do livro Chega de Saudade...,19

Tinhoro considera que a falta de elementos passveis de consolidar uma tradio musical no seio das classes mdias seria uma de suas caractersticas fundamentais como grupo social, alm de motor d a busca por esses valores: As camadas mdias no conseguiro, jamais, um carter prprio, porque a sua caracterstica a exatamente a falta de carter, isto , a impossibilidade de fixar determinado trao por longo tempo, em consequncia da sua extrema mobilidade dentro da faixa situada entre a prestao de trabalho mecnico (salrio mnimo) e a deteno dos meios de produo (grande capital financeiro e de indstria) Tinhoro: 1966, 85. Sobre a busca de uma tradio, ver a anlise de Garcia:1999, espe cialmente, cap. IV.

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constituem-se, em certa medida, uma histria oficial da Bossa Nova, amplamente citada, no obstante seu tom memorialstico. Em linhas gerais, Castro reitera uma avaliao positiva da Bossa Nova como o grande momento da cultura brasileira no sculo XX, trilha sonora de um pas ideal embalado por uma postura modernizante em amplos aspectos da vida social, cultural e econmica. Neste sentido, no esconde certo rancor para com a passagem deste momento para o cenrio cultural que se desenrola ao longo do ps-64. Assim, sugere que o curto perodo de modernizao (1958-1962) representado pelo gran de feriado bossanovista no encontra reais possibilidades de enraizamento e afirmao duradouras em virtude das escolhas estticas das esquerdas dos anos 60 e tambm por decises comerciais das gravadoras, que optam por direcionar seus esforos em um tipo de msica baseado em exotismos (leia -se o campo da MPB). Em sntese, Castro sugere um projeto historiogrfico que situa a Bossa Nova como uma idia fora de lugar, modernidade que no se insere definitivamente no cenrio cultural em virtude das condies adversas do meio. necessrio entretanto, examinar de maneira mais detalhada a argumentao que leva o autor a tais concluses, buscando filtrar seus conceitos de modernizao, a sua viso do cenrio musical imediatamente anterior Bossa Nova e, principalmente, o papel desempenhado por Tom Jobim neste projeto. Traando um paralelo entre o desenvolvimento de uma cultura musical de mercado no Brasil e nos Estados Unidos ao longo do sculo XX o autor estabelece diferenciaes claras para as possibilidades de um compositor em ambos os pases. Neste sentido, observa que nos EUA haveria desde os anos de 1910 o fortalecimento de um mercado que permitia aos artistas a atuao em vrias frentes, todas lucrativas, enquanto que, no Brasil, j nos anos 40 os espaos de insero ainda baseavam-se no precrio trip: rdio, carnaval e teatro de revista. Ressalte-se que, para o autor, a atuao no mercado musical no seria incompatvel com a aura da obra de arte, pois ...nos anos 20 e 30, Gershwin e seus colegas ficaram milionrios sem precisar abastardar a sua arte ou rebaix-la ao gosto musical da patulia. Ao contrrio: com seu rigor e bom gosto, elevaram a expectativa de gosto do pblico mdio. Na verdade eles educaram esse pblico (Castro: 2001,64).

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No caso do Brasil, e especificamente no Rio de Janeiro, quando relata a opo de Jobim pela profissionalizao como msico, em fins dos anos 40, o autor descreve um cenrio incerto e escasso em possibilidades, ...baseado em sambas roubados, cachs aviltantes ou direitos autorais quase inexistentes(Castro:2001,60). Para alm destas dificuldades conjunturais entretanto, Castro organiza ainda uma identificao hierrquica dos tipos de repertrio estimulados pelas rdios, que por sua vez, acabam definindo a sua percepo da atuao dos artistas neste cenrio, baseada na oposio entre uma atitude moderna ou atrasada. Assim, define um reduzido grupo de obras e autores modernos em meio um quadro geral de mediocridades bem sucedidas (Castro:1991). Neste ponto, organiza uma crtica genericamente articulada em torno da assimilao por parte da msica brasileira, de matrizes estrangeiras de origem latina, como os gneros do Bolero e da Rumba, e/ou de origem anglo-americana como o Fox, o Swing e o Jazz. uma atitude moderna corresponderia, para o autor, a influncia de determinados gneros da msica americana, especialmente um tipo de interpretao vocal derivada da escola de Bing Crosby, cultuado no Brasil por intrpretes como Dick Farney, ou ainda a atuao dos grupos vocalese americanos, e finalmente o tipo de Jazz West Coast de Stan Kenton. Por outro lado, uma atitude conservadora, ou atrasada definida pela assimilao de gneros da msica latino americana, especialmente o Bolero, caracterizado por um tipo de interpretao mais intensa e carregada de sentimentalismo. Organizando uma espcie de Histria Social da msica no Rio de Janeiro, Castro procura situar as condies sociais que teriam condicionado a cena musical carioca ao longo das dcadas de 30/50. Desta forma, visualiza trs momentos: a cultura notvaga da msica popular dos anos 30, circunscrita bomia da Zona Norte; o surgimento das boates na Zona Sul que substituiram o esquema de grandes shows dos cassinos extintos por espetculos mais intimistas, baseados em pequenos conjuntos (pocket shows) e, posteriormente e com o advento da Bossa Nova, o surgimento de uma msica ensolarada, no mais restrita esses espaos. mudana geogrfica dos plos de produo dentro da cidade corresponderia tambm uma significativa mudana qualitativa das temticas, pois a msica das boates seria condicionada esteticamente pelos ambientes sombrios onde era produzida.

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importante salientar que o autor procura relativizar o fenmeno das boates como condicionantes de um tipo de msica menor, subproduto artstico, traando um paralelo com o advento de um tipo de cano semelhante nos EUA. No entanto, a comparao acaba por reforar a avaliao negativa da produo brasileira, pois haveria nos EUA uma espcie de esprito valorizado r inexistente no Brasil, na medida em que ...a possibilidade de se prestar mais ateno msica levou valorizao das letras de Cole Porter, Lorenz Hart, Ira Gershwin, com sua rica variedade de temas... (Castro: 2001,70). Do contrrio, ...aqui a m sica de boate (na verdade o samba -cano) tornou-se um gnero em si, com forte influncia do Bolero e um estreito universo temtico, sob medida para aquelas quatro paredes onde o sol jamais penetrou: paixes impossveis, solido, traies, desenganos. Nenhum amor podia ter final feliz (Castro: 2001,70). Numa palavra: um ambiente claustrofbico gerando uma msica lgubre, ainda que sofisticada, para uma audincia desinteressada. Da argumentao do autor sobre a trajetria de Tom Jobim neste perodo podese abstrair uma idia geral que organiza a percepo do papel desempenhado pelo compositor nesta memria: a imagem de artista completo, dotado de profundo conhecimento tcnico e fina percepo de uma brasilidade moderna, que acaba por revelar-se ou impor-se com a Bossa Nova, na medida em que, atravs dela criam-se as condies necessrias para uma verdadeira apreciao de sua msica. Entretanto, a construo dos juzos de valor que envolvem o pensamento do autor, esbarra na atuao do compositor na esfera da cano comercial pr-bossa, constituindo uma situao paradoxal: ao mesmo tempo em que atua com relativo sucesso neste mercado, Jobim ainda no consegue a devida valorizao para a sua verdadeira msica 20. neste sentido que Castro procede a comparao de Jobim com Gershwin. Este encontrava condies adequadas de trabalho, oportunizadas por um mercado devidamente estabelecido, onde no precisava abastardar a sua arte para sobreviver e via seu nome valorizado a cada momento. Jobim por sua vez obrigado a iniciar e desenvolver sua

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As maiores canes de Jobim para o autor seriam: Corcovado, Fotografia, Wave, guas de maro, Lgia, Luza. Dentro deste quadro de preferncias pode -se filtrar dois elementos presentes nas justificativas do autor para a modernidade jobiniana: a viso do mundo e das coisas a partir de um referencial urbano aliada a um tipo de concepo musical expressa especialmente nos arranjos contida, despida de estmulos apoteticos e/ou dinamognicos.

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carreira nos espaos das boates de Copacabana, tocando os repertrios destes ambientes.21 Em sntese: no caso brasileiro um mercado que no consegue absorver propostas ousadas, relegando uma atuao marginal, os atores envolvidos com a criao de uma msica popular mais afinada com os padres estticos de uma modernidade que, neste momento, realiza-se apenas como projeto. No por acaso que Castro observa semelhanas entre Jobim e o cast de compositores/arranjadores atuantes no mercado do rdio nos anos 50, entre eles Radams Gnattalli e Lo Peracchi. Segundo o autor, apesar de grandes artistas, estes compositores ... para pagar o aluguel, continuavam tendo que trabalhar com toda espcie de ritmos e artistas, finos e grossos (Castro: 2001, 51). No caso de Jobim porm, tal experincia de abastardamento descrita de maneira positiva, pois os trabalhos como arranjador e pianista em inmeras gravaes na Continental e na Odeon, funcionariam como uma espcie de aprendizado, permitindo-lhe acompanhar de perto as diferentes linguagens da msica brasileira. Dessa argumentao, depreende-se uma desvalorizao implcita das obras de Jobim compostas e gravadas neste perodo, bem como de sua atuao no cenrio da poca, entendidos como um estgio, na sedimentao de uma obra em progresso:....como arranjador e maestro de gravadoras gravou uma infinidade de discos acompanhando cantores que iam de Emilinha Borba a Dick Farney, na Continental, e de Dalva de Oliveira a Orlando Silva, na Odeon. Tudo isso lhe serviu como um five finger exercise, que lhe permitiria, no futuro, passear pela msica brasileira como se ela fosse uma ala do Jardim Botnico. (Castro: 2001,52) Grifo nosso.

A possibilidade de pensar a atuao de Jobim na esfera da cano de fossa como uma espcie de estgio preparatrio explica, em certo sentido, o que o autor chama de a grande virada, em direo uma arte verdadeira. Tais obras do perodo anterior Bossa Nova seriam obras menores mas que j preparava m um ganho qualitativo, quando ...em meados da dcada, Tom conseguiu dar o salto de que Newton (Mendona) nunca foi21

Este pensamento, incorporado pela crtica musical em maior ou menor grau e em diferentes meios, revela a construo de hierarquias artsticas com relao aos repertrios do perodo, como no caso do jornalista e crtico Mauro Trindade, ao afirmar que: ...para um msico ambicioso, vi rar a noite atendendo vulgar predileo de bbados e peruas por rumbas, boleros e guarnias, os pagodes daquele tempo, era mais do que uma tortura remunerada: era uma castrao (Trindade:2003,27).

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capaz (Castro: 2001,71). Nesse sentido, um salto no s nas relaes de trabalho, com a sua sada da noite para trabalhos diurnos, mas principalmente, em direo ou apontando para uma transformao das temticas, ensolarando a msica popular brasileira e cantando no mais o cubo das trevas mas sim, o sol, o mar e a praia. Esta nova temtica seria trazida por uma gerao emergent e altamente identificada ela, e que tambm iria atuar no rejuvenescimento da msica, buscando posturas mais afirmativas tanto em relao ao amor quanto imagem das mulheres, no que conclui o autor: A bossa Nova foi a onda que se ergueu no mar e banhou a msica popular de um otimismo e luminosidade de que ela estava precisando desesperadamente (Castro: 2001,79). Neste sentido, o autor sugere que, semelhana de Gershwin, Jobim tambm teria formado um novo pblico para a msica brasileira. Um pblico diferenciado daquele com o qual era obrigado a conviver em seu incio de carreira, pois haveria um mercado ainda rarefeito propostas modernizantes como a sua, ...no fosse a sorte de ter ido trabalhar como arranjador em gravadoras (Castro:2001). Assim , operando no interior do mercado das gravadoras, que Jobim consegue criar seus prprios caminhos, com a Sinfonia do Rio de Janeiro (1954) e Orfeu da Conceio (1956), para consagrar-se finalmente com a Bossa Nova. Em sntese, para o autor, o papel representado por Jobim no perodo pr Bossa o de um genial criador, profundo conhecedor de msica, obrigado pela falta de espaos para a sua modernidade a trabalhar dentro das convenes dos gneros comercialmente mais bem sucedidos. Enquanto isso, a sua atuao no perodo encarada como um estgio de aprendizado, espcie de desvio necessrio de uma obra em progresso espera de um dado estruturante em direo um novo patamar. Para o autor, este dado novo fornecido por Joo Gilberto com a sua batida: De posse da batida, Jobim comeou a compor especialmente para ela e, em questo de meses, conseguiu um repertrio capaz de alimentar um caminho de intrpretes (Castro: 2001,114). Nestes termos, um novo patamar que significaria uma evoluo do compositor: Quem no conhecia Antonio Carlos Jobim passou a conhec-lo (...) E quem j conhecia ficou impressionado: o homem se tornara uma usina de belezas (Castro: 1991,217) Por outro lado, haveria a procura por uma msica jovem dentro das gravadoras e, nesse sentido, a Bossa Nova teria-se afirmado contra a msica do passado

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representada por Joo Pernambuco, Fernando Lobo, Haroldo Barbosa, Wilson Batista, Slvio Caldas, Herivelto Martins, Antnio Maria. Nessa estratgia, os principais artfices do movimen to teriam dirigido conscientemente seus maiores ataques contra o Bolero, no que tiveram apoio dos puristas, de forma a neutralizar os ataques que estes lhes desfechavam (Castro:1991). Acima de tudo, o autor percebe uma inteno, de que ...o Brasil ta mbm queria modernizar-se, o que inclua abrir-se para experincias e descobertas de fora, inclusive em msica (Castro: 2001,113). Nestes termos, que o autor proclama a Bossa Nova como resultante desse desejo, levado a cabo por jovens dotados de univer salidade e sofisticao musical que conseguem criar a fusion definitiva: sobre a sntese rtmica do samba criada pelo genial Joo Gilberto, acomodavam -se harmonias mais complexas que tanto podiam descender da msica francesa, como no caso de Jobim, como do jazz West Coast cultuado pelos outros. Na perspectiva do autor, a partir da emancipao da Bossa Nova como movimento articulado em torno de ideais modernizantes para a msica popular que a produo de Jobim passa a merecer maior ateno, como modelo de composio moderna. Como critrios de valorizao na sua concepo de modernidade musical pode-se observar uma noo de sofisticao urbana, racional e organizada em prol de uma atitude universalista, em contrapartida um vis ingenuamente brejeiro, interiorano e emotivo, identificado negativamente tanto nos repertrios, como na interpretao e mesmo, em determinados instrumentos devidamente banidos nos arranjos bossanovistas22. Assim que Tom Jobim torna-se o maior compositor brasileiro (Castro:2001), em 1958, por ocasio da gravao do disco Cano do amor demais, com Elizete Cardoso. Importa observar ainda que, para o autor, mesmo esta consagrao no teria rendido a Jobim uma assimilao integral por parte do mercado musical nacional. Isto s aconteceria quando de sua ida aos EUA, para o show do Carnegie Hall (1962) que lhe teriam rendido os contatos para a gravao de seu primeiro disco, lanado em 1963.

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O caso do acordeon ilustra esta perspectiva excludente. Utilizado em muitos arranjos de Jobim na fase anterior a 1958, o instrumento ser banido das instrumentaes de praticamente todas as suas obras posteriores.

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Em outros termos, pode-se pensar na modernidade musical sintetizada e representada por Jobim na argumentao do autor como uma idia fora de lugar 23, que s se realiza com o artista frente do seu tempo operando de dentro do sistema vigente, e com o aval do mercado externo. Neste sentido, a produo de Jobim que se enquadra nos cnones vigentes no perodo pr-bossa acaba sutilmente desconsiderada, dela restando apenas algumas obras, ainda que com a ressalva de j apontarem aspectos a serem emancipados posteriormente. Nesta perspectiva, as suas composies de maior destaque, antes da Bossa Nova estariam entre as canes do disco Sinfonia do Rio de Janeiro (1954), que para o autor, no seria um disco fcil. A gravadora Continental contudo, teria investido no disco em virtude de que o seu cast de dolos de auditrio, como Emilinha Borba e Jorge Goulart, lhe permitia tambm apostar em artistas classudos como Dick Farney, Lcio Alves, Nora Ney, Dris Monteiro, Os Cariocas, e o prprio Jobim. Em sua argumentao contudo, transparece uma viso etapista do processo de emancipao de um novo estilo, baseado no choque entre o arcaico e o moderno, pensando a Bossa Nova como ruptura redentora dos padres vigentes na cano, idealizada e consumada por jovens compositores insatisfeitos com os rumos da msica popular do perodo imediatamente anterior a 195824. Neste ponto, no surpreende observar como quase todos os trabalhos realizados pelo compositor antes de 1958 sequer chegam a constar no opus inventariado por Castro, uma vez que esta produo condicionada qualitativamente ao surgimento de J obim como um compositor eminentemente bossanovista. Na outra ponta, a falta de permeabilidade nos critrios de valorizao da obra musical de Tom Jobim, condicionada ideais de sofisticao urbana desarticulam a crtica do autor, quando de seus comentrios sobre a produo do compositor durante a dcada de 1970. Desta forma, demonstra certa incredulidade com o fato de ...o compositor mais urbano, moderno e sofisticado que este pas produziu (Castro:2001) produzir obras de teor interiorano, com referncias outro tipo de natureza, distante do mar. Tentando decifrar os motivos dessa virada, acaba por denunciar seu conceito de sofisticao: A idia de sofisticao costuma ser mais associada a coberturas duplex que a casinhas na roa, mais luz do neon que dos23

O conceito, desenvolvido por Schwartz ao interpretar a chegada da ideologia liberal ao Brasil do sculo XIX, parece-nos adequado para exemplificar as proposies de Castro sobre a sua viso da modernidade musical brasileira. Ver Schwartz:2001. 24 Foi tudo muito rpido: em 1958 o panorama era um, em 1959 era outro. Castro: 2001:114.

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vaga-lumes (Castro:2001). O interesse de Jobim pelas grotas materializado em discos como Matita Per (1973) e Urubu (1976) por exemplo o que, em princpio seria a prpria anttese da Bossa Nova explicado pelo autor com base na biografia do compositor25. Nesta interpretao, Jobim carregaria no sangue a informao gentica do Brasil, refletida nas idas e vindas de sua formao familiar, repleta de agentes dos mais distantes pontos do pas, todos a colaborar e fundir uma brasilidade temperada do sabor tropical de uma Ipanema ainda buclica dos anos 30, quando da infncia do compositor.Este inventrio de sensibilidades, de famlias brasileiras como no se fazem mais, de um Brasil nascido de uma paleta de pintor ou de uma caixinha de msica (...) ficou gravado em sua memria e, um dia, ressurgiria em msica e letra. (Castro: 2001,33)

1.5. Srgio Cabral e os rumos da msica brasileira.

O jornalista e escritor Srgio Cabral passou a escrever e atuar no cenrio musical brasileiro a partir de 1960 em diversas frentes, destacando-se como autor das biografias de Pixinguinha, Almirante, Ary Barroso, Elizete Cardoso e Tom Jobim26. Remanescente de um tipo de pensamento oriundo do folclorismo dos anos 5027, Cabral procura embasar suas consideraes a partir da identificao de uma brasilidade musical; que tem como cones os artistas do rdio dos anos 30. A idia da existncia de uma tradio musical brasileira, espelhada na msica produzida no Rio de Janeiro e

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Ver Jobim, Helena. Antonio Carlos Jobim, um homem iluminado. Rio de Janeiro, Nova Fronteira:1996, 443 p. Esta biografia, escrita pela irm de Jobim procura realar o lado humano do compositor, reforado pelo estreito contato familiar deste com a autora. Desta forma a conduo do livro procura escapar de concluses acerca de questes estticas e/ou histricas, para concentrar-se na descrio da personalidade de Jobim em seu convvio familiar. Pode-se abstrair das inmeras pequenas crnicas relatadas no livro, uma preocupao constante de Jobim com as crticas, que em momentos revela certa insegurana do compositor com relao ao seu trabalho. Por outro lado, a autora reitera lugares-comuns da historiografia bossanovista: Na bossa nova o cantor e a orquestra deviam se integrar. (p. 98); Esse movimento encorajou os jovens a superar o precoceito de que acabariam a vida bbados, dormindo nas sarjetas, se resolvessem ser msicos (p. 98). 26 Publicados por Funarte, RJ:1978; Francisco Alves, RJ:1990; Lumiar, RJ:1993; Lumiar, RJ:1994; Lumiar, RJ: 1997, respectivamente. 27 Sobre o movimento folclorista ver: Wasserman:2002; Paiano: 1996; Napolitano et all.:2001.

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constantemente ameaada de descaracterizao parecem permear, ainda que de forma perifrica, a avaliao do autor sobre perodo em questo. Cabe analisar aqui, a abordagem do autor para o os rumos da msica popular brasileira no ps-Guerra, onde projeta trs correntes que, em seu entender, acabam por definir o cenrio cultural dos anos 50, momento onde se gestar a modernidade, organizando um quadro histrico que se inicia com a Poltica da Boa Vizinhana e se encerra j na dcada de 60, com a agonia do radio broadcast. Para o autor o samba e, mais tarde o baio formariam um vetor fundamental no cenrio musical dos anos 50, representando uma brasilidade ancestral ainda ligada criatividade das populaes pobres do pas. No caso, o interior rural representado pelo baio, ou as camadas pobres das periferias do Rio de Janeiro, locus do samba carnavalesco. Neste sentido, tais gneros representariam uma fora original da afirmao cultural brasileira, tendo entretanto que disputar espaos no mercado, a partir de sua insero neste circuito. Neste ponto especfico, as afirmaes do autor parecem encontrar algum tipo de convergncia com Jos Ramos Tinhoro, um dos crticos mais contundentes da Bossa Nova, e fomentador de inmeras polmicas com as vanguardas tropicalista e concretista nos anos 60. No entanto, e ao contrrio de Tinhoro, Srgio Cabral avalia que o carnaval carioca e o mercado de msicas carnavalescas permaneceria, at o comeo da dcada de 50 contribuindo com obras fundamentais para o gnero, identificado com a folia e cantado pelos folies, configurando-se um reduto da brasilidade festiva, contrastando com os outros gneros em voga no momento. No caso do baio contudo, o autor observa alteraes28 em suas configuraes originais, causadas ainda que de maneira inconsciente pela influncia do samba e da msica urbana, quando de sua popularizao no centro-sul do pas. Em outros termos, uma interferncia dos meios de divulgao e comercializao sobre uma fora autntica, originando uma terceira via, no necessariamente de baixa qualidade esttica, mas adaptada s necessidades do mercado musical (a parece residir a principal diferena entre Cabral e Tinhoro).

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Na realidade, as referidas alteraes so fruto de observaes do folclorista Luis da Cmara Cascudo, citadas e endossadas pelo autor. Cf. Cabral:1996.

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Entretanto, e apesar de sua identificao com a cultura popular, tais gneros seriam abandonados pela indstria do disco, nos anos 50, em detrimento de novas matrizes, oriundas da importao cultural. Nestes termos, a crescente influncia da cultura americana no Brasil faria parte de um projeto deliberado do governo norte-americano, que teria adotado a exportao de sua cultura como forma de difuso de seus produtos comerciais. Sendo assim, e sem a devida resistncia, ...a msica americana passou a ocupar grande parte das programaes das nossas emissoras de rdio e que aqui chegava em quantidades imensas tanto em disco quanto atravs do cinema (Cabral: 1996,92). Nestes termos, influncia adquire o sentido de aculturao, na medida em que, segundo o autor, gneros como o foxtrote passaram a fazer parte do repertrio dos msicos brasileiros, bem como o fato de certos intrpretes, passarem a cantar em ingls, ou mesmo no caso de Dick Farney mudarem o prprio nome como meio de obter um tipo de autenticidade que, nesta perspectiva, significaria cpia fiel ao original. Srgio Cabral cita como exemplo o samba-cano Copacabana (1946) composto a pedido do produtor americano Wallace Downey, e que aproveitava trechos da melodia de um foxtrote, tornando-a ...uma msica bem diferente do samba -cano tradicional e com uma estrutura meldica que lembrava bastante as baladas de sucesso cantadas por Bing Crosby e Frank Sinatra (Cabral: 1996,93). Por essa razo, Copacabana somente seria gravada por Dick Farney, um especialista em msicas norte americanas (Cabral: 1996,93), convertendo-se em um grande sucesso. Segundo o autor, o tipo de interpretao vocal popularizado por Farney que por sua vez descenderia de Bing Crosby seria copiado por outros cantores, fazendo escola. Alm disso, Copacabana teria tambm gerado um novo samba -cano (Cabral:1996), gnero hbrido que designaria uma genrica mistura entre o samba e a balada americana, tambm apelidado sambalada ou sambablue. Cabral avalia ainda que a invaso dos ritmos sul americanos como a rumba e o mambo, e em especial, o bolero cubano, inclusive em suas verses mexicanizadas, iniciou ainda em meados de dcada de 40, quando estes gneros comearam a dominar grande parte da programao do rdio. Estrelas da msica cubana passaram a ser reconhecidas pela voz tambm no Brasil, gerando, como no caso da msica americana, o surgimento de intrpretes especializados neste tipo de msica e a prpria modificao dos eixos de criao

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do samba-cano. No primeiro caso, cita os casos de Rui Rei e El Cubanito, que ...alm de cantar em espanhol (...) tambm se vestiam como os cantores estrangeiros e, muitas vezes, adotavam nomes que disfaravam a sua origem brasileira (Cabral: 1996,96). Alm disso o autor sugere que, ao sistematizar determinados procedimentos, tais intrpretes estariam negando um ideal de brasilidade, cooptados pelo mercado radiofnico. Assim, (e esta talvez seja a observao mais contundente) pondera que em consequncia do sucesso de tais ritmos estrangeiros, o prprio samba-cano sofreria um processo de hibridizao, ou bolerizao, que importava em mudanas na estrutura rtmica dos acompanhamentos ...de acordo com o gosto dos tocadores de bateria, as msicas recebiam um apoio rtmico de bolero ou de samba-cano e tambm, um acrscimo na carga dramtica das letras que ...narravam os mais pungentes desenganos de amor(C abral: 1996,97). Srgio Cabral relata ainda que muitos compositores especializaram-se neste repertrio, destacando Lupicnio Rodrigues, e que, mesmo compositores consagrados teriam aderido ao gnero, como Ary Barroso, Herivelto Martins e Joo de Barro. Aderir significando, neste caso, aceitar os padres da cano de consumo consagrada, explorando as possibilidades comerciais do gnero no mercado do rdio e do disco. Na perspectiva de Srgio Cabral, o processo gerador uma msica moderna no Brasil iniciou-se ainda no comeo dos anos 50 e desencadeou-se em funo da atualizao dos mecanismos de suporte e divulgao da cultura, notadamente com o surgimento dos discos 33 , Long Play e da TV, baseados na importao de tecnologias principalmente dos EUA. O autor sugere que, na esteira das modificaes tecnolgicas comeava a ganhar fora, por parte de compositores e instrumentistas, a idia de modernizao da msica popular. Atuando margem do mercado, que ....dava indiscutvel preferncia ao sambolero e ao sambalada (Cabral: 1996,100), tais compositores teriam perseguido conscientemente um ideal de modernizao. Assim, teria se formado nos anos 50 um ncleo de instrumentistas e msicos engajados com este processo, porm ainda sem espao comercial nas rdios e gravadoras, sendo que a noite descrita como foco desta modernidade. No entanto, a preocupao com a modernizao da cano manifestada por

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estes agentes j constituiria uma velha tendncia da msica popular brasileira, mas que no incio dos anos 50 ainda concentrava-se em espaos alternativos, como as boates. Neste sentido, desenvolveu-se no ambiente da noite de Copacabana a gestao da modernidade que, para o autor, lastreava-se na incorporao de uma tendncia sofisticao presente em uma lin hagem de compositores e composies paradigmticas: Ari Barroso em Inquietao, Custdio Mesquita em Noturno em tempo de samba, bem como as obras dos violonistas Valzinho e Garoto, alm de Johnny Alf, Newton Mendona e Joo Donato. Nesta perspectiva, a modernizao estaria presente na linguagem interna de determinadas obras, partindo do processo composicional e no em sua interpretao.29 Na argumentao de Cabral, categorias como modernizao e sofisticao adquirem conotaes idnticas, na medida em que identificam procedimentos vagos30 - sem contudo explicit-los musicalmente - como matrizes de um processo coletivo, porm consciente e tendo como articulador e lder a figura de Antonio Carlos Jobim. Reunidos em torno de Jobim, tais compositores e msicos31 teriam ...profundo desprezo por tudo o que representasse a msica brasileira tradicional (Cabral: 1997,121) e pelos personagens que detinham alguma forma de poder no mundo da msica de ento. Numa palavra, Cabral sugere a existncia de duas correntes de atuao dentro nesse cenrio, disputando espaos a partir de direcionamentos estticos opostos: um grupo representando a msica brasileira tradicional e o grupo dos modernos. Nesse sentido, importa observar como a posio de Jobim, atuando como funcionrio de uma gravadora e trabalhando tanto com nomes inventariados na modernidade como com outros, aparentemente descomprometidos com tal processo, torna problemtico o quadro descrito. O autor relata que, desde 1953 Jobim j possua msicas gravadas, ganhando destaque como compositor e alcanando o sucesso em 1954 com Tereza da praia, alm de premiaes como arranjador e o lanamento de um LP com seu nome. Em 1955, Jobim 29

Para o autor, Joo Gilberto seria o intrprete ideal da modernidade inserida nas obras de Jobim, embora existissem discordncias entre ambos. Neste sentido, considera as proposies de Joo Gilberto um estilo de interpretao, que consagrariam a grande renovao. Em sntese: a modernidade est nas obras; a interpretao de Joo Gilberto a mediadora para com o pblico. Cabral:1997. 30 Tal identificao se refere utilizao de dissonncias, solues harm nicas, recursos caractersticos da chamada msica erudita ou ainda recursos da msica norte americana. Cabral:1996, Cabral:1997) 31 So citados pelo autor como personagens atuantes neste grupo: Dick Farney, Dris Monteiro, Os Cariocas, Tito Madi, Lcio Alves, Bill Farr e Dolores Duran. Cabral:1997.

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premiado pela crtica como arranjador e compositor. Da o convite para o trabalho como diretor artstico na Odeon, com um contrato que previa ganhos sobre as vendas de discos nos quais atuasse como arranjador e/ou regente da orquestra, e exigia exclusividade do contratado. Aps a apresentao de Orfeu da Conceio, Jobim ...despont ava como uma espcie de mito para os compositores jovens comprometidos com a modernizao da msica popular brasileira e, comercialmente, o compositor tambm estava numa posio de destaque (Cabral:1997). Nestes termos, possvel interpretar a situao de Jobim neste momento preciso como a de um compositor com certa relevncia no mercado musical do Rio de Janeiro, ao ponto de ser objeto de disputa entre as gravadoras ali estabelecidas. Ou ainda, a de um msico com poder de deciso e espao de atuao neste mercado. Desta forma podese especular que seria problemtico supor que a conquista desta condio se desse por um artista transgressor de conceitos, como defende Cabral, ao afirmar que ... claro que Tom Jobim e Newton Mendona j faziam msicas estranhas ao padro estabelecido... (Cabral:1997,121). Neste caso, a atitude de Jobim junto aos jovens compositores comprometidos com a modernizao funciona como um elemento de tenso na sua atuao como funcionrio da Odeon, e vice-versa Por outro lado, o autor tende a sugerir que em um dado momento, aps a conquista de um importante espao no mercado de gravaes, Jobim inicia uma jornada mais consistente na promoo de seus ideais modernizantes que, nestes termos, incluiriam o lanamento de intrpretes como Joo Gilberto. Nesse sentido, o prestgio de Jobim e seu gosto por novidades teriam sido o motivo do reencontro entre ambos em fins de 1957, e que teria rendido a Joo32 a gravao das faixas Chega de Saudade e Outra vez no disco de Elizete Cardoso e de seu prprio disco solo, para o autor, o disco inaugural da Bossa Nova. Bossa nova que, nestes termos, representa a prpria modernidade, pois ....qualquer pessoa de ouvido mais sensvel msica percebia que a msica popular brasileira caminhava por outros rumos (Cabral: 1996,104). Desta forma, conclui que Jobim teria sido o responsvel

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O convite de Jobim demonstra como, esta altura ele j possua poder de deciso na gravadora, fato que comprovado pela sua influncia no lanamento do primeiro compacto de Joo Gilberto.

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por traar ...o melhor rumo para a msica brasileira a partir da dcada de 1950. Pr l de um magnfico criador, foi um inovador(Cabral: 1997,07). Nesta perspectiva, Jobim desempenharia o papel de reorganizador do cenrio musical a partir da segunda metade da dcada de 1950. Em certo sentido, uma avaliao positiva da emergncia do compositor como lder de uma nova gerao comprometida com a incorporao de uma tendncia sofisticante da linguagem musical brasileira. Em sntese, medida em que gneros de raiz como o samba, o baio ou o samba cano tradicional, vo perdendo legitimidade e/ou espao comercial para gneros estrangeiros como o bolero, e mesmo autores ligados quela tradio do samba dos anos 30 so de certa forma, cooptados pelo mercado, cabe, ao vetor da modernizao liderado por Jobim recolocar um tipo de tradio33 em posio de destaque no cenrio cultural. Com esta avaliao, pode-se especular que o autor se desprende do tipo de diagnstico engendrado por outras correntes aqui analisadas, pois no compartilha ao menos in totum das teses que corroboram a articulao do cnone moderno por oposio e em superao dos arcasmos da cano dos anos 50, embora mantenha e reforce a idia de gnio criador, acima da cena musical de seu tempo.

1.6. A modernizao como imperativo

A anlise das principais linhas argumentativas dos autores citados com relao trajetria de Antonio Carlos Jobim no representa um circuito fechado, ainda que aqui tenha sido propositalmente circunscrita ao mbito da cano popular. Entretanto, a discusso sobre a modernizao da cano faz parte de um movimento maior, que encontra ressonncia em outros campos da atividade intelectual brasileira, admitindo certa capilaridade ao longo dos anos 50, e sobretudo nos anos 60 do sculo XX. Talvez esta fora da msica popular em comentar as particularidades da modernizao brasileira ocorra

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Neste caso, a tradio de uma msica popular sofisticada, prxima erudita. Poderia se especular que a identificao de Jobim com esta tradio se d na perspectiva do autor tambm em razo dos contatos e amizades que o compositor fazia questo de salientar: Gnatalli, Ary, Caymmi, etc

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justamente em funo de sua forte imbricao scio-cultural34. Desta forma, a discusso levantada nos ttulos acima refere-se ao modo como determinados agentes histricos, fundadores de um discurso sobre o arcaico e o moderno na msica popular, observaram os processos de afirmao de novas linguagens musicais efetivadas ao longo daquela dcada, em articulao estrita com novos modelos de avaliao e crtica cultural. Ao mesmo tempo, pode-se especular que os diferentes caminhos percorridos pela anlise dos autores citados, no s em relao produo jobiniana, mas tambm da histria musical deste perodo, representam as particularidades de suas prprias percepes do processo de modernizao da sociedade brasileira como um todo. Neste sentido, suas opinies e anlises refletem e recuperam em algum nvel o embate entre diferentes concepes e expectativas em jogo naquele perodo, no raro conjugando vrias delas, ou ainda, subleituras das mesmas. Neste sentido, estabelecer os vnculos desta discusso com outros campos do pensamento e atividades pode balizar as especificidades deste imaginrio da modernidade, no qual tanto as discusses de poca como os discursos elaborados a posteriori sobre a modernizao da cano formam um instigante captulo. O antroplogo Nestor Garcia Canclini observa que a modernizao latino americana opera por ondas sucessivas: a partir do sculo XIX, pela oligarquia progressista, pela alfabetizao e pelos intelectuais europeizados; entre os anos 20-30 pela expanso do capitalismo e asceno dos setores mdios e liberais, os migrantes, a imprensa e o rdio; nos anos 40 pela industrializao, pela urbanizao, pela indstria cultural e o maior acesso a educao superior (Canclini:2000). A partir dos anos 30, e principalmente entre as dcadas de 50-70 Canclini relaciona fortes mudanas estruturais, que redimensionam as relaes entre modernismo cultural e modernizao social: a- desenvolvimento econmico mais slido e diversificado, com base industrial e emprego de novas tecnologias mais avanadas e emprego assalariado; b- consolidao e expanso urbana;34

Marcos Napolitano observa que No caso brasileiro, como a msica popular est diretamente imbricada em nosso processo de modernizao, ela acaba concentrando expectativas de objetivao histrica, de superao de um determinado passado, cujo sentido fruto dos projetos culturais e ideolgicos em jogo. O projeto que

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c- ampliao dos mercados de bens culturais, pela urbanizao crescente e pela maior escolaridade d- introduo de novas tecnologias comunicacionais (TV) operacionalizando a massificao e internacionalizao das relaes culturais, alm de apoiar a venda de novos produtos e bens de consumo modernos (eletrodomsticos, carros, etc) agora fabricados no Brasil. e- Avano de movimentos polticos de carter radical que confiam na modernizao como transformao das relaes sociais e justa distribuio de bens bsicos. Ocorre ento o que Canclini denomina como secularizao da cultura cotidiana e poltica. Essa secularizao, aliada ...s empresas industriais e aos novos movimentos sociais converteram em ncleo do senso comum o culto verso estrutural-funcionalista da oposio entre tradies e modernidade (Canclini:2000, 86), virada impulsionada pela poltica desenvolvimentista que dela se teria valido para criar nas novas geraes, o consenso necessrio para seu projeto modernizador, pois ...frent e s sociedades rurais regidas por economias de subsistncia e valores arcaicos, pregavam os benefcios das relaes urbanas, competitivas, em que prosperava a livre escolha individual (Canclini:2000,86). Carlos Guilherme Motta, tambm avalia que os anos 50 foram uma poca de montagem e/ou reforo de ...tendn