todorov em face ao extremo

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T()D()R\)V/~, Gn-n bo..&- ~. 4M?~;?~)1q1C;. ?r,13f~ 1<1S 7 PESSOAS COMUNS Explicações do mal A situação extrema dos campos totalitários habitualmente está associada, em nossos espíritos, não com as práticas da virtude, mas com a irrupção do mal, em um grau jamais encon- trado antes. Não quis me deter nessa imagem convencional; mas me sinto obrigado a reconhecer que o mal é o personagem princi- pal da literatura relativa aos campos de concentração. Sua interpretação me atrai menos do que a do bem; mas não me sinto no direito de evitá-Ia - ainda mais porque esse mal não só é extremo, como também, ao que parece, particularmente recalci- trante à explicação. Mais exatamente, as explicações tradicionais que facilmente vêm ao espírito, quando nos confrontamos com as manifestações do mal, não nos são, aqui, de grande valia. De início, não se consegue absolutamente compreender esse mal interpretando-o nos termos da anormalidade, salvo se a definirmos tautologícamente, por seu próprio comportamento: nada mais permite, na personalidade ou nas ações dos autores do 1:17

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T()D()R\)V/~, Gn-n bo..&-~. 4M?~;?~)1q1C;.?r,13f~1<1S

7PESSOAS COMUNS

Explicações do mal

A situação extrema dos campos totalitários habitualmenteestá associada, em nossos espíritos, não com as práticas davirtude, mas com a irrupção do mal, em um grau jamais encon-trado antes. Não quis me deter nessa imagem convencional; masme sinto obrigado a reconhecer que o mal é o personagem princi-pal da literatura relativa aos campos de concentração. Suainterpretação me atrai menos do que a do bem; mas não me sintono direito de evitá-Ia - ainda mais porque esse mal não só éextremo, como também, ao que parece, particularmente recalci-trante à explicação. Mais exatamente, as explicações tradicionaisque facilmente vêm ao espírito, quando nos confrontamos com asmanifestações do mal, não nos são, aqui, de grande valia.

De início, não se consegue absolutamente compreenderesse mal interpretando-o nos termos da anormalidade, salvo se adefinirmos tautologícamente, por seu próprio comportamento:nada mais permite, na personalidade ou nas ações dos autores do

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mal. classíftcá-lcs como seres patológicos ou. dizendo de outramaneira. como monstros; e isso. seja qual for a definição utilizadade normal e patológico. Sem dúvida. é essa a razão pela qual sãoalgo decepcíonantes os estudos psícanalítícos ou psiquiátricos daconduta nos campos. mesmo quando seus autores têm dela umconhecimento de primeira mão: inevitavelmente. tendem a apre-sentar seja os prisioneiros. seja os guardas (ou ambos) em termospatológtcos: ora. é claro que uma tal descrição não é adequada. Ameu ver. não se trata. no caso. de um julgamento apriori: são ospróprios sobrevivente que quase unanimemente o afirmam (aexplicação do mal dos campos de concentração pela monstruosi-dade dos guardas só é encontrada naqueles que ignoram não sóos campos. mas também os relatos sobre os campos).

A observação comum a quase todos os sobreviventes podeser resumida assim: uma pequena minoria dos guardas. da ordemde 5 ou 10%. podia ser qualificada como sádica (e. desse ponto devista. anormal); tal minoria. aliás. não era particularmente apre-ciada pela direção. Benedikt Kautsky. sobrevivente de Auschwítz,escreve: "Nada seria mais falso do que ver os SS como uma hordade sádicos torturando e maltratando milhares de seres humanospor instinto. paixão e sede de prazer. Os que assim agiam eramuma pequena minoria" (Langbeín 1975. p. 274). Himmler teria atémesmo dado instruções no sentido de afastar todos os que pare-ciam encontrar prazer em fazer mal a outrem (Fénelon 1976. p.268).0 mesmo acontecia em Buchenwald: "Só uma pequenaminoria era pervertida. movida pela necessidade de torturar e dematar" (Bettelheírn 1972. p. 291). Ou ainda. na divisão de expe-riências médicas. em Ravensbrück: a crer em Ttllíon, o pessoalapresentava "uma média pouco entusíasmante, mas não mons-truosa. para um hospital de qualquer parte do mundo" (Tíllton1972. p. 101). Os campos russos dão a mesma impressão: "Entremeus carcereiros há poucos sádicos convictos: a maioria é deempregados algo limitados. algo astucíosos" (Ratouchinskaia1989. p. 175). O mesmo se dá com os que enviam Guinzbourgpara Kolyma: mais do que personagens diabólicas. são funcioná-rios medíocres. que "se limitam a cumprir sua tarefa e ganhar avida" (Gulnzbourg 1980. I. p. 164).

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Detenhamo-nos um instante nesses 5 ou 10% de exceções:Quem são eles? Em geral. seres marcados por um defeito físico.ou por pesados handicaps psíquicos. ou por um destino poucoviável. Tillion observa a respeito dos SS de Ravensbrück: "Haviaentre eles uma proporção muito expressiva de uns coitados que.desse ponto de Vista. poderiam ter vinganças pessoais contra aespécie feminina em geral" (1972. p. 87). Os piores guardas de,Auschwítz são os Volksdeutscher (e não os Reichsdeutscher) •.alemães nascidos fora da Alemanha. que ainda têm de provar sua,germanídade. Pesquisou-se com bastante atenção o destino pes-soal dos chefes nazistas. na esperança. sem dúvida. de assimfinalmente descobrir as tranqüilizadoras causas do mal que cau-saram: Heydrích talvez fosse um pouco judeu. Hitler também.tinham muito a compensar: Goebbels mancava. Himrnler e Hitlertinham uma Vidasexual bizarra. Mas. além de tais característicasnada terem de propriamente patológico nem de excepcional, di-zem respeito apenas a alguns indivíduos. enquanto o mal que setrata de explicar afetou milhões de pessoas. É como Leví diz: "Osmonstros existem, mas são muito pouco numerosos para seremperigosos; os que são mais perigosos são os homens comuns" (Leví1987d, p. 262).

Assim como não é possível recorrer à monstruosidade.tampouco se explicaria o mal invocando um retorno qualquer àbestialidade ou a instintos primitivos. São conhecidas essas ex-pressões populares: há uma fera (um tigre) no interior de cadahomem, normalmente adormecida, mas pronta a dar o bote assimque as circunstâncias se apresentarem; ou ainda: há um serprimitivo, normalmente contido por um fino verniz de civilização.que se manifesta na primeira ocasião. confiando a nós a satisfaçãode seus instintos. Diz-se também, como vimos, que nessas cir-cunstâncias se retorna ao "estado de natureza" hobbesíano, àguerra de todos contra todos, uma vez que a ordem social desmo-ronou. Mas basta observar a situação real para perceber que taisexplicações estão fora de prumo. Nem a tortura nem o extermínio. \evidentemente, têm o menor equivalente entre as feras. Além:'disso. não há. nessa situação, nenhum rompimento do contratosocial: matando e torturando, os guardas conformam-se às leis de

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seu país e às ordens de seus superiores: como bem observouDwíght MacDonald, depois da guerra, a lição dos crimes nazistasestá em que os que aplicam a lei são mais perigosos do que os quea infringem. Se pelo menos fosse permitido aos guardas seguirseus instintos! Mas não, eles seguiam o regulamento.

Finalmente, a explicação pelo fanatismo ideológico tambémse mostra insuficiente. Entre os guardas, existem os fanáticoscomunistas ou nazistas, mas sua proporção não é mais elevadado que a dos sádicos. Predomina, ao contrário, um tipo completa-mente diferente: conformista, pronto a servir qualquer poder;interessado mais em seu bem-estar pessoal do que na vitória dadoutrina. De nada adianta recorrer à hierarquia do poder: nuncaencontraremos nada além de "pragmáticos", por assim dizer, ecínicos. Passado o período da tomada do poder, a ideologia é umálibi, não uma motivação (o que não quer dizer que seja inútil). Osque freqüentavam Mengele diziam: é um cínico, não um ideólogo.Mas Speer também diz de Hitler: era um pragmático, não umfanático. O mesmo poderia ser dito de Beria. "O novo Estado",observa Grossman, "não tinha o que fazer com santos apóstolos,fundadores frenéticos e possuídos, discípulos de fé. [...]Precisava.apenas de funcionários" (Grossman 1984, p. 198). Freqüente-mente, observou-se que o momento mais intenso do fanatismo

. antt-semíta na Alemanha, a Kristallnacht de 1938, viu a morte deaproximadamente 100 pessoas. Se o assassinato dos judeustivesse seguido o mesmo ritmo, os nazistas teriam levado 140

, anos para chegar ao número de vítimas que atingiram em apenas'<cínco anos.

Crimes totalitários

Os crimes cometidos sob o totalitarismo, os extremos doscampos, não podem ser esclarecidos por nenhuma das explicaçõestradícíonats: exigem a introdução de conceitos novos, pois sãoIIOVOS em seu próprio prinCÍl?io.Foi o que Hannah Arendt tentou

1 tl ()

fazer, utilizando, a propósito de Eíchmann, a expressão "banali-dade do mal". A julgar pelos inúmeros mal-entendidos queprovocou, a expressão não foi muito feliz; mas a idéia de Arendt éimportante.

Confrontada com a pessoa de Adolf Eíchmann, durante seuprocesso em Jerusalém, Arendt rende-se às evidências: apesardos esforços da acusação para torná-lo diabólico, ele aparececomo um ser profundamente medíocre, ordinário, comum, aopasso que o mal pelo qual é responsável é um dos maiores dahistória da humanidade. "O problema com Eíchrnann está exata-mente em que havia muitos semelhantes a ele, e que não eramnem perversos nem sádicos, que eram, e ainda são, terrivelmentenormais" (Arendt 1966, p. 303). Nesse sentido - e apenas nessesentido - o mal que Eíchmann ilustra é "banal", e não "radical",ou seja, inumano (Arendt distingue entre "radical" e "extremo").Essa banalidade de forma alguma deve levar a uma banalização:é exatamente porque é tão fácil e não exige qualidades humanasexcepcionais que esse mal é particularmente perigoso: por poucoque o vento sopre do lado "certo", propaga-se com a velocidade dofogo. É esse aspecto paradoxal do conceito - um mal extremo,mas não radical - que, sem dúvida, é responsável pelos mal-en-tendidos que o cercam; mas é preciso dizer que o fato é ele próprioparadoxal, ao mesmo tempo comum e excepcional.

A "banalidade" ainda não é, na verdade, uma explicação; é,antes, um meio de afastar as fórmulas habituais e de indicar adireção em que é preciso investigar. Um dos condenados deNuremberg, Seyss- Inquart, antigo governador da Áustria, depoisda Holanda, já dizia, a respeito do testemunho de Hoess sobre asexecuções em Auschwítz: "Existe um limite no número de pessoasque se pode matar por ódio ou pelo gosto do massacre [para o casodo fanatismo e do sadismo], mas não há limite para o número quese pode matar, de maneira fria e sistemática, em nome do 'impe-rativo categórico' militar" (Gilbert 1950, p. 256). A explicação nãodeve ser procurada no caráter do indivíduo, I!1asno da sociedade,que impõe tais "imperativos categóricos:'. A explicação será políti-ca e social, e não psicológica ou individual.

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Mas que propriedades da sociedade permitem a realizaçãode tais crimes? Na verdade, a resposta a essa questão é, para mim,um ponto de partida. não de chegada: é seu caráter totalitário; ede fato esse é o único traço que a Alemanha e a União Soviética,a Bulgárta e a China, têm em comum. Os alemães, os russos etodos aqueles que realizam crimes inauditos não são seres huma-nos diferentes dos outros; é o regime político no qual vivem que oé. Essa resposta não descarta toda e qualquer consideraçãorelativa às tradições nacionais desses países, posto que mesmo serejeitarmos a idéia nazista de raças e povos inferiores (eculpados),podemos nos perguntar, em um segundo momento, por que ototalitarismo instalou-se na Alemanha e não na França, na China,na Índia etc., e evocar a tradição militarista aqui, a constantebrutalidade das repressões ali, até mesmo a "alma servil", emoutro caso. Mas essa análise das tradições culturais e nacionaisnão está em meus propósitos, e, de minha parte, subscrevo aconclusão de Germaíne Tillion: "Estou convencida [... J de que nãohá povo que esteja ao abrigo do desastre moral coletivo" (Ttllíon1972, p. 213). Nesse particular, ela concorda com Davíd Rousset,sobrevivente de Buchenwald, que, alguns anos antes, logo depoisda Guerra, formulara o seguinte alerta: "Seria uma idiotice - ecriminosa - pretender que com ou tros povos seria impossível, poruma questão de diferença de natureza, viver uma experiênciaanáloga" (Rousset 1965, pp. 186-187).

Tal conclusão é tão mais preciosa quanto mais imprová-vel seria um julgamento eqüitativo, no momento em queTillion deixava o campo de Ravensbrück: na primeira versãode seu livro, ela estava disposta a procurar a explicação dodesastre por meio da história e do caráter nacional dos alemães.ou dos poloneses etc.; mas ela soube mudar. "Hoje. tenhovergonha desse julgamento". escreve em 1972. "pois estouconvencida de que em situação semelhante qualquer coletivi-dade nacional teria cometido o mesmo abuso" (Tillion 1972. p.54). De bom grado. abster-nos-ernos de censurar o caráternacional alemão. opondo-o ao dos franceses. quanto maissoubermos que estes últimos estiveram entre os mais zelososcolaboradores na execução da "solução final". A máquina

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totalitária absorveu as "lições" do czar ísmo russo, do milita-rismo prussiano ou do despotismo chinês. mas assumiu umanova feição, e foi esta última que agiu sobre a consciência dosindivíduos. Esta é. também. a conclusão de Leví: "É precisoestabelecer claramente como princípio que a falta maior pesasobre o sistema. sobre a própria estrutura do estado totalitá-rio" (Leví 1989b. p. 43).

O que me interessa, no entanto, não é o totalitarismoenquanto tal, mas sua ação sobre a conduta moral dos indivíduos.A esse respeito. algumas de suas características são mais impor-tantes do que outras.

A primeira é o lugar reservado ao inimigo. Todas as doutrt-":nas extremistas servem-se do princípio '~qúem não é a meu favoré contra mim" (que infelizmente provém do Evangelho). mas nemtodas prosseguem: "E quem é contra mim deve perecer"; nemtodas. também, dispõem dos meios do Estado totalitário para i

executar a ameaça contida nesse princípio. O que mais específí-camente caracteriza o totalitarismo é que o inimigo se encontra no .P..f()p~~.9mtertorrío.país. É verdade que a Alemanha nazista e a"União Soviética mantêm uma política externa agressiva; mas.nisso. comportam-se como os outros Estados imperialistas. Aidéia de inimigo interno. em contrapartída - ou. se preferirmos,a extensão do princípio de guerra às relações entre grupos nomesmo país - caracteriza-os em sua especificidade. Quem aformula é Lenín, logo depois da Revolução de Outubro; e é Eícke,grande inspirador e promotor dos campos, na Alemanha, quemdeclara, em discurso dirigido aos Führer dos campos, no início daguerra: "O dever de destruir um inimigo interno do Estado emnada se distingue do que os obriga a matar seus adversários nocampo de batalha" (Hoess 1979. p. 101).

A generalização da idéia de guerra conduz Iogícamente àconclusão de que os inimigos são bons de matar. As doutrinastotalitárias sempre dividem a humanidade em duas partes devalores desíguaís (que não coincidem com a oposição "nosso país"versus "os outros países" - !?,.ã,ose trata de um nacionalismos~~~l~s); os seres inferiores devem ser punidos, até mesmo elímí-

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I ti ti I/I!;

nados. Tais doutrinas nunca são uníversalistas: para elas, :n~todos os homens têm os mesmo direitos. Isso é evidente nadoutrina nazista, que assimila as "raças ínferíores" - judeus,ciganos e outros - a sub-homens, se não a parasitas; é evidentetambém no comunismo soviético, onde a mesma linguagem éabundantemente empregada durante os expurgas dos anos 30("aos cães, uma morte de cão", "esmaguemos os vermes" etc.), semfalar das práticas de há mais de 20 anos, já na época dosexpurgas; essa guerra interna era de resto considerada, segundoa doutrina stalinista, como tendendo à intensificação, à medida

'que o comunismo se aproximava. O inimigo - de raça ou declasse, pouco importa - é necessariamente um inimigo extremo,contra o qual se justifica uma guerra de extermínio.

Uma segunda característica dos sistemas totalitários estáigualmente ligada a uma renúncia à universaliclc:<;le.Consiste emque o estado se torna o detentor dos fins últimos da sociedade. Oindivíduo deixa de ter acesso direto aos valores supremos quedevem reger sua conduta, e já não pode se considerar como umrepresentante entre outros da humanidade, consultando suaconsciência para saber para qual objetivo deve se dirigir, emfunção de quais critérios pode julgar os atos de outrem. O Estadotornou-se ~m intermediário obrigatório entre elee os valores; é oEstado, ('! não mais a humanidade, que detém a medida do bem ~do mal; que decide, conseqüentemente, a direção em que asociedade evoluirá. Por meio dessa captação dos fins últírnqs dásociedade e do indivíduo, o próprio Estado totalitário confunde-seprogressivamente com esses fins, tanto para os indivíduos comopara si mesmo.

trabalho, a moradia, a propriedade, a educação ou as dístraçôesdos filhos, e até mesmo a vida familiar e amorosa. Isso lhe permiteobter a submissão dos sujeitos: não há mais onde se abrigar paraescapar dele. Durante os períodos "duros" do totalitarismo (aUnião Soviética e a Europa do Leste sob Stalin; a Alemanha sobHitler, no tempo da guerra), essa obediência é obtida pela ameaçadireta de violências físicas e de morte; durante os períodos "bran-dos", o poder contenta-se em deportar, privar do trabalho, impediro acesso dos filhos à universidade, e assim por diante.

Cada uma dessas características do sistema torna-se acausa de certos comportamentos morais, próprios dos sujeitostotalitários. A presença de um inimigo absoluto no sistema devalores reinante, verdadeira encarnação do mal, torna todas aações hostis em relação a esse inimigo possíveis, até mesmolouváveis. Ainda aqui estamos diante de um princípio de guerra,.:louva-se o soldado por sua determinação diante do inimigo, ou,dizendo de outra maneira, por sua capacidade de matar; o que eraprotbído em tempos de paz torna-se recomendável durante aguerra. Somos obrigados a ser fortes, sobretudo mais fortes doque o inimigo; o prazer pelo poder, experimentado por quem oexerce, é a conseqüência inevitável dessa situação.

Finalmente, uma terceira característica que nos diz respeitoé a designada. precisamente, pelo adjetivo "totalitário": o Estadoaspira a controlar a totalidade da vida social de um indivíduo. Opartido (comunista ou nacíonal-socíaltsta) não se contenta em seapoderar do poder político em sentido estrito, como nas ditadurasclássicas, eliminando a oposição e assumindo sozinho o governo.Estende seu controle sobre toda a esfera pública na vida de cadapessoa e usurpa em grande parte a esfera privada: controla o

O fato de o Estado t~r-se apropriado de todos os fins últimosda sociedade, de ser o único a decidir as metas a perseguir, temum duplo efeito. De um lado, os sujeitos totalitários experimen-tam com isso um certo alívio, pois a responsabilidade pessoalpelas decisões, às vezes, é um fardo difícil de carregar. De outrolado, o poder obriga-os a restringirem-se apenas ao pensamentoe à conduta .ínstrumentats, que se concentram, em toda e qual-quer ação, nos meios e não nos fins (o que os antigos chamavamde "habilidade"). No plano da produção material, essa obrigaçãonão basta para produzir resultados brilhantes (a ausência deiniciativa pessoal e a burocracia crescente tornam-se obstáculos),mas, no plano do comportamento moral, é decisiva. Freqüente-mente, perguntamo-nos como "pessoas comuns", "bons maridose pais de família", puderam realizar tantas atrocidades: O quehavia acontecido com suas consctêncías morais? A resposta é que,

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graças a essa captação dos fins últimos, a essa exclusiva restriçãoao pensamento instrumental, o poder totalitário podia conseguirque as pessoas atingissem as metas que lhe eram prescritas sem

.necessidade de tocar na estrutura moral do indivíduo. Os guardasresponsáveis pelas atrocidades não deixam de distinguir entre obem e o mal, não sofrem nenhuma extírpaçáo de seus órgãosmorais, mas pensam que essa "atrocidade" é na verdade um bem,uma vez que o Estado - detentor dos crítértos _cl<:> .. bef!l_e d9 mal

I - lhes diz isso. Os guardas não estão privados de moral, mas,-: sim, c:i0tados de uma nova moral.

Finalmente, o domínio do indivíduo por uma rede "total"tem como efeito, de quebra, a docilidade dos comportamentos, asubmissão passiva às ordens. Na verdade, os sujeitos totalitáriosacreditam ter encontrado um meio de defesa: decidem submeter"apenas" seu comportamento externo, gestos e palavras em públi-co, e consolam-se com fato de que podem se manter senhores desua consciência e fiéis a si mesmos em sua vida íntima. Naverdade, essa espécie de esquízofrenía social utilizada como defe-sa volta-se contra eles mesmos: ainda que o regime totalitáriodesenvolva esforços para doutrinar seus sujeitos, contenta-se de

i fato "apenas" com sua docílídade pública, suficiente para suainabalável manutenção; e ao mesmo tempo dá a esses mesmossujeitos a segurança produzida pela ilusão de que "no íntenor.desi mesmos", continuam puros e dignos. Nesse caso, a esquízofre-

, nía social torna-se uma arma nas mãos do poder, utilizada paraadormecer a consciência dos sujeitos, para tranqüílízá-Ios. para

. fazê-Ias subestimar a gravidade do que fazem em público. Man-: tendo-se senhor do foro interior, o sujeito deiXa_Q.~§er(\..consciencioso no que diz respeito ao que faz fora.

A submissão dos sujeitos tem uma outra conseqüência,ainda mais trágica, se esses sujeitos têm a infelicidade de fazerparte do inimigo interno. Conjugando total controle sobre osmeios de informação e sobre os meios de coerção (a polícia) coma ameaça de violências físicas e de morte, o poder totalitário obtéma submissão das vítimas. Pouco importa se essas vítimas sãomulto numerosas; não dispondo de nenhuma organização, cada

ser encontra-se sozinho diante de uma força infinitamente supe-rior e, portanto, encontra-se impotente. Sabe-se que, durante edepois da Segunda Guerra, alguns autores judeus reprovaram aspopulações judias em conjunto por se terem deixado levar "comocarneiros para o abatedouro", de não terem resistido de armas namão (encontramos essa idéia em homens tão diferentes quantoBruno Bettelheim e Raul Hilberg, Jean Améry e Vassili Grossman;mas essas primeiras formulações foram utilizadas como aguilhãoentre os organízadores da resistência clandestina). Outros escri-tores dedicaram-se, em seguida, a contestar essa afirmação,enfatízando os atos de resistência que aconteceram aqui e ali.Trata-se, na verdade, de um falso debate; e à questão "por que osjudeus não se rebelaram mais?" podemos responder apenas oseguinte: porque uma revolta como a pretendida era impossívelem um regime totalitário. Por que os prisioneiros de guerrasoviéticos na Alemanha não se revoltaram? Por que cinco milhõesde camponeses da Ucrânía deixaram-se morrer passivamentedurante a grande privação que Stalin lhes infligiu. no início dosanos 30? Por que um bilhão de chineses não se revoltam, hoje?Invocar aqui as tradições judaicas ou uma mentalidade de guetoé totalmente impróprio.

Os crimes totalitários são crimes de uma nova espécie, e épreciso reconhecer sua específícídade. mesmo que isso não nosobrigue a rever nossas idéias sobre a "natureza humana". Elesnão têm nada de sobre-humano ou de sub-humano e, no entanto,são uma inovação histórica. A causa desses crimes não está nemnos indivíduos nem nas nações, mas no regime político em vigor.Uma vez instalado o sistema totalitário, a esmagadora maioria dapopulação - vocês, eu - corre o risco de tornar-se cúmplice doscrimes; basta essa única condição. Essa é uma das lições dessesacontecimentos trágicos: o deslizamento para o que julgamos sero mal é muito fácil. "Desejo profundamente", escreve OerrnaíneTíllíon, "chamar a atenção dos responsáveis para a trágica facili-dade com que a 'brava gente' pode tornar-se carrasca sem sequerperceber" (1972, p. 214).

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(Até 1944, a Bulgária.jazia parte do campo pró-alemão etinha um governo considerado fascista. O pró-germanismo e o

fascismo náo deviam ser a toda prova, uma vez que a Bulqáita foium dos raros países da Europa que, justamente, não traiu os"seusr juáeus - era possível manifestar-se nas ruas contra o porteda estrela amarela, deputados podiam protestar na assembléianacional contra as medidas de reagrupamento, os eclesiásticosortodoxos podiam declarar que se deitariam nos trilhos que condu-ziam os trens carregados de Judeus. Entretanto, o fascismo eracombatido, e à frente do combate estavam os comunistas. Eramacompanhados por numerosos simpatizantes, entre os quais meupai, na época modesto bibliotecário e homem de letras, masjá comopiniões pró-comunistas. Poderia ele imag inar, no momento em quetinha a mais simples das reações, absolutamente não extremada,que consistia apenas em sustentar o combate cuiitfascisia. que iacontribuir para levar ao poder um outro regime totalitário, com umsistema de campos decuplicado em relação ao precedente, queenforcaria. fuzilaria ou estrangularia na prisão todos os repre-sentantes da oposição e nunca tolerava a manifestação de rua denenhuma oposição, nem a expressão de nenhuma opinião pessoal?Como poderia ele deduzir o extremo do cotidiano?)

La culpabilité allemande. Se é preciso insistir nisso é porqueestamos tratando de regimes totalitários, onde essa fronteira,aliás bastante nítida, tende a apagar-se: neles, todos estão impli-cados na manutenção do sistema em Vigor e são, portanto,responsáveis, mas ao mesmo tempo todos estão submetidos eagem sob coação. A situação totalitária é particular, é verdade e,no entanto, não permite eliminar definitivamente a idéia de res-ponsabilidade pessoal. Mesmo no seio dos campos, nesse extremodo extremo, a escolha entre o bem e o mal permanece possível,como Vimos. Com ainda mais razão, mantém-se na vida fora doscampos, mesmo que de uma forma não tão fácil quanto em umademocracia.

Os agentes do mal

Em um capítulo brilhante de Toui passe, consagrado aosdelatores, Grossman quis justapor os diferentes pontos de Vistasobre a questão, esboçando antes o retrato de quatro "Judas",imaginando em seguida seu processo público, em que acusadorese advogado de defesa se confrontam. Ainda que se recuse adecidir, Grossman pende, finalmente. para a absolvição geral.Judas I fora objeto de pressões írresístíveís (prisão, campos,tortura), e por isso cedeu. Judas 11foi vencido por seu própriomedo diante do Estado-colosso, que jamais conseguira fazermover-se. Judas IIIpraticou a submissão incondicional. Judas IVfora vítima de condições miseráveis nas quaís crescera. Em todasessas situações, "só o Estado é responsável" (Grossman 1984, p.91). E conclui: "Não, não; não são culpados. Forças obscuras,forças saturnínas os moveram" (idem, p. 95). Mas o Estado nãovive fora dos indivíduos que o encarnam; as forças obscurasprecisam de braços humanos para impor sua vontade. Supô-lossubmetidos a tal ponto é ter dele uma opinião lastimável: em lugarde desculpá-los, Grossman rebaixa-os. Não, os homens nuncasão inteiramente privados da possíbílídade de escolher. A pessoaé responsável por seus atos. quaisquer que sejam as pressões quesofra, caso contrário, renuncia a sua ftlíaçáo humana; entretanto,quando as pressões são de fato muito grandes, o julgamento develevar isso em conta. E como não existe um ser essencial, inde-pendente de suas manifestações exteriores, e sim um ser

Dizer que a causa dos crimes totalitários não está noindivíduo, mas no regime político. não significa que o indivíduoesteja isento de toda e qualquer responsabilidade. É preciso, nocaso, partir de uma distinção entre culpabilidade legal e respon-sabilidade moral. Se nos colocamos no terreno da justiça,devemos, em conseqüência, separar os próprios agentes doscrimes, os únicos que interessam, e as testemunhas passivas,responsáveis, no limite, pela não-assistência à pessoa em perigo,mas que só têm contas a prestar à história ou a sua própriaconsciência, e não aos tribunais. Essa distinção já fora estabele-clda por Jaspers, logo depois da guerra, em sua meditação sobre

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Por outro lado, essa responsabilidade estende-se, em nossomundo compartimentado e especializado, da concepção inicial àexecução final: a multiplicidade dos agentes não os torna menosresponsáveis. Só a culpa legal, é verdade, diz respeito aos tribu-nais; ora, no atual estado das coisas, a lei não considera todos oscúmplices como culpados; assim, ela pune os que decidem, mas

não os inspiradores. É preciso, portanto, abrir .um espaço, ao ladodas sentenças proclamadas pelos tribunais, para aquele queexprime o consenso social; cas responsabilidades morais não são).lrnél_fi(;S~o.Podemos não partilhar da indignação de HermannKesten, que pensa que na Alemanha "os assassinos 'da pena'eram infinitamente mais perigosos e abomináveis do que ospróprios torturadores e carcereiros" (Wiesenthal 1976, p. 153) e ~,que é preciso, em conseqüência. condenar mais severamente os .'escritores e intelectuais. Jünger e Gottfried Benn, Heidegger eCarl Schrnitt, do que os comandantes de campos, como Hoess eStangl. Mas deve-se admitir efetivamente a responsabilidade deum I?~?S~~Il_~o_antíuníversalísta (que privilegia a classe ou anação), híperdetermtnísta (que nega a moral, afinal de contas) econflítuoso (que vê na guerra a lei suprema da vida) no surgímentodos regimes totalitários e, conseqüentemente, nos crimes nelescometidos.

Durante o'processo de Nuremberg, as duas atitudes fazem-se presentes: alguns acusados rejeitam qualquer falta, pondo aresponsabilidade por seus malfeitos nas costas do Estado ou doFührer; outros, consideram-se culpados. Este último caso é ilus-trado sobretudo por Speer. Diante do tribunal, ele distingue duasséries de crimes: aqueles pelos quaís é pessoalmente responsável(utilização de prisioneiros dos campos como mão-de-obra nasfábricas de armamentos e, portanto, sua deportação) e aquelespelos quaís é responsável por cumplicidade, como membro dogrupo dirigente do país. Em seu próprio processo, Eichmann sóse reconheceu culpado pelo segundo tipo - com a ressalva de quenão pertencia à classe dirigente. Speer mostra-se tão mais dispos-to a aceitar sua parte de responsabilidade nos crimes de Hítler, deque ninguém o acusa, quanto mais essa atitude possa deixar nasombra sua culpa direta: em resumo, ele se reprova por terpartícípado do Estado nazista, e não por este ou aquele ato (é essaa estratégia utilizada também em seu livro). No entanto, ao longodo processo, ele assume as duas responsabilidades, o que talvezlhe tenha permitido sobreviver espiritualmente.

constituído pelo conjunto de seus atos, é claro que ele é que seráconsiderado como atingido pelo mal, e não apenas os atos.

Grossman acrescenta: "Talvez sejamos culpados, mas nãohá juiz que tenha moralmente o direito de levantar essa questão"(Idem, p. 92). "Entre os vivos, não há inocentes. Todos sãoculpados: você, acusado, e você. promotor, e eu, que penso noacusado, no promotor e no juiz" (idem, p. 95). Hoje, depois dodesmoronamento do totalitarismo comunista em vários países, aquestão é atual: É preciso julgar os culpados? Se é, onde encon-trar juizes inocentes para fazê-Ia? Mas o argumento de Grossman,nesse caso, é fora de propósito: os tribunais fazem justiça emnome de princípios aceitos por todos, não porque os justos, eapenas eles, têm o direito de condenar os culpados; ele confunde,com graves conseqüências. direito e moral. O juiz só interessa àjustiça na medida em que encarna seus princípios com rigor; nãotem nada a ver com sua virtude pessoal. A pressão exercida peloEstado pode ser considerada como uma circunstância atenuante,a prática extremamente difundida de certos crimes pode incitar aanístíá-los, por fim; nem por isso se deve impedir, em um primeiromomento, que a verdade se estabeleça e a justiça seja administra-da. A clemência será bem-vinda, mas só pode intervir depois: háuma grande diferença entre indulgência e ocultação da verdade.Logodepois da Libertação, as letras francesas eram sacudidas porum debate apaixonado, que opunha os partidários da justiça (oque freqüentemente queria dizer ajuste de contas) e os da carida-de (e, portanto, do perdão aos colaboradores); de um lado Vercorsou Camus, de outro, Mauriac e Paulhan. Mas as duas atitudesnão se excluem de fato: mesmo se decidimos perdoar, é melhorfazê-lo com conhecimento de causa, depois de ter estabelecido osfatos: a justiça não se reduz à punição.

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Mas o caso infinitamente mais freqüente é o dos antigosagentes do mal que se recusam a reconhecer qualquer responsa-bilidade. Nos tribunais, como no debate público, a maior partedeles sustentou sua não-culpabilidade. "Entre todos os que servi-ram a 'máquina' de Hitler, nenhum utilizou em sua defesa umafrase como 'estou desolado"', constata Mitscherlich, depois deassistir ao processo dos médicos nazistas (Mítscherlích 1962, p.18). Nos antigos países comunistas, as acusações ainda sequerforam formuladas. Ora, o reconhecimento do crime por seusagentes não é menos importante para a saúde do grupo social doque a punição. Examinemos rapidamente, então, os argumentoslevantados em sua defesa, sem levar em conta que, mesmocontraditórios entre si, são freqüentem ente apresentados ao mes-mo tempo, como na famosa história do caldeirão furado.

A primeira defesa, evidentemente, consiste em negar osfatos, em afirmar que tudo aquilo jamais existiu. Mas até os maissistemáticos esforços para apagar todos os traços fracassam:testemunhas abrem a boca, décadas mais tarde (a primeira teste-munha direta do massacre de Katyn acaba de publicar seu relato,50 anos depois dos fatos), manuscritos desaparecidos são encon-trados, os próprios cadáveres trazem sua contribuição aoestabelecimento da verdade (em 1990, desenterram na Bulgártaos esqueletos das antigas vítimas e encontram neles indíciosdesoladores para os carrascos, ainda vivos e gozando de seusprivilégios). É por isso que, depois do fracasso do primeiro argu-mento, tem-se necessidade do segundo: eu não sabia. Quandoreal, essa rgnorâncta é procurada mais ou menos conscientemen-te. Stangl, que era comandante do campo, prefere não olhar ascoisas de frente. "Em Sobibor, era possível acomodar-se para nãover quase nada, tudo se passava longe das construções do campo"(Sereny 1975, p. 121). Um oficial da SS de Treblinka dirá omesmo: "Eu não queria ver nada. Sim, penso que não poucosfaziam como eu. Era o que se podia fazer de melhor, vocês sabem,fazer-se de morto" (idem, p. 179). Mas era assim, também, que se"faziam" os mortos ...

Speer contou em detalhes suas sucessivas recusas em levarem consideração as informações que o incomodavam. Próximo dofim da guerra, durante o verão de 1944, seu amigo Hanke,Gauleiter da Sílésía, confídencía-Ihe: "Ele me pediu que nuncaaceitasse um convite para visitar um campo de concentração noGau da Alta Sílésía: nunca, sob pretexto algum. Ele tinha visto láum espetáculo que não se sentia no direito de descrever e quetampouco seria capaz de descrever" (Speer 1971, p. 529). Speersubmete-se .docilmente: escolhe ignorar a verdade de Auschwttz.Não·sãbendo. poderá continuar a ajudar o esforço de guerraalemão em absoluta tranqüílídade. Assim. conclui com razão: "Amedida de meu isolamento. a intensidade de minhas escapatóriase o grau de minha ignorância era eu. ao fim e ao cabo. que asdeterminava" (idem. p. 162). "Estar em condições de saber e deevitar saber torna você responsável pelas conseqüências" (idem-trad. americana, p. 19).

Os que não podem pretender nem que as coisas não tenhamacontecido nem que ignoravam sua existência recorrem a umterceiro argumento.eu obedecía ordens. Como vimos, uma defesacomo essa implica uma degradação de si mesmo, pior que o crime.pois declara a si mesmo como sub-hurnano. Além disso. do pontode vista legal, obedecer ordens criminosas também é crime.

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Finalmente. o quarto argumento frequentemente invocadoé o mesmo utilizado pelas crianças quando pegas em flagrante: osoutros fazem a mesma coisa. As antigas vítimas muitas vezesconstatam: os carrascos eram pessoas comuns. eram como nós;e concluem com angústia: também somo culpados. então. Quantoaos carrascos. fazem essa descoberta com euforia: somos como osoutros. por conseguinte, somos inocentes. Essa é, em particular,.a estratégia de Goering em Nuremberg: não nega o que se passoue não se esquiva da responsabilidade sob o pretexto de que seguiaordens, mas se compraz em aproximar a história alemã à deoutros países. "O império britânico não se construiu respeitandopríncípíos humanitários [... J. A América arrogou-se um Lebens-raum muito rico graças à revolução, aos massacres e às guerras"(Gilbert 1947. p. 187); quanto à União Soviética. praticou um

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totalitarismo não menos feroz do que o de Hítler, que aliás tevenela, freqüentemente, fonte de inspiração. Não se pode fazer aguerra proclamando-se princípios humanitários; ora, nenhumpaís soube renunciar à guerra, muito menos os aliados vitoriosos."Onde os interesses da nação estão em questão [...1,cessa a moral.É assim que a Inglaterra se comporta há séculos" (idem, p. 339).

também dizer que há gradaçáo, no crime, e que o extermínio de todoum grupo humano pelo aparelho de Estado, com base em critériospseudo-racíais, está em um grau particularmente grave, quaseúnico. Mas é verdade que os alemães também são perseguidos pelosbombardeios, coisa efetivamente mais comum, inclusive em suafunção de aterrorizar.

Há uma parcela de verdade incontestável no argumento deGoertng. Os crimes das grandes potências coloniais, Inglaterra eFrança à frente, são inumeráveis; os dos regimes comunistas nãosão menos graves; em todas as guerras transgridem-se as regrasde humanidade, e os bombardeios de Leípzíg e Hamburgo, semfalar de Híroshíma e Nagasakí, vão muito além do que qualquer"direito de guerra" que se possa imaginar deveria tolerar. Mas aconclusão a que chego é oposta à dele: a comparação não desc:,ul-pa os crimes nazistas, mas incita-nos a refletir sobre esses outroscrimes, que são "nossos" no mesmo sentido em que os primeirossão "alemães", e a condená-Ias. Não é possível voltar o curso dahistória e fazer hoje o que deveria ter sido feito no passado; maspodemos ao menos restabelecer a verdade do já acontecido,mantendo-a presente na memória coletiva. Os franceses, os ame-ricanos e todos os demais não têm nenhum mérito moral emlembrar-se dos crimes alemães e recalcar os__seus próprios, mes-mo que alguns deles sejam, nesse ou naquele caso particular,mais graves do que os outros. É como Glenn Grey diz: "Espantar-se com a ausência de uma consciência culpada nos ou tros e, aomesmo tempo, aceitar sua própria inocência como uma evidênciaé algo que reflete muito bem uma certa mentalidade moderna"(Grey 1970, p. 173). Não podemos refazer o passado, mas épreciso lembrar no presente qual seria o preço de uma guerra, epodemos anunciar para o futuro que até mesmo os crimes legaisserão punidos. A justiça supranacíonal, no momento, não passade um desejo piedoso, mas podemos nos servir dele ao menoscomo um princípio regulador. Mais do que questionar junto comGoermg a legalidade de Nuremberg, eu desejaria que se instalasseum Nuremberg permanente para julgar todos os crimes contra ahumanidade, dos quaís os nazistas não são os únicos a seremcondenados.

Os outros acusados tampouco se pejam de usar o mesmoargumento. Hans Frank observa: "Eles querem fazer de Kalten-brunner o responsável pelo assassinato de dois mil judeus por diaem Auschwttz - mas o que dizer a respeito das 30 mil pessoasmortas em algumas horas pelos bombardeios sobre Hamburgo?- também nesse caso, tratava-se essencialmente de mulheres ecrianças [acrescenta Rosenbergl. E o que dizer, ainda, das 80 milpessoas mortas sob a bomba atômica, no Japão?" (Frank 1942, p.243). Jodl consente: o bombardeio de Roterdã, pelo qual é repro-vado. vale o de Leípzíg, pelos aliados. quando já tinham vencido aguerra. Nessas condições. se julgamos uns, mas não os outros, éque se está não com o direito. mas com a força; ou como dizOoertng: "O vencedor será sempre o juiz. e o vencido. o acusado"(idem. p. 10).

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Não podemos descartar esse último argumento dando deombros. Pode-se retorquir, certamente. que a exístêncía de crimessemelhantes não torna o primeiro um crime perdoável; isso éverdade. mas como só um é punido, e não os outros, temos deadmitir que não só o direito. mas também a força. está em jogo nocaso. Que os representantes de Stalín, em Nuremberg, condenem àmorte os de Hítler, beira a obscenidade - pais uns e outros viveramaté aquele momento em emulação recíproca. quando não na maisestreita colaboração. Os campos soviéticos talvez fossem menos"aperfeiçoados" - mas são mais antigos. maiores, igualmente mor-tíferos e sempre lotados, mesmo depois da guerra. Também podemosobjetar a Ooeríng. Frank e Rosenberg que os judeus nunca estive-ram em guerra contra a Alemanha. e que, portanto. não se podeassimilar o caso deles ao das vítimas de guerra (o mesmo se poderiadizer dos inimigos "internos" na URSS, na China ou no Camboja);mas a guerra é desculpa para o assassinato de crianças? Podemos

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Passemos agora ao outro lado da fronteira que separa os"ativos" e os "passivos" e, portanto, também os "culpados" e os"responsáveis". O estabelecimento dessa fronteira é essencial, e ospróprios sobreviventes freqüentemente a traçaram, recusando aidéia de uma culpabilidade coletiva que seria preciso ímptngír àcomunidade dos carrascos. Etty Híllesum tem, ainda, o mérito detê-Ia afirmado no momento mesmo em que estava reduzida aopapel de vítima. Foi em 1941 que ela escreveu: "Ainda quehouvesse apenas um único alemão respeitável, seria digno de serdefendido contra toda a herda dos bárbaros, e sua existência nostiraria o direito de derramar nosso ódio sobre todo um povo"(1985, p. 25). Logo depois da guerra, Jaspers pôs em evidência ocontra-senso de condenar, legal ou moralmente, um povo inteiro,quando apenas os indivíduos têm vontade e podem, portanto, ser _dados como culpados; dizer que "os alemães sãó" culpados peloholocausto" é tão absurdo quanto pretender que "os judeus sãoculpados pela crucificação". Os sobreviventes dos campos nãofarão outro juizo. Bettelheím escreve: "Quem aceita a tese daculpa de todo um povo destrói o desen~olvimento da autên1Íçademocracia, fundada na autonomia e na responsabílídadetndtvt-dual" (1972, p. 366); e Leví exclama: "Não compreendo, nãosuporto que se julgue um homem não pelo que é, mas pelo grupoa que por acaso pertence" (l989b, p. 171). Recusar aos indivíduosa capacidade que possam ter de furtar-se à influência de suaorigem ou meio é, mais uma vez, privar os homens de suahumanidade.

A idéia da culpa coletiva está, como sabemos, bastante bemimplantada entre os guardas. Buber-Neurnann recorda-se de que,nos campos soviéticos, todos os alemães eram automaticamentetratados como fascistas, mesmo que na verdade fossem comunis-tas fugidos do regime de Hitler. Nada de diferente se passa noscampos alemães: todo e qualquer indivíduo é reduzido a suapertença ao grupo. Eícke aterroriza os judeus detidos cada vez queum protesto que lhes diga respeito se levanta em algum canto domundo: eles são coletivamente culpados. O próprio Hítler dá como

culpado, de início, todos os judeus; em seguida, perto do fim daguerra, todos os alemães (porque se revelam incapazes de ganharas batalhas). Tal solidariedade atribuída ao grupo é estendida atémesmo a agrupamentos muito mais fortuitos: um vagão de prisio-neiros, uma barraca de prisioneiros; é por isso que fuzilam dezpessoas a cada evasão, cem por cada ato de resístêncía: todos osmembros do grupo são responsáveis pelos atos de cada um..Bettelheim pode então concluir, com razão: "Quando escolhemosum grupo de cidadãos alemães para mostrar-lhes os campos deconcentração e aftrrnar-Ihes: 'Vocês são os culpados', afirmamosum princípio fascista" (1972, p. 366).

É verdade que Jean Améry, um outro sobrevivente quesofreu muito, quis lançar o desafio teórico por conta própria, e,contra Jaspers, defendeu em seu livro a idéia da culpabilidadecoletiva dos alemães. Ele sabe que existem as exceções, ele próprioencontrou bons alemães, mas ainda assim acredita em sua tesecomo aproximação estatística válida. Quando o trem dos prisio-neiros atravessava a Checoslováquta, mãos estendiam-se emsocorro; quando parava na Alemanha, os rostos continuavam depedra. Conseqüentemente, "na medida em que a nação alemã [... )não decidiu viver inteiramente privada de história [... ), deve assu-mir a responsabilidade por aqueles 12 anos" (Améry 1980, p. 76).A posição de .Jankélévítch é mais ou menos a mesma. Mas épreciso dizer que, se nos colocamos no terreno do direito, sópodemos condenar indivíduos, e não "os alemães". E, se nossituamos no da história, temos, sim, de admitir a comparaçãoentre a história alemã e a de outros países, e constatar que aAlemanha, infelizmente, não é a única a ter episódios reprováveis.Mas essa é uma comparação que Améry sempre rejeitou, conside-rando, por exemplo, que o termo "totalitarismo" servia apenaspara camuflar os crimes germânicos. O indivíduo, evidentemente.só pode se sentir ferido em ver sua experiência única incluída emuma série e transformada em exemplo de algo mais comum. Estáem seu direito. e temos de respeitá-Ia. Mas também é nosso deverdiferençar entre justiça e ressentimento.

As testemunhas

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Assim, por princípio, as testemunhas escapam às persegui-ções legais; mas podemos considerá-Ias como moralmenteresponsáveis. Não formam um grupo homogêneo; poderíamos,antes, vê-Ias como que dispostos em círculos concêntricos, deacordo com o grau de seu dístanctamento dosprópríos agentes domal. ' .'- .

Theresa Stangl. Como pôde ela aceitar que seu marido tivesse a -morte como ofício? Fazendo o melhor de si para ignorar. Evitandofazer-lhe perguntas embaraçosas. Aceitando suas confusas expli-cações, de acordo com as quaís ele só se ocupava daadministração, e não das execuções ("Evidentemente, eu queriaser convencida, não é?", admite, 30 anos mais tarde; idem. p.145). Comparando as vítimas aos soldados mortos no froni.Recusando-se a acreditar que também se matavam mulheres ecrianças. Essa acomodação ao mundo é-lhe necessária parac.f>!1.til).:!lara Viver tranqüila. É ela mesma quem diz claramente:"Era assim que eu tinha vontade, que eu tinha necessidade depensar, que me era preciso pensar para manter nossa vida fami-liar e, se você quiser. [... ] para conservar minha razão" (idem. p.373). A senhora Stangl prefere o conforto à verdade; não é a única ..

Qual é a responsabilidade desse primeiro círculo de ínti-mos? Os agentes do mal. como vimos, muitas vezes sofrem umafragmentação de sua existência em uma esfera pública e outraprivada. que não se comunicam entre si; podem ser excelentesmaridos e excelentes pais. Stangl, particularmente, desejava com-portar-se como pai de família exemplar, compensando assim asínsattsfaçôes que o trabalho lhe trazia. O que teria feito se amulher o tivesse obrigado a escolher entre o ofício e ela própria?Sereny faz a pergunta à mulher, que compreende bem o que estáem jogo: se pensa que ele teria mudado de emprego, deve sentir-seculpada pelo que se produziu, uma vez que poderia tê-lo detido.Sua reação é reveladora. Depois de refletir demoradamente, elaresponde: se eu o tivesse colocado diante da alternativa Treblinkaou eu, "sim, finalmente, a mim é que ele teria escolhido". Mas,algumas horas depois, ela muda de opinião e envia a Sereny umacarta afirmando o contrário. Sua interlocutora tira então a con-clusão que se impõe: "A verdade é uma coisa terrível, terríveldemais. algumas vezes, para que possamos viver com ela" (idem,pp. 387-388). Em um grande número de casos. os íntimos pode-riam ter impedido os massacres, mas não o fizeram.

No primeiro círculo, encontram-se os íntimos das pessoaslegalmente responsáveis: sua família, seus próximos. Estes nãopodem recorrer verdadeiramente ao argumento da ignorância; emcerto sentido, assistiam de camarote; por isso, recorrem a outrosargumentos. Um dos mais comuns é o de que lamentavam o queacontecia, mas estavam impossibilitados de ajudar. "É atroz, masnada podíamos contra isso", diz uma testemunha próxima àmulher de Stangl (Sereny 1975. 146); e a esposa de um SS quetrabalhava no "instituto" de eutanásia afirma: "Era horrível, evi-dentemente, mas o que nós poderíamos fazer?" (idem, p. 112). Aesse fatalísmo fundamental, acrescenta-se o pavor da puníçáo.Portanto, para que protestar. se. em primeiro lugar, isso em nadaaliviará as vítimas e, em segundo lugar. ainda acarretará a perdade um testemunho? Esse duplo argumento é característico dosregimes totalitários, tanto porque esses regimes repousam notemor do indivíduo em perder a vida ou a integridade física quantoporque apresentam o desenrolar dos acontecimerÍtos- da vidasocial (a "história") como tão inexorável como um processo natu-ral: é o htperdeterrntnísmo, próprio à filosofia de tais regi:rnes. Naverdade, nenhum dos dois argumentos resiste ao exame: se os

': protestos forem numerosos, o regime modificará sua política; e a,--expressão do desacordo não acarreta a morte de quem o profere.

Mas o que o regime não chega a instaurar nos fatos, realiza na, cabeça dos sujeitos totalitários: ..é nisso que reside suaforça, Poroutro lado. um ato de protesto comporta um certo risco e, doponto de vista moral, é legítimo incitar os outros a realízá-lo, masnão reprovar o fato de não o terem realizado (essa é uma reprova-ção que só podemos dirigir a nós mesmos).

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Gitta Sereny teve a boa idéia de entrevistar longamente nãosó o antigo comandante de Treblínka. mas também sua esposa,

No segundo círculo em volta dos agentes do mal encontram-se seus compatriotas: os que Dão o conhecem pessoalmente, mas

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pertencem à mesma comunidade. Os antigos prisioneiros emgeral guardaram a impressão de que a população cívílà volta delesmantinha-se indiferente a seu destino; e não há nenhuma razãopara pôr seus testemunhos em dúvida. No caso dos camposalemães, os prisioneiros vinham, muitas vezes, de um país estran-geiro; mas na União Soviética, assim como na Bulgáría, estavamem casa; no entanto, a população tampouco os ajudou. A explica-ção geralmente dada pelas pessoas envolvidas é a da ignorância:não sabíamos o que se passava no interior dos campos de concen-tração. Tal situação foi Iongamente examinada, de todos osângulos. HOje,podemos concluir que a desculpa certamente temuma parcela de verdade: o segredo, como sabemos, é consubstan-cíal ao estado totalitário, e pode mesmo estar muito bemguardado; com freqüência, os próprios agentes do mal não che-

.gam a ter uma visão de conjunto da ação em que estão engajados,Mas, de outro lado, OS campos não estª-º verdadeiramente isola-dos do resto do país de forma hermética: são também locaísdetrabalho, inserem-se, portanto, em um esquema econômico gerale o contato com a população exterior é inevitável. De resto, ospresos e, por conseguinte, também os guardas, são numerososdemais para que, de vez em quando, a notícia não se espalhe.Pode-se dizer que, se a população de fato não soube o que sepassava, foi porque não quis saber; mas não se pode mcrímínarcada pessoa individualmente por essa negligência.

(Nesse momento [depois que a imprensa foi liberada, em19891,fala-se muito, na Bulgária, dos massacres ocorridos em1944, logo depois da tomada do poder pelos comunistas. Perguntoa meu pai: "Como você podia aprovar tudo isso e se declararsolidário aos comunistas que eram os responsáveis pelos massa-cres?""Não sabíamos de nada", respondeu-me, "tudo se passavanas pequenas cidades, não ouvíamos falar de nada disso nacapital." No entanto, ele me conta que sua própria mãe, que viviano interior, olhava-o aterrorizada desde que se juntara ao Partido.Creio lembrar-me, também, que uma das melhores amigas deminha mãe era mulher de um antigo primeiro muustro.fuztiaâo poressa época. Meu pai procurara verdadeiramente saber o que sepassava à sua volta? Em seu lugar, eu o teria jeito?)

São abundantes os exemplos nos relatos dos sobreviventes.Leví começa a corresponder-se com um certo Müller, que conhe-cera em Auschwitz como químico (e não como guarda), epergunta-lhe como reagia, na época, ao que via; a resposta é quenão Via nada. Não se trata necessariamente de uma mentira."Nessa época, para a maioria silenciosa alemã, tentar saber omínimo possível era uma técnica muito difundida e, portanto, nãose faziam perguntas" (Leví 1987a, p. 262). Os instrumentos deinformação "foram sufocados pelo medo, pela cobiça, pela ceguei--!:'~_~p'elaestupidez voluntárias" (LeVi1989b, p. 16). "Para não ver,faziam às pressas suas descobertas", diz uma outra testemunha(Lanzrnarm 1985, p. 63). Eugênia Guinzbourg escreve: "Quandoolhamos para trás, hoje, mirando aquela época terrível, assusta-mo-nos com tamanha cegueira voluntária: Como as pessoaspodiam não se perguntar sobre o que lhes saltava aos olhos?"(1980, lI, pp. 336·337). E sente-se obrigada a responder apergunta: dá-se conta de que ela mesma se deixava enganarcomo os outros. É que acreditar é mais forte do que ver - e estaé uma das lições dessa experiência. Os prisioneiros tinhamnecessidade de acreditar para ter esperança; portanto, esque-ciam o testemunho dos sentidos. As testemunhas precisavamcrer para viver tranqüilas: o que Viam em Kolyma não entravano campo da consciência.

(A nova imprensa de oposiçãn, na Bulqária, chamou a aten-ção também para um outro período: 1959-1962. Nesse momento,Jánão haviajascistas, mas continuava-se necessitando de inimigosinternos; assim, processava-se a caça aos rapazes e moças não-conjormistas. Em particular, aos que dançavam e se vestiam "comono Ocidente", ou seja, no caso dos homens, com calças justas. Apolíciajazia batidas nas tardes dançantes e pedia aos homens quetirassem as calças sem tocar nos sapatos. Os que não conseguiameram levados e selvagemente surrados nas âeleqactas, Na segun-da "infraçào'', eram sumariamente levados para o campo deconcentração, sem jamais passarem pela justiça. O campo, emLovetch, era uma pedreira; metade dos presos morria ali mesmo,dados os bons tratos dos guardas. Por essa época, eu já não eracriança, estava nos últimos anos da uniuerstdade, e, exatamente.

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ia comjreouêncta dançar. Nunca vivi cenas como as que acabo dedescrever; talvez a policia escolhesse os ambientes em que iabater. Eu ignorava Lovetch completamente. Teria tentado saber?Estava contente demais com meus pequenos privilégios para arris-car-me a peraé-ios simpatizando com as vítimas do regime. Comotodo mundo, eu sabia que havia um campo na ilha de Béléné; paramim, isso nunca representou problema: eu considerava sua exis-tência como algo tão natural quanto as prisões.)

A aproximação que Guínzbourg estabelece entre a cegueiradas testemunhas e a das próprias vítimas de fato se impõe naleitura dos relatos dos sobreviventes. Leví falava, como Vimos, de"cegueira voluntária" da população alemã; mas não encontrououtro termo para descrever a própria atitude, na véspera de suadetenção, na Itália. "Se se queria tirar algum proveito da juventu-de que corria em nossas veias, não restava outro recurso se nãoa cegueira voluntária" (Leví 1987a, p. 65). "Nossa ignorância nospermitia Viver" (idem, p. 155). São abundantes os exemplos dealertas descartados, de advertências voluntariamente ignoradas.Uma pessoa ínftltra-se clandestinamente em Treblinka para saberqual era o destino dos judeus levados para lá; volta para Varsóviae conta o que Viu. "O rapaz suplicou aos velhos do gueto queacreditassem no que dizia; mas eles acabaram declarando que orapaz sofria de estafa, e que iam arranjar para ele um lugar naclínica do gueto, para que pudesse repousar" (Sereny 1975, p.275). Moché-le-Bédeau volta para a cidade com a terrível notícia."As pessoas recusavam-se não só a acreditar em suas histórias,mas até a escutá-Io. 'Ele está tentando fazer com que tenhamospiedade de seu destino. Que imaginação ...' Ou então: 'Coitado,ficou louco" (Wíesel 1973, pp. 20-21).

Neumann encontra-se com presos de Auschwítz transferidos paraRavensbrück: "Não acredito em uma única palavra do que acabode ouvir, acho que perderam completamente a razão" (Buber-Neu-mann 1988. p. 120). Ríchard Glazar é encarregado, em Treblinka,de fazer a triagem das roupas dos que chegaram junto com ele:"Acho que eu continuo a não pensar em nada; a essa altura,parece impossível, mas era isso mesmo" (Sereny 1975, p. 189). Amesma negação do real repete-se à sombra das chaminés dosfornos crematórios ou diante das portas das câmaras de gás. Asrazões dessa atitude não são incompreensíveis. "Seria cometer umerro histórico imenso considerar os principais mecanismos de"defesa empregados pelas vítimas [' .. J como puros sintomas decegueira ou de idiotice; ao contrário, esses mecanismos de defesadecorrem de certas qualidades profundas, inerentes a todos osseres humanos: _~amor à Vida, o medo da morte ..." (Jong, p. 54) ..Acreditª-seno que se quer, não no que se vê.

Não é escandaloso observar o mesmo processo psícológícoentre as vítimas e as testemunhas, com resultados tão diferentes?Não creio. Uns e outros protegem seu bem-estar (ou acreditamfazê-lo) negando o real. Mas o mesmo mecanismo é utílízado emduas situações completamente diferentes, pois, em um dos casos,o perigo que se decide ignorar é uma ameaça a si próprio, e nooutro, ao próximo. Por isso mesmo, sua significação moral étotalmente diferente: pode-se lamentar a cegueira voluntária dasvítimas, mas não se pode reprová-Ias por isso; o mesmo nãoacontece com as testemunhas, a quem podemos repreender,ainda que apenas diante da história, pela não assistência àspessoas em perigo.

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As mesmas atitudes repetem-se no interior dos campos, àvista da própria morte. Fílíp MüIler formula a regra desse compor-tamento: "Quem quer viver está condenado à esperança"(Lanzmann 1985, p. 83). Mícheels acrescenta: trata-se de "umadas muitas formas de negação sem as quaís a vida seria insupor-tável" (Mícheels 1989, p. 34). Todos os sobreviventes repetem amesma frase: eu não acreditava, eu não podia acreditar. Buber-

Tais opiniões estão divididas. Alguns sobreviventes acusamamargamente as testemunhas de indiferença; sem elas, os pró-prios agentes do mal, sempre pouco numerosos, não poderiamcometer seus malfeitos. Apesar de recusar-se a acreditar em umaculpa coletiva, Leví acha que "o povo alemão, em seu conjunto" éplenamente culpado dessa omissão deliberada" (Leví 1987d, p.241). Outros consideram injusta uma reprovação como essa, poisimplica que se exijam qualidades excepcionais de pessoas co-

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rnuns. "Pode-se repreender o alemão médio de não ter sido herói,mas há poucos povos cujos cidadãos médios sejam heróicos",declara Bettelheírn, por exemplo. "Atribuir os crimes da Gestapoa espectadores desarmados significaria acusar de cumplicidadeos espectadores de um assalto sob pretexto de não se tereminterposto entre o agressor e a vítima" (Bettelheím 1972, p. 364).

Assim formulada, a questão parece-me algo abstrata. Levíesquece suas próprias distinções entre culpa legal e moral, cole-tiva e individual; mas Bettelheim não nos permite compreender anatureza dessa situação, na qual todos se vêem arrastados poruma cumplicidade criminosa. No entanto, encontro uma boaevocação em Outnzbourg: "Para reconquistar a paz, não bastacertificar-se de não ter tomado parte direta nos assassinatos e nastraições. Pois, quem matou? Não apenas aquele que golpeou, mastambém todos os que deram seu apoio ao Ódio. Pouco importa de

.que maneira. Repetindo sem refletir fórmulas teóricas perigosas.Levantando a mão direita sem nada dizer. Escrevendo covarde-mente meias verdades" (1980, Il, p. 188). Por isso, os habitantesdos países totalitários são de fato responsáveis.

(Seido que Guinzbourg estájalando. Eu erajovem, claro; maslembro-me que, pouco depois da morte de Stalin, excluímos doKomsomol um aluno da classe, porque, ao que parece, não de-monstrara muito sojrimento por tão triste acontecimento. Algumtempo mais tarde, pouco me lembro, ajamília - russos "brancos"emigrados para a Bulgária depois da Revolução - era chamadapara a URSS, e nunca mais ouvimos falar deles. Recentemente,soube que essa emigração jorçada significava deportação. Algunsanos mais tarde, já na universidade, assisti - dessa vez emsilenciosa desaprovação - à exclusão de um outro camarada,depois de não sei que pecado. Votei todas as vezes como mandavaojigurino. Se tivesse ficado na Bulgária, teria passado os 30 anosseguintes escrevendo meias verdades, bancando o esperto com"eles". Esse é um dos traços mais importantes dos regimes totali-tários: todo mundo torna-se cúmplice, todo mundo é ao mesmotempo prisioneiro e guarda, vítima e algoz.)

No terceiro círculo ao redor dos agentes do mal, encontram-se os países submetidos: populações como a da Polônta e a daFrança, em relação à Alemanha. Não se pode transferir para elasa responsabilidade dos agentes, uma vez que estes eram inimigos.Mas, em alguns casos, podemos nos perguntar se tais populaçõesnão se mostraram particularmente complacentes em relação aosabusos cometidos em seu próprio solo; a questão foi notadamentelevantada pelos poloneses, que viram de perto o extermínio dosjudeus nos campos da morte: Sua indiferença, imputada aotradicional antí-sernítísmo, não os torna culpados? Pois, como dizMarek Edelman, em certas situações "um inimigo não é só aqueleque mata, mas também aquele que permanece indiferente. [... ]~ão ajudar e matar são a mesma coisa" (Au sujet, p. 271).

Do apaixonado debate que cercou essa questão retenho que,como é freqüente, a verdade não se faz de uma única peça. Oantí-semítísmo desempenhou um papel, assim como a cupidez eo medo; as testemunhas polonesas não-judias acabaram habi-tuando-se ao inaceitável, e tiveram mais piedade de si mesmas doque dos judeus. Ao mesmo tempo, os gestos de ajuda recíprocaforam muitos, mesmo que os poloneses fossem particularmenteameaçados e perseguidos pelo ocupante. Um exemplo e umafórmula geral parecem-me resumir da melhor forma possível asituação. Um casal polonês "ariano" esconde uma judia durantea ocupação. Um dia, o marido, que nunca deixou de ser antí-se-mita, decide denunciá-Ia para livrar-se dela. Ameaçado por umamigo de sua mulher, renuncia ao projeto e deixa a casa. Depoisda insurreição de 1944, a população de Varsóvia é evacuada; ajudia já não pode ficar no esconderijo. Para protegê-Ia, a polonesaempresta-lhe o bebê: corre menor risco a mulher que se imaginaser mãe. E se assim a polonesa perdesse o filho? "Irena não lhefaria mal. Cuidaria bem dele" (Tec 1986, p. 55). A traição e ocuidado para com o outro coabitam o mesmo teto. Quarenta anosmais tarde, Walter Laqueur conclui que a atitude dos polonesesestá longe de ser a pior de todas nesse período sombrio: "Umacomparação com a França não seria absolutamente desfavorávelà Polônia" (Laqueur 1982, p. 107).

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Apesar das diferenças, a comparação com a França não étotalmente fora de propósito, em função da ocupação comum e dapresença dos judeus, tanto em um caso como no outro. Os queacusam a Polônía louvam, em eontr apar tida , a França, "Aexistên-cía de campos de extermínio seria impossível na França" declaraClaude Lanzmann peremptoriamente (Au sujet, p. 249), "os cam-poneses franceses não os suportariam" (idem, p. 232). Esse tipode afirmação no futuro do pretérito é, com certeza, totalmenteínvertfícável: em contrapartida, podemos lembrar alguns fatosreferentes à França. Por exemplo, que as leis raciais de Vichy erammais estritas que as de Nuremberg: ou que a deportação dascrianças era urna ínícíatíva.francesa, não alemã. No que' dizrespeito à simpatia espontânea da população, pude ler o que sesegue, em recente pesquisa sobre os campos de trânsito organi-zados para os judeus na Orléanaís. Uma mulher que na ocasiãoera uma garotinha (fora detida na batida policial do Vel d'Hív)conta-nos: "Os ônibus Vieram nos embarcar para o velódromo.Isso implicou uma longa travessia da capital, em plena luz do dia,sob os olhares aparentemente indiferentes, às vezes surpresos,dos parístenses'' (Conan, p. 62). Um relatório da prefeitura, nessamesma época, constata com alívío: "Foi com indiferença, namaioria das vezes, que os habitantes Viram passar os comboios deprisioneiros" (idem, p. 63).

Uma mulher que morava nas cercanias do campo lembra-sedo momento em que separavam as mães dos filhos: "Gritos, tantosgritos que nos perguntávamos o que acontecia" (idem, p. 65); acuriosidade esgotava-se na pergunta. Uma outra vizinha conta:"Lembro-me que passamos ao lado dessas pessoas aprisionadassem que nosso professor dissesse uma única palavra sobre eles"(idem, p. 67). O subprefeito da época, até hoje funcionário público,não se lembra de nada. As Viagens de um campo francês a outro,organizadas e escoltadas pela polícia francesa, dão-se nos mes-mos vagões de gado que pouco mais tarde conduzirão aquelascrianças para Auschwítz. Acredito que os franceses devam sergratos a Eichmann e seus colegas, por terem escolhido a Polôníacomo lugar de extermínio (por razões de ordem "prática", e nãoporque os franceses se recusariam a colaborar ou porque seriam

testemunhas incômodas); se não, ouviríamos mais uma vez que"impossível não é francês". Podemos repreender as testemunhaspor sua indiferença, mas não um povo mais do que os outros.

Éverdade, no entanto, que dois países europeus constituemexceção: a Dinamarca e a Bulgáría, de onde os judeus não serãodeportados. Na Dinamarca, os nazistas esbarram em uma recusaem colaborar que emana de toda a população, que, ao contrário,organiza-se para assegurar a fuga da minoria judia para a Suécia,país neutro. Na Bulgáría, permite-se a deportação dos judeus dosterritórios recém-adquiridos às expensas da Grécia e da Iugoslá-Via;mas, no que diz respeito aos judeus cidadãos búlgaros, serãorecenseados, expropriados e obrigados a morar fora da capital-portanto, nunca serão deportados para além das fronteiras dopaís. As razões para esses desenlaces felizes são semelhantes. Deum lado, ausência de tradição antí-semtta bem implantada noseio da população; de outro, a capacidade de alguns políticos detornar decisões corajosas e firmes. Na Dinamarca, o rei, o primeiroministro, o ministro da administração e o bispo declaram publi-camente que são contra toda e qualquer discriminação contra osjudeus; inúmeras pessoas de menor notoriedade participam dasoperações de salvamento. Na Bulgáría, também o rei, o více-pre-sidente da assembléia nacional, o metropolita de Sófia e mesmo oministro do interior declaram abertamente sua oposição às depor-tações; aqui também a população ajuda índtvídualmente osjudeus a se esconderem e a sobreviverem.

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Pode-se concluir, então, que esses povos são intrinseca-mente melhores do que os outros, que são feitos de umasubstância superior? Em se tratando dos búlgaros, particular-mente, caso em que me sinto envolvido. penso que não; de resto,as recentes perseguições à minoria turca mostram que os senti-mentos de exclusão e de discriminação não são totalmentedesconhecidos da maioria búlgara. Acredito que é preciso, antes,tornar responsável pelo curso da história uma feliz combinaçãode circunstâncias, da qual não está ausente a vontade humana.A posíçâo geográfica e política conta, assim como a tradição e osdados sociológicos; mas nada de decisivo teria acontecido se

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alguns indivíduos politicamente influentes não tiVesse.IIl_tído acoragem de defender suas convicções,_com o risco de perder aposição ou mesmo a vida.

Finalmente, no quarto círculo, encontra-se a população dospaíses livres, inimigos das ditaduras onde acontecem os crimes.Tais populações são, portanto, também livres (não vivem sob aameaça totalitária) e dispõem de fontes múltiplas de informação,o que lhes permite, se assim quiserem. ter acesso à verdade.Sabe-se, hoje, que as informações sobre os camposnazjstasdeextermínio furaram obloqueio desde o ínícíoíesse é o tema do livrode Laqueur); quanto aos campos soviéticos, nunca faltou informa-ção realmente, já desde os anos 20. Sabe-se também que asintervenções externas, quando aconteceram, surtiram efeito. Noentanto, foram praticamente ínexístentes, no que diz respeito aoscampos nazistas, e muito tardias, no caso dos campos soviéticos.Por quê?

Em se tratando do extermínio dos judeus, a resposta éparticularmente sinistra: porque os aliados temiam que Hitler ospegasse pela palavra e lhes remetesse alguns milhões de judeus,em vez de extermíná-Ios. Um documento do Foreign OJfice inglês,endereçado ao governo americano e datado de março de 1943afirma: "Existe a possibilidade de que os alemães ou seus satélitespassem da política de extermínio à de exclusão, visando, comº_fizeram antes da guerra, colocar outros países em situação difícil,inundando-os de imigrantes estrangeiros" (Wyman 1987, p. 145).Em outubro de 1943, um documento do Departamento de Estadoamericano precisa, por sua vez: "Há graves objeções a fazer, arespeito de tentativas diretas junto ao governo alemão, no sentidode pedir-lhe que nos confie essas pessoas. [...]O resultado eviden-te seria o de lançar no opróbrio os governos aliados, muito maisdo que o da Alemanha" (idem, p. 254). O mesmo tipo de argumentoé usado pelos canadenses. Os funcionários dos governos aliadospreferem que os judeus morram em outras terras a ter de seatulhar com eles em seu próprio país.

No caso dos campos soviéticos, as razões são outras: não seteme tanto ser inundado por emigrados indesejáveis quanto se

indispor com o governo soviético e, talvez, com os simpatizantesda ideologia comunista em sua própria casa. É uma minoria,evidentemente, mas uma minoria que sabe se fazer ouvir, uma vezque está particularmente representada entre os intelectuais. Apartir de 1949, na França, apesar dos esforços de alguns evadidosdos campos nazistas, como Davíd Rousset, Germaine Tillion eoutros, no sentido de lançar algumas luzes sobre esses outroscampos, ainda em atividade, a opinião pública mantém-se cética.Os membros do partido comunista, apesar de cidadãos de umpaís democrático, afirmam, durante o processo de difamação queRousset move contra ele, que "não é verdade", porque "não épossível". Maríe-Claude Vaíllant-Couturter, antiga deportada deAuschwitz, e também deputada comunista, declara em audiência,depois de apresentada a uma dezena de testemunhos irrefutáveis:"A questão não pode ser levantada, porque sei que não existemcampos de concentração na União Soviética" (Rousset et al. 1990,p. 194). Outros (Sartre) admitem a verdade dos fatos, mas recu-sam-se a divulgá-Ias: "Não se pode deixar Billancourtdesesperado." Assim, uns e outros lutam, na verdade, pela manu-tenção dos campos; por isso mesmo, também lhes caberesponsabilidade. Só em meados dos anos 70, depois da publica-ção dos escritos de Soljenitsyn, é que se esboça uma reviravoltano seio da intelligentsia francesa de esquerda.

Outro exemplo dessa resistência à verdade díz respeito a umrelato de sobrevivente: Un monde à part, de Gustaw Herlíng,Publicado em polonês em 1951 e imediatamente traduzido para oinglês com um prefácio de Bertrand Russell, será recusado portodos os editores franceses, notadamente pelas edições Galli-mard, apesar das intervenções insistentes de Albert Camus, umadas raras personalidades do mundo literário que denunciaram oscampos comunistas - o que lhe valeu sólidas inimizades. Tudo oque diZ respeito à União SOviética, é forçoso reconhecer, erasubmetido à censura. La pensée captive, livro de um outro polo-nês Czeslaw Milosz, será publicado em 1953, mas será ignoradopela intelligentsia francesa: por essa época, recorda -se Milosz em1981, "a maioria dos intelectuais franceses, irritados com a de-pendência de seu país da ajuda americana, punham suas

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esperanças em um mundo novo no Leste. governado por um chefede uma sabedoria e de urna Virtude incomparáveis: Stalin. Oscompatriotas que. tal como Albert Carnus. ousaram evocar a redede campos de concentração que eram a própria base de umsistema teoricamente socialista. foram caluniados e banidos peloscolegas" (1981. p. V).

Os intelectuais desse país livre fizeram-se cúmplices ativosdos campos de concentração comunistas, impedindo a divulgaçãoda informação que se referia a eles. informação essa que seria, aomesmo tempo, um meio de cornbatê-Ios. Mas poderiam me dizer:a distância entre Kolyma e Paris é muito grande; não podemosaproxímar tal situação daquela referente à população alemã. quepretendia ignorar Buchenwald e Dachau. Sem dúvida. mas osintelectuais parístenses dos anos 40 e 50 não viviam em um paístotalitário e tampouco tinham a desculpa dos moradores deWeimar ou de Munique: nenhuma repressão recairia sobre eles,se proclamassem a verdade.

Ao final desse percurso através dos círculos da cumplícída-de com o mal, uma conclusão algo sombria parece se impor: emconjunto, as testemunhas, próximas ou distantes. deixaramacontecer (ainda que exceções possam ser destacadas). Elas sa-biam, podiam ajudar e não o fizeram. Sempre e em todos oslugares houve indivíduos que dispensaram cuidados às vítimas;mas o grosso da população. incontestavelmente. deu provas deindiferença. Ligeiras diferenças que se podem observar nesse ounaquele país não são decísívas, mesmo que assim pareça aosolhos daqueles que sofreram rejeição por parte de uma populaçãoparticular. Alemães e russos. poloneses e franceses. americanose ingleses valem-se desse ponto de Vista: todos foram omissos, A'ínfelícídade de outrem I.l0S deixa fríos, se para remediá-Ia precisa-

."m~s renunciar a nossa tranqüilidade. ....._-

Na verdade. não era necessário ir até os campos para saberde sua existência. Todos os dias. a nossa volta, perpetram-se atosde injustiça. e nós não intervimos no sentido de impedi-Ias. Até1989. continuavam a deportar populações. na Romênía e naBulgáría. Os descendentes dos judeus perseguidos durante a

Segunda Guerra Mundial aceitam que haja em seu país duascategorias de Cidadãos, e que uns sofram impunemente a violên-cia dos outros. Resignamo-nos com as guerras presentes efuturas. Habituamo-nos a ver a pobreza extrema a nossa volta ea não pensar nisso. As razões invocadas são sempre as mesmas:eu não sabia, se soubesse não poderia ter feito nada. Também nósconhecemos a cegueira voluntária e o fatalismo. Nesse sentido(mas só nesse sentido), o totalitarismo nos revela o que a demo-cracia deixa na penumbra: no extremo da indiferença e doconformismo aparecem os campos de concentração.•..._--- ~- .... .

Será preciso exígír, então. que cada um tome para si toda aínfelícídade do mundo e não durma tranqüilo enquanto subsistiro menor traço de injustiça em algum lugar do mundo? Quepensemos em todos e de nada nos esqueçamos? Certamente. não.Uma tarefa como essa é sobre-humana e levaria à morte quem aassumisse. antes que pudesse dar o primeiro passo. O esqueci-mento é grave; mas também é necessário. Ninguém. salvo ossantos. pode viver em estrita verdade, renunciando a todo confor-t2.e atodo consolo. Por isso mesmo, poderíamos nos dar umobjetivo mais modesto e mais .acessível: em tempos de paz, dis-pensar CUidados a nossos próximos; e contudo, em tempos deinfortúnio e desespero. encontrar em nós mesmos a força paraestender esse grupo além dos limites habituais, reconhecendocomo próximos até mesmo aqueles cujos rostos nos são desconhe-cidos.

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Vícios cotidianos

Voltemos às manifestações do mal. Em face das persegui-ções e das humilhações sofridas. era importante para as vítimasafirmar: somos seres humanos tanto quanto vocês. Si c'est unhomme. de Primo Leví,L'Espêce humaine, de Robert Antelme, sãopregações em favor da humanidade das vítimas; é nessa humani-dade comum que residem as esperanças dessas últimas. "É

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Talvez não haja mérito algum em fazer uma tal constataçãoquando não se está diretamente atingido pelos acontecimentosem questão; mas a coisa não é nada fácil para os que a sofreramna carne. Um prisioneiro de Auschwítz conta que ele e seuscompanheiros formulavam-se constantemente a questão relativaa "se o alemão era um ser humano como outro qualquer. Aresposta era sempre categórica: 'Não, o alemão não é um homem,o alemão é um boche, um monstro, e mais que isso: um monstroconsciente de sua monstruosidade" (Laks 1989, p. 157). Assim, lio que se segue com admiração ainda maior por tratar-se do diáriode Etty Hillesum. Um amigo lhe diz: "O que podem querer oshomens, destruindo assim seus semelhante?" Ela replica: "Oshomens, os homens ... Não esqueça que você é um deles. [...] Oshorrores e atrocidades não são uma ameaça misteriosa e longín-qua, externa a nós, mas estão muito perto, e emanam de nósmesmos, seres humanos" (Híllesum 1985, pp. 102-104). Isso sepassa em uma quarta-feira, 19 de fevereiro de 1942, pela manhã,durante uma parada do trem em Amsterdã.

recorda-se dos crimes de que ele mesmo era capaz. Sabemosagora que esse é o ponto de partida obrigatório da ação moral, eele diz: "Nada favorece tanto o espírito de compreensão quanto aslancínantes reflexões sobre nossos próprios crimes." Trinta anosmais tarde, período em que foi preso e deportado, conclui: "Aospoucos, descobri que a linha que separa o bem do mal não separanem os Estados nem as classes nem os partidos, mas atravessa ocoração de cada homem e de toda a humanidade" (Soljenitsyn1974, 11,p. 459). Se essas pessoas estivessem em nosso lugar,conduzir-se-iam como nós; se estivéssemos no lugar delas, pode-ríamos nos tornar como elas.

porque somos tão homens quanto eles que os SS serão definitiva-mente impotentes diante de nós. [... 10 carrasco [...] pode matarum homem, mas não pode transformá-Ia em outra coisa" (Antel-me 1957, pp. 229-230). Mas quem diz "somos homens como eles"deve poder concluir, hoje, quando a humanidade das vítimas éplenamente reconhecida, mas a dos carrascos parece problemáti-ca, que eles também são homens como nós. Os agentes do maleram pessoas comuns, nós também: assemelham-se a nós, somoscomo eles.

Em geral, é muito penoso admitir essa verdade. É infinita-mente mais cômodo, para cada um de nós, pensar que o mal nosé externo, que não temos nada em comum com os monstros queo cometeram (encontra-se a mesma reação diante dos crimes"monstruosos" que esporadicamente se produzem atualmente).Se preferimos esquecer Kolyma e Auschwítz, é por medo de verque o mal dos campos não é estranho à espécie humana; é essemedo, também, que nos faz preferir as (raras) histórias em que obe~ triunfa. Os psícanalístas que se debruçaram sobre as expe-riências relativas aos campos de concentração, como AlexanderMitscherlich ou Bruno Bettelheím, tinham razão em insistir arespeito: tais práticas do mal não nos são tão estranhas comodesejaríamos, e é por esse motivo, precisamente, que nos recusa-mos a admiti-Ia e optamos de bom grado pela tese damonstruosidade.

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Outros levam muitos anos para fazer a mesma descoberta.Leví defende a humanidade do prisioneiro, em 1946, em Si c'estun homme; mas só 40 anos mais tarde, em 1986, consegueescrever, em Les naujragés et les rescapés: "Eram feitos do mesmotecido que nós, eram seres humanos medianos, medianamenteinteligentes, de uma maldade mediana: salvo exceções, não erammonstros, tinham o nosso mesmo rosto" (Leví 1989b, p. 199).Soljenitsyn lembra-se dos anos em que era oficial do ExércitoVermelho e conduzia sua bateria através da Prússia devastada;

Não é o caso de nos equivocarmos a respeito do sentidodessa afirmação. Em nenhum caso, deve-se (ou pode-se) deduzirque então não há diferença entre culpados e inocentes, ou entrecarrascos e vítimas. Arendt, que tratou da banalidade do mal,sempre condenou uma interpretação de sua fórmula como que-rendo dizer: há um pequeno Eíchrnann em cada um de nós,portanto somos todos parecidos. Fazer isso significaria que não seadmite a distinção - que, no entanto, está na base da justiça _entre a capacidade de agir e a própria ação; nem entre grausincomensuráveis de uma única e mesma característica. Primo

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Leví insistiu nesse ponto: que os carrascos sejam tão humanosquanto nós não permite concluir (à maneira de alguns cineastasconfusos ou perversos, como Lílíana Cavani) que "somos todosvítimas ou assassinos" (Leví 1989b, p. 48): isso é apagar, de umapenada, a culpa de uns e o sofrimento de outros, é renunciar atoda e qualquer justiça, em nome de uma .ídéía _caricaturatgo

\inconsciente. Uns e outros são de mesma natureza, é verdade,(mas a justiça sanciona QS atos efetivados, e nada mais. Nisso,difere da compaixão, que se exerce em reúiçâü aos-seres; e commais razão difere da antropologia, que estuda mais as disposiçõeshumanas do que esta ou aquela ação particular. A antropologiaaspira a compreender; o direito permite julgar. Trata-se, como sepode perceber, de uma estreita trilha entre dois abismos, e ornal-ententído aqui é fácil. Mas o que está em jogo é de grande

.monta: trata-se de recusar a visão maniqueísta do mal, de rejeitar:a aplicação rígida da lei do terceiro excluído. É preciso tentarmanter juntas e articuladas essas duas proposições que só apa-rentemente se contradizem: os crimes são desumanos, mas oscriminosos não; esses seres ordinários cometeram atos extraordi-nários.

Philip Hallíe, que estudou em detalhe um dos raros casosde bondade durante os anos sombrios, o de André Trocmé e seusajudantes (voltarei a eles). afirma: "Há uma diferença íntranspo-nível entre os que são capazes de torturar e matar crianças e osque só podem salvá-Ias" (Hallie 1980, p. 373). Espontaneamente,temos vontade de dar-lhe razão: há um abismo entre "ele" e "nós";examino-me tão honestamente quanto possível e creio poderdeclarar em absoluta boa fé: eu nunca jogaria crianças vivas emfornos crematórios. Penso, no entanto, que essa formulação obs-curece o problema, ao reter apenas os dois extremos de umcontinuum (pais que nunca torturaram seus filhos - claro quecom muito menos crueldade - são raros) e ao eliminar qualquerconsideração sobre as circunstâncias particulares da ação (osprocessos de acomodação e endurecimento). Ora, as testemunhassão unânimes em descrever a força desses processos. RudolfVrba, o resistente, fugitivo de Auschwítz, uma pessoa admirável,conta suas impressões de uma sessão de pauladas: "Eu me

acostumei a ver essas punições desde o primeiro dia. Chegueimesmo a recebê-Ias com alívio, pois enquanto Koeníg e Graff [ostorturadores] estavam ocupados, eu podia roubar e assegurarminha sobrevivência" (Vrba 1988, p. 164). Margarete Buber-Neu-mann admite: "Em 1944, quando por acaso eu devia passar pelaenfermaria e atravessava os corredores abarrotados onde se ou-viam os estertores dos moribundos, percorria o caminhomartelando um único pensamento: não mais ver aquele espetá-culo, não ouvir mais aqueles gemidos" (Buber-Neumann 1988, p.42). E Bettelheírn a meu ver tem razão em concluir: "Alguns gritosangustiam-nos, impulsionam-nos a agir em socorro de um serdesesperado. Gritos que se prolongam durante horas simples-mente nos dão vontade de fazer calar quem grita" (Bettelheírn1979, p. 323) .

Mas voltemos ao essencial. Etty Hillesum, uma das vítimasde Eichmann, jamais agiria como ele, em nenhuma circunstância;é observando a si mesma. porém. que ela consegue compreenderEichmann e assemelhados. O personagem prtncípal de Mainte-nant oujamais, o judeu Mendel. mesmo vítima das perseguições,inquirindo a si mesmo, diz: "Talvez todos nós sejamos o Caírn dealgum Abel e o matemos em seu campo sem o saber" ILeví 1983,p. 81). Falando de si mesmo e de seus companheiros de prisão.Leví conclui: "Éramos potencíalmente capazes de construir umamassa infinita de dor [...].Bastava não ver, não escutar, não fazer"(Leví 1989b, p. 85). Para que o mal se realize não basta a ação dealguns, é preciso também que a grande maioria fique de lado.indiferente; diSSO.sem dúvida, somos todos capazes.

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Que sabemos a mais sobre a natureza humana, depois deKolyma e de Auschwitz? O homem é fundamentalmente mau, lobodo próprio homem, como queria Hobbes, ou é naturalmente bom,como Rousseau afirmava? De minha parte, julgo que não se pode!!r~dessas experiências extremas uma nova lição sobre a natu-rezadohomem. Nem as teorias otimistas do progresso nem asapocalípticas do declínio podem reivindicar a experiência doscampos. O totalitarismo é um regime incontestavelmente pior doque a democracia, eis o que (hoje) está claro; quanto aos seres

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humanos, não são, por natureza. nem bons nem maus, ou entãoos dois: o egoísmo e o altruísmo são igualmente inatos. nAnatu-reza do homem sofre uma mutação no cadinho do Estadototalitário?", perguntava-se Grossman (pensando mais na alter-nativa liberdade versus submissão do que na oposição bem versusmal); e respondia negativamente: "O homem, condenado à escra-vídáo, é escravo por destino, e não por natureza" (Grossman 1983,pp. 199-200). O mal não é acidental. está sempre lá. disponível.pronto a manifestar-se; basta não fazer nada. para que ele ernerja.O bem não é uma ilusão, preserva-se até nas mais desesperadorascircunstâncias. Não há mais razões para resignar-se ao cinismodo que para comprazer-se em devaneios ingênuos.-- ----

Familiarizamo-nos com o que chamei de Virtudes cotidia-nas. os atos morais que cada um de nós sabe praticar. sem comisso tornar-se santo ou herói. Precisamos, agora. encarar a sérieoposta. dos vícios cotidianos, dos traços de conduta que nãofazem de seus portadores nem monstros nem feras ou seres deexceção. e que todos nós possuímos também; traços esses que assituações extremas dos campos totalitários trazem à l~z. mas quetambém se manifestam presentemente. em circunstâncias muitomais amenas. Partirei de algumas características que me atingemmais do que outras: a fragmentação do comportamento. ou aruptura entre comportamento e conscíêncía: a despersonalízaçáocios seres aprisionados nas cadeias do pensamento instrumental;o prazer pelo poder. Esses conceitos. talvez apenas ternas'dereflexão. foram deliberadamente escolhidos em um nível médío deabstração: são mais gerais do que os atos observáveis. mas nempor isso remetem a uma teoria unífícada, psicológica. antropoló-gica ou política. que explicaria por uma única causa todos os atos.O que me interessa, mais uma vez, é o enraizamento banal dosatos excepcíonaís. as atitudes cotidianas que poderiam faz_~z_-º-enós uns "monstros". se tivéssemos de trabalhar em um campo deconcentração. - - -

8FRAGMENTAÇÃO

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Formas de descontinuidade

Tanto os sobreViventes de Auschwítz quanto os observado-res mais tardios surpreendem-se com um traço comum a todosos guardas. inclusive os mais cruéis: a incoerência dos atos. Emum mesmo local, à vezes em um mesmo dia. e até na mesma hora,uma pessoa leva para a morte um prisioneiro e dispensa cuidadosa um outro. Não é que bem e mal se equilibrem - este últimoultrapassa aquele de longe -. mas não há nenhum guarda queseja completamente "mau". Todos parecem ter um humor cons-tantemente instável, se assim se pode dizer, sujeito à influênciadas circunstâncias - a ponto de o termo "esquízofrenía" impor-separa descrevê-Ias. muito embora nenhum deles esteja acometidode qualquer doença mental; trata-se dessa esquízofrenía soclalespecífica dos regimes totalitários. "Contra toda lógica", observaPrimo Leví, "piedade e brutalidade podem coexistir no mesmoindivíduo e no mesmo momento" (1989b, p. 56).

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Tomemos como primeiro exemplo de descontínuídade umextrato do diário íntimo de Johann Paul Kremer, médico emAuschwítz em 1942. Em 5 de setembro ele escreve: "Aomeío-día,assisti a uma ação especial no campo das mulheres (muçulma-nas) - o mais horroroso dos horrores. Hschf. [= subofícíall Thílo.cirurgião militar, tinha razão quando me disse, hoje, que nosencontrávamos no anus mundi. À noite, por volta das 20 horas,aconteceu uma outra ação especial em um destacamento daHolanda." No dia seguinte, 6 de setembro, ele anota: "HOje,umaexcelente refeição dominical: sopa de tomates, meio frango combatatas e repolho roxo (20 g de gordura), sobremesa e um magní-fico creme de baunilha" (1984, pp. 215-217). Será a mesma apessoa que em um dia constata o mais horrível dos horrores, eanota a expressão anus mundi. que se tornaria célebre, e que nodia seguinte só pensa em transcrever o cardápio do jantar?Apenas 24 horas se passaram. Na verdade, a transcrição é aindamais brutal: ao inscrever os acontecimentos de 6 de setembrosobre a página, Kremer não podia deixar de reler a anotação dodia precedente, imediatamente ViZinha.Ele a releu e depois acres-centou a outra: uma execução que provoca horror, um bomjantar.

O mesmo acontece com outros personagens de reputaçãosinistra. O torturador Boger às vezes ajuda os judeus que traba-lham sob suas ordens. O Laqetfúhrer de Birkenau,Schwarzhuber, é diretamente responsável pela morte de milharesde pessoas; mas, um dia, intervém para salvar a vida de 68meninos de Teresín, destinados à câmara de gás. O dr. Frank trazajuda para os judeus à sua volta, o que não o impede de tomarseu lugar na rampa dos que chegam de trem, onde participa das"seleções", outro nome das condenações imediatas à morte. Opróprio Mengele é capaz, entre uma "seleção" e outra, de dispen-sar os maiores CUidados a um doente. Os humores, na verdade,não mudam ao acaso; esses movimentos aparentemente caóticosobedecem a quatro regras. Um preso que o guarda conheçapessoalmente tem mais chance de provocar compaixão. Algunsdão um fundamento ideológico à incoerência de seus comporta-mentos: um vigilante determinado poderá ser condescendente

com os russos e os poloneses, mas Jmpiedoso com os judeus. Ascoisas não se passam de outra forma nos outros campos, einclusive fora deles: Hitler, segundo Speer, passava da intolerân-cia à benevolência em um instante.

Essa convivência do bem e do mal na mesma pessoa podenos conduzir, segundo nossa maneira de ver, quer à esperançaquer ao pessimismo. O pior dos seres tem algum lado bom;inversamente, a presença da bondade absolutamente não garanteque o mal não surja. O mais assustador, entre os informantes eos delatores, escreve Grossman, "é o bem que há neles; o maistriste, é que são cheios de qualidades, de virtudes. [... 1 Isso é quedá medo: há muito de bom nesses seres humanos" (Grossman1984, p. 94).

(Durante os últimos anos de vida de minha mãe, eu falavacom meu pai quase sempre ao telefone. Ele próprio estava aturdidocom suas incoerências. Às vezes, sentava-se ao lado de minhamãe, que já não reconhecia ninguém além dele, e, para acalmá-Iaou agradá-ia, contava-lhe o que lhe parecia serem os melhoresmomentos de sua vida em comum: quando, na época do noivado,ele vinha, tímido, à casa dos pais dela; quando nasceram os ftlhos;quando os dois fizeram um cruzeiro no Danúbto. Minha mãe deviaadvinhar a emoção na voz dele, mesmo que mal compreendesse aspalavras, e começava a chorar; ao vê-Ia assim, ele também sepunha a chorar. No momento seguinte, ele percebia que, incontinen-te, ela molhara as roupas; e punha-se a injuriá-Ia, convencido deque ela fazia aquilo de propósito, só para chateá-lo. Agora que elamorreu, ele recuperou a coerência: não se lembra mais dos momen-tos de cólera.)

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A essa primeira forma de fragmentação, ou de momentos dealternâncía entre malevolência e benevolência, acrescenta-se uma,segunda, mais sistemática, que provém do fato de que, como jávimos, O cuidado para com o outro e a atividade do espírito nãocaminham necessariamente juntos. Já sublinhamos o quanto,nos campos nazistas, os guardas eram atingidos pela músícn.Mas o mesmo Kramer, que chorava escutando Schumann, c quefora livreiro antes de tornar-se comandante de Bírkcnau, cr:l

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capaz de afundar o. crânio de urna prisioneira com um porreteporque ela não andava suficientemente rápido; em Struthof, ondetrabalhara antes, ele mesmo empurrava as mulheres despidas nacâmara de gás, e observava sua agonia por uma janela especial-mente construída; em seu processo, declarou: "Não sentinenhuma emoção ao executar esses atos" ITíllíon 1972, p. 209).Por que a música o fazia chorar, mas não a morte de sereshumanos seus semelhantes? A mesma Maria Mandel, que correpara escutar a áría de Madame Butterjly, ordena sessões depauladas, e ela própria se encarrega de bater, além de incitar osmédicos a praticarem "seleções" mais freqüentes. Os atos domelômano Mengele, que frequentemente assobiava ártas de Wag-ner, são suficientemente conhecidos. Pery Broad, outro guarda,toca Bach e tortura os prtsíoneíros do bunker; Eíchmann toca

-Schumann e organiza a deportação dos judeus. Não que a músicadeixe de ser um bem; mas, graças à fragmentação, essa atívídadedo espírito deixa de ter qualquer conseqüência sobre o conjuntodo comportamento, e esse pequeno bem acaba sendo largamentecontrabalançado pelo mal.

Nos campos staltnístas encontram-se com mais freqüênciaos amantes de literatura; mas o amor a Puchkin não tornaninguém mais moral do que o amor a Bach. As grandes tiragensque as edições dos clássicos russos e estrangeiros atingiam naURSS, que provocavam a admiração dos intelectuais ocidentais eassim facilitavam a aprovação do comunismo entre eles, nãodiminuíam minimamente a população dos campos: esta tambémchegava a vários milhões. E a Alemanha tampouco era, evidente-mente, um país sem cultura; como bem observa Borowski, "nasCidades alemãs, as Vitrinas das lojas são cheias de livros e objetosreligiosos, mas a fumaça dos crematórios ainda flutua sobre asflorestas" (Borowski 1976, p. 168). E os que fizeram cursossuperiores não perdem em crueldade para as pessoas iletradas, apartir do momento em que uns e outros praticam suas atívídadesespirituais de forma completamente estanque. Só podemos mes-mo sorrir, diante da íngenuídade dos acusadores no processo deNurernberg: referindo-se aos membros dos Einsatzkommandos,as unidades móveis de matança, na retaguarda do jront na

Rússía, constatavam, como agravante, o fato de não se tratar de"indígenas incultos, incapazes de apreciar os melhores valores daVida", mas de pessoas que tinham recebido uma educação supe-rior: oito advogados, um professor universitário, um dentista ...Como se a moral fosse aprendida na universidade!

Público e privado

Uma outra forma de descontmutdade, entre esfera públicae esfera privada, parece desempenhar um papel central noscrimes totalitários. Estendendo a noção de inimigo de forma aincluir não só os soldados que nos combatem, como também osadversários no interior do próprio pais, o totalitarismo generalizao estado de guerra e, com isso, a seguinte separação, caracterís-tica do guerreiro: "Homens que, na vida privada, sãoextremamente escrupulosos em relação à justiça e ao direitoconvencionais, tornam-se, na guerra, capazes de destruir a Vidae a felicidade dos outros, sem nenhuma crise de consciênciaparticular" (Glenn Grey 1970, p. 172). Tal separação é familiar aquase todos os guardas: eles continuam a levar uma Vida privadae familiar cheia de amor e de cuidados, enquanto com os prísío-neíros comportam-se com a maior das brutalidades.

Borowski conta, por exemplo, a história do kapo ArnoBoehm, que "administrava 25 chibatadas por cada minuto deatraso ou cada palavra pronunciada depois do toque de recolher;o mesmo que sempre escrevia aos velhos país, em Frankfurt,cartas curtas, mas comoventes, cheias de amor e saudade" (Bo-rowski 1964, p. 149). No processo de Kramer, a esposatestemunha: "Os filhos eram tudo para meu marido" (Langbein1975, p. 307). Schwarzhuber cuida do filho de seis anos e pendu-ra-lhe um cartaz no pescoço, para que não seja atirado por enganona câmara de gás, quando de suas andanças em Bírkenau ... Atémesmo o sinistro Hoess recupera alguns traços humanos, quandofala dos filhos em suas últimas cartas.

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Mandel, a Vigilante em exercício de Bírkenau, não se con-tenta em proteger a orquestra feminina de Alma Rase, comoKramer já fazia; e tem um fraco pelas crianças: não as suas, poisnão as tem, mas as dos outros. Um dia, ela descobre duascrianças judias que a mãe tentava esconder, e convoca-as a seuescritório; a mãe espera tremendo, diante da porta. "Cinco minu-tos mais tarde, elas voltaram, cada uma carregando um pacotecom bolo e chocolate [...). Ela era capaz de reações normais, dareação maternal de uma mulher, assim como podia transformar-se em uma besta selvagem" (Língens-Reíner 1948, p. 146). FaníaFénelon conta um outro episódio, que não termina tão bem:Mandel salva uma criança polonesa da câmara de gás e cobre-ade carinhos e presentes; pela primeira vez, as prtsíoneíras vêem-na rir. No entanto, alguns dias mais tarde, ela entraparticularmente sombria na barraca e pede o duo de MadameButte1jly. E então as prisioneiras ficam sabendo que ela teve deseparar-se da criança e entregá-Ia para a morte. Em geral, pensaFénelon, "o cérebro dela, como o de todos os alemães, é compar-timentado como um submarino, formado de câmaras estanques,a água pode invadir uma delas sem que as outras sejam atingidas"(Fénelon 1976, p. 346). Ora, nesse caso, a câmara da "Vidaprivada" corria o risco de transbordar para a câmara da "Vidaprofissional"; foi preciso, então, restabelecer os compartimentosestanques. Talvez; mas seriam os alemães os únicos a terem océrebro organizado dessa maneira? E todos os alemães obedece-riam o mesmo modelo?

outra coisa que não os tíquetes normais (outra exceção, em ummundo onde reina a corrupção). O amor à família parece equili-brar, em seu espírito, os inconvenientes da situação profissional:"Nada é impossível, enquanto tiver você, minha bem-amada",escreve para a mulher. Quanto mais próximas as seleções, maisas cartas enchem-se de perguntas sobre os primeiros dentes dascrianças, ou de comentários sobre suas fotos; parece mesmoestabelecer uma relação mais forte entre as duas séries, como seele só trabalhasse em Auschwítz movido pelo amor aos filhos: "Épreciso fazê-lo pelo amor a nossos filhos, meu anjo, por nossosfilhos" (Lifton 1989, p. 435). A filha guardou a lembrança de umpai amoroso, e o desejo de compreender o passado toma a formade uma pergunta: "Um homem bom pode fazer coisas más?"(idem, p. 450).

Dispomos de documentos pessoais - cartas, entrevistas oulembranças - de algumas pessoas que fizeram essa separaçãoentre o público e o privado, o que nos permite observar mais deperto seu funcionamento. RJ. Lifton analisou em detalhes o casodo dr. Eduard Wírths, médico-chefe de Auschwítz. Ele adere àdoutrina nazista e, portanto, professa o antí-semttísmo. mas,diferentemente do que acontece com numerosos colegas, isso nãoo impede, quando ainda médico de província, de tratar de judeus.Em Auschwítz, pratica experiências "médicas" com os prisionei-ros; mas também se torna conhecido pela honestidade pessoal:para seu próprio abastecimento, recusa-se a utilizar qualquer

Gitta Sereny entrevistou longamente na prisão o ex-coman-dante de Sobibor e de Treblinka, Franz Stangl. Trata-se de umpolicial zeloso, muito mais carreirista do que fanático, que, deinício, trabalha nos "institutos" de eutanásia e, depoís, nos cam-pos de extermínio. Ele também adora a mulher; nas primeirasseparações, escreve-lhe todos os dias; mais tarde, estende esseapego aos filhos. Nas entrevistas, ele mesmo explica sua Vida daépoca por uma fragmentação que lembra a imagem do submarinode Fénelon. "Eu só podia Viverse compartimentasse o pensamen-to" (Sereny 1975, p. 175). Queimar cadáveres não é umpassatempo agradável; agarra-se então à idéia de que não é elequem acende o fogo, mas supervisiona as construções ou organizaa expedição do ouro encontrado com as vítimas para Berlim."Havia centenas de meios de pensar em outra coisa. Utilizei todos.[...] Forçava-me à concentração no trabalho, trabalho e maistrabalho" (idem, p. 214).

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Stangl quer convencer os que lhe são próximos, assim comoa si mesmo, de que esse trabalho é ainda mais compartimentadodo que o é de fato, de que é possível ocupar-se da chegada dostrens, mas não do destino de seus ocupantes, da construção deedifícios, mas não das atividades que neles se desenvolvem:"Estou presente, mas não faço nada para ninguém", declara .1

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mulher (idem, p. 145). Um dia, ela fica sabendo a verdade; ficachocada (recusa-se a manter relações sexuais com ele durantevários díasl), mas acaba resignando-se: ele é de fato um maridomuito bom. Afilha, muito mais tarde, quando o pai está na prisão,declara a Sereny: "Era meu pai. Ele me compreendia. Esteve domeu lado em meus piores momentos e, quando achei que minhavida estava arruinada, ele me salvou. Uma vez, disse-me o seguin-te: 'Lembre-se, lembre-se sempre, se algum dia você precisar deajuda, irei até o fim do mundo por você.' Eu também irei até o fimdo mundo por ele [... ]. Eu o amo - e sempre amarei" (idem, p.375). É estranho: as palavras de Stangl reportadas pela filhalembram as que, sem dizê-Ias, Pala Lífszyc viveu: ela de fato foi aofim do mundo pela mãe. Foi Stangl quem presidiu o assassinato.de Pola e de sua mãe. Se as círcunstáncías assim quisessem, teriaido a Treblínka com a filha, para receber o mesmo tratamento?Talvez.

pensam, não desculpa ninguém e não explica nada. De minhaparte, estou convencido de que esses testemunhos dizem a verda-de e que são necessários para compreender a personalidade dosguardas: tenho a impressão que eles têm necessidade de fragmen-tar a vida tanto para que a piedade espontãnea não entrave seu"trabalho" quanto para que sua vida privada louvável resgate, aseus próprios olhos, o que possa haver de perturbador em suavida profissional.

(Afllha de Klaus Barbie,jílmada durante o recente processo,exprimia-se mais ou menos da mesma maneira. Não pude evitaradmirar esse amor que se declara superior à jusiiça. Gostaria queminha ftlna pensasse a mesma coisa, queria dizer-lhe as mesmaspalavras que Stangl, esse assassino em massa. Em caso denecessidade, eu desejaria que estivéssemos prontos para ir até o

fim do mundo um pelo outro. Não penso que ela teria de me perdoarcrimes semelhantes; mas sempre haverá coisas para as quaisdeveráfechar os olhos. Tal proximidade me perturba. Não s6 Stanglé humano, mas ainda me reconheço nele. Para não corar devergonha, deverei acreditar também que a vida pode ser comparti-mentada como na imagem do submarino? Como um homem bompodefazer o mal? Ou antes: Como o mesmo homempodefazer aomesmo tempo o bem e o mal? Essa é a pergunta que um recentemelodrama, o filme Musíc Box, de Costa Gavras, não conseguiusequer fotmular.)

Que um indivíduo seja Virtuoso na vida privada não signifi-ca que sua vida pública - e, conseqüentemente, as doutrinas queprofessa - sejam beneficiadas com isso: esse é o argumentodesenvolvido por Vassili Grossman a propósito de Lenin, o funda-dor do sistema soviético de campos. De certa forma, Stalin é umadversário cômodo: a brutalidade pessoal está em harmonia coma política de extermínio por ele empreendida. Mas Lenín seduzpela personalidade. "Nas relações privadas, [... ) Lenin sempredava mostras de delicadeza, de doçura. de polidez. [...) Essepolítico ambicioso, capaz de tudo para satisfazer a sede de poder,era um homem extraordinariamente modesto. Não tentou con-quistar o poder para si" (Grossman 1984, pp. 208-209). Em casoscomo esse, somos tentados a desculpar o sistema pela pessoa: umhomem tão honesto. que não pensa em enriquecer (como Wírths,vivendo com seus tíquetes de racionamento), um homem tãoatencioso em suas relações pessoais (como Stangl com a família),um idealista sincero pode realmente provocar o mal?

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Diante de tais testemunhos, alguns tendem a colocá-los emdúvida; outros, a colocá-Ias de lado, considerando-os como algosem nenhuma relação com os crimes de que são acusados indiví-duos como Wírths, Stangl ou Barbie: ser um bom pai de família,

A resposta, evidentemente, é sim; é o mesmo Lenin quedesenvolve a idéia de inimigo interno, que organiza a repressão,que fustiga a compaixão. Sim, pois é possível que "o homempolítico e o homem da vida privada apareçam como duas figurasinversas: mais e menos, menos e mais" (idem, p. 210). Afragmen-tação, em Lenín, não é menor do que a de Stangl. E, como se tratade um homem político bem-sucedido em seus empreendimentos,cuja personalidade pública atingiu infinitamente mais indivíduosdo que sua pessoa privada, esta pesará muito menos do queaquela em nossa apreciação global do indivíduo. Os traços deintelectual, os gostos modestos, a maneira ascética de viver, não

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influenciam nem desculpam seus atos políticos, mas talvez con-tribuam para convencer a ele mesmo da justeza de suas idéias,como acontecerá mais tarde com seus admiradores.

Já evoquei uma outra forma de ruptura entre as.Çol).~da pessoa e seu modo de víver, a do fariseu, que proclama belos

.prtncíptos sem cuidar de submeter a eles suapróprtaconduta,Essa ruptura, que impede a ação propriamente moral e em seulugar produz o moralísmo, é familiar também pela atitude denumerosos intelectuais (Rousseau diria "filósofos"), que pregam agenerosidade ou a tolerância e de quem ficamos sabendo, em umaconfidência, que na vida privada se conduzem como seres irascí-veis e interesseiros. Entre eles, deparamo-nos, em suma, comuma distribuição inversa à que se observa nos campos: a doutrmaprofessada é Virtuosa, mas não a pessoa. É preciso, então, fazercomo dizem, não como fazem; é a superficie sedutora, ao menosaos olhos do próprio sujeito, que se considera capaz de resgataras imperfeições do núcleo interno: em casa, bato em minhamulher, é verdade, mas externamente me bato contra o imperia-lismo americano. De resto, essa figura da fragmentação não estáausente dos campos: Henry Bulawko recorda-se do chefe deequipe Mosche, que, semelhantemente ao kapo Arno Boehm, trazsempre um cassetete ao alcance da mão. "Ele era muito religioso,fazia suas preces três vezes por dia - e todos os dias surravaalguém" (Langbeín 1975, p. 171). O Einsatzkommando II b, queage na região de Símferopol, na Rússía, recebe ordem para matartrês míl judeus e ciganos antes do Natal; a ordem é executada comespecial rapidez, para permitir que as tropas compareçam àcerimônia de celebração do nascimento de Cristo; o chefe docomando, Otto Ohlendorf profere um emocionado discurso paraos soldados.

No fundo, para aquele que tem algo a reprovar em si, poucoimporta se esse algo se situa na esfera pública ou privada; o queconta é que existam duas esferas e que uma - que então seproclama como constituindo o essencial de seu próprio ser -possa resgatar a outra, sobretudo aos próprios olhos. "O sinistrodr. Otto Bradfisch, ex-membro dos Einsatzgruppen, que presidiu

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o assassinato de pelo menos 15 mil prisioneiros, declarou a umtribunal alemão que sempre 'se opôs, em foro íntimo' ao que fazia."Um ex-Gauleiter também declara que "apenas sua 'alma oficial'teria cometido os crimes que lhe valeram o enforcamento em1946. A 'alma privada' sempre o reprovara" (Arendt 1966, pp.143-144). Não se trata de aceitar esses argumentos como descul-pas, mas que sejam apresentados como tais nos permitecompreender como as pessoas comuns podem se tornar assassi-nas - ou como o habitante de um país totalitário pode reconciliarsua inevitável submissão à ordem exterior com um pouco derespeito por si mesmo.

Causas e efeitos

Como dispensou-se muito mais atenção ao caso dos camposnazistas do que ao dos campos comunistas, freqüentemente,tendeu-se a explicar a fragmentação no comportamento dos guar-das pelo caráter nacional alemão, ou pela história alemã. Osalemães cultuariam apenas a interíoridade e a intimidade, ficandoindiferentes aos atos e comportamentos em público _ e isso aomenos desde Lutero, pois o fundador do protestantismo procla-mou a separação entre a vida religiosa e a Vida prática, e quispreocupar-se exclUSivamente da primeira: só a fé conta, não osatõ§.--Para Fama Fénelon, como vimos, todos os alemães têm océrebro compartimentado; a alemã Alma Rose, aliás, reprova-lheo defeito inverso: "Vocês, franceses, [...] parecem ignorar que háuma hora para cada coisa, [... J vocês misturam tudo" (Fénelon1976, p. 177). Mas hoje sabemos que, apesar de sua tendência àmistura, durante a guerra os franceses sabiam separar muito bemseus deveres familiares e a indiferença a respeito das criançasJudias deportadas para Auschwítz. Sabemos também que o cará-ter alemão não permite explicar as atrocidades nos camposcomunistas. Por fim, sabemos que, quaisquer que sejam os su-postos defeitos do caráter nacional alemão, os campos deconcentração só existiram na Alemanha durante os dois regimestotalitários, o nacional-socialista e o comunista.

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o fato de os campos, ao contrário das prisões para forçados,só existirem no século xx, poderia incitar-nos a investigar setraços mentais como a fragmentação não estão, antes, ligados aoutras características da sociedade moderna. É tentadora a apro-ximação entre a mentalidade fragmentada e a especializaçãocrescente que invade não só o mundo do trabalho, mas tambémo das relações sociais. EVidentemente, a especialização no traba-lho existe desde a época neolítíca, e não foi Marx o primeiro aestigmatizá-Ia, mas a complexidade crescente das tarefas a au-mentou enormemente, no decorrer do século que ora finda. Quempode se julgar capaz de dominar simultaneamente as técnicaspróprias de seu ofício e todas as implicações ou conseqüênciasligadas a sua prática? Se todos subdividem a Vida em comparti-mentos estanques, não haverá nisso uma reação compreensível àcrescente compartimentação do mundo?

(Percebi, surpreso, que essa atitude tem dejensores, hoje. Asrecentes revelações sobre o engajamento nazista de Heldeggerincitaram seus discípulos a procurar desculpas para ele. Uma dasmais cômodas era dizer: não há, nem deve haver, nada de comumentre o filósojo - genial - e o homem - nazista. Um filósofoamericano "praqmaiista'', em cotitrapartida, viu unidade ondeoutros só percebiam ruptura, e chegou a dizer que o erro deHeidegger foi precisamente o de querer estabelecer uma continui-dade entre sua ftloscfta e sua vida: nisso, ele se comportara comoHitler. É preciso manter-se bom cidadão, certamente; por outrolado, pode-se projessar o que bem se quiser, desde que não se tentepô-to em prática. Como se o mundo já não fosse fragmentado osuftcienie, e ainda.fosse preciso lutar para erguer mais muros!)

o estilhaçamento do mundo, com a contrapartida do profís-síonalísmo e a conseqüência psicológica da fragmentação,caracteriza mais particularmente os países totalitários, onde oque, de tnícío, era uma característica da produção industrialtorna-se modelo para o funcionamento da sociedade. Primeiraseparação: o Partido, ou o Estado, encarrega-se dos fin.,se, por-tanto, da definição do bem e do mal; os sujeitos ocupam-se apenas;dos meios, ou seja, cada um de sua especialidade. Speer observa:

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"Havia-se inculcado nos pequenos militantes que a grandepolíttcaera complicada demais para que a pudessem julgar. Em conse-qUência, as pessoas sentiam-se consJantem.ente. cuidadas,ninguém, nunca, era chamado a assumir suas próprias respon-sabilidades." Segunda separação: ~I~1Jma_pwfissãoparaoutra. "Aexigência expressamente formulada de assumir responsabilida-des apenas nos limites de seu próprio domínío era ainda maisinquietante. Doravante, só podíamos nos movimentar no interiorde nosso próprio grupo: dos arquitetos, dos médicos, dos juristas,dos técnicos, dos soldados ou dos camponeses. [... ] Quanto maisdurava o sistema hitleriano, mais o pensamento compartírnenta-va-se" (1971, p. 48).

A separação convinha bem a Speer nos dias em que não sesentia na pele de um nazista convicto: "Eu me sentia o arquitetode Hitler. Os acontecimentos da vida política não me diziamrespeito. [... ]Eu me sentia e me Viadispensado de toda e qualquertomada de postçáo. Além disso, a meta da educação nacional-so-cialista era a separação das esferas de reflexão; assim,esperava-se de mim que me limitasse a meu domínio: a constru-ção." Mais tarde, já ministro do Exército, tendo portanto mudadoo teor de seu trabalho, Speer mantém o mesmo ponto de Vista: "Atarefa que tenho de cumprir é apolítíca", observa em 1944 (Speer1971, pp. 160-161). Em fevereiro de 1945, ele começa a com-preender que já não pode se interessar exclusivamente por suaespecialidade; durante uma reunião, diz a Doenítz: "É preciso

,?fazer alguma coisa!" E Doenítz retruca, secamente: "Aqui, estouI; apenas representando a Marinha. O resto não me diz respeito. OFiihrer deve saber o que está fazendo" (idem, p. 594). Ao Führercompete pensar nos objetivos e a cada um exercer a sua especia-lidade: esse é o raciocínio típico do Sujeito totalitário.

Todavia, o produto mais acabado desse sistema não é nemSpeer nem Doenítz, mas Adolf Eichmann. Quando se lê seuinterrogatório, conduzido pelo capitão Avner Less, fica-se chocadode ver que ainda àquela época (961), toda sua atenção concen-tra-se não sobre a natureza dos atos de que o acusam - terríveis,no entanto -, mas sobre eventuais conflitos de competência entre

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diferentes serviços do Terceiro Reich: a compartímentação eratotal, e, para ele, assim continuava. Seu setor era encarregado deassegurar a transferência das populações. achar os trens e esco-lher as estações: sendo verdade, tratava-se de uma tarefaestreitamente especializada. "À VI B 4 [a seção dtrtgída por ele)cabiam apenas as questões puramente técnicas" (Eichmann1970, p. 136). Qualquer consideração relativa aos fins está des-cartada; só os meios estão em questão. e. mesmo assim, só osmeios apropriados a uma parte do processo. "Quanto a saberquem iria para a câmara de gás. se era ou não preciso começar,se era o caso de frear ou acelerar o movimento ... nada disso medizia respeito" (idem, p. 112). Quando Less lhe submete algorevoltante, ele não reage quanto à questão de fundo. mas apenasem relação à atribuição desse ou daquele serviço: não. as esterili-zações não eram conosco, eram tarefa de outra seção; otestemunho que as atribui a ele não é digno de confiança; oextermínio dos "mestiços", da mesma forma. referia-se a um outroestágio. que confusão mais grosseira! Na época, segundo ele. tudoque o interessava era "evitar conflitos de atribuição com as outrasseções" (idem. p. 221).

Nodecorrer do interrogatório. assim como durante o proces-so. procura-se provar que Eichmann participou pessoalmentedesse ou daquele assassinato. Ele mesmo se defende ferozmente:"Eu não tinha nada a ver com a execução dos judeus, não mateinenhum deles. [...)Nunca matei ninguém e nunca dei ordem paramatar quem quer que fosse" (idem. pp. 339-340). Hoess tambémdeclarava: "Nunca maltratei nenhum prtsioneíro: nunca mateinenhum com minhas próprias mãos' (Hoess 1979. p. 251). Stangl,focalizando seu trabalho no "instituto" de eutanásia, diz que nãoestava "implicado na execução" (Sereny 1975, p. 62); e também sedefende de ter matado alguém em Sobibor. Essa resposta, repeti-da por tantos outros acusados, não desculpa nada; mas explicamuito. É algo ridículo querer provar que Eíchrnann ou Hoess ouStangl torturaram e mataram como assassinos comuns, quandolevaram à morte milhões de pessoas. Mas o fizeram ocupando-se.cada um deles, do pequeno elo de uma longa cadeia, e encarandosua tarefa como um problema puramente técnico.

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..Essa .c~:)]:n:p~timentaçãoda própria ação e a especializaçãoburocrática' decorrente fundam a ausência de sentimento der~~pons<lbili~ª~e:-'que caracteriza os executantes da "soluçãofinal", assim como todos os outros agentes do Estado totalitário.Em uma das extremidades da cadeia, há, digamos, Heydrich: seusono não é perturbado pelos milhões de judeus que morrem, elenunca vê nenhum rosto sofredor, eJe manipula cifras moderas.Em seguida, vem, por exemplo, o policial francês; sua tarefa émuito limitada: recebe as crianças judias e dirige-as em seguidapara um campo de reagrupamento, onde os alemães passam aocupar-se delas; quanto a ele, não mata ninguém, não vai alémda execução de uma rotina: receber. expedir. Nesse ponto, Eích-mann entra em cena: seu trabalho, puramente técnico, consisteem assegurar que um trem parta de Drancy no dia 15 e chegue aAuschwitz no dia 22; onde está o crime? Em seguida, Hoessintervém: dá ordens para que se esvaziem os trens e para que seencaminhem as crianças para as câmaras de gás. Por fim, oderradeiro elo: um grupo de prisioneiros, o comando especial.empurra as vítimas para as câmaras e aciona o mecanismo deinjeção do gás letal; esse grupo é o único a matar com suaspróprias mãos; mas, nesse caso, com toda evtdêncta, trata-se devítimas e não de carrascos.

Nenhum dos elementos da cadeia (na verdade, muito maislonga) tem sentimento de responsabilidade pelo que faz: a com-partimentação do trabalho suspendeu a consciência moral. i',

situação só é ligeiramente diferente nas duas extremidades dacadeia: alguém deve tomar a decisão - para tanto, basta umaúnica pessoa: um Hitler, um Stalin, e o destino de milhões deseres humanos cai no macabro; tal pessoa, seja quem for, nuncaentra em contato direto com os cadáveres. E alguém deve desferiro golpe de misericórdia - até o fim de seus dias (que aliás podeestar muito próximo), tal pessoa perderá a paz interior, mas nempor isso poderá ser considerada verdadeiramente culpada. Os quetornaram tudo isso possível - Speer, Eíchmann, Hoess e osoutros inúmeros intermediários, policiais, funcionários cívís, em-pregados da rede ferroviária, fabricantes de gases letais,fornecedores de arame farpado, construtores de crematórios alta-

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mente eficientes - sempre podem atribuir a responsabilidade aoelo vizinho. Podemos dízer-lhes que estão errados. e que. mesmoem um Estado totalitário. o indivíduo continua responsável porseus atos e até mesmo pela falta de ação; nesse caso, é evidenteque nos confrontamos com uma responsabilidade de naturezaabsolutamente nova. ínassírntlável à dos criminosos tradicionais.O não-reconhecimento dessa responsabilidade pelos própriosagentes do crime totalitário e a eliminação do problema moraltornam esse crime muito mais fácil de cometer.

Os efeitos da fragmentação interior não são menos difundi-dos. Soldados que procuram matar o mais rápido possível são.freqüentemente, excelentes pais de família: neles. o compartimen-to "guerra" não se comunica com o da "paz". E não se trata apenasda guerra: observou-se com freqüência que os mesmos soldadosamericanos desembarcados na Europa. revoltados com o antí-se-mitismo dos nazistas. praticavam uma política de segregaçãoracial em relação aos seus próprios negros. Os franceses queproclamavam os princípios da Revolução -liberdade e igualdade- instauravam em suas colônias regimes em que as populaçõesnão desfrutavam nem de uma nem de outra. E sei também queminha própria vida não está a salvo dos efeitos malignos dafragmentação.

Mas seria hípocrísía constatar os efeitos do trabalho compar-timentado apenas nos países totalitários. na medida em que sãofamiliares a todo mundo. qualquer que seja o país. Hoje em dia.gostamos de estender um dedo acusador para os funcionários dasusinas alemãs que produziam o Zyklon B; mas G. Kren e L.Rappoport perguntam: "Os operários das usinas químicas quefabricaram o napalm assumiriam a responsabilidade pelos bebêsqueimados?" (Kren e Rappoport 1980. p. 141). E por que mencionarapenas esses meios de extermínio particularmente espetaculares?Não se pode dizer o mesmo de toda e qualquer arma? Alguém podede fato acreditar que os explosivos, os canhões ou os mísseis que atodo momento se fabricam nunca servirão para matar ninguém? Ecomo saber se serão utilizados contra populações "inocentes" ousoldados "culpados" (de pertencer à nação inimiga)?

Em um regime totalitário. a esquízofrenía social. a separa-ção da vida em seções impermeáveis, é um meio de defesa paraquem ainda guarda alguns princípios morais: só me comporto deforma submissa e indigna em tal fragmento de minha exístêncía:nos outros. que considero essenciais. mantenho-me como umapessoa respeitável. Sem essa separação. eu não poderia funcionarnormalmente. Mais ou menos como a febre. durante uma doença.a fragmentação não é em si mesma um mal. mas uma defesacontra ele; é graças a essa defesa. no entanto. que o mal se tornapossível. até mesmo fácil. e. nesse sentido. ela é de fato um "víciocotidiano". R.J. Lífton, que em seu livro sobre os médicos nazistasdispensa uma grande atenção a essa situação. caracteriza-a comoum "desdobramento" (mas os compartimentos são. com freqüên-cia. mais que dois). e descreve os inúmeros meios pelos quaís apessoa comprometida consegue manter uma boa opinião a seupróprio respeito: aceitando executar tal ato. mas não tal outro;isolando o privado do público; resgatando o vício público pelav.!Ttudeprivada. ..

(Abro o jornal de hoje: na página 12. uma cidade que me éfamiliar, Bourges. '~Alocomotiva econômica de Bourges chama-seexército: usinas do grupo industrial do arsenal terrestre (2 milpessoas) que constrói canhões de grosso calibre. [...} Todas essasusinas ocupam pessoal altamente qualificado e apresentam altosíndices de tercelrização. Resultado: Bourges orgulha-se de possuirapenas 7%de desempregados" (LeMonde, 29-30 de abril de 1990).Eis o quejaz a unanimidade dos eleitos; comunistas, democratase nacionalistas dispostos, ao menos uma vez. a esquecer suasquerelas: âetxem-nos produzir ainda mais armas, clamam emuníssono. Para quem serão vendidas essas armas. contra quemserão utilizadas. "não é problema deles". Bourges orgulha-se ... Porque pensar nos bebês queimados?)

Ora. não só os médicos nazistas agem assim; o mesmo sedá com todos os "proflssíonaís'' (e. de um jeito ou de outro. somostodos profissionais) que não aplicam as mesmas regras éticas emseu trabalho e fora dele; e que podem aceitar o inaceitável comoespecialistas. assegurando-se de que. em sua outra Vida. a "ver-

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dadeíra", comportam-se dignamente. O físico que contribui paraa produção de armas nucleares persuade- se de que não faznenhum mal, porque é, ao mesmo tempo, bom cidadão e maridomodelo; assim, acredita na unidade exatamente onde na verdadese instala uma fragmentação que ele não reconhece. Hoje em dia,quando preferimos ignorar os horrores do mundo totalitário, oupensar que os monstros por eles responsáveis não têm nada a verconosco, buscamos, mais uma vez, defender-nos com o fraciona-mento do mundo em compartimentos estanques; todos, ou quasetodos, preferimos o conforto à verdade.

Urna certa dose de fragmentação, no entanto, é indispensá-vel para a pura e Simples sobrevivência psíquica do indivíduo.Cada um de nós conhece os limites de sua própria ação: sabe-seimpotente para tornar o mundo tal como gostaria que fosse. Éesse o motivo pelo qual escolhemos nossas próprias ZonasdeAção Príorttárta, descartando as outras. Mesmo me reconhecendoatingido pelas infelicidades do mundo, pouco me devoto a elas,sequer ajudo todos os mendigos que encontro entre minha casa ea entrada do metrô: eles não figuram em minhas Zonas. Comoreconhecer o limite a partir do qual a fragmentação se tornaculpável, até mesmo criminosa? Levando em conta o contexto, porexemplo, para combater a miséria, a esmola não é o meio maiseficaz. Mas também refletindo sobre o tipo de mal que estouafastando de meu horizonte: a tortura e a morte não estão namesma categoria que os inconvenientes causados pela publicida-de invasora ou pela queda de qualidade na cultura, para tomarexemplos de nosso próprio cotidiano.

fragmentação, levantam um problema que já encontramos nocaso da ~iignidade: a coerência entre as idéias eos atos, ou entreo privado e o público, não é necessariamente boa; o nazistacoerente não é melhor do que aquele que, de tempos em tempos,deixa-se levar pela bondade. A decisão do dr.Frankl só me agradaporque aprovo Suas idéias; Hítler talvez as tenha partilhado,algum dia. no fundo de sua prisão, mas isso em nada me alegra:um pouco mais de fragmentação, um maior número desses mo-men tos de benevolência de que Speer se lembra não teriam sidodemais. Também nesse caso, o julgamento final depende doconteúdo dos atos executados e das idéias emitidas. A fragmenta-ção é um vício cotidiano que pode facilitar enormemente oaparecimento do mal e amenizar um pouco seus efeitos; mas, emsi mesma, não constitui um mal.

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Nos campos, os detentos vêem os efeitos nefastos da frag-mentação e prometem a si mesmos: se um dia nos libertarmos,"poremos nossos gestos em harmonia com nossas idéias" (Guínz-bourg 1980, Il, p. 86). Mílena tem a mesma exigência: "Ela nãosuportava a distância entre as palavras e os gestos" (Buber-Neu-mann 1986, p. 229); e o dr. Frankl ouviu, nos campos, "umchamado para que minha própria vida testemunhasse minhasidéias, em vez de apenas publicá-Ias em um livro" (Frankl 1967,p. 167). Mas tais decisões, que partem de uma condenação da