t zvetan todorov - edisciplinas.usp.br

14
p b T zvetan Todorov Teorias do símbolo Tradução Roberto Leal Ferreira editora unesp

Upload: others

Post on 26-Jul-2022

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

p

b

T zvetan Todorov

Teorias do símbolo

Tradução

Roberto Leal Ferreira

editora unesp

Page 2: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

Teorias do símbolo

[ I 2 ] e [ 13 ] deslocam a atenção para o aspecto inefável dessa arte; é como uma consequência de seu caráter ilimitado. A teoria, vinculada à razão e ao discurso, não poderia exauri--la; e a única crítica eficaz da poesia é ainda a poesia: é o que significa a expressão" crítica divinatória". Schlegel vai até mais longe, formulando uma máxima que sabe muito bem que está em contradição com outros fragmentos do Athenaeum: a saber, que a arbitrariedade do poeta não tolera nenhuma lei.

Enfim, [ I 4] conecta-se diretamente com [ 1], ao retomar uma questão que [ 2] e [ 1 O], de maneira oposta, iluminam: é a poesia romântica um gênero entre outros? A resposta não é nem sim, nem não: enquanto princípio gerador, ela está na base de toda poesia e não se deixa, portanto, encerrar em um gênero; mas, ao mesmo tempo, existem obras que encarnam esse princípio de modo mais feliz do que outros; e é o que normalmente se chama "gênero romântico" [ die romantische Di-chtart]. Daí esta frase paradoxal, mas perfeitamente explicável: esse gênero não é um gênero ...

Athenaeum 116 realiza como o reverso da sinfilosofia: em vez do pensamento único de vários, é a afirmação plural de um só.

Símbolo e alegoria

Quando August Wilhelm Schlegel expõe de maneira siste-mática, em I 80 I, a doutrina romântica, não deixa de se referir

ª0 livro publicado, no ano anterior, por seu amigo Schelling. Esse livro ·' ' d f · ' · d d · Ja contem, e ato, os pnnc1p1os a outrma ro-mântica; Schlegel a aprova completamente e só sugere uma modificação terminológica.

3 15

Page 3: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

-

T zyetan Toáorov

Segundo Schelling, o inf~nito represent~d~ de modo finito [III,

P·620

; rrad. franc., p. l 69] e belez~, defm1ção em que já está

endl. do O sublime, como devido. Estou de pleno ac d compre or 0

t a l·sso só gostaria de formular melhor essa expre _ quan o , ssao, da seguinte maneira: o belo é uma representação simbólica do

infinito; pois assim fica ao mesmo tempo claro como O infinito

pode aparecer no finito. [ ... ) Como pode o infinito ser conduzido

à superfície, ao aparecimento? Só simbolicamente, em imagens

e signos. [ ... ] Fazer poesia (no sentido mais amplo do poético,

que se encontra na base de todas as artes) nada mais é que um

eterno simbolizar. (Die Kunstlehre, p.81-2)

Sem exagero, seria possível dizer que, se fosse preciso con-

densar a estética romântica em uma única palavra, esta seria

aquela que aqui é introduzida por August Wilhelm Schlegel: símbolo; toda a estética romântica seria, então, afinal, uma teoria semiótica. Reciprocamente, para compreender o sentido mo-derno da palavra "símbolo", é necessário e suficiente reler os textos românticos. Em nenhum lugar o sentido de "símbolo" aparece de modo tão claro quanto na oposição entre símbolo e alegoria - oposição inventada pelos românticos e que lhes permite opor-se a tudo o que não seja eles mesmos. Examinarei brevemente aqui as principais colocações dessa oposição.

Goethe

Os objetos serão determinados por um sentimento profundo,

. que, quando é puro e natural, coincide com os melhores e mais

elevados objetos e os tornará, no limite, simbólicos. Os objetos

assim representados parecem existir por si mesmos apenas e são,

316

Page 4: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

Teorias do símbolo

porém, significativos no mais profundo de si mesmos, e isso por

causa do ideal, que sempre carrega consigo uma generalidade. Se

0 simbólico indica ainda outra coisa além da representação, será

sempre de maneira indireta. [ ... ] Agora, há também obras de arte

que brilham pela razão, a eirada espirituosa, a galanceria, e classi-

ficamos também aí todas as obras alegóricas; é delas que menos

devemos esperar o bom, pois destroem igualmente o interesse

pela própria representação e encerram, por assim dizer, o espíri-

to em si mesmo e retiram de seu olhar o que é verdadeiramente

representado. Drscingue-se o alegórico do simbólico por esse

designar indiretamente; aquele, diretamente. (I 797; JA 3 3, p-94)

Esta citação é tirada de um pequeno artigo intitulado Sobre os objetos das artes figurativas, escrito em I 797, mas publicado

muito depois da morte de Goethe. É a primeira vez que Goethe

formula a oposição símbolo-alegoria em um escrito destinado à publicação ( ainda que, definitivamente, não a alcance).

Conhecemos hoje muito bem a pré-história dessa oposição na obra de Goethe. Até I 790, a palavra símbolo não tem de

modo algum o sentido que será o seu na época romântica: ou

é mero sinônimo de uma série de outros termos mais usuais

( como: alegoria, hieróglifo, cifra, emblema etc.), ou designa

de preferência o signo puramente arbitrário e abstrato ( os

símbolos matemáticos). Esse segundo sentido, em particu-

lar, é comum nos leibnizianos: por exemplo, em Wolff Kant,

na Crítica da faculdade de julgar, é que inverte esse uso e leva a

palavra "símbolo" para bem perto do seu sentido moderno.

Longe de caracterizar a razão abstrata, o símbolo é próprio à maneira intuitiva e sensível de apreender as coisas. "Os novos

lógicos admitem um uso da palavra simbólico que é absurdo e

3 17

Page 5: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

T .zyetan Todorov

inexato, quando o opõem ao modo de representação . . . - . , . . - , tntu111vo; a

representaçao s1mbohca, com efeito, nao e senão um modo . . . " (§ 59 ) da representação mcumva , p.174 .

Schiller será um leitor imediato e atento de Kant· ad , , otara d 1 "' bl" ,

0 novo uso a pa avra sim o o ; ora, e na correspondência entre Goethe e Schiller, ao longo dos anos que antecedem a redação do pequeno artigo que nos interessa aqui, que a pala-vra "símbolo" aparece em Goethe em seu sentido novo ( 0 que não quer dizer, porém, que Kant, Schiller e Goethe tenham a mesma concepção do símbolo; simplesmente, seu uso opõe--se em bloco ao dos autores anteriores). Depois dessas canas, Goethe decide redigir um pequeno texto em colaboração com seu amigo, o historiador da arte Heinrich Meyer; por fim, cada um escreve um artigo com o mesmo título, e só o de Meyer é publicado.9

Diga-se o que se disser dos antecessores de Goethe na de-terminação quer do significante, quer do significado de "sím-bolo", resta que, se deixarmos de lado o ensaio de Meyer, sobre o qual voltaremos a falar, foi mesmo Goethe que introduziu a oposição entre símbolo e alegoria.

9 A gênese e a estrutura do símbolo em Goethe são estudadas com toda a atenção ne ' · R · d , cessaria por: ouge, Goethe et la notrnn u symbole, Gotth, Ecude bl., l . l ' . · s pu iees pour e centena1re de sa more par

Umversité de Strasbo I 932 8 ., urg, , p.2 5-3 I O; Müller, Dit gtschicht/icht ,oraussttzungtn d,s s b lb ;1+. . S b l . . ,ym O tgr1_us m Gotth,s Kunstanschauung; Müller, Der ym O begnff tn Goethes K h h d C h unstansc auung, Go,1 ,, Vitrmonatsschri•t tr ott e-G,s,l/schajt 8 I 9 M !I'

l'o,uvr, d, • • . 4 3; a rache, Lt Symbolt dans la pmsit ti s~ Gotth.,, em especial cap. VI (p.I I I-29) e X ( p 206-19) ·

~rensen op li/ e VII ( · , boa visão.d . ·•. ªP· p.86-I 32). O escudo de Rouge dá uma

e coniunco; o de S0rensen aborda todos os . matizes.

318

Page 6: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

Teorias do símbolo

Em Os objetos das artes figurativas, essa oposição aparece ao fim do desenvolvimento. Goethe já comparou os méritos respecti-vos dos diferentes objetos aos olhos do pintor. Passa, então, à maneira de tratar [ die Behandlung] os objetos, e é aí que surgem os termos símbolo e alegoria. Em que consiste a diferença?

Afirmemos, em primeiro lugar, um caráter comum: símbolo e alegoria permitem representar ou designar; ao introduzir um termo, na verdade ausente do texto de Goethe, poder-se-ia dizer que se trata de duas espécies de signos.

A primeira diferença vem, então, do fato de, na alegoria, a face significante ser atravessada instantaneamente, com vistas ao conhecimento do que é significado; ao passo que, no sím-bolo, ela conserva seu valor próprio, sua opacidade. A alegoria é transitiva; o símbolo, intransitivo - mas de tal sorte que não deixa de significar; ou seja, a sua intransitividade vai de par com o seu sintetismo. Assim, o símbolo dirige-se à percepção ( e à intelecção); a alegoria, na realidade, só à intelecção. Note-

G h h " d ,, , , -se que oet e c ama o representa o o que e, para nos, o representante ( o objeto sensível).

Esse modo específico de significação permite-nos formular uma segunda diferença. A alegoria significa diretamente, isto é, a sua face sensível não tem nenhuma outra razão de ser, além de transmitir um sentido. O símbolo só significa indireta-~ente, de maneira secundária: está lá, em primeiro lugar, por s1 mesmo, e é só em um segundo momento que descobrimos que ele também significa. Na alegoria, a designação é primária; no símbolo, é secundária. Poder-se-ia, talvez, dizer também, forçando o vocabulário de Goethe: o símbolo representa e (eventualmente) designa; a alegoria designa, mas não repre-senta mais.

3 19

Page 7: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

L

T zyetan Todorov

.Pode-se deduzir uma terceira diferença do que Go · b · ' b 1 1 d. · erbe atn u1 ao sim o o; e a 12 respeito à natureza d l are ar·

. . f' N d / b l l 3ªº s1gm 1cante. o caso o sim o o, e a tem um carát . . , . er muito preetso: e uma ~assa~e~ ~o ~artt_cula~ _( o objeto) ao geral (e ao ideal); ou seJa, a s1gn1f1caçao s1mbohca, para Goethe , , e ne-cessariamente da espécie do exemplo: ou seja, um caso particular através do qual ( mas não no lugar do qual) vemos, de certo modo por transparência, a lei geral de que ele é a emanação. o simbólico é o exemplar, o típico, o que permite ser considerado como a manifestação de uma lei geral. Com isso se confirma 0

valor da relação de participação para a estética romântica, em detrimento da relação de semelhança, que reinara inconteste sobre as doutrinas clássicas ( e, em especial, por intermédio da imitação). A relação significante que se acha na base da alegoria não é especificada, por enquanto.

Uma quarta e última diferença reside no modo de percepção. No caso do símbolo, há como uma surpresa devida a uma ilu-são: julgava-se que a coisa existisse simplesmente por si mesma, mas depois se descobre que ela também tem um sentido (se-cundário). Quanto à alegoria, Goethe insiste no parentesco com as outras manifestações da razão ( o espírito, a galanteria). A oposição não é realmente articulada e, no entanto, a percebe-mos bem próxima: a razão é senhora aqui, mas não lá.

*

916. Poderíamos, então, chamar de simbólico determinado uso

que esteja em pleno acordo com a natureza, pois a cor seria usada em conformidade com seu efeito e a relação real exprimiria de

imediato a significação. Por exemplo, se colocarmos que a púr-

320

Page 8: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

Teorias do símbolo

pura designa a majestade, não haverá nenhuma dúvida de que encontramos a expressão correta, como já foi suficientemente explicado anteriormente. 9 l 7. A isto está ligado outro uso que poderíamos chamar alegórico. Este é mais fortuito e arbitrário, poderíamos até dizer convencional, pelo fato de dever, em primei-ro lugar, transmitir-nos o sentido do signo, antes de sabermos 0

que ele significa, como é o caso, por exemplo, da cor verde que se atribuiu à esperança. (1808; JA 40, p.l 16-7)

Esses dois breves parágrafos constam da Doutrina das cores, no fim da exposição didática, com o título "Uso alegórico, simbólico, místico das cores". Existe aqui, com efeito, um terceiro termo , místico; mas poderíamos deixá-lo de lado; pois simbólico e alegórico compartilham de novo a qualidade significante, que não é determinante para o uso místico da cor.

A oposição enunciada no trecho citado é simplíssima; a única surpresa vem do fato de ser diferente das dicotomias estabelecidas no ensaio Sobre os objetos das artes figurativas. Isso porque, desta vez, se trata dos signos motivados e imotivados, ou ainda, dos signos naturais e arbitrários (convencionais). Dessa primeira diferença decorre uma segunda: sendo natural a significação do símbolo, é imediatamente compreensível para todos; a da alegoria, que procede de uma convenção "arbitrá-ria", deve ser aprendida antes de ser compreendida; o inato e o

adquirido sobrepõem-se, aqui, ao universal e ao particular. Os 1 (

~xempl_os dados talvez sejam um pouco menos convincentes: e ª majestade mais própria à púrpura do que a esperança à cor verde? A quarta diferença observadas no texto precedente reaparece aqui no segundo plano: o símbolo produz um efeito e, somente através dele, uma significação; a alegoria tem um

321

Page 9: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

, Tzyttan Todorov

sentido que é transmitido e ensinado; o papel da razão parece. portanto, de novo diference, tanto em um como no outro.

*

O fogo natural será apresentado, ainda que no limite, sujeir~

a um fim artístico, e com razão chamamos essas apresentações de simbólicas. [ ... ] É a coisa sem ser a coisa, e ainda assim é a coisa; uma imagem resumida no espelho do espírito e, mesmo assim, idêntica ao objeto. Como a alegoria, em compensação, permanece aquém; ela talvez seja cheia de espírito, mas a maior parte do tempo é retórica e convencional. e seu valor cresce na medida em que se aproxima do que chamamos de símbolo. (I 820; WA 41-1, p.142)

Esse texto aparece no comentário das pinturas de Filóstrato, e se mostra explicitamente como uma defesa do conceito e da palavra simbólica. Descreve Goethe como exemplo um quadro (São Pedro junto à fogueira, na noite da prisão de Jesus) que ele chama de muito "lacônico" e do qual, portanto, ninguém ousaria afirmar o caráter alegórico; é, em compensação, sim-bólico. Observemos aqui os traços característicos do símbolo, em oposição à alegoria.

O primeiro remete à diferença observada em nosso primeiro texto'. entre designação direta e indireta: a fogueira represen-tada e, em pnme1ro lugar, uma fogueira; se significa algo além disso, no limite, é só em um segundo momento.

Segunda diferença, que já nos é familiar: embora dotado de significação, o símbolo é intransitivo. Esse estar t d l , . . u o para oxa e ev1denc1ado por uma frase igualmente paradoxal:

0 símbolo

é a coisa sem sê-la, embora sendo-a ... ( a intransitividade está

322

Page 10: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

Teorias do símbolo

ainda aliada com o sintetismo). O objeto simbólico, ao mesmo

tempo, é e não é idêntico a si mesmo. A alegoria, em contrapar-

tida, é transitiva, funcional, utilitária, sem valor próprio: este é, sem dúvida, o sentido do adjetivo "retórico", nesse contexto.

Terceira diferença já familiar: a alegoria é convencional e,

portanto, pode ser arbitrária, imotivada. O símbolo, por seu

lado, é uma imagem [ Bild] e está ligado ao natural. Quarta diferença: a alegoria é "cheia de espírito"; o símbolo

tem apenas uma relação oblíqua com o "espelho do espírito".

Reconhecemos aí o caráter racional da alegoria, oposto à na-

tureza intuitiva do símbolo. Enfim, por duas vezes, Goethe insiste no caráter lacônico,

condensado, do símbolo. Ele parece apontar aqui para a den-sidade simbólica, em oposição à expansão discursiva: é repre-

sentada apenas uma fogueira, e a interpretação simbólica é que lhe acrescenta novos valores. A alegoria seria menos lacônica no sentido de que, nela, há como uma obrigação de interpretar;

a expansão é quase tão presente quanto no discurso explícito. Acrescentemos que aqui, como nos textos anteriores ( em

particular, no primeiro), Goethe não esconde as suas preferên-

cias pelo símbolo.

*

Há grande diferença para o poeta entre buscar o particular

com vistas ao geral e ver o geral no particular. Da primeira ma-

neira nasce a alegoria, em que o particular vale unicamente como

exemplo do geral; a segunda, porém, é propriamente a natureza

da poesia: ela diz um particular sem pensar a partir do geral e

indicá-lo. Mas aquele que capta vivamente esse particular recebe

323

Page 11: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

T zyttan Todorov

ao mesmo tempo o geral, sem se dar conta disso ou apenas . tarde. ( I 822; JA 3 8, p.26 I ) rnais

É a mais célebre formulação da oposição entre símbolo e alegoria. Ela se segue a uma comparação entre ele mesmo e Schiller; a diferença entre os dois conceitos é também a

que exis te entre os dois poetas, com Goethe, evidentemente, reservando-se o papel do poeta simbólico. A valorização de um dos termos opostos prossegue aqui: não só porque Goethe se identifica com ele, mas também porque a poesia, roda poesia, é ou deve ser fundamentalmente simbólica. Essa é a primeira vez, note-se, que a oposição é aplicada à poesia e não mais a

uma matéria visível. A insistência na passagem do particular ao geral é mais forre

aqui; ao mesmo tempo, ela se especifica. Obrigatória para o símbolo, está também presente na alegoria: os dois, portanto, não se distinguem pela natureza lógica da relação entre sim-bolizante e simbolizado, mas a partir do modo de evocação do

geral pelo particular. Goethe parece dar mais atenção ao processo de produção

e de recepção dos símbolos e das alegorias. Na obra acabada, estamos sempre diante de um particular; e esse particular sempre pode evocar um geral. Mas há diferença no processo de criação, conforme se parta do particular e nele se descubra, posteriormente, o geral ( é o símbolo), ou se tenha, primeiro, o geral e, em seguida, se busque para ele uma encarnação parti-cular. Essa diferença de percurso influencia a própria obra: não podemos separar a produção do produto. É esta, portanto, a oposição mais importante: na alegoria, a significação é obriga-tória ("direta", dizia o primeiro texto), e a imagem presente na

J24

Page 12: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

Teorias do símbolo

obra é, portanto, transitiva; no símbolo, a imagem presente não indica por si mesma que tem um sentido diferente, só "mais tarde" ou inconscientemente somos levados a um trabalho de reinterpretação. Eis que passamos do processo de produção, e por intermédio da própria obra, ao de recepção: afinal, a diferença decisiva parece residir especialmente ali, na maneira como se interpreta; ou, segundo as palavras de Goethe, como s~ passa de um particular a um geral.

Goethe não afirma aqui ideias radicalmente novas em rela-ção aos textos anteriores e, no entanto, produz uma nova ilu-minação, pela menção rápida do percurso autor-obra-leitor e, sobretudo, por sua insistência sobre a diferença dos processos psíquicos ( de produção e de recepção), mais do que sobre as diferenças lógicas inerentes à própria obra.

*

A alegoria transforma o fenômeno em conceito, o conceito

em imagem, mas de tal forma que o conceito continua, porém,

ainda contido na imagem e que podemos segurá-lo inteiramente

e tê-lo e exprimi-lo nela. A simbólica transforma o fenômeno em

ideia, a ideia em imagem, e de tal forma que a ideia continua ainda

infinitamente ativa e inacessível na imagem e, mesmo dita em

todas as línguas, permanece indizível. (Nachlass; JA 3 5, p. 3 2 5-6)

Esta é a última máxima dedicada por Goethe à oposição símbolo-alegoria; data de seus anos de velhice. Aqui, como no texto anterior, a atenção concentra-se em uma gênese ideal. As analogias entre as duas noções permanecem fortes, mais fortes até que no texto anterior, pois agora desaparece a dife-

325

Page 13: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

, T zyetan Todorov

rença de·percurso ( do particular ao geral no símbolo, do geral

ao particular na alegoria) ; toda produção segue a trajetória

particular-geral-particular. Sempre há um fenômeno concreto

no começo, depois uma fase de abstração, para por fim chegar à imagem, igualmente concreta ( e que é a única presente na obra

acabada). A partir daí, porém, estabelecem-se as diferenças.

Em primeiro lugar, a abstração não é a mesma aqui e ali: ao

conceito, que pertence estritamente à razão, na alegoria, opõe-

-se a ideia no símbolo, acerca da qual podemos pensar que suas

ressonâncias kantianas a atraem no sentido de uma apreensão

global e "intuitiva". É importante e nova esta diferença: pela primeira vez, Goethe afirma que o conteúdo do símbolo e da alegoria não é idêntico, que não se exprime "a mesma coisa"

por meio de um e de outro. Para volcar à distinção inicial de nosso primeiro texto, a diferença não está mais na maneira de tratar, mas no próprio objeto tratado.

Uma segunda diferença fora preparada pelos outros textos, mas jamais encontrara uma formulação tão force: é a diferença entre o dizível, na alegoria, e o indizível [ Unaussprechliche] no símbolo; ela acompanha, como se vê, aquela que existe entre conceito e ideia. Ela é duplicada por outra, que nada mais é que a sua consequência e nos conduz à diferença entre produção e produto, entre devir e ser: o sentido da alegoria é finito, o do símbolo é infinito, inexaurível; ou ainda: o sentido está acaba-do, terminado e, portanto, por assim dizer, morto na alegoria; está ativo e vivo no símbolo. Também aqui, a diferença entre símbolo e alegoria é definida antes de tudo pelo trabalho que um e outro impõem à mente do receptor, ainda que tais di-ferenças de postura sejam determinadas por propriedades da própria obra ( sobre a qual Goethe, desta vez, se cala).

326

Page 14: T zvetan Todorov - edisciplinas.usp.br

Teorias do símbolo

Examinaremos todas essas menções do par símbolo-alegoria na obra de Goethe como complementares, mais do que como divergentes; somente a colação desses enunciados produz a de-finição completa. No que se refere ao símbolo, reencontramos a panóplia das características valorizadas pelos românticos: é produtor, intransitivo, motivado; executa a fusão dos con-trários: é e significa ao mesmo tempo; seu conteúdo escapa à razão: exprime o indizível. Em contrapartida, a alegoria é, evi-dentemente, já pronta, transitiva, arbitrária, pura significação, expressão da razão. A esse estereótipo romântico somam-se algumas observações mais particulares. Mais do que por suas formas lógicas ( símbolo e alegoria designam igualmente o geral por intermédio do particular), os dois tipos de remessa significante distinguem-se pelo processo de produção e de recepção de que são o acabamento ou o ponto de partida: o símbolo é produzido inconscientemente e provoca um trabalho de interpretação infinito; a alegoria é intencional e pode ser compreendida sem "resto". Igualmente pessoal é a interpreta-ção do símbolo como representação do típico. Há, enfim, uma diferença morfológica e, portanto, especialmente interessante, entre caráter direto e indireto de designação (lembremo-nos de sua importância em Clemente de Alexandria e Santo Agos-tinho) ; embora presente, não parece desempenhar em Goethe um papel de primeiro plano.

Schelling

Sensível à sugestão de August Wilhelm Schlegel e, prova-velmente, também à vizinhança espiritual de Goethe, Schelling introduz a noção de símbolo em seu sistema conceitual, tal

327