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INTRODUÇÃO Há muitos anos, a inteligência artificial foi tema recorrente em filmes, livros e outras obras de ficção. De robôs “bicentenários” a naves espaciais relutantes em desligar seus sistemas de coordenação, a tecnologia possuía ares quase míticos – muitas vezes, era difícil acreditar que um dia transitaríamos entre máquinas inteligentes e sistemas cognitivos capazes de agir e tomar decisões por conta própria. A evolução tecnológica nos trouxe a inteligência artificial em um gradiente quase imperceptível. Em outras palavras, é difícil precisar o dia em que o ser humano passou a “trocar ideias” com sistemas autônomos, uma vez que as diferentes nuances dessa tecnologia ampliam as suas aplicações. John McCarthy 1 , considerado o pai da inteligência artificial, a definiu como a ciência e a engenharia de fazer máquinas e, especialmente, computadores inteligentes; além disso, afirmou que a inteligência é a parte computacional capaz de alcançar metas no mundo, apontando que há tipos e graus de inteligência em pessoas, animais e inclusive nas máquinas. Isso torna quase hercúlea a tarefa de decidir o que é ou não é um sistema de inteligência artificial. Um buscador que prevê as preferências do usuário; um sistema de navegação capaz de alterar o comportamento de motoristas de toda uma cidade; um assistente pessoal personalizado, disponível em inúmeros smartphones; robôs que correm em florestas desenvolvendo altíssimas velocidades sem sequer trombar com uma árvore; tudo isso pode ser considerado inteligência artificial? Contudo, talvez mais urgente do que definir inteligência artificial seja identificar suas inúmeras aplicações e pensar nos impactos sociais que essa tecnologia traz, seja qual for seu nível de profundidade e desenvolvimento. Aqui, cabe destacar que a inteligência artificial pode apresentar duas características importantes: primeiro, não necessariamente todos os sistemas estão programados para um mesmo nível de autonomia; segundo, alguns podem aprender conforme entram em contato com situações reais. Nesse sentido, surgem questões jurídicas e sociais, como a possibilidade de lhe atribuir personalidade jurídica e delimitar a responsabilidade advinda de suas ações, por exemplo. Contudo, o nível de complexidade dessa tecnologia complica a forma como agentes sociais lidarão com seus efeitos. 1 What Is Artificial Intelligence? Disponível em: <http://jmc.stanford.edu/articles/whatisai/whatisai.pdf>. Acesso em 30 mai. 2018.

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INTRODUÇÃO

Há muitos anos, a inteligência artificial foi tema recorrente em filmes, livros e outras obras de ficção. De robôs “bicentenários” a naves espaciais relutantes em desligar seus sistemas de coordenação, a tecnologia possuía ares quase míticos – muitas vezes, era difícil acreditar que um dia transitaríamos entre máquinas inteligentes e sistemas cognitivos capazes de agir e tomar decisões por conta própria.

A evolução tecnológica nos trouxe a inteligência artificial em um gradiente quase imperceptível. Em outras palavras, é difícil precisar o dia em que o ser humano passou a “trocar ideias” com sistemas autônomos, uma vez que as diferentes nuances dessa tecnologia ampliam as suas aplicações.

John McCarthy1, considerado o pai da inteligência artificial, a definiu como a ciência e a engenharia de fazer máquinas e, especialmente, computadores inteligentes; além disso, afirmou que a inteligência é a parte computacional capaz de alcançar metas no mundo, apontando que há tipos e graus de inteligência em pessoas, animais e inclusive nas máquinas. Isso torna quase hercúlea a tarefa de decidir o que é ou não é um sistema de inteligência artificial.

Um buscador que prevê as preferências do usuário; um sistema de navegação capaz de alterar o comportamento de motoristas de toda uma cidade; um assistente pessoal personalizado, disponível em inúmeros smartphones; robôs que correm em florestas desenvolvendo altíssimas velocidades sem sequer trombar com uma árvore; tudo isso pode ser considerado inteligência artificial?

Contudo, talvez mais urgente do que definir inteligência artificial seja identificar suas inúmeras aplicações e pensar nos impactos sociais que essa tecnologia traz, seja qual for seu nível de profundidade e desenvolvimento. Aqui, cabe destacar que a inteligência artificial pode apresentar duas características importantes: primeiro, não necessariamente todos os sistemas estão programados para um mesmo nível de autonomia; segundo, alguns podem aprender conforme entram em contato com situações reais. Nesse sentido, surgem questões jurídicas e sociais, como a possibilidade de lhe atribuir personalidade jurídica e delimitar a responsabilidade advinda de suas ações, por exemplo. Contudo, o nível de complexidade dessa tecnologia complica a forma como agentes sociais lidarão com seus efeitos.

1 What Is Artificial Intelligence? Disponível em: <http://jmc.stanford.edu/articles/whatisai/whatisai.pdf>. Acesso em 30 mai. 2018.

Uma pluralidade de desafios

Tais questões decorrem diretamente da natureza complexa dos sistemas cognitivos. Ainda de acordo com John McCarthy, máquinas possuem tipos e graus diferentes de inteligência; assim, lembremos que a grande promessa/vertente da inteligência artificial consiste na tomada independente de decisões, o que evidencia a necessidade de compreender quão autônomo o sistema pode ser e se é possível prever os desdobramentos e a evolução de seu aprendizado. Ou seja, além de tais sistemas apresentarem diferentes níveis de autonomia, alguns ainda são capazes de aprender conforme passam por experiências reais – como qualquer ser humano.

A capacidade de aprendizado automático das máquinas – ou machine learning – é a promessa para otimização de trabalhos e desenvolvimento de serviços, uma vez que mediante o fornecimento de dados e parâmetros os algoritmos são capazes de tomar decisões baseadas nos padrões que lhes foram ensinados e, inclusive, criar novos padrões a partir de sua aprendizagem automática. Desse modo, a depender do nível de autonomia do sistema inteligente e da maneira com que foi programado, a própria inteligência artificial poderá criar novos padrões e, consequentemente, optar por novas ações.

Assim, temos que o tipo e o grau de inteligência – nível de autonomia – necessariamente implicarão, nos desdobramentos possíveis, a atribuição de personalidade jurídica aos sistemas inteligentes, bem como a responsabilização pelos atos advindos de sistema de inteligência artificial.

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ONDE PODEMOS ENCONTRAR INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL?

A inteligência artificial já não é mais a grande promessa para o futuro; aos poucos, a tecnologia foi encontrando diferentes aplicações e passou a integrar ativamente nosso cotidiano, das mais simples às mais complexas tarefas.

Diariamente, ao nos indicar o percurso com menos trânsito ou emitir alertas de área com possibilidade de alagamento; sugerir filmes, músicas, notícias e produtos baseados em preferências detectadas; reconhecer rostos em fotografias; e em inúmeros casos, há algoritmos de inteligência artificial operando quase “invisivelmente”. Assim, nem sempre se referir à “inteligência artificial” significa apontar para aquela máquina humanoide (ciborgue) que age à imagem e semelhança do ser humano.

Inteligência artificial (e, muitas vezes, machine learning) está sendo empregada em diferentes campos, dispositivos e sistemas. Invariavelmente, desafia o mundo jurídico ante as novas lides e controvérsias a que pode dar causa.

Antes de apresentar diferentes aplicações, é necessário fazer uma ressalva: não há de se falar em sistemas que substituem profissões, e sim sistemas que auxiliam profissões. Muitos usos da inteligência artificial tornam o exercício profissional mais especializado, ou seja, retiram das mãos de profissionais qualificados a necessidade de desempenhar tarefas repetitivas. Suas responsabilidades, nesse caso, se tornam mais complexas e cada vez mais necessárias. Uma máquina nunca será capaz de substituir características inerentes ao ser humano como empatia e sensibilidade. Ainda que esses algoritmos possuam níveis altíssimos de precisão, o ser humano ainda será necessário.

Feitas essas considerações, falemos sobre algumas das inúmeras aplicações da inteligência artificial, dentre as quais podemos citar:

Carros autônomos: A Alemanha e os Estados Unidos da América avançam nos testes de carros completamente autônomos – que não demandam nenhuma intervenção humana – e recentemente a China concedeu autorização para o início de testes.

Em relatório2 publicado pelo Ministério Federal dos Transportes e Infraestrutura Digital da Alemanha, foram apresentados vinte princípios éticos, os quais evidenciam que a maior preocupação na utilização da inteligência artificial em sistemas de transporte parcial ou totalmente autônomos é a segurança dos que trafegam nas estradas.

Assistentes pessoais: Via de regra, tal tecnologia é o primeiro contato com a inteligência artificial. Aplicações como Siri, GoogleNow, Cortana e Echo auxiliam na organização de compromissos e lembretes de tarefas e possuem a capacidade de executar buscas a partir de comandos de voz.

A inteligência artificial em forma de assistentes é a promessa no relacionamento entre consumidores e empresas. Uma variação de sua utilização é para otimização dos serviços e aumento de êxito e eficácia nos atendimentos ao consumidor, realizados por chatbots. Muitas empresas já utilizam sistemas cognitivos para atender seus clientes em canais digitais como redes sociais, aplicativos e meios de relacionamento. Para além dos sistemas de “digite um número para determinado setor”, muitas pessoas têm suas demandas resolvidas por um computador e sequer se dão conta disso.

De qualquer forma, assistentes pessoais e chatbots são desenvolvidos não só para resolução de problemas, como também no auxílio em buscas, organização pessoal e escolha de produtos que melhor atendam às necessidades do cliente.

Internet das Coisas: a chamada Internet das Coisas (tradução de Internet of Things ou simplesmente IoT) consiste na possibilidade de atribuir conectividade aos mais diversos dispositivos. Para além de telefones celulares, tablets e computadores, tornouJse interessante conectar à rede outras “coisas”, como carros, eletrodomésticos variados, máquinas agrícolas, etc.

Por exemplo, conectar eletrodomésticos à internet facilitará as tarefas de abastecimento das despensas nos domicílios, ante sua capacidade de identificar o término de algum produto ou a proximidade do vencimento de sua validade; um carro conectado será capaz de transmitir à montadora a incidência de problemas ou ser acionado a distância; agricultores podem acompanhar a colheita feita por tratores sem sair de uma sala de comando. Se alinharmos essa tecnologia com inteligência artificial, essas “coisas” poderão tomar decisões por conta própria, conforme a conveniência e preferência dos usuários. Já imaginou uma geladeira que escolhe e compra o seu leite antes mesmo de você perceber que acabou a garrafa?

Saúde: na área da saúde, a aplicação da inteligência artificial é vasta. Já existem no mercado aplicações inteligentes capazes de prever epidemias por meio da intepretação de dados; sistemas já são capazes de detectar depressão a partir de fotografias veiculadas nas redes sociais, ou até mesmo identificar anomalias em batimentos cardíacos auferidos a partir de relógios inteligentes; vivenciamos o desenvolvimento da medicina de precisão mediante análise altamente minuciosa de exames, com otimização de diagnósticos e tratamentos específicos.

Essa é uma área que promove uma série de desafios. Em pouco tempo, será possível imaginar sistemas capazes de diagnosticar, tratar e curar pacientes sem a interferência humana direta. Como fazer para garantir sua confiabilidade? Será possível atribuir responsabilidade em caso de procedimentos e decisões erradas?

Direito: no âmbito jurídico, lawtechs vêm sendo aprimoradas para auxílio no desenvolvimento de tarefas repetitivas antes executadas por advogados e operadores do Direito.

A inteligência artificial é capaz de ler e produzir documentos e contratos com extrema rapidez, auxiliando profissionais em tarefas de auditoria e elaboração de peças e materiais jurídicos. Além disso, há também tecnologias voltadas para a análise de dados jurídicos, a partir de métricas e decisões, aumentando a precisão da atuação e as chances de êxito. Advogados se

2 Ver: Ethics Commission on Automated Driving Presents Report. Disponível em: <https://www.bmvi.de/SharedDocs/EN/PressRelease/2017/084%ethic%commission%report%automated%driving.html>. Acesso em 30 mai. 2018.

dedicarão cada vez mais a casos complexos, deixando o que lhes tomava um tempo desnecessário para essas ferramentas bastante úteis.

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DESDOBRAMENTOS JURÍDICOS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Para além de compreender o que é e onde podemos encontrar inteligência artificial, é necessário entender que conforme tal tecnologia se desenvolve, ela se infiltra na sociedade e a impacta cada vez mais. Inserir um novo “ente” capaz de se relacionar com seres humanos significa admitir novas relações sociais nunca antes presenciadas. O Direito, como regulador de tais relações, deverá ser capaz de abarcar inúmeras situações envolvendo esses sistemas – prevendo inclusive contextos em que máquinas interagem entre si.

Nesse sentido, alguns pilares muito importantes para o Direito deverão ser adequados a uma realidade permeada de sistemas cognitivos de inteligência artificial. Neste artigo, destacamos alguns que poderão ser revistos mais profundamente e que levantam as questões mais sensíveis de uma sociedade em que máquinas começam a aparecer como protagonistas. Na realidade, muitas outras questões jurídicas podem surgir e exigir do Direito uma atenção especial.

Aqui, contudo, falaremos sobre algumas situações em que as mudanças são mais urgentes e/ou o nível de discussão já está mais evoluído.

Responsabilidade

Uma hipótese recorrente nas discussões sobre o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial é que uma evolução mais acentuada depende de um incentivo jurídico: a limitação da responsabilidade dos desenvolvedores e fabricantes em relação às suas criações. A lógica é relativamente simples: engenheiros nunca programariam esses sistemas “autônomos” (e, consequentemente, imprevisíveis até certo ponto) se fossem responsáveis por todo e qualquer problema que causassem em sua utilização na sociedade. Em simpósio realizado em 2016, Peter M. Asaro3 considerou que a imprevisibilidade no funcionamento dos sistemas de inteligência artificial seria um ponto crítico na determinação de responsabilidades; de acordo com o autor, as teorias de responsabilidade existentes desestimulariam a inovação, pois os riscos seriam muito grandes para produtores ingressarem fortemente nesse mercado.

De acordo com Asaro, as teorias tradicionais de responsabilidade não necessariamente teriam efeitos positivos no mercado. Primeiro, utilizandoJse a responsabilidade solidária, toda a cadeia de fornecimento de inteligência artificial ficaria responsável por indenizar a vítima do dano. Seria algo útil para as vítimas, que seriam eficientemente ressarcidas. Fabricantes, contudo, seriam desestimulados a desenvolver sistemas em que o usuário teria o poder de customizar o produto, para manter o controle sobre o risco.

Já em caso de responsabilidade objetiva, o esquema seria próximo ao aplicável para animais: seria esperado que fabricantes, em analogia a proprietários de animais, fossem responsáveis. Como é previsível que animais possam causar danos, a responsabilidade seria aplicada no limite em que padrões de segurança são negligenciados. No caso de animais, estes até podem ser domesticados, o que diminui a possibilidade de que, em determinadas circunstâncias, eles causem danos. Mas como determinar se o sistema de inteligência artificial está devidamente “domesticado”? Aqui temos outro problema que desestimularia tanto o fabricante quanto o proprietário, que teria de lidar com tamanho risco decorrente da imprevisibilidade.

De toda forma, o autor considera que ainda é necessário delinear melhor os desdobramentos e se aprofundar no problema. Entretanto, já poderia ser estabelecido desde já que os sistemas mais rígidos de responsabilidade em suas acepções tradicionais poderiam ser tidos como

3 ASARO, Peter M. The Liability Problem for Autonomous Artificial Agents. In: AAAI Symposium on Ethical and Moral Considerations in NonJHuman Agents. 2016. Disponível em: <http://peterasaro.org/writing/Asaro,%20Ethics%20Auto%20Agents,%20AAAI.pdf>. Acesso em 31 mar. 2018.

grandes empecilhos à popularização da inteligência artificial. Desse modo, uma nova forma de pensar em responsabilidade seria necessária para uma realidade em que estes sistemas se tornam importantes agentes.

Sobre o tema, o Comitê de Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu publicou um relatório4 em maio de 2016 consolidando diversas recomendações acerca de princípios éticos e sugestões para elaboração de normas sobre a regulação da inteligência artificial. Em tal relatório, os sistemas autônomos são apontados como capazes de absorver informações do ambiente, tomar decisões independentes, gerar relações com terceiros e, até mesmo, causar danos. Assim, o Parlamento acredita que aplicar a responsabilidade civil da maneira tradicional, buscando identificar a culpa de desenvolvedor, fabricante, proprietário ou usuário, não é pertinente a esse cenário. Em sentido semelhante ao trazido por Asaro, o documento então conclui que sistemas jurídicos de responsabilização, da forma como estão desenhados atualmente, não conseguiriam definir um robô como culpado e buscam, portanto, sempre culpar um humano por trás.

É trazido um princípio interessante para nortear a discussão: o nível de responsabilidade é proporcional ao nível de instrução dado ao robô; e seu nível de autonomia, ou seja, sua capacidade de aprender e tomar decisões sozinho, é inversamente proporcional à responsabilidade atribuída ao desenvolvedor ou usuário. Isso permite entender que existem diferenças entre habilidades programadas pelo desenvolvedor e outras aprendidas sozinhas. A criação, desta forma, desprendeJse de seu criador.

O relatório indica que a contratação de seguros específicos e a formação de fundos, com base em qualquer tipo de receita gerada pelo robô, por exemplo, podem ser suficientes para cobrir os danos relacionados. Essa é uma reflexão bastante importante: se decidirmos atribuir responsabilidade a esses sistemas, quais seriam os recursos que garantiriam eventuais ressarcimentos, por exemplo? Seria necessário exigir garantias de liquidez?

Por fim, o estudo europeu propõe que deva ser criada uma personalidade jurídica eletrônica, com obrigações e direitos específicos, para robôs mais avançados e que interajam de forma independente com terceiros.

Conforme demonstrado, a maior parte da doutrina considera que teorias da responsabilização deveriam, no mínimo, ser adequadas para aplicações inovadoras em casos que envolvam a tecnologia da inteligência artificial. Essa não seria a primeira vez que a humanidade deveria evoluir estes mecanismos jurídicos diante de uma nova tecnologia – qualquer novo elemento que impacte diretamente as relações sociais demanda uma análise crítica sobre o quanto devemos repensar questões jurídicas tradicionais. De todo modo, é importante considerar dois aspectos quando tratamos da responsabilização de um sistema de inteligência artificial: a) seus diferentes níveis de autonomia; e b) o quanto ele é capaz de aprender com o tempo e experiências passadas. Um primeiro passo para uma revisão de nossas teorias de responsabilidade tradicionais seria entender que cada sistema é único e não devem todos possuir o mesmo tratamento jurídico.

Personalidade Jurídica

O tema da responsabilização possui profunda relação com outra importante questão de Direito: a personalidade. Se sistemas cognitivos e máquinas podem ser completamente autônomos em alguns casos e, consequentemente, tomar decisões por conta própria e ser sujeitos de relações jurídicas, por que não consideráJlos pessoas?

A discussão não é tão absurda quanto parece. Há algum tempo, a humanidade optou por atribuir personalidade jurídica a organizações: desvincular uma associação de pessoas das pessoas que a compõem é uma necessidade milenar. A história da personalidade jurídica remonta a noções

4 O relatório do Parlamento Europeu (Comittee of Legal Afairs) foi publicado no ano de 2016 e está disponível no link: <http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=J//EP//NONSGML%2BCOMPARL%2BPEJ582.443%2B01%2BDOC%2BPDF%2BV0//EN>. Acesso em 31 mar. 2018.

surgidas no Direito romano e que evoluíram através dos tempos5, sendo utilizadas hoje em diversos países para garantir a autonomia de entidades como empresas, por exemplo – o Código Civil de 2002 e a 14th Amendment estadunidense são exemplos de diplomas legais que consideram corporações como titulares de direitos semelhantes aos de seres humanos, em muitos casos. Se tais entidades são capazes de ser dissociadas de um ser humano para fins de direitos, talvez máquinas também possam possuir direitos de personalidade semelhantes a organizações.

Nesse sentido, o Parlamento Europeu também se dedicou a estudar o tema e trouxe considerações em seu relatório a respeito da responsabilidade de sistemas de inteligência artificial (v. item anterior deste artigo). De acordo com o documento, a atribuição de personalidade ao robô seria voltada apenas para ressarcir a vítima em caso de dano, ao passo que separa a responsabilidade do criador. Ou seja, o patrimônio atribuído à personalidade eletrônica visa assegurar a indenização daqueles com que interage.

Em um estudo posterior, Nathalie Nevejans6 expressa seu posicionamento a respeito de vários pontos do relatório do Parlamento Europeu. Especificamente sobre personalidade eletrônica, a autora critica fortemente a atribuição da personalidade eletrônica aos robôs inteligentes. Ela lembra que atribuir o objetivo primordial da lei é limitar a responsabilidade dos agentes sobre os atos do robô. Estritamente a este ponto, considera que não é necessário atribuir personalidade, apenas trabalhar com o conceito de responsabilidade indireta do robô. Isto porque personalidade seria algo atribuído a entidades que tenham características humanas e não a objetos destinados a nos servir; dessa forma, seria incongruente reservar direitos a um robô. A autora entende que a visão de um robô sujeito de direitos e deveres está enviesada na perspectiva da literatura sobre o tema, que não existe na realidade.

Desse modo, mesmo sendo muito difícil determinar a responsabilidade nos casos de danos causados por robôs, ela menciona que já existe base legal para certos problemas, como deficiência no sistema de segurança do robô ou falta de informação do fabricante e, também, que muitas vezes o usuário é o próprio causador do problema. Assim, limitar toda a responsabilidade à personalidade eletrônica, pela dificuldade de apuração de culpa, tornaJse muito perigoso e insensato. Nevejans conclui, então, que somente um humano deveria ter algum tipo de culpa.

Já em 1992, Lawrence B. Solum tentou em seu artigo “Legal Personhood for Artificial Intelligences”7 responder principalmente se a inteligência artificial poderia adquirir personalidade de acordo com a legislação norteJamericana. Ele compara sob vários aspectos a mentalidade humana e robótica, mas conclui que a atribuição de personalidade jurídica ainda depende da convivência social com os sistemas de inteligência artificial.

Steve Tendon8 comenta que o governo de Malta quer possibilitar o registro de arranjos tecnológicos como pessoas jurídicas no país, no intuito de incentivar a aplicação das tecnologias DLT (distributed ledger technology). Seria possível atribuir personalidade às DAOs (decentralized autonomous organizations) e smart contracts, resolvendo o problema da falta de contraparte nos atos em que esses sistemas estão envolvidos. Tais sistemas retiram vários intermediários em diversas operações, e são muito parecidos com corporações. Além disso, em virtude de seu desenvolvimento de maneira anônima via open source, ou por ser muito difícil

5 RODAS, João G. A Evolução que Criou a Pessoa Jurídica Merece Ser Conhecida. Conjur, 2016. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016JabrJ21/olharJeconomicoJevolucaoJcriouJpessoaJjuridicaJmereceJconhecida>. Acesso em 31 mar. 2018. 6 O estudo, denominado “European Civil Law Rules In Robotics”, é de 2016 e pode ser encontrado, em inglês, neste link: <http://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2016/571379/IPOL_STU(2016)571379_EN.pdf>. Acesso em 01 abr. 2018. 7 Disponível em: <http://scholarship.law.unc.edu/nclr/vol70/iss4/4>. Acesso em 30 mai. 2018. 8 Malta Blockchain Regulation Proposal: Legal Personality for DAOs and Smart Contracts. Disponível em: <https://chainstrategies.com/2018/03/11/maltaJblockchainJregulationJproposalJlegalJpersonalityJforJdaosJandJsmartJcontracts/amp/>. Acesso em 30 mai 2018.

de localizar o desenvolvedor; por funcionarem de maneira autônoma; e por interagirem com seres humanos, a atribuição de personalidade é uma possível solução para diversos problemas. Contudo, fica a critério do desenvolvedor requerer ou não o registro do arranjo tecnológico, em Malta ou em outros países. Ou seja, esses sistemas podem simplesmente existir na rede, sem necessidade de ter uma personalidade atribuída, e ser registrados como pessoa em algum país quando se julgar necessário. O autor examina que tal movimento, mesmo que se traduza em uma regulação pouco rígida, é melhor do que a liberdade total, no sentido de dar segurança jurídica à adoção desses arranjos tecnológicos.

NotaJse que, assim como a questão da responsabilidade, a atribuição de personalidade jurídica a sistemas de inteligência artificial não é unanimidade. Antes de uma decisão concreta a respeito dessa possibilidade, seria fundamental entender como funcionam em sistemas de inteligência artificial alguns aspectos que são a base da personalidade jurídica de entidades organizadas: patrimônio, autonomia, representatividade judicial, entre outros. Acima de tudo, é necessário lembrar que a personalidade é um direito que abarca muitos desdobramentos e que atribuíJla a entidades de inteligência artificial não é um ato simples. O papel da experiência e a contribuição de diferentes agentes do ecossistema será primordial para que possamos dar o tratamento jurídico adequado a tais sistemas.

Tributação

Assumindo a possibilidade de conferir personalidade às inteligências artificiais, uma consequência dessa medida seria permitir que esses novos entes tivessem capacidade contributiva e, portanto, pudessem estar sujeitos ao cumprimento de obrigações tributárias.

A esse respeito, é necessário salientar que o sistema tributário brasileiro estabelece tratamento específico para pessoas físicas e jurídicas que atuam na economia. Nesse contexto, um regramento específico se faria necessário para regular as relações jurídicas que tivessem inteligências artificiais como parte, ainda que esse regramento considerasse que tais entes devessem ser considerados pessoas físicas ou jurídicas, com seus respectivos efeitos tributários.

Essa necessidade de atribuição de algum tipo de tratamento específico se dá especialmente em virtude de o art. 126 do Código Tributário Nacional prever que a capacidade tributária passiva (sujeição das pessoas físicas ou jurídicas à tributação) independe: (i) da capacidade civil das pessoas naturais; (ii) de acharJse a pessoa natural sujeita a medidas que importem privação ou limitação do exercício de atividades civis, comerciais ou profissionais, ou da administração direta de seus bens ou negócios; e (iii) de estar a pessoa jurídica regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional.

Portanto, ainda que a legislação civil não venha a definir a capacidade de direito das inteligências artificiais, o Código Tributário Nacional poderia servir de base para estabelecer a capacidade tributária passiva desses entes.

A eventual existência de capacidade tributária passiva não significa necessariamente que o Direito Tributário tem prerrogativa de atribuir personalidade a quem a legislação civil não o fez. O que está permitido pelo art. 126 do Código Tributário Nacional é que o legislador opte por prever que a prática de atos, ainda que realizados por ente sem personalidade jurídica, gere efeitos tributários. Nesse caso, poderia se indicar aqueles que são responsáveis pela obrigação perante o fisco9, ou seja, tornando esse responsável a pessoa obrigada ao adimplemento da obrigação tributária.

Assim, para que a inteligência artificial possa ser considerada diretamente o sujeito passivo das obrigações tributárias, é evidente a necessidade da previsão de sua personalidade em âmbito

9 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 23. edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 383J384.

da legislação civil, sob pena da responsabilidade pelo cumprimento das obrigações tributárias recair sobre seus desenvolvedores.

Por fim, quanto à tributação da renda da inteligência artificial, nos parece que a escolha do legislador de assemelhar a tributação da inteligência artificial ao atualmente existente com as pessoas jurídicas ou pessoas físicas, dependerá da própria escolha do mercado com relação à aquisição da disponibilidade econômica da inteligência artificial, ou seja, se a inteligência artificial manterá a renda advinda das suas atividades, tal qual a pessoa física, ou se existirá alguma forma de “distribuição de dividendos” aos seus desenvolvedores, como atualmente com as pessoas jurídicas.

Aquisição de Patrimônio

Muito embora não tenhamos uma definição clara de patrimônio, é pacífico o entendimento de que o patrimônio serve como uma garantia real do devedor em relação ao credor10. Esse entendimento é, inclusive, encontrado nos arts. 391 e 942 do Código Civil e no art. 789 do Código de Processo Civil, os quais determinam a responsabilidade patrimonial dos devedores, englobando, conforme os citados artigos, os bens presentes e futuros do devedor.

Traçando um paralelo com a pessoa jurídica, uma forma de aquisição de patrimônio possível à inteligência artificial é a de integralização de bens e direitos pelos seus desenvolvedores, de forma a possibilitar que a inteligência artificial possua um patrimônio inicial para o início das suas atividades. Ainda, outra forma de aquisição de patrimônio, tal qual possível por pessoas físicas e jurídicas, é a construção de um patrimônio por meio da aquisição ou, ainda, sucessão de bens e direitos, sem prejuízo, por óbvio, de eventuais recursos que advenham do exercício das suas atividades econômicas.

Dessa forma, ao tratarmos da personalidade da inteligência artificial e assumindo que essa personalidade atuará na economia, é essencial que essa pessoa possua patrimônio para que possa responder de forma individual por suas obrigações perante terceiros, evitando assim a responsabilização daqueles que a desenvolveram inicialmente.

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CONCLUSÃO: PRECISAMOS ATRIBUIR DIREITOS À IA?

Sempre que uma tecnologia impacta de forma significativa a sociedade, fazJse necessária a ponderação sobre quais seriam seus aspectos jurídicos. No caso da inteligência artificial, estudáJla sob o ponto de vista do Direito é especialmente importante pois trataJse de um tipo de inovação que (i) evolui rapidamente, sendo que alguns sistemas podem até mesmo aprender por conta própria; (ii) possui inúmeras aplicações, das mais simples às mais complexas; e (iii) apresentaJse em diferentes níveis de autonomia, o que torna sua previsibilidade algo quase impossível – e, no caso de um sistema legalista, previsibilidade é uma característica relevante.

Dessa forma, os desdobramentos jurídicos da inteligência artificial não são apenas os tratados neste artigo. De fato, um Direito favorável à inovação tecnológica deve ser capaz de adaptarJse a inúmeros contextos, partindo de uma base comum. É possível afirmar, de maneira quase taxativa, que nunca teremos um ordenamento jurídico que preveja e atenda a todas as demandas sociais decorrentes do surgimento exponencial de tecnologias tão ou mais complexas que a inteligência artificial.

Assim, a questão primária desse material não passa apenas por quais direitos devem ser pensados para os sistemas cognitivos, mas também por se precisamos pensáJlos neste momento. Talvez o ideal não seja pensar em um Direito que préJestabeleça diferentes situações concernentes à inteligência artificial, regulandoJas previamente, e sim em uma base jurídica

10 OLIVA, Milena Donato. Patrimônio Separado: Herança, Massa Falida, Securitização de Créditos Imobiliários, Incorporação Imobiliária, Fundos de Investimento Imobiliário, Trust. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 37J38.

única que possa ser aplicada a tais situações de forma eficiente e que, acima de tudo, incentive a inovação tecnológica.

Esse não seria um trabalho essencialmente de juristas: é essencial a colaboração de agentes do ecossistema, bem como de outros profissionais capazes de pensar de forma aprofundada do ponto de vista ético, econômico, sociológico e social, por exemplo. Antes de ser uma tecnologia per se, são sistemas que levantam debates de várias naturezas e que em breve permitirão repensar inclusive a ideia de que seres humanos serão os únicos entes inteligentes a transitar na sociedade.

A discussão jurídica sobre os sistemas de inteligência ainda apresenta mais perguntas do que respostas. Uma coisa é certa, contudo: a tecnologia por trás de tal sistema precisa ser compreendida em sua essência. Juristas, por conta própria, não são capazes de decidir sobre essas questões sem o auxílio de outros atores nesse ambiente de inovação. Estamos diante de algo que precisa ser profundamente estudado e entendido antes que qualquer decisão seja tomada – caso contrário, as consequências poderão ser impensáveis. Que o aspecto colaborativo que essa empreitada requisita de fato ocorra: a sociedade só tem a agradecer.