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Título: Ocupação urbana, áreas de preservação permanente, operações urbanas consorciadas e o Ministério Público. Autor: Alex Fernandes Santiago Promotor de Justiça. Coordenador das Promotorias de Defesa do Meio Ambiente da Bacia do Alto São Francisco em Minas Gerais. Endereço: Avenida Raja Gabaglia, 615, 2 o andar, bairro Cidade Jardim, Belo Horizonte, Minas Gerais, CEP 30.380.090 Telefone: 0xx31 – 3221-2683 E-mail: [email protected]

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Título: Ocupação urbana, áreas de preservação permanente, operações

urbanas consorciadas e o Ministério Público.

Autor: Alex Fernandes Santiago

Promotor de Justiça. Coordenador das Promotorias de Defesa do Meio

Ambiente da Bacia do Alto São Francisco em Minas Gerais.

Endereço: Avenida Raja Gabaglia, 615, 2o andar, bairro Cidade Jardim,

Belo Horizonte, Minas Gerais, CEP 30.380.090

Telefone: 0xx31 – 3221-2683

E-mail: [email protected]

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OCUPAÇÃO URBANA, ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE,

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS E O MINISTÉRIO PÚBLICO.

ALEX FERNANDES SANTIAGO

RESUMO: A ocupação urbana no Brasil retrata problemas ligados à ausência

de planejamento, devendo adequar-se à política de desenvolvimento urbano e

atingir os objetivos do artigo 182 da Constituição Federal. A realidade da

atuação municipal demanda atuação preventiva e repressiva do Ministério

Público, existindo amplo instrumental a ser manejado, sobretudo para

observância das metragens estabelecidas pelo Código Florestal quanto às

áreas de preservação permanente urbanas. Contudo, nos casos de

irreversibilidade da ocupação, a operação urbana consorciada afigura-se como

instrumento de política urbana aplicável.

SUMÁRIO: 1 Introdução. A ocupação urbana no Brasil e o urbanismo. 2 A

política urbana e a função social da cidade. 3 A realidade da atuação municipal.

4 A legislação municipal quanto às metragens da área de preservação

permanente. Necessidade de adequação. 4.1 O artigo 2o, parágrafo único, do

Código Florestal. 5 A atuação ministerial, preventiva e repressiva. 5.1 As

recomendações para adequação. 5.2 Ação civil pública para coibir construções

em desacordo com a metragem do Código Florestal. 5.3 Ações de embargo e

demolição da obra. 5.4 Ação de improbidade administrativa. 5.4.1 Os

loteamentos clandestinos e irregulares e a improbidade. 5.5 Omissão

penalmente relevante – crime. 5.6 Outras medidas. 6 A existência dos

parcelamentos clandestinos ou irregulares. 7 A operação urbana consorciada.

7.1 Cumulatividade dos objetivos. 7.2 A regularização. 7.3 A lei específica. 8 A

legislação estadual mineira. Equívocos. 9 Iniciativas.

PALAVRAS-CHAVE: Política urbana – Função social da cidade – Município –

Áreas de preservação permanente urbanas – Código Florestal – Ministério

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Público – Atuação – Loteamentos clandestinos e irregulares – Regularização –

Operação urbana consorciada.

1 Introdução. A ocupação urbana no Brasil e o urbanismo.

Pelo último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,

IBGE, realizado no ano de 2.000, aproximadamente 80% (oitenta por cento) da

população brasileira vive em áreas urbanas, sendo que o Brasil perdeu a feição

eminentemente rural na década de 1960.1

Vários problemas surgiram, contudo, dessa transição para um Brasil-

urbano, demandando a ordenação da ocupação humana das cidades2, com

diversos reflexos, negativos, no equilíbrio ambiental, e no bem-estar da

população.

No Direito Pátrio, a Constituição Federal, em seu artigo 182, caput,

estabeleceu que a política urbana objetiva “ordenar o pleno desenvolvimento

das funções sociais das cidades e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

Aplicável ao mandamento constitucional o ensinamento de Veiga de

Faria, que assevera ser o objeto fundamental do Direito Urbanístico a “melhor

organização do território, e os interesses particulares dos proprietários desse

território, bem como o poder da autoridade pública estão subordinados a esse

escopo primário, por ele procurando conciliar-se mutuamente”3, pelo que os

direitos dos proprietários não são preexistentes à legislação urbanística, mas

dela se originam, no entendimento mais avançado do Direito Urbanístico4. Além

disso, o urbanismo se ocupa não somente do arranjo físico territorial das

1 Para maiores informações a respeito, consulte-se <http://www.ibge.gov.br./ibge/estatistica/populacao>2 Detectaram-se como principais problemas: a) o excessivo crescimento da população urbana; b) oassentamento desordenado dessa população, ausentes qualquer planejamento e racionalidade; c) asegregação residencial, pelo que as pessoas mais carentes são destinadas às periferias, sem qualquer infra-estrutura, sendo que as áreas nobres recebem as maiores ações do Estado; d) a atividade especulativa, emque o proprietário de imóveis urbanos, valendo-se da faculdade do não uso, aguarda o momento delocupletar-se com os investimentos de toda a coletividade, que valorizou seus bens de raiz. A relação é deRicardo Pereira LIRA, professor titular de Direito Civil e Propriedade Urbana na Faculdade de Direito daUERJ (Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 157/158).3 FARIA, Manuel Veiga de. Elementos de direito urbanístico. Coimbra: Coimbra, 1977, p. 36. 4 Na síntese feliz de MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. 2 ed., rev., atual. e ampl. (deacordo com Estatuto da Cidade – Lei n. 10.257/01 – e com o novo Código Civil, Lei n. 10.406) – SãoPaulo: Dialética, 2.002, p. 11. Lembra ainda este que o “urbanismo, de simples arte de embelezar acidade, passa a ser, por obra da especialização técnica e científica, uma ciência e uma técnica, agora deordenação das cidades.”(p. 49)

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cidades, mas vai além, em abordagem qualitativa, dos aspectos relacionados à

qualidade do meio ambiente5.

2 A política urbana e a função social da cidade.

Ao cuidar da ordem econômica e financeira, em seu título VII, a Carta

Magna, após estabelecer, no capítulo I, os princípios gerais da atividade

econômica (e dentre os princípios, figura a defesa do meio ambiente – artigo

170, VI), cuidou, no capítulo II, da política urbana, nos artigos 182 e 183.

Dispõe o artigo 182, caput:

“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder

Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo

ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o

bem-estar de seus habitantes.”

Política é “o conjunto de medidas e decisões que são tomadas pelo

Poder Público no sentido de alcançar alguns objetivos determinados e

estabelecidos previamente, seja em programas de governo, seja em normas

jurídicas indutoras de condutas governamentais”6, sendo que a política urbana

será o conjunto de medidas e tomada de decisões do Poder Público na

ordenação das cidades.

Da conjugação dos valores que a política urbana visa a alcançar – pleno

desenvolvimento das funções sociais da cidade, garantia do bem-estar dos

habitantes – observa-se a existência daquilo que a doutrina classificou como

“direito difuso à função social da cidade7.

Mas no que consiste a função social da cidade? Para alcançar tal

conceito, imprescindível é recorrer à abordagem dos direitos sociais. A noção

de direitos sociais vem no próprio artigo 6o da Constituição Federal, que ali

insere, dentre outros, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer e a

segurança. Todas essas são funções sociais da cidade. A política urbana será

realizada com esse objetivo:

5 MUKAI, ob. cit., p. 53. Assinala o autor a posição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que chega ainserir o Direito Urbanístico como espécie do Direito Ambiental. 6 FRANCISCO, Caramuru A., Estatuto da Cidade comentado. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2.001, p.24.7ROCHA, Júlio César Sá da. Função ambiental da cidade. Direito ao meio ambiente ecologicamenteequilibrado. São Paulo: Juarez de Oliveira, p. 36.

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“A cidade, como espaço onde a vida moderna se desenrola, tem suas

funções sociais: fornecer às pessoas moradia, trabalho, saúde, educação,

cultura, lazer, transporte, etc. Mas como o espaço da cidade é parcelado,

sendo objeto de apropriação, tanto privada (terrenos e edificações) como

estatal (ruas, praças, equipamentos, etc.) suas funções têm de ser cumpridas

pelas partes, isto é, pelas propriedades urbanas. A política urbana tem,

portanto, a missão de viabilizar o pleno desenvolvimento das funções sociais

do todo (a cidade) e das partes (cada propriedade em particular)”8

E isso se conseguirá pela ordenação, ordenação essa que objetiva o

pleno desenvolvimento das funções sociais, mas sempre dentro de um

equilíbrio, que permitirá, assim, o “bem-estar de seus habitantes”.

Daí a razão por que fica bem claro que a política urbana, ao consagrar o

direito à função social da cidade, também pontifica que exige o direito a

cidades sustentáveis, conforme exsurge do artigo 2o do EC, incisos I, V, VII e

X, tema que retomaremos adiante. A função social da cidade é norma princípio,

que rege a política de desenvolvimento urbano, “através da construção de uma

nova ética urbana, em que os valores ambientais e culturais sejam

preponderantes, garantindo sustentabilidade e desenvolvimento.”9

Tudo isso como decorrência da competência constitucional dos

Municípios de promover o “adequado ordenamento territorial, mediante

planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo

urbano” (artigo 30, VIII, da CF).

3 A realidade da atuação municipal.

Todavia, em vez de promover o adequado ordenamento territorial, o

Município, muitas das vezes, revela-se como principal responsável pela

absoluta confusão reinante no ordenamento territorial, com ocupação que

desrespeita normas urbanístico-ambientais e traz sérias conseqüências,

comprometendo o equilíbrio ambiental e o bem-estar da população.

8 SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da cidade e suas diretrizes gerais. In: Estatuto da cidade(comentários à Lei Federal 10.257/2.001). Coordenadores: Adilson Abreu DALLARI e Sérgio FERRAZ.São Paulo: Malheiros, 2.003, p. 54.9 OSORIO, Letícia Marques. In: Estatuto da Cidade comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de2.001/Organizadora: Liana Portilho Mattos. – Belo Horizonte: Mandamentos, 2.002, p. 72.

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É realidade vivenciada pela prática diuturna dos membros do Ministério

Público que na maior parte dos casos o Município é o principal infrator

ambiental, pelo descaso e omissão na fiscalização do ordenamento territorial.

Cada Promotor de Justiça teria seu trabalho em muito facilitado se o Município

simplesmente cumprisse seu dever de fiscalização, em vez de omitir-se, ou, até

mesmo, o que é ainda mais grave, incentivar o descumprimento da legislação

correlata, ao autorizar e licenciar parcelamentos em desacordo com as normas

aplicáveis.

Tudo seria bem mais simples se o licenciamento dos loteamentos, das

obras, fosse aplicado conforme a legislação federal pelos Municípios, desde o

seu primeiro momento, até a conclusão. Não conviveríamos com a questão das

favelas, edificadas, muitas das vezes, em áreas de preservação permanente, e,

sempre, sem qualquer ordenamento, gerando, ainda, problemas de segurança.

Não conviveríamos com a ocupação das margens dos cursos d’água, seja pela

população carente, seja nos ricos condomínios residenciais, trazendo sérios

impactos ambientais, bastando mencionar as enchentes. Bastava que o

Município exercesse seu poder de polícia.

O quadro ideal está na lição de Hely Lopes Meireles, no que tange ao

licenciamento das obras:

“O licenciamento administrativo das obras é o meio de que o Poder

Público lança mão para impor e controlar a observância das normas técnico-

legais da construção. Desde a elaboração do projeto até a conclusão da obra,

a construção fica sujeita à fiscalização da autoridade competente, que, para o

início da edificação, expede o alvará de construção e, para o início de uso da

obra concluída, expede o alvará de ocupação ou auto de vistoria, vulgarmente

conhecido por ‘habite-se’. Esse policiamento da construção tanto pode alcançar

as obras urbanas como as edificações rurais, visto que umas e outras têm

profundas implicações com o bem-estar do indivíduo e da coletividade; mas,

por incúria das Administrações, até hoje só se tem legislado para as

construções urbanas. A inobservância ou desatendimento das normas técnico-

legais da construção ou da regulamentação profissional sujeita o infrator a

penalidades diversas, que podem variar desde a aplicação de multas até a

interdição e demolição da obra, com suspensão ou até mesmo cassação do

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exercício profissional ou da empresa construtora responsável pela ilegalidade.”10

E se a obra não possuir licença, portanto, clandestina, deve ser

demolida, “mediante ordem sumária da Prefeitura, porque, em tal caso, o

particular está incidindo em manifesto ilícito administrativo com o só ato de

frustrar a apreciação do projeto, que é pressuposto legal de toda construção.

Como a construção é atividade sujeita a licenciamento pelo Poder Público, a

ausência de licenciamento faz presumir um dano potencial à Administração e à

coletividade, consistente na privação do exame do projeto e na possibilidade de

insegurança e inadequação da obra às exigências técnicas e urbanísticas.

O ato ilegal do particular que constrói sem licença rende ensejo a que a

Administração use o poder de polícia que lhe é reconhecido, para embargar,

imediata e sumariamente, o prosseguimento da obra e efetivar a demolição do

que estiver irregular, com seus próprios meios, sem necessidade de um

procedimento formal anterior, porque não há licença ou alvará a ser invalidado.

Basta a constatação da clandestinidade da construção, pelo auto de infração,

para o imediato embargo e ordem de demolição.”11

O raciocínio também se aplica aos loteamentos. Lembremos, com José

Afonso da Silva, quanto à contínua fiscalização pelo Município, nos

parcelamentos, em três momentos bem definidos:

“a) antes da atuação do interessado, que é o mais importante, dito

controle prévio, que se realiza pela aprovação de planos e projetos, pelas

autorizações e pelas licenças; b) durante a atuação do interessado, dito

controle concomitante, que se efetiva pelas inspeções, comunicações e

fiscalização; c) finalmente, depois da atuação do interessado, o que se dá pelo

controle sucessivo ou ‘a posteriori’, mediante auto de vistoria, de conclusão ou

habite-se.”12

Se esse sistema de fiscalização fosse eficiente, quase não haveria todos

os problemas de parcelamento do solo.

Mas o Município, em vez de exercer seu dever de polícia, coibindo

loteamentos e obras irregulares, omite-se (até para não ser impopular, em

raciocínio imediatista e eleitoreiro), e, após consumado o fato, apressa-se em10 Direito de construir. 7a ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 306. 11 Ob. cit., p. 166. 12Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 395.

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“urbanizar”, canhestramente, a área ocupada, incentivando a continuidade da

prática, contribuindo para o caos urbano, e gerando situações de difícil

reversão. As autoridades já sob o argumento de “fato consumado”, permitem

que áreas de preservação permanente e outras de interesse ambiental sejam

completamente descaracterizadas.

É conhecido chavão que é melhor prevenir que remediar, pelo que

“somente uma fiscalização efetiva apta a constatar a irregularidade no seu

início será capaz de redirecionar a forma pela qual se dá hoje o uso e a

ocupação do solo urbano. Pois só a partir daí outros órgãos, como a polícia e o

Ministério Público, poderão auxiliar nessa árdua tarefa, praticando os atos que

lhes competem.”13

Compreende-se então a necessidade de o Ministério Público estar

vigilante e combater esta cultura de omissão, para evitar a formação de áreas

urbanas sem qualquer condição de regularização e graves danos ambientais.

4 A legislação municipal quanto às metragens da área de preservação

permanente. Necessidade de adequação.

Verifica-se com freqüência a previsão, na legislação local, de metragem

inferior à estabelecida no Código Florestal, artigo 2o, parágrafo único, para a

área de preservação permanente urbana.

O uso da propriedade urbana deve ser realizado em prol do bem estar

dos cidadãos, do equilíbrio ambiental (EC, artigo 1o, parágrafo único), o que

traz à lembrança os conceitos de função social da cidade e da propriedade

urbana, direito a cidades sustentáveis e desenvolvimento sustentável.

Na regulação da propriedade, existe área que, por sua própria natureza,

impõe limitações ao exercício do direito de propriedade e cuja preservação

também é realizada com vistas ao bem-estar dos cidadãos, valor fundante do

Estatuto da Cidade. Tal área é nominada como área de preservação

permanente, definida no Código Florestal como “área protegida nos termos dos

arts. 2º e 3º desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função13 SANTOS, Marcus Vinicius Monteiro dos. Loteamentos irregulares e clandestinos. Improbidadeadministrativa. In: Temas de direito urbanístico, 2. Coordenação geral José Carlos de Freitas. São Paulo,Imprensa Oficial do Estado, Ministério Público do Estado de São Paulo, 2.000, p. 252.

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ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade

geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e

assegurar o bem estar das populações humanas”

Explicita o Código Florestal, portanto, fim específico da área de

preservação permanente: “assegurar o bem estar das populações humanas”.

É, portanto, em tudo consentâneo com o Estatuto da Cidade, e detalha

comportamento dos proprietários para a realização do bem estar almejado pelo

Estatuto em seu artigo 1o, parágrafo único.

A área de preservação permanente possui a natureza jurídica de

limitação administrativa, cuja noção está ligada ao conceito de bem estar:

“Limitação administrativa é toda imposição geral, gratuita, unilateral e de

ordem pública condicionadora do exercício de direitos ou de atividades

particulares às exigências do bem-estar social.”14

As áreas de preservação permanente existem não em razão da vontade

do homem, mas de necessidade imposta pela realidade15. O Código Florestal,

em sua exposição de motivos, já ressaltava este aspecto:

“Assim como certas matas seguram pedras que ameaçam rolar, outras

protegem fontes que poderiam secar, outras conservam o calado de um rio que

poderia deixar de ser navegável, etc. São restrições impostas pela própria

natureza ao uso da terra, ditadas pelo bem-estar social. Raciocinando deste

modo os legisladores florestais do mundo inteiro vêm limitando o uso da terra

sem cogitar de qualquer desapropriação para impor essas restrições ao uso.

Fixam-nas em leis, com um vínculo imposto pela natureza e que a lei nada

mais fez do que declará-lo existente.” 16

14 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 26a ed, São Paulo: Malheiros, 2.001, p.568. 15 Referimo-nos aqui apenas à área de preservação permanente por força de lei, prevista no artigo 2o, jáque a área de preservação permanente por ato do Poder Público, prevista no artigo 3o, depende de escolhado Poder referido.

16 Comentando a área de preservação permanente no Código Florestal de 1934, Osny Duarte PEREIRA:“Sua conservação não é apenas por interesse público, mas por interesse direto e imediato do próprio dono.Assim como ninguém escava o terreno dos alicerces de sua casa, porque poderá comprometer a segurançada mesma, do mesmo modo ninguém arranca as árvores das nascentes, das margens dos rios, nas encostasdas montanhas, ao longo das estradas, porque poderá vir a ficar sem água, sujeito a inundações, sem viasde comunicação, pelas barreiras e outros males conhecidamente resultantes de sua insensatez. As árvoresnesses lugares estão para as respectivas terras como o vestuário está para o corpo humano. Proibindo adevastação, o Estado nada mais faz do que auxiliar o próprio particular a bem administrar os seus bensindividuais, abrindo-lhe os olhos contra os danos que poderia inadvertidamente cometer contra simesmo.” (Direito florestal brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, 1950, p. 210.)

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Verifica-se a vinculação situacional, expressão que denomina teoria que

revela haver restrições ao uso da propriedade imanentes à sua especial

situação fática, ônus a incidir sobre o terreno, tal como a proibição de construir

em áreas alagadas. O terreno não pode ser isolado do ambiente em que se

insere17.

As funções da área de preservação permanente são definidas pelo

Código Florestal, no artigo 1o, II: preservar os recursos hídricos, a estabilidade

geológica, a biodiversidade e o fluxo gênico de fauna e flora; proteger o solo e

assegurar o bem estar das populações humanas.

Especificamente nas áreas urbanas, essas funções se projetam nos

seguintes benefícios da cobertura vegetal: 1 contenção de enchentes,

principalmente em áreas de solos propícios ao processo de erosão; 2.

aumento da umidade relativa do ar; 3. ameniza a temperatura em climas

tropicais e equatoriais; 4 dispersa poluentes e absorve ruídos urbanos; 5

funciona como elemento paisagístico na orientação urbana e rural; 6 pode

bloquear o vento indesejável em áreas urbanas; 7 barreiras verdes também

podem direcionar o vento para locais desejados e, 8 ajuda na preservação de

espécies de pássaros.18

Entra ano, sai ano, e as manchetes da imprensa são as mesmas:

enchentes, estado de calamidade, aparecimento de políticos propondo a

canalização de rios, construção de “piscinões”, por vezes até recobrindo os

cursos d’água em jaula (ou tumba?) de concreto. Entrevistas com pessoas

desesperadas, geralmente humildes (também nessa hora são as que mais

sofrem) que perderam tudo.

A verdade é que as cidades vivem uma relação de amor e ódio com

seus rios. Razão maior, muitas vezes, do povoamento de determinado local

(transporte, pesca, e, sobretudo e por óbvio, a existência de água,

possibilitando o abastecimento), os rios, que em um primeiro momento

propiciaram o desenvolvimento das cidades, passam a ser considerados

inimigos destas, geradores de inundações, viveiro de mosquitos, e destino do

17 GAIO, Daniel. A propriedade urbana e o direito de edificar. In: Revista de Direito Ambiental, ano 5, n.20, outubro/dezembro 2000, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 150.18 PINHO, Paulo Maurício. Aspectos ambientais da implantação de ‘vias marginais’ em áreas urbanas defundos de vale. São Carlos, 1999, 133 p. Dissertação (Mestrado em Engenharia Civil). UniversidadeFederal de São Carlos, apud MUSETTI, Rodrigo Andreotti. Da proteção jurídico-ambiental dos recursoshídricos brasileiros. Leme: LED, 2.001, p. 163.

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esgoto (coletado, nunca tratado). As casas são construídas de costas para o

rio, para que não se veja o indesejável.

E o que se constata em todas as cidades é o cenário desanimador:

edificações às margens dos rios; rios latrinas, destino do esgoto doméstico e

industrial; nas margens, nenhuma vegetação. E o que dizer das nascentes que

lhes dão vida, muitas vezes aterradas, volta e meia insistindo e agonizando ao

brotar em garagem de prédio residencial ou mesmo em shopping? Ou das

mortandades de peixes, pela falta de oxigênio, gerada pelo esgoto, ou

vazamento de óleo (postos de gasolina, pátios de ferrovias, dentre outros).

O desrespeito à área de preservação permanente no meio urbano afeta

o equilíbrio ambiental, por conseguinte, não haverá o almejado bem estar dos

cidadãos. Lembremos que “à medida que um núcleo urbano cresce e se

densifica, cresce o uso dos recursos naturais disponíveis, eliminam-se

coberturas vegetais para a abertura de novos loteamentos”; e, muito embora

seja “a natureza composta de elementos que se constituem em poderosos

recursos para a construção de um habitat urbano saudável e benéfico a todas

as formas de vida”, “se estes forem ignorados e desrespeitados transformam-

se em sérios problemas ou até em catástrofes, como aquelas que há séculos

têm castigado as cidades, como é o caso dos deslizamentos e das enchentes

ou inundações.”19

Dando a palavra ao Presidente da Associação Brasileira de Recursos

Hídricos, e Professor da UFRGS, Carlos E. M. Tucci20, relata este que “com o

desenvolvimento urbano, ocorre a impermeabilização do solo através de

telhados, ruas, calçadas e pátios, entre outros. Dessa forma, a parcela da água

que infiltrava passa a escoar pelos condutos, aumentando o escoamento

superficial. O volume que escoava lentamente pela superfície do solo e ficava

retido pelas plantas, com a urbanização, passa a escoar no canal”, sendo que

os principais efeitos da urbanização “são o aumento da vazão máxima, a

antecipação do pico e o aumento do volume do escoamento superficial.”

A função da mata ciliar de prevenir enchentes é reconhecida

mundialmente, vez que “a remoção da cobertura vegetal reduz o intervalo de19 PAULINO, Ruth Cristina Montanheiro. Análise das alterações no microclima próximo às margens decursos de água, decorrentes da ocupação urbana. São Carlos, 1997, 30 p. Exame de qualificação(Doutorado – Ciências da Engenharia Ambiental). Universidade de São Paulo, apud MUSETTI, RodrigoAndreotti, ob. cit., p. 158/159.20 In: MUSETTI, ob. cit., p. 196/197.

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tempo observado entre a queda da chuva e os efeitos nos cursos de água,

diminui a capacidade de retenção de água nas bacias hidrográficas e aumenta

o pico de cheias. Além disso, a cobertura vegetal limita a possibilidade de

erosão do solo, minimizando a poluição dos cursos de água por sedimentos”.

(Princípio 06 da Carta Européia da Água de 1968)

É intuitivo, da leitura do artigo 2o do Código Florestal, que as alíneas a),

b) e c) visam à proteção das águas, enquanto as demais alíneas do artigo em

comento à proteção do solo:

“Art. 2º Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta

Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:

a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água desde o seu nível

mais alto em faixa marginal cuja largura mínima seja:

1 - de 30 m (trinta metros) para os cursos d'água de menos de 10 m (dez

metros) de largura;

2 - de 50 m (cinqüenta metros) para os cursos d'água que tenham de 10

(dez) a 50 m (cinqüenta metros) de largura;

3 - de 100 m (cem metros) para os cursos d'água que tenham de 50

(cinqüenta) a 200 m (duzentos metros) de largura;

4 - de 200 m (duzentos metros) para os cursos d'água que tenham de

200 (duzentos) a 600 m (seiscentos metros) de largura;

5 - de 500 m (quinhentos metros) para os cursos d'água que tenham

largura superior a 600 m (seiscentos metros).

b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d'água naturais ou

artificiais;

c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados ‘olhos

d'água’, qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50

m (cinqüenta metros) de largura;

d) no topo de morros, montes, montanhas e serras;

e) nas encostas ou partes destas, com declividade superior a 45 ,

equivalente a 100% na linha de maior declive;

f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de

mangues;

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g) nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de ruptura

do relevo, em faixa nunca inferior a 100 m (cem metros) em projeções

horizontais;

h) em altitude superior a 1.800 m (mil e oitocentos metros), qualquer

que seja a vegetação.”

Quando as alíneas a), b) e c) estão cuidando de mata ciliar (e aqui é

importante a origem etimológica: ciliar porque de cílio, vez que, tal como estes

protegem os olhos, a mata protege a água), estão diretamente jungidas ao

comando do artigo 2o, incisos I e III, da Lei 9.433/97, que cuida da Política

Nacional de Recursos Hídricos.21

Sim, também o inciso I, que cuida da quantidade e qualidade da água

está relacionado à área de preservação permanente, questão de importância

vital (como simples lembrete, recordemos o recente período de racionamento,

de “apagão”).

Em relação à quantidade “tem sido demonstrado que a recuperação da

vegetação ciliar contribui para com o aumento da capacidade de

armazenamento da água na microbacia ao longo da zona ripária, o que

contribui para o aumento da vazão na estação seca do ano”, sendo que “a

destruição da mata ciliar pode, a médio e longo prazos, pela degradação da

zona ripária, diminuir a capacidade de armazenamento da microbacia, e

consequentemente a vazão na estação seca.”22 Quanto à qualidade, tem-se

que “a manutenção da mata ciliar garante uma maior quantidade de nutrientes,

permite o controle do aporte destes e de produtos químicos, bem como

possibilita o aumento da produção de água na bacia.”23

Já na prevenção de enchentes, remetemos a todo o exposto acima.

De tudo se conclui a importância capital da manutenção da área de

preservação permanente em zona urbana, diante do crescimento desordenado.

21 “Art. 2º São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos: I - assegurar à atual e às futurasgerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivosusos; ... III - a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentesdo uso inadequado dos recursos naturais.”22 LIMA, Walter de Paula; ZAKIA, Maria José Brito. Hidrologia de matas ciliares. In: Matas ciliares.Conservação e recuperação. Editores Ricardo Ribeiro Rodrigues, Hermógenes Freitas Leitão Filho. 2a

ed., São Paulo: Universidade de São Paulo, Fapesp, 2.001, p. 37.23 SOUZA, José Fernando Vidal de. Mata ciliar. In: Manual prático da Promotoria de Justiça do MeioAmbiente Organizado por Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin – 2ª ed., São Paulo: IMESP,1999, p. 174.

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4.1 O artigo 2o, parágrafo único, do Código Florestal.

Alcança-se, agora, o busílis desse breve panorama do Código Florestal.

Aplicam-se as metragens do artigo 2o do Código Florestal, diante do que

determina o parágrafo único deste, à área urbana, ou a legislação municipal,

ainda que inferior?

O primeiro passo é reproduzir o dispositivo do Código Florestal, em seu

parágrafo único:

“Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim entendidas as

compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal e nas

regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido,

observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo,

respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo.”

A simples leitura do dispositivo, na locução “respeitados os princípios e

limites a que se refere este artigo” demonstra que o legislador municipal não

pode alterar os limites estabelecidos no artigo 2º do Código Florestal, por

determinação de seu parágrafo único acrescido pela Lei nº 7.803/89, salvo se

for para ampliar o limite de proteção.

Pela doutrina, defendem os mais renomados especialistas em Direito

Ambiental a aplicabilidade dos limites do Código Florestal às áreas urbanas24.24A propósito, José Afonso da Silva ressalta que “é importante ter em mente a parte final do dispositivo,que manda observar os princípios e limites previstos no artigo 2º do Código que define as florestas edemais formas de vegetação de preservação permanente, porque isso significa que o regime municipaltem que respeitar o regime do Código Florestal” (Direito Ambiental Constitucional. 4ª ed. São Paulo:Malheiros Editores, p. 191). No mesmo sentido, Paulo de Bessa Antunes afirma que o “Código Florestaldeve ser interpretado como a impossibilidade legal de os municípios tornarem mais flexíveis osparâmetros estabelecidos na lei federal.”(Direito Ambiental. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.386). Paulo Affonso Leme Machado enfatiza que “ao introduzir-se esse parágrafo único no art. 2º doCódigo Florestal, quis o legislador deixar claro que os planos e leis de uso do solo do Município têm queestar em consonância com as normas do mencionado artigo 2º. Isto quer dizer, por exemplo, que umMunicípio, ao construir uma avenida nas margens de um curso d’água, não pode deixar de respeitar afaixa de implantação da vegetação de ‘preservação permanente’, de acordo com a largura do cursod’água. A autonomia municipal ambiental entrosa-se, pois, com as normas federais e estaduais protetorasdo meio ambiente.” (Direito Ambiental Brasileiro. 10ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002,p.372-373). Ainda pela aplicabilidade, confiram-se: MUSETTI, ob. cit., p. 138/139; AKAOUI, FernandoReverendo Vidal. Apontamentos acerca da aplicação do Código Florestal em áreas urbanas e seureflexo no parcelamento do solo. In: Temas de direito urbanístico, 2. Coordenação geral José Carlos deFreitas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Ministério Público do Estado de São Paulo, 2.000, p. 293;FINK, Daniel Roberto e PEREIRA, Márcio Silva. Vegetação de preservação permanente e meioambiente urbano. In: Revista de Direito Ambiental, ano 1, n. 2, abril/junho 1996, São Paulo: Revista dosTribunais, p. 89; CAVEDON, Fernanda de Salles et al. Função ambiental da propriedade urbana e áreasde preservação permanente: a proteção das águas no ambiente urbano in Congresso Internacional deDireito Ambiental (7:2003: São Paulo) Direito, água e vida/organizado por Antônio Herman Benjamin –

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É importante, nesse ponto, fazer registro histórico da legislação, até para

que se saiba quando se está diante de edificação lícita ou ilícita.

Quando instituído, o Código Florestal – Lei 4.771/65 impunha a área de

preservação permanente mínima de cinco metros. Após, a Lei 6.766/79

estabeleceu em seu artigo 4o, III, que “ao longo das águas correntes e

dormentes e das faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será

obrigatória a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de

cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica”.

Ora, a maior exigência da legislação específica surgiu em 1986, quando

a metragem mínima consagrada no artigo 2o – trinta metros – passou a ser

exigida pelo Código Florestal, vez que a Lei 7.511, de 07 de julho de 1986,

modificou a redação de tal artigo do Código Florestal, sendo que a Lei

7.803/89, ao modificar a redação mais uma vez do artigo 2o, reiterou as

dimensões anteriormente estabelecidas.

Não há qualquer conflito de normas, pois a lei posterior – o Código

Florestal em sua nova redação – representa a legislação específica, e,

sobretudo, posterior, que afasta a incidência da Lei 6.766/79 na metragem

estabelecida.

O parágrafo único do artigo 2o do Código Florestal encerra, antes de

tudo, uma advertência, pois, “além de serem respeitadas as leis de interesse

local – urbanísticas – deve-se atender a faixa marginal mínima estabelecida no

Código Florestal, aplicando-se este, caso aquelas leis locais estabeleçam

restrições mais brandas.”25

Além disso, é sabido que a lei não contém palavras inúteis. Logo, não

seria necessário que o parágrafo único utilizasse a locução “respeitados os

princípios e limites a que se refere este artigo”, bastando afirmar que as

normas municipais regulariam os limites.

E a interpretação, como visto acima, não pode conduzir ao absurdo:

como permitir que nas áreas urbanas, exatamente onde mais necessária a

proteção, os limites sejam reduzidos? Além disso, como tratar a zona urbana

com menos rigor que a rural ?

São Paulo: Imprensa Oficial, 2.003, v. 2, p. 183, dentre outros. 25 FINK, ob. cit., p. 85.

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Rememorem-se, nesse ponto, todas as funções da mata ciliar. É

evidente que os limites menores geram ocupação desordenada,

desenvolvimento insustentável, desequilíbrio ambiental, enfim, afronta aos

princípios do Estatuto da Cidade.

Assinale-se, ainda, que, no âmbito da competência concorrente em

matéria ambiental, não foi contemplado o Município, conforme artigo 24, VI, da

Lei Maior, o que, por certo, não impede que legislem sobre o interesse local –

artigo 30, II.

Mas o interesse, no caso, não é meramente local. O artigo 1o do Código

Florestal já ensina que as florestas e as demais formas de vegetação são bens

de interesse comum a todos os habitantes do país. Não há a competência que

permita infringir as regras do Código Florestal.

Além disso, em competência concorrente, ensina o Ministro José

Augusto Delgado do Superior Tribunal de Justiça, na repartição de

competências em legislação ambiental:

“No que se refere ao problema da competência concorrente entendo que

a Constituição Federal excluiu, de modo proposital, o Município. Não obstante

assim se posicionar, permitiu, contudo, que o Município suplementasse a

legislação federal e a estadual no que coubesse (art. 30, II, CF), com o que

colocou ao alcance do Município, de modo não técnico, a competência

concorrente. Dentro desse quadro, o Município pode legislar sobre meio

ambiente (VI, art. 23), suplementando a legislação federal e estadual em

âmbito estritamente local. Deve observar, apenas, que no âmbito da legislação

concorrente (ou vertical) há hierarquia de normas: a lei federal tem prevalência

sobre a estadual e municipal, e a estadual sobre a municipal”.26

Muito embora entenda, pessoalmente, que a questão não seja de

hierarquia de ordenamentos – federal supera estadual, e ambos superam o

municipal – pois o que se deve definir é a entidade competente, tem-se, de

qualquer forma, que se a União edita norma geral, o que é sua competência, o

Município não pode contrariá-la27.

26DELGADO, José Augusto. Direito Ambiental e Competência Municipal in Revista Forense, vol.317, p. 158. No mesmo sentido MUKAI, Toshio. Direito ambiental sistematizado. 4a ed., Rio deJaneiro, Forense Universitária, 2.002, p. 16/17.27 Conforme ensina, com profundidade, FARIAS, Paulo José Leite. Competência federativa e proteçãoambiental. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 427/430.

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Em suma, qualquer raciocínio que se adote atingirá a mesma conclusão:

a legislação municipal não poderá ser mais branda que a legislação federal.

Poderá, sim, ser mais severa, tendo especial fim de proteção.

Sintetiza a questão da competência com sabedoria Fiorillo:

“Dessa forma, podemos afirmar que à União caberá a fixação de pisos

mínimos de proteção ao meio ambiente, enquanto aos Estados e Municípios,

atendendo aos seus interesses regionais e locais, a de um ‘teto’ de proteção.

Com isso, oportuno frisar que os Estados e Municípios jamais poderão legislar,

de modo a oferecer menos proteção ao meio ambiente do que a União,

porquanto, como já ressaltado, a esta cumpre, tão-só, fixar regras gerais.”28

O interesse na preservação da mata ciliar não é meramente local, e isso

por definição legal – artigo 1o do Código Florestal. A metragem não pode ser

assim diminuída pelos Municípios, por falecer-lhes competência, vez que a

norma geral já editada pela União no Código Florestal não pode ser

contrariada.

E, já sob os influxos do Estatuto da Cidade, a única interpretação

consentânea com seus mandamentos, que envolvem o equilíbrio ambiental, o

desenvolvimento sustentável, a preservação do meio ambiente natural e

artificial, é a que aplica as metragens de área de preservação permanente do

Código Florestal às áreas urbanas.

Por todo o exposto, grafou o comando do artigo 170, V, parágrafo único,

da Constituição Estadual de Minas Gerais:

“Art. 170. A autonomia do Município se configura no exercício de

competência privativa, especialmente:

...

V - promoção do ordenamento territorial, mediante planejamento e

controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, ficando

dispensada a exigência de alvará ou de qualquer outro tipo de licenciamento

para o funcionamento de templo religioso e proibida limitação de caráter

geográfico à sua instalação;

...

28 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 4a ed, São Paulo: Saraiva,2.003, p. 62.

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Parágrafo único. No exercício da competência de que trata este artigo, o

Município observará a norma geral respectiva, federal ou estadual.”

Logo, qualquer norma municipal que desrespeite a norma geral – no

caso, o artigo 2o do Código Florestal – padece de inconstitucionalidade, pelo

que a figura da recomendação é importante para que modificada a legislação

local, respeitando a norma da União.

A jurisprudência é firme nesse sentido:

“A Constituição Federal apenas delegou ao Município competência

suplementar para legislar sobre direito urbanístico, florestas, defesa do solo e

proteção ao meio ambiente. Não pode ele, portanto, na elaboração de planos e

leis do uso do solo, deixar de atender as normas federais e estaduais.” (TJSP,

Ag In 111.177-5/0, 3a Câmara, Rel. Des. Márcio Bonilha, j. 21/09/1999)

“Proteção ambiental. Cautelar. Interdição para edificação de área non

edificandi. Prevalência da legislação federal com relação às posturas

municipais em tema de tutela ambiental.”(TJSC, Ag In 5.682, Rel. Des.

Anselmo Cerello, j. 20/12/1994)

Registre-se, ainda, a conclusão de número 12 do da Carta de Princípios

do II Congresso Nacional da Magistratura e do Ministério Público para o Meio

Ambiente, também conhecida como “2a Carta de Araxá”:

“Aplicam-se as metragens das áreas de preservação permanente

previstas no artigo 2o do Código Florestal às áreas urbanas, consoante

parágrafo único do dispositivo em comento, estabelecendo a legislação federal

metragens mínimas, que devem ser respeitadas pela legislação municipal.”

5 A atuação ministerial, preventiva e repressiva.

Não é objetivo desse trabalho descer a pormenores da atuação, mas

instrumentos básicos devem ser lembrados. Nesse campo, largo espectro de

atuação se abre ao Ministério Público, devendo ser pinçados alguns exemplos,

sendo que selecionamos os mais ligados ao respeito da legislação federal

quanto às áreas de preservação permanente.

5.1 As recomendações para adequação.

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Por todo o exposto quanto à metragem das áreas de preservação

permanente em áreas urbanas, cabe ao Ministério Público, como primeiro

passo, e preventivamente, a expedição de recomendações, com fundamento

no artigo 26, inciso VII, da Lei 8.625/93, Lei Orgânica Nacional do Ministério

Público, ao Legislativo e ao chefe do Executivo local, para que não aprove, ou

vete, respectivamente, projeto de lei tendente a estabelecer metragem de área

de preservação permanente inferior à prevista no Código Florestal. Cuida-se de

instrumento eficaz, sendo medida utilizada com sucesso na Comarca de

Formiga.

Já existindo Lei municipal contrária às metragens mínimas do Código

Florestal, é salutar o envio de recomendação para que seja alterada a

legislação municipal existente, para se adequar à legislação federal, bem como

para que não sejam aprovadas edificações ou loteamentos em desacordo com

as previsões do Código Florestal.

5.2 Ação civil pública para coibir construções em desacordo com a

metragem do Código Florestal.

Ainda na hipótese de prévia existência de lei municipal contrária às

metragens mínimas do Código Florestal, e não sendo acatada a recomendação

referida, imperiosa a propositura de ação civil pública, com pedido de liminar,

sendo réu o Município, para proibir a expedição de autorizações, licenças,

alvarás para edificar ou parcelar o solo em desacordo com as determinações

do artigo 2o do Código Florestal, medida essa que, na Comarca de Divinópolis,

culminou por estimular o Município a editar lei promovendo a adequação da

legislação local à federal.

A respeito, confira-se:

"Agravo de instrumento - Ação civil pública - Dano ambiental -

Construções ao longo dos rios em áreas urbanas - Limites traçados no Código

Florestal (Lei nº 7.771 de 15.09.65) - Inobservância por normas e lei municipais

- Suspensão de alvarás - Pressupostos à tutela cautelar satisfeitos"(Rel. Des.

Alcides Aguiar, DJE nº 8.289, de 09/07/91, pág. 16).Agravo de Instrumento nº

5.974, 4ª Câmara Civil do TJSC, j. 20.06.91, un.).

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5.3 Ações de embargo e demolição da obra.

E, caso a caso, deve-se buscar o embargo e demolição das obras em

desacordo com a legislação federal.

A primeira possibilidade é a de “obra clandestina (entendendo-se por tal

a que for feita sem prévia aprovação do projeto ou sem alvará de licença)” que

“deve ser imediata e sumariamente embargada pela Administração que pode,

na esfera de seu Poder de Polícia, efetivar sua demolição”, sendo que “a

demolição de obra clandestina levantada em área de preservação permanente

não acarreta direito a qualquer reparação ou indenização, nem fere o direito à

igualdade em face de outras eventuais clandestinidades, pois todos são iguais

perante a lei para cumpri-la e por ela serem tutelados, jamais para descumpri-

la” (Apelação Cível 98.000924-3, 3a Câmara Cível, TJSC, j. 27/10/1998, rel.

Des. Nilton Machado)

E, pelo STF:

“Basta a constatação da clandestinidade da construção, pelo auto de

infração, para o imediato embargo e ordem de demolição.”(STF, RF, 124/1438)

Lembremos, ainda, quanto aos parcelamentos irregulares, que o

Município deve convocar o licenciamento, em seu poder de polícia, podendo

ser obrigado judicialmente:

“1 O Município, em se tratando de ação civil pública para obrigar o

proprietário a regularizar parcelamento do solo, em face do modo clandestino

como o mesmo ocorreu, sem ter sido repelido pela fiscalização municipal, é

parte legítima para figurar no pólo passivo da demanda.

2 O Município tem o poder-dever de agir para que o loteamento urbano

irregular passe a atender o regulamento específico para a sua constituição.

3 O exercício dessa atividade é vinculado.”(REsp 194732-SP, Rel. o Min.

José Delgado)

Noutro pólo, deve-se recordar que, ainda que a edificação conte com

licença do Município, a licença não prevalece, pois expedida em contrariedade

com a norma federal:

“A licença irregular, da qual, pressuposta a nota de contrariedade às

normas reguladoras de sua expedição, e como tais, condicionantes de sua

validade jurídica, não advém direito subjetivo, garantia formal, nem efeito

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constitutivo nenhum, pela vulgar razão de que, em princípio, de ato contrarius

não exsurge nenhum direito.”(TJSP, MS 105.307-1, 20/09/1988, relator o Des.

Cezar Peluso)

Como é sabido, “o princípio da legalidade determina que a licença só

poderá ser concedida quando o requerente preencher todas as condições

impostas pelo texto legal para tanto. A Administração não poderá conceder

qualquer licença à revelia da lei e não poderá eximir-se de sua obrigação legal

ou de sua competência fiscalizadora.”29

O simples fato de contar com alvará não garante ao proprietário o direito

de construir em área protegida sem obediência às normas legais:

“Meio ambiente. Pretensão a construção em área de proteção ambiental

sem as necessárias autorizações legais, mas sim, tão-somente mediante

alvará expedido pela Prefeitura. Impossibilidade.”(AgIn 71.441-5 – Ubatuba, 4a

Câm. de Direito Público, 25/06/1998, rel. Jacobina Rabello, TJSP)

Logo, a obra deve ser embargada, antes de seu início, e demolida, se

iniciada, propondo-se ação em que o proprietário e o Município, que

indevidamente autorizou, serão réus, cabendo ao proprietário cogitar de sua

indenização junto ao ente político. Mais uma vez, pela jurisprudência:

“É parte legítima para figurar no pólo passivo da ação civil pública,

solidariamente, o responsável direto pela violação às normas de preservação

do meio ambiente, bem assim a pessoa jurídica que aprova o projeto danoso.

Na realização de obras e loteamentos, é o município responsável

solidário pelos danos ambientais que possam advir do empreendimento,

juntamente com o dono do imóvel.”(REsp 295.797-SP, 2a Turma, STJ, j.

18/09/2.001, rel. Min. Eliana Calmon, DJU 12/11/2.001)

5.4 Ação de improbidade administrativa.

O fato de a edificação contar com ato autorizativo municipal em franco

desacordo com a legislação federal remete à necessidade de imposição de

sanção por improbidade administrativa.

Imaginem-se dois casos: 29 WERNER, Patrícia Ulson Pizarro. Licenças urbanísticas. In: Temas de direito ambiental e urbanístico.Advocacia Pública & Sociedade. Ano II, n. 3, 1998, Publicação oficial do Instituto Brasileiro deAdvocacia Pública, Guilherme Purvin de Figueiredo (organizador), São Paulo, Max Limonad, p. 321.

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a) o Município autoriza, indiscriminadamente, construções em área de

preservação permanente, inexistindo legislação municipal a respeito da

metragem.

Nesse caso, está patente a improbidade, pois violou frontalmente o

dever de legalidade, conforme artigo 11 da Lei 8.429/92. Exemplo claro desta

improbidade mais uma vez se verificou na Comarca de Formiga, em que, de

um lado, a secretaria de obras autorizava a construção, emitindo alvará,

enquanto a secretaria de meio ambiente, evidenciava, em laudo, o confronto

com a legislação ambiental. Há, no caso, ilegalidade explícita, que evidencia

desvio de poder, por frontal ofensa ao texto da lei, na dicção do STJ (Resp

21.156-0, SP, rel. Min. Milton Luiz Pereira, j. 19/09/1994), consubstanciando o

exemplo do artigo 11, I, da Lei 8.429/92:

“Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra

os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os

deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, e

notadamente:

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso

daquele previsto na regra de competência;”

b) Detectada a construção ilegal, nenhuma providência é adotada, não

se exercendo o poder de polícia.

Prosseguindo no exemplo de Formiga, nova improbidade administrativa

surgia, pois, detectando a ilegalidade, nenhuma providência era adotada pelo

agente público, havendo, agora, improbidade do inciso II do artigo 11:

“II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;”

Isto porque não está sendo exercido o poder de polícia pelo agente

público. Ao conhecer a ilegalidade, nenhuma providência adotou (embargo da

obra; demolição), em omissão injustificada:

“A omissão acarreta também responsabilidade administrativa. Cabem,

aqui, as seguintes situações: o silêncio, quando a obrigação é de pronúncia, a

omissão de fiscalizar, dentro de sua competência-dever, a omissão de executar

as medidas administrativas de coercibilidade conferidas pelo ordenamento

jurídico.”30

30 FIGUEIREDO, Lucia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Revista dos Tribunais,1980, p. 105.

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5.4.1 Os loteamentos clandestinos e irregulares e a improbidade.

Igual raciocínio se aplica aos loteamentos clandestinos, frisando que

tanto é clandestino o desconhecido pelo Poder Público quanto aquele que teve

seu pedido indeferido, por não atender às previsões legislativas, mas, ainda

assim, é implantado.

Representam estes força motriz do caos urbano, que José Afonso da

Silva critica com inteira procedência, distinguindo-os, ainda, dos loteamentos

irregulares, que também contribuem para a desordenada ocupação:

“O loteamento clandestino constitui uma das pragas mais daninhas do

urbanismo brasileiro. Loteadores parcelam terrenos, de que, não raro, não têm

título de domínio, por isso não conseguem aprovação do plano, quando se

dignam a apresentá-lo à prefeitura, pois, o comum é que sequer se preocupem

com essa providência, que é onerosa, inclusive porque demanda a

transferência de áreas dos logradouros públicos e outras ao domínio público.

Feito o loteamento, nessas condições, põem-se os lotes à venda, geralmente

para pessoas de renda modesta, que, de uma hora para a outra, perdem seu

terreno e a casa que nele ergueram, também clandestinamente, porque não

tinham documentos que lhes permitissem obter a competente licença para

edificar no lote.

Praticam-se dois crimes de uma vez: um, aos adquirentes de lotes, e

outro, aos princípios urbanísticos, porque tais loteamentos não recebem o

mínimo de urbanificação que convenha ao traçado geral da cidade. Tais

loteadores não são urbanificadores, mas especuladores inescrupulosos, que

carecem de corretivos drásticos. Eles criam áreas habitadas, praticamente sem

serem habitáveis, por falta de condicionamento urbanístico, as quais se

transformam num quisto urbano de difícil solução, dada a questão social que

elas geralmente envolvem.

Os loteamentos irregulares constituem outro mal do sistema de

parcelamento do solo, especialmente nas grandes cidades. Os loteadores,

nesse caso, providenciam junto da Prefeitura a aprovação do seu loteamento e,

depois de conseguí-lo, abandonam o caminho da legalidade e enveredam pela

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ilegalidade, quer executando o loteamento tal como foi aprovado, mas sem a

inscrição no registro de imóveis, que desrespeitando o plano aprovado e

mesmo inscrito, modificando-o à sua conveniência, provocando dificuldades

aos compradores de lotes, sob vários aspectos, inclusive quanto à obtenção de

licença para edificá-los.”31

Ora, se o loteamento clandestino ou irregular não é reprimido pela

Administração, a conivência se patenteia, como esclarece Marcus Vinicius

Monteiro dos Santos32:

“Para o controle urbanístico, o Município deve exercer concretamente

seu poder de polícia, praticando atos preventivos e repressivos diante do

conhecimento da existência de loteamentos clandestinos e irregulares em seu

território.

A omissão injustificada do agente público responsável na prática de atos

de polícia expressamente previstos em lei, implicará em improbidade

administrativa nos termos do que dispõe o artigo 11, II, da Lei n. 8.429/92.

A prova do dolo poderá ser aferida diante do injustificado desrespeito à

lei, aos princípios que regem a Administração Pública, bem como em face de

não ter o agente público tomado a melhor medida dentre as comportadas.”

5.5 Omissão penalmente relevante – crime.

Ainda quanto aos loteamentos clandestinos, importante registrar que a

atuação do Ministério Público junto ao agente público não se limita à busca das

sanções por improbidade administrativa.

Como bem salienta William Terra de Oliveira33, aplica-se ao caso o artigo

13, parágrafo segundo, do Código Penal, vez que, eclodindo o loteamento

clandestino, é dever dos agentes públicos exercer o poder de polícia, e, caso

deixem de tomar as medidas por lei exigíveis, evitando os danos ambientais, a

sua omissão é penalmente relevante, vez que existe a possibilidade concreta

31 Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1995. 32 Ob. cit., p. 252/253. 33 Responsabilidade dos agentes da administração em delitos urbanísticos e ambientais. In: Temas dedireito urbanístico, 2. Coordenação geral José Carlos de Freitas. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado,Ministério Público do Estado de São Paulo, 2.000, p. 299/310, em excelente artigo, demonstrando aaplicação do instituto penal.

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de realizar a ação, e o agente queda inerte, permitindo o oferecimento de

denúncia pelos crimes dos artigos 50 e seguintes da Lei 6.776/79.

O raciocínio pode ser transposto para as autorizações em descompasso

com a legislação federal.

5.6 Outras medidas.

Uma gama de outras medidas se revela ao membro do Ministério

Público, que, pelos limites deste trabalho, serão apenas aqui mencionadas:

instauração de inquérito civil e propositura de ação civil pública em relação aos

parcelamentos clandestinos e irregulares, visando à regularização, e, quando

impossível, seu desfazimento; indenização dos danos causados; oferecimento

de ações penais, enfim, todo um instrumental que não pode ser olvidado pelo

Promotor de Justiça, caso contrário também ele estará permitindo a

intensificação desse quadro de degradação ambiental.

6 Experiências.

Algumas experiências do Ministério Público mineiro podem ser

enumeradas, contra a ocupação desenfreada.

Em âmbito estadual, há que se registrar a salutar providência do

Ministério Público do Estado de Minas Gerais, que celebrou compromissos de

ajustamento de conduta tanto com a Companhia Energética de Minas Gerais -

CEMIG, bem como com a Companhia de Saneamento de Minas Gerais –

COPASA, a fim de que não realizem ligações de energia ou de abastecimento

de água em edificações que não atendam à legislação ambiental, importante

mecanismo no combate às construções realizadas em área de preservação

permanente urbanas, desestimulando a prática ilegal.

Digna de nota a operação SOS São Francisco, em que atuando

conjuntamente o Ministério Público, a Polícia Militar e o IBAMA, desceram o rio

da integração nacional no trecho situado na Bacia do Alto São Francisco em

Minas Gerais, catalogando todas as intervenções humanas às suas margens,

mediante elaboração de boletins de ocorrência e laudos de vistoria, originando

a instauração de aproximadamente quinhentos inquéritos civis, sendo

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ajustadas centenas de compromissos de ajustamento de conduta distribuídos

nas mais de vinte Comarcas que integram a Coordenadoria das Promotorias de

Defesa do Meio Ambiente da Bacia do Alto São Francisco, em atuação

integrada entre o Promotor da Comarca e o Coordenador, prevendo nestes,

seja a demolição de ranchos, seja a construção de fossas sépticas, seja a

apresentação de projeto de recomposição de flora em área ainda maior que a

atingida.

Por outro lado, agora já sob o aspecto de estímulo à atuação

comunitária, há que se mencionar projeto realizado em rio tributário da Bacia.

No município sede da coordenadoria, Divinópolis, os resultados da

primeira fase de implantação do projeto de recuperação da mata ciliar do Rio

Itapecerica – Nova Margem já foram sentidos.

A idéia nasceu da importância geográfica e ambiental para Divinópolis

do Vale do Rio Itapecerica, que se constitui em área indicada para implantação

de extensa “floresta urbana”, a partir da demarcação e recuperação de sua

mata ciliar, de fundamental importância à qualidade ambiental urbana.

O Ministério Público celebrou então compromisso de ajustamento de

conduta com a empresa siderúrgica da região em que, além de recuperar dano

ambiental, custearia estudo para a recuperação da mata ciliar.

O estudo foi desenvolvido por equipe técnica da FUNEDI-UEMG, com

apoio logístico da Polícia Militar do Meio Ambiente no trabalho de campo,

através de sobrevôo de helicóptero e navegação pelo rio, registrados em filme

e fotografias.

Todos aqueles que trabalham, direta, ou indiretamente com a questão

ambiental34 no Município, foram convocados pelo Ministério Público para

debater o projeto. A versão final foi apresentada ao grupo pela equipe da

FUNEDI, sendo elencados os seguintes objetivos:

a) demarcação e recuperação da mata ciliar em trecho de

aproximadamente vinte quilômetros com plantio e manutenção de oitenta e

quatro mil mudas, abrangendo todo o perímetro urbano de Divinópolis;

b) educação ambiental junto às escolas e comunidade ribeirinha.

34 Município de Divinópolis (Prefeito, Procurador Municipal, Fundação Municipal do Meio Ambiente,Secretário de Planejamento, Secretário de Obras, Diretor do Cadastro Municipal), Associação Regionalde Proteção Ambiental – ARPA, “Agenda 21”, FUNEDI, Câmara Municipal, Instituto Estadual deFlorestas, SOS Itapecerica, Grupo AR)

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O grupo de sustentação passou a reunir-se mensalmente para viabilizar

a implantação do projeto. A Administração Municipal comprometeu-se a doar a

totalidade das mudas para iniciar o projeto.

Somou-se a tal esforço a adesão da COPASA, empresa de serviço

público de água de Minas Gerais, que se engajou na realização do projeto e

destinou quantia para a divulgação e educação ambiental do projeto. A

empresa de transporte coletivo local, também aderiu ao projeto,

disponibilizando o transporte gratuito nas atividades de educação ambiental. A

CEMIG, empresa de energia elétrica, por seu turno, ofereceu cinco mil mudas.

A Coordenadoria das Promotorias de Defesa do Meio Ambiente da Bacia

do Alto São Francisco celebrou novo compromisso de ajustamento de conduta

por infração ambiental, agora com a Ferrovia Centro-Atlântica S/A, em que

esta, dentre outras medidas, destinou a quantia de R$ 100.000,00 (cem mil

reais) para a execução do projeto. Posteriormente, a própria empresa

comprometeu-se a doar vinte mil mudas.

Tais recursos foram depositados em favor da ARPA II – Associação

Regional de Proteção Ambiental, em conta aberta especificamente para a

execução do projeto. A entidade objetiva, entre outros fins, patrocinar projetos

de recuperação e educação ambiental.

Como resultados da primeira fase de implantação do projeto, que serão

apresentados nesta reunião, temos que:

a) a Polícia Militar do Meio Ambiente e o Município de Divinópolis, por

sua Fundação Municipal de Meio Ambiente, realizaram vistoria de todas as

propriedades compreendidas na primeira etapa do projeto;

b) De posse do laudo de vistoria e respectivo boletim de ocorrência, o

Ministério Público, em atuação integrada da Coordenadoria das Promotorias de

Defesa do Meio Ambiente da Bacia do Alto São Francisco e do Promotores e

Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Divinópolis, visando à consecução dos

objetivos do projeto, notificou todos os proprietários de imóveis situados na

primeira área de trabalhos, a fim de celebrar acordo para que cercassem a

área de preservação permanente de suas propriedades, enquanto a equipe

executora do projeto promoveria, gratuitamente, o plantio das mudas.

Traduzindo essa atividade em números, o Ministério Público instaurou

vinte e um inquéritos civis, celebrou treze compromissos de ajustamento de

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conduta; ajuizou quatro ações civis públicas, duas ações penais, e realizou

uma transação penal.

c) A equipe executora do projeto, nas áreas em que celebrado

compromisso de ajustamento de conduta, e naquelas em que obtidas liminares,

plantou 4.470 (quatro mil quatrocentas e setenta) mudas, apropriadas para a

mata ciliar, dentre elas açoita-cavalo, álamo, alfeneiro, amora, angico-

cangalha, angico-branco, angico-vermelho, cedro, cinamomo, figueira-dobrejo,

ingá-do-brejo, ipê-roxo, jalão, jenipapo, jequitibá-branco, jequitibá-rosa, maricá,

mutambo, óleo-copaíba, paineira, pau-viola e sangra d’água, dentre outras,

sendo todos os trabalhos, sob coordenação técnica especializada da FUNEDI,

executados pelos albergados da APAC – Associação de Proteção e

Assistência de Condenados de Divinópolis, o que permite a ressocialização

destes.

d) Foi ministrado curso de educação ambiental pela Fundação

Educacional de Divinópolis – FUNEDI, a aproximadamente duzentos

professores da rede de ensino público municipal e estadual de Divinópolis.

e) Foram realizadas vinte reuniões de trabalho do grupo gestor do

projeto e do grupo de sustentação.

O projeto continua, estando ainda em sua primeira fase, havendo ainda

várias atividades a desenvolver, em todo o perímetro urbano da cidade, e os

resultados obtidos superam em muito as dificuldades enfrentadas, que não são

poucas. Para a segunda fase já foi adquirido inclusive trator para maior

eficiência dos trabalhos de plantio.

7 A existência dos parcelamentos clandestinos ou irregulares.

A despeito de todas as iniciativas listadas, casos haverá em que o

Ministério Público enfrentará situações já estabelecidas. E o que fazer com, por

exemplo, loteamento de largas proporções, implantado, em descumprimento à

legislação ambiental?

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Na palestra “Regularização do parcelamento do solo”35, proferida em 05

de novembro de 1999, o Desembargador do TJSP Narciso Orlandi Neto fez

importantes observações sobre o parcelamento do solo urbano, externando, na

oportunidade, sua inquietação com os loteamentos clandestinos ou irregulares,

afirmando inexistir solução legal para tal problema, mas mera possibilidade de

minorar os problemas resultantes, porém sempre com o sacrifício de algum

bem jurídico.

Listou, na ocasião, algumas causas dos loteamentos irregulares:

a) o Município legisla no interesse privado, daquele que se dedica à

atividade empresarial;

b) a explosão demográfica;

c) ausência de recursos e corpo técnico, do Município, ou mesmo

ausência de legislação, fazendo com que tudo seja admitido, até pela omissão;

d) rigor da legislação federal;

e) conivência entre o empresário e o Poder Público, muitas vezes

atraído pelo aumento de arrecadação, pelo IPTU, mera ilusão, diante dos

gastos que o Município terá para estabelecer a infra-estrutura do loteamento.

Muitas vezes, o problema só é detectado quando o loteamento já está

implantado.

São impedimentos absolutos36 à regularização do parcelamento do solo

os previstos nos artigos 3o e 4o da Lei 6.766/7937, sendo que o artigo 3o cuida

35 In: Temas de direito urbanístico, 2. Coordenação geral José Carlos de Freitas. São Paulo: ImprensaOficial do Estado, Ministério Público do Estado de São Paulo, 2.000, p. 36Artigo 40, § 5º da Lei 6.776/79: “A regularização de um parcelamento pela Prefeitura Municipal, ouDistrito Federal, quando for o caso, não poderá contrariar o disposto nos arts. 3º e 4º desta Lei, ressalvadoo disposto no § 1º desse último.”37“Art. 3º Somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, deexpansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por leimunicipal. Parágrafo único. Não será permitido o parcelamento do solo: I - em terrenos alagadiços esujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas; II - emterrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamentesaneados; III - em terreno com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidasexigências específicas das autoridades competentes; IV - em terrenos onde as condições geológicas nãoaconselham a edificação; V - em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeçacondições sanitárias suportáveis, até a sua correção.” “Art. 4º Os loteamentos deverão atender, pelomenos, aos seguintes requisitos: I - as áreas destinadas a sistemas de circulação, a implantação deequipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público, serão proporcionais àdensidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por lei municipal para a zona em que sesituem; II - os lotes terão área mínima de 125 m² (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínimade 5 (cinco) metros, salvo quando a legislação estadual ou municipal determinar maiores exigências, ouquando o loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais deinteresse social, previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes; III - ao longo das águascorrentes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatória a

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do solo que não pode ser ocupado, enquanto o artigo 4o cuida dos requisitos

urbanísticos do parcelamento.

Não obstante, apesar da vedação da regularização, os parcelamentos

simplesmente existem, em realidade que o Direito não pode ignorar. A falha do

sistema, que não exerceu seu poder de polícia, permite tal irregularidade.

Forneceu então Narciso Orlandi Neto expressivo exemplo, defendendo,

pela inevitabilidade, o sacrifício de algumas exigências urbanísticas:

“A absorção da violação daqueles requisitos urbanísticos do artigo 4o

parece, portanto, inevitável. O que o Município e o Estado têm de fazer é

buscar minorar as conseqüências dessa violação. Por exemplo, o

parcelamento do solo na região de proteção aos mananciais é proibido

expressamente. É possível a regularização? Não, em hipótese nenhuma é

possível a regularização. E alguém é capaz de eliminar esses parcelamentos?

Não, eles permanecem e a sociedade se acomoda”38

E é rara notícia a de que o Poder Público – até com medo da

impopularidade – exerça seu poder de polícia e remova a população daquele

local, até por questões financeiras, por não possuir outra área disponível.

O descaso da fiscalização municipal trouxe, assim, novo problema

social, trazendo mais prejuízos ao Município, que culminará dotando de infra-

estrutura o parcelamento ilegal.

8 A operação urbana consorciada.

A questão posta hoje encontra solução no Estatuto da Cidade,

enfrentando o problema, e não apenas ignorando exigências urbanísticas,

como propôs, na época, à ausência de instrumento legal, Narciso Orlandi Neto,

ou mesmo Toshio Mukai, que também defendia o afastamento de exigências

para tornar possível a regularização, em casos irreversíveis39.

Visualizemos a seguinte situação: o membro do Ministério Público,

recém chegado à Comarca, constata a existência de loteamento clandestino ou

reserva de uma faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências dalegislação específica; IV - as vias de loteamento deverão articular-se com as vias adjacentes oficiais,existentes ou projetadas, e harmonizar-se com a topografia local.” Lembremos, no caso do inciso III, aprevalência do Código Florestal, já explicada anteriormente. 38 Ob. cit., p. 358.39 Ob. cit., p. 298.

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irregular já implantado, dotado de infra-estrutura inadequada pelo Município,

com ruas asfaltadas, prédios, escolas, havendo desrespeito, p. ex., à

metragem mínima da área de preservação permanente. Os instrumentos de

fiscalização, preventivos e repressivos, não foram utilizados, ou revelaram-se

falhos, em omissão da Administração. E o quadro não mais é reversível.

Previu o Estatuto da Cidade, para casos tais, a possibilidade da

operação urbana consorciada, instrumento jurídico e político para

implementação de suas diretrizes, conforme artigo 4o, V, p), da Lei 10.257/01.

Necessário entender este instituto, para, em seguida, verificar como é aplicável

às construções irregulares em área de preservação permanente.

Eis a definição normativa:

“Art. 32. ...

§ 1º Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de

intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a

participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores

privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas

estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental.”

O adjetivo consorciada surge da conjugação de esforços entre o Poder

Público, ator e coordenador da operação, e os proprietários privados.

A integração entre o público e o privado encerra a noção de parceria,

que alcança não somente os proprietários e moradores, mas se alarga para

usuários permanentes e investidores privados.

Como dispõe o artigo 32, caput, deve ser prevista em lei específica, ou

seja, lei que “dispõe exclusivamente sobre a instituição e disciplina das

operações urbanas consorciadas. Nenhuma outra matéria, ainda que

relacionada com a política urbana, pode ser tratada por essa lei.”40

Essa lei específica, por seu turno, deve basear-se, conforme artigo 32,

caput, no plano diretor, o que não significa que o próprio plano diretor deva

definir a área da operação urbana consorciada, mas que a operação urbana

consorciada tenha suas premissas em consonância com o estatuído no plano

diretor41. 40 GASPARINI, Diógenes. O Estatuto da Cidade. São Paulo, Editora NDJ, 2.002, p. 182.41 Como ensinam PINHO, Evangelina, BRUNO FILHO, Fernando Guilherme. In: Estatuto da Cidadecomentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2.001/Organizadora: Liana Portilho Mattos. – Belo

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O plano diretor deve, para viabilizar a operação urbana consorciada,

prever elementos mínimos desta, delineando quais são as transformações

estruturais almejadas, com listagem, exemplificativa, de ações que visem à

consecução das diretrizes do Estatuto da Cidade.

O plano diretor, consoante artigo 182, parágrafo primeiro, da

Constituição Federal, “é obrigatório para cidades com mais de vinte mil

habitantes”, sendo o “instrumento básico da política de desenvolvimento e de

expansão urbana”.

Entretanto, caso os Municípios com menos de vinte mil habitantes

desejem promover operação urbana consorciada (muito embora seja difícil

visualizar, nesses casos, a necessidade), deverão antes aprovar a lei do plano

diretor.

O plano diretor é o instrumento mais importante de planejamento

urbano, sendo pressuposto para a implementação da operação urbana

consorciada.

A propósito, dispõe o Estatuto:

“Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento

básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. (...)”

“Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades:

I - com mais de vinte mil habitantes;

II - integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;

III - onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos

previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal;

IV - integrantes de áreas de especial interesse turístico;

V - inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades

com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.”

O Estatuto da Cidade (artigo 50) fixou o prazo de cinco anos para os

casos dos incisos I e II do artigo 40, catalogando como improbidade

administrativa a omissão quanto a providências para o cumprimento deste

prazo:

Horizonte: Mandamentos, 2.002, p. 222. Tanto que o Estatuto adotou a fórmula “baseada no planodiretor” para a operação urbana consorciada, enquanto que, para a outorga onerosa (artigo 28) eparcelamento, edificação ou utilização compulsórios (artigo 5o) o Estatuto foi categórico: exigiu aexpressa delimitação da área pelo plano diretor.

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“Art. 52. Sem prejuízo da punição de outros agentes públicos envolvidos

e da aplicação de outras sanções cabíveis, o Prefeito incorre em improbidade

administrativa, nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, quando:

...

VII - deixar de tomar as providências necessárias para garantir a

observância do disposto no § 3º do art. 40 e no art. 50 desta Lei;”42

8.1 Cumulatividade dos objetivos.

Os objetivos da operação urbana consorciada tiveram redação

conjugada – artigo 32, parágrafo primeiro - sendo da essência da operação a

realização de três valores, cumulativamente43: transformações urbanísticas

estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental.

A operação urbana é gênero de ação urbanística, podendo ser

entendida, primeiramente, como a) qualquer intervenção pública urbanizadora;

ou b) aplicação de instrumentos legais modificativos das regras urbanísticas,

para determinada região.

Existe ainda terceira espécie do gênero ação urbanística, em que há

especial intervenção urbanística, com critérios de interesse público, voltada

para a transformação estrutural do ambiente urbano existente e que conjuga: 1)

a combinação de capital público e privado, 2) a redefinição da estrutura

fundiária; 3) a modificação dos direitos de uso e edificabilidade do solo e 4) a

apropriação e manejo das externalidades positivas e negativas da intervenção,

42 Indo além, o Estatuto da Cidade permite a propositura de ação civil pública para exigir a aprovação deplano diretor, como ensina Toshio Mukai (ob. cit., p. 207), lembrando que não há como argumentar queesta conclusão e essa possibilidade seria inconstitucional, posto que não poderia o Poder Judiciárioobrigar a Câmara Municipal a legislar, pois isto violaria o princípio da separação de Poderes, vez queoutros princípios constitucionais baseiam tal conclusão: o da função social da propriedade, que somentese concretiza quando cumpre as exigências do plano diretor (artigo 170, III e 182, parágrafo primeiro). 43 Como ensinam GASPARINI, Diógenes (O Estatuto da Cidade. São Paulo, Editora NDJ, 2.002, p. 182)e LOMAR, Paulo José Villela. (Operação urbana consorciada. In: Estatuto da cidade - comentários àLei Federal 10.257/2.001. Coordenadores: Adilson Abreu DALLARI e Sérgio FERRAZ. São Paulo,Malheiros, 1a ed, 2a tiragem, 2.003, p. 247/249).

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na lição de Pedro Jorgensen Júnior.44 É essa terceira espécie a operação

urbana consorciada.

Volve-se a operação urbana consorciada para a recuperação de

ambientes degradados, adequação da infra-estrutura urbana, serviços e

edificações ao planejamento urbano, visando à função social da cidade. Como

anota Regis Fernandes de Oliveira, “básico é que o Município tenha efetivo

interesse na área, ao invés de pretender proteger apenas interesses de

particulares.”45

8.2 A regularização.

Alcança-se, agora, o foco desta discussão, quanto às ocupações

irregulares.

Dispõe o artigo 32, § 2º:

“§ 2º Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre

outras medidas:

I - a modificação de índices e características de parcelamento, uso e

ocupação do solo e subsolo, bem como alterações das normas edilícias,

considerado o impacto ambiental delas decorrente;

II - a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas

em desacordo com a legislação vigente.”

Enfrenta-se, assim, a questão das construções e loteamentos,

clandestinos e irregulares, que já estejam implantados de forma irreversível, no

exemplo acima identificado: casas, prédios, muitas vezes sobre área de

preservação permanente, com ruas já asfaltadas, escolas, até hospitais.

Há, então, a possibilidade de regularizar tais ilícitos, e não simplesmente

fechar os olhos para uma realidade que não se pode ignorar, postura

recorrente, mas que nada resolve.

O pressuposto para a regularização do inciso II ou a modificação do

inciso I é que todos os meios de aplicação das restrições urbanísticas tenham

44 Operações urbanas: uma ponte necessária entre a regulação urbanística e o investimento direto.Cadernos de urbanismo, 3/10-11, ano 1, Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura do Rio deJaneiro, novembro/2.000. 45 Comentários ao Estatuto da Cidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002, p. 87.

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sido falhos, do contrário a operação urbana consorciada será a panacéia para

todo um passado de omissão da Administração Pública, que não exerceu o seu

poder-dever de coibir as edificações clandestinas ou irregulares, ou, ao revés,

até as incentivou, ao expedir licenças em desacordo com a legislação federal.

Antevendo esse risco, Toshio Mukai posiciona-se pela

inconstitucionalidade do parágrafo segundo46.

Contudo, ainda que se proceda à operação urbana consorciada, as

sanções decorrentes da omissão do agente público não são afastadas pela

implementação da operação, devendo sempre o Ministério Público propor ação

de improbidade, ação civil pública e ação penal, relativas aos atos de omissão

da fiscalização, para que tal conduta seja punida, até como efeito educativo do

processo, a fim de que não se repita.

Do contrário, estimular-se-á a conduta omissa da Administração Pública,

que incentivará as construções irregulares, para, depois, valendo-se da

operação urbana consorciada, passar verdadeira borracha para afastar as

irregularidades, em círculo vicioso inadmissível, espoliando-se o meio

ambiente, e, o que é pior: permitindo que o próprio degradador (o Município),

afaste, posteriormente, as conseqüências de sua inépcia.

E, o que é mais importante: a regularização não é um fim em si, nem a

modificação dos índices e características de parcelamento, tanto que para esta

é exigida a consideração do impacto ambiental decorrente (inciso I), o que nos

traz a necessidade do Estudo Prévio de Impacto Ambiental.

Também deverá ser considerado o impacto ambiental da regularização

(inciso II), muito embora a lei não o mencione expressamente, vez que

consoante as diretrizes do Estatuto, conforme se verificará adiante, a operação

urbana consorciada sempre deverá “resguardar, no grau máximo possível, a

própria proteção do meio ambiente”, sendo que “aqui, como nenhum outro

ponto do Estatuto, realçou-se o aspecto de proteção ao meio ambiente” 47.

Há, no Estatuto, a necessária integração entre os interesses do homem

(bem coletivo, segurança e bem-estar dos cidadãos) com o equilíbrio

ambiental, e nesse ponto é oportuno frisar que a própria diretriz do artigo 2o,

XII do Estatuto, é mais um exemplo da interação entre o meio ambiente natural

46 Ob. cit., p. 328. 47FRANCISCO, Caramuru Afonso. Ob. cit., p. 216.

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e artificial – “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e

construído”48.

Alerta-se, aqui, para o fato de que a preocupação ambiental é a tônica

do Estatuto, não se concebendo operação urbana consorciada que represente

prejuízo ambiental. Vale a pena breve incursão no diploma legal.

O artigo 2o do Estatuto, que consagra os princípios para o “pleno

desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”.

Princípios, como bem observa Paulo de Bessa ANTUNES49, pois o artigo 2o

não traz meras diretrizes, mas normas-princípio.

Ao abrigar normas de tal jaez, traz em seu bojo normas de hierarquia

superior, não no sentido comum (normas constitucionais – normas

48 A preocupação com o equilíbrio ambiental permeia o Estatuto da Cidade, fazendo-se sentir por todo odiploma legal, com verdadeiro sopro ambientalista, arrolando-se os seguintes dispositivos relacionadosdiretamente ao meio ambiente, além do próprio artigo 1o, parágrafo único: “Art. 2º - A política urbanatem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana,mediante as seguintes diretrizes gerais: I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como odireito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aosserviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; ... IV - planejamento dodesenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas doMunicípio e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções docrescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; ... VI - ordenação e controle do usodo solo, de forma a evitar: ... g) a poluição e a degradação ambiental; ... VIII - adoção de padrões deprodução e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites dasustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; ...XII - proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural,histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; ... XIV - regularização fundiária e urbanização de áreasocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização,uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normasambientais; ... Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos: ... III -planejamento municipal, em especial: ...c) zoneamento ambiental; ...V - institutos jurídicos e políticos: ...e) instituição de unidades de conservação; VI - estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e estudo préviode impacto de vizinhança (EIV); ... Art. 26. O direito de preempção será exercido sempre que o PoderPúblico necessitar de áreas para: ... VI - criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes; ... VII -criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; ... Art. 31. Osrecursos auferidos com a adoção da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso serãoaplicados com as finalidades previstas nos incisos I a IX do art. 26 desta Lei.; ... Art. 32. Lei municipalespecífica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para aplicação de operações consorciadas. ... §2º Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre outras medidas: I - a modificação deíndices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, bem como alterações dasnormas edilícias, considerado o impacto ambiental delas decorrente;... Art. 35. Lei municipal, baseadano plano diretor, poderá autorizar o proprietário de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em outrolocal, ou alienar, mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou emlegislação urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for considerado necessário para finsde: ... II - preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico,social ou cultural; ... Art. 38. A elaboração do EIV não substitui a elaboração e a aprovação de estudoprévio de impacto ambiental (EIA), requeridas nos termos da legislação ambiental. Art. 39. Apropriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação dacidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto àqualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas asdiretrizes previstas no art. 2º desta Lei.”49 Direito Ambiental. 7ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 349.

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infraconstitucionais) mas no sentido de que todas as demais normas

urbanísticas estão vinculadas aos princípios.

Todos estão vinculados aos princípios: se couber mais de uma

interpretação no caso apresentado, deve prevalecer como válida a que melhor

se compatibilizar com o princípio, e, se não houver regra, a interpretação deve

ser de forma a concretizar o princípio. Servirão os princípios de critério

regulador da interpretação, conferindo o sentido e alcance das demais

normas50.

Lembre-se que as normas que revelam princípios são mandamentos

nucleares de um sistema, consoante conhecida lição doutrinária. São normas-

matrizes, que se irradiam por todo o ordenamento. A respeito, leciona Celso

Antônio Bandeira de Melo:

“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A

desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico

mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave

forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio

atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de

seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e

correção de sua estrutura mestra.”51

Os incisos I, IV, VI, c) e VIII do artigo 2o trazem ínsita a noção de

desenvolvimento sustentável. O inciso I dispõe sobre a “garantia do direito a

cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao

saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços

públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” Do

conceito de cidades sustentáveis é indissociável o adequado planejamento, o

que traz à baila a norma-princípio do inciso IV do artigo 2o do Estatuto: IV -

planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da

população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua

área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento

urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;

50 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Princípios fundamentais do Direito Ambiental. In: Revista de DireitoAmbiental, ano 1, n. 2, abril/junho 1996, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 51/52.51 Elementos de direito administrativo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1980, p. 230.

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Associada ao desenvolvimento sustentável está ainda a diretriz

(princípio) do inciso VI:

VI - ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

...

g) a poluição e a degradação ambiental;

A idéia de ordenação e controle do solo, evitando o desequilíbrio

ambiental, traz como desdobramento a previsão do zoneamento ambiental,

contemplada no artigo 4o, III, c), do Estatuto, como instrumento de política

urbana.

Prosseguindo nas normas-princípio do artigo 2o, constata-se que

também ligado ao desenvolvimento sustentável se encontra o inciso VIII:

VIII - adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e

de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental,

social e econômica do Município e do território sob sua área de influência;

Quando o Estatuto menciona a adoção de padrões de “expansão urbana

compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental” segue a orientação

do item 5.29 da Agenda 21. Este afirma que “na formulação de políticas de

assentamento humano devem ser levados em conta os recursos necessários, a

geração de resíduos e a saúde dos ecossistemas.”

O inciso XII do artigo 2o “proteção, preservação e recuperação do meio

ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico,

paisagístico e arqueológico” evoca a necessária integração meio ambiente

natural-artificial, tratada no início desse estudo. E o inciso XIV “regularização

fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda

mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e

ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da

população e as normas ambientais” ressalta que, mesmo nas questões de

interesse social, relativas ao direito à terra e direito de moradia, as normas

ambientais serão atendidas.

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De tudo se conclui que a partir do direito a cidades sustentáveis se

estrutura a política urbana52.

Há a necessidade, assim, de interação, em equilíbrio, entre o meio

ambiente natural e o artificial, pois “de nada vale que nos preocupemos com a

beleza de nossas cidades, se não vamos sobreviver como espécie para

desfrutá-la.”53

A operação urbana consorciada será, assim, especial intervenção

urbanística, em determinada região, previamente delimitada na lei específica,

que irá, por vezes, possibilitar a regularização de ilícitos no parcelamento,

visando a imprimir ordem ao caos urbano ali verificado, com caráter corretivo e

reformador, gerando valorização ambiental, pois, afinal de contas, a

valorização ambiental é um dos objetivos da operação, conforme artigo 32,

parágrafo primeiro.

A operação urbana que não visar à valorização ambiental, mas apenas

uma “anistia” a um passado de ilícitos, não será operação urbana consorciada,

e deve ser combatida pelo Ministério Público.

8.3 A lei específica.

A lei específica que cuidar da operação urbana consorciada deverá vir

dotada de uma série de requisitos, previstos no artigo 33 do Estatuto:

“Art. 33. Da lei específica que aprovar a operação urbana consorciada

constará o plano de operação urbana consorciada, contendo, no mínimo:

I - definição da área a ser atingida;

II - programa básico de ocupação da área;

III - programa de atendimento econômico e social para a população

diretamente afetada pela operação;

IV - finalidades da operação;

V - estudo prévio de impacto de vizinhança;

VI - contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes

e investidores privados em função da utilização dos benefícios previstos nos

incisos I e II do § 2º do art. 32 desta Lei;52 FRANCISCO, Caramuru Afonso. Estatuto da cidade comentado. São Paulo, Editora Juarez deOliveira, 2.001, p. 5. 53 MATEO, Ramón Martin. Manual de derecho ambiental. Madri, Editorial Trivium, 1995, p. 36.

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VII - forma de controle da operação, obrigatoriamente compartilhado

com representação da sociedade civil.

§ 1º Os recursos obtidos pelo Poder Público municipal na forma do

inciso VI deste artigo serão aplicados exclusivamente na própria operação

urbana consorciada.

§ 2º A partir da aprovação da lei específica de que trata o caput, são

nulas as licenças e autorizações a cargo do Poder Público municipal expedidas

em desacordo com o plano de operação urbana consorciada.”

Todos esses requisitos evidenciam elementos básicos de estruturação

da operação urbana consorciada.

Interessante, nesse ponto, examinar a contrapartida a ser exigida dos

proprietários, usuários permanentes e investidores privados em função da

utilização dos benefícios previstos nos incisos I e II do § 2º do art. 32 (inciso

VI).

Diógenes Gasparini54 ensina que contrapartida é expressão ampla, que

tanto pode representar uma compensação, seja em dinheiro, bens, construção

ou serviço. E defende a necessidade de que o valor da contrapartida seja

calculado mediante fórmula matemática, considerando-se o ganho auferido

pelo beneficiário ou interessado.

Correto o raciocínio naquilo que se limitar às intervenções urbanísticas

que não representem impacto ambiental.

Por outro lado, tudo o que constituir impacto ambiental deverá ser, de

alguma forma, reparado, segundo as normas do Direito Ambiental, afigurando-

se possível, inclusive, a aplicação de medidas compensatórias.

Neste ponto, é importante frisar que a medida compensatória não pode

ser, jamais, o cumprimento de um dever legal (por exemplo, recompor o

remanescente da área de preservação permanente com mata ciliar, construir

fossa séptica), vez que deve representar um plus, não se compensando uma

obrigação que deveria ter sido cumprida com outra obrigação exigível por lei.

Esses exemplos são deveres legais, a serem cumpridos independentemente

de operação urbana consorciada.

As medidas compensatórias deverão, assim, ser definidas pelo

Município a partir de seus delineamentos pela legislação ambiental.

54 Ob. cit., p. 183.

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Além disso, a contrapartida não é o fim da operação urbana

consorciada, mas aspecto desta, vez que a valorização ambiental é o objetivo a

alcançar, até porque “resumir a operação urbana consorciada apenas (ou com

ênfase desmesurada) à regularização mediante contrapartidas, ainda que

tentador, não se sustenta sob a ótica dos princípios consubstanciados no artigo

2o do Estatuto, em especial seus incisos IV e VI.”55

A questão não é tão singela. No caso da regularização de edificação ou

loteamento que representou impacto ambiental, a contrapartida terá que

envolver, necessariamente, na impossibilidade de reparação, a indenização,

pelo dano ambiental, contemplando ainda possível medida compensatória.

9 A legislação estadual mineira. Equívocos.

Como visto, a operação urbana consorciada representa especial

intervenção urbanística tendente à valorização ambiental, enfrentando a

questão do parcelamento do solo ilícito, com medidas que permitem o ganho

ambiental.

Diferente é a postura da legislação estadual mineira, em especial no

artigo 11 da Lei 14.309/02, que cuida da política florestal e de proteção à

biodiversidade, em dispositivo inconstitucional, por confrontar regra mínima da

legislação federal, desrespeitando a competência concorrente, conforme acima

esclarecido:

“Artigo 11. Nas áreas consideradas de preservação permanente, será

respeitada a ocupação antrópica consolidada, de acordo com a

regulamentação específica e averiguação do órgão competente, desde que não

haja alternativa locacional comprovada por laudo técnico e que sejam

atendidas as recomendações técnicas do poder público para a adoção de

medidas mitigadoras, sendo vedada a expansão da área ocupada.”

Primeiramente, importa lembrar que a ocupação antrópica consolidada

veio definida na Resolução CONAMA 303/02,

“Art. 2º Para efeito desta Resolução são adotadas as seguintes

definições:

...

55 PINHO, Evangelina, BRUNO FILHO, Fernando Guilherme. Ob. cit, p. 223.

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XIII - Área Urbana Consolidada: aquela que atende aos seguintes

critérios:

a) definição legal pelo poder público;

b) existência de, no mínimo, quatro dos seguintes equipamentos de

infra-estrutura urbana:

1 malha viária com canalização de águas pluviais;

2 rede de abastecimento de água;

3 rede de esgoto;

4 distribuição de energia elétrica e iluminação pública;

5 recolhimento de resíduos sólidos urbanos;

6 tratamento de resíduos sólidos urbanos.

c) densidade demográfica superior a cinco mil habitantes por km2.”

Tal definição já constava do artigo 2o, V, da Resolução 302/02, que

dispõe sobre os parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação

Permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno.

De plano se verifica que muito difícil será a caracterização de alguma

área do interior de Minas Gerais como área urbana consolidada, diante do

requisito de densidade demográfica do item c).

Além disso, a definição do CONAMA na Resolução 302 se prestou para

esclarecer que, em reservatórios artificiais, a metragem da área de

preservação permanente, para áreas urbanas consolidadas, é de trinta metros:

“Art. 3º Constitui Área de Preservação Permanente a área com largura

mínima, em projeção horizontal, no entorno dos reservatórios artificiais, medida

a partir do nível máximo normal de:

I - trinta metros para os reservatórios artificiais situados em áreas

urbanas consolidadas e cem metros para áreas rurais;”

E a resolução 303 se limitou a definir a ocupação consolidada, sem

afirmar em nenhum momento o que afirmou a legislação estadual.

Logo, a legislação estadual buscou deturpar um conceito das normas

federais, para afirmar, categoricamente, que, já havendo intervenção em área

de preservação permanente, será respeitada. Volta e meia ouvimos, nas

andanças pelas Comarcas, pela Coordenadoria das Promotorias de Defesa do

Meio Ambiente da Bacia do Alto São Francisco, que a área x é área urbana

consolidada, e, como tal, nada se pode fazer ...

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Ora, primeiramente, ainda que fosse válido o dispositivo estadual, o

requisito demográfico deve estar presente, o que é muito difícil, como já dito,

no interior. Ainda que fosse válida a legislação estadual, deveria ser

comprovada a inexistência de alternativa locacional, o que não é requisito

simples.

Além disso, as áreas urbanas consolidadas apenas gozam da vantagem

de ter a metragem da área de preservação permanente menor para

reservatórios artificiais, não significando que devam subsistir ocupações em

áreas proibidas por lei.

O que a legislação estadual mineira pretendeu foi simplesmente,

reconhecendo a ineficiência de seu sistema de fiscalização, desconsiderar o

ilícito de ocupar-se a área de preservação permanente, e simplesmente proibir

novas intervenções.

Ora, sendo o Código Florestal de 1965, apagaremos todo um passado

de ilícitos em 2.002? E não há qualquer garantia que o legislador mineiro, em

poucos anos, preveja novamente uma “anistia” para os degradadores.

O dispositivo estadual consagra, ainda, absurdo (e é sabido que

nenhuma interpretação pode conduzir ao absurdo): é dirigida a premiar

economicamente o infrator (quem desmatou não tem que enfrentar a limitação

da área de preservação permanente) e punir economicamente aquele que não

desmatou (terá respeitar a área de preservação permanente). Registre-se

apenas que a longo prazo, em verdade, todos seremos punidos, pois o

equilíbrio ambiental entrará em colapso, diante da continuidade da agressão, e,

o que é pior, sob estímulo do legislador estadual.

O legislador estadual fez verdadeira miscelânea entre institutos definidos

pela legislação federal. Primeiro, quanto à a ocupação antrópica consolidada.

Segundo, inseriu a exigência de inexistência de alternativa locacional, que em

verdade é requisito para a supressão de vegetação em área de preservação

permanente conforme artigo 4o caput do Código Florestal:

“Art. 4º A supressão de vegetação em área de preservação permanente

somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse

social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento

administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao

empreendimento proposto.”

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O legislador estadual baralhou os conceitos para encaixá-los em

dispositivo inconstitucional, por contrariar as normas gerais da União, invadindo

esfera de competência do outro ente federado, visando a “anistiar” as inúmeras

intervenções ilegais.

E repetiu o desatino no Decreto 43.710/2.004, agora permitindo que, não

havendo alternativa locacional, “deverão ser adotadas medidas mitigadoras e

práticas culturais conservacionistas, de acordo com critérios técnicos definidos

pelo órgão competente, respeitando-se as peculiaridades locais.” (artigo 11,

parágrafo segundo)

Alto lá. Então quer dizer que o agricultor está com cultivo em área de

preservação permanente, e poderá continuar cultivando, na hipótese, por

exemplo, de não ter como transferir para outra área o cultivo? É a eternização

do ilícito?

Todo cuidado e vigilância se exige dos membros do Ministério Público

contra os dispositivos estaduais, feitos sob encomenda para inveterados

infratores ambientais.