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SOBRE O DIA NO TIMEU Para a meditação sobre a natureza e força do tempo, que desde a lírica arcaica se constitui num dos centros de interesse e cuidado do homem grego, representa o Timeu a primeira formulação filosófica sistematizada chegada até nós (1). Ao tempo como lugar de nascimento e dissolução, que caracteriza o plano do sensível, atribui Platão como modelo a vida imutável do noético sob o nome de aiôn e traduz essa ambivalência de chronos definindo-o como eikôn (2) : slxcb ô'ênevosi Mvrjtóv nva aubvoç noifjoai, xal ôiaxoa/j,ãv afia. ovgavòv noiBÏ (xívovxoç aíxõvoç èv svi y,ax ãgiôfiòv lovaav alwvcov eíxóva, rovtov ô ôrj %QóVOV wvofj,á%a/j,ev. (1) O tema atinge, na lírica de Píndaro, uma particular acuidade. A ele dedica H. Fránkel uma parte dos seus valiosos trabalhos «Die Zeitauffassung in der frûhgriechischen Literatur» e «Ephemeros ais Kennwort fur die menschliche Natur», respectivamente em pp. 1-22 e 23-39 de Wege und Formen frûhgriechischen Denkens, Munchen, 1968°. Quanto ao texto do Timeu diz J. de la Harpe, «Le pro- grès de l'idée du temps dans la philosophie grecque», Festschr. z.ôO.Geburtstag von A. Speiser, Zurich, 1945, pp. 129 sq. tratar-se da primeira formulação explícita de uma distinção entre o tempo do ser e o do devir, integrando este naquele. (2) Cabe aqui mencionar o livro de R. Brague, Du temps chez Platon et Aris- tote, Paris, 1982, que contraria a interpretação tradicional do tempo como imagem da eternidade, e entende, de preferência, que é o céu, no sentido de 'abóbada celeste com todos os seus astros', que possui esse carácter icónico, já que o tempo não tem natureza material. Esta noção de representação através de uma «estrutura material» do mundo parece-nos sofrer de uma perspectiva imanentista não muito própria da filosofia platónica, bem como de um empobrecimento da compreensão de chronos, determinado, talvez, pela habituação a um tempo espacializado, que o texto aris- totélico provoca. Quanto às reticências de ordem linguística postas na leitura do passo que se segue, podemos dizer que o acusativo slxó, se bem que seja, de facto, mais comum no iónico do que no dialecto ático, também aparece em autores ate- nienses (Aristófanes, Th. 559 e Euripides, Med. 1162). Para a compreensão de

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Page 1: SOBRE O DIA NO TIMEU · Primeiramente aparece-nos kinêton como uma contingência do eikôn, na sequência da impossibilidade imediatamente antes expressa de uma adaptação perfeita

SOBRE O DIA NO TIMEU

Para a meditação sobre a natureza e força do tempo, que desde

a lírica arcaica se constitui num dos centros de interesse e cuidado

do homem grego, representa o Timeu a primeira formulação filosófica

sistematizada chegada até nós (1).

Ao tempo como lugar de nascimento e dissolução, que caracteriza

o plano do sensível, atribui Platão como modelo a vida imutável do

noético sob o nome de aiôn e traduz essa ambivalência de chronos

definindo-o como eikôn (2) :

slxcb ô'ênevosi Mvrjtóv nva aubvoç noifjoai, xal ôiaxoa/j,ãv afia.

ovgavòv noiBÏ (xívovxoç aíxõvoç èv svi y,ax ãgiôfiòv lovaav alwvcov

eíxóva, rovtov ô ôrj %QóVOV wvofj,á%a/j,ev.

(1) O tema atinge, na lírica de Píndaro, uma particular acuidade. A ele dedica H. Fránkel uma parte dos seus valiosos trabalhos «Die Zeitauffassung in der frûhgriechischen Literatur» e «Ephemeros ais Kennwort fur die menschliche Natur», respectivamente em pp. 1-22 e 23-39 de Wege und Formen frûhgriechischen Denkens, Munchen, 1968°. Quanto ao texto do Timeu diz J. de la Harpe, «Le pro­grès de l'idée du temps dans la philosophie grecque», Festschr. z.ôO.Geburtstag von A. Speiser, Zurich, 1945, pp. 129 sq. tratar-se da primeira formulação explícita de uma distinção entre o tempo do ser e o do devir, integrando este naquele.

(2) Cabe aqui mencionar o livro de R. Brague, Du temps chez Platon et Aris-tote, Paris, 1982, que contraria a interpretação tradicional do tempo como imagem da eternidade, e entende, de preferência, que é o céu, no sentido de 'abóbada celeste com todos os seus astros', que possui esse carácter icónico, já que o tempo não tem natureza material. Esta noção de representação através de uma «estrutura material» do mundo parece-nos sofrer de uma perspectiva imanentista não muito própria da filosofia platónica, bem como de um empobrecimento da compreensão de chronos, determinado, talvez, pela habituação a um tempo espacializado, que o texto aris­totélico provoca. Quanto às reticências de ordem linguística postas na leitura do passo que se segue, podemos dizer que o acusativo slxó, se bem que seja, de facto, mais comum no iónico do que no dialecto ático, também aparece em autores ate­nienses (Aristófanes, Th. 559 e Euripides, Med. 1162). Para a compreensão de

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«Concebeu a criação de uma imitação móvel da eternidade e, ao mesmo tempo que organiza o céu, cria, da eternidade que permanece una, uma imagem eterna que progride segundo uma ordem numérica. É ela que designamos por tempo.»

A natureza do tempo enquanto eikôn — representação — está marcada pela ambiguidade de este ter e não ter natureza própria, já que é «representação de» — neste caso do aiôn (3).

Assim, o problema da noção de chronos em Platão converte-se, simultaneamente, no da compreensão de aiôn, de que posteriormente falaremos. Por outro lado, na sua natureza de «representação», cabe ao tempo dar do aiôn uma ideia parcial e imperfeita, guardando entre si e o modelo a distância que à representação pertence — caso contrário transformar-se-ia esta em identificação—, distância que Platão justifica pela impossibilidade de o mundo sensível ser imagem «perfeita» do inteligível, mesmo quando se trata da criação do Demiurgo : siç òvvafuv (na medida do possível) (37d) exprime simultaneamente a boa-vontade e essa limitação do criador perante a natureza diversa e irredutível dos dois mundos, possuindo a frase seguinte valor expli­cativo :

rj ftèv oív TOV t,ónov (pvaiç èrvy%avev oëaa alójvioç, xai xovxo [xèv ôrj rcòi yevvrjtãi TtavteÀ&ç nqoaanxsi ovx jjv òvvaxóv.

«Ora acontece que, sendo a natureza do Modelo vivo eterna, se torna impossível estabelecer-lhe uma relação perfeita com o mundo criado.»

aícóvwv aceitamos a interpretação de G. Bõhme, Zeit und Zahl. Studien zur Zeittheorie bei Platon, Aristóteles, Leibniz und Kant, Frankfurt, 1974, pp. 69 sqq., de que o adjec­tivo significa não 'eterno', no mesmo sentido de âíôiov, mas 'que participa da natureza do aiôn' — ou seja, do seu modelo.

Para um estudo sistematizado da noção de chronos e aion em Platão, vide C. Eggers Lan, Las nociónes de tiempo y eternidad de Homero a Platón, Univ. Autó­noma de México, 1984.

(3) Esta duplicidade na natureza do eikôn platónico mereceu a atenção de G. Bõhme, op. cit. pp. 17-67. É de louvar o método seguido pelo autor ao tentar compreender o passo à luz de uma teoria geral da representação no filósofo em causa. Os seus resultados, que utilizamos no presente trabalho, apresentam-se bem mais profíquos que os trazidos por um método retrospectivo que parta da recepção do passo em autores posteriores para a compreensão do texto em causa.

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Ressalta-nos aqui, como característica específica do kosmos aisthêtos e ao mesmo tempo impeditivo essencial da aproximação perfeita tcmpo-aiôn, o ser chronos um gennêtos. Ora, a genesis implica alteração e movimento, noções que o termo kinêsis pode exprimir simultaneamente e que entendemos possuir em 38a. Por esse motivo, ao tempo pertence o ter sido ou o vir a ser (37 e, 4 sqq.), e ao que nele nasce a alteração e a mudança, (cf. 38 a, 3-4), por oposição à vida do paradigma noético, que é aorística e imutavelmente — akinêtos — sem velhice nem juventude (4).

A instabilidade e mudança, momentos fundamentais da experiência arcaica de tempo, assim como da vivência trágica, parece traduzi-las Platão por kinêsis, componente essencial de chronos enquanto diverso de aiôn, e pertencente ao sensível. Como, apesar de movimento mas enquanto movimento, o tempo se vai tornar no Timeu a imagem do imutável, ou seja, a representação do contrário de si mesmo, torna-se

(4) E. Degani, Aion da Omero adAristotele, Padova, 1961, no inicio do cap. VI, dedicado ao conceito em Platão e Aristóteles, ao opô-lo a chronos, estabelece uma certa semelhança entre o aiôn platónico e a definição de Ser em Parménides, 28B, DK,5-6. A mesma aproximação é feita por W. von Leyden, «Time, Number and Eternity in Plato and Aristotle», Ph Q, 14,1964, 36 sqq. C. Eggers Lan, Las nociones de tiempo y eternidad de Homero a Platon, Mexico, 1984, pp. 14-15, vai mais longe, ao afirmar que a relação platónica aiôn-chronos representa uma conciliação entre a ideia de permanência, própria de Parménides, e a de fluidez, patente em Heraclito. Discutívei é já a radical oposição, defendida por Degani, de aiôn, como tempo divino, a chronos como tempo profano, aritmetizado, típico de ciência. Como veremos, entender a aritmetização do tempo platónico como empobrecimento parece-nos ser um anacronismo provindo da concepção de fiéorj %QóVOV como um quantum, sem ter em conta que o modelo de chronos é o próprio aiôn. A mesma crítica fazemos a A. E. Taylor, Plato's Timaeus, Oxford, 1928, pp. 678-691.

W. Hirsh, Platons Weg zum Mythos, Berlin, 1971, pp. 168 sqq., salienta precisa­mente a transição, que se deve ter em conta na filosofia platónica, de uma noção de mundo das ideias imóvel, em concordância com as condições do logos, para a de movimento e vida que anima as ideias e se traduz no número. Do mesmo modo, o logos se converte em dialéctica (também ela, afinal, movimento). Assim (p. 170), «der Gedanke eines lebendigen Ideenkosmos ermõglicht es, das griindende Verhãltnis des Anblick-Bildens vom Einzelnen auf das Ganze einsichtig zu ubertragen. Die einzige Ordnung der sinnlichen Welt, der Kosmos Aisthetos, ist selbst «Bild» der einigen Ordnung des Kosmos Noetos, und die Weile ihres Wandels, die Zeit, ist «Bild» des Immerseins der Ideen, die Reproduzibilitãt der bleibenden Anwesenheit. Das «Leben» des Sinnlich-Lebendigen ist selbst Bild des Lebens der Ideen, und es ist nur ais Bild.

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visível na comparação dos dois enunciados que citámos (37d), onde nos aparece definido como eikôn.

Primeiramente aparece-nos kinêton como uma contingência do eikôn, na sequência da impossibilidade imediatamente antes expressa de uma adaptação perfeita do paradigma da criação ao mundo criado, estabelecendo-se assim, numa primeira fase, uma como que oposição entre o aiôn e a sua imagem. Essa oposição é ultrapassada num segundo momento em que o factor que aproxima a imagem do seu paradigma aparece verbalizado, de tal modo que a imagem pode ser caracterizada como aiônion: %ax âgiôftòv iovaav. Isto é, o seu movi­mento processa-se segundo o número, que vem aqui instituir-se em sentido do movimento, cuja referência é o Uno do modelo.

A lei do número torna-se operante com a criação, ou melhor, ordenação do céu pelo demiurgo — ôiaxoa/jmv ã/ua ovgavóv... — d e modo que chronose ouremos são indissociáveis (38b, 6 sqq.) e o-movi­mento ordenado daquele se torna percepcionável no céu na sua forma mais perfeita, o círculo (5). Este faz do eikôn um ó/uoióraroç <rã>i naoaosiyfiaxo, na medida do possível (xará ôvva/Mv).

Necessário se torna agora formular a questão sobre a natureza do número e o sentido da expressão xar ãQiB/uóv como qualificador do movimento. Não nos parece ser arithmos entendido aqui apenas no sentido de uma progressão infinita e ordenada, mensurável, das revoluções celestes, uma contagem, afinal, afectada por uma perspectiva rectilínea em que cada um dos números da ordem nada mais é do que um quantum e não pode ser portador do sentido de um todo a perder de vista, nem esse todo, não percepcionável nem inteligível, pode ser ima­gem de algo. Cada uma das revoluções astrais é definida por Platão como IAéQOç XQóVOV (37e) e simultaneamente como chronos (39d). Transporta, já por si, como nota Bõhme (6), algo daquilo que é imagem de aiôn. Quer dizer, cada um dos números deve ser, por si, simulta-

(5) Entendemos, pois, que o céu é o meio material através do qual o tempo, visualizado, se torna representação. O céu ganha sentido na ordenação, pare-cendo-nos irrelevante o problema da sua anterioridade. Para J. C. Fraisse, «L'uni­cité du monde dans le Tintée de Platon», R Philos, 172 1982, 249-259 essa ordem existente no cosmos converte-o de imediato, num inteligível, cujo modelo lhe é ima­nente. O que nos parece forçar um pouco a leitura do texto.

(6) Op. cit. pp. 101 sqq. ; interpretação já sugerida, de certo modo, pelas reflexões de W. von Leyden, pp. cit. pp. 39-42.

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neamente, divisão e unidade, o que só é possível entendendo-o como correlato dentro de um sistema.

A ideia de correlatividade está sem dúvida presente no Timeu. Comecemos por notar que a unidade temporal mínima para Platão, o dia, composto pelas suas duas faces de presença e ausência de luz (dia e noite, 37e) é o primeiro da série de três termos enunciados, pégr] XQÓvov, compondo-se os dois seguintes por um número definido a partir da unidade que o antecede, e correspondendo simultaneamente à revolução de um astro, isto é, representando por si, também, uma unidade. Que a velocidade de cada revolução não é medida absoluta mas relativamente, explicita-o Platão em 39b, 2-3:

"ha ò' shj fiétQov èvagyéç ri ngòç ãXXrjka flcaovrfJTi xai rá%ei...

«Para que houvesse uma medida visível da lentidão ou rapidez relativas...»

Tal pensamento, pelo modo como é formulado, remete-nos para a República, 529d. Depois de várias tentativas por parte do seu inter­locutor para estabelecer um objectivo ao estudo da astronomia, expõe Sócrates em que deve consistir tal ciência e qual o papel do verdadeiro astrónomo que, afinal, muito perto fica do do filósofo. Os movimentos astrais verdadeiros, na sua real velocidade e lentidão, compreendem e implicam a correlatividade:

...ãç rò ôv rá%oç xaí r\ ovaa (3Qaôvvrjç êv rmc âÀrjdivãi âgid/umí xal Ttãai toíç âhrjdéat a%rifj,aai cpoqáç xe nqòç akhr\la cpsQerai xal rà êvóvra qjSQSi, a õrj Xóymi fxèv xal ôiavoíai hqTtxá, otpsi ô' ov-

«...movimentos pelos quais a velocidade essencial e a lentidão essencial, em número verdadeiro, e em todas as formas verdadeiras, se movem em relação uma à outra, e com isso fazem mover aquilo que-nelas é essencial: são os verdadeiros ornamentos, que se aprendem pelo raciocínio e pela inteligência, mas não pela vista (7).»

(7) Tradução de M. H. da Rocha Pereira, Platão. República, Lisboa, Gulben­kian, 19906. Note-se que a astronomia do Banquete (que engloba também a mete-reologia) se define em termos semelhantes, como o estudo das relações de harmonia ou desarmonia dos elementos — nçòç ã?drjka (188a), negl ãXXr}Xa (188b) — e dos

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Neste passo Platão diferencia movimento e firmamento visível e a sua ideia no inteligível, matematicamente perfeita, diferença essa que no Timeu ignora, em virtude do interesse apontado por Festugière (8) em salientar não o chôrismos, mas a criatividade do mundo das ideias.

O Filebo salienta no número a função da correlatividade e comen-surabilidade dos elementos de um sistema, denominando-os av/j,/nsrQa y.al ovfupwva (25e), bem como a importância da divisão sistemática na aprendizagem humana. Por isso, a capacidade de discernir e deter­minar num todo as subespécies, a diaírese como método de pensa­mento científico, foi atribuída ao Homem pela divindade (16c, e), isto é, é um dom que o noético necessita conferir ao Homem para que este possa iniciar a via da anagôgê. Cada elemento de um conjunto, encontrado pelo método diairético, permite, assim, ser compreendido como unidade e relação (cf. 18c).

Tem o trabalho de Bõhme, já várias vezes citado, o grande mérito de chamar a atenção precisamente para uma tal função do número no pensamento platónico, na sequência do estudo deixado por J. Sten-zel (9), baseando-se na cuidadosa análise de vários passos, alguns dos quais aqui referidos, e assim entender o xaz' âçidjuóv do Timeu essen­cialmente como relação sistemática apreensível dos múltiplos períodos orbitais entre si, muito mais do que como capacidade de contagem. A integração dos tempos astrais, mutuamente relacionados e comen­suráveis, num tempo periechôn que a todos possa envolver e unificar atinge a sua expressão máxima no «grande ano», o makros eniautos, círculo composto de todos os círculos, onde tomará sentido a interro­gação acerca do paradigma deste tempo envolvente — o aiôn, que o número torna apreensível.

Na história da evolução semântica da palavra foi uso apresentar o Timeu como o primeiro testemunho do seu sentido de eternidade, sem especificação de conteúdo, pressupondo assim um considerável

movimentos astrais, chamando-se essa força eros. Para a relação entre harmonia, desarmonia e eros veja-se a introdução à tradução de O Banquete, Lisboa, Verbo, 1973, feita por M. T. Schiappa de Azevedo (p. 202).

(8) «Le sens philosophique du mot Aion», PP, 4, 1949, 172-189. (9) Zahl und Gestalt, Darmstadt, 1959°. V. Hõsle, «Zu Platons Philosophie

der Zahlen und deren mathematischer und philosophischer Bedeutung Th & Ph 59, 1984, 321-355 vê na noção platónica de número a possibilidade de compreender e reduzir a multiplicidade infinita à dualidade.

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abismo entre o sentido primordial do termo — 'vida' como duração global e energia, impulso vital — e o sentido que a Platão se atribui (10). Modernamente esta perspectiva tem sido reformulada e novos caminhos se abriram. Degani sugere já uma concepção platónica de aiôn que mantém em si algo do sentido primordial, concebendo a eternidade como a forma de presente ilimitado e estável, indivisível, de um Perfe­ction que ao tempo profano, divisível, numerável e fluído se opõe, consistindo a capacidade icónica do tempo no eterno retorno do seu movimento circular (11). Só que, em nosso entender, a função do número como correlação foi subvalorizada. Por isso, não se torna tão nitidamente apreensível como é que chronos já por si, enquanto sistema móvel, é capaz de tornar perceptível a ideia do periechôn que, sem dúvida, pertence à essencial do aiôn.

Bõhme apresenta, na sua interpretação, o xar âgid/bióv platónico como a condição, o meio, por que o tempo se torna e realiza como representação do aiôn e que, simultaneamente, abre ao Homem a via anagógica. Salienta o autor que a normal e falsa compreensão do número decorre da falsa compreensão de aiôn enquanto eternidade. Essa eternidade deverá ser entendida não como oposta ao tempo, mas como sua fundadora: unidade e poder vital omnipresente que leva o tempo a desdobrar-se e nela manter, também, a sua unidade.

Festugière, no seu trabalho já citado (12), defende que este novo

(10) Estranhamos que Festugière, op. cit. p. 175, fale ainda do sentido primi­tivo de aiôn como «temps que dure la vie d'un chacun». Já C. Lackeit, em 1916, p. 9 do seu trabalho Aion: Zeií und Ewigkeit in Sprache unci Religion der Griechen, diss. Kõnigsberg, vê como sentido primeiro da palavra o de 'Lebenskraft' e imediata­mente daí derivado o de 'Leben', referido ao seu conteúdo, não à distensão temporal, ambos presentes na poesia homérica (cf. respectivamente //. 5.685, 16.453; Od. 7.244, 9.523 e Od. 5.152, 160, 18.204).

(11) E. Vollrath, «Platons Lehre von der Zeit im Timaeus», Ph J, 76, 260-261 vê na oposição aiôn-chronos uma oposição entre duas formas de presença: a do noético, total e completa, que faz parte da natureza deste — e é nesse sentido que entende 'eternidade' — e a do sensível, incompleta e processada por fases. W. von Leyden, no citado trabalho, define a eternidade do aiôn fundamentalmente como um modo de existência incondicionado pelo tempo, ao contrário do eterno aristo­télico, sinónimo de existência contínua ou sempiterna.

(12) Pp. 176 sqq. Note-se, no entanto, que o facto de não ter tomado em conta o verdadeiro sentido primitivo da palavra mas um seu derivado ('tempo de vida') o conduz a uma compreensão empobrecida da eternidade apenas como 'tempo de duração da vida do modelo noético' que, desta feita, não tem começo nem fim: logo, é eterno.

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sentido de aiôn foi preparado pelos Pré-socráticos, nomeadamente Empédocles, nas suas especulações sobre o aspetos aiôn, provavel­mente do Sphairos.

Parece-nos sintomático que Platão designe justamente como 'Çmiov o paradigma do Demiurgo, isto é, como ser vivo, necessariamente tocado por um impulso vital e dotado de um tempo de vida: um aiôn, no seu sentido original, que, para o caso, tem a particularidade de ser eterno (àídtov, 37d). O Çwiov âíòiov, por sua vez, enquanto concebido como paradigma, contém em si a necessidade da existência e criação daquilo em função de que é modelo, o que se efectua por acção da força que Platão denomina como Demiurgo. Isto é, também sob este aspecto o aiôn do Çwtov âíôiov não perdeu ainda o seu sentido primitivo, dado que contém em si a potencialidade de todas as expressões de vida (13).

. 0 Cosmos, para ser tornado semelhante ao seu modelo, deverá também conter em si. todas as espécies vivas (39e), uma das quais, a dos corpos celestes, nos seus movimentos correlacionados, se destina a constituir a imitação da natureza de vida do modelo noético. Rela­ções e movimentos são apreensíveis como número por aquela das espécies que se distingue pela capacidade de o apreender (39b) — o Homem.

A astronomia deve, assim, fazer parte da educação do jovem. A tarefa do filósofo, sua afim, consiste na reconstituição do Uno que o tempo tenta representar por meio da comensurabilidade no movi­mento. A medida e a comensurabilidade tornam-se possíveis desde que a unidade numérica se visualiza como dia, sem a noção do qual não seria viável a interrogação acerca do Todo e do seu sentido : isto é, a filosofia (47a). Vemos, pois, que o meio que nos possibilita a noção de número e de tempo, a actividade da filosofia, é o sol enquanto luz, que se oferece em cada uma das suas aparições e ausências como uni­dade (dia) e simultaneamente torna visível o espaço celeste e os movi­mentos astrais, mensuráveis a partir do dia.

(13) Não esqueçamos que o próprio aiôn de um mortal, como globalidade do seu tempo de vida, era constituído por etapas definidas, delimitáveis por um número preciso de anos (Sólon, frg. 27 West.) Vide W. Schadewaldt, «Lebenszeit und Greisenalter im friihen Griechentum», Hellas und Hesperien I, Bern, 1970, pp. 109-127,

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A vista é, consequentemente, o mais importante dos órgãos de percepção, que possibilita a interrogação acerca do Todo (47a) a partir da percepção do número e da noção de tempo (%QóVOV svvota). Incom-paiavelmente mais valorizada que no passo acima citado da República, a actividade visual situa-se, pois, no sensível como ponto de partida para a actividade dianoética, cujo primeiro objectivo será estabelecer na alma humana o equilíbrio, libertá-la de perturbações, pela obser­vação e imitação do equilíbrio e harmonia dos movimentos celestes, governados pelo nous, de cuja natureza ela participa. O primeiro passo neste caminho é, na compreensão do número, como vimos, a noção de dia enquanto manifestação visível da unidade numérica.

Podemos agora interrogar-nos — e foi esse o objectivo que presi­diu às considerações feitas até aqui se, nesta importância fundamental atribuída ao dia no caminho da anagôgê, não terá Platão sido sensível a um dos momentos fundamentais da experiência patente na lírica arcaica e subsistente ria tragédia: a do Homem como ephemeras, isto é, criatura cuja natureza é marcada pela limitação e dependência de dia. É evidente que Platão não entende a palavra com esse cunho existencial primitivo onde se traduz a temporalidade humana, nem o seu pensa­mento se coaduna com tal experiência, mas transfere e adapta a estru­tura da relação de eependência homem-dia ao campo da actividade racional e considera hêmera como elemento básico, noção sine qua non, no caminho do cálculo e da abstracção que permite ao Homem libeitar-se do reino do contingente, do transitório.

O tempo timaico, dado essencialmente na astronomia e na cosmo­logia, atingível e compreensível pelo cálculo, eixo de articulação com o noético, apresenta-se, afinal, como possibilidade de fuga ao transi­tório porquanto, ainda no transitório, representa o uno e permanente. Não é o tempo do acontecer humano onde ao Homem é dada, no mundo, a experiência da sua natureza de ser histórico, marcada pela irreversibilidade e singularidade de cada momento, de indivíduo com existência própria, única e determinada pela certeza de um fim (14).

A natureza cíclica do tempo é a realização da ordem do Cosmos, de que o Homem é um elemento. Tais movimentos representam para a alma, ao imitá-los, a sua preparação para poder participar do per­manente, liberta das perturbações a que a sua morada corpórea a

(14) Vide M. Millier, Expérience et histoire, Louvain, 1959.

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condena. O acontecer humano não tem, no entanto, identidade própria. É cíclico como o acontecer cósmico (15). O que na história humana ocorreu repetir-se-á, sem que o Homem dela seja verdadeira­mente o agente, mas apenas por integração na ordem cósmica, mesmo quando o Cosmos se encontra ameaçado pelo não ser e ausência de nous {Político, 272 d, sqq.).

Mostra-nos o mito do Político acerca do desenvolvimento de uma cultura humana que ele é apenas transitório, condenado ao retro­cesso no restabelecimento da ordem cósmica pela divindade, pois é fruto de uma situação de privação e negatividade (16). Representará, possivelmente, o esforço da alma para ultrapassar um chôrismos parti-

(15) Alcméon de Crotona, em contrapartida, equaciona a existência humana de outro modo, ao dizer que os homens morrem «por não poder ligar o seu começo ao seu fim» (2 B,DK).

(16) Uma excelente análise do mito é-nos facultada por W. Hirsch, no seu livro já citado, p. 244 sqq. Na dinâmica progressiva que constitui a primeira fase do movimento do universo e da natureza, o deus está primeiramente presente para depois suspender a sua acção e deixar o mundo entregue apenas à inércia do impulso que primeiramente lhe conferiu. O movimento de regressão representa, assim, um percurso de «salvação» ontológica do mundo, na medida em que este recupera a proximidade, isto é, a participação do divino, nele presente e causa primeira do seu movimento. E conclui o autor (pp. 248-249) quanto à integração do mito na filosofia platónica: «vom Werdenden ist hier die Rede. Das Werdende aber ist, wie wir wissen, allein kraft der Ideen, und «diese» (d.h. die sinnlich-korperliche) Welt ist «Bild» des Ideec-kosmos im platonischen Sinn. Alies Entstehende hat sein Herkommen von der Idee, und es bleibt, wenn es entsteht und entstanden ist, auch immer schon hinter dieser zuruck. Alies Werden ist in sich Abfall von der Idee ais seiner Herkunft. Und so zeigt sich alie Bewegung immer ais ein Weg-von der Idee: Alies Naturliche ist, gemessen an: seinem Wesen, immer schon im Verfall, und nichts ist dem angemessen, was es zu sein beansprucht.»

Sobre o modo como o Homem se situa neste processo, observa Hirsch (pp. 249 sqq.) que o seu estatuto é ambíguo, na medida em que ele está «entre o divino e a natureza», e enquanto o divino não está marcado por um processo de devir, o devir na natureza é, por seu turno, um jogo de declínio e nascimento (ou seja, participação e afastamento das Ideias). Assim, p. 250: «Im Menschen allein fállt die Gegenlãufigkeit der Bewegungen ausseinander. Er ist, der er ist, weil er aus der Natur und aus der Wahrheit kommt. Er allein vermag sich umzuwenden. Das, was der Gott im Ganzen immer schon und standig vollbringt, hat er aus Eige-nem aufzubringen — aus Eigenem freilich, weil er seinem Wesen nach aus der Offen-barkeit kommt, and die erinnernd er sich in sie und damit in sein voiles Wesen zuriick-bringt.»

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cularmente profundo (17), e representa, decerto, integrado no contexto da filosofia platónica, conforme o faz Hirsch, o paradoxo de todo o devir que é, ao mesmo tempo, determinado pela Ideia mas desvirtuação da Ideia (18).

Se a historicidade pressupõe a experiência de situação e esta tem como correlato necessário a experiência de corpo, não podemos deixar de aqui ponderar o que sobre esta pensa Platão. O corpo permanece sempre para aquém do chôrismos; nele procura a medicina restabelecer, sempre que ameaçada, uma ordem semelhante à dos elementos do Cosmos (19), mas as suas leis são as do mundo sensível a que pertence — movimento, indisciplina, inconstância, incapacidade de emanci­pação do sensível; é o transitório que pesa como lastro para a eman­cipação da alma, o responsável pela sua larache; a experiência imediata de mundo, mediada pelo corpo, significa necessariamente conhecimento enganador, e a ligação de corpo a mundo representa para a alma, nele presa, a ameaça do não ser.

Na haimonia dos movimentos celestes animados pelo nous, no seu movimento cíclico, tem a alma a possibilidade de participação, integrando-se assim, enquanto homonoética, nessa harmonia. Mas o verdadeiro movimento de existência individual, no corpo, não é de modo algum susceptível de integração no ciclo, porque o seu percurso

(17) K. Gaiser, Platon und die Gesckichte, Stuttgart, 1961, tem, do mito do Político, uma perspectiva diferente. Entende que ele não exclui, do acontecer humano, um sentido histórico-temporal, já que do histórico faz parte a tensão entre acaso e determinação e a aliança entre tradição e novidade. Pensamos, no entanto, que a associação do progresso à queda e do retrocesso à razão divina ordenadora, que assim anula ciclicamente a acção humana, se não deixam interpretar por esta pers­pectiva. Também o facto de o destino humano ser visto apenas como mero ele­mento do acontecer cósmico, sujeito às mesmas catástrofes periódicas da Natureza, como afirma o próprio Gaiser, op. cit. p. 14, nos parece amortecer a possibilidade de valorização de dimensões próprias do histórico, e muito menos ver em Platão o fundador da história como ciência {id. ibid. p. 24) pelo facto de ter recorrido a elementos de causalidade. Sobre o progresso nas artes e na sophia, M. T. Shiappa de Azevedo, Hípias Maior Platão, Coimbra 1985, p. 22.

(18) Op. cit. pp. 247 sqq. Para a função diversa do relato do mito do Pro­tágoras, não identificável com o ponto de vista de Sócrates, chama o autor a atenção. De resto, nota O. Gigon, «Studien zu Platons Protagoras», Stuáien zur antiken Literatur, Berlin, 1972, pp. 105-106, é no Protágoras que excepcionalmente o mito não é posto na boca de Sócratas nem de quem o representa.

(19) Timeu, 88 e. Cf. Banquete, 186b, sqq.

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é rectilíneo, com princípio e fim, irreversível e único. Dela se não ocupa Platão, naturalmente, subestimando, assim, o cerne da experiên­cia de indivíduo, destacado do Cosmos e marcado pela certeza de uma morte própria, que faz de cada momento o unicum de uma exis­tência não repetível.

Corpo e experiência de corpo são algo que, para Platão, importa superar em proveito da saúde da psyché, o que várias vezes é expresso n o jogo de palavras soma / sema (20), ou na alusão ao paradoxo euri-p*diano de que viver é morrer e morrer viver.

Com efeito, o Sócrates do Fédon é a imagem do filósofo ideal que se alegra com a morte próxima como libertação da contingência do corpo, por oposição àquele que teme a morte, e que não é philosophos mas philosômatos (68b), opondo assim corpo e sabedoria.

Este desprendimento do corpo e de tudo a que o corpo se encontra ligado é fruto da prática da filosofia, que Sócrates define como um exercício da morte (fisÀérrj Oavárov) durante a existência do filó­sofo (80e), prática de libertação — apolysis — do corpo como obstá­culo (èfmóôtov, 65 a) para a phronêsis. Para o conhecimento representa ele uma fonte de perturbações que a alma, em si, não possui (65 a-c).

Pese embora o papel da visão, num diálogo posterior como o Timeu, para a apreensão do dia e sistema de cálculos astronómicos que ele possibilita, com vista à compreensão do noético através do que dele se faz representar no tempo, pese embora o facto de aí se encon­trarem vestígios da extrema importância da relação tradicional Homem--dia como expressão da experiência valorizada de temporalidade, o todo da filosofia platónica não deixa, por isso, de estar marcado por essa atitude perante a morte efectiva como libertação total do corpo a que o filósofo aspira. Ela é possibilidade de comunhão com o mundo da verdade e dos arquétipos, encontro da alma do filósofo com o seu esplendor e verdadeira luz, que no plano sensível — no mundo onde a história humana e o progresso acontecem — se encontra empalidecida (Fedro, 250b; d-e). (21)

M. C. FIALHO

(20) Vide e.g. Górgias, 493a ou Crátilo, 400c. (21) Duas concepções opostas sobre o progresso em Platão, vide E. Edelstein,

The idea of progress in Classical antiquity, Maryland, 1967, 102-118 e E. Dodds, The ancient concept of progress, Oxford, 1973, 9-16.