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OBRA CRlTICA/2 Título original: "Raising the Wind; or, Diddling Considered as one of the Exact Sciences". (42) Xizando um artigo X-ing a Paragraph. The Flag of Our Union, 4 de maio de 1849. (66) Hervey Allen alude, sem outros detalhes, a uma fonte francesa deste relato. O homem de negócios The Business Man. Buríon's Gentleman's Magazine, fevereiro de 1840. Título original: "Peter Pendulum, the Business Man" 344 reo^ft XXI. Alguns aspectos do conto (1962-1963) S "W»'° OO^TV^fKL

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OBRA CRlTICA/2

Título original: "Raising the Wind; or, Diddling Considered asone of the Exact Sciences". (42)

Xizando um artigoX-ing a Paragraph.The Flag of Our Union, 4 de maio de 1849. (66)

Hervey Allen alude, sem outros detalhes, a uma fonte francesadeste relato.

O homem de negóciosThe Business Man.

Buríon's Gentleman's Magazine, fevereiro de 1840.Título original: "Peter Pendulum, the Business Man"

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XXI. Alguns aspectos do conto(1962-1963)

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Estou hoje diante de vocês numa situação bastante paradoxal. Umcontista argentino dispõe-se a intercambiar idéias a respeito do contosem que seus ouvintes e interlocutores, salvo algumas exceções, conheçam qualquer coisa de sua obra. O isolamento cultural que continuaprejudicando os nossos países, somadoà injustafalta de comunicaçãoa que Cuba se vê submetida na atualidade, determinaram que meuslivros, que já são vários, só tenham chegado como exceção às mãosdeleitores tão bem-dispostos e entusiastas comovocês. O pior da histórianão é tanto que vocês não hajam tido a oportunidade de julgar os meuscontos, mas que eu me sinta um pouco como um fantasma que vemfalar a vocês sem a relativa tranqüilidade proporcionada pelo fato desaber-se precedido pela tarefa realizada ao longo dos anos. Esentir-mecomo um fantasma já deve ser algo perceptível em mim, pois há poucos dias uma senhora argentina me assegurou no hotel Riviera queeunã^^r^JuJi^Cortázar, e ante a minha estupefação acrescentou queoautênticoJúlioJgortázar é um senhorde cahelQg_blâggnsi muito amigode um parente seu, que nunca saiu de Buenos Aires. Como faz dozeanos que resido em Paris, vocês compreenderão que minha qualidadeespectral se intensificounotavelmenteapós tal revelação. Seeu desapa-recer de repente no meio de uma frase, não ficarei muitojurpreso; equem sabe saímos todos ganhando.

Dizem que o desejo mais ardente de um fantasma é recuperar aomenos um fiapo de corporeidade, algo tangível que o devolva por uminstante à sua vida de carne e osso. Para obter um pouco de tangibi-lidade diante de vocês, direi em poucas palavras qual é a direção e o

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sentido dos meus contos. Não o faço por mero prazer informativo,pois nenhuma resenha teórica pode substituir a oj)ra_grn_si; minhasrazões são mais importantes que esta. Já que vou ocupar-me de algunsaspectos do conto como gênero literário, e é bem possível que algumas das minhas idéias surpreendam ou choquem aqueles que as ouvirem, considero um gesto elementar de honestidade definir o tipo denarração que me interessa, afirmando minha especial maneira de entender o mundo. Quase todos os contos que escrevi pertencem aogênero chamado de fantástico por falta de melhor nome e seçontra-

] põem ao falso realismo que consiste em pensar que todas as coisasj podem ser descritas e^xplicadas, tal comodava por certo o otimismo

filosófico e científícodo século XVIII, isto é, dentro de um mtmdnregido mais ou menos harmoniosamente por um sistema de leis, deprincípios, de relações de causa e efeito, de psicologias definidas, degeografias bem cartografadas. No meu caso, a_sjispeita ^ja_exisiênciade outrajjrdem, mais secretaj menos comunicável, e a fecunda descoberta de Alfredjarry, para quem o verdadeiroestudo da realidadenão residia nas leis e sim nas exceções a essas leis, foram alguns dospj|ncípios orientadores de uma literatura à margem de todorgalismoexcessivamente ingênuo. Por isto, se nas idéias a seguir surgir umapredileção por tudo o que no conto é excepcional, quer se trate dostemas, quer das formas expressivas, creio que esta apresentação daminha própria maneirade entender o mundo explicará a minha tomada deposição eomeu enfoque doproblema. De modo extremo, poder-se-á dizer que só falei do conto tal como o pratico. No entanto, nãocreio que seja assim. Tenho a convicção de que existem certas constantes, certos valores que se aplicam a todos os contos, fantásticos ourealistas, dramáticos ou humorísticos. E pensoquetalvez sejapossívelmostrar aqui tais elementos invariáveis que dão a um bom conto suaatmosfera peculiar e sua qualidade de obra de arte.

A oportunidade de intercambiar idéias sobre o conto me interessapor diversas razões. Vivo num país — a França — em que o gênerotem pouca vigência, embora nos últimos anos se note entre escritorese leitores um interessecrescente por esta forma de expressão. De todo

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ALGUNS ASPECTOS DO CONTO

modo, enquanto os críticos continuam acumulando teorias e travando acirradas polêmicas emtorno do romance, quasejiinguém seinte-ressajjela_proJblernátjca_dojconto. Viver como contista num país emque esta forma expressiva é um produto quase exótico obriga necessariamente a buscar em outras literaturas o alimento que ali falta. Poucoa pouco, em seus textos originais ou mediante traduções, vai-se acumulando quase rancorosamente uma enorme quantidade de contosdo passado e do presente, e chega o dia em que se pode fazer umbalanço, tentar uma aproximação valorativa a este gênero de tão di-fícil definição, tão fugidio em seus aspectos múltiplos e antagônicos,e em última instância tão secreto e dobrado sobre si mesmo, caracolda linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário.

Mas para além deste alto no caminho que todo escritor deve fazerem algum ponto do seu trabalho, para nós falar do conto tem uminteresse especial, pois quase todos os países americanos de língua espanhola estão dando ao conto uma importância excepcional, que jamais teve em outros países latinos como a França ou a Espanha.JEntrenós, como é natural nas literaturas jovens, a criação espontânea quasesemprejMrecede o exame crítico, e é bom que assim seja. Ninguémpo^ejretenderjLyie_só-Se_deva escrevercontos após conhecer suasleis.Em primeiro lugar, não existemtais leis; no máximo pode-se falar depontos de^vjsta^certas^oiistaiues que dão uma estrutura a este gênerotão pouco enquadrável; em segundo lugar, os teóricos e críticos nãotêmjquejer_os próprios contistas, e é natural que eles só entrem emcena quando já existe um acervo, um acúmulo de literatura quejjer-rnita indagar_e_e§clareccr seu desenvolvimento e suas qualidades. NaAmérica, tanto em Cuba como no México,no Chileou na Argentina,uma grande quantidade de contistas trabalha desde o começo do século sem se conhecer mutuamente, descobrindo-se às vezes de maneira quase póstuma. Diante deste panorama sem coerência suficiente,em que poucos conhecem a fundo o trabalho dos outros, creio que éútil falar do conto passando por cima das particularidades nacionaise internacionais, por ser um gênero que tem entre nós uma importân-

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cia e uma vitalidade que crescem dia a dia. Algum dia serão feitasantologias definitivas— como nos países anglo-saxões, por exemplo— e se saberá até onde fomos capazes de chegar. Por enquanto nãome parece inútil falar do conto em abstrato, como gênero literário. Setivermos uma idéia convincente desta forma de expressão literária,ela poderá contribuir para estabeleceruma escala de valores nessa antologia ideal a ser feita. Há confusão demais, mal-entendidos demaisneste terreno. Enquanto os contistas avançam em sua tarefa, já é tempo de falar dessa tarefa em si, à margem das pessoas e das nacionalidades. Éjreciso chegar a uma idéia viva do que é o conto, e isso ésempre difícil na medida emque asjdéias tendem ao abstrato, a des-vitalizar seu conteúdo, ao passo que a vida rejeita angustiada o laçoque a_£Qnceituação quer lhe colocar para fixá-la e categorizá-la. Masse não possuirmos uma idéia viva do que é o conto, teremos perdidonosso tempo, pois um conto, em última instância, se desloca no_pJa.nohumano em que a vida e a expressão escrita dessa vida travam umabatalha fraternal, se me permitem o termo; e o resultado desta batalha é o próprio conto, uma síntese viva e ao mesmo tempo uma vidasintetizada,_algo_comaxiLJxemor deágua dentro de umcristal, ajfuga-cidade numa permanência. Somente com imagens pode-se transmitira alquimia secretaque explicalTressonâncra profunda que um grandecõntõtem em nós, assimcomo explica por que existemmuito poucoscontos verdadeiramente grandes.

Para entender o caráter peculiar do conto costuma-sej:ompará-locom o romance, gênero muito mais popular e sobre o qual proliferamos preceitos. Afirma-seT por exemplo, que o romance se desenvolve nopapel, e por isto no tempo de leitura, sem outrosjimites senão o es-gotamento da matéria romanceada: o conto, por seu lado, parte danoção de limite, em primeiro lugar delimite tísico, a ponto de passara receber na França, quandçrpassa de vinte páginas, o nome de nou-velle,jjênero equilibradoentre o conto e o romancepropriamentedito.Neste sentido, o romance e o conto podem ser comparados analogi-camentejcom o cinema e a fotografia, posto que um filme é em prin-cípio uma "ordem aberta", romanesca, ao passo que uma fotografia

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bem-sucedida pressupõe uma rígida limitação prévia, imposta empartepelo reduzido campo que a câmera abarca e pela maneira como ofotógrafo utiliza esteticamente tal limitação. Não sei se vocês já ouviram um fotógrafo profissional falar sobre sua arte; sempre me surpreendi com o fato de em muitos aspectos ele se expressar como poderia C' 'fazê-lo um contista. Fotógrafos da qualidade de um Cartier-Bressonou de um Brassai definem sua arte comoum aparente paradoxgxo.derecortarcerto fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limi-

tes^jiias de maneira tal que esse recorteoperecomojnTjajexjjlosão queabra de_p_ar em par uma realidade muito mais ampla, como uma visãodinâmica que transcende espiritualmente o campo abarcado pela câmera. Enquanto no cinema, assim como no romance, a captaçãodes-sa realidade mais ampla e multiforme é obtida mediante o desenvol-vimento de ^elementos parciais, cumulativos, que não excluem,naturalmente, uma síntese que dê o "clímax" da obra, numa fotogra-fia_oji_nurn conto de grande qualidade se procede inversamente, istoé, o fotógrafo ou o contista se vêem obrigados a escolher e limitarumgjmagem ou um acontecirnento-que-sejanLs^ggi/ücafj.fos, que nãoapenas tenham valor em si mesmos, ma^jmejejam capazes defuncionar no espectador ou no leitor como umajes£écie de abertura, defermento que projeta_ainteligênciae a sensibilidadeem direção a algoque chega muito maisjonge dojque o episódio visual ou literário con-tidosnafoto^u nqconio. Um escritor argentino muito amigo do boxeme dizia que, no combate que se dá entre um texto apaixonante e seulejtxn, o romance sempre ganha por pontos, ao passo que osomo /Cq^ __.precisa ganhar por nocaute. Isto é verdade, pois o romance acumulaprogressivamente seus efeitos nojeitor, enquanto um bom conto éincisivo, mordaZjjem quartel desde as primeiras frases. Não se entenda isto demasiado literalmente, porque o bom contista é um boxeador !muito astuto e vários dos seus golpes iniciais podem parecer poucoeficazes quando, na realidade, já estão minando as resistências maissólidas do adversário. Escolham o grande conto que preferirem eanalisem a sua primeira página. Eu ficaria surpreso se encontrassemelementos gratuitos, meramentejdecorativos. O contista sabe que não

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pode proceder cumulativamente, que não tem o tempo como aliado;seu único recurso é trabalhar em profundidade, verticalmente, sejapara cima, seja para baixo do espaço literário. E isto. quTêxpressodeste modo parece uma metáfora, manifesta no entanto o essencial dornitoda. O tempo do çontg_e o espaço do conto precisam estar comoqjie_cojid^nsados, submetidos a uma alta pressão espiritual e formalpara^proyocar a "abertura" a que me referi. Basta indagarjor_gj»»determinado conto é ruim. Não é ruim pelo tema, porque em litera-tura não há ternas bons ou_temas ruins, há apenas um tratajrientob9m.ou_LU>mjdjLterna- Tampouco é ruim porque ospersonagens careçam de interesse, jáqueaté uma pedra é interessante quando dela seocupam um Henry James ou um Franz Kafka. Um conto é ruim quando é escrito sem a tensão que deve se manifestar desde as primeirasPglgvggj>u-a§ primejras-cengs. EasstrrrpQdemos adiantar que asnoçõesde significada de (ntensidadg e(ge tensãoiirão nos permitir, como severá, alxjrdarmelhor a estrutura mesma do conto.

Dizíamos queo contista trabalha com ummaterial que.qualifica-mos de significativo. O ejgmento significativo doconto parece residirprincipalmente^o seiÇtemaj no_fato_de eleger um acontecimento realou fingido que possuajynisteriosa propriedade He irradiar algr. paraalém desi mesmo, a ponto de transformar um vulgar episódio domés-ricojcomo ocorre em tantos relatos admiráveis de uma Katherine M__ns-field ou de um Sherwood Anderson. ngjresumo implacável de determi-nada CQndiçl9jbiumaiia_ou no símbolo ardente de uma ordem socialjojj_Ju__tór_c__. Um_co.nto._e significativo quando quebra seus própripslimites com uma explosão de energia espiritual que ilumine brusca

mente algo que chega muito além do pequeno e às_vezes miserável.episódio que_cj__n_:a. Penso, por exemplo, nojgma da maioria dos admiráveis relatos de Anrnn Trhpkhnv O que há ali que não seja tristemente cotidiano, medíocre, muitas vezes conformista ou inutilmente

[rebelde? O que senarra nesses relatos é quase o mesmo que escutávamos quandcTcrianças, nas tediosas tertúlias que tínhamos decompartilhar com osadultos, contadoj)elos avós ou as tjas; a pequena, insignificante crônicafamiliar de ambições frustradas, de modestos dramas

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locais, de angúsn^dojamanho de uma sala, de um pjano, de um chácom doces. E apesar disso os contos de ^herine^Mansfieíd. deTí^?l<n<JV' sãojjgnifícativos, algo neles explode enquanto os lemos,Pf°Pgndo umaj^cie deruptura docotidiano que vaTrcuútõãíém doepisódio relata_do. Vocês já devem ter percebido que tal significaçãomisteriosa não_reside somente no tema do conto, pois na verdade a

jn^^-^Ç-^ntoAXüinsjjue todos já leram contém episódios simila-resaos que são abordados pelos autores mencionados. Aidéia de sig-nificação não pode ter sentido se não a relacionarmos com asdeinten-s!ía^? e^e tens-ão, que náose referem mais apenas ao tema, e sim aotratamento literário desse tema, à técnica empregada para desenvolverojema. Eeis onde, bruscamente, se dáãlronteijãentre obom contistae^ruim. Por isso yamosjnos deter com todo o cuidado possível nestaencruzilhada, parajentar entender um pouco melhor essa estranha for-m^de^vida que é um conto bem-sucedido e ver por que está "vívoenqju^jitojpjujtros, que aparentemente se parecem comi eje^nãopassamdejtmta^obre..papel, alimento para o olvido. ~ -j->

Qjhemos a coisa do ângulo Hn rnntista, e neste caso, forçosamente, a partir da minha própria versão do assunto. Um contista éunijiomemjme de súbito, rodeado pela imeijsa algaraviído mundo,comprometido em maior ou menor grau com a realidade históricaque o contém, escolhe um determinado tema e faz com ele um conto.Escolherjxm tema não é tão simples assim. As vezes o contista esco-Ihe, outras vezes sente que o tema se lhe impõe irresistivelmente, forçando-o a escrevê-lo. No meucaso,a grande maioria dos meus contos foi escrita — como dizer isto? —à margem da minha vontade,acima ou abaixo da minha consciência raciocinante, como seeu fos-se apenas^um médium peloqual uma força externa passasse e se manifestasse. Mas isto, que pode depender do temperamento de cadaum, não altera o fato essencial: em dado momento há tema, quer sejainventado oj^escolhido voluntariamente, ou estranhamente impostoa partir de um plano em que nada é definível. Há tema, repito, e estetejna^va[je tornar conto. Antes que isso aconteça, o que podemosdizer sobre o tema em si? Por que este tema e não outro? Que razões

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levam, consciente ou inconscientemente, o contista a escolher Hefer-minado tema?

Creioque o tema do qual sairá um bomconto é sempreexcepcional, mas com isto não quero dizer que um tema deva ser extraordinário, fora do comum, misterioso ou insólito. Muito pelo contrário,pode tratar-se de um episódioperfeitamentetrivial e cotidiano. O excepcional consiste numa qualidade parecida com a do ímã; um bomtema atrai todo um sistema de relaçõesconexas, coagula no autor, emais tarde no leitor, uma imensa quantidade de noções, entreyisões.sentimentos e até idéias que flutuavam virtualmente em sua memóriaou em sua sensibilidade; um bom tema é como um sol, um astro emtornodo qualgira umsistema planetário deque,muitas vezes, nãosetinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, nos revelasse sua existência. Ou então, para sermos mais modestos e maisatuais ao mesmo tempo, um bom tema tem algo de sistema atômico,de núcleo em torno do qual giram os elétrons; e tudo isto, afinal, jánão é uma espécie de proposta jJejyjda, uma dinâmica que nos instaa sair de nós mesmos e a entrar num sistema de relações mais complexo e mais bonito? Muitas vezes me perguntei qual é a virtude deçjejrtos_contos inesquecíveis. Em determinado momento eles foram

lidos juntocommuitos outros, queaté podiam serdos mesmos autores. E eis que os anospassaram e nós vivemos e esquecemos tantacoisa:mas aqueles pequenos, insignifica\ntexcpntnSj aquelesgrãos deareia no imenso mar da literatura continuam ali, pulsando em nós.Não é verdade que cada pessoa tem suacoleção de. contos? Eu tenhoa minEaTe^poderia citar alguns nomes. Tenho William Wilson, deEdgar Poe; tenhoBola desebo, de Guy deMaupassant. Os pequenosplanetas giram e giram: ali está Uma lembrança de Natal, de TrumanCapote; Tlon, Uqbar, Orbis Tertius, deJorge Luis Borges; Um sonhorealizado, de JúãrTCarlos Onetti; Ajnorte de Ivan_llich, de Tolstoi;Fifty Grand, de Hemingway; Os sonhadores, de Isak Dinesen; e assim poderia prosseguir indefinidamente... Vocês já devem ter percebido que nejTjLtodos estes contos são obrigatoriamente de antologia.Por que perduram na memória? Pensem nos contos que.voeis, não

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ALGUNS ASPECTOS DO CONTO

conseguiram esquecer e verão que todos eles têm a mesma característica: são aglutinantes de uma realidade infinitamente mais vasta quea do meroepisódio que contam, e por isso nos influenciaram com talforça que a modéstia do seu conteúdo aparente, a brevidade do seutexto, não permite suspeitar. E o homem que em determinado momento escolhe um tema e com ele faz um contojerá. um grande.contista sesua^ç.ojh^_^ontiyer —às vezes sem que ele saiba conscientemente disso — a fabulosa ,£asja^em__d_D^egjjejio_a_^grande, doindiyiduajecircunscrito à própria essência jda.eandiçtaJiumana.Todo conto perdurável é como a semente em que está adormecidauma árvore gigantesca. Esta árvore crescerá em nós, dará sua sombraem nossa memória.

Temos, contudo,queesclarecer melhor esta noçãode temassignificativos. Um mesmo tema pode ser profundamente significativoparaum escritor eanódino paraoutro; um mesmo tema despertará enormesressonâncias num leitor e deixará outro indiferente. Para resumir,pode-se dizer quenão há temas absojutamejite sjgjmficativos ou absolutamente insignificantes. O que há é uma misteriosa e complexa aliança entre certo escritor e certo tema em determinado momento, assim como poderá ocorrer depois a mesma aliança entre certos contose certos leitores. Por isso, quando dizemos que um tema é significativo, como no caso dos contos de Tçhçkhpy, taljignjficaçãQá.dejtgrmi-nada em certa medida por algo que se encontra forjdo^tema em si,por algoqueestáantese depois._iaie.lua. O queestáanteséj> escritor,com sua carga de valores humanos e literários, com sua vontade defazer uma obra que tenha um sentido; o que está depois é o tratamento literário do tema, o modo como o contista ataca o seu assunto e ositua yejchal e estilisticamente, estrutura-Q ej^ e porfimo projeta rumo a algoque excede o próprioconto. Aquimepareceoportuno mencionar um fato que me ocorre com freqüência e queoutros contistas amigos conhecem tão bem quanto eu. Éhabitual, nocurso de uma conversa,que alguém relate um episódioengraçado, oucomovente, ou estranho, e depois, dirigindo-se ao contista presente,diga: "Aí está um tema formidável para um conto; dou-o de presente

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para você." Já ganhei desta forma montes de temas; sempre respondiamavelmente: "Muito obrigado" e jamais escrevi um conto com qual-querdeles. Çer_ta_yez, porém, uma amiga me contou distraidamente asaventurasde umaempregada sua em Paris. Enquanto ouvia seu relato,senti que aquilo podia chegar a ser um conto. Para ela, aqueles fatosnão passa.ya.m_de_anedotas curiosas; para mim, bruscamente, carrega-vam-sede um sentido que ia muito além do sen conteúdo simples e atémesmovulgar. Por isso, toda vezque alguém me pergunta: Cjomqjdis-tinguir çQírejim tejria insigrijfj£_mte — por mais divertido ou emocionante que seja — e outro significativo?, respondo que o escritor é oprimeiro a sofrer o efeito indefinível porém avassalador de certosje-mas, e precisamentepor isto é um escritor. Assim como para MareeiProust o sj3Jjox.de uma madeleine molhada no chá ajbrja bruscamenteum leque imenso de lembranças aparentemente esquecidas, de maneira análoga o escritor reage frente a certos temas da mesma forma queseu cojitp, mais tarde, levará o leitor a reagir. Todo conto está, então,predeterminado pela. aura, pela fascinação irresistível .guejj terna criaem seu criador.

Chegamos assim ao final desta primeira etapa do nascimento deum conto e ao limiar de sua criação propriamente dita. Aí está o contista, que escolheu um tema valendo-se das sutis antenas que lhe permitem reconheceros elementos que depois irão transformar-se em obrade arte. Ocontista está diante do seu tema, diante do embrião que jáé vjda mas qne ainda nãn adquiriu sua forma dffinifjya Para ele, estetema tem sentido, tem significação. Mas se tudo sej_eduzisse_a_isto, depouco serviria; agora, como última etapa do processo, como juizimplacável,o leitor está à espera, como elo final do processo criativo,o êxito ou o fracasso do ciclo. E é então que o conto tem que nascerponte, tem que nascer paisagem, tem que dar o pulo que projete asjgnific.açj_njrucial, descoberta pelo autor, até esse extremo maia pas-siyo, menos vigilante e muitas vezes até indiferente que chamamos deleitor. Os contistas inexperientes costumam cair na ilusão de imaginar que bastará.pura£ simnl__s__i_ait£^

veu para comover por.sua ye? qs l?[tores. Inconem na ingenuidade

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ALGUNS ASPECTOS DO CONTO

daquele que acha seu filho belíssimo e sem hesitar acredita que osoutros o consideram igualmente belo. Com o tempo, com os fracassos, o contista capaz de superar esta primeira etapa ingênua aprendeque em literatura não bastam as boas intenções. Descobre que éjjre-ciso o ofício de escritorjjarajrecriarno leitor a comoção que o levouaj_screy_e£_o_çj__itp, e que esseofícioconsiste,entre muitas outras coisas,em atingir o clima próprio de todo grande conto, que obriga a continuar lendo, que captura a atenção, que isolado jeitor de tudo o que ocerca e, terminado o cpnto^yolta a conectá-lo à sua circunstância deuma maneira nova,enriquecida, maisprofundaou mais bela. Eo únicomodo de realizar tal seqüestro temporário do leitor é com um estilobaseado na intensidade e na tensão, um estilo em que os elementosformais e exr^essiyos_se ajustem, sem a menor concessão, à índole dotema, dando-lhe a sua forma visual e auditiva mais penetrante e ori-gmgjj tornando-o único, ine^squèçíyel, fixando-o para sempre no seutempo e n^serr-aiHbiente e no seu sentido mais primordial. O quechamo de^tensidacffi num conto consiste na eliminação de todas asidéias ou s^açõe^intermedjárias, de todos os recheios ou fases detransição que o romance permite e até exige. Nenhum de vocês deveter esquecido O barril de amontillado, de Edgar Poe. O extraordiná-rio desteconto é a brusca prescindência de toda descrição de ambienta, ..Na terceira ouquarta frase jáestamos no coração do drama, assis-tindoAç<mcTetiTa^njmp\iic.ávi'] He urna vingança Qsassassinos, deHemjngway, é outro exemplo de intensidadeobtida mediante a eliminação de tudo o que não convirja essencialmente em direção ao dra-ma. Mas pensemos agora nos contos de Joseph Conrad, de D. H. La-wrence, de Kafka. Neles, com as modalidades típicas de ca<iã~ima, aintensidade é de outra ordem, e prefiro dar-lhe o nome devtensão) Éuma intensidade que se exerce na maneira como o autor nos aproxi-ni^Jentamenj^jd^jqiiÊLíLcxintado. Ainda estamos muito longedesabero que vaiocorrerno conto, e ir^rru^Mmjiãopodem^de suaatmasfera. Nocaso de O barril de amontillado e de Os^assas-sinos, osJatos, despojados de qualquer preparação, saltam sobre nóse nos capturam; em contrapartida, num relato demorado e caudaloso

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d_e_Hejiry._Jarnes — A lição do mestre, por exemplo — sente-se deimediato^ueos fatos emsi carecem de importância, que tudo o queinteressa está nas forças queos desencadearam, na malha sutil queosPÇ?£?ííeu e os acompanha. Mas^ tanto a intensidadêjda ação conio atensão interna do relato são produtos do que antes chamei de ofíciodcgscritor, eaqui nos vamos aproximando dofinal deste passeio peloconto. No meu país, e agora em Cuba, pude ler contos dos autoresmais variados: maduros ou jovens, da cidade e do campo, entreguesà literatura por razões estéticas ou porimperativos sociais do momento, comprometidos ou não. Pois bem,por maisque isto pareça acacia-no, direi que tanto na Argentina como aquios bons contosestão sendo escritos pelos que dominam o ofício no senrjdo já evpr»«;fr> Umexemplo argentino esclarecerá isto melhor. Em nossas províncias centrais e nortistas há uma longa tradição de relatos orais, que os gaúchos contam à noite ao redorda fogueira, queospais continuam contando aos seus filhos, e de repente pjssam pela pena de um escritorregignalisía e, na esmagadora maioria dos casos, transformam-se emcontos péssimos. O qu^ocorceu? Os relatos em si são saborosos, traduzem e resumem a experiência! o senso de humor e o fatalismo dohomem do campo; alguns seelevam atémesmo à dimensão trágica oupoética. Quando os ouvimos da boca de um velho nativo, entre umchimarrão e outro, sentimos uma espécie de anulação do tempo epensamos que também os aedos gregos contavam assim as façanhasde Aquiles, para maravilhamento de pastores e viajantes. Mas nessemomento, quando deveria surgir um Homero para fazer uma Ilíadaou uma Odisséia com aquele somatório de tradições orais, surgejiomeu paísum cavalheirojpara quem a cultura dascidades é umsinal dedecadência, paraquem oscontistas que todos amamos sãoestetas queescreveram para mero deleite de classes sociais liquidadas, e esse cavalheiro também entende que para se escrever um conto basta regis-trai' r^r_e_5_ailayjr_]rialQJia^ conservandoao máximo o tomfalado, as expressões camponesas, as incorreções gramaticais, tudoaquilo que chamam de cor local. Não sei se esta maneira de escrevercontos populares é cultivada em Cuba; tomara que não, porque no

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meu país_só produziu volumes indigestos que não interessam aoshomens do campo, que preferem, .continuar ouvindo os contos entreum gole e outro, nem aos leitores d_Lcidade, que por mais estragadosque estejam leram muito bem os clássicos do gênero. Em compensação — e me refiro também à Argentina —, tivemos escritores comoum Roberto J. Payró, um Ricardo Güiraldes, um Horacio Quiroga eum Benito Lynch, que, partindo também de temas muitas vezes tradicionais, ouvidos da boca de velhos nativos como um Don SegundoSombra, souberam potencializar este material e convertê-lo em obrade arte. Mas Quiroga, Güiraldes e Lynch conheciam a fundo o ofíciode escritor, isto é, só aceitavam temas significativos, enriquecedores,assim como Homero deve ter dispensado um bocado de episódiosbélicos e mágicos para só conservar aqueles que chegaram até nósgraças à sua enorme força mítica, à sua ressonância de arquétiposmentais, de hormônios psíquicos, como Ortega y Gasset chamava osmitos. Quiroga, Güiraldes e Lynch eram escritores de dimensão uni-versal, sem preconceitos locãUstas ou étnicos ou populistas; por isto,além de escolher cjiid^a^pjajne_ritj^j^-i^mas_de seus relatos, submetiam-nos a uma fonnajiterárja, a única capaz de transmitir ao leitortodos os seus valores, todo o seu fermento, toda a sua projeção emprofundidade e em altura. Escreviam tensamente. mostravam intensamente. Não háoutra maneira de tornar um conto eficaz, atingindo oleitoxj___EaAanda=se-em-sua memória.

O exemplo que dei pode ser interessante para Cuba. É evidenteque as possibilidades que a Revolução oferece a um contista são_qua-se infinitas. A cidade, o campo, a luta, o trabalho, os diferentes tipospsicológicjg^j3s_c.Qnilitos-deideolQgia e de caráter: e tudo isso exacerbado pelo desejo que se nota em vocês de atuar, de se expressar, decomunicar-se como nunca haviampodido fazer antes. Mas como tra-djizir_tudo isso em grandes contos, em contos que cheguem ao leitorcom a força e a eficáciajiecessárias? Gostaria aqui de aplicar concre-tamente o que afirmei num terreno mais abstrato. O entusiasmo e aboa vontade não bastam por si sós,assim comonão bastao ofícicTdeescritor por si só para escrever os contos que fixem literariamente (quer

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dizer, na admiração coletiva, na memória de um povo) a grandezadesta Revolução em marcha. Aqui, maisque em nenhum outro lugar,atualmente sejrequer uma fusão totaldestas duas forças, a do homemplenamente comprometido com sua realidade nacional e mundial e ado escritorjucidamente seguro de seu ofício. Neste sentido não háengano possível. Por mais veterano, por mais experiente que seja umcontista, se lhe faltar uma motivação entranhável, se seus contos nãonascerem de uma vivência profunda, sua obra não passará dejneroexercício estético. Mas o contrário será ainda pior, porque de nadavalem o fervor, a vontade de rn_m_2!_JíI3.rJ.?.?_?__gniS3E'*m^ *"* gp ^arer*dqsjnstrumentos expressivos, estilísticos, que possibilitam tal comunicação? Neste momentoestamosabordando o ponto crucialda questão. Creio, e digo isto após haver pesado longamente todos os elementos que estão em jogo, que escrever para uma revolução, queescrever dentro de uma revolução, que escrever revolucionariamentenão significa, como muitos pensam, escrevernecessariamentesobre aprópria revolução. Jogando um pouco com as~palavras, EmmanuelCarballo dizia aqui, há alguns dias, que em Cuba seria mais revolucionário escrevercontos fantásticos que contos sobre temas.xevoiucio-nários. Naturalmente a frase é exagerada, mas cria umajmpaçjênciamuito reveladora. Por minha parte, creio que o escritor revolucionário é aquele em que se fundem indisspluyelmentea consciência daseulivre compromisso individual e coletivo com aquela outra soberanaliberdade culturalconferida pelo plenodomíniodo seu ofício. Seesseescritor, responsável e lúcido,decide escrever literatura.fantástica, oupsicológica, ou voltada para o passado, seuato é umato de liberdadedentro da reypluçãp, e poristo étambém um atQie^oJuçjonJno_pormais que seusjcontos_nãa.tratem das formas ind.mdjaaÍ5JBU.CQktivasadotadas pela revolução. Contrariamente ao critirio-estreito dos mui-tos que confundem literatura c^mpedagogia, literatura com ensino,literatura com^^tnnjajrneritp ideológico, um escritor revolucionáriotem todo o direito de djrigir-se a um leitor muito maiscomplexo,muitomaisj|x!gente em matériajespiritual do que podem imaginar os escritores e críticos improvisados pelas circunstâncias e convencidos de

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que seujriundo pessoal é aúnico mundo existente, de que as preocupações do momento são as únicas preocupações válidas. Repitamos,aplicando-a ao que nos cerca em Cuba, a admirável frase de Hamletajiorácio: "Há muito mais coisas no céu e na terra do que supõe tuafilosofia..." E pensemos que um escritor não é julgado apenas pelotema de seus contos ou de seus romances, mas por sua presença vivano seio da coletividade, pelo fato de que o^ompromisso total da suapessoa é uma garantia inegáveLda-verdade-e da necessidade dejmaobra, por mais alheia que possaparecer^àscircunstânciasjlo momento. Essajibra não é alheia à revolução pelo fato de não ser acessívela to^jnundo. Ao contrário, ela prova que existe um vasto setor deleitores potenciais que, em certo sentido, estão muito mais afastadosque o escritor d^smefâsfjnaisjda-revQlução, as metas de cultura, deliberdade, de pleno gpzo.da-condiçãahumana que os cubanos adotaram, para admiração de todos os que os amam e os compreendem.Quanto mais alto mirarem os escritores que nasceram para isto, maisaltas serão as metas finais do povo a que pertencem. Cuidado com afácil demagogia de exigir.uma literatura acessíye[ a todojnundo!Muitos dos que a apóiamjTãpjêm outra razão para fazê-lo além desua evidente incapacidade para.c£impr£ejidex.unT_a Hteratura_de maioralcance. Pedem clamorosamente temas populares, sem suspeitar quemuitas vezes o leitor, por mais simples que seja, distinguira instintivamente entre um conto popular mal escrito e um conto mais difícil ecomplexo que irá obrigá-lo a sair por um instante do seu pequenomundo e lhe mostrará outra coisa, seja lá o que for, mas outra coisa,algo diferente. Não tem sentido falar de temas populares simplesmen-te. Os contos sobre temas populares só serão bons se se ajustarem,como qualquer outro conto, à exigente e difícil_mecânica interna quetentamos mostrar na primeira parte,desta palestra. Há anos tive a provadesta afirmação oa Argentina, numa roda de: homens..do campo queincluía alguns escritores. Alguém leu um conto baseado num episódiodajio_aa^guexna_de-lnd^eftdêftcia, e_ícxitXLç_om_uma simplicidade deliberada para mantê-lo^cqmo dizia seu autor, "no nível do camponês"". O relato foi ouvido cortesmente, mas era fácil perceber que não

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atingira o alvo. Depois, um de nós leu Apatado macaco, o justamente famoso conto de W. W.Jacobs. Olnteresse, a emoção, oespantoe, por fim, o entusiasmo foram extraordinários. Lembro que passamos o resto da noite falando de feitiçaria, de bruxos, de vingançasdiabólicas. E tenhocerteza de queo contodeJacobs continua vivo nalembrança daqueles gaúchos analfabetos, ao passo que o_amjos_upos-tamente popular, fabricado para eles, comseuvocabulário, suasaparentes possibilidades intelectuais e seus interesses patrióticos deve estartão esquecido quanto o escritor que o fabricou- Vi a emoção queprovoca entre as pessoas simples jima representação deJHamlet, obradifícil e sutil se isto existe, que continua sendo tema de estudos eruditos e de infinitas controvérsias. Éverdade que essa gente não podecompreender muitas coisas que fascinam os especialistas em teatroisabelino. Masqueimportância tenusto? Sóimporta sua emoção, seumaravilhamento e suaelevação diante da tragédia do jovem príncipedinamarquês. O que prova que Shakespeareescrevia verdadeirament-ppara o povo, na medida em que seu tema era profundamente significativo para qualquer um — em diferentes planos, sim, mas tocandoum pouco cada pessoa — e que o tratamento teatral do tema tinha aintensidadeprópria dosgrandes escritores, graças à qual são quebradas as barreiras intelectuais aparentemente mais rígidas e os homenssereconhecem econfraternizam num planoquesesituaalém ou aquémda cultura. Naturalmente, seria ingênuopensar que toda grande obrapode ser entendida e admirada pelas pessoas simples; não é assim, enão pode ser. Mas a admiração provocada pelas tragédias gregas ouas de Shakespeare, o apaixonado interesse despertado por muitoscontos e romances nada simples ou acessíveis deveriam fazer os partidários da mal chamada "arte popular" suspeitarem que sua noçãode povo é parcial, injusta e, em última instância, perigosa. Não é favor algumao povo propor-lhe uma literaturaassimilável semesforço,passivamente, como quem vai ao cinema ver filmes de caubóis. O quese deve fazer é educá-lo, e isto numa primeira etapa é tarefa pedagógica e não literária. Para mim, foi uma experiência reconfortante verem Cuba como os escritores que mais admiro participam da revolu-

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ção dando o melhor de si sem cercear parte de suas possibilidades emprol de uma suposta arte popular que não será útil a ninguém. Um diaCuba contará com um acervo de contos e romances que conterá, trans-mutada ao plano estético, eternizada na dimensão atemporal da arte,sua gesta revolucionária dos dias de hoje. Mas tais ohras não__terjiosido escritas por obrigação, por palavras de ordem do momento. Seustemas nascerão quando chegar a hora, quando o escritor sentir quedeve plasmá-los em contos ou romances ou peças de teatro ou poemas. Seus temas conterão uma mensagem autêntica e profunda, porque não terão sido escolhidos por um imperativo de cajátgxjüdilicoou proselitista, mas por uma força irresistível que se imporá ao autor,e que este, lançando mão de todos os recursos de sua arte e de_suatécnica, sem sacrificarnada a ninguém, haverá de transmitir ao leitorcomo se transmitem as coisas fundamentais: de sangue a sangue, demão a mão, de homem a homem.

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