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Tradução do grego, introdução e notas Rodolfo Lopes Platão Colecção Autores Gregos e Latinos Série Textos Timeu-Crítias

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Traduo do grego, introduo e notasRodolfo Lopes

Plato

Coleco Autores Gregos e LatinosSrie Textos

Timeu-Crtias

Plato

Timeu-Crtias

Traduo do grego, introduo e notasRodolfo Lopes

Autor: PlatoTtulo: Timeu-Crtias

Traduo do grego, introduo, notas e ndices: Rodolfo Lopes Editor: Centro de Estudos Clssicos e Humansticos

Edio: 1/2011

Coordenador cientfico do plano de edio: Maria do Cu FialhoConselho editorial: Jos Ribeiro Ferreira, Maria de Ftima Silva,

Francisco de Oliveira, Nair Castro SoaresDirector tcnico da coleco: Delfim F. Leo

Concepo Grfica: Rodolfo Lopes

Obra realizada no mbito das actividades da UI&DCentro de Estudos Clssicos e Humansticos

Universidade de CoimbraFaculdade de Letras

Tel.: 239 859 981 | Fax: 239 836 7333000-447 Coimbra

ISBN: 978-989-8281-83-8ISBN Digital: 978-989-8281-84-5

Depsito Legal: 325995/11

Obra publicada com o apoio de:

Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra

Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edio electrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excepcionada a utilizao em circuitos acadmicos fechados para apoio a leccionao ou extenso cultural por via de elearning.

Todos os volumes desta srie so sujeitos a arbitragem cientfica independente

ndice

Nota prvia 7

Introduo 11I. Aspectos extratextuais 131. O projecto Timeu-CrTias 132. Data dramtica e data real de composio 153. Personagens 20II. Aspectos temtico-estruturais 231. Antecedentes cosmolgicos 232. O discurso de Timeu 312.1 Pressupostos iniciais 322.2 Intelecto e Necessidade 342.3 O demiurgo 382.4 O terceiro nvel ontolgico 422.5 O estatuto do discurso 483. O discurso de Crtias 533.1 A historicidade da narrativa sobre a Atlntida 553.2 A narrativa sobre a Atlntida uma inveno de Plato 563.3 Leituras alegricas 634. Estrutura dos dilogos 65

Timeu 69

CrTias 213

ApndicesBibliografia 249ndice analtico 255ndice de nomes e lugares 261Glossrio 263

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nota prvia

O volume que se segue pretende, por um lado, apresentar uma nova traduo do Timeu, e, por outro, disponibilizar a primeira verso do texto do Crtias em portugus. Pelas razes que exporemos posteriormente (vide infra pp. 13-15), a nossa proposta assenta em considerar ambos os dilogos como um bloco uno tanto a nvel dramtico como narrativo.

Em relao s duas tradues do Timeu j existentes, no seguimento das quais esta forosamente se inscreve, cumpre esclarecer alguns aspectos. A primeira, de Manuel Maia Pinto (Porto, Imprensa Moderna, 1951), alm do facto de contar com quase 50 anos, denuncia bastantes fragilidades: inexplicavelmente, omite a seco inicial do texto (17a-20c); e assenta em pressupostos no mnimo discutveis, como por exemplo a identificao do demiurgo com Eros (e.g. pp. 44, 46) ou das Ideias com Deus na sua verso judaico-crist (e.g. pp. 42, 47). J a segunda, da autoria de Maria Jos Figueiredo (Lisboa,

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Instituto Piaget, 2003), situa-se num nvel diferente, na medida em que se mantm fiel ao texto grego, ao seu autor e ao contexto histrico-filosfico que os enquadram, bem como conta com uma excelente introduo da autoria de Jos Trindade Santos. Em relao a esta, a nossa procurar oferecer interpretaes alternativas de alguns passos e uma anotao mais vocacionada a, por um lado, esclarecer certas seces do texto (principalmente as meta-narrativas) e, por outro, a propor algumas relaes intertextuais. As grandes diferenas so a edio de base (a autora segue a de Rivaud) e a incluso, na nossa verso, de ndices remissivos e glossrio.

Quanto introduo, procurmos esclarecer alguns aspectos extratextuais (I): (1) a unidade dos dois dilogos, (2) a datao e (3) as personagens. Em relao ao contedo, tentmos explicar com mais detalhe algumas questes que no poderiam ser abrangidos nas notas em virtude da sua complexidade ou simplesmente porque pretendem acima de tudo situar o texto num quadro histrico-filosfico mais abrangente (II): (1) os antecedentes cosmolgicos, (2) o estatuto e estrutura da interveno de Timeu e tambm (3) da de Crtias. Finalmente, providencimos uma esquematizao analtica dos assuntos tratados nos dilogos. Como apensos traduo, inclumos a lista da bibliografia citada, um glossrio dos termos mais importantes e respectivas tradues, seguido de um ndice analtico e outro de nomes e lugares.

Para a traduo, seguimos a edio estabelecida por Burnet, salvo nalguns casos isolados em que se

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impunham alteraes sugeridas e justificadas por novos dados entretanto aduzidos. Em todos estes casos, a divergncia foi devidamente assinalada em nota.

Resta agradecer a todos quantos de algum modo participaram neste trabalho: Maria do Cu Fialho e Maria Lusa Portocarrero pela diligente orientao da dissertao da qual foi extrada grande parte dos elementos deste volume (toda a traduo do Timeu e cerca de dois teros da introduo); lia Rodrigues, Antnio Pedro Mesquita, Carlos A. Martins de Jesus, Delfim F. Leo, Gabriele Cornelli, Joo Diogo Loureiro, Maria Teresa Schiappa de Azevedo pela leitura crtica do manuscrito; e tambm ao Centro de Estudos Clssicos e Humansticos por ter acolhido com interesse a publicao.

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i. aspectos extratextuais

1. O projecto Timeu-CrtiasA unidade entre os dois dilogos verifica-se tanto

ao nvel dramtico, quanto ao temtico. Mas, alm de implcita nestes duas dimenses, a sequncia diegtica confessada pelos prprios participantes. Logo no incio do Timeu, Crtias, ao anunciar a Scrates qual ser o programa (diathesis) de conversaes para aquela ocasio, diz muito claramente que a seguir a Timeu discursar ele prprio:

Observa, ento, Scrates, o programa que preparmos para a tua recepo. Com efeito, pareceu-nos que Timeu, por de ns ser o mais entendido em astronomia e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do mundo, deveria ser o primeiro a falar, comeando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem. Depois dele, serei eu, como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso e de ti um certo nmero de homens educados de forma particularmente apurada. (27a2-27b1).

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A incluso de ambos os discursos no mesmo programa, aliada ao gesto de Timeu passar a palavra a Crtias depois de terminar a sua interveno, tal como fora combinado (106b6-7), motivo suficiente para considerar que h uma clara continuidade. Para alm disso, uma leitura superficial de ambos ser com certeza bastante para perceber que notria a inteno de Plato em consider-los partes de um todo: em termos gerais, o Timeu ocupa-se da constituio do mundo e do Homem enquanto que o Crtias d seguimento a esse projecto, ao apresentar a constituio da dimenso social; ou seja, da sua integrao em comunidade no mundo criado.

Desta indissociabilidade do tambm conta as orientaes dos estudos platonistas que cada vez mais tendem a considerar os dois como um s. Alm da ltima grande monografia sobre estas obras (Johansen, 2004), o congresso que lhes dedicou a International Plato Society aborda-as igualmente como um todo e no como dilogos separados (Calvo & Brisson, 1997). Ainda assim, ao longo dos sculos, as atenes sempre estiveram mais voltadas para o Timeu, em virtude das questes filosficas nele abordadas. Por esse motivo, grande parte do que se tratar nesta Introduo dir respeito a esse dilogo, mas tendo sempre em conta que a ligao com o Crtias de tal forma estreita que nos permite encar-los como uma obra s.

De acordo com algumas breves referncias de que dispomos, era provvel que este projecto de Plato inclusse um terceiro dilogo o Hermcrates , formando assim uma trilogia. Logo no incio do Timeu,

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quando Scrates refere Hermcrates, faz questo de o declarar competente em todos aqueles assuntos (20a8) e, ao apresent-lo nos mesmos moldes que as outras duas personagens, parece implicar que tambm uma parte dos discursos pudesse estar reservada para ele. Essa possibilidade esclarece-se j no Crtias, quando Scrates diz que Hermcrates ser o terceiro a falar (108a). Contudo, muitssimo provvel que esse projecto nunca tenha sido consumado.

2. Data dramtica e data real de composioAo abordarmos a data de uma obra com uma

estrutura desta natureza, deveremos, antes de mais, ter em conta que este aspecto deve ser entendido sob dois pontos de vista distintos: o da data dramtica, isto , a altura ou poca a que se reporta a aco narrada; por outro lado, o da data real de composio, o mesmo que dizer quando foi realmente escrita a obra.

No que respeita data dramtica, o seu estabelecimento depender da escolha de uma de duas vias. Se considerarmos que Scrates em 17c se refere Repblica quando alude ao dilogo que tinha travado com aqueles intervenientes no dia anterior sobre o tipo de Estado que lhe parecia ser o melhor, ento a data dramtica situar-se- no dia a seguir daquele outro dilogo por volta do ano 420 ou 421 a.C., durante as Bendideias1. Porm, se nos ativermos unicamente quilo que diz o texto sobre este aspecto, a data apontada um

1 Apud Pereira, 2001, p. XIII. As Bendideias eram um festival religioso realizado no ms de Thargeleion (Junho).

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pouco diferente, pois em 26e Scrates refere, de forma indirecta, que aquele encontro se processa durante as Panateneias2. Quanto ao ano, ter sido entre 430 e 425 a.C. (apud Taylor, 1928, p. 15; Durn, 1992, p. 134; Brisson, 2001, p. 72); portanto, alguns anos antes da Repblica.

Aquela associao com a Repblica de que depende a primeira via carece de alguma consistncia, podendo mesmo ser refutada convincentemente por mais do que uma ordem de razes. Nota muito bem Cornford (1937, pp. 4-5) que o ontem a que Scrates se refere no tem forosamente que ser o dia do encontro na casa de Cfalo, mas poder ser um qualquer dia em que aqueles intervenientes tenham abordado algumas questes que nesse dilogo so tambm discutidas. Em segundo lugar, a referncia s Panateneias no de todo inocente, pois coaduna-se com o elogio de Crtias vitria de Atenas sobre a Atlntida (20d-26c), bem como justifica a presena de Hermcrates (um estrangeiro) na cidade. Alm disso, o resumo que Scrates faz da conversa que tinham tido no dia anterior sobre o Estado ideal no inclui todos os assuntos tratados na Repblica; o que entra em contradio com o facto de aquele resumo incluir os assuntos principais (to kephalaion: 17c2). Por outro lado, deve tambm sublinhar-se que Scrates inclui todos os presentes na dita conversa do dia anterior (17a1-2)3. Ora, sabemos que nenhuma das personagens

2 O festival dedicado deusa Atena tradicionalmente celebrado no 28 dia do ms de Hecatombeon (meados de Julho).

3 Note-se inclusivamente o uso da primeira pessoa do plural quando referido o tal encontro do dia anterior (e.g. 17c7:

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do Timeu, excepto Scrates, participa na Repblica. Deste modo, ser porventura mais prudente optar pela segunda hiptese e estabelecer a data dramtica na altura das Panateneias.

Quanto data real de composio, tradicionalmente situada nos ltimos anos da vida de Plato; porm, houve algumas tentativas de a fazer recuar um pouco. Segundo a primeira hiptese (a mais antiga), o dilogo pertence ltima fase, da qual fazem parte tambm o Sofista, o Poltico, o Filebo e as Leis; de acordo com a segunda, ele dever, pelo contrrio, ser includo na fase mdia juntamente com Crtilo, Fdon, Banquete, Repblica, Fedro, Parmnides e Teeteto.

A hiptese tradicional foi postulada ainda na Antiguidade. Plutarco, por exemplo, acreditava que o Crtias no tinha sido acabado porque Plato morrera enquanto o escrevia4. No entanto, j no sculo XIX comearam a surgir algumas opinies que apontavam para a incluso do dilogo na fase mdia (vide Cherniss, 1957, p. 226, n. 3), e, j na primeira metade do sculo XX, Taylor (1928, pp. 4-5) admite no seu comentrio ao Timeu que essa possibilidade devia ser tida em conta. Alguns anos mais tarde esta hiptese atinge o estatuto de tese quando Owen (1953) publica um artigo em que defende a sua validade com base em dois argumentos um mais formal, outro temtico. Por um lado, partindo das anlises estilomtricas de Billig5, conclui

dieilometha, 17d2: eipomen, 18c1: epemnsthmen).4 Vida de Slon 32.5 Billig (1920). Este autor fixar a cronologia do corpus Platonicum

atravs de estudos estatsticos baseados em padres de frequncia de

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que o estilo do Timeu (e do Crtias) nada tem que ver com o dos dilogos que tradicionalmente lhe surgiam associados (Sofista, Poltico, Filebo e Leis); mas que, pelo contrrio, estava muito prximo do dos dilogos mdios, particularmente da Repblica, do Fedro, do Parmnides e do Teeteto (Owen, 1953, pp. 80-82). Por outro lado, Owen coloca em confronto a forma como algumas teorias de Plato aparecem no Timeu e noutros dilogos da fase mdia, no sentido de demonstrar que este ser obrigatoriamente anterior a alguns daqueles. Diz, por exemplo, que o modo admiravelmente estvel como a doutrina das Ideias aparece no Timeu uma evidncia de que a obra ser mais anterior do que defende a hiptese tradicional, pois s no Parmnides foi submetida a uma refutao de tal forma irrepreensvel, que seria impensvel que Plato tivesse redigido o Timeu aps o Parmnides (Owen, 1953, pp. 82-83).

O artigo de Owen, em virtude das ousadas concluses que apresentava, obteve uma resposta imediata por parte de um outro estudioso. Cherniss que, quatro anos mais tarde, vem desconstruir toda a sua argumentao, reforando assim a posio da teoria tradicional. As suas concluses, muito bem fundamentadas, apontam para que Crtilo, Parmnides e Teeteto tenham sido compostos antes do Timeu e

palavras e construes sintcticas. Depois de recolhidos, estes dados eram cruzados e analisados de forma a permitir um agrupamento estanque e inequvoco dos dilogos. Este tipo de anlise foi posteriormente alargado e at melhorado com o contributo da informtica, mas continuou a carecer de alguma fiabilidade, em virtude dos anacronismos resultantes.

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que, mais importante, as teorias do Timeu em nada chocam com as apresentadas nos dilogos da fase tardia (Cherniss, 1957, p. 266).

Com efeito, parece-nos que as teses de Owen no se baseiam em dados suficientemente slidos para abandonar a hiptese tradicional. Por um lado, as anlises estilomtricas constituem um perigo metodolgico que ameaa contaminar a coerncia da tarefa, pois baseiam-se numa recolha e posterior tratamento de dados de um modo estatstico, que, por se tratar de um processo linear e mecanizado, pode aduzir investigao um sem nmero de pequenos erros, os quais, imperceptivelmente multiplicados de um modo quase exponencial, podem resultar em concluses bastante problemticas. Num desses estudos em que Owen se baseou, o Crtias aparece muito distante do Timeu; ainda que seja o prprio autor a confessar e a corrigir esse erro (Owen, 1953, p. 80), acaba por denunciar as fragilidades daquele tipo de ferramenta. Por outro lado, a forma como l o confronto das doutrinas de Plato tambm falvel, pois admite uma perspectiva contrria e igualmente vlida. Por exemplo, o referido caso da doutrina das Ideias poder ser interpretado do modo oposto: aps ter sido refutada no Parmnides, Plato reformulou-a no Timeu ao acrescentar o terceiro princpio ontolgico ao processo de participao; ainda que, como veremos, a sua contribuio se processe em contornos muitssimo particulares.

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3. PersonagensNos dilogos participam quatro personagens,

alm de uma outra que referida logo na primeira frase, mas da qual no resta qualquer notcia: Scrates, Timeu, Hermcrates e Crtias.

Quanto ao primeiro, que teria entre 40 a 45 anos data dramtica (apud Brisson, 2001, p. 72), pouco haver a acrescentar aos milhares de pginas que tm sido escritos ao longo dos tempos; a no ser o pormenor que muito bem notou Vlastos (1991, p. 264) acerca da evoluo da personagem dentro do contexto macroestrutural de todo o cnone platnico: o facto de Scrates se interessar por filosofia natural, ou melhor, por cincias naturais, como a biologia, a fsica, a astronomia ou a qumica, ao contrrio do que acontecia em fases anteriores em que as suas preferncias cientficas estavam limitadas s cincias matemticas, como sugere a Repblica (vide 522b-sqq.). No que respeita s restantes personagens, cumpre dizer algumas palavras.

Comeando pelo primeiro protagonista, Timeu, cuja interveno ocupa a grande maioria do que resta do texto (27c-106c), no h evidncias concretas de que tenha realmente existido6. Com efeito, todas as referncias a este suposto filsofo pitagrico so posteriores ao dilogo seu homnimo, no qual se diz ser um abastado cidado de Lcride, na Itlia, tendo ali ocupado altos cargos na administrao poltica e, por isso, recebido grandes louvores por parte dos

6 No confundir com o historiador homnimo que viveu cerca de um sculo depois.

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habitantes locais (20a). De facto, dadas as srias dvidas em relao ao Timeu histrico, h quem veja nele uma mscara de outra personalidade. Ccero refere nos Academica (1.10.16) que Plato, quando foi pela primeira vez Siclia, conviveu muito de perto com Timeu de Lcride e tambm com Arquitas de Tarento. Se a existncia do primeiro duvidosa, quanto do segundo no restam dvidas: alm de um poltico exemplar, Arquitas foi um matemtico brilhante7 e mestre de ilustres matemticos, como o prprio Eudoxo, conforme atesta Digenes Larcio (8.86.1). Por isso, possvel que Timeu represente Arquitas; contudo, os dados disponveis no permitem mais do que simples conjecturas.

Por outro lado, este carcter fictcio da personagem leva os estudiosos a questionar se Timeu no ser um simples pseudnimo de Plato, como fora inicialmente proposto por Wilamowitz-Moellendorff (1920, pp. 591-592) e mais tarde desenvolvido por Cornford (1937, p. 3), que sustentava esta argumentao com o facto de ser impossvel apontar algum daquela poca que reunisse conhecimentos to aprofundados sobre tantas reas do saber.

Quanto a Crtias, personagem responsvel por narrar o episdio da guerra que ops a Atenas primeva Atlntida, , sem dvida, a figura que levanta mais dificuldades de ordem histrica. O principal problema que a rvore genealgica desta famlia conta com quatro

7 -lhe, por exemplo, atribuda a duplicao do cubo (DK 47A14),

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figuras com o nome Crtias: o I, filho de Dropidas I e irmo de Dropidas II (a quem Slon ter transmitido o relato trazido do Egipto; vide 20e); o II, filho de Dropidas II; um III, neto do II e tio-av de Plato; e um IV8, o dos Trinta Tiranos, neto do III e primo do autor.

A teoria tradicional, proposta desde logo por Burnet (1914, p. 338) e seguida por Cornford (1937, p. 2), sustentava que se tratava do Crtias III; tratava-se, no fundo, de fazer f nas palavras de Plato. Em todo o caso, faltava ainda preencher o enorme fosso geracional entre este e Dropidas II. Finalmente em 1949 surgiu num ostrakon encontrado na gora de Atenas um registo que demonstrava a existncia histrica de Ledas, pai do Crtias III e filho de Dropidas II (vide Nails, 2002, pp. 106-107). Assim se confirmou com dados concretos a suspeita de Burnet.

No que respeita a Hermcrates, o autor do suposto dilogo pensado para seguir o Crtias, a sua participao limita-se a duas breves intervenes (20d, 108c). Quanto sua existncia histrica, ela inegvel: segundo Tucdides (4.72), tratava-se de um homem de admirvel inteligncia e coragem alm de muitssimo experiente em assuntos militares e notabilizou-se por ter previsto os planos expansionistas de Atenas logo em 424 a.C. (4.52); j Proclo, seguindo a mesma ideia de Tucdides, sublinha o seu protagonismo na vitria contra os Atenienses aquando da invaso de Siracusa (Comentrios ao Timeu de Plato 1.71.19-sqq.)9. Note-

8 Participante no Crmides, no Protgoras e referido indirectamente na Carta VII (324c-d).

9 Sobre esta expedio militar, vide infra, pp. 64-65:

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se, porm, que esta expedio foi posterior data dramtica do dilogo.

ii. aspectos temtico-estruturais

1. Antecedentes cosmolgicosO texto do Timeu estabelece a constituio do

mundo sensvel e, posteriormente, dos seres que o habitam com particular evidncia para o Homem. Considerando que este ser o eixo temtico em torno do qual gira toda a narrativa, foroso que o dilogo seja contextualizado num movimento que comeara nos filsofos pr-socrticos. A relao de Plato com esta tradio quase sempre ambgua: se, por um lado, a tenta superar muitas das vezes condenando abertamente alguns dos seus representantes; por outro, importa dela vrios elementos cuja autoria propositadamente silencia. Daquela primeira inclinao do-nos testemunho vrias passagens: no Fdon (97c-99a), Scrates confessa-se bastante desiludido com Anaxgoras pelo facto de este inicialmente ter proposto o Intelecto (Nous) como causa de todas as coisas e posteriormente o ter trocado por princpios naturais (ar, gua etc.); nas Leis (889a-890a), onde o Estrangeiro de Atenas critica a tradio, dizendo que aquelas investigaes estavam presas ao mundo do devir e, por isso, eram impassveis de constituir conhecimento estvel a principal censura , como no Fdon, no considerar o Intelecto como causa (889c5: ou de dia noun).

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Assim, o Timeu surge como resposta ou proposta de substituio das abordagens naturalistas a que, segundo Plato, se tinham dedicado os pr-socrticos (cf. Santos, 2003, pp. 18-22, 47-50). Inscreve-se, pois, nessa tradio como um ponto de viragem e jamais como um marco de continuidade. O exemplo mais claro desta dupla relao adaptao e ruptura justamente o caso do Intelecto; como veremos, a sua concepo enquanto princpio de racionalidade ser um dos elementos centrais da cosmologia platnica.

Quanto aos elementos que dela retira, eles so apenas acessveis por meio de reconstituies hermenuticas, porquanto permanecem no anonimato. No caso do Timeu, os mais flagrantes e fundamentais sero os adaptados de Empdocles e do pitagorismo, enquanto que os restantes se resumem a alguns aspectos pontuais10.

Alm das bvias semelhanas entre os quatro elementos e as razes (rhizmata) de Empdocles (DK 31B6), h diversos pontos de contacto, entre os quais poderemos citar alguns exemplos. Contudo, como veremos, incorrecto supor que Plato tenha simplesmente decalcado esses dados, doutrinas ou teorias, pois, na maior parte dos casos, essa importao implicou uma evidente adaptao motivada por um dos pressupostos mais importantes do dilogo: a clara e absoluta distino entre uma dimenso pr-csmica e outra ps-criao.

10 Por esse motivo, sero apenas referidos em nota ao longo da traduo.

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No passo em que se diz que o mundo foi constitudo a partir dos quatro elementos e posto em harmonia atravs da proporo, para que, como sumo fim, obtivesse amizade (philia: 32c), muitssimo convidativa a coincidncia entre este termo e o Amor (Philots) de Empdocles (DK 31B17). Contudo, deveremos ter em conta que, enquanto neste autor se trata de uma fora dinmica que, de certo modo, unifica as razes, no texto de Plato claramente um resultado em que culmina (ou deve culminar) um processo criativo, isto , uma finalidade; ou seja, ainda que estejamos perante o mesmo conceito, convm ter em conta que cada um daqueles contextos tem implicaes de ordem pragmtica muito distintas: um processo (no caso de Empdocles), outro ser fim ou resultado (no caso de Plato).

Ainda assim, h outras ocasies em que, embora crivadas por um processo de adaptao, as doutrinas do primeiro se espelham no segundo. Ao descrever o corpo do mundo como uma esfera, Timeu evoca claramente a Esfera de Empdocles; muito embora a daquele resulte de um processo criativo, enquanto que a deste se situa numa fase pr-csmica, as semelhanas so evidentes, particularmente a nvel vocabular: tal como a esfera do pr-socrtico, o mundo de Timeu nico (33a1, ad DK 31B28), esfrico (33b4, ad idem), razo pela qual no teria necessidade de membros (33d3-34a1, ad DK 31B29) e todos os pontos da sua superfcie estavam a igual distncia do centro (34b2, ad idem). Embora, por vezes, as palavras utilizadas no sejam

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exactamente as mesmas, bastante evidente que ambos se situam num mesmo plano semntico, insistindo, por outro lado, a caracterizao nos mesmos pormenores e, inclusivamente, no mesmo princpio geomtrico: se a forma esfrica, todos os pontos da superfcie sero equidistantes do centro.

De um ponto de vista estrutural, a cosmologia do Timeu produz um mundo bastante prximo do que descreve Empdocles, principalmente no que concerne ao modo como o seu equilbrio garantido. Quando o demiurgo fabrica a alma do mundo, f-lo atravs de uma mistura em que entram as naturezas do Outro e do Mesmo, s quais atribui dois movimentos distintos, contudo complementares:

Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita, girando lateralmente, e que o do Outro se orientasse para a esquerda, girando diagonalmente (36c5-7).

Tal como acontece com o Amor e a Discrdia de Empdocles, que actuam com os elementos de um modo diametralmente oposto, promovendo, ainda assim, o intercmbio cclico entre si (cf. DK 31B17), tambm a concomitncia dos movimentos contrrios de entidades igualmente contrrias como o Mesmo e o Outro que, no Timeu, garantem o equilbrio do mundo natural; a colocao destas naturezas na rbita da alma do mundo, cuja funo primordial ser governar o seu corpo (34c), garante-lhe essa funo decisiva. evidente que se poderia admitir que esta noo de equilbrio enquanto

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negociao pacfica de foras opostas tenha outra matriz que no a de Empdocles por exemplo, a teoria dos opostos Heraclito (e.g. DK22B67) , ou mesmo, que se trata de uma concepo transversal impassvel de ser identificada com um autor em particular. Contudo, o carcter estrutural que a convivncia destas foras assume no equilbrio global do mundo, pois no se trata de um princpio que afecta vrias entidades, como acontece em Heraclito, aliado ao facto de essa relao ter como sumo fim a amizade, como foi referido anteriormente, far-nos- reconhecer a estreita ligao.

A par de Empdocles, a outra grande influncia na composio do Timeu foi, conforme dissemos, o pitagorismo. de tal modo acentuada que, durante a Antiguidade, alguns comentadores neoplatnicos acreditavam que Plato se baseara na obra Sobre a Alma do Mundo, da autoria do suposto filsofo pitagrico Timeu de Lcride. Embora hoje se saiba que se trata apenas de uma verso drica do texto de Plato, datada do sculo I d.C., esta curiosidade bem ilustrativa do quo acentuada a presena do pitagorismo no dilogo.

Em primeiro lugar, o ambiente ritual em que decorre o dilogo faz lembrar o esprito cientfico-religioso que definia o pitagorismo; no esqueamos que Timeu invoca os deuses antes de iniciar o seu discurso (27c-d) e torna a invoc-los quando tem necessidade de forjar um novo comeo narrativa (48d). Desta tendncia j alguns autores antigos tinham dado notcia; diz Proclo, nos seus Comentrios ao Timeu de Plato

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(1.30.3-18), que, tal como pensam outros11, tambm ele considera o promio inicial uma preparao simblica para a exposio propriamente dita, como era costume dos Pitagricos.

Alm de definir a estrutura, esta influncia funciona tambm como ncora terica a que toda a exposio se fixa. Como sabemos, o contedo e a orientao da fsica pitagrica tinham um carcter profundamente teolgico; isso, por si s, seria suficiente para que Plato adaptasse tal modelo ao seu sistema filosfico. Contudo, mais do que adaptar, preferiu incluir essa perspectiva e promov-la a parte integrante, criando aquilo a que podemos chamar uma fsica pitagrica de Plato. Ao tornar teolgica a sua filosofia natural, garante a possibilidade de cumprir o principal objectivo do dilogo: dar a conhecer o processo de constituio do mundo; ou seja, revelar aos homens aquilo que se situa na esfera do divino. Ora, para estabelecer esse contacto entre divino e humano, seria imprescindvel esta vertente teolgica, e Plato viu nos ensinamentos do pitagorismo essa preciosa ferramenta, pois combinavam o saber fsico com a atitude teolgica orientaes verdadeiramente imprescindveis para o caso particular deste dilogo.

Essa vertente religiosa que determinar a orientao teolgica dever ser procurada um pouco para alm de Pitgoras: nos Mistrios rficos. Como

11 Refere-se, muito provavelmente, a Imblico (apud Lernould, 2000, p. 65), cuja Sobre a Vida Pitagrica tem por principal finalidade demonstrar a subordinao das doutrinas de Plato a Pitgoras.

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observa o prprio Proclo, na Teologia Platnica (1.25.26), Pitgoras recebeu os rituais de Aglaofemo, um iniciado de Orfeu, e Plato recebeu de Pitgoras os escritos que encerravam este tipo de conhecimento. Ainda que esta passagem de testemunho no tenha sido assim to linear, mas valha sobretudo numa dimenso simblica, por intermdio de Pitgoras que Plato tem acesso s ferramentas tericas rficas que lhe permitiro sondar os procedimentos divinos pelos quais o mundo e o Homem foram constitudos e partir do que tem diante dos olhos para chegar regressivamente sua criao.

Essas ferramentas so, fundamentalmente, a matemtica sobretudo as suas vertentes geomtrica e estereomtrica , a msica e a astronomia que, utilizadas em conjunto, permitiro uma observao do mundo fenomnico de que se podero retirar concluses com valor filosfico. , por exemplo, atravs da estereometria que Timeu consegue deduzir as formas dos elementos, atribuindo a cada um a figura correspondente de acordo com as suas propriedades cinticas: o cubo terra, pois , de entre os elementos, o que se move mais lentamente (55d); o icosaedro gua (55b, 56a); o octaedro ao ar (55a, 56a); a pirmide ao fogo (55d). De forma anloga, a deduo destas figuras depende tambm de um raciocnio matemtico: atravs da combinao dos tringulos-base (rectngulo, equiltero e issceles) mediada pela proporo, a geometria em plano passa a estereometria tridimensional (54d-sqq), dando assim corpo s formas representveis mentalmente e de forma abstracta. Em suma, ao apoiar-se nos ramos matemticos

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da aritmtica e da geometria, a mensagem teolgica pode tomar corpo e tornar-se uma fsica filosfica, pois permite representar aquilo que no pode ser alcanado pelos olhos; trata-se de uma matemtica teolgica.

Alm disso, atravs da harmonia proporcionada pela msica que se pode conceber a dos movimentos dos corpos celestes, na medida em que ambas obedecem a um mesmo princpio cintico:

na segunda [rbita ps] o Sol, por cima da Terra; a Estrela da Manh e o astro que dizem ser consagrado a Hermes na rota circular que tem a mesma velocidade que o Sol, ainda que lhes tenha cabido em sorte um mpeto contrrio ao dele. Da decorre que o Sol e a Estrela da Manh (o astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcanados mutuamente. (38d1-6).

(...)

De facto, os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais rpidos chegaram primeiro e, quando esses movimentos esto a cessar e atingem a constncia, chocam com os ltimos e pem-nos em movimento. (80a6-80b1)

Os astros, tal como os sons, circulam juntos a diferentes distncias uns dos outros os astros em espao, os sons em tempo, mas de acordo com uma mesma relao numrica que determina a harmonia do conjunto; a este raciocnio que, segundo Aristteles (Sobre o Cu, 291a10-11), os Pitagricos chamavam a msica das esferas, cuja adaptao evidente no sistema

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que prope o Timeu. Neste dilogo, Plato parece recuperar a identificao que Scrates faz na Repblica (531a-c) entre msica e astronomia. Ao distinguir os msicos que se dedicam demanda do intervalo mnimo mensurvel, condenveis por se aterem em demasia percepo sensvel do som, daqueles que procuram os nmeros nos acordes que escutam, diz que so estes ltimos que se aparentam aos que estudam os astros. Esta teoria da msica que Scrates elogia a pitagrica.

2. O discurso de TimeuComo dissemos, a interveno de Timeu versa

sobre o processo de criao do mundo e de todas as coisas que o habitam: Homem, restantes animais, deuses e at as plantas. Trata-se, pois, de uma tentativa de estabelecer um modelo explicativo do mundo assente em axiomas e pressupostos slidos: uma cosmologia. Mas desta prerrogativa inicial nasce uma inevitvel aporia: como produzir uma cosmologia a partir da observao do mundo do devir, o reino da mudana ininterrupta, sendo, por isso, impassvel de constituir objecto de verdadeiro saber? Em ltima anlise, como produzir saber a partir do sensvel se s as Ideias (inteligveis) podem ser objecto de saber (cf. Santos, 2003, pp. 13-15)?

Para responder a estas questes nucleares, Plato recorre a um artifcio deveras surpreendente: pautar o discurso pela verosimilhana, mais do que pela certeza, e assim apresentar uma proposta plausvel em vez de um tratado dogmtico e vinculativo; o que, de facto,

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tambm aproxima o projecto da tradio cosmognica. Ao mesmo tempo, a validade desta proposta depender do estabelecimento prvio de axiomas estanques e estveis que forneam um ponto de partida para a narrativa especulativa.

2.1 Pressupostos iniciaisNa minha opinio, temos primeiro que distinguir o seguinte: o que aquilo que sempre [to on aei] e no devm, e o que aquilo que devm [to gignomenon], sem nunca ser? Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxlio da razo, pois imutvel. Ao invs, o segundo objecto da opinio acompanhada da irracionalidade dos sentidos e, porque devm e se corrompe, no pode ser nunca. (27d5-28a4).

fulcral que, antes de tudo, Timeu distinga aquilo que sempre daquilo que est sempre sujeito ao devir e, por isso, nunca chega a ser; trata-se da clebre diferena entre o que pertence ao inteligvel e o que diz respeito ao sensvel um dos pilares do platonismo. A esta distino surge associada uma outra, de carcter epistemolgico, que tem que ver com a forma como cada um desses nveis ontolgicos pode ser apreendido: se o que cabe ao pensamento e razo, j o que pertence ao nvel do devir destina-se apenas a ser captado pelos sentidos. Toda esta argumentao em torno da distino entre o sensvel e o inteligvel faria adivinhar a clebre oposio platnica entre opinio (doxa) e saber (epistm), estando a primeira destinada ao que devm e a segunda ao que sempre; e, visto que o propsito do dilogo apresentar

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um discurso (logos) sobre o mundo, implicando por isso a obedincia verdade, teria que se situar no mbito do saber. No entanto, ao comear a descrever os atributos do objecto em estudo, Timeu d-se conta de que o mundo pertence ordem do devir, pois apresenta todas as caractersticas do sensvel: visvel (oratos: 28b7), tangvel (aptos: 28b7) e tem corpo (sma echn: 28b7). Ora, se o mundo deveniente, como produzir um discurso verdadeiro e estvel sobre ele? da resposta a esta pergunta que depende a validade de toda a proposta cosmolgica.

Sabendo, ento, que o mundo pertence ordem do devir, o prximo passo ser averiguar qual a sua causa; pois, de acordo com o preceito platnico, todas as coisas devenientes so geradas por uma causa12. No caso do mundo, a sua causa foi uma divindade (o demiurgo) que o fabricou por meio de um acto intelectivo de contemplao do arqutipo imutvel (29a). No querendo antecipar as questes que esta personagem levanta e que sero analisadas posteriormente, digamos apenas que ser o centro das atenes do discurso do protagonista. Perante a falibilidade da descrio das coisas sensveis, tentar reconstituir a aco demirgica a partir da observao directa do que tem perante os olhos a obra dessa divindade. Ou seja, se o mundo consiste numa entidade fabricada a partir de um arqutipo, significa que esse mesmo mundo j por si uma representao; portanto, o mtodo para descrever

12 Cf. Fdon 98c, 99b, Filebo 27b, Leis 891e, Timeu 38d, 44c, 46d-e, 57e, 64d, 68e-69a, 87e.

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a forma como foi fabricado poder tambm ele ser uma representao, sem que com isso ponha em causa a sua validade, pois, como diz Timeu:

Deste modo, no que diz respeito a uma imagem e ao seu arqutipo, temos que distinguir o seguinte: os discursos explicam aquilo que seu congnere (29b3-5).

Como muito bem nota Johansen (2004, p. 50), aquilo que determina o estatuto do discurso o facto de esse discurso ser congnere ao seu assunto; ou seja, um discurso sobre uma representao ter tambm ele prprio um teor representativo. Ao mesmo tempo ele constitui o instrumento que nos permite situar o mbito do contedo a que se refere, visto que transparece a sua natureza; nesta medida que os discursos explicam. E Timeu sublinha esta relao ao qualificar com adjectivos semanticamente muito prximos ambos referente e referido: diz ele que o que estvel e fixo (monimou kai bebaiou: 29b6) interpretado por discursos estveis e invariveis (monimous kai ametapttous: 29b7), ao passo que aqueles que interpretam algo produzido como representao (apeikasthentos: 29c1), por serem eles prprios tambm representaes (29c2), estabelecem com aquilo que representam uma relao de verosimilhana e analogia (29c2).

2.2 Intelecto e NecessidadeNum determinado momento da narrativa

(48e-49a), Timeu interrompe a descrio da criao do

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mundo para esclarecer que tudo quanto referira at a tinha sido fabricado pelo Intelecto. Era, ento, altura de justapor ao discurso o que havia sido gerado pela Necessidade.

Estes dois conceitos, muito embora sejam decisivos no processo cosmolgico, no so, curiosamente, objecto de uma reflexo metanarrativa, como acontece, por exemplo, com o demiurgo. Apenas dito que a Necessidade uma causa errante (to ts planmens aitias: 48c7) que foi persuadida pelo Intelecto a orientar para o melhor a maioria das coisas devenientes (48a). Esta informao, alm de no esclarecer a natureza daquelas entidades, implica apenas que a cedncia da Necessidade foi apenas parcial (a maioria das coisas). Mas vejamos, primeiro que tudo, de que modo poderemos entender em que consistem.

Quanto ao Intelecto, bastante convidativo faz-lo coincidir com o demiurgo, pois Timeu sublinha que o que acaba de descrever fora fabricado por este agente; se, no princpio, dito que o demiurgo a causa que originou o mundo, a identificao bvia. Na verdade, nas Leis, Plato define-o como responsvel por governar tudo (875c-d) e por ter ordenado o mundo (966e); manifesta-se no movimento dos corpos celestes, os quais os homens devem observar e seguir como paradigma (897d-898a). Transpondo esta descrio para o nosso contexto, a identificao do Intelecto com o demiurgo parece fazer sentido; no entanto, carece de explicao o atributo de

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governar tudo, pois a divindade criadora retira-se logo aps ter concludo a sua tarefa tanto que entrega parte da sua obra (a parte mortal da alma humana, por exemplo) s divindades geradas por si. Por esse motivo, este Intelecto poder, por outro lado, coincidir com a alma do mundo, como pensa Cherniss (1944, pp. 407-411, 425, 606-607). Ainda assim, essa opo tambm no deixa de levantar problemas, j que, como diz Brisson (1998, p. 84), o demiurgo s pode ser independente, pois constitui a causa de todas as coisas do mundo, razo pela qual no poder estar includo naquilo que foi criado por si prprio. Independentemente de coincidir ou no com o demiurgo, o Intelecto corresponde a um princpio de racionalidade teleolgica, pois visa, acima de tudo, orientar tudo para o melhor; no fundo, a vertente inteligente da criao.

Por oposio, a Necessidade ser algo cujo funcionamento se ope ao do Intelecto: primeiro, Timeu chama-lhe causa errante, isto , sem finalidade (no teleolgica); segundo, se a Necessidade cede a uma persuaso racional (peithous emphronos: 48a), evidente que a sua natureza ser de algum modo irracional. Mas, retomando a questo deixada em suspenso acerca da cedncia unicamente parcial da Necessidade, ela ser mais facilmente esclarecida se tomarmos em considerao o seguinte:

Tendo misturado estas paixes juntamente com a sensao irracional e com o desejo amoroso que tudo empreende,

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constituram a espcie mortal submetida Necessidade (69d3-6).

A consequncia de a Necessidade no ter cedido seno parcialmente implica que a prpria estrutura humana tenha sido tambm parcialmente composta por ela. Ao participar no processo de criao, o produto que dela resulta (o mundo e o Homem) partilhar da sua caracterstica mais ntima: a irracionalidade traduzida nas partes mortais da alma, no caso do Homem; no prprio Homem, no caso do mundo. Corresponde, no fundo, vertente mecnica e corprea da criao que, como tal, no dispe de racionalidade nem finalidade. Como oportunamente sugere Santos (2003, p. 28 n. 32), a noo de causa errante pode perfeitamente ser equacionada com a passagem do Fdon (98c-99b) onde Scrates esclarece que no so os seus msculos e tendes a causa de estar na priso, mas sim o Bem; isto , a corporalidade mecnica no pode constituir a causa primeira das coisas, porquanto est desprovida de qualquer razo.

No fundo, a distino entre estas duas entidades pode ser entendida luz de um modelo dualista: o Intelecto representa a vertente teleolgica e inteligente; e a Necessidade corresponde corprea e irracional. Sabendo que actuam como princpios de criao, na medida em que determinam as duas faces do devir, podem com justeza ser entendidos como condies de possibilidade do dualismo cosmolgico.

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2.3 O demiurgoLogo no incio da narrativa, aps a anuncia

de Scrates, Timeu comea por definir o agente que constituiu o mundo como um deus (theos: 31a2) bom (agathos: 29e1) e absolutamente livre de inveja (peri oudenos oudepote phthonos: 29e2), a melhor das causas (o daristos tn aitin: 29a6); da que o que produza seja o mais belo (to kalliston: 30a7). Como evidente, o estatuto divino do demiurgo no coincide de forma alguma com o das divindades tradicionais do Olimpo grego. Ao contrrio destes, que protagonizam episdios de adultrio (Afrodite e Ares), guerras (a revolta dos Gigantes) e manifestam atributos opostos bondade como a ganncia (de Cronos e, posteriormente, de Zeus), bem como interferem em certa medida com a aco quotidiana dos homens os Poemas Homricos so bom exemplo disso , o demiurgo todo ele bom e, aps ter criado a sua obra, retira-se, no interferindo mais. , pois, um agente divino que se situa num patamar superior ao das outras divindades tradicionais. Isso bastante evidente tendo em conta os dois tipos de demiurgia que a narrativa apresenta: a primeira, que diz respeito ao mundo e parte divina do Homem, da autoria do demiurgo; j a segunda, que trata das coisas mortais (a parte mortal da alma do Homem, inclusive), foi delegada s divindades criadas por si.

Em sentido inverso, o demiurgo aparece caracterizado no texto mais como um homem do que como um deus. Chega a ter emoes: quando se apercebe de que a sua obra estava a tomar o rumo certo, j que

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representava com bastante verosimilhana o arqutipo, rejubilou e ficou satisfeito (37c7). Alm disso, tambm a sua metodologia descrita luz de critrios humanos, pois descobre por meio de um raciocnio (logismos: 30b1) e obedece a uma estrutura matemtica (47b, 87c).

Como construtor, o demiurgo empreende uma actividade mimtica. Ao criar o mundo sensvel por meio da imitao do arqutipo, assemelha-se em grande medida a um artfice, que, antes de produzir alguma coisa, tem em conta uma forma da qual assimilar as propriedades que far corresponder no material que trabalha. Assim, pe os olhos nas coisas que se mantm sempre iguais (as Ideias). Partindo deste conhecimento prvio, age sobre o material de modo a dot-lo de ordem, pois que antes estava desordenado (30a3-5).

Levando mais longe a caracterizao da obra do demiurgo como uma actividade mimtica, tenhamos em conta, antes de mais, que esta figura, em termos muito gerais, um fabricador. Este seu carcter , desde logo, confessado por Timeu no incio da sua narrativa, pois a palavra que utiliza para o definir , muito simplesmente, poits (28c3). Embora fosse demasiado forado traduzi-la por poeta, em virtude das contradies que essa opo levantaria, no de todo inconcebvel que, ainda assim, procuremos nele alguns atributos que o possam caracterizar como tal e a sua actividade como algo semelhante criao potica. J foi dito que ela mimtica, o que a situa num mbito muito prximo do potico; vejamos em que medida podemos aproxim-la ainda mais, convocando para o efeito a forma como

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Plato descreve a actividade dos poetas e comparando-a com a forma como, no Timeu, caracteriza o processo criativo levado a cabo pelo demiurgo.

Primeiro que tudo, exactamente a mesma palavra poits que usada para definir quer o fabricador do mundo neste dilogo (28c3), quer os poetas, um pouco por todo o corpus platnico13; mas as semelhanas no se resumem a este pormenor vocabular. Na Repblica, numa altura em que se fala sobre o papel dos poetas na educao, a sua actividade (e tambm o produto dessa actividade) descrita como uma fabricao (plass: 377b6), criao (poie: 377c1, 379a3) e composio (syntithmi: 377d6). No Timeu, tambm a aco da divindade descrita com estes trs verbos14.

Enquanto artfice, o demiurgo est ligado s mais diversas artes, de acordo com o que Plato estabelecera na Repblica acerca da terceira classe de cidados: como ferreiro, quando fabrica a alma do mundo (35a-40d) e lhe d a forma de uma esfera armilar; como pintor, desenha os animais no mundo (55c5-6), isto , os corpos celestes associados aos animais do Zodaco; tambm um modelador de cera (74c6); como oleiro, para originar a massa ssea do corpo humano: primeiro, peneira a terra (73e1), em seguida mistura-a com o elemento lquido a medula humedecida (73e2) e, finalmente, d-lhe a forma num torno (73e7); como tecelo, quando fabrica os sistemas respiratrio e circulatrio num entranado (78c1) semelhante a uma nassa (78b4); como agricultor,

13 E.g. Grgias 485d, on 534b, Leis 935e, Repblica 379a.14 plass: 42d, 73c, 74a, 78c; poie: 31b, 31c, 34b, 35b, 36c,

37d, 38c, 45b, 71d, 76c, 91a; syntithmi: 33d, 69d, 72e.

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ao semear (41e4), implantar (42a3) e enraizar (73b4) as almas nos corpos ou ainda, quando a medula comparada a um solo arvel (73c7) que deve receber a semente (73c7).

Contudo, se no caso do artfice convencional o material que trabalha bastante bvio, no que trata ao demiurgo essa questo bastante mais delicada. dito que a sua actividade consiste em contemplar o arqutipo para trabalhar o material de modo a dot-lo de ordem, ele que antes estava desordenado (30a3-5), mas no especificada a natureza desse material. Ora, se a sua funo ordenar, organizar e impor medida e proporo onde as no havia (69b), por meio da geometria e da matemtica (53b-c), a matria-prima de que parte ser obviamente o substrato pr-csmico que existia no caos anterior demiurgia. Vejamos o exemplo dos elementos:

Na verdade, antes de isto acontecer, todos os elementos estavam privados de proporo e de medida; na altura em que foi empreendida a organizao do universo, primeiro o fogo, depois a gua, a terra e o ar, ainda que contivessem certos indcios de como so, estavam exactamente num estado em que se espera que esteja tudo aquilo de que um deus est ausente. A partir deste modo e desta condio, comearam a ser configurados atravs de formas e de nmeros (53a7-b5).

O trabalho produtivo no consiste numa criao ex nihilo, porquanto modela um material pr-existente; tem antes que ver com uma configurao de acordo com uma matriz (a matemtica) do substrato pr-csmico.

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Ao agir como ordenador/organizador, assemelha-se bastante a um administrador ou, em ltima anlise, a um poltico, se a sua tarefa pretende impor a ordem onde ela no existia; metaforicamente, transmuta a anarquia do caos em sociedade csmica. A este respeito, a prpria palavra dmiourgos confirma essa orientao semntica, pois, noutros contextos, pode significar, precisamente, magistrado15. Deste modo, quando Timeu lhe chama criador e pai do mundo (28c3-4), devemos entender esses eptetos, em primeiro lugar, luz do carcter mimtico da demiurgia, e, por outro lado, de acordo com esta funo ordenadora; ou seja, ser pai como educador e no como princpio de gerao. Tambm como pai, neste sentido de educador, o demiurgo , para os homens, um exemplo a seguir, tal como Plato diz no Teeteto (176b) acerca da necessidade de o Homem se tornar o mais semelhante possvel divindade; ele o arqutipo a que o filsofo deve aspirar.

2.4 O terceiro nvel ontolgicoNo momento em que acaba de descrever as obras

do Intelecto e passa s da Necessidade (48a), Timeu sente-se obrigado a reiniciar a narrativa e a desfazer a dicotomia ontolgica inicial ser-devir, acrescentando a estes dois tipos (dyo eid: 48e3) aquilo a que chama um terceiro de outra espcie (triton allo genos: 48e4).

Ao contrrio do que acontece com os anteriores, o modo de referir este terceiro tipo carece de clareza

15 E.g. Aristteles Poltica. 1275b29, Polbio 23.5.16, Tucdides 5.47. Cf. Brisson (1998, p. 50).

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e estabilidade epistemolgica, porquanto acessvel por meio de um certo raciocnio bastardo (logism tini noth: 52b2) que carece de credibilidade (mogis piston: 52b2). Ora, ser inevitvel o este carcter hbrido da explicao se aplique tambm ao assunto a que se reporta; em trs ocasies distintas, Timeu caracteriza-o como um tipo difcil e obscuro (chalepon kai amydron: 49a3), invisvel e amorfo (anoraton kai amorphon: 51a7) que participa do inteligvel de um modo imperscrutvel (metalambanon aportata tou notou: 51a7-b1). Deixando de parte os problemas de interpretao que esta descrio levanta, a questo que ocorre levantar : como formular um discurso que se reporta a algo imperscrutvel?

A dificuldade desde logo anunciada pela incapacidade de o objectivar na linguagem. Isso evidente tanto nas palavras do protagonista, como nas interpretaes produzidas ao longo dos sculos; que o termo chra apenas uma das designaes que recebe no texto: aquela que a tradio fixou. Alm desta, que vertemos por lugar (52a8), o terceiro tipo tambm chamado receptculo (hypodoch: 49a6), suporte de impresso (ekmageion: 50c2), me (mtr: 50d3, 51a5, 88d7), aquilo em que (to en : 49e7, 50d1, 50d6), localizao (edra: 52b1) e local (topos: 52a6, 52b4); mais indirectamente, comparvel a uma me (proseikasai mtri: 50d2-3) e a uma ama (oion tithnn: 49a6). Todas elas, que, de um modo geral, se enquadram numa descrio da chra como suporte de alguma coisa, parecem conferir-lhe uma concepo espacial; contudo,

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a flutuao de termos como lugar, local e aquilo em que denuncia a impossibilidade de apontar onde exactamente.

A chra evidencia caractersticas do inteligvel e do sensvel: invisvel e amorfa, ao mesmo tempo que tangvel, mas apenas pensvel por um raciocnio bastardo. A esta constituio ontolgica hbrida acresce o facto de, em termos espaciais, ser caracterizada de modo ambguo: extenso ou espao como condio de localizao (providencia uma localizao a tudo quanto pertence ao devir: 52b6) e ao mesmo tempo o prprio local ocupado por um determinado corpo (a natureza que recebe todos os corpos: 50b6), isto , a realizao daquela extenso (apud Mesquita, 2009, p. 91). A impossibilidade de associ-la em definitivo a uma das categorias ontolgicas e a uma das acepes espaciais, por partilhar caractersticas que se aplicam a ambos os membros da equao, convida-nos a considerar que se possa situar no plano da abstraco. Isto , se no pertence ao inteligvel nem ao sensvel, bem como no admite por inteiro o local de contacto entre os dois nveis, resta considerar esse lugar uma abstraco do espao de particularizao: no seno o particular pensado eideticamente (Mesquita, 1995, p. 146). No entanto, se prescindirmos daquela distino, aceitando para tal a fuso entre espao como extenso e espao como concretizao pontual, e pegarmos no problema a partir das suas condies discursivas, esta ideia de lugar de participao abstrado pode tornar-se ligeiramente mais clara.

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A descrio no se processa de modo inequvoco nem sequer toma corpo num discurso minimamente demonstrativo que pretenda tornar transparente a natureza da chra. Em vez disso, comparada a uma me ou a uma ama, equivalendo a forma como interage com o arqutipo e com os particulares a um processo de impresso de que ela o suporte:

(...) recebe sempre tudo, e nunca em circunstncia alguma assume uma forma que seja semelhante a algo que nela entra; jaz por natureza como um suporte de impresso para todas as coisas, sendo alterada e moldada pelo que l entra, e, por tal motivo, parece ora uma forma, ora outra; mas o que nela entra e dela sai so sempre imitaes do que sempre, impressas nela de um modo misterioso e admirvel (...) (50b8-c6).

Na medida em que se afigura como nica alternativa possvel, o recurso ao metafrico parece assim agravar o carcter difcil e obscuro tanto do assunto como da sua explicao. Mas se aceitarmos a premissa de que um discurso e o seu objecto partilham da mesma natureza, ser de esperar que a natureza da prpria chra h-de tambm ser metafrica.

Tomada na sua estrutura mais bsica, a metfora consiste na coligao de dois termos atravs de um elemento intermdio que permite uma transferncia de sentido bidireccional; isto , as duas extremidades do aparelho conceptual esto co-implicadas porquanto unidas pelo terceiro termo, aquele em que se consubstancia a relao. De modo anlogo, a chra

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representar o ponto intermdio de coligao entre o arqutipo e os particulares; ou seja, o lugar em que se consuma o processo de participao. Tambm nesta perspectiva parece inscrever-se o carcter mimtico da chra: tudo o que nela entra e dela sai so imitaes (mimmata) do que sempre. Por um lado, no o prprio arqutipo que entra no lugar de participao, mas apenas as suas imitaes; por outro, o particular e a prpria particularizao resultam como imitaes do prprio arqutipo mediadas justamente pela chra16.

A exposio deste terceiro tipo insiste nas constantes transformaes a que todas as coisas esto sujeitas e que erradamente designamos por isto (touto: 49d5) quando deveramos optar por o que em determinadas circunstncias est assim (to toiouton ekastote: 49d5). Por exemplo, aplicamos o termo gua, independentemente de aquilo que referimos estar em estado lquido, slido ou gasoso. Conclui-se que a chra pode ser isto, ao passo que as coisas que nela entram e dela saem so apenas que est assim (49d-e). O recurso linguagem como repositrio metafrico no nos parece acidental nem inconsequente, na medida em que ajuda a esclarecer a distino ontolgica fundamental entre as duas dimenses: enquanto isto, a (e s a) chra tem um sentido substantival e, por conseguinte, uma natureza substancial; j os particulares, enquanto aquilo que est assim, esto limitados ao mbito adjectival e no podem ser mais do que qualificativos

16 Para uma discusso mais detalhada do problema, vide Mesquita, 1995, pp. 132-133.

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circunstanciais. Esta ontologia qualitativa do mundo do devir atribui aos particulares um estatuto de meras entidades relacionais (apud Ferrari, 2007, p. 14) e, como tal, diametralmente opostos da substancialidade do arqutipo. Por conseguinte, a relao entre ambos os nveis, isto , a participao, no poder ser reduzida a um decalque biunvoco caracterstico da estrutura sujeito-predicado. A nosso ver, ela s pode ser mimtica.

Alm desta linha de interpretao espacial da chra, existe uma outra a que podemos chamar material. Decorre da interpretao de Aristteles que, numa passagem da Fsica (4.2, 209b11-16) em que comenta esta seco do Timeu, atribui a Plato a identificao entre espao (chra) e matria (hyl). Apesar de convidativa, enferma de dois problemas fundamentais Em primeiro lugar, esta categoria absolutamente estranha ao sistema platnico; tanto assim que o termo hyl s comea a ter este sentido filosfico justamente a partir de Aristteles. Em segundo, e no menos importante, o facto de aquela passagem da Fsica assentar em grande parte nas chamadas doutrinas no escritas um grupo de postulados que Plato ter sustentado oralmente, mas de que no deixou registo nos dilogos. Ora, ainda que a sua reconstituio seja possvel e at verosmil (vide Ferrari, 2007, pp. 22-23), esta linha de interpretao parece-nos exclusivamente vocacionada para esclarecer o Plato hipottico e no o dos dilogos. O nosso propsito esgota-se nesta segunda orientao.

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2.5 O estatuto do discursoPortanto, Scrates, se, no que diz respeito a variadssimas questes sobre os deuses e sobre a gerao do universo, no formos capazes de propor explicaes perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas, no te admires. Mas se providenciarmos discursos verosmeis que no sejam inferiores a nenhum outro, foroso que fiquemos satisfeitos, tendo em mente que eu, que discurso, e vs, os juzes, somos de natureza humana, de tal forma que, em relao a estes assuntos, apropriado aceitarmos uma narrativa verosmil e no procurar nada alm disso. (29c4-29d3).

Esta curiosa afirmao do narrador faz referncia a duas questes de extrema importncia para o entendimento do tipo de mensagem que o dilogo pretende fazer passar e tambm da forma como o faz; o facto de toda ela ser aceite por Scrates, sem quaisquer reservas, coloca-a num plano de acrescida importncia. Em primeiro lugar, Timeu refere que tanto ele como quem o ouve so apenas seres humanos e, por isso, nem lhe permitido a ele aflorar determinadas questes nem lhes seria possvel a eles compreend-las. Em segundo lugar, e mais importante, ao apontar o mbito do verosmil como nica alternativa, distingue muito claramente dois nveis discursivos: o dos discursos verosmeis (29c8: [logous] eikotas) e o da narrativa verosmil (29d2: eikota mython); desta concorrncia ressalta, obviamente, a partilha do termo eikos, que vertemos por verosmil, mas tambm a associao deste termo a mythos, num caso, e a logos, noutro caso.

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Alm deste preldio, a expresso eikos mythos aparece mais duas vezes no texto. Na primeira, insere-se no contexto da descrio do processo de formao das cores (67c-68d); aps dar alguns exemplos do modo como se misturam, Timeu diz que, para os outros casos que no referiu, basta seguir o mesmo raciocnio de modo a que fique salvaguardada a narrativa verosmil (68d). Na segunda ocorrncia, as circunstncias so muito semelhantes: ao abordar os vrios compostos que os elementos primrios podem formar, diz que para os casos que no referiu deve ser aplicada a mesma metodologia, desde que seja investigada a modalidade da narrativa verosmil (59c). O estatuto de modalidade (idea) discursiva que reconhece ao eikos mythos coloca a narrativa como ponto de partida para a investigao; so os dados nela implicados que devem ser discutidos. Ao dizer que essa narrativa uma modalidade, Timeu parece dar a entender que haver uma outra, pois, se essa que deve ser investigada, ento a forma como essa investigao se formaliza dever obedecer a uma modalidade diferente: o eikos logos.

Ao longo do seu discurso, Timeu por vezes suspende o papel de narrador de uma aco e assume o de crtico daquilo que ele prprio disse, comentando, analisando e explicando alguns pormenores. Enquanto descreve a transio dos elementos como entidades amorfas para o estatuto de corpos, recorre s relaes matemticas e geomtricas para esclarecer o modelo pelo qual o demiurgo se guiou e, assim, dar a conhecer o modo

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como atingiram a proporo (53b-54a). este um dos casos mais evidentes em que deixa de ser um narrador e passa a ser um demonstrador de uma teoria. bastante evidente, igualmente do ponto de vista estilstico, a insistncia no teor explicativo e tambm especulativo das suas observaes: tenta esclarecer (dloun: 53c1) e afirma, na primeira pessoa, (leg: 47b2), ou, por outra, engloba tambm os ouvintes nessa misso, ao preferir a primeira pessoa do plural (47b1, 47b5, 53e5). Ainda assim, confessa uma certa falibilidade em relao quilo que diz (53e3) por ser fruto da sua opinio (47a). No entanto, ao reportar-se narrativa verosmil, que por sua vez se refere ao mundo do sensvel, qual ser a natureza das suas observaes?

Logo aps a anuncia de Scrates ao mbito verosmil da sua narrativa, Timeu comea por descrever, em linhas gerais, o processo de fabricao do mundo, durante o qual diz que o demiurgo estabeleceu o intelecto na alma do mundo e, por sua vez, colocou a alma no corpo (30b). Daqui retira a primeira concluso: o mundo um ser-vivo com alma e pensamento (30c); mas faz questo de referir que esta deduo conforme a um discurso verosmil (kata logon ton eikota: 30b7). De igual modo, numa das suas ltimas concluses, aps ter discorrido desde o mundo at gerao do Homem, o mbito verosmil das observaes narrativa mantm-se (90e8), quando relembra o que dissera anteriormente sobre a degenerescncia em mulheres dos homens que levam uma vida injusta (90e, 42b).

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Quando trata de abordar a terceira forma de ser a chra , mantm essa atitude especulativa, embora admita reservas acrescidas impostas pela dificuldade do assunto. Enquanto que na descrio da aco demirgica apenas um narrador que, por isso, fala na terceira pessoa, assumindo somente o papel de intermedirio entre aco e discurso, neste caso ele quem protagoniza. Nesta altura em que deve passar apresentao de algo to complicado de conceber e formular como aquele terceiro nvel ontolgico, tentar ser ainda mais verosmil (peirasomai tton eikota: 48d2-3), pois, neste caso, as suas observaes partiro de uma exposio estranha e inusitada (ex atopou kai athous digses: 48d5-6). O objectivo , portanto, chegar a uma concluso apresentar um resultado a partir do que diz a narrativa. Porm, neste caso, o eikos mythos a que as suas observaes se reportaro tem um carcter diferente, mais complexo e imbricado, pois tambm o objecto a que se refere dessa natureza; da que o discurso que produza acerca dessa narrativa seja tambm ele inusitado (athei: 53c1).

Ao longo das suas intervenes acerca da narrativa verosmil, Timeu demonstra constantemente uma preocupao em fixar um ponto de vista, pois tenta fornecer uma exposio (digsis: 48d6), uma concluso (dogma: 48d6), e aspira a apontar a causa (aitiateon: 57c9). No entanto, tem conscincia de que pode estar errado (53e3) e, por isso, admite a existncia de outra opinio divergente (55d6). Pelo facto de no poder ser definitivamente validado, o seu juzo situa-se

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no campo do hipottico e do especulativo, porquanto resultante da explorao de possibilidades, aproximveis ou provisrias, que apenas garantem coerncia e plausibilidade. Ainda assim, no carece de validade filosfica, porque acima de tudo pretende representar o mundo pelo recurso a ferramentas fiveis como a matemtica e a geometria.

Torna-se, ento, evidente que as duas modalidades discursivas, eikos mythos e eikos logos, desempenham papis bastante distintos: o primeiro tem um carcter narrativo, expositivo, no-analtico e no aspira a uma concluso; o segundo pretende partir do que resulta do primeiro e analis-lo e, por outro lado, estabelecer tambm os pressupostos sob os quais se desenrolar a exposio. Em ltima instncia, a prpria enunciao inicial dos dois nveis ontolgicos (ser e devir) e, posteriormente, a introduo do um terceiro , por si s, um logos, pois estabelec-los implica uma reflexo ulterior.

Resta ainda esclarecer a natureza (apenas) verosmil do texto em ambas as suas dimenses discursivas, pois que mythos e logos so sempre qualificados como eikos. Para tal, convm recuperar novamente o pressuposto onto-epistmico desde logo estabelecido no promio: os discursos so congneres daquilo que explicam. Visto que o mundo criado uma imagem (eikn), o discurso ou narrativa sobre ele ter necessariamente esta mesma natureza. Num primeiro nvel mimtico, o demiurgo imita um modelo de inteligibilidade externo (as Ideias) cujas propriedades enforma na matria pr-csmica.

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No outro, o discursivo, o filsofo que produz uma explicao atravs da observao esquemtica do real, isto , da imitao da ordem estabelecida pelo demiurgo. Ento, a manifestao discursiva da criao h-de ser tambm ela de carcter mimtico, isto , do mbito do verosmil, posto que o resultado (o mundo) igualmente de natureza mimtica: a soma dos particulares em processo, isto , o devir, consiste numa constante imitao do modelo inteligvel (as Ideias), cujo padro de racionalidade espelha o plano cosmolgico original e se desvela observao analtica do filsofo.

3. o discurso de crtias

O tema da narrativa de Crtias foi alvo de mltiplas interpretaes praticamente desde pouco tempo depois da morte de Plato at aos nossos dias. A abordagem famosa questo da Atlntida seduz no s acadmicos das mais vrias reas do saber, como tambm autores de fico. Como se torna impossvel circunscrever tudo quanto tenha sido feito a este respeito, bem como englobar todos os possveis vectores de anlise, tentaremos, de um modo to breve quanto genrico, tocar os pontos fundamentais do problema, insistindo sobretudo no estatuto que cabe a esta narrativa e, inevitavelmente, no mbito em que se inscreve.

Muito sucintamente, a interveno de Crtias resume-se descrio de dois mundos antagnicos: a Atenas primeva e a Atlntida; mais propriamente, trata do conflito, em sentido literal, que travaram entre si. Seria este o assunto principal do dilogo, segundo podemos

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deduzir a partir de alguns dados do texto, embora dele tenha sobrado apenas uma descrio inicial que termina abruptamente. O que restou desta diegese arquitectada pela dicotomia de dois mundos opostos comea por dar conta do territrio, da populao e da organizao social de uma Atenas situada num tempo primordial (9000 anos antes de Plato) e termina com um ensaio corogrfico mais desenvolvido sobre uma monumental ilha situada para alm das Colunas de Hracles (Estreito de Gibraltar), cujos habitantes, a dada altura, decidiram dominar os povos e cidades do Mediterrneo, incluindo Atenas. partida, estaramos inclinados a identificar este episdio com uma determinada guerra travada entre Atenas e um invasor que, mediada pela pena criativa de Plato, se situaria algures entre histria e mito; mas o problema bem mais complexo. que a ilha da Atlntida nunca foi localizada geograficamente e no existe qualquer vestgio histrico quer dela, quer dos seus habitantes.

Deste modo, podemos considerar abordar a narrativa sob uma de duas perspectivas: reconhecer-lhe um fundo histrico; ou consider-la uma fico forjada pelo prprio Plato. Alm destas duas hipteses, alguns autores consideram uma terceira que vinculam ao seu alcance alegrico. Em nosso entender, esta via no est no mesmo plano que as anteriores, na medida em que compatvel com ambas; constituir, pois, o segundo nvel de intencionalidade da narrativa, seja ela histrica ou ficcional.

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3.1 A historicidade da narrativa sobre a AtlntidaA hiptese histrica foi a primeira a ser ensaiada.

Segundo diz Proclo nos Comentrios ao Timeu de Plato, Crantor (o precursor dos comentrios aos dilogos de Plato) atribua ao discurso de Crtias o estatuto de histria pura (historia psil: 1.76.1). Decorrente deste arrojo hermenutico foi-se criando e consolidando a ideia de que a Atlntida existiria de facto em algum lugar. Sobretudo a partir dos Descobrimentos portugueses e espanhis dos sculos XV e XVI, surgiram variadssimas tentativas de identificar geograficamente o territrio. No entanto, o nico resultado que todas essas demandas (mais ou menos cientficas) obtiveram foi uma disparidade de opinies tal que tornou qualquer ponto do globo passvel de ser identificado com a ilha.

Especial ateno mereceu a hiptese Creta que, inicialmente, granjeou alguma credibilidade. No seguimento de exploraes arqueolgicas naquela zona, foi forjada uma teoria segundo a qual a civilizao referida no texto de Plato correspondia que habitava aquela ilha durante o Perodo Minico, a qual tinha sido destruda por uma violenta erupo do vulco de Thera (actual Santorini); no entanto, com base em novas investigaes arqueolgicas e geolgicas, essa hiptese acabou por ser refutada (vide Brisson, 2001, p. 318). Antes destas, as outras possibilidades at agora adiantadas so: o Continente Americano, a Sucia, os Mares do Sul (junto ao actual Peru), os arquiplagos dos Aores

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e da Madeira, entre outras17. Por conseguinte, a crena de que a civilizao representada no discurso de Crtias ter um referente histrico cada vez mais residual, no mbito da comunidade cientfica; na verdade, a grande maioria dos ttulos que tm sido publicados sobre a Atlntida, ou que, de algum modo a abordam, tomam como princpio a sua anistoricidade.

3.2 A narrativa sobre a Atlntida uma inveno de PlatoA segunda hiptese, de acordo com a qual toda

a narrativa foi integralmente inventada por Plato, aquela que teve menos aceitao durante a Antiguidade. Na verdade, restou apenas uma referncia que apontava neste sentido: na Geografia, Estrabo cita em duas ocasies (2.3.6; 13.1.36) a sentena o poeta que a forjou f-la desaparecer ; na primeira no explicita a sua autoria, e na segunda aponta Aristteles, o qual nunca refere a Atlntida em nenhum dos textos conservados18. Em segundo lugar, porque esta orientao no se compatibiliza com a inteno do narrador que insiste em classificar o seu discurso como histrico. Se o primeiro aspecto no permite concluir rigorosamente nada, pois apenas constata uma evidncia, j o segundo ser mais difcil de justificar.

17 Para uma descrio mais pormenorizada das possibilidades de localizao geogrfica da Atlntida, vide Azevedo (2009, pp. 102-105), Matti (2002, pp. 255-256) e Brisson (2001, pp. 314-319).

18 referido o Oceano Atlntico, mas apenas em textos considerados esprios (Sobre o Mundo 3, 392b20-393a16; Problemas [Fsicos] 26.52, 946a16-32).

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No breve resumo antecipado no Timeu, Crtias refere que aquilo que est prestes a contar absolutamente verdadeiro (pantapasi althous: 20d7); ou seja, o seu discurso histrico. Na verdade, a sua interveno deixa transparecer vrias caractersticas e preocupaes prprias de um historiador: o facto de descrever (geogrfica, social e politicamente) as duas foras antes de entrarem em combate, tal como faz Tucdides (1.89-sqq.); a necessidade de fundamentar a argumentao com evidncias19; o modo como o prprio Slon obtm as informaes no Egipto faz lembrar o mtodo de Herdoto20; ou mesmo o recurso a determinadas expresses formulares caractersticas do registo histrico21.

Todavia, a fonte que sustenta o relato no mnimo problemtica. Em virtude do tempo decorrido desde a poca a que Crtias se refere e do inevitvel desaparecimento dos homens que nela viveram, no sobraram, na Grcia, mais do que nomes isolados que os que viviam nas montanhas iletrados puseram aos seus descendentes (109b-c). Perante a inexistncia de testemunhos helnicos que dessem conta daquele episdio, a fundamentao da narrativa remonta ao Egipto, onde Slon recolheu os dados junto de sacerdotes locais. No entanto, a dita transmisso carece

19 O termo utilizado para evidncia (tekmrion) muitssimo recorrente nos escritos de Herdoto (2.13.1; 3.38.10; 7.238.4) e Tucdides (1.1.3; 2.39.2; 3.104.6).

20 E.g. 2.44, 53, 100.21 Por exemplo, megala kai thaumasta (grandes e admirveis

feitos) em 20e, uma expresso tipicamente historiogrfica (e.g. Herdoto 1.1.1; Diodoro Sculo 1.31.9; Dionsio de Halicarnasso 5.8.1).

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de validade histrica pelo facto de ser cronologicamente impossvel que Slon tenha estado no Egipto na poca do rei Amsis, como sugerido pelo texto (21e); razo pela qual o episdio deve ter sido manipulado por Plato (apud Leo, 2001, pp. 249, 275).

Assim, a inteno historicista do narrador torna-se extremamente difcil de compatibilizar com a evidente precariedade das fontes de que parte, bem como com a impossibilidade de, depois de mais de dois milnios de exegese, sequer se esboar uma teoria minimamente vlida que sustente esta posio. Alm disso, h outro pormenor que, partida, parece complicar ainda mais o esclarecimento de tal contradio. Quando, ainda no Timeu, Scrates elogia a inteno de Crtias oferecer um discurso do real (althinon logon: 26e4-5) e no uma narrativa forjada (m plasthenta mython: 26e4), parece subscrever o estatuto de histria pura. Contudo, esta aparente conivncia deve ser entendida luz do que o prprio dissera em relao cidade descrita no dia anterior, isto , o Estado arquetpico da Repblica (cf. Pina 2010, pp. 148-149):

Porventura querem ouvir agora o que diz respeito ao Estado que descrevemos e aos sentimentos que eu possa nutrir em relao a ele. Parecem-me ser semelhantes aos de algum a que, ao contemplar animais belos, representados em pinturas ou efectivamente vivos mas a descansar, sobrevm o desejo de os ver em movimento e a exercitar, como numa competio, alguma das capacidades que parecem ser prprias dos seus corpos. isso mesmo que eu sinto em relao cidade que descrevemos (19b-c).

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Isto , aquele jogo entre mythos e logos, narrativa e discurso, parece indiciar no uma oposio entre verdadeiro e falso, antes uma tentativa de transpr para o real e concreto (apud Azevedo, 2009, p. 96) algo que fora formulado em abstracto. No entanto, visto que esta questo entronca numa das possibilidades de interpretao a abordar posteriormente, deixemo-la, para j, em suspenso.

Abandonando ento os pontos de vista dos participantes do dilogo sobre a natureza do relato, e focando um pouco mais o que podemos deduzir por meio de algumas relaes intertextuais, verificamos que o texto de Plato evidencia a presena de muitas fontes a que no faz referncia directa. A diversidade desses materiais usados como ingredientes tal que facilmente poderemos estabelecer um conjunto de substratos inerentes ao discurso, os quais forosamente lhe vinculam um estatuto compsito e, ao mesmo tempo, o afastam da reclamada historicidade.

Por um lado, o texto ecoa, em diversas ocasies, vozes de alguns autores gregos, como nota Gill (1980, xii-xiii). Por exemplo, a incomensurvel fertilidade das terras da tica primeva que reduzia ao mnimo o trabalho agrcola (110e) relembra inevitavelmente a Idade do Ouro de Hesodo (Trabalhos e Dias, 109-126); ou o prprio nome Atlntida e a sua localizao para alm dos confins do mundo conhecido (isto , o Estreito de Gibraltar) que recupera a ilha da filha de Atlas referida na Odisseia (1.51-54). No domnio da histria, a presena de Herdoto tambm evidente:

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os anis que estruturam a principal cidade da Atlntida (113d-e) evocam a descrio do aparelho defensivo da cidade persa de Ecbtana (1.98); o modo como os canais da plancie daquela ilha estavam arquitectados (118c-e) traz memria a descrio da plancie mtica que constitua o centro da sia (3.117); a assembleia dos reis tem muitas semelhanas com um ritual caracterstico de uma monarquia egpcia (2.147-sqq.). Alm disso, encontramos tambm elementos da prpria cultura tica na construo da Atlntida, como bem observa Vidal-Naquet (1964, pp. 429-432): a diviso decimal do territrio (113e), os edifcios defensivos que fazem lembrar o Pireu (117d-f ) e at o prprio templo de Posdon muito semelhante ao Prtenon (116d-f ). Finalmente, so tambm sugestivas as semelhanas entre a esttua de Posdon que estava dentro do seu templo e a Esttua de Zeus em Olmpia22.

Por outro lado, h na narrativa de Crtias elementos pertencentes a outras culturas ou civilizaes, como Cartago, a Creta do Perodo Minico ou o prprio Egipto. No primeiro caso, os paralelos que possamos estabelecer so pontuais: os vorazes elefantes (114e), caractersticos daquela zona do Mediterrneo, e, por exemplo, os nomes Gadiro e Gadrica (114b) de origem semita23. O mesmo acontece com o segundo: o facto de ser uma grande potncia martima e sobretudo o culto do touro24. Mas, no terceiro caso, a questo de

22 Sobre esta relao, vide nota 68 traduo.23 Para um desenvolvimento mais pormenorizado desta questo,

vide Dusanic (1982, pp. 27-28).24 Apesar de no ser exclusivo de Creta, o culto do touro era

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outra ordem, pois tudo aponta para que este substrato represente o fundo histrico que deu origem narrativa. bastante provvel que o conflito entre a Atenas primeva e a Atlntida seja uma adaptao de uma batalha travada pelos Egpcios, no tempo de Ramss III, contra os chamados Povos do Mar. Esta designao muitssimo sugestiva sugere uma confederao de gentes oriundas de vrias ilhas do Mediterrneo que, unidas, tentaram atacar vrias zonas continentais, como o Norte da Palestina, a Sria e mesmo o Egipto. Neste pas, a vitria foi particularmente celebrada e, por isso, registada e tornada objecto de narrativas vrias que perduraram ao longo dos tempos; da que provavelmente Plato se tenha baseado neste episdio (apud Griffiths, 1985, pp. 13-14).

A recolha de todos estes elementos disponveis em textos e lugares conhecidos pelo autor parece assim indiciar um processo de representao do outro atravs dos olhos de um grego; uma geografia imaginria de um mundo tambm ele imaginrio e sobretudo imaginado, mas sempre a partir do repositrio cultural de que emerge o sujeito.

Tidas em conta estas evidncias, somos obrigados a confessar que a narrativa de Crtias tem um carcter marcadamente compsito. No entanto, no se trata apenas de uma mistura de dados histricos oriundos de contextos espcio-temporais bastante distintos como que um pastiche25 , dado que tambm comporta uma para os Atenienses uma caracterstica identitria desta ilha; veja-se, por exemplo, o mito de Teseu e Ariadne.

25 A expresso de Naddaf (1997, p. 190).

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forte componente potico-mitolgica. De um modo algo irnico, esta natureza est latente no prprio texto. Logo no incio do dilogo, Crtias faz questo de sublinhar que a linguagem em si imitao e representao (mimsin (...) kai apeikasian: 107b4-5). A advertncia preliminar indicia, antes de tudo, uma salvaguarda que o narrador pretende marcar; alm disso, aproxima inevitavelmente o seu relato do registo ficcional, logo anistrico.

Dito isto, a incompatibilidade entre o estatuto que o narrador atribui ao seu discurso e o estatuto que somos obrigados a reconhecer-lhe mantm-se inaltervel, se que no se acentuou ainda mais. No entanto, a soluo definitiva do problema encontra-se precisamente numa das intervenes metaliterrias destinadas a certificar o carcter real do discurso:

Quanto aos cidados e cidade que tu ontem nos descreveste como num mito, ponhamo-los aqui, transportando-os para a realidade (...) (26c8-26d1).

Esta fala de Crtias tem lugar precisamente quando se prepara para comear a descrio da guerra entre a Atlntida e Atenas; e a cidade a que se refere aquela que o resumo de Scrates abordara anteriormente: o arqutipo de Estado delineado na Repblica. Tal como naquele dilogo, a projeco terica da cidade formulada no mbito do mito (501e4), mas ao contrrio da Repblica, dilogo em que essa teorizao no posta em prtica, o Crtias pretende dar corpo ao que fora formulado em abstracto; isto , traz-lo para a realidade (epi talthes).

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Deste modo, em vez de verdadeiro como oposto de falso, o discurso de Crtias pretende ser concreto; ou melhor, concretizar o que fora teorizado. , alis, este o desgnio de Scrates quando diz que pretende ver em movimento a cidade e os cidados de que falavam, bem como ser neste sentido que devemos entender a sua preferncia por um discurso do real em vez de uma narrativa forjada. Deste modo, estaremos em condies de assegurar que o discurso de Crtias se trata de uma narrativa ficcional forjada pelo prprio Plato a partir de elementos diversos, quer (pseudo-)histricos, quer potico-mitolgicos.

Ainda assim, resta esclarecer o passo em que Crtias diz que o seu discurso absolutamente verdadeiro (pantapasi (...) althous: 20d7); ou seja, por que motivo Plato insiste em chamar verdadeira a uma narrativa que monta com elementos ficcionais? A esta questo responde Morgan de um modo to vlido quanto eficaz: o discurso de Crtias consiste numa dramatizao prtica da nobre mentira da Repblica26.

3.3 Leituras alegricasDeste modo entramos na primeira das possveis

leituras alegricas que o discurso de Crtias pode assumir: a narrativa sobre a guerra entre a Atlntida e

26 Vide Morgan (2000, pp. 263-265); cf. Pina (2010, pp. 155-156). Na Repblica (414b-sqq.), Plato equaciona a possibilidade de introduzir uma crena falsa na sociedade, desde que com isso se consiga fazer aumentar o afecto dos cidados para com a cidade. A esse tipo de narrativas chamou nobre mentira (pseudn gennaion: 414b8-9)

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a Atenas primeva tem como objectivo despertar nos Atenienses um maior afecto em relao sua cidade. Numa linha semelhante, Azevedo (2006, p. 295; 2009, p. 95) sugere que a Atlntida s faz sentido enquanto modelo distpico que contrasta com a Atenas primeva, esta um modelo de supremacia civilizacional e com o papel de guardi da Europa. So, portanto, duas leituras que enquadram a narrativa numa evocao saudosista de um passado glorioso que pretende, acima de tudo, revitalizar a imagem de uma cidade desgastada por sucessivos desaires militares e polticos, como era a Atenas de Plato.

Ao longo dos tempos, foram surgindo outras propostas de leituras alegricas mais individualizadas com uma evidente vertente poltica. A primeira, tambm de natureza saudosista, pretende transpor a narrativa de Crtias para o contexto das Guerras Medo-Persas; ou seja, a Atenas primeva coincide com a Atenas que expulsou o inimigo oriental, a qual cultivava ainda os seus costumes e tradies ancestrais e, a dada altura, tambm ficou praticamente sozinha na frente de batalha; em sentido inverso, a civilizao atlante, smbolo da ganncia de domnio, fora invasora arrasadora e, ao mesmo tempo, superpotncia econmica, corresponder aos Persas. Quanto segunda leitura possvel, ela diametralmente oposta: a Atlntida representaria a Atenas contempornea de Plato, enquanto que a Atenas primeva simbolizaria Esparta; ou seja, como pano de fundo estaria a Guerra do Peloponeso e, de modo subliminar, uma crtica aguda postura de Atenas durante esse conturbado perodo

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crtica essa que assumiria um carcter particularmente incisivo, pelo facto de o dilogo se desenrolar, pelo menos do ponto de vista dramtico, durante as Panateneias, a principal festa da cidade. De acordo com esta proposta, o objectivo seria ento vincar os pecados atenienses, como a desmedida supremacia martima ou a atitude agressiva perante as naes vizinhas, e, inversamente, enaltecer as virtudes tradicionalmente espartanas: uma classe militar extremamente forte e demarcada, organizao poltica tradicional e a relativa desvalorizao das riquezas materiais.

Com efeito, o que podemos afirmar com toda a certeza, independentemente da posio que queiramos assumir, que a narrativa de Crtias descreve os dois movimentos comuns a todas as civilizaes: ascenso e queda.

4. estrutura dos dilogos

I. Consideraes introdutrias (17a-27c)1. Contexto dramtico (17a-17b)2. Resumo da conversa do dia anterior (17b-20c)3. Resumo do discurso de Crtias (20c-26e)4. Programa dos discursos (26e-27c)

II. Discurso de Timeu (27c-92c)A. Preldio1. Invocao dos deuses (27c-27d)2. Distino ontolgica entre ser e devir (27d-28b)2.1 Implicaes epistemolgicas (28c-29d)3. Pressupostos iniciais (29d-31b)

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3.1 O demiurgo (29d-30c)3.2 O Ser-Vivo (30c-d)3.3 O mundo um ser-vivo (30d-31a)3.4 O mundo nico (31a-31b)

B. Obras do Intelecto1. Constituio do mundo (31b-40d)1.1 O corpo do mundo (31b-34a)1.2 A alma do mundo (34a-40d)2. Constituio do Homem (40d-47e)2.1 A alma do Homem (40d-44c)2.2 O corpo do Homem (44c-47e)

C. O mbito da Necessidade1. A causa errante (47e-48b)2. Novo comeo da narrativa; nova invocao dos deuses (48b-48e)3. Terceiro princpio ontolgico: a chra (48e-51e)4. Recapitulao dos trs princpios ontolgicos (51e-52c)5. Os elementos (52d-61c)5.1 Estado pr-csmico (52d-53c)5.2 Formao dos slidos a partir dos tringulos elementares (53c-56c)5.3 Transmutao e variedades dos compostos (56c-57d)5.4 Movimentos dos elementos (57d-61c)6. As sensaes e as impresses (61c-69a)6.1 O tacto (61c-64a)6.2 O prazer e a dor (64a-65b)

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6.3 Os sabores (65b-66c)6.4 Os odores (66c-67a)6.5 Os sons (67a-67c)6.6 As cores (67c-68d)

D. Cooperao entre Intelecto e Necessidade (68e-81e)1. Recapitulao da aco do demiurgo (68e-69c)2. Introduo das divindades menores (69c-69d)3. Constituio da parte mortal da alma humana (69d-73b)4. Constituio das restantes partes do corpo humano (73b-76e)5. Criao dos seres vegetais (76e-77c)6. Constituio dos aparelhos funcionais do corpo humano (77c-81e)7. Doenas do corpo humano (81e-86a)8. Doenas da alma humana (86b-92c)

E. Concluso (92c)

III. Discurso de Crtias (106a-121c)

A. Introduo (106a-109a)1. Excurso metaliterrio (106a-108a)2. Invocao dos deuses (108a-d)3. Resumo do discurso (108e-109a)

B. Descrio da Atenas primeva (109b-112b)1. Origem mtica dos Atenienses (109b-d)

Rodolfo Lopes

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2. Populao (109d-110d)3. Territrio (110d-112e)3.1 Regio da tica (110e-111e)3.2 Cidade de Atenas (111e-112e)

C. Descrio da Atlntida (113a-121c)1. Advertncia sobre as condies de transmisso da narrativa (113a-b)2. Origem mtica dos Atlantes (113c-114d)3. Territrio (114d-119b)3.1 Recursos naturais da ilha (114d-115b)3.2 A metrpole (115b-117e)3.3 Recursos forjados pelos habitantes (117e-119b)4. Organizao poltica (119b-121c)

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inTroduo

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Timeu

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Timeu

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Scrates: Um, dois, trs; mas onde est, meu caro Timeu, o quarto dos nossos convidados1 de ontem, nossos anfitries de hoje?

Timeu: Alguma doena o atingiu, Scrates, pois, se dependesse de si prprio, no faltaria a este encontro.

Scrates: Ento, a tarefa de preencher o lugar do que est ausente cabe-te a ti e a estes aqui, no verdade?

Timeu: Sem dvida; e, dentro dos possveis, no falharemos na nossa tarefa. De facto, no seria justo se, depois de nos teres recebido como adequado faz-lo com os hspedes, ns os que restamos no te retribussemos de bom grado o festim.

Scrates: Ento, e vocs ainda se lembram de qual era o teor e o assunto que vos propus para a nossa conversa?

1 No possvel sequer supor quem seja esta personagem annima. Quanto aos restantes, vide Introduo pp. 20-23.

Plato

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c

d

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b

Timeu: Lembramo-nos de alguns temas, e os que nos tiverem escapado, tu estars c para no-los relembrar; ou, melhor ainda, se no achares inconveniente, passa-os em revista de forma breve e desde o princpio, de modo a que fiquem mais clarificados entre ns.

Scrates: Assim seja. O essencial das minhas palavras de ontem tinha que ver com o tipo de Estado2 que me parece ser o melhor e a partir de que tipo de homens havia de ser composto.

Timeu: E de facto, Scrates, o que nos disseste est perfeitamente de acordo com o que todos ns pensamos.

Scrates: E no comemos por dividir a classe dos que trabalham a terra, em si, e por separar este e os outros ofcios de artesos da classe daqueles que defendem a cidade3?

Timeu: Sim.

Scrates: E quando atribumos, de acordo com a sua natureza especfica, uma nica profisso e ocupao

2 politeia. Embora Estado seja um conceito medieval, o nico termo portugus que engloba as instituies polticas e a forma de governo; o que est implicado em politeia. Trata-se evidentemente do assunto principal da Repblica (Politeia), cujo resumo parcial (sobre esta questo, vide Introduo pp. 16-17, 62-63) os participantes traro memria nesta seco inicial; por esse motivo, remeteremos em nota para uma das passagens daquele dilogo aludidas ao longo dos prximos pargrafos.

3 Cf. Repblica 374a-d.

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Timeu

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a cada cidado que lhe fosse adequada4, dissemos que aqueles que tivessem de lutar em f