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0 MESTRADO EM LETRAS TÂNIA REGINA SILVA DA SILVA MEMÓRIA E VELHICE: da história às estórias de velhos em João Guimarães Rosa PORTO ALEGRE 2016

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Page 1: Tânia Regina Silva da Silva - UniRitter...2 TÂNIA REGINA SILVA DA SILVA MEMÓRIA E VELHICE: da história às estórias de velhos em João Guimarães Rosa Dissertação de Mestrado

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MESTRADO EM LETRAS

TÂNIA REGINA SILVA DA SILVA

MEMÓRIA E VELHICE: da história às estórias de velhos em João Guimarães

Rosa

PORTO ALEGRE

2016

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TÂNIA REGINA SILVA DA SILVA

MEMÓRIA E VELHICE: da história às estórias de velhos em João Guimarães

Rosa

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UniRitter Laureate International Universities como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Regina da Costa da Silveira.

PORTO ALEGRE

2016

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TÂNIA REGINA SILVA DA SILVA

MEMÓRIA E VELHICE: da história às estórias de velhos em João Guimarães

Rosa

Dissertação de Mestrado defendida e aprovada como requisito parcial à obtenção do

título de Mestre em Letras pela banca examinadora constituída por:

_________________________________________________

Prof. Dra. Regina da Costa da Silveira

(Profa. Orientadora - UniRitter Laureate International Universities)

__________________________________________________

Dra. Leny da Silva Gomes

(UniRitter Laureate International Universities)

____________________________________________________

Dra. Raquel Bello Vázquez

(Universidade de Santiago de Compostela/UniRitter)

PORTO ALEGRE

2016

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Em memória de meu pai, José Nildo da

Silva, pelo seu exemplo de amor à vida e

à família.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe e irmãos pelo apoio e por estarem sempre presentes.

À Profa. Dra. Leny da Silva Gomes e à Profa. Dra. Raquel Bello Vázquez por

suas leituras do meu trabalho, bem como pelas suas críticas e contribuições que

muito contribuíram para o aperfeiçoamento do mesmo.

Em especial à minha amiga e orientadora, Profa. Dra. Regina da Costa da

Silveira, em quem, desde o início da orientação, encontrei uma crítica atenta e

criteriosa do meu texto. Agradeço pela confiança e pela oportunidade de trabalhar

ao seu lado, por ser a maior incentivadora na superação de meus limites e pela sua

infinita disponibilidade na condução deste meu trabalho. Obrigada por estar ao meu

lado, por acreditar em mim e por me dar a oportunidade para leitura de Guimarães

Rosa.

Às instituições UniRitter e CAPES pelo apoio e oportunidade para a realização

do trabalho.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre memória e identidade na velhice, temas representados na obra de João Guimarães Rosa. Por memória, entende-se a tomada de consciência do passado como tal. Sabe-se que a fase da velhice faz parte da evolução da civilização humana, ou seja, é uma etapa da vida, parte de um ciclo natural, constituindo-se como uma experiência única e diferenciada, mas também é culturalmente construída. Simone de Beauvoir (1970/1990) afirma que a velhice é uma dimensão existencial que modifica a relação do indivíduo com o tempo, com o mundo e com a sua própria história. Para entender o conceito de memória, torna-se importante, neste trabalho, uma revisão bibliográfica que inclui os textos de Maurice Halbwachs (1968/2003), Mircea Eliade (1963/2013), Marilena Chaui (2004/2005) e Sandra Jatahy Pesavento (2003/2012), entre outros. Quanto à representação do tema da velhice na literatura, serão analisados os contos Presepe, de Tutaméia - terceiras estórias, de João Guimarães Rosa, em que se observa a exclusão, na família, de alguns indivíduos do cerimonial da Missa do Galo, um “por achaques de velhice”, outra por ser uma “cozinheira cardíaca” e ainda um terceiro personagem por ser “terreireiro imbecil”; e Nenhum, nenhuma, do livro Primeiras Estórias. Aqui é a história de um menino, que deve ser reconstituída na memória, anos mais tarde, tornando-se ele um adulto. Trata-se do tema da velhice, em que os cuidados de uma jovem para com a idosa dão relevo ao amor. Estudar o assunto memória dos velhos é um tema relevante porque a população de velhos cresce significativamente no Brasil e suas lembranças representam a garantia de continuação da memória, vista como tradição, cultura e identidade. O interesse por esse tema surge de uma necessidade, a de se entender as características que individualizam os velhos, como memória que contribui de modo indispensável para a história da humanidade. Nesse propósito, a narrativa poética rosiana, sensibilizando os leitores, constitui-se no que Antonio Candido assevera ser um direito do cidadão: pela fabulação, o indivíduo entende-se de forma criativa com o seu mundo. Conforme a necessidade prevista pelo Estatuto do Idoso, Lei Nº 10.741/2003, é necessário oferecer mecanismos que favoreçam a divulgação de informações de caráter educativo sobre os aspectos biopsicossociais de envelhecimento. Assim, entende-se que a presente dissertação oferece possibilidades para o cumprimento da legislação. Palavras-chave: Memória e Velhice. História. Literatura. Guimarães Rosa.

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ABSTRACT

This research has the objective to present thoughts about memory and identity in the elderly, which are themes represented in the work of João Guimarães Rosa. Memory is seen as the understanding of the past as it is. It is known that the elderly years are part of the evolution of the human civilization, that is, it is a stage of life, part of a natural cycle, being constituted as a singular and differentiated experience, but it is also culturally constructed. Simone du Beauvoir (1970/1990) states that the elderly years is an existential dimension that changes the relation of the individual with time, with the world and its own history. In order to understand the concept of memory, it is important to carry out a literature review that includes the texts of Maurice Halbwachs (1968/2003), Mircea Eliade (1963/2013), Marilena Chaui (2004/2005) and Sandra Jatahy Pesavento (2012), among others. As to the representation of the theme of elderly in literary works, the short story Presepe, from Tutaméia Terceiras Estórias, written by João Guimarães Rosa will be analyzed, in which the exclusion, by the family, of some individuals from the ceremony of the Christmas Eve mass is observed, one due to “silly illnesses of the elderly”, another because she is a “cardiac cook”, and yet a third character because he is a “stupid caretaker”; and the short story Nenhum, nenhuma, of the book Primeiras Estórias. The latter is the story of a boy, which must be restituted in his memory, years later, when he becomes an adult. It is about the theme of elderly, in which the care of a young lady towards an elder highlight the love. To study the issue of memory of the elderly is relevant because the population of elderly people has been growing significantly in Brazil and their memories represent the guarantee of continuation of the memory, seen as tradition, culture and identity. The interest of this theme comes from a necessity, which is to understand the characteristics that individualize the elderly, as memory that contributes indispensably to the history of the humanity. Thus, the poetic narrative from Guimarães Rosa is constituted in what Antonio Candido affirms to be a right of the citizen: through fabulation, the individual relates themselves in a creative way with their world. According to the necessity brought by the Elderly Statute, Law Nº 10.741/2003, it is necessary to offer mechanisms that favor the sharing of information of an educational characteristic about bio psychosocial aspects of the coming of age. Hence, this dissertation offers possibilities for the fulfillment of the legislation.

Keywords: Memory and Elderly. History. Literature. Guimarães Rosa.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Caravaggio, “A incredulidade de São Tomé” (1601-1602), Schloss

Sanssouci, Potsdam .................................................................................................. 20

Figura 2 - Musas Clio, Euterpe e Tália - três filhas da Memória ou de Mnemosyne, de

Eustache Le Sueur ( 1616-1655). Museu do Louvre, Paris .................................... 31

Figura 3 - Calendário Maia ........................................................................................ 32

Figura 4 - Ouroboros, o mito do eterno retorno ......................................................... 32

Figura 5 - Cronos clipping Cupid’s wings (1694). ...................................................... 33

Figura 6 - Tânato como um jovem alado, em escultura de mármore no templo de

Artemisa, em Éfeso (325-300 a.C.) ........................................................................... 36

Figura 7 - Mistério dos Deuses: Eros ........................................................................ 37

Figura 8 - Presepe ..................................................................................................... 74

Figura 9 - Saturno ..................................................................................................... 78

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9

2 MEMÓRIA E MITOLOGIA .................................................................................... 15

3 A VELHICE E A LEGISLAÇÃO ............................................................................. 34

3.1 A VELHICE, SEGUNDO SIMONE DE BEAUVOIR .......................................... 34

3.2 LEGISLAÇÃO .................................................................................................. 40

3.3 HISTÓRIA E MEMÓRIA ................................................................................... 41

4 O PAPEL DA HISTÓRIA ...................................................................................... 49

5 DA FORTUNA CRÍTICA À ANÁLISE DOS TEXTOS LITERÁRIOS ..................... 53

5.1 GUIMARÃES ROSA NA LITERATURA BRASILEIRA ..................................... 55

5.2 NENHUM, NENHUMA ..................................................................................... 62

5.3 PRESEPE ........................................................................................................ 71

6 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 81

ANEXO A – Texto Presepe...................................................................................... 93

ANEXO B – Texto Nenhum, nenhuma ................................................................... 95

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1 INTRODUÇÃO

Ingressei no curso de Mestrado em Letras, na linha de pesquisa intitulada

Linguagem e Aprendizagem, com a intenção de ampliar meus estudos no campo da

literatura, procurando interlocução e conhecimentos necessários para o

entendimento de questões que se colocam a partir de uma nova escola que está

discutindo políticas públicas para a inclusão de segmentos sociais, em especial o

velho. Como professora de história durante algumas décadas, percebi o diálogo

entre história e estória, distinção que a leitura do texto rosiano, no Mestrado em

Letras, viria, mais tarde, oportunizar de forma efetiva.

Ao tratar os “itinerários possíveis” da História, Sandra Jatahy Pesavento

(2012, p. 34) enfatiza a qualidade da História aproximada a uma disciplina mais

propriamente literária. Sobre o assunto, a autora considera importante dizer que os

historiadores também recorrem a estratégias próprias dos romancistas e poetas

(como a metáfora, a ironia, a metonímia).

Interessa-me, de início, situar a minha condição de professora de História,

pesquisadora e mestranda do PPG Letras. Prática e epistemologicamente, o

historiador, assegura François Hartog (2001, p.11), embora possa ser uma

testemunha, é apenas quando se distancia da testemunha que começa a tornar-se

historiador. A partir dessa afirmação e com a realização de disciplinas que tratam da

língua e da linguagem literária, percebo que essas leituras me asseguram que o

historiador precisa muito das estórias.

Para dizer da pertinência desta dissertação, penso que minha profissão de

longos anos apontou para a necessidade de ler um texto, literário ou não, como

representação de algo que testemunhasse o seu tempo. Hoje reconheço que o texto

literário é o que agrega temas tais como a memória e a condição humana,

independentes de um contexto histórico. Com efeito, expressar a condição humana

pela criação literária, como o tema da velhice − isento do tempo e da geografia−, é o

que se observa na narrativa literária rosiana.

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Procurar amparo na Lei parece ser uma atitude relacionada à prática de uma

professora de História. Por isso recorri ao Estatuto do Idoso, criado como decreto-lei

a partir da Constituição de 1988, e que é fundamental na maneira como a velhice é

vista e tratada na sociedade brasileira. O Estatuto do Idoso, Lei Nº 10.741 em

conjunto com a Lei Nº 8.842, que regulamenta a Política Nacional do Idoso,

promulgada pela Presidência da República em 4 de janeiro de 1994, dispõe normas

e diretrizes para formulação e execução de políticas públicas e serviços destinados

à população idosa, definida, pelo próprio Estatuto, como aquela com 60 anos ou

mais. Sendo assim, essa lei tornou-se importante na história da velhice e na

sociedade, introduzindo mudanças significativas em relação à figura do idoso.

Além disso, falar em inclusão faz parte do discurso da atualidade político-

educacional. Como professora no Ensino Fundamental, vivenciei tentativas de

implantação de várias leis, a Lei 10.639/2003, que trata da diversidade étnico-racial,

a Lei 11.645/2008, que se refere ao indígena, e a Lei 10.741/2003 que busca a

preservação da dignidade do idoso. Hoje verifico que a melhor alternativa seja

conceder o direito à literatura nas escolas, leitura, análise e produção de narrativas

como possibilidade que viabilize a efetivação dessas leis.

O ponto de partida da análise do texto literário leva em conta, aqui, dois

contos do escritor João Guimarães Rosa. Para muitos críticos, o autor é um dos

representantes do regionalismo brasileiro, com uma linguagem recolhida do povo do

interior de Minas Gerais, com temas relacionados ao sertão mineiro. Nilce Sant’Anna

Martins observa que ler Guimarães Rosa “é participar de uma aventura no reino

mágico das palavras. [...] O uso que faz da língua resulta simultaneamente de

imaginação, sensibilidade, memória, conhecimento, pesquisa, erudição.” (MARTINS,

2001, p. xi). Para além de regionalista, o escritor, natural de Cordisburgo, não

participa apenas como testemunha de um tempo e lugar. No período imediatamente

anterior, a narrativa dos romancistas brasileiros de 1930 caracterizava-se pela

linearidade, espécie de compromisso e de denúncia de um período que buscava a

representação das intempéries sofridas pelo homem de uma determinada região.

João Guimarães Rosa narra o sertão mineiro; mas o sertão habita de modo especial

dentro do próprio homem. Seus contos mostram essa peculiaridade de o

personagem ser local e universal ao mesmo tempo. Sobre a linguagem tão peculiar

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de Guimarães Rosa, no prefácio de Ficção completa, Eduardo Coutinho afirma que

“Rosa define como uma de suas principais metas a tarefa de revitalizar a linguagem

com o fim de fazê-la recobrar sua poiesis originária e atingir o leitor, induzindo-o à

reflexão.” (1995, p. 13).

No conto Presepe (ROSA, 1967), por exemplo, os temas da memória e da

velhice surgem já a partir do uso do pronome indefinido “todos”, presente no conto,

que se refere a todos os membros da família que foram celebrar o Natal fora da

fazenda, lugar onde permanecem, no entanto, ainda três pessoas: um velho de

oitenta anos, a cozinheira cardíaca e o terreireiro imbecil. Para não passar sem

celebração, esses indivíduos “diferentes” reúnem-se com o objetivo de dar sentido

àquela noite, o que leva a crer que “todos”, nesse caso, é uma palavra que deveria

ser relativizada sob pena de anular o grupo dos diferentes, dos que não participam

da solenidade de que a família participa. Outro conto escolhido para análise tem

como personagem uma “uma velha, uma velhinha” (ROSA, 1985, p.49) que

apresenta peculiaridades que remetem à inércia como sinônimo de morte e do

envelhecimento como processo progressivo de mudança desfavorável, quando se

pode pensar que, como assegura Simone de Beauvoir em A Velhice, “Mudar é a lei

da vida.” (BEAUVOIR, 1990, p. 17).

Entendida como parte ativa da sociedade a etapa da velhice, urge buscar

recursos, ações e materiais para o cumprimento da legislação, objetivando a

interação do velho e de suas memórias como reafirmação da sua identidade. Ao

definir o tema desta dissertação de mestrado, decidi concentrar meus estudos no

diálogo entre as representações literárias e a questão da velhice, com vistas a

favorecer a reflexão e encaminhar o tema para debates em aulas de literatura,

oficinas e reuniões de qualificação pedagógica. Essa investigação justifica-se por

permitir a reflexão no âmbito acadêmico-escolar sobre a velhice, uma vez que é a

escola parte responsável pela educação e sensibilidade para a vida em sociedade.

Procurei, assim, pesquisar e estudar a problemática, inicialmente, com o

levantamento bibliográfico para a compreensão do assunto, fortuna crítica e aparato

teórico, a saber, artigos que tratam dos textos literários aqui elencados, e os teóricos

que auxiliam na reflexão sobre os conceitos de memória, identidade, entre outros.

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O objetivo principal centra-se em refletir e discutir sobre os conceitos memória

e velhice. Quanto aos objetivos específicos, são os seguintes: oportunizar a leitura

de textos literários que tematizem os conceitos de memória e de velhice;

desenvolver a crítica em relação ao padrão de normalidade, respeitando limites,

peculiaridades e diferenças; discutir a prática do professor em relação à leitura e

interpretação dos contos rosianos selecionados para o trabalho.

Quanto à metodologia de pesquisa, em continuidade às minhas propostas

como professora do Ensino Fundamental e na posição de pesquisadora do PPG

Letras, trata-se de um estudo de caráter qualitativo. No desenvolvimento da

investigação, foram utilizados dois tipos de fontes para a obtenção dos dados:

pesquisa bibliográfica e análise de contos rosianos que será de cunho bibliográfico,

de acordo com o aparato teórico selecionado para esta dissertação de mestrado.

Reafirma-se, portanto, a importância do tema da velhice na atualidade, uma

vez que a população humana está vivendo mais a partir dos avanços da medicina

que atualmente proporcionam uma melhora na qualidade de vida. Como a

população de velhos cresce em todo mundo, é de grande relevância a discussão do

tema do envelhecimento. Precisamos, como professores e pesquisadores, investigar

as representações culturais da velhice e suas relações com as práticas sociais.

Também se propõem algumas reflexões a partir da Mitologia Grega, uma vez que os

mitos fornecem os primeiros relados literários, elaborados por grupos humanos.

Para a análise das narrativas selecionadas, necessita-se do conceito da

narrativa curta, o conto, uma vez que esse gênero literário apresenta estrutura

própria, diversa da forma narrativa do apólogo e da crônica. Sabe-se que uma

narrativa que leve o nome de novela ou de romance não será assim se aceitar a

redução em sua extensão que bem caracteriza um conto. Para Massaud Moisés

(2013, p. 89), “a estrutura do conto, embora admita numerosas variações, não deve

confundir-se com a de nenhuma das restantes formas narrativas”. O termo “conto”

provém do latim computus, cálculo, conta, ou contus; do grego kóntos, commentus,

invenção, ficção. Para Moisés, o conto, no século XX, “desenvolve sutilezas que,

acentuando-lhe a fisionomia estética, o aproximam de uma cena do cotidiano,

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poeticamente surpreendida” com “a rapidez com que tudo se altera no mundo

moderno” (p. 88-89).

Os contos na produção literária de João Guimarães Rosa têm início em 1946,

com a publicação de Sagarana; segue-se o livro Primeiras Estórias (1962), que

contém Nenhum, nenhuma dentre seus vinte e um contos; e Tutaméia - terceiras

estórias (1967, último livro publicado em vida pelo autor, falecido em novembro do

mesmo ano), composto por quarenta contos, quatro prefácios e um glossário, em

que consta o conto Presepe, aqui selecionado para análise.

No capítulo Memória e Mitologia, procura-se analisar o conceito de Mito sob

uma perspectiva histórica, buscando compreensão da temática na mitologia Grega.

Dentre os autores que apoiam esse capítulo, destacam-se Massaud Moisés, Mircea

Eliade, Ernesto Grassi, Ernst Cassirer, Gilbert Durand, Maurice Halbwachs entre

outros. Observa-se que a ideia de memória está relacionada à existência da vida

como um todo e atrela-se à explicação da realidade para antigas civilizações. A

memória pode ser vista como garantia de identidade e reconstrução da história dos

indivíduos, com ênfase dos mais velhos, assunto em pauta nesta dissertação. Nas

narrativas míticas, percebe-se que o modo de ser de cada cultura é transmitido de

geração a geração. A importância atribuída ao mito deve-se, de modo especial, à

capacidade que têm essas narrativas de expressarem o conhecimento ancestral

pela via da literatura, poesia e prosa, desde o início da história da humanidade.

Para o estudo da memória atrelada ao mito, acrescenta-se a razão e, para

isso, a filosofia de Emmanuel Kant, como campo de conhecimento, será entendida a

partir da obra de Marilena Chaui (2005). Para ressignificar as teorias do

conhecimento que valorizam os sentidos, buscou-se como exemplo o quadro A

Incredulidade de São Tomé. Com as imagens de Clio, Euterpe e Tália, como filhas

de Mnemosyne, a deusa da memória, procura-se observar o papel dessa figura

mitológica como inspiradora da poesia, da dança e da comédia. Já o calendário

Maia representa o tempo cíclico; e Cronos, por sua vez, no mito helênico, representa

o tempo, não a época das colheitas e da abundância, mas no que diz respeito ao

tempo que não poupa o indivíduo da decrepitude e do envelhecimento.

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Para abordar a questão da subjetividade, insere-se adiante um relato pessoal.

Trata-se de uma experiência vivida com meu pai que, ao rever fotos antigas, passa a

rememorar fatos de sua vida.

Para a representação da memória e da tradição, verifica-se como, na

literatura, o tema memória se expressa na obra de João Guimarães Rosa, em

especial nos contos selecionados: Presepe e Nenhum, nenhuma.

No capítulo A velhice e a legislação, serão tratadas questões referentes à

velhice e à legislação com o apoio teórico de Simone de Beauvoir (1990). Para

ilustrar o assunto, acredita-se que as imagens de Tanatos em oposição a Eros

servem para representar o medo da morte da qual ninguém escapa. A seguir, são

inseridas as ideias de Philippe Ariés (2003) em relação ao homem e à morte em

tempos e espaços distintos. Neste mesmo capítulo, aborda-se a política nacional

para a proteção do idoso, assegurada pela legislação, Lei 10.741/2003.

São importantes, ao tratar-se da questão da identidade, as ideias do

jamaicano Stuart Hall. Quanto a Paul Ricoeur (1997), suas ideias provêm da reflexão

feita pela historiadora Sandra Jatahy Pesavento (2012). A referida autora embasará

também o capítulo seguinte, denominado O papel da História. O último capítulo

tratará da fortuna crítica de João Guimarães Rosa e, por fim, da análise dos textos

literários, importante objeto de estudo nesta dissertação.

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2 MEMÓRIA E MITOLOGIA

O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus.

É um mito brilhante e mudo – O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo. (Fernando Pessoa)

Para atender ao objetivo relacionado à discussão dos conceitos de memória e

mitologia, faz-se necessário revisar a mitologia grega, uma vez que os mitos contam

uma história sagrada, in illo tempore, o tempo fabuloso do princípio. Decidiu-se pela

mitologia grega porque, ao rever a Grécia Antiga, revisita-se o passado de várias

sociedades da antiguidade e porque a cultura Ocidental é o resultado da

contribuição da cultura grega, através dela é possível refletir sobre comportamentos

humanos.

Para Massaud Moisés (2013, p. 308-313), “O mito em sua definição primeira

vem do grego mythos, fábula, lenda, narrativa, ação. [...] remonta à Antiguidade

Clássica.” Também pode ser entendido como ficção e ilusão. É possível dizer,

assim, que o mito busca realizar uma explicação sobre a existência da vida como

um todo: natureza, relações sociais e principalmente a origem do Homem, e que

durante muito tempo explicou a realidade para as civilizações. Trata-se de narrativas

baseadas no modo de ser de cada cultura e que são transmitidas de geração a

geração. Mas o assunto mito nunca se esgota e o professor Massaud continua

dizendo que “A Renascença trouxe-o novamente à baila, com a restauração dos

valores greco-latinos. E o Iluminismo levantou outra onda de estudos em torno do

mito, que duraria praticamente até os nossos dias.”

Em Mito e Realidade, Mircea Eliade (2013), o filósofo romeno de tradição

existencialista, em suas reflexões, evidencia que os indivíduos da atualidade têm

uma visão mais ampla sobre o comportamento humano no que diz respeito à

religião, levando em consideração a dimensão histórica, contexto cultural vinculado

ao sagrado, como é possível observar no seguinte trecho: “É através da experiência

do sagrado”, diz ele, “do encontro com uma realidade transumana, que nasce a ideia

de que alguma coisa existe realmente, de que existem valores absolutos, capazes

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de guiar o homem e de conferir uma significação à existência humana.” (ELIADE,

2013, p. 123-124).

Ao criar mitos, o homem está dando sentido ao mundo, mas para tanto é

necessário que ele ponha em atividade a imaginação e assim passe a atribuir

significado a tudo o que faz. Com isso entra no plano do simbólico. Nesse sentido,

Eliade afirma que:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido do tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente o correu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos, sobretudo, pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios’’. (ELIADE, 2013, p.11).

O autor considera que o mito também tem como função “revelar os modelos

exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas” (Ibidem, p.13).

Para ele, os “mitos narram” os modos de agir e de pensar das sociedades do

passado e do presente. O autor afirma também que são os mitos que narram os

acontecimentos primordiais que tornaram o mundo tal qual conhecemos hoje. É,

portanto, possível afirmar que para o autor o mito é a experiência pessoal que vai

legitimar a renovação e o retorno às origens. Pode-se dizer também que o mito

chega à atualidade através de representações.

O filósofo italiano Ernesto Grassi1 assim define o mito: “O mito é o princípio

ordenador imóvel num tempo imperecível e permanentemente presente” (s.d.,

p.118), uma vez que reúne os elementos importantes e eternos da existência

humana e que, ao representá-los, os tornamos eternamente presentes, pois: “A

essência do mito torna-se mais facilmente apreensível quando o relacionamos com

o fenômeno tempo. Representa um acontecer tal como ocorreu ‘ in princípio’, ou

seja, num instante original e fora do tempo, numa era sagrada.” (GRASSI, s/d,

p.118-119).

1 O autor de Arte e Mito, nascido em Milão, 1902, morreu em Munique, 1991.

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Existe, entretanto, uma relação entre o desenvolvimento da linguagem, que

está ligada à construção do conhecimento nos primórdios da história humana, e o

pensamento mítico. Segundo Ernest Cassirer (1994), “A linguagem e o mito são

parentes próximos. Nos primeiros estágios da cultura humana, sua relação é tão

íntima e sua cooperação tão óbvia que é quase impossível separar um do outro.” O

autor ainda complementa, dizendo que “São dois brotos diferentes de uma única e

mesma raiz” (p.181), pois “ambos baseiam-se em uma experiência muito geral e

muito primitiva da humanidade, uma experiência de natureza antes social do que

física” (p. 183), para lembrar, então, que o mito, a linguagem, a religião, a arte e a

ciência são formas simbólicas.

É importante também refletir sobre o conceito de mito a partir do que é dito

pelo professor Gilbert Durand (2012). Para explicar a racionalidade do mito, o autor

assevera:

Entendemos por mito um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias. (DURAND, 2012, p. 62-63).

Nesse trecho, observa-se que, para Durand, o mito compreende as narrativas

sobre a história e a cultura dos povos, o que é transmitido por meio de um dos

veículos mais imediatos, a literatura − poesia ou prosa − para representar e

interseccionar os mitos na sociedade. Sabe-se também que a mitologia é um dos

primeiros assuntos da literatura a exemplo das obras de Homero, a Ilíada e a

Odisseia. Neste caso, o autor grego recupera personagens e acontecimentos das

narrativas iniciais. Relata a história de uma sociedade dando exemplo de seres

humanos que possuem valores importantes para o coletivo de sua sociedade. O

mito pode, assim, também revelar a história das sociedades. Nas sociedades

ocidentais, por exemplo, existiria um “Museu palavra”, metáfora criada por Durand

para designar o conjunto de imagens utilizadas pelas sociedades. Essas imagens,

estando na memória da humanidade, constroem seu imaginário. No caso de as

imagens serem padronizadas, elas não conseguem superar as práticas do

imaginário como narrativas.

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Como situar o pensamento mítico em relação ao pensamento racional,

pergunta-se a historiadora? A questão conduz à reflexão feita por Marilena Chaui

(2005) acerca do pensamento de Emmanuel Kant, quando esse filósofo busca uma

explicação para a razão em função da “crítica” em Crítica da razão pura. Para ele, a

razão humana não tinha o poder do conhecimento, uma vez que só conhecemos

algo pela estrutura interna de nossa razão. Sendo assim, torna-se necessário

entender de onde surgiu nossa razão. Segundo Kant (apud CHAUI, 2005, p. 56-57),

“[...] só conhecemos as coisas tais como são organizadas pela estrutura interna e

universal de nossa razão, mas nunca saberemos se tal organização corresponde ou

não à organização em si da própria realidade”.

Para poder explicar as fontes do conhecimento, buscam-se duas correntes

filosóficas: uma ficou conhecida como inatismo, que é o racionalismo, derivado do

latim ratio, que significa razão, termo que pode ter diversos sentidos. Para os

racionalistas, somente a razão humana é fonte de conhecimento, pois ao nascer a

trazemos em nossa mente por isso, inata, isto é, já nascemos com ela. “O inatismo

afirma que ao nascermos trazemos em nossa inteligência não só os princípios

racionais, mas também algumas ideias verdadeiras, que, por isso, são ideias inatas.”

(CHAUI, 2005, p. 69).

Ao contrário dos racionalistas, os defensores do empirismo (palavra de

origem grega empeiria, que significa ‘experiência sensorial’) afirmam que a razão é

adquirida pela experiência. Segundo os empiristas, todas as ideias são adquiridas

pelos sentidos: “O empirismo, ao contrário, afirma que a razão, com seus princípios,

seus procedimentos e suas ideias, é adquirida por nós pela experiência.” (Ibidem, p.

69). As consequências surgidas com as diferenças entre as duas correntes

filosóficas do conhecimento fizeram surgir a dúvida em relação à veracidade do

conhecimento. Uma das soluções foi pensada por Kant.

Kant escreveu a obra Crítica da razão pura explicada, a seguir, da seguinte

maneira por Marilena Chaui:

Por que crítica? Com essa palavra, Kant quer dizer que não serão examinados os conhecimentos que a razão alcança e sim as condições nas quais o conhecimento racional é possível. Por que Pura? Porque se trata do

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exame da razão antes e sem os dados oferecidos pela experiência. Escreve ele que a crítica não é crítica de livros e de sistemas filosóficos e sim da própria faculdade da razão em geral, considerada em todos os conhecimentos que pode alcançar sem valer-se da experiência. Ou seja, é verdade que todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, mas não é verdade que todos eles provenham dela. (CHAUI, 2005, p.77).

A autora ainda considera que:

Como o estudo se refere às condições necessárias e universais de todo conhecimento possível antes da experiência e sem os dados da experiência, tal estudo não é empírico. Ou seja, é a priori (tem prioridade com relação à experiência, é anterior á experiência e não provém dela) e não a posteriori (é posterior à experiência e depende da experiência). (CHAUI, 2005, p.77).

Para Kant, o conhecimento é transcendental, uma vez que, em geral, ocupa-

se menos dos objetos e mais de nosso modo de conhecer. Trata-se de uma

conceituação dada pela autora Marilena Chaui a respeito do que Kant estabelece

como explicação para as expressões a priori (prioridade em relação à experiência,

ou seja, é anterior a experiência) e a posteriori (posterior à experiência, ou seja,

depende da experiência). Sendo assim, é possível dizer que, para o filósofo, o

conhecimento é a síntese entre o sujeito e o objeto conhecido.

Com base no processo histórico do Ocidente, sabe-se que transformações

ocorreram a partir do Renascimento e do desenvolvimento da ciência moderna.

Esses acontecimentos levaram o homem a se perguntar e a buscar respostas sobre

a aquisição do conhecimento ou a episteme. Os filósofos do século XVII e XVIII

formularam teorias para explicar a aquisição do conhecimento. Muitas são as

teorias, mas as mais conhecidas são a racionalista e a empirista.

Para os racionalistas, o sujeito pensante possui ideias que teriam nascido

com ele, por isso inatas, e não necessitam de um objeto exterior para fazer com que

as ideias existam. Já o empirismo nega a existência de ideias inatas. Segundo essa

teoria, o conhecimento depende das experiências e das sensações, uma vez que os

objetos exteriores são percebidos por nós pelos nossos sentidos. Para os

empiristas, o conhecimento provém da percepção do mundo externo e da reflexão.

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A obra de Caravaggio, A incredulidade de São Tomé, mostra como a arte

pode representar o conhecimento como experiência dos sentidos, uma vez que

representa São Tomé como o apóstolo do “ver para crer”.

Figura 1 - Caravaggio, “A incredulidade de São Tomé” (1601-1602). Schloss Sanssouci, Potsdam

Fonte: <http://mosaicodecaravaggio.blogspot.com.br/2011/09/incredulidade-de-sao-mateus-1601-02.html>. Acesso em 01/07/15

Esse processo histórico modifica a maneira de pensar o conhecimento, uma

vez que há a passagem do mítico para o racional, mas sem romper definitivamente

com o passado. Sabe-se que os filósofos gregos mantinham suas crenças nos

mitos, durante o desenvolvimento de seu conhecimento racional que caracteriza a

filosofia. Dessa forma, é possível dizer que a mitologia mantém sua capacidade de

sensibilizar os seres humanos.

Os registros na memória guardam histórias de indivíduos e mantêm, portanto,

especificidades locais e, ao mesmo tempo, integram narrativas orais de grupos

sociais que passam a fazer parte do imaginário coletivo. Sobre o mito hoje

reconstituído pela memória, bem como a inserção da história como disciplina que

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pretende “reconstruir o passado”, a historiadora Sandra Jatahy Pesavento (2012, p.

50) considera que o tempo histórico é “uma invenção/ficção do historiador” que

“refigura imaginariamente o passado”. Julie Antoinette Cavignac, por sua vez,

professora da UFRN, relaciona as disciplinas história e antropologia no artigo “Mito e

memória na construção de uma identidade local”, situando a perspectiva história na

atualidade. Segundo Cavignac (2007, p.1), “O surgimento de um discurso

antropológico moderno, que integra a perspectiva histórica, é tido como uma

revolução significativa das Ciências Humanas”. Por isso, “detalhes importantes

ligados ao caráter localizado e histórico dos mitos” não podem ser deixados de lado,

uma vez que as histórias trazem mais do que “formas universais de pensamento

humano, elementos da filosofia autóctone” (VIVEIROS DE CASTRO apud

CAVIGNAC, 2007, p. 2).

A memória, no sentido mais comum do termo, diz-se da volta ao passado.

Trata-se de uma construção psíquica e intelectual que volta ao passado, de forma

seletiva, para lembrar-se de acontecimentos que não são somente do indivíduo que

lembra, mas de um indivíduo que faz parte de um contexto social e cultural. Além de

ser a capacidade de reter o tempo passado, protegendo-o do esquecimento total, a

memória é a capacidade de conservar o que se foi e não mais retornará. Sendo

assim, a memória pode ser vista como registros da identidade uma vez que reúne o

que somos e o que fazemos. Como diz Santo Agostinho em sua obra Confissões:

“Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de

inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie.” (2004, p. 266).

É grande esta força de memória, imensamente grande, ó meu Deus. É um santuário infinitamente amplo. Quem o pode sondar até ao profundo? Ora, esta potência é própria do meu espírito, e pertence à minha natureza. Não chego, porém, a apreender todo o meu ser. [...] Os homens vão admirar os píncaros dos montes, as ondas alterosas do mar, as largas correntes dos rios, a amplidão do oceano, as órbitas dos astros: e nem pensam em si mesmos! (AGOSTINHO, 2004, p. 268-269).

A partir do que diz o autor, o resgate do passado ou a capacidade humana de

reter e conservar o tempo salva o indivíduo da perda da memória e da consequente

perda da sua identidade, o que também pode ser visto como uma maneira de lidar

com a morte, pois através do rememorar torna-se presente o que está ausente.

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Na mitologia grega, a deusa da memória (este assunto será abordado

adiante) dava aos poetas o poder de voltarem ao passado e de rememorá-lo para a

coletividade. Tinha o poder de conferir imortalidade aos mortais, uma vez que suas

realizações, ao não serem esquecidas, tornavam-se imperecíveis ao tempo.

Este trabalho investiga, portanto, o tema memória como identidade dos

velhos, a fim de compreender alguns aspectos a ela associados. Por isso, o mito

Mnemosyne foi lembrado, tendo em vista a pertinência do tema para análise dos

contos aqui selecionados.

Nessa medida, a maneira como o passado influencia a vida do homem

ultrapassa, como diz Maurice Halbwachs (2003), o plano individual, tendo em vista

que as memórias de um indivíduo nunca são apenas suas, mas fazem parte de um

grupo. Para o autor, elas são construções dos meios sociais e, sendo assim, eles

determinam o que é importante lembrar. É necessário ter claro que o autor vai trazer

para a discussão as classes sociais. Conforme diz, no prefácio, Jean Duvignaud, ele

“mostra que é impossível conceber o problema da recordação e da localização das

lembranças quando não se toma como ponto de referência os contextos sociais

reais que servem de baliza a essa reconstrução que chamamos de memória” (p.8).

É importante perceber como o autor considera a análise da memória uma

definição de tempo. Para ele, “o tempo já não é o meio privilegiado e estável em que

se desdobram todos os fenômenos humanos, comparável ao que foi a luz para os

físicos de outrora” (p. 12). Mas, por outro lado, é possível perceber o tempo como

entendimento estabelecido? Para o autor de A Memória Coletiva:

Evoca o depoimento da testemunha, que só tem sentido em relação a um grupo do qual esta faz parte, porque pressupõe um evento real vivido outrora em comum e, através desse evento, depende do contexto de referência no qual atualmente transitam o grupo e o indivíduo que o atesta. (HALBWACHS, 2003, p.12).

Como se vê, a permanência do indivíduo como lembrança se dá a partir da

relação que o mesmo possui com seu grupo social. Contudo, pode-se observar e

compreender a memória individual a partir da visão de Halbwachs:

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É claro, a memória individual existe, mas está enraizada em diferentes contextos que a simultaneidade ou a contingência aproxima por um instante. A rememoração pessoal está situada na encruzilhada das redes de solidariedades múltiplas em que estamos envolvidos. (HALBWACHS, 2003, p. 12)

Portanto, a memória pessoal pode ser vista como uma sucessão de

acontecimentos ocorridos na vida e que resultem em modificações nas relações que

se mantêm com o grupo do qual se faz parte. É interessante observar que o autor

situa a memória individual como acontecimentos pessoais que transformam as

relações com o grupo ao qual se pertence. Neste sentido, ainda no prefácio da obra,

Jean Duvignaud anuncia que, para Halbwachs (2003) existe, em A Memória

Coletiva, uma notável distinção entre a ‘memória histórica’ de um lado, pressupondo

a reconstrução dos dados fornecidos pelo presente da vida social e projetada sobre

o passado reinventado, e por outro lado a ‘memória coletiva’, que magicamente

recompõe o passado. Entre essas duas direções da consciência coletiva e individual

se desenvolvem as diversas formas de memória, que se alternam conforme as

intenções por elas visadas (p.13-14).

De fato, conforme Halbwachs (2003), “Recorremos a testemunhos para

reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento

sobre o qual já temos alguma informação, embora muitas circunstâncias a ele

relativas permaneçam obscuras para nós.” (p.29). Assim, acreditamos que a

memória pretende manter o passado no presente e ao lembrarmos toma-se

consciência de si e dos outros. Nesse sentido, o autor assevera que:

O homem já pode sentir que é duplo, pois enquanto um grande número de suas impressões se sucede sem deixar traços, outros se agarram a objetos estáveis; ele deve perceber que em si contém dois seres – um que está sempre mudando e não passa de (desaparecimento no passado) aparição breve e desaparecimento imediato que absolutamente não se conserva e não deixa traços. (HALBWACHS, 2003, p. 111).

No que se refere a essa “duplicidade”, a experiência do indivíduo revela que

“o ‘eu’ e sua duração se localizam no ponto de encontro de duas séries diferentes e

às vezes divergentes: a que se liga a aspectos vivos e materiais da lembrança, a

que reconstrói o que é apenas passado” (Ibidem, p. 12). Para introduzir uma

experiência vivida, a recorrência ao pensamento do autor de A Memória Coletiva

lembra, com efeito, que os materiais da lembrança podem ora divergir, ora caminhar

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juntos na reconstrução do que é apenas passado. Da memória subjetiva à memória

de contar, já ocorre certo distanciamento.

Assim, nem eu, nem meu pai sabíamos como uma certa tarde de um dia

comum mudaria nosso modo de ver a vida após encontrarmos uma caixa contendo

fotografias antigas da família, especialmente dele quando ainda bem mais jovem, na

companhia de alguns amigos. Para meu pai, acredito que foi uma forma de

rememorar sua juventude, mostrando para si mesmo como já teria sido diferente

daquele homem agora combalido pelos anos. Ele não conseguiu disfarçar sua

tristeza. Passados setenta e oito anos, comparava a imagem de um homem

saudável à sua imagem no presente, agravada por uma doença que o debilitava e o

consumia. Para mim, a experiência teve outro sentido. No início queria alegrá-lo com

a possibilidade de relembrar verdes momentos de sua vida. Com essa intenção,

mostrei a ele tais fotos em que ele aparecia jovem, sem maiores preocupações com

a finitude. O que os “materiais de lembrança” trouxeram à memória divergiram no

sentido da reconstrução do que era apenas passado. Meu pai tornou-se abatido ao

se dar conta de que não era mais a pessoa da foto, utilizando a expressão “Um dia

eu fui assim”, talvez desejando intensamente voltar a ser o jovem que via na

fotografia. A identidade está mesmo sempre em construção, pensei.

O jamaicano Stuart Hall (2000), com propriedade, considera o conceito de

identidade complexo e fragmentado em sua essência. E quando a memória reaviva

uma identidade presa no passado, o desejo natural seria o de o indivíduo entender-

se com a passagem do tempo. E sabemos que quem recorda narra uma história

mesmo sem palavras verbalizadas. Nesse sentido, é importante refletir sobre o que

a memória tem de representativo em relação à identidade do sujeito envelhecido e à

sociedade em que vive. Buscou-se esclarecimento nas palavras de Ecléa Bosi

(2015, p, 68), quando diz que “A narração da própria vida é o testemunho mais

eloquente dos modos que a pessoa tem de lembrar. É a sua memória”.

Quanto a Maurice Halbwachs (2003), refere-se ao seu livro póstumo,

publicado em 1950, A Memória Coletiva, quando o autor trata do “duplo”. Em

prosseguimento ao tema, qualifica a memória em dois tipos: a memória individual e

a memória coletiva. Na memória individual ou histórica, os dados do presente

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servem como elementos para reinventar o passado, limitados ao espaço e ao tempo;

na memória coletiva, existe a construção “magicamente” do passado (HALBWACHS,

2003, p. 71); aqui os limites do tempo e do espaço são diferentes, uma vez que são

mais estreitos e distanciados entre si. Segundo o autor:

Se essas duas memórias se interpenetram com frequência, especialmente se a memória individual para confirmar algumas de suas lembranças para torna-las mais exatas e até mesmo para preencher algumas de suas lacunas, pode se apoiar na memória coletiva, nela se deslocar e se confundir com elas em alguns momentos, nem por isso deixará de seguir seu próprio caminho, e toda essa contribuição de fora é assinalada e progressivamente incorporada à sua substância. Por outro lado, a memória coletiva contém as memórias individuais, mas não se confunde com elas – evolui segundo suas leis e, se às vezes determinadas lembranças individuais também a invadem, estas mudam de aparência a partir do momento em que são substituídas em um conjunto que não é mais uma consciência pessoal. (HALBWACHS, 2003, p. 71-72).

Trata-se de conceituar a memória sob diferentes prismas: ora o autor qualifica

de memória individual, ora memória pessoal; ora memória coletiva, ora social;

memória autobiográfica e memória histórica. “A primeira receberia ajuda da

segunda, já que afinal de contas a história de nossa vida faz parte da história em

geral.” (Ibidem, p. 73).

Sobre a memória coletiva, é possível verificar a importância que têm os

velhos, sua memória individual, na composição da memória coletiva. A sabedoria

ancestral alicerça a tradição. Esta, por sua vez, entra em processo ao mesclar-se

com a cultura dos jovens. Ahmadou Hampaté-Bá, (1900-1991), intelectual,

professor, historiador e filósofo nascido em Bandiagara, atual Mali, Oeste da África,

publicou inúmeros trabalhos sobre a África. Ele afirma que a herança de

conhecimentos de toda espécie é transmitida ao longo dos séculos: “Essa herança

ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes

depositários, de quem se pode dizer são a memória viva da África.” (HAMPATÉ BÂ,

1982, p.181). Assevera o autor que a tradição oral transmite tesouros que pertencem

ao patrimônio cultural de toda a humanidade. Os velhos seriam os depositários da

oralidade enciclopédica, legado da tradição e da linguagem, das paródias, dos

costumes, ensinamentos éticos e morais, além das histórias que compõem o

imaginário: “Em África, quando morre um ancião, arde uma biblioteca, desaparece

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uma biblioteca inteira sem que as chamas acabem com o papel.”2 Com essa frase o

autor mostra a importância da transmissão de conhecimentos através da oralidade

como fonte de conhecimento.

É relevante, portanto, verificar como assuntos relacionados à memória, ao

sentimento de rememorar momentos importantes vivenciados pela humanidade, no

que diz respeito ao envelhecimento, têm sido habilmente tratados pela literatura.

Para introduzir a abordagem literária nesta dissertação, perpassada pela

memória que reatualiza a tradição cristã, lembrou-se que no conto Presepe, de João

Guimarães Rosa, é a vez de uma narrativa curta expressar lembranças de um

ancião que reavivam os rituais da tradição. Com base na narrativa de Guimarães

Rosa, afirma-se que o mito é a linguagem poética. Trata-se da poiesis, dita por

Massaud Moisés (2013) como “ação de fazer, criar alguma coisa”. A narrativa

rosiana dá conta dessa linguagem, tal como exemplifica Moisés, quando cita

Camões e Eliot, afirmando que “ambos assumem, nalgumas facetas do seu universo

poético, uma postura em face da realidade análoga à do homem primitivo antes da

História e da Lógica” e, ao concluir a definição do verbete “mito”, soma-se, dentre os

exemplos, o nome de Guimarães Rosa “e sua mítica (re)construção do sertão.”

(MOISÉS, 2013, p.312-313). Diante desse fato constatado, é oportuno o

conhecimento do mito e da linguagem poética. Ambos convivem de modo que, ao

leitor, é estimulada a reflexão sobre aspectos culturais do interior do sertão mineiro e

do humano no sentido amplo, o sertão é o próprio mundo, pois o homem do

pensamento mítico não envelhece.

Rosa traz os dramas do passado e do presente, envolvendo temas do

cotidiano e remetendo à sua sempre modernidade. Segundo essa concepção,

alguns aspectos de sua linguagem são insólitos, dada a presença de arcaísmos

renovados, com o resgate que permite o reconhecimento do cotidiano e sua

compreensão.

2 Disponível em: <http://www.casafrica.es/po/detalle-who-is-who>. Acesso em 6/09/2015.

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Ao ser questionado por Günter Lorenz sobre a sua aproximação com Deus,

quando o autor escrevia, se tal fato também se relacionava com a língua, Guimarães

Rosa respondeu:

Isto provém do que eu denomino a metafísica de minha linguagem, pois esta deve ser a língua da metafísica. No fundo é um conceito blasfemo, já que assim se coloca o homem no papel de amo da criação. O homem ao dizer: eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a si mesmo, domina a realidade da criação. Eu procedo assim, como um cientista que também não avança simplesmente com a fé e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós, o cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. Seu método é meu método. O bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobra, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra, ele se descobre a si mesmo. Com isto repete o processo da criação. (ROSA, 1994, p.48)

A memória, seja ela coletiva, seja individual, precisa articular-se com a

linguagem, uma vez que pela memória pessoas, lugares e as mais longínquas

situações, antes ausentes, tornam-se presentes. Assim, a memória coletiva é como

o folclore, necessita de tempo suficiente para sua consolidação. A memória não se

remete apenas a fatos recentes, mas ela se refere aos aspectos da cultura, da vida

e da identidade de um povo através do passado e da valorização dos feitos e dos

lugares nem sempre contextualizados no tempo ou na geografia.

As narrativas proferidas pelos velhos no seio da família são histórias

pessoais, mas que não podem ser tidas somente como particulares e individualistas,

uma vez que são influenciadas pelo convívio social. Com o tempo, essas narrativas

orais podem tornar-se coletivas. Nesse sentido, compreende-se a narrativa como

transmissão de experiências entre gerações. Ao narrar, com o objetivo de

rememorar histórias próprias e peculiares , o narrador pode transcender a memoria

individual, e a memoria torna -se coletiva e, portanto, social, ou seja, também do

grupo ao qual o indivíduo pertence.

Já o estudioso Johan Huizinga questionava-se sobre qual o valor da história

para a cultura, enquanto o autor buscava enfatizar o valor deste saber. Para ele, a

história era a forma por meio da qual o homem buscava compreender sua existência

no presente através do passado: “Nossa cultura atual mais do que nunca está

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impregnada de passado. Para compreender a si mesma não pode menos que

despejar-se continuamente no fluxo dos tempos.” (HUIZINGA, 1934, p. 89).

Para Huizinga, por trás do processo cognitivo de compreensão do passado,

encontrava-se a “função subjetiva da imaginação” por meio da qual se poderia

“reunir o que da realidade é conhecível [...] com o fim de tornar observável uma

pluralidade inapreensível” (HUIZINGA, 2005, p. 98).

Octávio Paz (2012), na definição de poesia, trata da rememoração dos fatos

como ação recorrente na atividade poética, oportunidade em que a subjetividade e a

imaginação entram em jogo na atividade poética:

Operação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos escolhidos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; retorno à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Prece ao vazio, diálogo com a ausência: tédio, a angústia e o desespero a alimentam. Oração, ladainha, epifania, presença. Exorcismo, conjunto, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. (PAZ, 2012, p.21).

Ainda, sobre a poesia, segundo Paz, ela “Nega a história: em seu seio todos

os conflitos objetivos se resolvem e o homem finalmente toma consciência de ser

mais que passagem.” (PAZ, 2012, p.21). Nessa definição, é possível verificar como é

importante estabelecer relações entre história e memória. Convém perceber as

várias formas utilizadas ao definir poesia, uma vez que para o autor ela engloba

todos os aspectos da vida.

Narrar nossa história de vida a partir apenas do tempo presente é negar que o

passado a ele se junte e permita diferenciar atitudes culturais que eram comuns

àquele tempo e que são vistas de maneira diferente no presente. Não rememorar,

no sentido de não lembrar, é negar experiências de vida, é amputar a história. Ao

narrar suas histórias, a memória necessita de nomes. Na realidade, é possível dizer

que a memória se mostra animada pela intersubjetividade. Assim, o tempo da

memória é a lembrança humana que o qualifica. Pode-se dizer que é um tempo no

qual a imaginação criadora é inevitável. A memória sobrevive, pois, de um tempo

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que já passou. Pela memória, as pessoas, lugares e as mais longínquas situações

se fazem presentes.

Para os antigos gregos, a memória era considerada força divina, ou seja, era

a deusa Mnemosyne, mãe das musas, protetora das artes e da história. A deusa da

memória dava às pessoas e aos poetas o poder de voltarem ao passado e lembrá-lo

quando necessário. Com isso, conferia imortalidade aos humanos ao registrar sua

memória para que servissem de exemplo às gerações futuras. Nesse sentido,

afirma-se que a memória está ligada à ideia do tempo que passa. Como diz Marilena

Chaui:

A memória não é um simples lembrar ou recordar, mas revela uma das formas fundamentais de nossa existência, que é a relação com o tempo, e, no tempo, com aquilo que está invisível, ausente e distante, isto é, o passado. A memória é o que confere sentido ao passado como diferente do presente (mas fazendo ou podendo fazer parte dele) e do futuro (mas podendo permitir esperá-lo e compreendê-lo). (CHAUI, 2005, p. 142).

A Revolução Industrial e o urbanismo foram decisivos para os mais velhos

que, ao perderem sua capacidade produtiva, perderam seus trabalhos por vezes

artesanais e foram reduzidos à miséria e assim ao abandono e ao esquecimento. Ao

longo do século XX, percebem-se períodos em que os velhos ora são valorizados,

ora desvalorizados. Há uma situação de exclusão social vivida pela maioria dos

idosos. Como todo trabalho sobre a velhice deve levar em consideração o fato de a

velhice ser uma construção social, significa dizer que o respeito à velhice depende

do contexto social e histórico no qual os indivíduos estão inseridos. Sendo assim, a

valorização da memória dos velhos varia de acordo com a sociedade e época em

que vivem. Pode-se entender, portanto, que em nossa sociedade a memória dos

velhos muitas vezes é desvalorizada.

Jacques Le Goff (2013, p. 400) também considera importante que os gregos

antigos fizeram da Mnemosyne a deusa da memória, observando que ela era mãe

de nove musas procriadas em nove noites passadas com Zeus. Mnemosyne

buscava lembrar aos homens os heróis e seus feitos e presidia a poesia lírica. Pode-

se dizer, dessa forma, que o poeta era um homem possuído pela memória, um

“adivinho do passado”, uma testemunha inspirada nos ‘tempos antigos’, da Idade

Heroica e, por isso, da idade das origens. Segundo o autor,

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A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens. (LE GOFF, 2013, p.437).

Entre os mitos gregos, buscava-se explicar os acontecimentos para os quais

não se tinha ainda explicação científica: Mnemosyne, a deusa da memória, evocava,

pois, o conhecimento do passado, do presente e do futuro. Os poetas inspirados por

essa deusa tinham acesso às realidades originais (ELIADE, 2013, p.108). A

mitologia grega é repleta de histórias e contos sobre deuses que revelam seu lado

humano e, sendo assim, acompanham a história do homem desde a infância da

humanidade.

Infere-se da mitologia grega que Mnemosine Mvnuooúvn (Mnémosýne),

Mnemósina é um derivado do verbo uiuvnokelv (mimneskein), “fazer-se lembrar,

fazer pensar, lembrar-se de”. (Mnêmon), donde provém a expressão “a

personificação da Memória”, filha de Urano e Géia, pertence ao grupo das Titânidas.

Zeus uniu-se a ela durante nove noites consecutivas e foi pai, após um ano, das

nove Musas. Existia uma fonte denominada Mvnuoouvn (Mnemosyne), “fonte da

Memória”, junto ao oráculo de Trofônio, ao lado de outra fonte denominada Lete, a

do esquecimento; esquecer o profano para guardar o sagrado, eis o que era

transmitido por esse oráculo. No Tártaro, era de onde as almas bebiam sua água

para poder reencarnar e, por isso, esqueciam sua existência anterior. Mnemosyne

também é responsável pela poesia, uma vez que, reiterando Octavio Paz (2012), a

poesia nega a história e o homem assim toma consciência de ser mais que

passagem.

Ao tratar de Clio e Calíope como participantes na criação do mundo, “como

narrativas que falam ao mesmo tempo do acontecido e do não acontecido, tendo a

realidade como referente a confirmar, a negar, a ultrapassar, a deformar”, a

historiadora Pesavento reafirma a posição de Paul Ricoeur, para dizer que tanto Clio

quanto Calíope seriam “refigurações de um tempo, configurando o que se passou no

caso da História, ou o que se teria passado, para a voz narrativa, no caso da

literatura. Ambas são formas de explicar o presente, inventar o passado e imaginar o

futuro.” (PESAVENTO, 2012, p. 80-81).

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Figura 2 - Musas Clio, Euterpe e Tália - três filhas da Memória ou de Mnemosyne, de Eustache Le Sueur (1616-1655). Museu do Louvre, Paris

Fonte: <https://www.google.com.br/search?q=pintura+de+le+sueur&biw>. Acesso em: 24/06/2015

No contexto mítico, recordar significa tornar eternos os momentos do

passado e também conferir imortalidade àquilo que estaria perdido, ou seja, trazer à

tona as tradições dos antepassados que nos tornaram o que somos culturalmente.

Aqui, é possível pensar no tempo na mitologia, ou seja, no tempo cíclico entre os

gregos, quando as situações se repetem e os acontecimentos retornam tal como o

sol e a lua, as estações do ano, etc. Cronos3, por sua vez, representa o tempo que

não poupa o indivíduo e o envelhece impiedosamente, com o desgaste físico,

desestabilizando ou anulando muitas vezes os registros da memória, e agindo de

modo impiedoso no desgaste do amor, na diferença entre jovens e idosos, entre

familiares e em relacionamentos conjugais, etc. O tempo cíclico dos mitos fica

evidenciado na imagem do Uroboro grego e pelo Calendário Maia no continente

americano. Não sem razão, lembra a circularidade dos ponteiros de um relógio.

3 O tempo como tema já aparece na história da criação da humanidade. O mito de Cronos, antes aqui referido, era representante do tempo cronológico para os gregos. Cronos era o filho mais novo de Urano e Gaia. Cronos, por ordem de sua mãe, castrou seu pai e com isso o destronou. Cronos, tendo-lhe tomado o poder, desposou sua irmã, Réia. Tiveram muitos filhos, mas Cronos os devorava ao nascerem talvez por desconfiar que os filhos se insurgissem contra ele no futuro. Réia, com medo pelo filho, escondeu Zeus, que adulto volta e cumpre a profecia do avô e o faz vomitar os filhos engolidos, declara guerra a Cronos e a vence. Com a vitória, divide com seus irmãos os reinos do pai. Adiante, a dissertação tratará do mesmo mito ao se referir a Saturno em sua duplicidade, enfatizando a decrepitude e a velhice, com o personagem rosiano Tio Bola.

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Figura 3 - Calendário Maia

Fonte: <https://www.google.com.br/search>. Acesso em 23/11/15

Figura 4 - Ouroboros, o mito do eterno retorno

Fonte: <http://destenebra.blogspot.com.br/2011/07/o-mito-do-eterno-retorno-ouroboros.html>. Acesso em 21/12/2015

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Figura 5 - Cronos clipping Cupid’s wings (1694). Denver Art Museu, Pierre Mignard (1612–1695)

Fonte:<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pierre_Mignard_ %281610-1695%29_-Time_Clipping_Cupid's_Wings_%281694%29.jpg>

Sabe-se da existência de culturas e sociedades inteiras, cuja história e

tradição dependem da memória dos velhos. Nessas, conforme afirma Ecléa Bosi

(2015), ao contrário de outras que desconsideram as lembranças de velhos, estes

são respeitados pelo fato de serem portadores do conhecimento e da cultura.

Então, é possível reafirmar que a memória é uma forma de conhecimento e

transmissão de cultura. Guardamos na memória, pois, acontecimentos que possuem

significação em nossa vida, e que quando lembrados nos trazem de volta

acontecimentos importantes. Lembrar e recordar são, portanto, funções que temos

graças à memória. Nossas reminiscências podem vir à tona, quando diante de uma

situação no presente somos levadas à lembrança de uma situação passada: não

apenas uma imagem evoca-nos o passado, mas outros sentidos além da visão,

como olfato, audição, paladar e tato. Ao ser capaz de rememorar, estamos

evocando o passado, recriando-o. A memória é a garantia de nossa identidade, por

isso tão importante na fase da velhice, quando pessoas mais velhas buscam

reencontrar-se com um tempo, com o que foram e com o que fizeram.

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3 A VELHICE E A LEGISLAÇÃO

3.1 A VELHICE SEGUNDO SIMONE DE BEAUVOIR

Sobre os efeitos do tempo no indivíduo, conforme mostra Simone de Beauvoir

no livro A velhice (1990), verifica-se que ser velho, além de ser algo natural,

depende da sociedade a que se pertence, pois cada sociedade trata de maneira

diferenciada o declínio biológico de seus indivíduos. Beauvoir afirma que:

A velhice, enquanto destino biológico, é uma realidade que transcende a história, não é menos verdade que este destino é vivido de maneira variável segundo o contexto social; inversamente: o sentido ou o não sentido de que se reveste a velhice no seio de uma sociedade coloca toda essa sociedade em questão, uma vez que, através dela, desvenda-se o sentido ou o não sentido de qualquer vida anterior. (p. 16).

Assim, não se pode afirmar o que significa o declínio biológico, pois segundo

essa concepção, cada sociedade elabora seus valores e um sentido próprio para o

fato de envelhecer. Mas se pode defini-lo com uma citação de Beauvoir, segundo a

qual “O organismo declina quando suas chances de subsistir se reduzem.” (Ibidem,

p.23).

A humanidade, em todos os tempos, desde a antiguidade, buscou as causas

para justificar o envelhecimento humano. Na Grécia antiga, por exemplo, em função

da necessidade de expansão territorial e de escravos, vivia-se em guerra. Nesse

contexto, os mais velhos eram excluídos, uma vez que era necessário possuir a

força física. Isso fica evidente também nas obras de arte da sociedade grega

(Ibidem).

Apesar disso, a velhice era valorizada na cultura grega e a ela estavam

associados a sabedoria e o poder, cabendo aos velhos geralmente o papel de

conselheiros. Neste sentido, Platão afirma, em A república, que “Os mais idosos

devem mandar, e os jovens, obedecer.” (apud BEAUVOIR, 1990, p. 135).

Confirma-se, ainda, essa valorização com outra citação de Platão em As Leis:

“Não podemos possuir nenhum objeto de culto mais digno de respeito do que um pai

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ou um avô, uma mãe ou uma avó oprimidos pela velhice’” (apud BEAUVOIR, 1990,

p.136). Mas a decadência física dos velhos mais pobres era desvalorizada nessa

sociedade grega antiga.

Em princípio, é possível dizer que a sabedoria compensava a perda de

vitalidade corporal dos mais velhos, pois tal condição é dita por Platão que, “‘Quanto

mais se enfraquecem os outros prazeres – os da vida corporal, tanto mais crescem,

em relação às coisas do espírito, minhas necessidades e alegrias.” (apud

BEAUVOIR, 1990, p. 135).

Durante a Idade Média, a velhice continuou sem ser entendida, pois as

características sociais da Idade Média não eram favoráveis aos mais velhos, uma

vez que a instabilidade social causada pelas guerras e o trabalho servil nos feudos

necessitavam de força física e não da sabedoria acumulada pelos anos de vida,

portanto todos esses fatores tornavam a sociedade desfavorável ao idoso. Com a

ascensão da burguesia, o corpo humano passou a ser considerado pela medicina

como uma máquina e, sendo assim, esse corpo degrada-se como as peças de uma

máquina. E como diz Beauvoir:

[...] a noção de ‘desgaste’ permaneceu sempre muito vaga. Por outro lado, Stahl

4 inaugura a teoria conhecida pelo nome de vitalismo

5: existiria no

homem um princípio vital, uma entidade, cujo enfraquecimento acarretaria a velhice, e o desaparecimento, a morte. (BEAUVOIR, 1990, p. 27).

Somente a partir da metade do século XIX, a medicina realmente voltada aos

velhos começou a existir. Daí em diante, principalmente na década de 30, a situação

dos velhos começa realmente a mudar, uma vez que pesquisas sobre a velhice

foram realizadas. Após a segunda guerra mundial, estudos sobre a velhice

ganharam impulso. Para Beauvoir:

4 Georg Ernst Stahl (1660-1734), químico e médico alemão, nascido em Ansbach, Franconia, criador do animismo, segundo o qual a alma regula o funcionamento do organismo, e mais conhecido como principal mentor da teoria do flogístico de combustão. Trabalhou como médico em Weimar e foi conferencista de medicina na Universidade de Hale. Tornou-se médico do Rei da Prússia (1716), Frederick William I. Disponível em: <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/GeogErns.html>. Acesso em: 15/11/15. 5 A teoria dos humores fora abandonada, mas persistia num plano mítico. Faraday, numa conferência célebre, comparou a velhice e a morte à chama de uma vela que vacila e se apaga. A imagem permanece viva até hoje. (BEAUVOIR, 1990, p. 28).

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A medicina moderna não pretende mais atribuir uma causa ao envelhecimento biológico: ela o considera inerente ao processo da vida, do mesmo modo que o nascimento, o crescimento, a reprodução, a morte. [...] parece que cada organismo já contém desde o início sua velhice, inelutável consequência de sua completa realização. (BEAUVOIR, 1990, p. 32-33).

Com os avanços da medicina, há uma mudança na saúde dos mais velhos, o

que permite que vivam por mais tempo. Sabe-se que a saúde depende do nível de

vida do indivíduo. Assim, estudar a velhice acarreta saber sobre a sociedade e sobre

o lugar que nela lhe é destinado; da sua representação como indivíduo em

diferentes tempos e espaços.

A velhice, entendida por Simone de Beauvoir como fenômeno biológico com

consequências psicológicas, modifica a relação do homem no tempo, com o mundo

e com a sua própria história. O medo da morte teria sido evidenciado pelos mitos

gregos com a imagem de Tanatos6, o que se opõe a Eros.

Figura 6 - Tânato como um jovem alado, em escultura de mármore no templo de Artemisa, em Éfeso (325-300 a.C.)

Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/T%C3%A2nato>. Acesso em: 15/11/15

6 De acordo com essa mitologia, o deus grego Tânatos, que era irmão de Hipnos, o sono, e filho de

Nix, a Noite e Érebro, as trevas. Tânatos foi aprisionado por Sísifo e resgatado por Ares. Sísifo é enviado para o reino de Hades dos mortos; lá chegando pede a Perséfone, mulher de Hades, que o liberte para que possa punir sua mulher e voltar em três dias, o que não ocorre. Vive com sua mulher por muitos anos até ser encontrado, já idoso, por Tânatos, a morte da qual ninguém escapa. Sísifo é obrigado a regressar ao mundo dos mortos onde lhe é aplicada uma punição que é rolar uma pedra montanha a cima para que uma vez lá, rolasse novamente até em baixo e seu trabalho recomeçasse por toda a eternidade.

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Figura 7 - Mistério dos Deuses: Eros

Fonte:<http://01greekmythology.blogspot.com.br/2013/09/eros.html>. Acesso em 15/11/2015

Philippe Ariés (2003), historiador francês que construiu sua trajetória com

documentos iconográficos, mostra a relação do homem com a morte em tempos e

espaços distintos. A morte pode ser vista como a destruição do corpo pela doença e

pela velhice. Interessante observar o que diz Jean Pierre Vernant (1990, p. 114):

“Memória aparece como uma fonte de imortalidade, pois podemos narrar nossas

histórias.” Para Ecléa Bosi (2015, p. 88), “A narração é uma forma artesanal de

comunicação. Ela não visa a transmitir o ‘em si’ do acontecido, ela tece até atingir

uma forma boa. Investe sobre o objeto e o transforma”. Ou seja, o velho ao narrar

suas experiências as “transforma em experiências dos que escutam”, reproduzindo-

as por gerações.

Para Beauvoir (1990), “A idade modifica nossa relação com o tempo; ao longo

dos anos, nosso futuro encolhe, enquanto nosso passado vai se tornando pesado.”

(p.445). Indo mais além nas suas reflexões, a autora define o velho “como um

indivíduo que tem uma longa vida por trás de si, e diante de si uma expectativa de

sobrevida muito limitada”. Por esse motivo, “A maioria dos velhos [...] recusam o

tempo porque não querem decair; definem seu antigo eu como aquele que

continuam a ser: afirmam a sua solidariedade com sua juventude.” (p. 446).

Sobre o conceito de velhice, Jean Chevalier (1995) considera que “Se a

velhice é um sinal de sabedoria e de virtude [...] é que se trata de uma prefiguração

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da longevidade, um longo acúmulo de experiência e de reflexão, que é apenas uma

imagem imperfeita da imortalidade.” (CHEVALIER, 1995, p.934). O autor do

Dicionário de símbolos anota importante distinção entre o que é ser “velho” e o que

significa ser “antigo”. Este último termo significa “o ancestral”, e possui um caráter

sagrado qualquer que seja o objeto ou pessoa assim qualificados:

O antigo evoca desde logo uma espécie de elo com as forças supratemporais de conservação. O fato de que um ser tenha resistido à usura do tempo é considerado como prova de solidez, de autenticidade, de verdade. (CHEVALIER, 1995, p. 934).

Assim, de forma “paradoxal, mas bastante justa, o antigo sugere a infância, a

primeira idade da humanidade, bem como a primeira idade da pessoa, a nascente

do rio da vida.” (Ibidem, p. 63). Ao contrário do “velho”, associado geralmente à

decrepitude e à fragilidade, o “antigo” é entendido como “persistente”, “durável”,

“participante do eterno”.

Para Simone de Beauvoir, no capítulo Velhice nas sociedades históricas, é

difícil estudar a condição dos velhos nas diversas épocas, devido à inexistência de

documentação específica ao assunto, uma vez que os idosos foram quase sempre

incorporados ao conjunto dos adultos: “Das mitologias, da literatura e da iconografia

destaca-se uma certa imagem de velhice, variado de acordo com os tempos e os

lugares. Mas que relação essa imagem sustenta com a realidade?” (1990, p. 109),

pergunta-se a autora, enquanto distingue dois sentidos para a palavra “velhice”.

Trata-se de

Uma certa categoria social mais ou menos valorizada segundo as circunstâncias. É, para cada indivíduo, um destino singular – o seu próprio. O primeiro ponto de vista é o dos legisladores, dos moralistas; o segundo, o dos poetas; quase sempre, eles se opõem radicalmente um ao outro. Moralistas e poetas pertencem sempre às classes privilegiadas e esta é uma das razões que tira de suas palavras uma grande parte de seu valor: eles dizem sempre apenas uma verdade incompleta e, muito frequentemente, mentem. Entretanto, como os poetas são mais espontâneos, são mais sinceros. Os ideólogos forjam concepções da velhice de acordo com os interesses de sua classe. (BEAUVOIR, 1990, p. 109).

A autora denuncia o silêncio da história e da literatura em relação à velhice,

assegurando que se pode falar de uma história da mulher, símbolo e espaço de

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certos conflitos masculinos, ainda que, na aventura humana, ela nunca tenha sido

sujeito.

Ela foi pretexto e móvel [...]. O velho, enquanto categoria social, nunca interveio no percurso do mundo [...] é um adulto macho de idade avançada. Quando perde suas capacidades, aparece como outro; torna-se, então, muito mais radicalmente do que a mulher, um puro objeto; ela é necessária à sociedade; ele não serve para nada: nem valor de troca, nem reprodutor, nem produtor, não passa de uma carga. (BEAUVOIR, 1990, p. 110, grifo da autora).

A preocupação de Simone de Beauvoir refere-se à falta de documentação

para a quebra do silêncio que anula a história da velhice. Suas considerações

revestem-se de uma crítica dirigida às classes dominantes, único espaço que

absorve a questão da velhice como questão do poder. Aponta o século XIX como

limite desse silêncio em relação aos velhos pobres, “pouco numerosos e a

longevidade só era possível nas classes privilegiadas; os idosos pobres não

representavam rigorosamente nada. A história, assim como a literatura, passa por

ele radicalmente em silêncio”. Como objeto de especulação, vale o discurso dos

machos sobre a velhice: “primeiro, porque são eles que se exprimem nos códigos,

nas lendas e nos livros; mas, sobretudo porque a luta do poder só interessa ao sexo

forte.” (BEAUVOIR, 1990, p. 111).

Contemporânea de João Guimarães Rosa, nascida também no ano de 1908,

Simone de Beauvoir morreu em 1986. No século XX, a esposa de Sartre assistira a

manifestações culturais importantes para o surgimento de uma história preocupada

com os excluídos. Não obstante, no Brasil, data do final do século XX a legislação

direcionada aos velhos: o Estatuto do Idoso, com a Lei 10.741/2003 em conjunto

com a Lei 8.842/1994, asseguram os direitos sociais do idoso, criando condições

para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade.

O livro A velhice foi traduzido no Brasil em 1990, quatro anos após a morte da

escritora francesa; sua contribuição ficou sendo inegável no sentido de quebrar o

silêncio do tema velhice, considerando já no início de sua obra como “escandalosa”

a condição social dos velhos.

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3.2 LEGISLAÇÃO

De vital importância para esta dissertação, a discussão que abarca a política

nacional do idoso será matéria da Lei 10.741/2003 que rege os seguintes princípios:

I - a família, a sociedade e o estado têm o dever de assegurar ao idoso todos os direitos da cidadania, garantindo sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade, bem-estar e o direito à vida; II - o processo de envelhecimento diz respeito à sociedade em geral, devendo ser objeto de conhecimento e informação para todos; III - o idoso não deve sofrer discriminação de qualquer natureza; IV - o idoso deve ser o principal agente e o destinatário das transformações a serem efetivadas através desta política; V - as diferenças econômicas, sociais, regionais e, particularmente, as contradições entre o meio rural e o urbano do Brasil deverão ser observadas pelos poderes públicos e pela sociedade em geral, na aplicação desta lei.

A seguir, a Lei propõe no Art. 4º as diretrizes da política nacional do idoso.

Com isso propõe-se:

I - viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso, que proporcionem sua integração às demais gerações; II - participação do idoso, através de suas organizações representativas, na formulação, implementação e avaliação das políticas, planos, programas e projetos a serem desenvolvidos; III - priorização do atendimento ao idoso através de suas próprias famílias, em detrimento do atendimento asilar, à exceção dos idosos que não possuam condições que garantam sua própria sobrevivência; IV - descentralização político-administrativa; V - capacitação e reciclagem dos recursos humanos nas áreas de geriatria e gerontologia e na prestação de serviços; VI - implementação de sistema de informações que permita a divulgação da política, dos serviços oferecidos, dos planos, programas e projetos em cada nível de governo; VII - estabelecimento de mecanismos que favoreçam a divulgação de informações de caráter educativo sobre os aspectos biopsicossociais do envelhecimento; VIII - priorização do atendimento ao idoso em órgãos públicos e privados prestadores de serviços, quando desabrigados e sem família; IX - apoio a estudos e pesquisas sobre as questões relativas ao envelhecimento.

Ainda no âmbito da Lei, encontra-se a pertinência de uma pesquisa cuja

preocupação centra-se em investigar a história da velhice. Na literatura, caberia

investigar como a linguagem poética é capaz de sensibilizar jovens e adultos acerca

do tema, ao “promover simpósios, seminários e encontros específicos; planejar,

coordenar, supervisionar e financiar estudos, levantamentos, pesquisas e

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publicações sobre a situação social do idoso”. 7 A mesma Lei propõe, na área da

Educação:

Adequar currículos, metodologias e material didático aos programas educacionais destinados ao idoso; inserir nos currículos mínimos, nos diversos níveis do ensino formal, conteúdos voltados para o processo de envelhecimento, de forma a eliminar preconceitos e a produzir conhecimentos sobre o assunto; incluir a Gerontologia e a Geriatria como disciplinas curriculares nos cursos superiores; desenvolver programas educativos, especialmente nos meios de comunicação, a fim de informar a população sobre o processo de envelhecimento; desenvolver programas que adotem modalidades de ensino à distância, adequados às condições do idoso; apoiar a criação de universidade aberta para a terceira idade, como meio de universalizar o acesso às diferentes formas do saber. (Texto da Lei 10.741/2003).

Como prática pedagógica referente ao tema da velhice, a realização de

oficinas de leitura junto ao Areal da Baronesa, Quilombo urbano reconhecido pela

Prefeitura Municipal de Porto Alegre em julho de 2015, vem sinalizando a

possibilidade da implementação da Lei no que diz respeito ao estabelecimento de

mecanismos que favoreçam a divulgação de informações de caráter educativo sobre

os aspectos biopsicossociais do envelhecimento, bem como o apoio a estudos e

pesquisas sobre as questões relativas ao envelhecimento.

3.3 HISTÓRIA E MEMÓRIA

A memória em relação à história deve ser considerada. O fato é que não nos

lembramos de tudo, mas daquilo que para nós tem significado. Por meio de múltiplas

linguagens, o ser humano expressa suas ideias e tenta manter vivas a história e a

memória de um povo. Se dentre as nove filhas que a guardiã da memória teve com

Zeus encontra-se Clio, que é a musa da história, afirma-se então que a história é

filha da memória. Para a historiadora Sandra Pesavento:

No tempo dos homens, e não mais dos deuses, Clio foi eleita a rainha das ciências, confirmando seus atributos de registrar o passado e deter a autoridade da fala sobre fatos, homens e datas de um outro tempo, assinalando o que deve ser lembrado e celebrado. (PESAVENTO, 2012, p.7).

7 Texto da Lei 10.741/2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8842.htm> Acesso em: 27/11/2015.

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História e memória são narrativas que buscam reconstruir o passado. A

autora completa a afirmação: “Enquanto representação, a Memória permite que se

possa lembrar sem a presença da coisa ou da pessoa evocada, simplesmente com

a presença de uma imagem no espírito e com o registro de uma ausência no tempo”

(p.94). A questão que aqui se estabelece é a de saber por que envolver a análise de

textos literários numa investigação sobre o envelhecimento e a memória dos velhos.

Em relação a isso, Pesavento contribui, acrescentando:

Para o historiador que trabalha com a Memória, seja por meio dos registros escritos desta, transformados em narrativas de cunho memoralístico, seja pelo recolhimento ao vivo, pela oralidade, das lembranças daquele que rememora, há que levar em conta as múltiplas mediações nesse processo. (PESAVENTO, 2012, p. 95).

Ao antecipar a reflexão sobre tais conceitos, Pesavento considera que:

A expectativa do historiador – e por certo do leitor de um texto de História é de encontrar nele algo de verdade sobre o passado. O discurso histórico, portanto, mesmo operando pela verossimilhança e não pela veracidade, produz um efeito de verdade: é uma narrativa que se propõe sobre verídica e mesmo se substitui ao passado, tomando o seu lugar. Nesse aspecto, o discurso histórico chega a atingir um efeito de real. Incorporando o espírito das Musas, que criavam aquilo que cantavam, a História dá consistência ao que narra e participa do real. (Ibidem, p.55).

Com a obra História & História Cultural, aprende-se a ler de modo muito mais

fácil o autor Paul Ricoeur, quando escreve Tempo e narrativa (2010). Sabe-se, por

exemplo, que o autor estabelece considerações sobre a capacidade imaginária da

narrativa histórica, admitindo a “ficcionalização da História”, “a capacidade de

construir uma visão sobre o passado, momento em que a ficção é quase histórica,

assim como a História é quase ficção”. Para dizer, então, que “Não é possível

pensar esse processo de substituição – a narrativa que passa a representar o

acontecido – sem levar em conta a presença da criação ficcional, tanto do lado da

escrita quanto da leitura.” (PESAVENTO, 2012, p.54). Outra consideração

indispensável é de que “História e Literatura são formas de dar a conhecer o mundo,

mas só a História tem a pretensão de chegar ao real acontecido”. Estes são,

segundo Ricouer, “o drama e a especificidade da narrativa histórica”, sendo que “à

História, estaria legada a pequena alegria do reconhecimento preservada à

Memória.” (Ibidem, p.55). Com base em Ricoeur, a autora trata da existência de:

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Uma convergência entre uma função de representância, que se opera no domínio da produção na relação que se opera entre a construção da narrativa histórica e o passado preservado nos traços que restam, e a função da significância, presente no domínio da leitura, na relação entre o mundo do texto e o do leitor. Ocorrem, nesse processo, tanto funções reveladoras de sentido, criadas/ descobertas pelo historiador e pelo leitor, quanto funções transformadoras, na criação desta outra temporalidade que é a da História. A refiguração do tempo é um elemento, pois, central nesta atividade da narrativa histórica que porta em si a ficção. Há uma modalidade referencial do mundo que só se pode representar de forma metafórica, ou seja, que se apresenta como um dizer como, um ver assim, como se fosse. (PESAVENTO, 2012, p. 54-55).

Para Ivan Izquierdo, em Questões sobre Memória (2004, p.12), “o conjunto

das memórias que cada um de nós tem é o que nos caracteriza como indivíduos.

Mas também nos caracteriza como indivíduos aquilo que resolvemos ou desejamos

esquecer.” Os historiadores, por seu turno, consideram também importante a leitura

de textos literários, uma vez que nessas narrativas não raras são as referências ao

passado épico de um povo. Em Portugal, Luís de Camões escreve a tentativa de

epopeia em Os Lusíadas, em 1572, inspirada no “sábio grego” Homero, que celebra

Ulisses na Odisseia e no “sábio troiano” Virgílio, poeta latino, que celebra Eneias na

epopeia Eneida. Rememora em Os Lusíadas a viagem de Vasco da Gama e,

embora os feitos sejam heroicos, os registros da história precisariam ter um

distanciamento temporal bem maior entre o tempo do narrador e o tempo dos fatos

históricos narrados.

No caso da Finlândia, houve a necessidade de criar uma identidade nacional,

o que ocorreu pela criação de um poema, o Kalevala, recolhido por Elias Lönnrot

(2007) que foi organizada a partir de narrativas populares da tradição oral da região

da Carélia, sudeste da Finlândia e sudoeste da Rússia. Interessante é observar a

questão da memória no canto “III Duelo”, por exemplo. Nesse trecho de Kalevala, é

possível encontrar o duelo entre os personagens Väinämöinen, que é apresentado

como firme, velho e sábio, e Joukahainen como jovem, impaciente, invejoso e

desafiador. Joukahainen desafia Väinämöinen para um concurso de sabedoria.

Joukahainen enumera conhecimentos, possuídos através da observação da

natureza, mas de que não sabe a origem. Quando diz ter participado da criação do

mundo, é chamado de mentiroso por Väinämöinen:

A verdade é que tu mentes!/ Não foste tu por lá visto/ Quando foi lavrado o mar,/ Sachado o fundo do oceano, /Cavadas valas dos peixes,/

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Profundadas profundezas,/ Buscados lugares pra lagos,/Acordadas as colinas,/Empilhados os penedos. (LÖNNROT, 2007, p. 40).

Väinämöinen, o velho rapsodo, possui uma sabedoria baseada na memória,

pois o tempo lhe trouxe um melhor conhecimento em comparação ao conhecimento

de Joukahainen, com pouco conhecimento da vida pela pouca idade. É possível ver

no poema a velhice como etapa da vida em que o indivíduo torna-se hábil para a

transmissão de conhecimento. O épico nacional finlandês Kalevala exemplifica aqui

um projeto de constituição da identidade e memória de um povo, tal como a tentativa

de epopeia portuguesa de Luís Vaz de Camões.

Os dois épicos selecionados justificam sua escolha devido ao fato de serem

relevantes em seus países: Os Lusíadas (1572/2008), a obra de destaque na

literatura portuguesa e de importância histórica de Portugal. Luís Vaz de Camões é

considerado o grande poeta português, entretanto, aqui nos interessa a questão da

memória e da identidade, uma vez que Camões elege como heróis todos os

portugueses contando suas lutas pela sua identidade. O personagem de Camões, o

“velho do Restelo” (Canto IV, estrofes 94-104), permite que se interprete sua fala,

entre outras interpretações, como sendo a opinião daqueles que pensavam em

manter suas tradições. Uma vez que o personagem “velho” surge no meio da

multidão destacando-se como indivíduo: “Mas um velho, de aspecto venerando, /

Que ficava nas praias, entre a gente /”, seu discurso era baseado em sua

experiência e tradição.

A exemplificação com o poema épico nacional Kalevala também se dá pelo

fato de representar a consolidação e recuperação da tradição finlandesa. Na obra, o

personagem Väinämöinen transforma-se no herói nacional da Finlândia. No Canto

III, Joukahainen desafia Väinämöinen para um concurso de sabedoria e sai

derrotado. Mais uma prova de que, nos poemas épicos, a sabedoria dos antigos

supera a dos mais jovens.

No início do texto Aspectos míticos da memória e do tempo, Jean-Pierre

Vernant (1990) menciona o autor Meyerson para dizer que “a memória, enquanto se

distingue do hábito, representa a invenção difícil, a conquista progressiva pelo

homem do seu passado individual, como a história constitui para o grupo social a

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conquista do seu passado coletivo” (VERNANT, 1990, p.135). Segundo o autor,

Mnemosyne era uma das deusas que tinha seu lugar no panteão grego e ali

ocupava um papel importante, “a sacralização de Mnemosyne marca o preço que

lhe é dado em uma civilização de tradição puramente oral como foi a civilização

grega, entre os séculos XII e VII, antes da difusão da escrita” (p.136). Anotou-se,

antes, que Mnemosyne é mãe das musas, divindades que inspiram os poetas e,

para Vernant:

A poesia constitui uma das formas típicas da possessão e do delírio divino, o estado do ‘entusiasmo’ no sentido etimológico. Possuído pelas Musas, o poeta é o interprete de Mnemosyne, como o profeta inspirado pelo Deus, o é de Apolo. (VERNANT, 1990, p. 137).

A linguagem inventada pelo homem lhe dá a possibilidade de, ao inventar sua

história, inventar a si mesmo. No final do século XIX, com as modificações

socioculturais e industriais, o homem questiona-se sobre todo o conhecimento

adquirido até então. Nesse momento, a linguagem, o pensamento e as palavras

redimensionam o papel dos poetas. Como diz Octávio Paz (2012, p.37), “A história

do homem poderia reduzir-se à história das relações entre as palavras e o

pensamento”. O autor continua dizendo que “Linguagem e mito são vastas

metáforas da realidade. A essência da linguagem é simbólica porque consiste em

representar um elemento da realidade por outro, como ocorre com as metáforas.”

(p.42).

Os estudos da escritora Jane Tutikian (2006), publicados em Velhas

identidades novas e O pós-colonialismo e a emergência das nações de língua

portuguesa tratam da contemporaneidade e da contextualização do conceito de

identidade, então sob nova face:

[...] a grande movimentação histórico-cultural – a queda de barreiras econômicas ao Leste Europeu; a abertura da China ao capital estrangeiro; a queda do Muro de Berlim; o fim do Império Soviético; os Estados Unidos da América tornando-se a única grande potência; a configuração de uma ‘ Nova Ordem Mundial’; a extinção do último império ocidental, com a independência das colônias portuguesas, que iniciam as guerras internas; o Timor Leste que enfim se liberta; além disso, o próprio interesse despertado pelas literaturas terceiro-mundistas no primeiro mundo, pelos separatismos, pelos racismos, por um espaço de voz das minorias à ideia de término da modernidade e a voga de uma nação de pós-modernidade terminaram

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trazendo consigo a crise das ideias. Dos parâmetros e das crenças básicas de toda a ordem. (TUTIKIAN, 2006, p.11).

Ou seja, os acontecimentos do final do século XX fazem pensar sobre a

questão da “crise de identidade” na atualidade, a partir das mudanças mundiais,

produzindo sociedades modernas em constantes atualizações via das redes sociais,

mediante avanços marcantes da tecnologia. Isso não ocorre de maneira tão

acelerada em sociedades mais antigas, entre habitantes de lugares mais recônditos.

Como diz Stuart Hall (2015): “As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a

se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele ‘tempo perdido’,

quando a nação era ‘grande’; são tentadas a restaurar as identidades passadas.”

(p.33).

Para discussão do conceito de identidade, Stuart Hall, em A identidade

cultural na pós-modernidade, denomina assim a expressão: “‘identidades culturais’,

como sendo aspectos de nossas identidades que surgem do nosso ‘pertencimento’ a

culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais” (2015,

p.9). O autor entende que as condições atuais da sociedade estão “fragmentando

as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade,

que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais”

(2015, p.10).

Segundo Hall (2015), há três diferentes concepções de identidades que se

relacionam às visões de sujeito ao longo da história. A primeira é denominada

identidade do sujeito do Iluminismo, que se caracteriza por uma visão individualista

de sujeito, ou seja, um indivíduo unificado e centrado, em que prevalece a

capacidade da razão. Já a segunda, a identidade do sujeito sociológico, reflete a

complexidade do mundo moderno e reconhece que seu “núcleo interior” constitui-se

na relação com outras pessoas, logo, é uma identidade que se forma a partir da

relação entre o eu e a sociedade. Por último, tem-se a concepção de identidade do

sujeito pós-moderno que apresenta como característica o fato de não ter identidade

fixa, essencial ou permanente, mas que é formada e transformada continuamente.

Além disso, trata-se de várias identidades as quais sofrem a influência das formas

como são representadas ou interpretadas nas e pelas diferentes culturas de que

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fazem parte. Pode-se concluir que, para o autor, identidade, sociedade e cultura não

se separam.

De acordo com Hall (2015), a identidade da pessoa é formada na interação

entre o eu e os outros. Segundo o autor, o conceito de identidade se refere à relação

do indivíduo e o seu lugar na sociedade em que vive, pois “a identidade é formada

na ‘interação’ entre o ‘eu’ e a sociedade” (p.11). Para ele, o discurso da cultura

nacional “constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o

passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas

e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade” (p. 33).

Sandra Pesavento (2012) também se refere à identidade quando analisa um

novo campo de pesquisa para a História Cultural. Para a autora: “Enquanto

representação social, a identidade é uma construção simbólica de sentido, que

organiza um sistema compreensivo a partir da ideia de pertencimento.” (p.89).

Sendo a identidade uma construção, é possível considerar a velhice como uma

identidade, o que não invalida considerá-la também uma categoria socialmente

construída.

A autora diz ainda que “As identidades são múltiplas e vão desde o eu,

pessoal, construtor da personalidade, aos múltiplos recortes do social, fazendo com

que um mesmo indivíduo superponha e acumule, em si, diferentes perfis

identitários.” (p.90). No caso, a pessoa mais a memória e a experiência de vida

servem de base para a construção de sua identidade, mesmo que isso não fique

claro como mostram alguns estudos na área da psicologia.

Segundo Norberto Bobbio (1997)8, em O tempo da memória:

O mundo dos velhos, de todos os velhos, é, de modo mais ou menos intenso, o mundo da memória. Dizemos: afinal, somos aquilo que pensamos, amamos, realizamos. E eu acrescentaria: somos aquilo que

8 Norberto Bobbio (1909-2004) foi um filósofo político, historiador do pensamento político, escritor e senador vitalício italiano. Conhecido por sua ampla capacidade de produzir escritos concisos, lógicos e, ainda assim, densos. Defensor da democracia socialista liberal e do positivismo legal e crítico de Marx, do fascismo italiano, do Bolchevismo e do primeiro-ministro Silvio Berlusconi. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Norberto_Bobbio>. Acesso em: 16/11/15

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lembramos. Além dos afetos que alimentamos, a nossa riqueza são os pensamentos que pensamos, as ações que cumprimos, as lembranças que conservamos e não deixamos apagar e das quais somos o único guardião. [...]. A dimensão na qual o velho vive é o passado. (BOBBIO, 1997, p.30).

Paralelamente a essas reflexões sobre a situação do velho na sociedade,

Ecléa Bosi (2015) assinala:

Há um momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa de ser um propulsor da vida presente do seu grupo: neste momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar. A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade. (p.63).

Essas duas posturas mostram que a memória dos mais velhos é reconhecida

como tradição em processo de identidade. Sendo assim, o velho teria uma espécie

singular de obrigação social de lembrar e lembrar bem (BOSI, 2015), tal como já

enfatizava Hampaté-Bá.

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4 O PAPEL DA HISTÓRIA

Ao definir a relação entre “a narrativa e o passado real – o acontecido – como

uma relação metafórica”, Sandra Jatahy Pesavento (2012, p. 55) menciona François

Hartog para lembrar que a construção metafórica encontra-se sob o domínio do

análogo, do contraste e da semelhança e que tal entendimento minimizaria a

diferença “entre logos e mythos, ou entre um discurso histórico-científico e um

discurso poético-mítico”.

Sendo assim, história e a literatura são maneiras diferentes de conhecer o

mundo, história entendida aqui como moderna e ocidental, e a literatura deve, nesse

caso, ser entendida como literatura universal. Michel de Certeau (2011), em “A

Escrita da História”, diz o seguinte:

[...] entendo como história essa prática (uma ‘disciplina’), o seu resultado (o discurso) ou a relação de ambos sob a forma de uma ‘produção’. Certamente, em seu uso corrente, o termo história conota, sucessivamente, a ciência e seu objeto - a explicação que se diz e a realidade daquilo que se passou ou se passa. (p. 5, grifos do autor).

De acordo com Ricoeur (apud PESAVENTO, 2012, p. 55):

À História, estaria negada a pequena alegria do reconhecimento preservada à Memória. Aquele que evoca, chega à identificação da lembrança com o acontecido, objeto a rememoração: foi ele, foi lá, foi então, foi assim! A Memória atinge assim a veracidade da evocação. Já no caso da História, em que as ações se passam por fora da experiência do vivido e, portanto, do não verificável, a narrativa opera-se por critérios de plausibilidade e verossimilhança. (p. 55).

Isso faz pensar sobre a possibilidade de, no texto histórico, reviver-se o

passado. Para Certeau (2011, p. 27), a história “quer restaurar um esquecimento,

encontrar os homens através dos traços que eles deixaram”. Para o autor, a escrita

histórica chega ao que se considera real.

Como resultado das mudanças ocorridas em relação à história, foi possível

conhecer-se a chamada História Cultural. Pesavento (2012) também mostra as

mudanças na história quando diz que:

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De certa forma, podemos, por um lado, falar em esgotamento de modelos e de um regime de verdades e de explicações globalizantes, com aspiração à totalidade, ou mesmo de um fim para as certezas normativas de análise da história, até então assentes. (PESAVENTO, 2012, p. 9).

Ideia semelhante pode ser encontrada em uma nova forma de ver a história

trabalhar com a cultura conforme explica Lynn Hunt9:

Não se trata de fazer uma História do Pensamento ou de uma História Intelectual, ou ainda mesmo de pensar uma história das Culturas nos velhos moldes, a estudar as grandes correntes de ideias e seus nomes mais expressivos. Trata-se, antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo. (apud PESAVENTO, 2012, p. 15).

Com a virada do século XIX para o XX, mudou a forma de perceber o mundo,

houve a descoberta do inconsciente com Sigmund Freud, as pesquisas na área da

Etnologia e da Antropologia com Marcel Mauss e Émile Durkheim e as alterações no

âmbito da história; houve uma modificação na dinâmica social, com novos grupos

sociais e seus interesses. Todas essas mudanças irão fundamentar um novo olhar

sobre a história com base nos estudos e descobertas de Mauss e Durkheim, em

relação às sociedades ditas primitivas e suas representações de mundo.

Para completar a ideia de representação do mundo pela história, Pesavento

(2012) leva-nos a refletir, afirmando que:

As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações com que constroem sobre a realidade. (p. 39)

É interessante perceber como a autora dá uma ideia do papel da História

Cultural em relação à importância das representações:

9 Lynn Hunt, Historiadora (1945 - ). Foi professora na Universidade da Califórnia, Berkeley, entre 1974 e 1987, e na Universidade da Pensilvânia, entre 1987 e 1998. Atualmente dá aulas de História Moderna Europeia na Universidade da Califórnia, Los Angeles. Autora de Politics, Culture and Class in the French Revolution (1984), The New Cultural History (1989), The Family Romance in the French Revolution (1992) e La storia culturale nell’età globale (2010), entre outros. Disponível em: <https://editora.cosacnaify.com.br/Autor/1615/Lynn-Hunt.aspx>. Acesso em: 17/11/15.

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Em termos gerais, pode-se dizer que a proposta da História Cultural seria, pois, decifrar a realidade do passado por meio das suas representações, tentando chegar àquelas formas, discursivas e imagéticas, pelas quais os homens expressam a si próprios e o mundo. (PESAVENTO, 2012, p. 42).

Portanto, as representações do passado são fontes e narrativas de

experiências não vivenciadas pelo historiador. Sobre o assunto, a autora ainda

destaca que “A História Cultural se torna, assim, uma representação que resgata

representações, que se incumbe de construir uma representação sobre o já

representado.” (PESAVENTO, 2012, p.43). O desenvolvimento de mudanças

epistemológicas traria o surgimento do conceito de imaginário para a História

Cultural. Por outro lado, é importante observar a definição de imaginário: “um

sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as

épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo” (p. 43).

Como se vê, tanto a história quanto a literatura são narrativas diferentes que

possuem como objetivo representar as experiências dos homens no tempo. No

entanto, há o debate sobre verdade e ficção. Pode-se ver, portanto, o emprego da

imaginação, da ficcionalidade e do imaginário na escrita do texto histórico e literário,

a partir do conceito de representação dado pela autora:

[...] a História é uma espécie de ficção, ela é uma ficção controlada, e, sobretudo pelas fontes, que atrelam a criação do historiador aos traços deixados pelo passado. [...] A História se faz como resposta a perguntas e questões formuladas pelos homens em todos os tempos. Ela é sempre uma explicação sobre o mundo, reescrita ao longo das gerações que elaboram novas indagações e elaboram novos projetos para o presente e para o futuro, pelo que reinventam continuamente o passado. (Ibidem, p. 58-59).

Portanto, um historiador, ao analisar uma obra ficcional, perguntaria: Que

contribuições essa obra traria para compreensão do imaginário de uma

sociedade? Pesavento explica que:

A literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver sensibilidades, perfis, valores. Ela é fonte privilegiada para a leitura do imaginário. [...] Para além das disposições legais ou códigos de etiquetas de uma sociedade, é a literatura que fornece os indícios para pensar como e por que as pessoas agiam desta e daquela forma. (Ibidem, p. 82-83).

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É possível ver, portanto, que há questões importantes quando se reflete sobre

as relações entre história e literatura. Hoje em dia, seus discursos as aproximam,

uma vez que abordam temáticas comuns, ou seja, seu interesse pelo ser humano

como fonte de conhecimento.

Já Paul Ricoeur (2010, p. 247) apresenta a escrita da história como “uma

escrita, de uma ponta a outra: dos arquivos aos textos de historiadores, escritos,

publicados, dados a ler” (grifos do autor). Luiz Costa Lima10 (2006) no prefácio de

seu livro diz que:

O contrário do que sucede no discurso ficcional porque este não postula uma verdade, mas a põe entre parênteses. Já a historiografia tem um trajeto peculiar: desde Heródoto e, sobretudo, Tucídides, a escrita da história tem por aporia a verdade do que houve. (p. 21).

Contudo, essas observações, segundo o autor, levam em consideração o fato

de que, em qualquer discurso, é preciso considerar a maneira como a realidade é

verbalmente trabalhada. Por outro lado, é interessante perceber o estudo da história

tendo como base o estudo da literatura e como problematização o discurso histórico.

Ora, historicizar um mito é relacionar o homem às origens, ao saber ancestral.

Sabe-se que os primeiros filósofos buscavam compreender a origem de todas as

coisas pelo conhecimento. Tal como se pode ver na “Escola de Atenas”, pintura de

Rafael Sanzio, a concepção de conhecimento variava entre os filósofos, cada um

deles possuía sua teoria, nem sempre convergentes.

10 Atualmente, Luís Costa Lima é professor titular de teoria da história da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Lecionou em várias universidades americanas e europeias. Autor de mais de vinte livros, entre eles História.Ficção.Literatura, A aguarrás do tempo, Trilogia do controle, e Mimesis: desafio ao pensamento.

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5 DA FORTUNA CRÍTICA À ANÁLISE DOS TEXTOS LITERÁRIOS

Cada criatura é um rascunho a ser retocado sem cessar até a hora da libertação pelo arcano, o

além do Lethes, o rio sem memória. João Guimarães Rosa

Para falar da obra de Guimarães Rosa na literatura brasileira, recorre-se a um

dos maiores críticos do autor de Cordisburgo. Para ele, Rosa “é o detentor de uma

fortuna crítica não só numericamente significativa, como constituída pelo que de

melhor se vem produzindo em termos de crítica no país” (COUTINHO, 1994, p. 11).

Embora seja um dos autores mais estudados na literatura, acredita-se que é

importante retomar aqui algumas opiniões que compõem a sua fortuna crítica.

Sobre as inovações rosianas, Eduardo Coutinho, em Range Rede Revista de

Literatura (1996), afirma, no artigo “Guimarães Rosa e a palavra poética”, que:

O que é fundamental assinalar é o fato de que as inovações introduzidas por este autor não foram absolutamente gratuitas. Elas estão ligadas a toda uma visão de mundo e, sobretudo, a uma proposta estético-política fundamental, que era a de que, para citar uma frase que Rosa diz na entrevista a Günter Lorenz [...] ‘somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo’. (p. 8).

O crítico enfatiza “a tarefa de revitalizar a linguagem com o fim de fazê-la

recobrar sua poiesis originária e atingir o leitor, induzindo-o à reflexão” (COUTINHO,

1994, p. 13) por João Guimarães Rosa, salientando ser esta tarefa um de seus

objetivos, oportunizando ao leitor refletir sobre a linguagem, uma vez que “somente

renovando a língua é que se pode renovar o mundo” (ROSA, 1994, p. 52, apud

COUTINHO, 1996, p.8).

Daí a afirmação de Eduardo Coutinho (1996) de que:

O processo de revitalização, utilizado por ele todo o tempo, consiste nessa depuração e nessa exploração das diversas potencialidades da linguagem. Rosa, ao fazer isso, vai infringir, sem dúvida alguma, o uso corrente da linguagem, a norma. Mas em momento algum ele chega a infringir o sistema da língua. Rosa introduz, o tempo todo, o estranhamento. Ao fazê-lo, leva o leitor a uma reflexão. E a partir daí, então, o leitor se engaja no processo. (p.9).

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Conforme destaca Coutinho (1996), Rosa realiza o processo de “revitalização

da linguagem”, observando o leitor como “[...] um explorador de caminhos, é um

buscador, um constante perseguidor.” (p.11). Isso porque:

A ideia toda é levar o leitor ao estranhamento e induzi-lo à reflexão. No momento em que o leitor está pensando nestes fatos, reflete sobre toda uma cadeia de elementos que o levam, inclusive, a uma reflexão sobre o seu próprio sentido existencial. (p. 9)

É nessa lógica que se deve entender o uso que o autor faz das palavras

como, por exemplo, o uso da palavra “Estória”. É o caso da justificativa que o leitor

encontra na abertura do livro Tutaméia - terceiras estórias. Nesse primeiro prefácio,

Guimarães Rosa considera que “A estória não quer ser história. A estória, em rigor,

deve ser contra a História. A estória às vezes, quer-se um pouco parecida à

anedota.” (ROSA, 1967, p. 3, grifos nossos).

De fato, a leitura da obra de Guimarães Rosa provoca no leitor a vontade de

ler mais e conhecer melhor sua obra. Seus textos provocam reflexões a respeito da

presença de elementos míticos, da origem mitopoética da linguagem. O livro

Primeiras estórias (1985) é composto de 21 contos: “As margens da alegria”,

“Famigerado”, “Sorocô, sua mãe, sua filha”, “A menina de lá”, “Os irmãos Dagobé”,

“A terceira margem do rio”, “Pirlimpsiquice”, “Nenhum, nenhuma”, “Fatalidade”,

“Sequência”, “O espelho”, “Nada e nossa condição”, “O cavalo que bebia cerveja”,

“Um moço muito branco”, “Luas-de-mel”, “Partida do audaz navegante”, “A

benfazeja”, “Darandina”, “Substância”, “Tarantão, meu patrão...” e “Os cimos”.

Assim, pode-se falar da expressão “mitopoético” nos contos de Primeiras

Estórias (1985), uma vez que neles se observa um halo de atemporalidade,

sucedem-se as surpresas, as estórias que se querem anedotas no inesperado do

desfecho, narrativas repletas de elementos míticos que se inscrevem no

maravilhoso.

No conto Nenhum, nenhuma encontram-se os verbos “recuperar”, “relembrar”,

“rememorar”, “desdeslembrar” e, de modo especial, “religar-me”, palavras e

expressões pertencentes ao campo semântico da memória que bem atestam a

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necessidade de o tema memória ser tratado com exaustão neste trabalho de

dissertação.

Em entrevista a Günter Lorenz, Rosa (1994) considera o aspecto metafísico

da língua como seu ponto de partida, denominado “simples” por ele. É quando o

autor esclarece que:

O trabalho é importantíssimo. Mas ainda mais importante para mim é o outro aspecto, o aspecto metafísico da língua, que faz com que minha linguagem antes de tudo seja minha. Também aqui pode-se determinar meu ponto de partida, que é muito simples. Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar conta de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas. (p. 47).

5.1 GUIMARÃES ROSA NA LITERATURA BRASILEIRA

Segundo Alfredo Bosi (1994), o escritor João Guimarães Rosa publicou sua

obra de estreia em 1946, Sagarana, mas “só obteve o reconhecimento geral a partir

de 1956, quando saíram Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile” (p.429).

A lista de publicações se intensifica a partir dessas primeiras obras: Primeiras

Estórias, 1962; Tutaméia: Terceiras Estórias, 1967; Estas Estórias e Ave Palavra

(obras póstumas,1969). O ciclo de Corpo de Baile desdobrou-se, a partir da 3ª

edição, de 1964, em três volumes: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá no

Pinhém, Noites do Sertão. Guimarães Rosa deixou inédito Magma, poemas (p.429),

publicado apenas em 1997.

Em Paulo Rónai (1978), o próprio Guimarães Rosa teria escrito uma carta a

seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason a respeito de Corpo de Baile onde diz que:

O Corpo de Baile tem de ter passagens obscuras. Isto é indispensável. A excessiva iluminação, geral, só no nível do raso, da vulgaridade. Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho do mistério cósmico, esta coisa movente impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é chamada “realidade”, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o óbvio, que o frouxo. Toda lógica contém inevitável

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dose de mistificação. Toda mistificação contém boa dose de inevitável verdade. Precisamos também do obscuro. (ROSA apud RÓNAI, 1978, p.xv).

Continuando a apresentação de Trajetória de uma obra (1978), Rónai

comenta que:

Contrariamente à maioria dos escritores brasileiros, que estreiam cedo, João Guimarães Rosa apareceu bastante tarde na vida literária: tinha trinta e oito anos quando da publicação de seu primeiro livro, Sagarana, que já o apresentava na plenitude de seu talento e lhe granjeou elogios unânimes da crítica. (p. 148)

Sobre o aparecimento dos contos, assunto que mais nos interessa para a

dissertação, o autor continua dizendo que:

Na verdade, contos dele começaram a aparecer na revista O Cruzeiro desde 1929, sem ser notados. Em 1936 ganhou o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras em circunstâncias excepcionais, com o volume de versos Magma. Entretanto, preferiu que este livro ficasse inédito. Em 1938 concorreu ao Prêmio Humberto de Campos, da Livraria José Olympio Editora, com Sagarana, coletânea de nove novelas, tendo conseguido o segundo lugar, mas não a publicou senão oito anos depois, completamente remodelada. (p.148).

O que Rónai (1978) também observa é que:

Nas nove narrativas extensas do volume refloresceram as melhores tradições na arte de contar. [...] Nas mãos do autor o gênero mostra-se de extrema flexibilidade, adaptando-se ao assunto, ao tom, às exigências da estória”. (p.150, grifos nossos).

Ao considerar-se a importância dada ao tratamento da linguagem na obra de

Guimarães Rosa, ainda é necessário buscar o que diz o autor:

A opulência da linguagem deliciou leitores e crítica. O novo prosador conhecia a fundo a língua literária e a popular, fundindo-as num amálgama particularmente feliz. Alguma vez, porém, deixava entrever que não se contentaria por muito tempo com os recursos existentes: o próprio título, Sagarana, fundia hereticamente elementos heterogêneos, o “saga” escandinavo (“lenda”) e o “rana” indígena (“espécie de”), anunciando a revolução que se preparava. A declaração de amor às palavras raras e sonoras em “São Marcos” valia como outro indício. (Ibidem, p.152).

Guimarães Rosa escreve Corpo de Baile dez anos depois de escrever

Sagarana. Tal constatação remete mais uma vez à análise de Rónai que só admite a

atitude do autor como sendo:

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Só admitindo uma estratégia consciente podemos compreender o lançamento em 1956 de não um, mas de sete romances [...], nos dois volumes monumentais de Corpo de Baile. [...] poucos meses depois, no mesmo ano, lançou sua obra mais vasta, Grande Sertões: Veredas [...]. A complexidade estrutural desse imenso edifício, sua exuberância de materiais, a inesgotável opulência do visto e do vivido, a poderosa simbologia apoiada numa realidade observada com inexcedível fidelidade e o tratamento revolucionário da linguagem suscitaram entusiasmos e resistências, desencadeando verdadeira batalha em volta da obra. (RÓNAI, 1978, p.148).

Sua próxima obra, Grande Sertão: Veredas, escrita após Corpo de Baile,

como diz Rónai, “completou a impressão avassaladora de poderosa originalidade e

grandeza isolada do autor, confirmando-lhe a posição excepcional dentro da ficção

brasileira e mesmo universal” (RÓNAI, 1978, p.154). O livro é considerado de difícil

compreensão, pela linguagem que apresenta, mas segundo o próprio Guimarães

Rosa em afirmação ao jornalista alemão Günter Lorenz: “Só se pode renovar o

mundo renovando a língua.” (Ibidem, p.155).

Em relação ao título do romance, interessa-nos mais uma vez o que pondera

Paulo Rónai sobre o caráter simbólico, vinculado aos “tênues canais de penetração

da comunicação”:

A significação do título se aclara sucessivamente por diversos trechos do romance onde encontramos o narrador empenhado em definir o termo “grande sertão” [...]. Essas definições vão do estritamente mesológico ao simbólico: nelas a narrativa sai mais uma vez do tom reprodutivo, e o narrador cede a palavra ao romancista. Para quem nele nasceu e viveu e com ele se identificou, o “sertão” acaba sendo toda a confusa e tumultuada massa do mundo sensível, caos ilimitado de que só uma parte ínfima nos é dado conhecer, precisamente a que se avista ao longo das “veredas”, tênues canais de penetração e comunicação. (Ibidem, p.156).

De fato, o narrador do grande romance de Guimarães Rosa, Riobaldo, quer

dizer que “a vida não é entendível”, querendo “decifrar as coisas que são

importantes” e preservá-las do esquecimento. (Ibidem, p. 157). Constata-se, a

seguir, a presença do tema lembrança e esquecimento. Esse tema é, para Riobaldo,

“mais que simples saudade de velho”:

“Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro.” Mas a vontade de lembrar, em Riobaldo, é mais que simples saudade de velho. Desejando reconstituir o seu passado, ele está movido pelo anelo confuso de reafirmar a unidade do seu eu, de

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sentir que efetivamente desempenhou algum papel ativo nas vicissitudes da própria existência. (RÓNAI, 1978, p. 157).

Sobre Primeiras Estórias, acrescenta Rónai, “são relatos de milagres,

contanto que se entenda o termo como designativo de acontecimentos muitas vezes

íntimo, indefinível e impreciso” (Ibidem, p. 159). Com essa caracterização do livro de

contos que contém Nenhum, nenhuma, justifica-se o caráter hermético da trama que

se desenrola entre o Menino, a Moça e o Moço, um homem triste, a velhinha Nenha

e a presença possível do narrador em fase adulta.

Essa justificativa não isenta o leitor de tentativas constantes de buscar

entendimento na obra rosiana; pelo contrário, a busca pelo entendimento de seus

enigmas torna-se cada vez mais intensa. Lembra, com efeito, a função mitopoética

da linguagem, de que trata Benedito Nunes (1969) e sobre a qual também Alfredo

Bosi comenta. Para Bosi (1994), o mito poético foi uma solução em Guimarães

Rosa:

A sua obra situa-se na vanguarda da narrativa contemporânea que se tem abeirado dos limites entre real e surreal [...] e tem explorado com paixão as dimensões pré-conscientes do ser humano [...] uma obra de tão aguda modernidade se nutre de velhas tradições, as mesmas que davam à gesta dos cavaleiros feudais a aura do convívio com o sagrado e o demoníaco [...]. A linguagem como autoexpressão, jorro imediato do Inconsciente, válida em si mesma, aquém do esforço de significar o real. (BOSI, 1994, p. 432-433).

Observam-se essas características nos últimos livros, sobremaneira em

Tutaméia - terceiras estórias. Na dissertação, que visa refletir sobre memória,

perpassando os conceitos de mito e também de história, trata-se da representação

literária com o tema da velhice e da figura social do velho , com o recorte de dois

contos de João Guimarães Rosa. Reconhece-se, afinal, a imagem do velho como

guardião da memoria e da cultura . Ao lembrar o passado, o ancião liga-o ao

presente, contribuindo com a formacao identitária dos mais novos . Sabe-se que,

sem passado, a história esvazia.

Partir apenas do tempo presente, no entanto, é negar a importância de

épocas e culturas que o alicerçam. A leitura atenta de Guimarães Rosa permite que

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se perceba que nossa memória é animada pela nossa intersubjetividade e traz à

tona o grupo cultural do qual fazemos parte.

Para tanto, será feita uma leitura dos contos Presepe e Nenhum, nenhuma,

examinando-se possibilidades que levam o texto literário a oferecer-se como

estratégia em que a imaginação criadora desperta no leitor lembranças familiares,

acirra a memória coletiva, seja pela trama e ação dos personagens, seja pelo

contexto que agrega conflitos existenciais. Nessa medida, os mitos que espreitam o

homem desde tenra idade auxiliam na compreensão do que é memória e do que é

literatura.

Para apresentar João Guimarães Rosa, recorre-se ao prefácio, escrito por

Eduardo Coutinho, na obra Ficção completa volume I, onde se lê: “Um dos maiores

ourives da palavra que a literatura brasileira jamais conheceu e ao mesmo tempo um

dos mais perspicazes investigadores dos matizes da alma em seus rincões mais

profundos.” (ROSA, 1994, p.11).

Valentín Paz-Andrade apresenta João Guimarães Rosa, no livro A

galeguidade na obra de Guimarães Rosa (1983), enfatizando a importância da

literatura rosiana no cenário internacional, de modo especial no que tange ao uso da

língua portuguesa, com destaque para o importante papel que o sertão desempenha

na obra do escritor mineiro. Em suas viagens pelo Brasil em visita ao sertão, Paz-

Andrade identificou semelhanças de linguagem falada pelos sertanejos com o

galego, e pela leitura da obra de Guimarães Rosa identificou-se com a forma da

linguagem e do uso de expressões na obra do mineiro, a presença do galego como

é possível ver no seguinte trecho:

João Guimarães Rosa é o nome do homem, daquele que de agora em diante terá de ser o nosso homem. Nasceu longe da terra em que escrevo, na outra meia laranja do planeta, com o Atlântico atravessado no meio. Ali em baixo, nas beiras ardentes do trópico de Capricórnio, no Estado de Minas Gerais, bravio e barroco ao mesmo tempo, no coração do Brasil: em terras ultrafecundas, assustadoras, abrasadoras... em perpétua germinação [...]. O berço do menino do João, familiarmente Joãozinho, rolou em Cordisburgo, nome também de quente semântica, como se fosse invenção de quem o havia de espalhar, unido ao próprio nome, no concerto universal das letras. Cordisburgo, uma mortiça vila campeira e ferroviária, a meio caminho entre Curvelo e Sete Lagoas, na estrada para Belo Horizonte. A seu respeito o mais esclarecido de seus filhos, no cume da consagração

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acadêmica, arrancaria do bico da sua pena esta lembrança vibrante. (PAZ-ANDRADE, 1983, p. 29-30).

A partir da confirmação que fez do uso da língua em suas idas à região

sertaneja, Paz-Andrade, leitor de Guimarães Rosa, intensificou seu interesse pelo

escritor brasileiro. Desse interesse, pesquisa e vivência, culminou na produção do

livro agora aqui citado. Trata-se de uma apreciação da linguagem rosiana que,

segundo o escritor, muito se assemelha à língua portuguesa que por muito tempo

resistiu, e cujos vestígios ainda estão presentes, no interior da Galícia. Segundo o

autor de A galeguidade na obra de Guimarães Rosa, a galeguidade pode ser

entendida como a persistência do idioma português, “original”, que se mantém na

obra rosiana:

Foi devido à teimosia rosiana de recursos às fontes que esse resultado sincrético pode surgir como um prodígio. Elementos galegos que perderam vigência no português, mormente no literário, ou que dentro da mesma área de comunidade linguística passaram a falar, se não ficavam esmorecidos, recobram a sua plenitude ou a sua pristinidade na obra rosiana. Reaparecem nos tecidos do idioma com valores expressivos insuspeitados com conquistada beleza. (PAZ-ANDRADE, 1983, p. 80).

Paz-Andrade destaca uma “outra forma de linguagem” em Rosa:

Como seiva fecunda daquele mundo esquecido, havia ainda outro elemento dinâmico. Havia... Outra forma de linguagem. Ou, se se quer, a mesma língua funcionando noutro nível. Havia a língua do sertão. Aquele manancial de formas verbais que fizeram seu ninho na boca dos sertanejos com psicologia de mineiros. Formas nem novas, nem velhas, singelamente vivas. Com vida no tempo paralelo a que pertenciam na longínqua terra que fora o seu berço. E da qual poderiam ainda receber uma nova revalorização, como moedas recunhadas de beleza expressional. (p.86).

Vale ainda destacar as descobertas feitas pelo autor galego, acerca de

“vertentes antropológicas”:

Descobrimos a sincronia binária de um mesmo processo da língua comum – originariamente comum – obrando com aparente uniformidade, através de áreas geográficas opostas, e, ademais, longamente arredadas uma da outra, na convexidade hemisférica do mundo ocidental: a Galiza numa banda, a banda boreal, e o sertão intrabrasileiro na outra, a banda austral. Tanto ou mais que em áreas geográficas contrapostas – ou bem uma anteposta a outra – cumpre falar de vertentes antropológicas: uma racialmente homogênea, com idioma de primeira mão; outra, racialmente heterogênea, com miscigenação explosiva de linhagens e cores, crenças mitológicas e falas primitivas. Um fervedouro etnológico onde a língua adquirida da fonte peninsular foi o único, ou o mais positivo, elemento de

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homogeneização de tantas raças e povos misturados. Milagre de transculturação só realizável por uma língua rijamente forjada e fortemente estruturada (p. 93-94).

É sem dúvida importante compreender que a obra de Guimarães Rosa serviu

de pesquisa fecunda para que Valentín Paz-Andrade 11 constatasse a ligação

intrínseca do idioma galego-português com os arcaísmos rosianos. Nessa medida, o

leitor que julga serem neologismos muitos dos termos encontrados na obra de

Guimarães Rosa pode refletir acerca da reincorporação ou revitalização do léxico

antigo da língua portuguesa.

Para o crítico brasileiro Alfredo Bosi, em Céu, inferno:

Em Guimarães Rosa, o que cinge à cultura popular é um fio unido de crenças: não só um conteúdo formado de imagens e afetos, mas, principalmente, um modo de ver os homens e o destino. (...) A sua narrativa, que parece a tantos ardidamente moderna e até mesmo experimental pela ousadia das soluções formais, realiza, com as artimanhas da linguagem, uma nova tradução do pensamento arcaico-popular. (BOSI, 2003, p. 37).

Para Günter Lorenz, Rosa afirma em entrevista que seu desejo era libertar o

homem do peso da vida, devolvendo-lhe a forma original:

Queria libertar o homem desse peso, devolver-lhe a vida em forma original. Legítima literatura deve ser vida. Não há nada mais terrível que uma literatura de papel, pois acredito que a literatura só pode nascer da vida, que ela tem de ser a voz daquilo que eu chamo ‘compromisso do coração’. A literatura tem de ser vida! O escritor deve ser o que escreve. (ROSA, 1994, p.48).

Nessa direção, observa-se como Rosa define a “metafísica” de sua

linguagem:

O homem ao dizer: eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor a si mesmo, domina a realidade da criação. Eu procedo assim, como um cientista que também não avança simplesmente com a fé e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós, o cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também. Se quisermos ajudar o homem. Seu método é meu método. O bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de

11 Valentin Paz-Andrade, nascido em Pontevedra (Galiza) em 23 de Abril de 1898 e falecido em Vigo em 19 de Maio de 1987, foi um Jurista, economista, escritor, poeta e jornalista galego. Foi decidido dedicar o Dia das Letras Galegas do ano 2012 a este escritor. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Valent%C3%ADn_Paz-Andrade>. Acessado em: 23/11/15.

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cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra, ele se descobre a si mesmo. E com isto repete o processo da criação. [...] Quem se sente responsável pela palavra ajuda o homem a vencer o mal. (ROSA, 1994, p.48).

Um fragmento do ensaio de Ortega y Gasset, Pidiendo um Sertón desde

dentro, citado por Rosa, teria dado ao escritor mineiro a variação “Levo o sertão

dento de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão”. Assim, os leitores

percebem a cultura rosiana que abrange o conhecimento de autores russos,

alemães, franceses. Para lembrar considerações feitas a vários desses escritores

estrangeiros, percebe-se que, como leitor de Goethe, Rosa considera que o escritor

alemão “não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo” (1994, p. 49).

Logo, escrever sobre o que há dentro de si é escrever sobre o sertão e o sertão é o

mundo infinito que existe dentro no nosso ser que é infinito.

Tutaméia, 1967, último livro publicado em vida pelo autor Guimarães Rosa,

contém quarenta e quatro contos, um glossário e quatro prefácios. Nos contos,

segundo Rónai (1978), o leitor encontra:

Episódios cheios de carga explosiva, retratos que nos obrigam a reconstituir os dramas que moldam os traços dos originais, romances em potencial comprimidos ao máximo. Fiel ainda desta vez aos cenários das obras anteriores, isto é, aos da sua infância, faz caber neles a angústia existencial das personagens e a sua própria. É naquele ambiente de agreste e dramática beleza que o inexistente entremostra a sua vontade de encarnar-se, que aquilo que não é passa a influir no que é, que o que poderia ter sido modifica o sentido do que houve. (p. 160)

Para completar a fortuna crítica do autor, ainda é possível comentar seus

livros póstumos. Foram publicados após sua morte três livros: Estas Estórias, Ave,

Palavras e Magma, reunião de alguns gêneros como reportagens e poesia, os dois

primeiros lançados vinte anos após sua morte e, o último, trinta anos depois.

5.2 NENHUM, NENHUMA

Ao ler o conto Nenhum, nenhuma, de Guimarães Rosa, encontram-se

questões relacionadas à memória, como bem observou Benedito Nunes, e é

possível dizer que existe no conto a preocupação com os temas da existência

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humana. Essas questões são observadas na trama que envolve seu personagem

principal, o Menino. Segundo Benedito Nunes (1969):

Prende-se a uma vaga reminiscência de um passado longínquo, ao desejo de romper a obscuridade, de clarear o que há de enigmático no começo de ser individual, quando impressões indeléveis gravam-se na memória, formando uma primeira versão das coisas vividas, que o tempo dilui e afunda na irrealidade. (NUNES, 1969, p. 161).

Ocorre uma busca para recuperar lembranças, como é possível notar no

seguinte trecho: “As lembranças são outras distâncias. Eram coisas que paravam já

à beira de um grande sono.” (ROSA, 1985, p. 52), na medida em que o personagem

adulto busca nas lembranças fatos da sua infância.

Além da questão da memória, observa-se a questão da velhice e da morte

nesse conto, no caso, como a continuação da vida a partir do não esquecimento.

Para Izquierdo, o esquecimento é uma forma saudável da memória. Quanto ao

lembrar-se, é notório que o indivíduo selecione aquilo que ele deseja lembrar.

Fragmentos são reconstituídos na memória do narrador de Nenhum, nenhuma. A

vida de seus personagens readquire sentido a partir do momento em que o passado

vem resgatado, ainda que em fragmentos, pelo narrador autor de uma seleção de

fatos para ele tidos como importantes. Observa-se no texto rosiano que a fala desse

personagem adulto apresenta-se sob a forma diferenciada em itálico, toda vez que

sua reflexão ocorre sobre os fatos lembrados.

No conto, a ideia da memória pode ser vista como fundamental à existência

humana uma vez “... que a velhinha não era a Morte, não. Nem estava morta. Antes,

era a vida. Ali, num só ser, a vida vibrava em silêncio, dentro de si, intrínseca, só o

coração, o espírito da vida, que esperava.” (ROSA, 1985, p. 50).

Na apresentação do livro Um tecelão ancestral: Guimarães Rosa e o discurso

mítico, de Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha (2009), Eduardo Coutinho, afirma que

“A palavra poética é imagem” e que “a obra literária para Guimarães Rosa deve

induzir o leitor a uma tomada de consciência frente à existência das coisas, e é

nesse sentido que se vale de estruturas arcaicas para revitalizá-las” (p. 17),

considerando assim o autor de Nenhum Nenhuma um grande pesquisador da língua

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nacional, uma vez que criava palavras e utilizava palavras antigas em suas obras,

como exemplo, a palavra “estória”, levando a termo a discussão até hoje presente

na língua portuguesa no que se refere à distinção entre história e estória.

Sobre a questão, é possível fazer uma ressalva sobre o uso que o próprio

autor faz das duas palavras “estória” e “história” no conto em estudo, e no título do

seu livro Primeiras Estórias, publicado em 1962. No título do último livro Tutaméia -

terceiras estórias, publicado em vida por Guimarães Rosa, e em seu prefácio Aletria

e Hermenêutica, o termo não só é mencionado como também é examinado pelo

autor, quando assevera que “A estória não quer ser história. A estória, em rigor,

deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à

anedota.” (ROSA, 1976, p. 3). Trata-se de uma citação encontrada também em O

Léxico de João Guimarães Rosa, de Nilse Sannt’Anna Martins (2001), no verbete

“estória Nenhum, nenhuma é um dos contos escritos por Guimarães Rosa em seu

livro Primeiras Estórias.

Por tratar a questão da memória, o conto desde o seu início refere-se a uma

história em seus fragmentos de memória, ou seja, a lembrança de momentos da

vida do personagem. Os indicativos do tema memória podem ser vistos na seguinte

frase: “passaram-se e passam-se, na retentiva da gente, irreversos grandes fatos”

(ROSA, 1985, p. 47). Outra leitura possível seria o tema relacionado à recuperação

da memória perdida, quando diz que: “Não é possível saber-se, nunca mais.”

(Ibidem, p 47). No conto, a memória é vista como um rememorar, voltar ao tempo

passado.

Compreende-se que aspectos da realidade possam ser analisados através

dos textos ficcionais, neste caso, a partir da análise de como a falta de memória

interfere no cotidiano dos personagens de João Guimarães Rosa, bem como no

desenrolar dos fatos em que memória e imaginação criadora se estabelecem como

zona de intersecção no processo de construção da narrativa. A indiferenciação do

espaço se articula com a questão do tempo, na medida em que todas as referências

a espaços indefinidos misturam-se à memória, como é possível perceber em: “As

lembranças são outras distâncias.” (Ibidem, p. 52).

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Em Nenhum, nenhuma, o personagem-narrador procura através de

fragmentos nebulosos de sua memória não se esquecer dos detalhes que julga

importantes e assim retomar o passado, afirmando: “Tenho de me lembrar. O

passado é que veio a mim, como uma nuvem, vem para ser reconhecido: apenas

não estou sabendo decifrá-lo.” (ROSA, 1985, p. 50). Desse modo, o texto anuncia e

adiante leva à compreensão que falar de memória é falar do tempo, uma vez que

lembrar é re-fazer, recuar no tempo. No conto não fica claro o tempo em que está

ocorrendo a narrativa na memória do narrador, como mostra o seguinte trecho:

“passaram-se e passam-se, na retentiva da gente, irreversos grandes fatos –

reflexos, relâmpagos, lampejos – pesados em obscuridade. [...] Não é possível

saber-se, nunca mais” (Ibidem, p. 47). Outro trecho do conto mostra a incerteza do

tempo:

Na verdade, a data não poderia ser aquela. Se diversa, entretanto, impôs-se, por trocamento, no jogo da memória, por maior causa. Foi a Moça quem enunciou, com a voz que assim nascia sem pretexto, que a data era a de 1914? E para sempre a voz da Moça ratificava-a. ((ROSA, 1985, p. 48).

O conto anuncia em forma de pergunta que o ano seria, provavelmente, 1914.

Assim, em relação ao tempo dos acontecimentos narrados, lê-se:

Se diversa, entretanto, impôs-se, por trocamento, no jogo da memória, por maior causa. Foi a Moça quem enunciou, com a voz, que assim nascia sem pretexto, que a data era de 1914? E para sempre a voz da moça retificava-a. (ROSA, 1985, p. 48).

A indiferenciação é marca acentuada nessa narrativa que provém da memória

do personagem, seja em relação ao tempo, seja em referência ao espaço:

Não existindo, enquanto viviam as pessoas capazes, quem sabe, de esclarecer onde estava e por onde andou o Menino, naqueles remotos, já peremptos anos? Só que agora é que assoma muito lento, o difícil clarão reminiscente, ao termo talvez de longuíssima viagem, vindo ferir-lhe a consciência. (ROSA, 1985, p. 48).

O texto indica que os dias com acontecimentos marcantes são os que ficam

registrados na memória, exemplo disso é a reflexão do narrador adulto, apresentada

em itálico no seguinte trecho: “A dúvida que isso marcou, no Menino, ajuda-o agora

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a muito se lembrar.” (ROSA, 1985, p. 49). Betina Cunha (2009), em “Nenhum,

nenhuma: a nostalgia de uma experiência ancestral” afirma que:

Ambiguidades, oposições, fragmentos e diversidades − que se desenham e se acumulam na experiência de uma vida humana, concretizada por um projeto existencial de descobertas e conquistas – resultam de um desconforto, de uma grande distância em percorrer as múltiplas dimensões do real. (p. 171).

A autora complementa sua ideia sobre as dimensões do real, afirmando que:

[...] uma compreensão mais alargada do conceito e da função do tempo, não mais visto como uma cronologia, tal como as balizas de uma sequência temporal poderiam indicar, mas sim, como um patrimônio de ‘estórias’, fatos e reminiscências, guardados nas esferas dimensionais da memória individual e nos subterrâneos da memória coletiva. (CUNHA, 2009, p.171).

Para o Menino, adulto provavelmente, o ato de recordar é importante, e

recuperar os fatos vividos significa viver “se eu conseguir recordar, ganharei alma,

se conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e real, já havido”. (p. 48). Ecléa

Bosi (2004) considera que, “Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas

refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do

passado” (p. 55).

Quanto à personagem Nenha, moradora antiga da casa de fazenda, sua

ascendência é a de ser parente, embora não mais houvesse certeza da relação de

parentesco entre ela e a família. Conforme o narrador:

Não sabiam mais quem ela era, tresbisavó de quem, nem de que idade, incomputada, incalculável, vinda através de gerações, sem ninguém, só ainda da mesma nossa espécie e figura. Caso imemorial, apenas com a incerta noção de que fosse parenta deles. Ela não poderia mais ser comparada. A Moça, com amor, tratava dela. Venho a me lembrar. Quando amadorno. De como fora possível que tão de todo se perdesse a tradição do nome e pessoa daquela Nenha, velhíssima, antepassada, conservada, contudo ali, por seu povo de parentes. Alguém, antes de morrer, ainda se lembrava de que não se lembrava: ela seria apenas a mãe de uma outra, de uma outra, de uma outra, para trás. Antes de vir para a fazenda, ela ter-se-ia residido em cidade ou vila, numa certa casa, num Largo, cuidada por umas irmãs solteironas. Mesmo essas, mal contavam. [...] andara confiada a estranhos a Nenha, velhinha, que durava, visual, além de todas as raias do viver comum e da velhez, mas na perpetuidade. Então o fato se dissolve. As lembranças são outras distâncias. Eram coisas que paravam já à beira de um grande sono. A gente cresce sempre, sem saber para onde. (ROSA, 1985, p.49 e 52).

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Como antes aqui se observou, os mais velhos são fontes de cultura e de

tradição. Através deles, o passado retorna e faz sentido. No caso de Nenha, como

reconstituir sua narrativa individual, e com isso recompor suas memórias? Resta o

apagamento de uma vida passada. Da história da velhinha Nenha, ficara para o

Menino a imagem, a princípio, causadora de susto, para em seguida, esse medo e

susto caírem no esquecimento, cedendo lugar para o desejo de com ela brincar:

Deixaram-no ver. E, o que havia ali, era uma mulher. Era uma velha, uma velhinha – de história, de estória – velhíssima, a inacreditável. Tanto, tanto, que ela se encolhera, encurtara-se, pequenina como uma criança, toda enrugadinha, desbotada: não caminharia, nem ficava em pé, e quase não dava acordo de coisa nenhuma, perdida a claridade do juízo. [...] Estava-se no grande jardim. Para lá, tinham trazido também a Nenha, velhinha. Traziam-na para tomar sol, acomodadinha num cesto, que parecia um berço. Tão galante, tudo, que o Menino de repente se esqueceu e precipitou-se: queria brincar com ela! A Moça impediu-o apenas com brandura [...]. (ROSA, 1985, p. 50-51).

Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço (1988), mostra as possíveis

relações existentes entre a poesia e os espaços: “Nosso inconsciente está ‘alojado’.

Nossa alma é uma morada. E lembrando-nos das ‘casas’, dos ‘aposentos’,

aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos” (p.20). Importante a referência feita à

sublimação das imagens. Para Bachelard, o espaço da sensibilidade pode ser

compreendido através de uma poética da casa, da morada como proteção, espaço

da habitação. As formas de moradias que chamam a atenção do autor são

pequenas casas, mas não qualquer casa, a casa das nossas lembranças. Quanto ao

oficio do poeta, estaria ele centrado no fato de “associar imagens” (p. 16); as

imagens poéticas, complementa o autor, devem ser simples e representar os

espaços de habitação, espaço que, ao ser recordado, traz de volta, para o indivíduo,

suas memórias.

Adiante, interessa-nos o que o autor apresenta em relação à imagem da

concha. Ele a vê como o ninho, como espaço para habitação. No conto Nenhum,

nenhuma, Nenha, velhinha, era trazida pelos habitantes da casa para tomar sol,

“acomodadinha num cesto, que parecia um berço”. Trata-se de um retorno à

imagem infantil, com a presença de uma velhinha, “velhíssima”, no lugar de uma

criança pequena. Para Bachelard, “o habitante da concha espanta, a imaginação

logo fará saírem da concha seres espantosos, seres mais espantosos que a

realidade” (1988, p. 119).

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No conto de Guimarães Rosa, não há espanto por parte do protagonista: “Tão

galante, tudo, que o Menino de repente se esqueceu e precipitou-se: queria brincar

com ela!” (ROSA, 1985, p. 50). Diante dessa imagem de Nenha, “pequenina como

uma criança, toda enrugadinha, desbotada: não caminharia, nem ficaria em pé” (p.

49), o menino descontrai-se, desfazendo-se do medo e com ela se identificando.

Quanto à presença da Moça, por quem o Menino sente atração amorosa, de

sua relação com o Moço, o narrador tenta trazer à tona o que acontecia entre o

casal de namorados. Seu esforço bem revela o que os estudiosos da memória

prescrevem quando o sujeito “seleciona”, de certa forma, apenas aquilo que deseja

lembrar ou esquecer: “Tenho de me lembrar. O passado é que veio a mim, como

uma nuvem, vem para ser reconhecido: apenas, não estou sabendo decifrá-lo.”

(ROSA, 1985, p. 50).

Segundo Bosi:

É o momento de desempenhar a alta função da memória. Não porque as sensações se enfraquecem, mas porque o interesse se desloca, as reflexões seguem outra linha e se dobram sobre a quintessência do vivido. Cresce a nitidez e o número das imagens de outrora, e esta faculdade de remembrar exige um espírito desperto, a capacidade de não confundir vida atual com a que passou, de reconhecer as lembranças opô-las às imagens de agora. (2015, p. 81).

Por não conseguir retomar o passado, o narrador do conto rosiano mantém a

esperança da recordação, que dá sentido à vida na medida em que liga o passado

ao presente. Essa busca se torna mais intensa quando se compreende que

“Reperdida a remembrança, a representação de tudo se desordena”. Por isso, “luta-

se com a memória” (ROSA, 1985, p.52- 53).

De acordo com Maria Madalena Magnabosco 12 (2009, p. 2), no artigo “A

transcendência na linguagem de Nenhum, nenhuma”, o conto rosiano “vem revelar o

significado da religiosidade − propriedade que fundamenta o Humano e seu existir

12 Professora de cursos de graduação e pós-graduação na FEAD e PUC - Belo Horizonte. Formada nos cursos de graduação e pós-graduação “lato sensu” e “stricto sensu” pela Universidade Federal de Minas Gerais e PhD em Estudos Culturais pela UFRJ – PACC.

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pelo resgate dos afetos através da metáfora da memória.” A autora refere-se à

etimologia da expressão “religar-se a”, bem como ao “sentido de memória, enquanto

descendente de Mnemósyne, a que devolve e recria os sentidos (ethos) pela

mediação das palavras do poeta.” Segundo a autora:

Ambos os sentidos atêm-se à mesma linhagem de fios que buscam compor tessituras que envolvem, acolhem e recriam um universo, muitas vezes esquecido, para não dizer reprimido, pelo resgate de uma nova linguagem da memória através do religar-se à imaginação infantil. A imaginação infantil é uma das metáforas transcendentes sobre a autenticidade e religiosidade do ser, utilizadas por Guimarães Rosa para recriar uma linguagem que foi marginalizada, adulterada e subestimada pelos cânones linguísticos ocidentais. Neste, a linguagem infantil não é considerada linguagem, mas um balbucio de alguém que “nada entende” e que não tem “razão”, um mutus. Diante desta consideração anterior, pode-se pensar com Guimarães Rosa a riqueza expressiva e afetiva do pronome Nenhum, Nenhuma. (p.2).

Neste contexto, é possível dizer que “religar-se”, para João Guimarães Rosa,

possui uma ligação com a linguagem, na medida em que Rosa leva em conta “o

aspecto metafísico da língua” (ROSA, 1994, apud COUTINHO, 1994, p. 47) que faz

com que a linguagem antes de tudo seja sua. Como diz Magnabosco (2009):

Através da religação pela transcendência da memória que recupera afetos, o conto Nenhum, Nenhuma vem nos lembrar do esquecimento da imaginação infantil em favor da compreensão racional adulta. Tal compreensão, a qual orienta-se sob os critérios da clareza, da continuidade formal e da organização literal dos fatos e ânimos, suprime outras formas de simbolizar, seja pelos cheiros, pelos gestos, cores, ludicidades, intuições, e até mesmo, pelas indiferenciações. (p. 5)

Nesse sentido, consolida-se a ideia de que, em Nenhum, nenhuma, o

protagonista já adulto busca resgatar a memória da sua infância.

No conto de Guimarães Rosa, o Moço é quem mais desperta a ira no Menino. Ira de rivalidades, por ser ele (Moço) quem imprime a presença da memória que deve ser lembrada e que, por dever, retira a perplexidade dos contrários que trazem a dúvida e consequentes outras reflexões e transcendências. O Moço quer, a todo custo, a garantia do amor da Moça, a fidelidade da palavra que confirma um ganho, mas não constrói um vínculo afetivo. Na luta para resgatar outros significados pelo retorno a tempos-afetos distantes, o Menino indigna-se com a insistência da presença do Moço, já que ela (presença) traz antigas camadas cristalizadas da memória que o Menino luta para esquecer, e no esquecimento lembrar-se sob outras consciências. (Ibidem, p.8).

Nessa medida, é possível levar em conta a maneira como o passado

influencia a vida do homem ultrapassando, como diz Maurice Halbwachs, o plano

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individual, tendo em vista que as memórias de um indivíduo nunca são apenas suas,

mas fazem parte das memórias de um grupo. Para o autor, as memórias são

construções sociais, e sendo assim os indivíduos é que determinam o que para eles

é importante lembrar.

Assim, a leitura do conto Nenhum, nenhuma sugere elementos simbólicos e

míticos, ao mesmo tempo em que permite a compreensão de um “espaço-tempo

mítico, povoado de personagens arquetípicos”, como diz Eduardo Coutinho, (apud

CUNHA, 2009, p.171), que podem recuperar lembranças e memórias. Em

continuidade, Betina Cunha complementa a ideia em relação aos personagens

arquetípicos, dizendo que:

Estes por sua vez, revisam a eternização dos modelos a partir de sua reatualização idealizada no mundo da realidade concreta. É sem dúvida, uma forma de manutenção dos padrões primitivos e ancestrais que, embutidos no homem, são desvelados pela recuperação das lembranças mais remotas, arrancadas do limbo da memória, e desmanchando então os recalques e “esquecimentos”, favorece a esse homem uma libertação dos sentidos, uma reconciliação com o mundo e consigo próprio. (p. 172)

Conforme mostra Simone de Beauvoir (1990), é possível definir velho como

“um indivíduo que tem uma longa vida por trás de si, e diante de si uma experiência

de sobrevida muito limitada” (p. 445). Essa definição permite pensar-se outra vez na

personagem Nenha, “tresbisavó de quem, nem de que idade, incomputada,

incalculável, vinha através de gerações, sem ninguém, só ainda da mesma nossa

espécie e figura” (p. 49).

Nesse sentido, Beauvoir considerava que “Mudar é a lei da vida. É um certo

tipo de mudança que caracteriza o envelhecimento: Irreversível e desfavorável – um

declínio.” (p. 17). As transformações características ocorridas na velhice também

foram salientadas no conto quando o autor diz que: “Ela não poderia mais ser

comparada” (p. 49) referindo-se à figura de “Nenha”. Ou Seja, “a aparência do

indivíduo se transforma e permite que se possa atribuir-lhe uma idade, sem muita

margem de erro” (p.34). E continua sua caracterização da velhice: era uma mulher.

“Era uma velha, uma velhinha – de história, de estória – velhíssima, a inacreditável.”

(ROSA, 1985, p. 49).

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É interessante notar como a partir das transformações próprias da idade,

muitas vezes vistas como sinais de decrepitude, os mais velhos perdem seu valor na

sociedade, levando-os à exclusão social, o que não pode ser visto de modo a

generalizar-se, mas como realidade de algumas classes sociais. No caso de Nenha,

a sem memória, não fossem os cuidados carinhosos de uma Moça, estaria a anciã

aos cuidados de quem, pergunta-se o leitor, uma vez que a família, os parentes mais

próximos inexistiam na idade avançada em que ela se encontrava.

De fato, o conto Nenhum, nenhuma vem marcado pela indefinição, seja ela

proveniente da memória do personagem, seja em relação ao tempo e, ainda, em se

tratando do espaço. O texto indica, portanto, que os dias com acontecimentos

marcantes são os que ficam registrados na memória, corroborando a ideia de que

lembrar não é reviver, mas reconstruir o passado com imagens e ideias de hoje. No

caso do narrador desse conto, as imagens que ficam são as da casa, dos móveis,

“da mesa, da escrivaninha, vermelha, da gaveta, sua madeira, matéria rica da

qualidade: o cheiro do qual nunca mais houve.” (ROSA, 1985, p. 47, grifos do autor).

Quanto à presença do mito, este mais uma vez ocorre em constante reformulação

na obra rosiana. Quanto ao mito em Nenhum, nenhuma, existem elementos que

retomam o mito em seu fundamento, o do “eterno retorno”, como veremos na

conclusão deste trabalho.

5.3 PRESEPE

A velhice entristecia-o só um pouco. Guimarães Rosa

O conto Presepe compõe os quarenta contos de Tutaméia - terceiras

estórias 13 (1967), livro publicado 5 anos depois de Primeiras Estórias, sem a

existência de um livro que os intermediasse, com o título de Segundas Estórias, o

que consiste um enigma na obra do autor João Guimarães Rosa. Da fortuna crítica

13 Quando em 1997, Tutaméia completava 30 anos de sua publicação, Nonada Letras em Revista, periódico do Curso de Letras, UniRitter, Porto Alegre, RS, foi criada em homenagem aos 30 anos do livro e também lembrando os 30 anos da morte do autor. O lançamento da Revista em seu primeiro número ocorreu justo no dia 19 de novembro de 1997, data em que se rememorava o falecimento de João Guimarães Rosa.

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desse conto, destacam-se três artigos, na sequência, o artigo da professora Regina

da Costa da Silveira, intitulado Veredinhas da infância em Presepe, de João

Guimarães Rosa, na Revista Brasileira de Ciências do Envelhecimento Humano

(2005); o artigo de Adilson dos Santos, A reatualização de um quadro da fé cristã em

Presepe (2009), e o artigo “Presepe: criação de uma realidade”, de Paula Aparecida

Volante e Guacira Marcondes Machado Leite (2012).

Não obstante, a obra de Guimarães Rosa ainda necessita de estudiosos que

se dediquem a desvendar seus enigmas, seja no conteúdo, seja na linguagem.

Sabe-se que o livro Tutaméia - terceiras estórias ainda permanece pouco estudado.

Trata-se do último livro publicado em vida pelo autor. Ao considerarmos sua

estrutura, chama atenção a presença de quatro prefácios espalhados pelo livro e de

um glossário ao final.

Em relação à receptividade, Vera Novis (1989 apud SILVEIRA, 1997) já

afirmava que:

O livro não mereceu mais que uma dúzia e meia de artigos e, segundo consta, uma tese universitária, sendo que poucos desses trabalhos estão publicados em livros; a maior parte se encontra dispersa em jornais e revistas. Enquanto a bibliografia crítica dos outros livros do autor cresce mais e mais, Tutaméia permanece um livro pouco estudado’. (p. 3).

Contudo, deve-se perceber também que Tutaméia já vinha recebendo,

no ano em que completava 30 anos de sua publicação, a atenção de estudiosos,

buscando maior entendimento do livro. São contos curtos, pois foram escritos para a

revista médica Pulso. De acordo com Silveira (1997) em “A Propósito dos Trinta

Anos de Tutaméia”:

A partir dos anos noventa, o livro de quarenta contos e quatro prefácios de Guimarães Rosa vem contando com a atenção dos pesquisadores, a as publicações que têm surgido, já por seus títulos, mostram certas afinidades entre si. Publicadas nesta última década, tais obras que interpretam a de Rosa evidenciam descobertas significativas ligadas a um simbolismo que se inscreve de modo especial na tradição hermético-alquímica. Tome-se como exemplo o livro de Monique Balbueno, intitulado Poe e Rosa à luz da cabala (1994); o de José Maria Martins: Guimarães Rosa: O alquimista do coração (1994); e; em 1996, o livro de Heloísa Vilhena de Araujo: O roteiro de Deus, os dois últimos contendo importantes observações sobre Tutaméia, ainda que se dediquem à análise de Grande Sertão: veredas. (SILVEIRA, 1997, p. 4).

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A proposta deste trabalho é analisar, desse livro, o conto Presepe, levando

em conta a questão da velhice, da memória e da simbologia em que se inscrevem

elementos da tradição cristã. Para tanto, considerou-se o livro A velhice (1990), de

Simone de Beauvoir. Com o protagonista de Presepe, entende-se por que motivo

ser velho, além de ser algo natural, depende da sociedade a que o sujeito pertence.

No caso, Tio Bola é tratado de modo diferenciado, uma vez que o seu declínio

biológico traduz a fragilidade da memória e isso se acentua de forma considerável

de acordo com o modo como é tratado no seio da família. No caso do personagem

rosiano, sua memória saudável permite que ele se dê conta da noite significativa que

é a passagem do Natal. Por isso, “quis ver visões”, “não cabia no quarto”, conforme

declara o narrador de Presepe. Quanto à tradição, o próprio título do conto remete o

leitor ao Natal. De acordo com Adilson dos Santos (2009), no artigo « A

reatualização de um quadro da fé cristã »:

O presépio ou presepe, como também é chamado, é um dos simbolos mais antigos e característicos das festividades natalinas dos cristãos. Do latim ‘praesepiu‘,o termo possui três significações [...] : lugar onde se recolhe gado; curral, estábulo, representação, na tradição do Natal, do estábulo de Belém e das figuras que participaram, segundo o Evangelho, do nascimento de Cristo, e das cenas que a ele se seguiram e a manjedoura onde o Menino Jesus foi posto ao nascer. (p.1)

Ainda em relação ao ritual cristão, Santos informa que “No Brasil, o presépio

foi provavelmente introduzido no início do séc. XVII, na cidade de Olinda (PE), pelo

franciscano frei Gaspar de Santo Agostinho.” (2009, p.3).

Já a doutoranda Paula Aparecida Volante (2012), no artigo “Presepe: criação

de uma realidade” , assevera que :

Presepe, vocábulo originário do latim praesepe, segundo Ferreira (2010) e Houaiss (2009), que remete a um lugar onde se recolhe o gado, uma espécie de estábulo. Refere-se ainda à palavra presépio, entendido como a representação do estábulo de Belém e das figuras que participaram do nascimento de Cristo, e ao termo mamulengo, compreendido como uma espécie de teatro de fantoches, rico em situações satíricas e cômicas. Assim, o título do conto já indica ao seu leitor a tônica da narrativa, uma história de representação, recriação de uma situação bíblica, a construção de um universo imaginário que tem vida própria no interior do personagem, que deseja reviver e participar da tradição do presépio. (p. 78)

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Dessa forma, o conto rosiano leva a uma reflexão sobre o significado do Natal

e sobre o ritual praticado há séculos. O conto evidencia que, apesar da idade

avançada, Tio Bola não se isenta de reviver o momento do nascimento do Menino

Jesus, recuperando a situação sagrada. O conto possui, portanto, uma simbologia

que se inscreve na tradição cristã.

Figura 8 - Presepe

Fonte: <http://www.centroloyola.org.br/index.php/revista/outras-alavras/desdobramentos/263-presepe>. Acessado em 01/12/15

Presepe trata da estória de Tio Bola, um octogenário que, na noite de Natal,

refaz o ritual cristão no estábulo de sua fazenda, inserindo seu próprio corpo no

cenário do presépio. A narrativa ocorre em uma fazenda, no tempo de uma noite

apenas. Lá vivem dois grupos distintos: o primeiro, composto por Tio Bola, Nhota, a

“cardíaca”, e Anjão, “o terreireiro imbecil”, e o segundo, formado pelos “outros”

(ROSA, 1967, p.119), isto é, “os parentes”, “meninos e adultos” que, por serem mais

jovens, gozam de maior importância no âmbito familiar. Diferente do segundo grupo,

o primeiro grupo é o dos excluídos, uma vez que as características descritas pelo

narrador nos levam a caracterizá-los dessa maneira: Nhota, a cozinheira cardíaca,

cuida da casa e é responsável por Tio Bola. Parece estar à beira da morte. No que

diz respeito a Anjão, este personagem é apresentado como o “terreireiro, imbecil”,

sua função parece ser a de prestar serviços gerais, haja vista que foi o encarregado

de trazer burro e boi, à noite, ao curral. Já Tio Bola é o ancião da família, “em seus

oitenta anos”, morador do interior, está na velhice, o que lhe traz alguns problemas.

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Trata-se de uma fase da vida que o entristecia “só um pouco”, conforme o texto.

Seus parentes não careciam de sua companhia, conforme se lê: “Meninos e adultos

[...] o atormentavam, tratando-o de menos” (ROSA, 1967, p.119).

Existem também as intolerâncias com relação às suas dificuldades físicas

decorrentes de sua idade avançada: “Tio Bola, desestimado, cumpria mazelas

diversas, seus oitenta anos”. Ele, que “tão gordo fora” o que explica a razão de seu

nome estava, então, “tão magro, tão fraco: [que] nem piolhos tinha mais” (ROSA,

1967, p.119). Então é possível dizer que tanto a condição física quanto a social dos

personagens Tio Bola, Nhota e Anjão funcionam no conto como fatores de exclusão.

Ocorre que, na noite de Natal, devido aos “achaques de velhice” (Ibidem, p.119), Tio

Bola é deixado na fazenda, enquanto os familiares vão à vila para assistir à missa do

galo.

Nesse estágio, a situação do protagonista faz lembrar que a Lei 10.741/2003

preconiza que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar ao idoso

todos os direitos da cidadania, garantindo sua participação na comunidade,

defendendo sua dignidade, bem-estar e direito à vida e que o idoso não deve sofrer

discriminação de qualquer natureza.

Embora excluídos no seio da família, esses personagens constituirão não

apenas o centro da narrativa, mas serão destaques no elenco da representação

criada para o ritual natalino na fazenda. Na divisão estabelecida entre os

personagens, subverte-se a expectativa do leitor, uma vez que são eles, os

aparentemente desvalidos, que representam o presépio. Por outro lado, a família

que vai assistir à missa do galo, participantes ativos do cerimonial cristão, não são

os verdadeiros protagonistas da estória.

Ao sair para a vila, a família deixa Tio Bola. Em seus oitenta anos, o ancião

sente que “não cabia no quarto” naquela noite de Natal, porque “Natal era noite nova

de antiguidade [...] Natal era animação para surpresas, tintins, tilintos, laldas e loas!”

(ROSA, 1967, p.119). Assim, com as recomendações de Nhota, a cozinheira

cardíaca, “ele fingia recolher-se. [...] Tomou aviso e voltou-se: estafermado, no

corredor, o Anjão fazia-lhe pelas costas gesto obsceno. Ordenou-lhe então –

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trouxesse ao curral um boi, qualquer!”. Então ficara “O burro e o boi – à manjedoura

– como quando os bichos falavam e os homens se calavam.” (p. 119). Decidido, Tio

Bola antes perguntara a si mesmo: “Deitava-se no cocho? Não como o Menino, na

pura nueza... [...] Mas, pecador, numa solidão sem sala. [...] Teve para si que podia

– não era indino – até o vir da aurora”. Aqui é possível fazer uma relação com um

trecho do evangelho de São Mateus (8, 8), que diz o seguinte: Senhor, eu não sou

digno de que entreis em minha casa, mas dizei uma só palavra e serei salvo. No

ritual cristão, na missa do galo, os familiares de Tio Bola julgam-se indignos de

receber Cristo em sua morada. Quanto a Tio Bola, junto aos desvalidos na fazenda,

coloca-se na condição digna de estar no lugar de Jesus-menino, organiza seu

próprio ritual natalino, ocupando o lugar da criança recém-nascida.

Em “Veredinhas da infância em Guimarães Rosa”, Regina da Costa da

Silveira (2005) afirma que a reencenação do Presépio, feita no estábulo por Tio

Bola, junto a Nhota e Anjão, “é um momento de transcendência que o herói-ancião

proporciona a si mesmo” (p.12), uma vez que, ao reatualizar o Natal, esses

personagens se reorganizam, a fim de dar continuidade a uma tradição cultural, e se

reconstroem com a celebração dos ritos de passagem. Com isso, resistem à

situação desfavorável em que se encontram, quando a família segue para a vila,

deixando-os na fazenda na noite de Natal sem participar da missa do galo. É o que

esclarece a autora no comentário: “Tio Bola está a nos dizer que a vida é sempre um

espetáculo novo, ainda que encene memórias de um tempo muito antigo; um palco

constante em que entramos quase sempre de improviso; um quadro sempre por

desenhar.” (Ibidem, p.13).

Tanto no mito helênico quanto nas tradições africanas, fica relegado ao

ancião o papel de sábio14, desde que a memória biológica facilite a rememoração de

suas narrativas. Nessa direção, examina-se a simbologia do presépio para

reatualizar as imagens que compõem os ritos de passagem do Natal. Com a ideia de

Tio Bola, a celebração natalina vem mediada por elementos que emergem da

realidade da fazenda, dos que ficaram longe das celebrações religiosas da missa do

14 Para lembrar o que anotamos em capítulo anterior, citando o provérbio que diz “Em África, quando morre um ancião, arde uma biblioteca [...]”, situação que bem demonstra que os velhos seriam os depositários da oralidade enciclopédica, legado da tradição e da linguagem, das paródias, dos costumes, ensinamentos éticos e morais, além das histórias que compõem o imaginário.

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galo. No quadro criado por Tio Bola, estão o burro e o boi no curral da fazenda, com

a presença humana do casal de empregados, feito José e Maria, e o próprio ancião

que, mesmo em seus oitenta anos, subverte a imagem do Menino. Ali, ao relento,

todos passaram a noite de Natal, recolhendo-se apenas quando “a última estrelinha

se pingou para dentro”, e o grande astro-rei, o sol, desponta. É quando a família

também retorna da vila. Parece insólito o fato de um velho ocupar o lugar do Menino

na manjedoura, mas o narrador antecipa o fato de que Tio Bola “caduco de maluco

não estava”, “que o achassem sem tino perfeito, com algum desarranjo de juízo!”

(ROSA, 1967, p.120-121). Silveira (2005, p. 10) examina o cerimonial empreendido

pelo protagonista, considerando que:

Da mesma forma como os heróis antigos empreendem suas aventuras, Tio Bola põe-se à luta, no caso, contra sua própria solidão, ao criar a representação de um presépio numa estrebaria enquanto “todos” foram à vila para a missa do galo. Nesse empenho, o herói rosiano deixa entrever a regressão aos estágios infantis, ao mesmo tempo em que, como ancião, reatualiza o saber ancestral do inconsciente coletivo. A fragmentação da ordem na aparente totalidade que a família representa e a subversão de alguns rituais do cerimonial religioso são fatos que se somam no itinerário desse herói para anunciar que a vida ainda se agita no fragmento, que é sempre matéria vertente, abrindo espaço para o sonho e para a criação.

Simone de Beauvoir (1990, p. 110) lembra, com efeito, que:

O velho, enquanto categoria social, nunca interveio no percurso do mundo. Enquanto conserva uma eficácia, ele permanece integrado à coletividade e não se distingue dela: é um adulto macho de idade avançada. Quando perde suas capacidades, aparece como outro [...] ele não serve para nada: nem valor de troca, nem reprodutor, nem produtor, não passa de uma carga.

Ao se referir à mitologia, a autora acrescenta que “Através das mitologias, das

crônicas, das literaturas, encontra-se um eco desses confrontos. Fatalmente, os

anciãos acabam por ser vencidos, uma vez que constituem uma minoria ineficaz, e

só tiram sua força da maioria que os utiliza.” (p. 110-111). Vale lembrar que a obra

de Beauvoir data de 1970, ou seja, há quase cinco décadas. Resquícios acentuados

referentes à situação do velho ainda permanecem, mas a legislação brasileira veio

para dar alento à vida do ancião, com o objetivo de melhorar sua convivência

familiar e social.

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No conto, a ideia de exclusão do velho é uma realidade, tão presente quanto

encontramos no contexto de muitas relações familiares, lembrando outra vez que

“Todos foram à missa”, o velho, no entanto, ficara com os desvalidos em casa. Tio

Bola é auxiliado, como o leitor observa, pela rememoração: dá-se conta da solidão,

mas “uma solidão sem sala”, isto é, sem os limites impostos pela ausência dos

outros. Para reencenação do Presépio, o ancião recorreu à memória de uma

tradição, no caso, o Natal cristão.

Conforme Chevalier (1995), cada planeta simboliza uma idade determinada:

“a Lua, a primeira infância; Mercúrio, a meninice; Vênus, a adolescência; o Sol, a

juventude; Marte, a virilidade; Júpiter, a idade madura (ou a velhice, segundo Juntino

de Florença); e Saturno, a decrepitude.” (p.499). Cada estátua carregava uma

significação. A estátua de Saturno é a que vem representada por um ancião.

Figura 9 - Saturno

Fonte: <https://www.google.com.br/search?q=saturno+ancião> Acesso: 21/12/2015

Retomando a mitologia, remetemo-nos à ligação entre Saturno e o recém-

nascido, cabe lembrar que na imagem aqui exposta, é Saturno representado nas

moedas como nas pinturas de Pompeia. Tal como Cronos, sua imagem é

ambivalente: atividade agrária, com a abundância das colheitas; e como castrador,

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com a serpente na mão. Na imagem, Cronos ou Saturno, sentado no trono, recebe

das mãos de sua mulher (Rea ou Opes) a pedra envolvida em panos que ele

confundiu com Júpiter recém-nascido. Já na figura do ancião, observa-se que o

Saturno africano é um homem de barba curta, penteado com calátides. O deus

chega a figurar com três aspectos distintos: deus barbudo com a foice, jovem deus

solar com a cabeça ornada de raios e jovem deus lunar coroado com o crescente.

Quanto às Saturnais, os romanos, com receio que o deus abandonasse o seu

lugar, prenderam a sua estátua com faixas de lã e não a libertavam senão quando

se realizavam as Saturnais. Com efeito, estas festas populares, celebradas

anualmente por volta do solstício de inverno, pretendiam ressuscitar por um certo

tempo a época maravilhosa em que os homens tinham vivido sem contrariedades,

sem distinções sociais, numa paz inviolada. Era uma semana de repouso livre e feliz

− o que remete no Ocidente às semanas que compreendem os feriados do Natal e

do Ano Novo, mas também a semana com os feriados do Carnaval brasileiro.15 O

mito chamou a atenção de Simone de Beauvoir, no livro A velhice (1990), quando a

autora observa que Reia (Opes), esposa de Krono, esconde seu caçula, Zeus,

porque [Krono], por ter castrado Urano, seu pai, “talvez desconfiasse dos filhos −

detestava-os e os devorava” (p. 120). Por isso, Reia entrega a Krono, em lugar do

filho, uma grande pedra enfaixada (vide imagem).

De fato, a tradição é desconstruída tanto pelo protagonista como pela

narrativa de Guimarães Rosa. Eduardo Coutinho considera que “A narrativa de

Guimarães Rosa desafia constantemente o leitor a desconstruir sua experiência

cristalizada pela tradição e a elaborar, em contrapartida, a experiência do novo”

(COUTINHO apud BETINA, 2009, p.17). Nessa medida, é possível justificar os

termos história e estória: a história aqui centra-se na desconstrução da tradição

rosiana no que tange à história da literatura; a estória, por sua vez, consiste na

ficção, fruto da imaginação criadora que resulta no conto propriamente dito, na

narrativa curta cuja trama envolve o tema natalino protagonizado pela figura de um

ancião.

15 Durante as festas saturnais, todas as atividades profissionais eram suspensas, até as campanhas militares eram interrompidas, e se realizavam inúmeros banquetes, onde os cidadãos substituíam a toga pela túnica e serviam os seus escravos que, desobrigados das suas funções habituais, falavam sem papas na língua.

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Como disse Alfredo Bosi, toda a obra de Guimarães Rosa coloca-nos diante

do mito “como forma de pensar e de dizer atemporal e, na medida em que leva

transformações bruscas, alógicas.” Para o crítico, “Outro problema seria o de situar a

opção mitopoética do escritor na práxis da cultura brasileira de hoje.” (1994, p. 433),

o que nos leva a pensar que tratar o tema que resgata a ancestralidade, as

memórias do velho dentre os personagens rosianos, torna-se desafio constante,

ainda mais se pensarmos na possível contribuição para a implementação das leis

nas escolas.

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6 CONCLUSÃO

O objetivo desta dissertação esteve pautado na reflexão, na discussão do

tema memória e velhice, e na análise dos contos de Guimarães Rosa aqui

selecionados. O que vai aqui se concluir resulta, portanto, do aporte teórico-crítico

sobre esses temas e, antes desses, reexaminou-se o mito em suas origens, uma vez

que os helênicos em muito contribuíram para o tratamento dos medos, dos conflitos

e de muitos outros processos que embasaram a cultura ocidental. Além disso, foram

lembrados elementos da ancestralidade africana, que justificam a presença dos

velhos griots, os que transmitem pela oralidade, tais como antigos rapsodos

homéricos, legados e fundamentos de sua tradição às novas gerações.

Como professora de história observei, com o apoio de Sandra Jatahy

Pesavento, que os historiadores também recorrem a estratégias próprias dos

romancistas e poetas, tais como metáfora, ironia, metonímia, entre outras figuras de

linguagem. Assim, história e estória passaram a constituir o léxico levado em conta

nesta dissertação, graças à realização de disciplinas que trataram da língua e da

linguagem literária, de modo especial às leituras das narrativas e propostas literárias

de Guimarães Rosa junto à teoria e à fortuna crítica. Tudo isso foi material inovador

para o conhecimento da professora de história que atuou junto ao Ensino

Fundamental durante mais de duas décadas em escolas públicas do Rio Grande do

Sul. Se, de um lado, a historiadora sentiu-se auxiliada e fascinada pela revisão da

mitologia, por outro lado, nunca imaginara o fascínio maior que foi relacionar os

mitos, a memória e a história da velhice às representações literárias.

Com o desenvolvimento da pesquisa, foi possível reconhecer a capacidade

que tem o texto literário de agregar temas tais como a memória e a condição

humana. No desenvolvimento da pesquisa, optou-se por analisar contos que

envolviam os temas memória e velhice e que fazem parte dos livros Primeiras

Estórias e Tutaméia - terceiras estórias. Foram analisados dois contos: Nenhum,

nenhuma e Presepe. Constatou-se que a obra de Guimarães Rosa vem sendo

analisada por pesquisadores de diversas áreas. Como historiadora, considerei

importante também buscar, nas referências selecionadas para a realização da

pesquisa, uma abordagem metodológica qualitativa que remetesse ao exame da

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memória e do envelhecimento. Estes, por sua vez, vinculados aos mitos e às leis

que hoje regulam a condição do indivíduo considerado idoso. No caso do escritor de

Cordisburgo, seus temas relacionados à velhice e à reencenação de lembranças

evidenciaram a peculiaridade de os personagens serem universais, ainda que

contextualizados na simplicidade do meio rural: ambos, Nenha e Tio Bola, habitam,

respectivamente, uma casa de fazenda.

De forma geral, enfatiza-se que a dissertação agenciou o tratamento de uma

temática com uma abordagem literária que permitiu o diálogo entre história e estória.

Trata-se, como se viu, de narrativas curtas em que, na trama, os personagens

conduzem a leitura para o âmbito que a universaliza, se forem pensados os mitos e

a legislação que os textos trouxeram à tona, e também o fato de que a mesma trama

subsidia a imaginação criadora do leitor, propondo-lhe reflexões sobre o humano e

suas vicissitudes, no sentido de sucessão de mudanças ou de alternâncias, variação

decorrente das mudanças ocorridas na história da velhice ao longo de muitas

décadas no mundo inteiro.

Nesse sentido, ao se abordar o Estatuto do Idoso, referiu-se à política

nacional brasileira da Lei Nº 10.741 em conjunto com a Lei Nº 8.842, que

regulamenta a Política Nacional do Idoso. Trata-se de uma situação de exclusão que

remete ao que diz a Lei 10.741/2003, quando no Art. 10, aborda a política nacional

do idoso. Segundo a legislação, são competências dos órgãos e entidades públicos,

na área de promoção e assistência social, prestar serviços e desenvolver ações

voltadas para o atendimento das necessidades básicas do idoso, mediante a

participação das famílias, da sociedade e de entidades governamentais e não

governamentais; estimular a criação de incentivos e de alternativas de atendimento

ao idoso, como centros de convivência, centros de cuidados diurnos, casas-lares,

oficinas abrigadas de trabalho, atendimentos domiciliares e outros, bem como

promover a capacitação de recursos para atendimento ao idoso.

Mas, ao pensar-se em A velhice (1990), que tem como subtítulo “O mais

importante ensaio contemporâneo sobre as condições de vida dos idosos”,

publicado pela primeira vez em 1970, conclui-se que a temática, tanto na literatura

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rosiana quanto nas ideias da francesa Simone de Beauvoir, encontra afinidades

indispensáveis para fundamentar análise e discussão.

Assim, compreender a velhice como parte ativa da sociedade, conforme se

buscou fazer nessa dissertação, foi possível graças a recursos, ações e materiais

para o cumprimento da legislação, que trazem como o foco principal a interação do

velho e de suas memórias como reafirmação da sua identidade.

Constatou-se como o conceito de memória é vasto em seus significados. Não

centrou-se a pesquisa no conceito relacionado à memória física, ainda que, para

isso, a contribuição de Iván Izquierdo tenha sido eficaz. Nesta dissertação, memória

foi tratada com o significado daquilo que ocorre como resultado da experiência já

vivida, lembranças e reminiscências. De modo apenas resumido, falou-se da

lembrança que alguém deixa de si após sua morte. Trata-se da parte, ainda que

breve, em que da memória subjetiva de uma experiência já vivida em família, com as

lembranças do pai diante uma caixa de fotos antigas; o pai torna-se ausente por seu

falecimento, e a autora, ora com sua dissertação em andamento, passa a

rememorar o próprio pai in memorian. Por ironia do destino, a presente dissertação

passa a assumir, para a autora, um dos significados expresso em Houaiss (2001,

p.1890), como se a pesquisa sobre memória se tornasse, então, um “monumento

erigido para celebrar feito ou pessoa memorável”, o que dispensa comentários, dado

o grau de subjetividade que o conceito passou a instaurar.

Com aporte das ideias de Antonio Candido (2011), em “Crítica e sociologia”

do livro Literatura e Sociedade, pode-se melhor compreender a mudança de atitude

dos críticos em relação ao social, à obra literária e ao momento histórico. Vimos que,

para Candido (2011), um estudo deve utilizar livremente os elementos capazes de

conduzirem a uma interpretação coerente, para que se obtenha, tanto quanto

possível, uma crítica integral, ou seja, no caso desta dissertação, uma leitura que

deixe de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou lingüística: “Mas nada

impede que cada crítico ressalte o elemento da sua preferência, desde que o utilize

como componente da estruturação da obra” (p.17).

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Ter consciência da situação do papel dos mais velhos na sociedade foi

fundamental para que se pudesse analisar o objeto principal de pesquisa: memória e

velhice.

Dessa forma, oportunizar a leitura de textos literários que tematizem os

conceitos de memória e de velhice ocorreu mediante a observação crítica em

relação ao padrão de normalidade que a sociedade confere de modo geral aos

conceitos, entre eles, o da velhice. Discutir a prática do professor, em relação à

leitura e interpretação dos contos rosianos, organizar atividades de leitura e

discussão dos textos de acordo com os conceitos propostos foi uma das questões

que procuramos desenvolver, em continuidade às propostas ligadas à formação de

professora do Ensino Fundamental.

No desenvolvimento do trabalho, foram utilizadas a pesquisa de cunho

bibliográfica e a metodologia qualitativa com a análise dos contos rosianos. A partir

da reflexão sobre a situação dos mais velhos, reafirma-se a importância do tema da

velhice na atualidade uma vez que a população humana está vivendo mais a partir

dos avanços da medicina que atualmente proporcionam uma melhora na qualidade

de vida da população. Se a população de velhos cresce em todo mundo, é de

grande relevância a discussão do tema do envelhecimento, portanto, precisamos

como professores e pesquisadores investigar as representações culturais da velhice

e suas relações com as práticas sociais.

Além disso, para a análise das narrativas selecionadas, necessita-se do

conceito da narrativa curta, o conto. Foi nesse contexto que surgiu a necessidade de

pensar o conto a partir das ideias Massaud Moisés (2013, p. 89). Segundo o autor,

“a estrutura do conto, embora admita numerosas variações, não deve confundir-se

com a de nenhuma das restantes formas narrativas”. Para ele, o conto, no século

XX, “desenvolve sutilezas que, acentuando-lhe a fisionomia estética, o aproximam

de uma cena do cotidiano poeticamente surpreendida” com “a rapidez com que tudo

se altera no mundo moderno” (p. 88-89).

No capítulo de Memória e mitologia, procurou-se analisar o conceito de mito

sob uma perspectiva histórica, buscando compreensão da mitologia grega. Teóricos

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como Eliade, Grassi, Cassirer, Durand, Halbwachs mereceram destaque. De modo

geral, pode-se dizer que a ideia de memória está relacionada à existência da vida

como um todo e atrela-se à explicação da realidade para antigas civilizações. A

memória pode ser vista como garantia de identidade e reconstrução da história dos

indivíduos, com ênfase dos mais velhos.

Tendo como foco principal as narrativas, percebe-se que o modo de ser de

cada cultura é transmitido de geração a geração, o que caracteriza a tradição. Com

o desenvolvimento da razão, a filosofia de Emmanuel Kant, como campo de

conhecimento, foi entendida a partir da obra de Marilena Chaui (2005). Para uma

leitura posterior, há de se examinar Eduardo Viveiros de Castro, que foi mencionado

em artigo, de quem vale a pena ler A inconstância da alma selvagem e outros

ensaios de antropologia (2013, p. 486), quando o autor menciona Kant em entrevista

a Renato Sztutman: “Todo mundo que leu Kant sabe que o ato de conhecer é

constitutivo do objeto de conhecimento.” Para o antropólogo, o ideal de Ciência guia-

se precisamente pelo valor da objetividade. Por isso, deve-se ser capaz de

especificar a parte subjetiva que entra na visão do objeto, e de não confundir isso

com o objeto em si, uma vez que “Conhecer, para nós, é dessubjetivar tanto quanto

possível. Você conhece algo bem quando é capaz de vê-lo de fora como um objeto.

[...] Toda a ciência deve se mirar no espelho da física.” (VIVEIROS, 2013, p. 487).

Trata-se de um assunto a ser trabalhado ao longo da tese de doutorado. Como diz o

autor, afinal, “Já não somos tão animistas quanto os índios.” (p. 487).

Para a compreensão da memória e da velhice, foi necessário recorrer à

História Cultural, expressão de Sandra Jatahy Pesavento, que aborda uma nova

relação entre História e Literatura. Tais relações eram vistas pela autora como

inerentes às representações da memória. Foi nessa perspectiva que, ao definir o

tema desta dissertação de mestrado, optou-se por concentrar a pesquisa em

estudos que permitissem o diálogo entre as representações literárias rosianas e o

tema da velhice.

Pensou-se, assim, favorecer a implementação da Lei, encaminhando

possíveis debates em aulas de literatura, oficinas e reuniões de qualificação

pedagógica. Reafirma-se, portanto, a importância do estudo que envolve o tema da

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velhice na literatura, sendo esta um direito do indivíduo e uma disciplina a ser

ministrada nas escolas. Importante notar que mesmo não constando nos currículos

escolares a disciplina de literatura, a leitura acompanha os alunos desde pequenos,

com os contos maravilhosos em que a figura do ancião representa às vezes o bem,

mas também uma figura malévola.

Ao assumir a competência conferida aos órgãos públicos, a escola se define

assim em sua prática pedagógica como agente de promoção e assistência social, ao

desenvolver ações voltadas para o atendimento das necessidades básicas do idoso,

envolvendo as famílias, parte importante da sociedade.

Conclui-se, afinal, sobre o título das narrativas literárias, que no conto

Nenhum, nenhuma, o pronome masculino “Nenhum” corresponderia ao protagonista,

o Menino, uma vez que sua imagem só aparece na lembrança do narrador adulto;

quanto a “nenhuma”, uma leitura possível para o pronome feminino acenaria para a

existência de memória alguma na vida de Nenha, uma vez que nem as pessoas que

com ela convivem sabem de sua ascendência, tampouco ela que já não possui

memória de acontecimento algum.

Já o título do conto Presepe lembra a forma usual “Presépio” e antecipa a

reatualização da tradição Cristã. Conclui-se que o protagonista lembra, com efeito,

além da tradição cristã, datada há pouco mais de dois mil anos, as Saturnálias,

festas em homenagem a Saturno. Pelo fim do ano agrário e religioso e pela

passagem do ano novo, observou-se que o texto rosiano vai além da tradição cristã,

uma vez que as Saturnálias referiam-se ao deus Saturno (Kronos, em grego) e

foram absorvidas pelo Natal no séc. IV a.C. e dela se manteve o hábito de trocar

presentes, e como colheita e (re)nascimento. A leitura assim feita de Presepe

consolida a ideia de que “A narrativa de Guimarães Rosa desafia constantemente o

leitor a desconstruir sua experiência cristalizada pela tradição e a elaborar, em

contrapartida, a experiência do novo.” (COUTINHO apud CUNHA, 2009, p.17).

Assim, para compreender a memória como resgate do passado,

prevaleceram as definições que apontam para o conceito de memória como

peculiaridade que têm os mais velhos de poder relembrar fatos passados e divulgar

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entre os jovens as tradições, ou em sua função geral que consiste em reviver ou

restabelecer experiências passadas com maior ou menor consciência de que a

experiência do mesmo presente pode ser um ato de revivescimento.

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ANEXOS

ANEXO A – Texto Presepe

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ANEXO B – Texto Nenhum, nenhuma

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