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THE LITTLE MISS HAVANA: NOTAS DE PESQUISA SOBRE A TRAJETÓRIA DA CANTORA GLORIA ESTEFAN Igor Lemos Moreira 1 (Universidade do Estado de Santa Catarina) Resumo: Gloria Estefan nasceu em Havana (1957), tendo se exilado nos Estados Unidos logo após a Revolução Cubana, país no qual construiu sua carreira artística como cantora de música pop cubana a partir da década de 1970. Neste trabalho, pretendemos apresentar questões gerais acerca dos primeiros movimentos de pesquisa a respeito sua carreira profissional, com ênfase nas discussões teórico metodológicas, destacando as potencialidades do entrecruzamento entre artes, música e história no estudo de seu percurso artístico entre 1977 e 2011. Em um primeiro momento, discute-se as a sua relação com as indústrias fonográficas, os envolvimentos políticos e aspectos gerais de sua trajetória profissional. Em seguida, são levantadas discussões preliminares a respeito das formas como a cantora e a mídia construíram representações latinas, hispânicas e cubanas a partir das produções e das narrativas sobre sua identidade artística. Esta comunicação apresenta resultados parciais do projeto de doutoramento intitulado “The Little Miss Havana”: Gloria Estefan e as representações latino-americanas (1977-2011)” em desenvolvimento. Palavras-chave: Gloria Estefan; Representações latino-americanas; Música Pop; História do Tempo Presente. Gloria Estefan 2 , como é artisticamente conhecida Gloria María Milagros Farjado, é uma artista cubana naturalizada nos Estados Unidos, conhecida no cenário internacional como uma das “divas” da música pop do final do século XX. Nascida em Havana, no ano de 1957, sua trajetória de vida é perpassada pela história recente de Cuba, as relações entre os Estados Unidos e o país, e o próprio desenvolvimento do 1 Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestre e graduado em História pela mesma instituição. Bolsista CAPES-DS. Essa pesquisa contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. 2 A presente comunicação apresenta reflexões iniciais de meu projeto de doutoramento em história, iniciado em 2019, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Neste projeto, intitulado “The Little Miss Havana”: Gloria Estefan e as representações latino-americanas (1977-2011)” em que analiso a trajetória artística da cantora cubano-americana Gloria Estefan a partir de três eixos principais: As formas pelas quais a artista elaborou, significou e narrou identificações e representações de cubanidades e latinidades no decorrer de sua carreira; Os modos como tais construções de identidades foram significadas pela mídia estadunidense e global; As diferentes maneiras de engajamento associadas a esse processo, em especial os engajamentos políticos e sociais da artista no referente a Cuba e aos Estados Unidos. A comunicação aqui apresentada, neste sentido, é um primeiro ensaio de revisão do projeto e de atualização de alguns debates a partir do contato com a documentação que constitui o corpus documental da tese.

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THE LITTLE MISS HAVANA: NOTAS DE PESQUISA SOBRE A TRAJETÓRIA DA

CANTORA GLORIA ESTEFAN

Igor Lemos Moreira1

(Universidade do Estado de Santa Catarina)

Resumo: Gloria Estefan nasceu em Havana (1957), tendo se exilado nos Estados Unidos logo após a Revolução Cubana, país no qual construiu sua carreira artística como cantora de música pop cubana a partir da década de 1970. Neste trabalho, pretendemos apresentar questões gerais acerca dos primeiros movimentos de pesquisa a respeito sua carreira profissional, com ênfase nas discussões teórico metodológicas, destacando as potencialidades do entrecruzamento entre artes, música e história no estudo de seu percurso artístico entre 1977 e 2011. Em um primeiro momento, discute-se as a sua relação com as indústrias fonográficas, os envolvimentos políticos e aspectos gerais de sua trajetória profissional. Em seguida, são levantadas discussões preliminares a respeito das formas como a cantora e a mídia construíram representações latinas, hispânicas e cubanas a partir das produções e das narrativas sobre sua identidade artística. Esta comunicação apresenta resultados parciais do projeto de doutoramento intitulado “The Little Miss Havana”: Gloria Estefan e as representações latino-americanas (1977-2011)” em desenvolvimento. Palavras-chave: Gloria Estefan; Representações latino-americanas; Música Pop;

História do Tempo Presente. Gloria Estefan2, como é artisticamente conhecida Gloria María Milagros

Farjado, é uma artista cubana naturalizada nos Estados Unidos, conhecida no cenário

internacional como uma das “divas” da música pop do final do século XX. Nascida em

Havana, no ano de 1957, sua trajetória de vida é perpassada pela história recente de

Cuba, as relações entre os Estados Unidos e o país, e o próprio desenvolvimento do

1 Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestre e graduado em História pela mesma instituição. Bolsista CAPES-DS. Essa pesquisa contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. 2 A presente comunicação apresenta reflexões iniciais de meu projeto de doutoramento em história, iniciado em 2019, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Neste projeto, intitulado “The Little Miss Havana”: Gloria Estefan e as representações latino-americanas (1977-2011)” em que analiso a trajetória artística da cantora cubano-americana Gloria Estefan a partir de três eixos principais: As formas pelas quais a artista elaborou, significou e narrou identificações e representações de cubanidades e latinidades no decorrer de sua carreira; Os modos como tais construções de identidades foram significadas pela mídia estadunidense e global; As diferentes maneiras de engajamento associadas a esse processo, em especial os engajamentos políticos e sociais da artista no referente a Cuba e aos Estados Unidos. A comunicação aqui apresentada, neste sentido, é um primeiro ensaio de revisão do projeto e de atualização de alguns debates a partir do contato com a documentação que constitui o corpus documental da tese.

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campo da música pop. Filha de um dos guarda-costas de Fulgêncio Batista, Gloria

Estefan e sua família se exilaram nos EUA logo após a revolução de 01 de janeiro de

1959 por oposição ao regime, e como tentativa de evitarem serem perseguidos no

país pela proximidade com o ex-ditador.

Logo após a entrada no país, a família se fixou na cidade de Miami, que naquele

contexto começava a se consolidar como um dos principais focos da migração

cubana, o que veio a construir uma comunidade emocional (SARDO, 2010)

anticastristas nessa localidade através de uma “ ‘ponte imaginária’ entre Havana e o

estado da Florida” (AYERBE, 2004). Esse processo de exílio ocorreu em um contexto

maior de fluxos para os Estados Unidos, marcados pela ideia de oposição política

(GOTT, 2006; CHOMSKY, 2015). No país, sua família envolveu-se diretamente nos

movimentos de oposição a Revolução Cubana, tendo seu pai participado do “Ataque

a Baia dos Porcos”, o que influenciou em sua construção como identitária migrante

cubana vivente nos EUA nos anos seguintes, em especial na carreira musical.

Ao ingressar no ensino superior, na década de 1970, como estudante de

psicologia na Universidade de Miami, Gloria Estefan conheceu Emílio Estefan, com

quem veio a se casar posteriormente, e que a convidou a ser vocalista da banda Miami

Sound Machine, um grupo de música latina formado por jovens migrantes. Com foco

em sonoridades e ritmos latinos3, especialmente caribenhos, o grupo produziu suas

primeiras canções em gravadoras locais, sendo seu primeiro LP, intitulado Live

Again/Renacer, lançado em 1977 contendo músicas em inglês e espanhol. Contudo,

foi apenas na década de 1980 que o grupo alcançou destaque no país e

internacionalmente.

Parte do destaque da cantora e do grupo ocorreu em função do lançamento de

“Conga” (1985), que chegou a ocupar as principais paradas musicais e continuou a

projetar o grupo até a década seguinte. O “sucesso” da canção esteve também

associado a inserção da artista na música pop, que se consolidava na mesma década

como um campo específico da indústria fonográfica, em especial pelo uso dos

3 Em 29 de julho de 1988 o jornalista Stephen Holden publicou uma resenha no The New York Times, intitulada “Salsa Spice from Miami” na qual destacava, a partir do álbum Let It Loose (1987), o “compromisso” da banda com a música latino-americana, em especial na sua divulgação nos Estados Unidos, creditando o início desse movimento e sua consolidação ao sucesso da música “Conga”. Segundo a resenha, tal “compromisso” seria observável não apenas pelas sonoridades ou temáticas das canções, mas também pela sua linguagem.

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videoclipes e da performances dançantes (SOARES, 2015), através de figuras como

Madonna, Celine Dion e Ricky Martin. “Gonga” ainda influenciou outros artistas que

viram no mercado latino uma possibilidade de nicho para atuação, o que gerou uma

série de debates no país e na indústria fonográfica acerca dos estereótipos da

representação latino-americana nos Estados Unidos, nos quais a cantora ocupou um

papel central. Um exemplo dessa discussão foi o lançamento de La Isla Bonita (1986),

por Madonna, e que gerou uma série de contradições e polêmicas e que

oportunizaram a Gloria Estefan ocupar uma posição de “voz autorizada” sobre as

apropriações feitas pela já considerada “rainha do pop” (O’BRIEN, 2018).

Em 1990, Gloria Estefan deixou oficialmente com a banda, lançando-se como

artista solo com Emílio Estefan enquanto seu empresário. Durante esse período, a

cantora lançou mais de 8 álbuns, além de produzir outras canções que se destacaram

na mídia e na indústria como Mi Terra (1993) e Abriendo Puertas (1995). Nessa

década percebe-se um aumento nas menções sobre Cuba e sobre o exílio em suas

produções, no contexto em que o país passava por novas crises econômicas e ondas

migratórias durante o “Período Especial em Tempos de Paz”, momento no qual ocorre

a dolarização na economia cubana, a crise da união soviética e a implementação das

leis Torricelli e Helms-Burton nos Estados Unidos (GOTT, 2006). Esse processo se

estendeu no decorrer do século XXI, contexto no qual a cantora seguiu produzindo

suas canções e manifestando-se publicamente a respeito de Cuba e das comunidades

migrantes latinas, como no caso Elián González.

Ao optar por trabalhar com a trajetória artística de Gloria Estefan, pretende-se

“percorrer os caminhos traçados pelos indivíduos a partir das relações que eles

construíram em distintos espaços e tempos” (AVELAR, 2018. p. 131), sem produzir

um relato totalizante e/ou elogioso de sua vida como poderia ocorrer em uma biografia

(BOURDIEU, 2006). Deste modo, proponho analisar a trajetória de Gloria Estefan por

meio da mídia e das produções, procurando compreender quais são suas construções

artísticas, representações e relações com diferentes esferas, grupos, locais e

temporalidades, que geraram trocas e jogos de identificações. Ao mesmo tempo,

como sujeito relacional (CARNEIRO, 2018), suas produções e trajetória não estão

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separadas do contexto, que a influência e no qual também desempenha determinados

papéis.

A pesquisa em andamento se insere em uma problemática maior, centrada nas

análises sobre as indústrias culturais e fonográficas contemporânea e suas relações

com as temporalidades e as dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas.

Historiadores como Marcos Napolitano (2016) e José Geraldo Vinci de Moraes (2010;

2018) apontam as potencialidades da música, da canção e dos sons como

documentos para a história, remontando a perspectiva da escola dos Annales e da

história problema, destacando a compreensão dos documentos sonoros como

produções socioculturais inscritas em temporalidades múltiplas. Enquanto linguagem,

a música é não apenas uma forma de comunicação, mas também um modo de

expressão permeado por diferentes camadas de temporalidades, intenções sociais,

projetos culturais, usos do passado e elaborações de representações.

Sendo a história do tempo presente um campo de institucionalização recente

no Brasil (FERREIRA, 2018), é possível perceber os diálogos possíveis entre as áreas

tendo em vista que entre seus principais pilares teóricos gravitam em campos como a

memória, o trauma, as demandas sociais e o testemunho (DOSSE, 2012; ROUSSO,

2016). Sob influência da perspectiva francesa, que se consolidou no Instituto de

História do Tempo Presente da França (1989), a história do tempo presente possibilita

um processo de historicização das sociedades contemporâneas procurando não

apenas compreender o tempo dito enquanto “atual”, mas sua constituição enquanto

dimensão temporal e sua relação com outras camadas de passados, presentes e

futuros que o constituem (ROUSSO, 2016; KOSELLECK, 2014).

Na medida em que são operacionalizadas categorias como estratos de tempo

(KOSELLECK, 2014), a cotemporalidade (TURIN, 2019) ou contemporaneidade de

fenômenos não contemporâneos (ROUSSO, 2016), essa perspectiva possibilita

analisar as múltiplas temporalidades que atravessam a música no tempo presente,

assim como suas relações históricas com as identidades e alteridades por meio das

escutas, visualidades, composições e sonoridades (SCANDAROLLI, 2016). Pensar a

canção a partir da sua relação com o tempo, uma outra forma de compreender a

própria história da música, é também destacar suas relações com o contexto social

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(NAPOLITANO, 2016) na qual foi produzida, consumida e significado, perspectiva

pela qual pretende-se analisar a trajetória artística de Gloria Estefan.

Neste sentido interpreta-se que essa abordagem possibilita problematizar a

contemporaneidade, procurando pensá-la “como uma cotemporalidade, isto é, como

uma “concordância de tempos múltiplos”, marcada por uma “multiplicidade não

resolvida” (TURIN, 2019. P. 11). Ao analisar a trajetória artística de Gloria Estefan,

que tem como principal campo de atuação a música pop latina, pretende-se

compreender as tensões temporais e representações mobilizadas em sua constituição

enquanto artista, considerada por muitos como diva, categoria fundamental para o

estudo da indústria cultural contemporânea. Enquanto categoria, a diva está

associada a noção de projeção e identificação com um individuo que está entre o

material e o imaginativo (MORIN, 1989). Remontando as divas da opera e a

construção de personagens midiáticos no cinema, a figura da diva/estrela foi

resignificada com a expansão midiática a partir da segunda metade do século XX, em

especial com a criação de revistas especializadas no cinema e na vida dos

atores/atrizes, gerando processos de identificação dos públicos diretamente com os

artistas e não mais com seus personagens (MACIEL, 2011).

Esse processo não se restringiu apenas ao cinema. Na indústria fonográfica

percebe-se uma aproximação das cantoras, performers e cantatutoras com essa

imagem, sendo esse processo atravessado pela expansão midiática. Contudo, uma

das marcas fundamentais na música foi a construção de um arquétipo destas artistas

associadas a voz, a moda e, principalmente, a noção de performance. Ao mesmo

tempo, com a virada do século XX para o XXI esse processo é novamente

resignificado, demonstrando a fluidez e aceleração dessa indústria (DIAS, 2008),

percebendo-se novas construções em torno destas artistas, que jogaram com tais

arquétipos incorporando novos sentidos e representações, mobilizando outros

marcadores sociais como raça, gênero, classe e religião (MARTÍNEZ CANO, 2017),

indicando as potencialidades de uma perspectiva interseccional. Esse é o caso de

artistas como Madonna, Britney Spears, Rihanna, Jennifer Lopez e Gloria Estefan.

Apesar de não a questão central da pesquisa, certamente a discussões do

ponto de vista da interseccionalidade, inclusive para compreender a própria

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constituição da trajetória, as representações e projeções da “imagem” da artista, será

fundamental ao possibilitar discutir a complexidade de sua constituição como sujeito

(LUGONES, 2008) . Neste sentido, destaca-se que a produção da cantora está

associada à sua identificação como “latina” acepção estadunidense que define o “não

branco” como um outro e como um sujeito racializado, assim como mulher, artista,

migrante, classe “média” e católica, sendo estes marcadores que atravessam suas

narrativas. Neste sentido, o “gênero inscreve o corpo racializado” (AKOTIRENE, 2018.

p. 22), sendo fundamental perceber as imbricações culturais, sociais e políticas

presentes em figuras consideradas como divas.

Ao discutir os processos que envolvem as indústrias culturais na

contemporaneidade, Néstor García Canclini (2015) não menciona as divas, porém

discute a elaboração de figuras simbólicas no contexto dos jogos de identificações e

hibridismos, considerando Gloria Estefan como central nestes processos. Para o

autor, a cantora é um exemplo das novas configurações dessa indústria que passaria

por processos de complexificação, e também de jogos de mercado, inserindo novos

grupos sociais que estariam entre a participação na estrutura e a oposição ao sistema.

O ponto central, para Canclini, seriam os jogos de linguagem (inglês e espanhol) nas

canções de Gloria Estefan, não mencionando os aspectos visuais ou midiáticos que a

envolveram, o que se pretende abordar neste projeto.

A discussão sobre a linguagem associada a canção, e a constituição de

identificações no tempo presente, é abordada também por Judith Butler e Gayatri

Spivak (2018) que consideram a canção como dimensão fundamental para

compreender a ideia de pertencimento, em especial em contexto de migração. De

certa maneira, as discussões de ambas as autoras podem ser aproximadas das

perspectivas de Susana Sardo (2010) a respeito a importância da música para

constituição de comunidades emocionais, grupos sociais em que a emoção constitui

um laço e o principal pilar das identificações, no contexto de trânsitos e

deslocamentos.

O ponto em comum nestas leituras está na associação da ideia de

pertencimento a de associação a uma temporalidade e experiência, não mais apenas

ao território ou ao Estado-Nação. No caso de Gloria Estefan essa relação, apesar de

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evocar o território cubano ou estadunidense, tem como pano central uma discussão

sobre a temporalidade e a experiência do refúgio e do exílio, perpassada por

categorias como nostalgia e ressentimento, presentificadas e representadas em suas

produções artísticas e na mídia. É por meio destas tenções que a cantora se constituiu

enquanto figura central na indústria cultural contemporânea, se construído e sendo

considerada como diva latina em diálogo com demais dimensões sociais, culturais,

econômicas e políticas.

As observações iniciais indicadas até aqui têm possibilitado levantar alguns

eixos centrais para o estudo das narrativas a respeito da cantora na mídia, em especial

para aquelas relacionadas as diferentes representações e visões associadas a ela.

Percebe-se que existe um esforço por parte do periódico em tratar a cantora para além

de suas produções, destacando suas ações políticas, mas também como voz

autorizada para temáticas latinas, colocando-a como representante fundamental

desta comunidade nos Estados Unidos. Esse processo será problematizado em

etapas futuras da pesquisa na medida que algumas publicações demonstram uma

homogeneização da noção de latino, entendido pelo veículo como o “não branco”

falante de espanhol, e que por vezes foi colaborado estrategicamente por Gloria

Estefan. Inclusive essa discussão é perceptível em reportagens nas seções de

gastronomia sobre seus restaurantes de temática latina no país4.

Com relação as produções artísticas, se pretende analisar também os aspectos

narrativos, ampliando a própria noção de narrativa para além do texto escrito. Como

destaca a historiadora Márcia Ramos de Oliveira (2002), a canção é “é uma peça

musical feita para ser cantada que não implica em uma demasiada especialização

musical, podendo ser criada e executada de forma mais simples e que é um

instrumento de expressão utilizado por todas as culturas ao longo da história.”

(OLIVEIRA, 2002. p. 92). Vale destacar que a canção, a partir de análises na área de

ciências humanas, deve ser vista para além de seus elementos estruturais, de sua

forma e percurso harmónico, incorporando também sua letra, performance e melodia,

dimensões fundamentais para compreender a narrativa envolvida (TATIT, 2014).

4 WARD, Timothy Jack. For a Latin Restaurant, a Carmen Miranda Hat. The New York Times. New York, p. 89. 25 dez. 1997.

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Neste sentido, o estudo da canção pode ser aproximado dos videoclipes, na medida

em que ao analisar a música pop, definida como canção popular-midiática, o

audiovisual é um elemento indispensável para sua elaboração, em especial associado

a noção de performance (SOARES, 2004).

Partindo dos apontamentos de Paul Zumthor (2007), percebe-se que a

performance, assim como a canção e a imagem, constrói sentidos e signos por meio

dos quais é possível perceber as relações temporais, suas intencionalidades e

representações envolvidas. A ideia de performance, está necessariamente associada

as dimensões teatrais, orais e virtualidades, e deve ser compreendida como uma

manifestação situada em um contexto cultural e situacional, onde ela transformasse

em acontecimento e é significada (ZUMTHOR, 2007).

As canções, assim como as demais produções artísticas de Gloria Estefan a

exemplo de seus videoclipes, serão vistas enquanto “processos”, considerando que

estas dependem constantemente de seus momentos de performance, e/ou gravação,

e que só podem ser compreendidas em meio a sua pluralidade e status de “obra

aberta” (GONZALEZ, 2016). Articulando tais dimensões, é importante compreender

que “o desenvolvimento que uma canção pode ter ao longo do tempo nas mãos de

seus próprios autores e intérpretes dialoga de maneira muito particular com os

conceitos de cover e versão. Tudo isso situa o arranjo e a performance como mais um

texto a ser decifrado na análise da canção[...]” (GONZALEZ, 2016. P. 118).

Tais medidas possibilitam discutir o conceito de representações na medida que

permitem delimitar diferentes formas pelas quais se “transmitem as diferentes

modalidades de exibição de identidade social ou da potência política tal como as

fazem ver e crer os signos, as condutas e os ritos.” (CHARTIER, 2009. p. 50). Neste

sentido, temos considerado que, além das relações entre ausência e presença pelas

quais as representações são elaboradas, estas se materializam nas produções

artísticas da cantora, assim como no material midiático. Parte-se de uma discussão a

respeito das “relações entre o representado e as formas de sua representação, e

outra, a relação entre essas formas e a matéria em que elas se realizam.”

(RANCIÈRE, 2018. P. 64). Um exemplo possível de discussão, que permite visualizar

os caminhos metodológicos pode ser realizado a partir da canção Conga (1985).

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Lançada em 1985, a canção é uma dos principais hits de Gloria Estefan, sendo

ela a canção que teria alavancado sua carreira segundo reportagens da edição

especial da revista Billboard, em homenagem a cantora, lançada em 20035. A canção

que inicialmente seria uma música voltada as discotecas, com uma letra de

mensagem simples e um arranjo eletrônico como base da canção, como seria

característico na música pop (SOARES, 2015), tinha como fonte de inspiração o

“conga”, que é um instrumento de percussão cubano muito semelhante ao atabaque,

sendo geralmente montado em pares ou trios. Tambor característico da música afro-

caribenha, presente em ritmos como o merengue e a salsa, o “conga” foi a inspiração

principal da letra e para a base sonora da canção. Ao mesmo tempo, o termo designa

um gênero musical urbano latino, que tinha como base o próprio instrumento, e que

se popularizou nos salões estadunidenses na segunda metade do século XX .

Além disso, “conga”, como destaca Jesús Gómez Cairo (2011), é uma dança,

associada diretamente ao gênero musical, e que se popularizou em Cuba a partir da

segunda metade do século XX, destacando a relação entre sonoridades e

corporalidade. Percebe-se ainda que essa multiplicidade de significados está

associada a popularização da conga e a um processo em Cuba onde a multiplicidade

de gêneros urbanos “originou a produção de música para essas danças e foram

criados formatos orquestrais específicos para muitas delas e outras que foram

“polivalentes” para combiná-las.” (CAIRO, 2011. P. 192).

Neste sentido, o instrumento, o gênero musical e a dança serviram de base

para a elaboração do videoclipe, lançado no mesmo ano. Compreender esse universo

de referenciais e dimensões presentes na canção, composta originalmente por

Enrique E. Garcia e produzida por Emílio Estefan enquanto a cantora ainda integrava

o Miami Sound Machine, permite ampliar e discutir a própria narrativa criada para o

videoclipe, e que até o presente é associada a figura artística de Gloria Estefan. O

cenário de inserção da Conga nos Estados Unidos, por exemplo, foi retomado no

5 BILLBOARD. Gloria Estefan celebrates a career milestone selling 70 million records! Estados Unidos:

Billboard, 11 out. 2003.

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videoclipe, que se passa em um salão de festas intitulado Copacabana, onde se

realizava um concerto em homenagem “ao embaixador”.

Logo após a apresentação de piano, a banda Miami Sound Machine é

convidada a subir ao palco, momento no qual Gloria Estefan, que estava sentada na

plateia, afirma que não seria a melhor ideia pois aquele “não era o melhor lugar para

isso”. Apesar de resistir, a cantora sobe ao palco com sua banda, momento no qual

começam a cantar “Conga”, provocando um sentimento de surpresa na plateia, que

logo se levanta e começa a ocupar o salão com danças. É interessante perceber que,

apesar do protagonismo da banda e da própria artista, a imagem recorrente dos

próprios instrumentos de percussão, por meio dos jogos de imagem, além dos

próprios solos do tambor, permitiu a reafirmação da narrativa da canção. Além da

presença dos próprios instrumentos da banda, em outros ambientes do cenário é

possível perceber imagens recortadas dos tambores.

A partir de observações iniciais, assim como da sistematização de alguns

aspectos, é possível perceber uma relação de continuidade entre canção e videoclipe.

Se por um lado a construção narrativa permite constatar tal aspecto, ela também

possibilita refletir sobre os processos que envolviam a difusão da música latina nos

Estados Unidos a partir dos anos 1970 e 1980, e suas interfaces com a música pop.

Neste contexto, como destaca Gonzalez (2016), a indústria cultural voltava-se a

chamada “world music”, intensificando seus segmentos que trabalhavam nos setores

internacionais buscando construir um aspecto cosmopolita, em especial naquilo que

era produzido nos EUA. Ao mesmo tempo, essa década foi marcada por um nova

onda de exilados cubanos que chegaram ao país, a partir da abertura dos portos de

Mariel em 1980, calculando-se a migração de mais de 120.000 pessoas (GOTT, 2006;

CHOMSKY, 2015). Estes dois processos, apesar de se referirem a dimensões

bastante distintas, estão diretamente relacionados a novas configurações

estadunidenses, em especial de suas indústrias culturais, e que vieram a provocar o

investimento e a expansão de artistas referenciais latinos no país. As próprias tensões

envolvidas nessas reconfigurações são representadas no videoclipe, e na canção, em

especial na menção aos ritmos latinos ou a dúvida se o espaço de um salão seria o

melhor lugar para o Miami Sound Machine se apresentar.

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Essa análise, ainda preliminar, possibilita observar, do ponto de vista

metodológico, alguns aspectos possíveis com relação a análise sobre as canções e

os videoclipes de Gloria Estefan. Parte destas das análises sobre as canções, e o

próprio videoclipe destacado, estarão diretamente associadas ao material midiático.

No caso de “Conga”, por exemplo, para além da análise das produções em si, será

possível, por meio da vinculação entre mídia e música, problematizar a trajetória da

canção nos Estados Unidos, assim como sua circularidade e associações com outras

questões. Uma dimensão possível a ser explorada será compreender, para além da

sua divulgação, como as indústrias e as comunidades latinas significaram tal

produção, através das paradas musicais e informações sobre a programação das

rádios disponíveis na revista Billboard, assim como a resenha sobre a canção no

referido impresso e no The New York Times. A possibilidade de análise narrativa

conjunta deste material tem como potencialidade compreender as relações entre a

artista e o meio no qual estava inserida, aprendo vias para discutir sua trajetória do

ponto de vista relacional e das representações. Deste modo, mais do que sua

trajetória, essa articulação metodológica demonstra a complexidade dos sujeitos e

artistas nas indústrias culturais, atentando para sua fluidez e relações temporais na

constituição de suas carreiras.

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