textos para o número v
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MINISTRIO DA EDUCAO
COLGIO PEDRO II
REVISTA DE LNGUAS
DO COLGIO PEDRO II
ANO V
NMERO V
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REITORA
Prof Vera Maria Ferreira Rodrigues
PR-REITORA DE ENSINO
Prof Anna Cristina Cardozo da Fonseca
CHEFE DO DEPARTAMENTO DE
PORTUGUS E LITERATURAS
EM LNGUA PORTUGUESA
Prof Elaine Corra Barbosa Ramos
CHEFE DO DEPARTAMENTO
DE LNGUAS ANGLO-GERMNICAS
Prof Maria Ins Azeredo Alonso
CHEFE DO DEPARTAMENTO
DE LNGUAS NEOLATINAS
Prof Diva Maria Pimentel Rocha
ORGANIZADOR
Prof. Paulo Moreira Brtholo Jnior
CAPA
Joo Lucas de Freitas Brtholo (aluno do Campus Realengo II)
IMPRESSO : Oficinas Grficas do Colgio Pedro II
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CONSELHO EDITORIAL :
PROF. PAULO MOREIRA BRTHOLO JNIOR
PROF ELAINE CORRA BARBOSA
PROF MARIA INS AZEREDO ALONSO
PROF DIVA MARIA PIMENTEL ROCHA
PROF. HRCULES ALBERTO OLIVEIRA
PROF. JOS ANTNIO CAVALCANTI
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AGRADECIMENTOS :
A TODOS OS QUE COLABORARAM PARA ESTA EDIO .
REVISTA DE LNGUAS
DO COLGIO PEDRO II
ISSN 2176-7432
ANO V
N V
DEZEMBRO 2012
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INDICE
APRESENTAO pg. 6
1 -AFINIDADES CONFLITIVAS DE DUAS VELHAS SENHORAS pg. 8
Prof. Jos Antnio Cavalcanti
2 - JORNALISMO CULTURAL: O ESPAO DA LITERATURA NA MDIA
IMPRESSA pg 22
Janaina de Cssia Campos Abreu
3 - A VOZ E A VEZ DA MOAMBICANIDADE.
UMA RELEITURA DO CONTO AS CICATRIZES DO AMOR DE PAULINA
CHIZIANE. pg. 32
Aline Verginia dos Santos
4 - CONTANDO E FABULANDO: ORALIDADE E ESCRITA
NA LITERATURA INFANTIL pg. 40
Pilar Cordeiro Guimares
5 - RECORDAES DO ESCRIVO ISAAS CAMINHA:
TEMAS PARA REFLEXO pg. 55
Elaine Brito Cunha
6 - PARTICULARIDADES DA SINTAXE PRONOMINAL DO PB
E AQUISIO DE PESSOA pg. 64
Lia Santos de Oliveira Martins
7 - MONTEIRO LOBATO: VIDA, REALIDADE E SONHO pg. 76
Valeria Cristina de Abreu Vale Caetano
8 - LES PASSAGES DE LOPRA ET POMMERAYE ARAGON,
MANDIARGUES ET LE GOT DE LINSOLITE pg.87
Ana Cndida Brando
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APRESENTAO
Tornara-se o Collegio de Pedro II o centro
de que se ia irradiando a nova orientao
cujos albores se vislumbravam nos concursos
de linguas a que affluiam candidatos aqum
eram familiares as doutrinas de Max Muller,
Miguel Bral, Gaston Paris, Whitney, Littr,
Darmesteter, Ayer, Brunot, Brachet,
Frderich Diez, Bopp, Adolpho Coelho e outros,
principalmente a dos autores allemes em que
se estavam haurindo os elementos primordiaes
para esta verdadeira Renascena dos estudos
philologicos no Brasil.
(MACIEL, Maximino, Grammatica Analytica, 1894)
A REVISTA DE LNGUAS DO COLGIO PEDRO II, agora, de
periodicidade anual, editada, a partir de 2008, o resultado de um trabalho coletivo dos
Departamentos de Portugus e Literaturas em Lngua Portuguesa, de Lnguas
Anglo-saxnicas e de Lnguas Neolatinas do Colgio Pedro II.
Inicialmente, a idia era a retomada dos Cadernos Avulsos, organizados pelo
Professor Antenor Nascentes, editados em meados do sculo XX - como meu projeto de
dedicao exclusiva ao Colgio.
Por sugesto da ento Chefe do Departamento de Lnguas Anglo-saxnicas,
Professora Magda Massunaga, e do Chefe do Departamento de Portugus e Literaturas em
Lngua Portuguesa, em 2008, Professor Manoel de Carvalho Almeida, esse objetivo foi
ampliado e, aps entendimentos entre as chefias dos Departamentos envolvidos, tornou-se a
Revista de Lnguas do Colgio Pedro II.
Aqui, divulgada a produo acadmica e literria dos professores
e as experincias pedaggicas desses Departamentos, com a finalidade primeira de integrar os
professores de Lnguas do Colgio e servir de ferramenta para a divulgao dos trabalhos por
eles produzidos
Esta Revista uma homenagem aos grandes mestres que passaram na
histria do mais que sesquicentenrio Colgio Pedro II e, dentre tantos, destacamos:
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Joo Ribeiro, Jos M. Nunes Garcia, Fausto Barreto, Said Ali Ida,
Augusto dos Anjos, Coelho Neto, Clvis do Rego Monteiro, Celso Cunha, Cndido Juc
Filho, Joaquim Caetano da Silva (Professor de Rethorica, Lngua Grega e Grammatica
Portugueza , Segundo Reitor do Colgio Pedro II) , Fausto Barreto, Vicente de Sousa,
Vandick Londres da Nbrega, Evanildo Bechara, Domcio Proena Filho, Jayr Calhau,
Antnio Jos Chediak , Antenor Nascentes, Carlos da Rocha Lima, Raimundo
Barbadinho Neto, Walmrio Macedo, Olmar Guterres, Aurlio Buarque de Holanda
Ferreira, Antnio Gonalves Dias ( Histria e Latim ), lvaro de Barros Lins , Artur de
Oliveira, Joaquim Osrio Duque Estrada ( autor da letra do Hino Nacional ), Manuel
Bandeira, Carlos de Laet, Jos de Oiticica, Silvio Elia, Afrnio Coutinho), Antenor
Nascentes, Paulo Rnai, (Francs) Maximiano Augusto Gonalves, Hahnemann
Guimares (Latim), Baro de Tautphoes (Alemo), Floriano de Brito (Francs), Dom Frei
Antonio da Arrabida, Bispo de Anemria, (Primeiro Reitor do Colgio Pedro II, que fora
preceptor dos prncipes D. Pedro e D. Miguel), Antonio Francisco Dutra e Melo
(Ingls),Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (Literatura), e aos professores de Lnguas do
Imperador Pedro II :Cndido Jos de Arajo Viana (Visconde e depois Marqus de
Sapuca, senador do Imprio, Latim, Literatura e Cincias Positivas), Luis Aleixo Boulanger
(Caligrafia), Padre Renato de Boiret (Primeiras Letras), Roque Schuch (depois Baro de
Capanema, Alemo, Italiano e Histria Universal) , Nataniel Lucas (Ingls)
(Paulo Brtholo Organizador da Revista de Lnguas do Colgio Pedro II e Professor de Portugus da Unidade Escolar So Cristvo III)
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Afinidades conflitivas de duas velhas senhoras *
Jos Antnio Cavalcanti
Doutor em Potica pela UFRJ
Professor de Lngua Portuguesa
do Campus So Cristvo III
Houve, quando ambas ainda existiam plenamente no vigor de um tempo ainda no
transformado em moeda, uma rusga entre poesia e filosofia. A tradio lanou sobre
Plato a responsabilidade por acirrar a desavena entre filsofos e poetas. Todos devem
se lembrar de que em A Repblica, no Livro X, o discpulo de Scrates lanou um
antema sobre os poetas, expulsando-os da plis ideal, com exceo dos autores de
hinos aos deuses e encmios aos vares honestos e nada mais.
A benevolncia com o laudatrio comprova que o receio de Plato no se voltava contra
toda forma potica, mas especialmente contra aquela poesia por ele considerada
mimtica, forma destruidora da inteligncia, responsvel por fazer com que o prazer e
a dor assumissem o controle da cidade em detrimento da lei e do princpio tido como o
melhor para comunidade.
O filsofo ateniense afirmou que a poesia mimtica imita homens entregues a aes
foradas ou voluntrias, e que, em consequncia de as terem praticado, pensam ser
felizes ou infelizes, afligindo-se ou regozijando-se em todas essas circunstncias. O
poeta, assim, instauraria na alma dos cidados um mau governo, inflamando paixes,
despertando a parte irracional, alimentando fantasias e gerando descontrole e
turbulncia. Era o mundo sensvel atropelando o mundo inteligvel, a iluso impedindo
a nesis, sem a qual o Bem inalcanvel e a humanidade permanecer retida ad
infinitum na zona de sombras onde se atolou.
Com isso no se esgota a viso platnica, de extraordinria complexidade. Basta
observar que no dilogo Fedro, uma anlise do Belo, o autor, ao formular a lei de
Adastreia, reguladora do retorno ao mundo das almas que no conseguiram fugir
doxa, devolve aquelas mais prximas da libertao a um homem destinado a ser amigo
da sabedoria e da beleza ou cultor das Musas e do amor, ambos no mesmo plano,
portanto, acima de reis, guerreiros, polticos, comerciantes etc. Tanto o filsofo quanto
o poeta possuem, ento, almas com maior capacidade de captar o reflexo das ideias que
contemplaram em existncias anteriores.
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Importa tambm observar que o antema sobre a poesia foi lanado por um autor que
recorreu ao longo de seus textos tradio potica grega da qual se revelou profundo
conhecedor. Alm disso, a construo da dialtica platnica aproxima-se em muitos
momentos da linguagem potica. Isso joga mais lenha na fogueira e nos faz evitar
vises ligeiras e pre/conceituosas sobre as ideias platnicas.
Maior deve ser o cuidado quando se sabe tambm que Plato no concedia grande
importncia escrita, apesar dos numerosos dilogos e cartas que chegaram at ns.
Observe-se, por exemplo, a passagem de Fedro em que Scrates critica a inveno da
escrita, obra de um demnio egpcio, Teute, que a teria apresentado ao rei Tamuz como
um remdio para o esquecimento e a ignorncia: Confiante na escrita, ser por meios
externos, com a ajuda de caracteres estranhos, no no seu prprio ntimo e graas a eles
mesmos, que passaro a despertar suas reminiscncias. No descobriste o remdio para
a memria, mas apenas para a lembrana. O que ofereces aos que estudam simples
aparncia do saber, no a prpria realidade.
A poesia, a arte em geral na formulao platnica, capta a ausncia, o nada e constri-se
sob o vazio; dele faz sua morada e dele, somente dele, do no lugar da arte, pode pro-
duzir, no sentido atribudo ao termo por Plato em O banquete e recuperado por
Heidegger: Todo deixar-viger o que passa e procede do no vigente para a vigncia
, pro-duo.
A criao o hiato entre o nada e o criado, entre o no existir e o vir-ao-mundo. Aquilo
que gerado j no est no momento da prpria gerao, apesar de carreg-lo para
sempre sob a forma do esquecimento. Na fenda criadora vige a inapreensibilidade da
existncia, fluxo contnuo e simultneo de vida e morte.
Agamben opera uma suspenso do tensionamento matricial da obra em Heidegger,
instncia entre ser e no ser que aparece pronta, acabada, fixada na finitude que a
informa como um mundo fechado. A posio sustentada por uma longa tradio
filosfica, aos olhos do filsofo italiano, reduz a obra apenas sua superfcie visvel,
perdendo o que escapa apreenso imediata, ou seja, a prpria arte. O que evita o
esgotamento da obra a percepo de que:
O ato de criao no , na realidade, segundo a instigante concepo corrente, um
processo que caminha da potncia para o ato para nele se esgotar, mas contm no
seu centro um ato de descriao [grifo do autor], no qual o que foi e o que no
foi acabam restitudos sua unidade originria na mente de Deus, e o que podia
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no ser e foi se dissipa no que podia ser e no foi.
Alberto Pucheu, em ensaio sobre Estncias, exps com bastante propriedade o desvio
agambeniano em relao ao produzir da obra de arte.
Se (...) a tradio fazia com que a criao fosse compreendida enquanto a
passagem do no ser ao ser, do informe forma, da potncia ao ato, do velado ao
desvelado, considerando a obra como pronta, acabada, esgotada, o filsofo
afirmaria que a obra de arte oferece no ser a afluncia do no ser, na forma a
afluncia do informe, no ato a afluncia da potncia, no desvelado a afluncia do
velado, fazendo com que, no retorno constante ao de onde veio privilegiado, ela
seja sempre, inconclusiva, inacabvel, inesgotvel...
Para Heidegger a pro-duo e o pro-duzir devem ser percebidos mediante a recuperao
de sua significao para os gregos. Desse modo, no nomeia apenas os processos
relativos ao artesanato e s formas poticas e artsticas, mas, principalmente, a
[physis], sua forma mxima, pois independe de algo exterior a ela, j que porta em si
mesma o eclodir da pro-duo. A matriz originria no estabelece, portanto, distines
entre o que foi criado.
Ao questionar o significado da tcnica e ao evocar a essncia grega da causalidade, o
autor de Ser e tempo aclara o conceito de pro-duo:
O deixar-viger concerne vigncia daquilo que, na pro-duo e no pro-duzir,
chega a aparecer e apresentar-se. A pro-duo conduz do encobrimento para
o desencobrimento. S se d no sentido prprio de uma pro-duo, enquanto e
na medida em que alguma coisa encoberta chega ao des-encobrir-se. Este
chegar repousa e oscila no processo que chamamos de desencobrimento.
Para tal, os gregos possuam a palavra [aletheia]. Os romanos a
traduziram por veritas. Ns dizemos verdade e a entendemos geralmente
como o correto de uma representao.
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Aps o filsofo constatar que a essncia da tcnica no um simples meio, um outro
olhar a lana, ento, no mbito do des-encobrimento, ou seja, da aletheia. Assim, a
palavra grega refere-se ao que pertence a de dupla maneira: tanto ao
fazer da habilidade artesanal quanto ao fazer da grande arte e das belas-artes. A
pertence . At a poca de Plato, e [episteme] eram palavras
utilizadas para designar o conhecimento em seu sentido mais amplo.
As ideias heideggerianas apontam para a rica possibilidade aberta pela ruptura das
fronteiras demarcatrias do conhecimento, das linhas limtrofes entre tcnica, arte e
pensamento. Na busca da essncia da tcnica, vislumbra-se o originrio da arte,
concebida como o desencobrimento que leva a verdade ao fulgor de sua plena vigncia.
A palavra tcnica, usada para referncia tcnica e criao artstica, reunia num nico
des-encobrir uma infinidade de desdobramentos. Por isso, Heidegger diz que as artes
no surgiram de um campo determinado da criao, no se originavam do artstico.
Mas, ento, como era a arte? Talvez somente por poucos anos, embora anos
sublimes? Por que a arte tinha o nome simples e singelo de ? Porque era
um des-encobrir pro-dutor e pertencia . O ltimo des-velo, que
atravessa toda arte do belo, era , era poesia.
Quase ao final do ensaio A questo da tcnica, o autor aponta para o vigor do potico
no desvelamento da verdade:
o potico que leva a verdade ao esplendor superlativo que, no Fedro, Plato
chama de , o que sai a brilhar da forma superlativa. O potico
atravessa, com seu vigor, toda arte, todo desencobrimento do que vige na beleza.
O ensaio de Heidegger retoma e sintetiza reflexes apresentadas em A origem da obra
de arte, em que o autor j afirmava que a essncia da arte guarda o originrio. Aps
analisar a relao entre arte, artista e obra, constata que a arte s pode ser apreendida da
obra, apreenso que se d como virtualidade, pois o que a arte permanece constante
opacidade. O carter de coisa das obras no facilita a aproximao porque a arte o que
escapa s coisas e prpria obra, esta ltima , na verdade, forma simblica na qual a
arte anuncia a sua presena e fuga simultneas. A partir da anlise da reproduo
pictrica de um par de sapatos de campons por Van Gogh, o autor afirma que a
essncia da arte seria ento o pr-se-em-obra da verdade do ente, ou seja, escapa
coisalidade que a constitui para abrir-se como um mundo para ns.
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Concebida a criao como um produzir, torna-se impossvel distinguir entre produo
artstica e no artstica, ambas abrigadas no termo , j que os gregos referiam-se
indistintamente ao arteso e ao artista como . As duas formas compartilham de
idntica natureza determinada pela essncia da criao e por nela permanecerem retidas.
Heidegger afirma que o tornar-se-obra da obra um modo do passar-a-ser e de
acontecer da verdade. A verdade guarda a duplicidade de ser passagem: A verdade
no verdade, na medida em que lhe pertence o domnio de provenincia do ainda-no-
(des)-ocultado, no sentido da ocultao. Na verdade pulsa a tenso entre o negativo e o
positivo: A verdade o combate original no qual, de cada vez a seu modo,
conquistado o aberto, no qual tudo assoma e a partir do qual se retrai tudo o que se
mostra e se erige como ente. Entendido o nada como a negao do ente e vendo-se
neste aquilo que est disponvel e aparece no estar-a da obra, pode-se admitir que a
verdade advm do nada.
A exemplo do ensaio A questo da tcnica, Heidegger concede grande relevncia
poesia no processo de desocultao da verdade, entendida como um acontecimento que
se d mediante um processo radicado na poeticidade, caminho que o leva a declarar que
Toda a arte [grifo do autor] , enquanto deixar-acontecer da advenincia da verdade do
ente como tal, na sua essncia Poesia [grifo do autor]).
Para justificar o primado do potico no terreno das artes, o filsofo formula uma
concepo de linguagem.
A linguagem no apenas e no em primeiro lugar uma expresso oral e
escrita do que importa comunicar. No transporta apenas em palavras e frases o
patente e o latente visado como tal, mas a linguagem o que primeiro traz ao
aberto o ente enquanto ente.
Na reflexo heideggeriana de linguagem, a poesia ocupa um lugar especial:
A prpria linguagem Poesia em sentido essencial. Mas, porque a linguagem o
acontecimento em que, para o homem, o ente como ente se abre, a poesia, a
Poesia em sentido estrito, a Poesia mais original, no sentido do essencial. A
linguagem no , por isso, Poesia, por ser a poesia primordial (Urpoesie), mas a
poesia acontece na linguagem, porque esta guarda a essncia original da Poesia.
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O vigor do potico imantiza a prosa a partir do sculo XIX e causa a indistino das
fronteiras clssicas, ultrapassando as marcas de emprstimos mtuos para inscrever a
criao no interior da juno e fratura da linguagem. A poeticidade constitui-se no
centro do processo irradiador. A prosa passou a ser compreendida como uma forma que
perdera a eficcia. O lao estreito entre prosa e representao, ao ser rompido, colocou a
nu a insuficincia de seus recursos. A prosa era um discurso-simulacro-do-real. Buscou,
ento, no potico no apenas a sonoridade, mas a liberdade, a poiesis, a inveno, o
instrumental necessrio produo de um discurso desreferencializado em relao ao
real ao qual caberia a ela somente transcrever, recodificando-o em literatura. A poesia
permitiu a prosa instituir-se verdadeiramente como prosa, efetivamente ficcionalizar-se.
Foi necessrio a vida morrer na prosa para que a prosa pudesse renascer.
Se os modos de assumir o poema so revolvidos pelo surgimento do verso livre, do
poema em prosa e da constelao grfica, a prosa tambm organiza novos modos na
contramo do representacional, reinventando-se como forma potica. Portanto, constri-
se um caminho de mo dupla para configurar na criao literria a vigncia do
indiscernvel. No se trata de auferir ao texto literrio a propriedade conceitual em que o
texto filosfico guarda as fronteiras de seu domnio, mas de avanar rumo ao que surge
da vizinhana, do voltar-se da prosa potica para a prosa terica e vice-versa. Trata-se
de desguarnecer fronteiras, deixar o texto exposto ao precrio de sua natureza, exposto
como linguagem, que fratura e salto simultneos.
Heidegger aponta exatamente para uma zona de confluncia entre poesia e pensamento,
sob a sombra da linguagem, embora v apenas a determinado ponto, o limite do prprio
de cada esfera:
Tanto a poesia como o pensamento movimentam-se no elemento do dizer.
Pensando a poesia, j nos vemos no mesmo elemento em que se movimenta o
pensamento. Aqui no possvel decidir se a poesia propriamente um
pensamento ou se o pensamento propriamente poesia. Fica obscuro o que
determina a sua relao mais prpria e a partir de onde isso que chamamos sem
hesitar de prprio surge propriamente. No entanto, qualquer que seja o modo
em que nos vem mente poesia e pensamento, um mesmo elemento j sempre
est a nos alimentar, quer lhe prestemos ateno ou no. Esse elemento a saga
do dizer.
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Guarda, assim, o filsofo as marcas segregadoras na distncia mantida pelo prprio do
pensamento e da poesia, cuja ultrapassagem no arrisca, preferindo estabelecer na
vizinhana uma propriedade de trocas enriquecedoras. Ainda que Heidegger resvale
numa mudana de rumo que torna o seu pensamento impensvel sem o potico, insiste
em guarnecer as fronteiras seculares da separao, aderindo distino hlderliana e
revelando uma dvida ao hegelianismo:
Mas pelo fato de a poesia, em comparao com o pensamento, estar de modo
bem diverso e privilegiado a servio da linguagem, nosso encontro que medita
sobre a filosofia necessariamente levado a discutir a relao entre pensar e
poetar. Entre ambos, pensar e poetar, impera um oculto parentesco porque
ambos, a servio da linguagem, intervm por ela e por ela se sacrificam. Entre
ambos, entretanto, se abre ao mesmo tempo um abismo, pois moram nas
montanhas mais separadas.
II
No muito comum encontrarmos autores que transitem pelas duas reas com a mesma
desenvoltura. Antnio Ccero faz parte do seleto grupo para o qual a poesia no
significa o abandono da filosofia. Prova viva dessa afirmao o lanamento
simultneo de dois livros, Porventura, de poemas, e Poesia e filosofia, um conjunto de
pequenos ensaios sobre o parentesco entre os dois discursos.
Antnio Ccero, oriundo de famlia de intelectuais. Possui slida formao. Fugindo ao
clima opressivo da ditadura, concluiu o curso de filosofia na Universidade de Londres e
fez ps-graduao na Universidade Georgetown, nos EUA.. Conhece grego e latim, o
que lhe d uma boa viso dos textos clssicos, tanto dos filosficos quanto dos poticos.
Por outro lado, lida bem com as formas da contemporaneidade: tornou-se um letrista
importante, lanou cd com leitura de seus textos, participou do filme Tabu, de Jlio
Bressane, mantm o blog Acontecimentos, espcie de antologia pessoal propiciada pela
tecnologia, alm de ser figura muito requisitada para eventos nos quais a cultura o
centro das atenes.
De sua produo anterior, vale a pena mencionar O mundo desde o fim (1995) e
Finalidades sem fim (2005), ambos voltados para a reflexo, e Guardar (1996) e A
cidade e os livros (2002), livros de poesia.
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O autor deixa bem claro na introduo Poesia e filosofia o ngulo a partir do qual tece
as suas ideias: penso que a poesia e a filosofia so atividades humanas inteiramente
diferentes uma da outra. Tal posio, aparentemente bvia, serve para marcar um
distanciamento da corrente contempornea que busca uma aproximao entre as duas
linguagens, processo iniciado no primeiro romantismo alemo e que encontra em
Giorgio Agamben e Alberto Pucheu argutos pensadores de novas possibilidades.
Admite Ccero a possibilidade de existncia de um filsofo que jamais tenha escrito
uma linha; toma Scrates para exemplificar a tese, o que me parece estranho, pois o
mentor de Plato teria elaborado, refinado e criado mtodos e modos dialticos de
filosofar, limitando-se apenas a deix-los banhados em pura oralidade. No entanto, no
compreendi a razo pela qual no admite a existncia de um indivduo capaz de ser
efetivamente poeta sem obra. Ainda mais se pensarmos que a poesia s existe em fuga,
como impossibilidade, melhor, como potncia da linguagem que se materializa no
poema sempre como falta.
Uma caracterstica comum filosofia e poesia no possurem nenhuma utilidade
prtica, a primeira por privilegiar abstrao, a segunda por tambm corresponder
imerso em territrio imaginrio. Outra caracterstica, responsvel pela marginalidade
de ambas na sociedade contempornea, a despreocupao com a temporalidade numa
poca de acelerao incontrolvel do tempo. A transformao do tempo em mercadoria
eliminou a noo de tempo livre, a fruio de autonomia, o espao de movimentao da
subjetividade, de transformao interna, o cio criativo, a margem reflexiva, enfim,
expurgou o tempo similar ao do demnio do meio-dia, o filtro interno em que o mundo
se realimenta e se reinventa. O princpio do desempenho corresponde ao processo de
instrumentalizao do ser humano, sua apropriao pelo reino espetacularizado e
produtivista do imediato. Ora, o poema no rende, no produz nada que j no esteja
nele encerrado. O valor do poema no semelhante ao da acumulao de capital.
Autotlica linguagem, vale em si mesma. Nesse sentido, tanto a poesia quanto a
filosofia rompem com a linha de montagem e o consequente utilitarismo. Temos, ento,
um paradoxo: no h espao para ambas numa cultura cada vez mais chapada,
googlenizada, digitalizada, instantnea, por outro lado, nunca foram to necessrias.
Antnio Ccero toma emprestado o ttulo de um livro de Carlos Drummond de Andrade
A vida passada a limpo para exemplificar alguns aspectos do trabalho potico. O
poema advm de uma tomada de deciso ou de algum acaso inicial. O autor deixa de
fora a possibilidade de possesso, ou seja, de o poema assaltar o poeta, invadi-lo,
obrig-lo a dar-lhe forma. Qualquer que seja o caminho, todavia, o trabalho envolve um
complexo processo de escolhas; ttulo, extenso, mtrica ou no, versos rimados ou
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brancos, forma buscada na tradio ou proposta experimental etc. Isso no plano macro,
digamos assim, porque o poema exige, na realidade, uma escolha a cada palavra. Fora a
lapidao, a reescritura, s vezes a completa transformao textual. Cada mudana no
poema implica uma mudana de todo o universo. Na depurao do texto, muitos
universos so suprimidos pela eternidade. Acontece que um poeta no apenas o que
faz versos ou poemas sem versos, mas o arquiteto de uma determinada potica, cria,
assim, o barco, o rumo e o sistema de navegao em que se movimenta.
No acredito, como Ccero, que o fim da vida de um poeta seja virar poesia, poeta no
possui fim propriamente, aquele que se lana ao inalcanvel, o portador da recusa
limitao da vida e da linguagem. No h poesia sem risco, sem a possibilidade do
caminho de Hlderlin. Certamente h uma muito arraigada viso de poesia como zona
de conforto, abrigo, autoajuda, melflua musicalidade, terapia, aquilo que vulgarmente
denominamos perfumaria. Mais ainda: no h um caminho, receita, certificado de
garantia. A fruio de um nico poema revela modos diversos de o leitor ideal fazer
valer o tempo livre, investindo numa leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira,
reflexiva e intuitiva, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e no
linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingnua e
informada.
Um poema no se faz com ideias, mas com palavras, a resposta de Mallarm a Degas,
que acreditava que, por possuir muitas ideias, poderia convert-las em poemas,
exemplar na demarcao de territrios alheios, mas me parece insuficiente para impedir
a percepo do texto potico como uma estrutura extremamente porosa aos ventos que
sopram de outros campos do conhecimento. O em-si do poema, a sua
monumentalizao, talvez seja uma forma de mant-lo intocado, num estado de pureza
que no corresponde ao terreno das artes, avesso organizao de materiais em
prateleiras arrumadas, rotuladas, submetidas padronizao cientfica ocasionalmente
imposta por pensadores aos artistas. A frase de Mallarm mapeia o centro nervoso da
produo potica, a palavra, verdade, mas no existe algo to fugidio quanto a
apreenso do significado desse termo, um conceito no qual se cruzam caminhos
diversos e nos constitui como sujeitos.
No quarto ensaio do livro, o autor faz uma distino entre pensar o mundo e pensar
sobre o mundo de extrema importncia para compreender o jogo de separao e
aproximao entre poesia e filosofia. Ccero explora a diversidade sinttica para refinar
o pensamento sobre a questo. Para ele, a presena da preposio aps o verbo pensar,
construo mais usual, corresponde ao pensamento discursivo ou dianotico, segundo a
classificao aristotlica, j a supresso do conector seria uma forma do pensamento
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intuitivo e notico. Isso significa que a ciso trazida ao enunciado pela preposio, cria
a possibilidade do pensamento filosfico pleno ao transformar o mundo em uma
totalidade a ser pensada pelo sujeito. Sem a preposio, o pensamento rompe a
segregao e passa a fazer parte tambm do mundo. Nas palavras do autor: a abolio
da preposio sugere a abolio da separao e da mediao entre o pensamento e a
coisa pensada. como se o pensamento no ficasse sobre, isto , acima ou, de algum
modo, fora do mundo, para pens-lo. Portanto, h um pensamento solto, informe,
apropriado por todos, e h um pensamento formalizado, preso ao rigor e s exigncias
da filosofia. Pensar o mundo uma das possibilidades da poesia, como demonstra o
autor ao final do ensaio com uma anlise do poema O rio, de Manuel Bandeira, e a
exposio do poema Nuvens, de Jorge Luis Borges. Alis, um dos pontos altos do
livro o uso de excelente repertrio de poemas magistralmente utilizados na defesa das
concepes do autor.
O quarto ensaio prepara o leitor para a percepo da natureza desigual das nuvens em
que se movem poetas e filsofos. Ccero explicita as diferenas: Os assuntos do poeta
no so to genricos e abstratos quanto os do filsofo. Antecipa possvel objeo
daqueles que no acreditam na sua defesa de separao to radical, por isso no acredita
que os poetas abordem de modo figurativo e implcito os assuntos tratados pelos
filsofos. Entende que justamente quando mais parece se aproximar do universo
filosfico que a poesia dele se afasta. Toma da Ode I.xi, de Horcio, um dos mais
tradicionais motivos poticos, o carpe diem, como exemplo de comprovao de sua
tese. Acrescenta que, em termos filosficos, no h absolutamente nenhuma novidade
na ode horaciana. Isso no implica a supresso de seu carter de obra-prima, serve para
comprovar que a filosofia no o ponto de chegada do poema, apenas um dos
elementos integrantes de sua composio. A perfeio e a beleza da ode so propiciadas
por outros recursos.
Para tornar mais claro o seu ponto de vista, o autor enfatiza: Sustento que a poesia
enquanto poesia inteiramente diferente da filosofia enquanto filosofia. Para
acrescentar: No que no haja poemas que contenham teses filosficas ou textos
filosficos que contenham trechos poticos. que o que torna um poema admirvel
enquanto poesia no o que torna um texto filosfico admirvel enquanto filosofia.
Considero um raciocnio quase irretocvel, s me pergunto se realmente no h
nenhuma fenda, nenhuma fissura pela qual seja possvel a quebra dessa rigidez, do
caminho nico e impermevel de ambas, ainda mais que so dimenses da linguagem,
forma contaminada em sua essncia, propriedade de impureza. No haver em alguma
falha da linguagem um verso que seja um conceito, um pensamento no ritmo
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encantatrio do poema, um vazamento de palavras a misturar de modo incontrolvel
poesia e filosofia?
Outra ode de Horcio (III.xxx), na qual o poeta latino exalta a perenidade do poema,
permite ao autor de Guardar, valendo-se de oposio foucaultiana, propor outra
distino entre o texto potico e o texto filosfico: enquanto, de maneira geral, o
poema sendo contemplado por si prprio, funciona como um monumento, um texto
filosfico, sendo lido em vista da tese que afirma, funciona como um documento (grifo
do autor).
Antnio Ccero observa a no existncia em lngua portuguesa de antnimo para a
palavra poesia. Alguns, equivocadamente, empregam prosa, quando o mais pertinente
o emprego de expresses no poesia e no poema. A prosa no se contrape
poesia ou ao poema, mas ao verso, fato explicado pela etimologia:
Prosa, do vocbulo latino prorsus e, em ltima instncia, de provorsus que
quer dizer em frente, em linha reta o discurso que segue em frente, sem
retornar. Verso, do vocbulo latino versus, particpio passado substantivado de
vertere, que quer dizer voltar, retornar, o discurso que retorna.
Na verdade, tal diferena guarda na escrita as marcas da cultura oral primria, na qual
no existiam gneros literrios, pois a palavra literria deriva de letra. No obstante,
havia a diferena entre aquilo que se reitera e aquilo que no se reitera. Isso explica as
formas distintas de epos - , enunciado reiterado, transformado em memria, e
mythos - , , o enunciado no reiterado, originalmente com o significado de fala.
Assim, na cultura no letrada o verso j um padro sonoro recorrente, enquanto a
prosa apenas ocorrncia. A prevalncia do verso nos textos da antiguidade
seguramente deve-se extraordinria dependncia da memria, face dificuldade de
produo e circulao de textos escritos.
O autor no compartilha da crtica agambeniana ciso da palavra e da consequente
busca de uma suposta totalidade originria perdida. Eis como Agambem apresenta a
questo logo na introduo do livro Estncias:
De acordo com uma concepo que est s implicitamente contida na crtica platnica
da poesia, mas que na idade moderna adquiriu um carter hegemnico, a ciso da
palavra interpretada no sentido de que a poesia possui o seu objeto sem o conhecer, e
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de que a filosofia o conhece sem o possuir. A palavra ocidental est, assim, dividida
entre uma palavra inconsciente e como que cada do cu, que goza do objeto do
conhecimento representando-o na forma bela, e uma palavra que tem para si toda a
seriedade e toda a conscincia, mas que no goza do seu objeto porque no o consegue
representar.
Para reforar a excluso mtua dos dois campos do conhecimento, Ccero recorre a
figura de Lucrcio, destitudo da condio de filsofo por faltar-lhe originalidade, mas
em plena condio de grande poeta e brilhante divulgador da filosofia de Epicuro. A
questo da originalidade, tanto em poesia quanto em filosofia, aponta para um pntano,
mais hostil ainda no territrio filosfico, pois os poetas moem e remoem temas
imemoriais, livres que esto da lida com ideias, porm os amantes do saber
movimentam-se em possibilidades bem mais estreitas. Talvez, por esse prisma, se os
poetas tornaram-se invisveis, os filsofos tenham sido extintos.
A finalidade da obra filosfica a manifestao de uma proposio, tese, ou doutrina
filosfica, assim como a da poesia a obra potica, embora esta possa conter
proposies, como um dos elementos integrantes de sua constituio. Como os
enunciados poticos no constituem proposies, mesmo aqueles situados mais
prximos do carter proposicional (como as manifestaes de ars potica), o fato de
serem eventualmente contraditrios no os desqualifica. Alguns tm na prpria
contradio a prpria razo de ser.
O ensasta valoriza a desfetichizao completa de todos os recursos poticos efetuada
pelas vanguardas do sculo XX que derrubaram os limites das convenes mtricas e
dos recursos retricos tidos at ento como condies necessrias e suficientes para a
produo de um poema. A irrupo do verso livre no acarretou a eliminao das
formas anteriores, pois a ao da vanguarda no foi o fechamento de portas abertas,
mas a abertura de portas fechadas; no foi a renncia, mas a desprovincianizao ou
cosmopolitizao da poesia. Trata-se, portanto, da contribuio milionria de todas as
possibilidades estticas. Tal movimento liberou a poesia dos limites das aparncias
acidentais e das contingncias histricas, da submisso camisa de fora das
convenes poticas.
A proposta iconoclasta das vanguardas trouxe o make it new poundiano para a linha
de frente da esttica. bem verdade que a fria demolidora ajudou a reconfigurar o
cenrio das artes, principalmente do ponto de vista cognitivo, ao revelar que
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simplesmente no h jamais houve condio necessria ou suficiente para a
produo de um poema.
Sobre o culto novidade tambm incide o peso do reino das mercadorias, mas a crtica
de Antnio Ccero no avana no campo das relaes de produo.
Caso a novidade fosse critrio vlido, uma vez descobertas novas possibilidades, todas
as anteriores estariam relegadas ao esquecimento. No entanto, as obras de Homero,
Dante e Cames ainda exercem enorme fascnio sobre leitores contemporneos.
Se a poesia o que escapa ao poema, escapa tambm a qualquer traduo, segundo
Robert Frost. Apesar de a poesia ser uma arte em fuga constante, traduzir poemas pode
propiciar uma certa aproximao entre o leitor sem domnio da lngua de origem e a
verso original. H certamente outra questo normalmente no levada em considerao:
inmeras vezes uma traduo nos atinge to profundamente que, quando aprendemos a
ler o texto na lngua-fonte, no conseguimos nos desvencilhar do primeiro olhar sob a
luz da lngua-alvo.
Ccero l a filiao dos poetas s musas no como simples valorizao da memria, mas
como verdadeira declarao de autonomia esttica. Os poetas, confessando-se ligados
ao plano divino, conseguiram alto grau de liberdade para circular por todos os caminhos
do discurso.
Plato, em on, atribui a Scrates palavras que conferem aos poetas a propriedade de
empregarem um discurso sem amarras: porque o poeta coisa leve, e alada, e sagrada,
e no pode poetar at que se torne inspirado e fora de si, e a razo no esteja mais
presente nele. A passagem, todavia, critica a incapacidade dos poetas, pois o discurso
por eles proferidos viria dos deuses, no possuindo a originalidade daqueles produzidos
pela razo, criados pelos seres humanos. Apesar disso, assinala, por outro lado, a ampla
possibilidade da poesia, fora da zona de controle da cidade.
O autor conclui os ensaios reafirmando a rigidez dicotmica de sua tese: mais que uma
diferena, h uma oposio complementar entre poesia e filosofia. O ltimo perodo do
livro explicita a natureza dessa complementaridade:
(...) esta [a poesia] constitui a afirmao radical e imanente do mundo fenomenal,
imediato, aleatrio finito, aquela [a filosofia] o ncleo do empreendimento moderno
de crtica radical e sistemtica das iluses e das ideologias que pretendem congelar ou
cercear a vida e, consequentemente, congelar e cercear a prpria poesia.
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Resta saber se a poesia precisa de tutela, de defesa, de outro discurso que, sob a fantasia
de combater iluses e ideologias, na verdade muitas vezes as justifica. A investigao
do autor, formulada sob uma tica kantiana, realizada de modo esplndido, com
profundo conhecimento de causa.
Confesso que li com muito proveito as reflexes do filsofo e poeta, tanto que esta
resenha me saiu muito extensa. O tema guarda, por sua prpria natureza, um carter
inconclusivo, caracterstica que protege a riqueza inesgotvel de um campo proteico,
formado e informado por matria em fuga, em incandescncia inesgotvel. No h,
felizmente, o ponto final de uma certeza, nada foi resolvido porque no h nada a se
resolver, mas a ser revolvido. Justamente por isso samos da leitura mais sedentos e
enriquecidos.
Continuo a acreditar que a poesia est mais prxima de uma forma de energia do que da
ideia de monumento e que a diferena entre os dois discursos que a filosofia um no
sei e a poesia um sei l!
* Resenha do livro Poesia e Filosofia, de Antnio Ccero.
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Jornalismo Cultural: o espao da literatura na mdia impressa
Janaina de Cssia Campos Abreu
Professora de Lngua Portuguesa do
Campus So Cristvo III
Ps-graduada em Jornalismo Cultural
pela Universidade Estcio de S
A influncia dos meios de comunicao na maneira de perceber, sentir, pensar e
agir da sociedade contempornea transformou-se em objeto de estudo. Como territrio
disciplinar vinculado mdia, o jornalismo age pela conquista das mentes e coraes de seus alvos: leitores, telespectadores ou ouvintes,1 atravs da informao cuja produo e circulao esto diretamente relacionadas ao modo como se exerce o poder,
pressupondo conhecimento e interpretao dos fatos.
Por outro lado, os grandes avanos da tecnologia dos meios de comunicao
tambm proporcionaram o aquecimento do mercado, o que, segundo tericos como
Adelmo Genro Filho, acabou por transformar o jornalismo, por exemplo, em negcio de
poucos e a informao, em mercadoria (GENRO, 1987). Nesse sentido, a ideologia que
constitui o discurso jornalstico principalmente aquele atrelado ao fenmeno social que a cultura: o Jornalismo Cultural torna-se mobilizadora das reflexes do presente estudo.
No mbito cultural, percebe-se que os efeitos dos meios de comunicao
estendem-se a outros campos, dentre eles o da literatura, fazendo com que a circulao e
a recepo de obras literrias tornem-se incontornavelmente articuladas aos processos
miditicos.
O espao dedicado literatura sofreu transformaes geradas pelo
desenvolvimento da prpria empresa jornalstica, o que acabou por tambm modificar a
relao entre a legitimao de uma obra feita pelo crtico e a circulao desta.
A influncia da indstria cultural associada ao processo de comunicao
midiatizada que tem se relacionado com o universo dos indivduos h sculos. A
capacidade de os mass media influenciarem as pessoas j era estudada, bem antes do
advento da internet por pensadores como MacLuhan, Adorno e Horkheimer, por
exemplo. Todavia, os diferentes estudos tm levado aos mais diversos pontos de vista,
da a viso dos chamados apocalpticos e integrados. Enquanto estes defendem a relao
entre indstria cultural e meios de comunicao, alegando ser uma forma de
democratizao do acesso cultura e informao; aqueles a criticam afirmando ser
esta produtora de uma cultura unidimensional e cmplice da dominao poltica.
Segundo pesquisadores da corrente pessimista, o receptor seria um sujeito passivo no processo comunicacional fazendo com que o xito da comunicao miditica
esteja na habilidade que esta tem de chamar a ateno do destinatrio e faz-lo aceitar a
mensagem como desejada. Isso explicaria a falsa interatividade a que se refere Celso
Campos:
1 ROSSI, Clvis. O que Jornalismo. 8.ed. So Paulo: Brasiliense, 1980.
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(...) comunicar tornou-se sinnimo de empregar mquinas e
aparatos tecnolgicos. O sentido da ao comunicativa como
uma ao em comum vai desaparecendo na funcionalidade da linguagem tecnificada, rompendo-se as ligaes que se
sustentam a interao. Ao invs de unir, o processo separa e
isola as pessoas (...). Observando o poder que a mdia tem de
influenciar a sociedade, ditando modos de vida e costumes
muitas vezes alheios cultura de nosso povo, temos a falsa
impresso de interatividade entre emissor e receptor.2
Em contrapartida, os tericos da corrente otimista acreditam que os media na verdade ampliam a voz do povo. a crena em um domnio do territrio miditico por
uma massa popular que esbarra justamente no fato de ser a mdia um espao limitado e
mercadolgico cujo acesso dado a poucos ou somente aos donos dela.
Produto da moderna economia capitalista, o jornalismo outro objeto de estudo
bastante questionado por pesquisadores do sculo XX, principalmente pelos tericos da
Escola de Frankfurt, como Habermas. As opinies a respeito da comunicao
jornalstica tambm se dividem sem chegar a uma concluso. De um lado, o espectro da
tradio frankfurniana ronda com seu pessimismo as abordagens sobre o jornalismo:
Diante da diluio, do enfraquecimento dos contedos no plano
macrosocial, o jornalismo para sobreviver apela para a indstria
imaginria de notcias. Criam-se fatos, forjam-se notcias,
estimulam-se polmicas fictcias, constri-se o conflito em laboratrio. O estdio de TV, a redao de jornal deixam de ser meios de transmisso de fatos e tornam-se eles mesmos os
produtores de mundos (MARCONDES,1993, p.63).
De outro, uma viso menos apocalptica acredita que seja a hora de se separar o
joio do trigo, como se costuma dizer na linguagem popular. Para alguns crticos, mesmo
que se veja a informao produzida pelo jornalismo como mercadoria, preciso que se
perceba a diferena entre as mercadorias e at mesmo entre o jornalismos produzidos (GENRO, 1987).
Critica-se muito o mau uso que os jornalistas fazem do poderoso
instrumento de que dispem. H mesmo quem estranhe que
simples particulares tenham em mos esse poder capaz de fazer
a paz e a guerra na sociedade em que atua.
A realidade que a paz e a guerra no so feitas pelo jornal.
Nenhum jornal tem a fora para mudar, por si mesmo, a sorte de
um povo, em que pesem as hiprboles com que se costuma
engrandecer, nos discursos de sobremesa, o papel da imprensa.
Evitemos exagerar a capacidade de bem fazer e mal fazer do
jornalismo. (JOBIM, 1960, p.54).
O Jornalismo Cultural est, essencialmente, ligado acelerada transformao do
mercado de produtos culturais que faz com que ele, insidiosamente, crie uma relao
2 Disponvel em: http://www.planeta.terra.com.br/educacao/pedrocampos.
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afetiva com o pblico, atraindo-o e provocando-o, levando-se em conta que este no
homogneo em sua composio, sendo especfico para cada veculo. Deve-se admitir,
ainda, que na contemporaneidade a ao dos mecanismos de controle sobre esse pblico
torna-se mais intensa visto que o homem contemporneo no mais senhor exclusivo
de sua memria. Filmes, novelas, vdeos e tudo mais penetram em sua intimidade,
transmitem-lhe informaes, transformam seus comportamentos, pensamentos,
sentimentos e valores a uma velocidade inenarrvel.
O leitor, o telespectador ou o ouvinte torna-se um consumidor como outro
qualquer, ainda que perante ele apresentem-se simulacros de democracia, de difuso
cultural, de oportunidades iguais etc. A batalha pelas mentes e coraes temperada
pelo mito da objetividade, em tese usada pelo jornalismo para que este se coloque numa
posio neutra e publique suas notcias de forma a deixar ao leitor a pseudotarefa de
tirar suas prprias concluses. Segundo o jornalista Danton Jobim, na mente popular, o jornal tem um destino herico a cumprir. Em sua ingnua concepo, jornalismo no
um negcio, mas a empresa de um campeo permanentemente em guarda contra a
iniquidade (1960 p.68).
O Jornalismo Cultural , ao mesmo tempo, um reflexo jornalstico da criao cultural e, tambm, um tipo de criao cultural. Ele tem de atender a duas ordens de
exigncias, simultneas e ambas igualmente legtimas: as exigncias da produo
jornalstica e as exigncias do seu assunto (no caso, a cultura em geral), segundo Olavo de Carvalho
3. Assim, por exemplo, um produto cultural alheio ao que seria notcia
menos valorizado, mesmo que seja um bom produto; fazendo com que o jornalismo cultural torne-se apenas jornalismo geral de assunto cultural4. O que o desvirtua do que seria sua funo maior: tornar a cultura uma lente atravs da qual o homem v o mundo
criticamente.
A literatura, por sua vez, cumpre o papel social de transmitir os conhecimentos e
a cultura de uma comunidade. No entanto, o acesso ao conhecimento caracteriza-se
como um privilgio e s permitido para os elementos da classe dominante, ou queles
que participam da dominao visto que estes sabem que a cultura quem condiciona a
viso de mundo do homem.
Sabe-se que, na verdade, o conhecimento determinado tanto pela situao
histrica vivida pelo indivduo, ou pela sociedade, quanto pelas condies de
manipulao dos fatos pelo sistema, ou seja, atravs da articulao das informaes
disponibilizadas e da interao entre sujeito e mundo suas experincias que se obtm o conhecimento. Cabe ter em mente que a forma como essas informaes so
disponibilizadas est de acordo com o modo como o poder exercido na sociedade.
Dentro desse contexto, a construo do conhecimento e a produo e circulao da
literatura esto muito mais relacionados do que se possa imaginar.
A capacidade de articular criticamente elementos do mundo elaborando
conhecimento exige informao; porm, esta resulta, sempre, de uma escolha que se faz
em funo das relaes estabelecidas, ou preestabelecidas, na sociedade. O que
possibilita que essa informao ganhe certo sentido ao passo que se articula com outras
informaes, criteriosamente, inseridas no espao pblico de circulao; seja por sua
3 Quatro perguntas para Olavo de Carvalho sobre jornalismo cultural. Disponvel em:
www.olavodecarvalho.com.br . 4 Idem, ibidem.
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abrangncia, densidade, finalidade, impacto, ineditismo ou veracidade5. Logo, percebe-
se que aquilo que se entende por informao resulta, necessariamente, da ao poltica
de instncias de poder (ou de instncias opostas a ele) na forma de um produto cultural
scio-histrico.
Essa ao poltica pode ser observada no que se refere a produo e a circulao
de textos escritos. Ambas tornaram-se submetidas aos critrios de avaliao prprios do
mercado, os quais nem sempre se estabelecem em funo de uma tica do
conhecimento.
A leitura, como ato ou hbito, ocorre dentro do meio social, resultante, portanto,
da interao entre um sujeito e um objeto, o que constitui uma prtica social. Dessa
forma, esse ato torna-se essencial para que o indivduo faa parte do meio em que vive.
Na contemporaneidade, a leitura transforma-se em um processo de interao
entre o que escrita e o que exibido graficamente: a palavra e a imagem. A leitura de
textos literrios possui um valor diferenciado visto que o leitor exercita no s o seu
poder criativo, sua imaginao ao compor cenrios e personagens, mas inicia um
processo de entendimento e interpretao ao passo que no recebe a informao acabada como ocorre em relao mdia que vai alm daquelas pginas. A prtica da leitura fundamental para o desenvolvimento intelectual dos sujeitos contribuindo de
forma inequvoca para a construo de experincias, conhecimentos e valores. Segundo
Luis Filipe Ribeiro, em Literatura e Histria uma relao muito suspeita6:
o texto, antes de mais nada, um produto. Nasce do trabalho
humano e dele testemunho material eloqente. testemunho
do esforo de criao individual, dos condicionamentos sociais,
das dimenses culturais, das condies econmicas, dos
conflitos ticos e das contradies polticas, que configuram o
espao em que foi gerado e publicado. Assim, sua leitura e
compreenso demanda que se desentranhe, de sua teia de signos,
indcios dessa totalidade, sem o que ficar limitado a um jogo de
armar destitudo das significaes que o tornam parte do legado
cultural de que somos herdeiros.
A leitura, principalmente a literria, uma atividade estimulante e enriquecedora
do esprito humano, insubstituvel para a formao de cidados na sociedade moderna e
democrtica. humanidade, a literatura traz o olhar crtico para a realidade.
As mudanas ocorridas no meio social e nos suportes em que os textos so
veiculados alteraram terminantemente o gosto pelo texto literrio. Ao longo dos sculos,
a funo da leitura foi sendo transformada de acordo com os diversos fins propostos a
ela, sejam eles polticos, econmicos ou culturais. Atualmente, na sociedade
contempornea, sua funo pode estar vinculada ao aprendizado, obteno de
informao, conservao da memria do passado, compreenso das relaes sociais
ou mesmo ao simples prazer esttico proporcionado pela linguagem. Qualquer que seja
a finalidade, a leitura sempre ser um instrumento de resistncia:
5 Critrios estabelecidos por Luiz Percival Leme Brito no artigo Leitura e Poltica, que segundo ele
balizam tanto a produo da informao quanto sua recepo (2001,p79). 6 Disponvel em: http://www.rbleditora.com/revista/geometria/ historia.html. Acesso em:06 setembro
2004.
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(...)a todas as contingncias massacrantes da condio humana:
sociais, profissionais, psicolgicas, afetivas, ideolgicas,
culturais. Proteo que nos salva de tudo, at de ns mesmos,
pois nos liberta, nos permite a transcendncia, a superao das
limitaes histricas; a descoberta do outro e de ns mesmos, a
organizao do caos interior. Proteo que delimita um espao
de reflexo e de emancipao do esprito por meio da
interpretao simblica. A leitura , assim, o espao de
liberdade por excelncia, pois lida com o pensamento e o
imaginrio que so, por natureza, sem fronteiras, sem limites, e
proporciona uma forma de felicidade. A leitura tambm um
espao de liberdade porque o leitor l o que quer, quando quer,
onde quer, no ritmo que quer. (GARCEZ, 1999)
Ler permite posicionar-se diante do mundo, por isso, no se pode ignorar o
carter poltico deste ato. Entretanto, o que acontece. H um mascaramento da
dimenso poltica da leitura por parte dos discursos oficiais atravs da entrada ou
retirada de circulao de determinado tipo de texto que no serve s polticas em
vigncia. O que, por exemplo, a Santa Inquisio fazia? Queimava alm das bruxas e
dos hereges, os livros em praa pblica para que no fossem veiculadas as idias que
poriam abaixo a sua ideologia.
Esse tipo de controle acontece, ainda, com os textos literrios. A existncia da
literatura como objeto social est, primeiramente, vinculada relao autor-leitor; no
entanto, a relao binria entre o produtor e o consumidor de obras literrias mediada por muitas instncias: a do editor, a do distribuidor, a dos livreiros, para ficarmos s nas
alfndegas que o texto paga para ter direito a ser impresso, a circular e, eventualmente, a
ser lido (LAJOLO,1995,p.16). A avaliao de um texto como sendo literrio vai alm da interao autor-leitor. preciso o aval de uma determinada classe competente: a do
crtico. A est a trade que sustenta a literatura: leitor, escritor e crtico. Este ltimo ,
hoje, o responsvel por fazer uma obra circular no corredor comercial, uma espcie de caminho obrigatrio que a obra deve fazer antes que se cumpra sua natureza social de
criar um espao de interao entre autor e leitor (LAJOLO,1995,p.17). o endosso do carter literrio de um texto. o discurso do agente do aludido Controle, que em nome
da verdade, e sempre em seu nome, julga as obras literrias.
O analista, tanto como terico quanto como crtico, tem seus limites assinalados
pelas marcas do discurso que pratica. O seu um discurso judicativo, isto , que
procura fundar os juzos pelos quais devemos ou no apreciar determinada obra. Neste
caso, fundar os juzos significa necessariamente ditar normas; ser antes explicar, ou
melhor, sentenciar porque se l certa obra, porque se desprezam tais outras etc. a
palavra do poder.
A palavra tanto um poder do homem sobre o mundo quanto o do mundo sobre
o homem. Um instrumento to poderoso sobre o mundo que acaba sendo instrumento
de poucos. Muitas vezes, a palavra torna-se uma armadilha, uma forma de alienao.
Uma tentao para confundir a vida com as coisas, experincia
com discurso, sentimento com capitulao e submisso. Quando
Miguel de Unamuno batiza a expresso El Sentimiento trgico
de la vida, a impresso que sentimos de que o simples fato do
anncio elimina j o trgico da vida. A palavra embeleza a dor.
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No comum dizer que quem canta seus males espanta? como
se o homem transferisse a sua dor para a palavra e essa
realizasse, pelo menos provisoriamente, a cura.(GONALVES
F., 2000,p.21).
Neste caso, o poder da palavra literria se institui justamente por ser produtora
de conhecimento, preservando no homem valores de cultura, instigando o seu lado
humanizado e estabelecendo nova realidade. Para Luis Filipe Ribeiro7:
O leitor constitui-se, a cada leitura, numa realidade histrica
distinta, sofrendo condicionamentos variados, originrios de sua
insero social e cultural. Uma mesma pessoa fsica, ao reler um
livro, ainda que imediatamente primeira leitura, j no o
mesmo leitor. um novo leitor, cujo cabedal de leituras inclui
essa primeira, que se transformar em elemento de produo de
sentido da releitura iniciada. Cada um l com os instrumentos de
sua poca e de sua cultura, que conseguiu amealhar. A um
capital maior, um maior dividendo de significaes. O leitor,
sem deixar de ser pessoa individual, necessariamente uma
realidade social e histrica. Na sua leitura, inscrevem-se as
marcas de seu tempo, de sua cultura, de suas preferncias, de
seu desejo e de sua loucura...
Porm, a literatura, que durante sculos ocupara um papel relevante na vida social, tornou-se cada vez menos importante. Na Sociedade do espetculo (Guy Desbord), a escrita literria est confinada a um espao restrito na mdia, pelo fato de se
prestar pouco espetacularizao, de acordo com Leyla Perrone-Moiss (1998, p.177). Para a autora, a explicao estaria no fato de que a leitura exige determinadas
caracterstica que no condizem mais com a vida cotidiana como tempo e concentrao.
Tal fato contribui para um desafeto crescente pela leitura, que se tornou um fenmeno
mundial manipulado pelos representantes do poder da Indstria Cultural dentro de uma
sociedade saturada de signos e imagens, os quais surgem como modelos ideolgicos.
Ouvi recentemente, de uma criana com preguia de ler, a
reclamao de que os livros tm muitas letras. De fato, para concorrer com os outros meios de comunicao, os livros atuais
e futuros precisaro ter mais atrativos do que aqueles ocultos
pelas letras. (MOISS, 1998, p. 178)
A explicao para tal constatao dada por Vanderlei Dorneles, em Cultura da
imagem: A ps-modernidade do pensamento8:
Essa sociedade no pensa em termos de ideias e ideais, mas de
imagens, corpos, prazer e consumo. Logo, a mdia focada no
gosto e na expectativa do consumidor investe em peas visuais,
corporais, no apelo emocional das formas, das cores. Como
poderia a comunicao de ideias atrair pessoas que querem
apenas consumir coisas?
7 Disponvel em: http://www.rbleditora.com/revista/geometria/historia.html.
8 Disponvel em: http://www.canaldaimprensa.com.br/opiniao /vint3/opinio1.htm
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Nos Segundos Cadernos e Suplementos Culturais a palavra do poder proferida
pela classe jornalstica onde o acmulo da funo de crtico e reprter muitas vezes
proporciona uma cobertura cultural que refora de modo acrtico e redundante a
produo da cultura de massa, cuja essncia manifesta a ideologia do espetculo por
excelncia.
revelia dos tericos que atribuem ao advento da tecnologia a diminuio do
espao da literatura nos jornais, Isabel Travancas em Suplementos e leitores, defende os
suplementos culturais como sendo o ltimo recanto para que escritores e obras no
abandonem a imprensa. Porm, no se pode fechar os olhos para esse tipo de presena:
quem so esses escritores e por que esto ocupando as pginas dos suplementos?
Apesar de a crtica literria que era exercida nas dcadas de 1940 e 1950 chamada de crtica de rodap ter ficado restrita s academias e universidades e nos jornais ter tomado a forma de resenha, as atribuies de valor permanecem levando-se
em conta tanto o gancho jornalstico quanto os ditames do mercado editorial.
A legitimao a responsvel pela vida da obra literria: o nmero de tiragens de um livro, que em maior parte das vezes, corresponde quantidade de relatos
positivos feitos e publicados sobre ele. O que de algum modo permite a um determinado
autor dar continuidade sua obra e posteriormente poder public-la. Quando o espao
do crtico torna-se um espao discursivo pblico e circulante, como o caso dos jornais
dirios, este lhe oferece uma dupla canonizao:
A crtica pode assumir a funo de ajudar o leitor a selecionar
obras literrias. Mas no deve se deixar pautar de uma maneira
imperativa. O leitor tem os seus prprios critrios. E no fundo o
que um crtico se no um leitor? A diferena que o leitor
comum no costuma mandar para um jornal uma carta com sua
opinio sobre este ou aquele livro. O crtico no passa de um
leitor que tem espao no jornal para dizer aquilo que pensa9.
O discurso emitido possui um efeito de distanciamento que encarado pelo
leitor como isento de ideologia, sendo tomado como produtor de valor artstico e
inibidor de influncias externas sua constituio, principalmente as econmicas. No
entanto, observa-se que a circulao da literatura tambm depende dos parmetros de
poltica editorial e de consumismo que modelam, de modo arbitrrio, os critrios de
seleo dos textos literrios. A marginalizao de uns em favor de outros tem vistas a
ajustar o texto a ser veiculado s expectativas dos leitores (segundo a mentalidade dos
prprios editores) onde, muitas vezes, percebem-se questes vinculadas identidade
poltico-religiosa-cultural dominante.
Entende-se, portanto, que o texto literrio pode se transformar em um aliado
ideolgico do discurso dominante dada a importncia que tem na vida cotidiana como
sendo um instrumento que direciona o olhar para os outros, para o mundo e para si
mesmo. Logo, a idia veiculada pelos discursos oficiais de que a leitura um hbito
adquirido por vontade prpria, independente dos vnculos sociais, transforma-se em
uma farsa.
inegvel dizer que a Indstria Cultural fixa de maneira exemplar a derrocada
da cultura, transformando-a em mercadoria. No entanto, a capitulao dos aspectos
mais superficiais produzidos por essa indstria pelo Jornalismo Cultural chama a
9 Jos Saramago em entrevista disponvel em :http://www.ufmg.br/boletim/bol1230/pag5.html
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ateno para a falta de compreenso das direes dos jornais com relao
especificidade da cobertura cultural.
De um lado encontra-se o apelo poltico imediato e as preferncias de certos
grupos que acabam por predominar sobre o critrio do interesse profundo. O que acaba
vigorando uma concepo reducionista, onde s tem importncia nas pginas culturais
aquilo que poderia ser transferido tal e qual para as pginas de noticirio geral,
comportamento, diverses, etc. Na correria do dia-a-dia, a superficialidade toma o
espao da anlise, da crtica e do debate de idias. Os atuais Suplementos Culturais
tornaram-se a prateleira das empresas promotoras de eventos, dos departamentos de
marketing das empresas de cultura, das grandes editoras. A informao cultural consumida como qualquer outro produto das lanchonetes e, mais do que nunca, depende
de modas efmeras criadas pelo mercado. Da explica-se a criao, por exemplo, de
colunas onde famosos fazem a indicao de certas leituras. As pginas desses jornais
tornaram-se veculo de uma publicidade que se reveste de jornalstica e que se
subordina totalmente lgica da Indstria Cultural, que muitas vezes subestimada
pelo ceticismo com relao ao que transmite aos homens a satisfao de suas necessidades.
Segundo Marisa Lajolo, somos um povo telespectador; no somos nem nunca fomos um pas de leitores. Somos um povo sem tradio escrita. E estamos chegando
era do descartvel, quando a literatura como prtica, corre o risco de tornar-se
igualmente descartvel (1995 p.95). No predomnio do visual sobre o verbal, no uso das cores e de todo o requinte da indstria grfica, a literatura tona-se talvez a nica
forma possvel de conscincia crtica da objetivao do indivduo. No entanto, Antenor
A. G. Filho afirma que
para ler o mundo, ningum faz as escolhas de livros de modo
livre. A leitura do mundo por meio dos livros so direes j designadas por outros, por uma rede fechada de valores culturais
onde so mediadas e compartilhadas as nossas fantasias, nosso
modo de ser, e, por que no dizer, nossos preconceitos
(2000,p.99).
Por isso, preciso que o olhar crtico tambm esteja presente no que diz respeito
ao espao dedicado literatura na mdia impressa para que o leitor pergunte-se que tipo
de literatura essa e por que est sendo indicada.
A partir do momento em que entendemos a cultura como sendo um fenmeno
social que representa o nvel alcanado pela sociedade em determinada etapa histrica
tendo o homem como resultado do meio cultural em que foi socializado (SODR,1999),
passamos a perceber que esta torna-se um meio eficaz de manipulao. Mais do que a
herana gentica, ela (a cultura) quem determina o comportamento humano
justificando suas realizaes (LARAIA,2003). O conhecimento da realidade se d pelos
sentidos, captamo-la pelo nosso corpo, pelos nossos olhos. A representao dessa viso
de mundo, a percepo, vem atravs da linguagem, da cultura. Mas vendo o mundo
apenas sob um nico prisma, o homem est propenso a considerar esta a verdade
absoluta, sem estranhamento, sujeitando-se. preciso manter o olhar renovado, estar
sempre em movimento descortinando as armadilhas dos discursos oficiais.
Dentro deste contexto, compreende-se que o papel do jornalista estimular a
conscientizao do ser humano, a viso crtica deste para a realidade denunciando as
formas de manipulao. Comunicao social isso, voltar-se para a sociedade, para o
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bem-estar desta utilizando-se das ferramentas que antes alienavam para resgatar o senso
crtico. Ao Jornalismo Cultural prope-se que este procure tornar mais acessvel ao
leitor comum as complexidades do esprito humano seja a filosofia, a msica, as artes, a
literatura fazendo com que este atravs do conhecimento adquirido olhe para as
banalidades da cultura de massa de maneira reflexiva. sua funo ajudar a educar e
enobrecer ainda mais em um Pas com tamanha desigualdade social, econmica e
cultural. O caminho no ser fcil, mas o desafio est lanado.
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Referncias Bibliogrficas
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A VOZ E A VEZ DA MOAMBICANIDADE.
UMA RELEITURA DO CONTO AS CICATRIZES DO AMOR
DE PAULINA CHIZIANE.
Aline Verginia dos Santos
Especialista em Literaturas Africanas
de Lngua Portuguesa pela UFRJ
Professora de Lngua Portuguesa
do Campus So Cristvo II
Graas vivificao da palavra divina, tais foras
comeam a vibrar. Em uma primeira etapa, convertem-
se em pensamento; em uma segunda etapa, em som; e em
uma terceira, em palavra.
Amadou Hampt B
Na Literatura Moambicana podemos refletir acerca dos diversos pontos
inerentes a sua histria. A literatura, na essncia reflecte sobre e reflecte-se na prpria
sociedade em que se insere. (ROSRIO, p. 126, 2010). A Literatura de Moambique
muito ligada a questes do quotidiano, das tradies africanas, da oralidade,
independncia, liberdade e da construo identitria moambicana. A independncia
trouxe liberdade de circulao e Paulina Chiziane melhor acompanha a temtica de
liberdade. (ROSRIO, 2010)
Paulina Chiziane, primeira romancista moambicana, natural de Manjacaze e
estudou em Maputo. Aprendeu o chope, sua lngua natal, o ronga e o portugus, fruto da
colonizao.
Em 1989, Chiziane escreveu o conto As cicatrizes do amor. Entre 1991 e 2008,
Paulina publicou cinco romances: Baladas de Amor ao Vento (1991), O Stimo
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Juramento (2000), Niketche, uma Histria de Poligamia (2002) e o Alegre Canto da
Perdiz (2008). Em 2008, ela publicou o livro de contos As Andorinhas.
No conto As cicatrizes do amor, Paulina Chiziane explora diversas vertentes da
histria de Moambique. O mesmo desenrola-se atravs da comunicao (oralidade) e
da memria relatada em uma roda de contos. Nessa narrativa so trabalhados traos
culturais tradicionais, a figura feminina e sua represso e a desmistificao do
preconceito atribudo s mulheres.
O conto comea e termina no ndico, localizando o espao da felicidade.
O cu nublado transfere o cinzento feio para a transparncia do ndico. (...) As guas
do ndico balanam com mais fora sob o domnio do vento sul. (CHIZIANE apud
GODINHO e ROSRIO, 1994). Moambique um pas banhado pelo ndico. Maria a
protagonista do conto. Narra sua histria de vida para as pessoas numa rodada de
mulheres sentadas na areia e os homens nas cadeiras. (CHIZIANE apud GODINHO e
ROSRIO, 1994). A roda um dos smbolos da cultura africana.
A posio das pessoas na rodada j denuncia a submisso e o preconceito
atribudo s mulheres construdo ao longo do tempo, no s na cultura moambicana,
mas em outras culturas, seno em todas. A maldade nasceu antes da humanidade. A
culpa cabe s mes mas de toda a sociedade sentenciou a mulher. (CHIZIANE
apud GODINHO e ROSRIO, 1994). A personagem Maria, nesta passagem, faz-nos
pensar na discriminao como algo que vem desde os primrdios da humanidade. No
cristianismo, religio imposta pelos colonizadores, a mulher fruto da culpa, uma vez
que, atravs dela, surgiu o pecado original, como melhor nos afirma o trecho bblico de
I Timteo captulo 2, versculo do 11 ao 15:
A mulher oua a instruo em silncio, com esprito de submisso. No
permito mulher que ensine bem que se arrogue autoridade sobre o homem,
mas permanea em silncio. Pois o primeiro a ser criado foi Ado, depois
Eva. E no foi Ado que se deixou iludir, e sim a mulher que, enganada, se
tornou culpada de transgresso. Contudo, ela poder salvar-se, cumprindo os
deveres de me, contanto que permanea com modstia na f, na caridade e
na santidade. (BBLIA SAGRADA, p. 1518, 2002).
Na mesma passagem do conto, citada no pargrafo acima, temos a construo e
a desconstruo do mito. A culpa no s das mulheres, da sociedade. Outrossim, este
conceito de religiosidade crist foi trazido pelos portugueses com um objetivo, a que
convm tal citao, A colonizao apresentada como um dever, invocando a misso
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civilizadora do Ocidente, competia a responsabilidade de levar o africano ao nvel dos
outros homens. (MUNANGA, p.9, 1988).
Maria conta uma grande e dolorosa histria de sua juventude, um crime, aos
companheiros da rodada. Ao contar, ela revive os momentos vividos no passado como
se fossem atuais, vive o passado no presente, Maria entristece. Ergue os olhos para o
cu na splica do silncio. A mente recua na trajectria distante, mais veloz que a
estrela cadente. Baixa os olhos para a terra infrtil, salpicada de ervas tisnadas.
(CHIZIANE apud GODINHO e ROSRIO, 1994). Trata-se da fora da narrativa, a
oralidade do jeito que ela .
A narrao da experincia est unida ao corpo e voz, a uma presena real
do sujeito na cena do passado. No h testemunho sem experincia, mas
tampouco h experincia sem narrao: a linguagem liberta o aspecto mudo
da experincia, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a
transforma no comunicvel, isto , no comum. A narrao inscreve a
experincia numa temporalidade que no a de seu acontecer (ameaado
desde seu prprio comeo pela passagem do tempo e pelo irrepetvel), mas a
de sua lembrana. A narrao tambm funda uma temporalidade, que a cada
repetio e a cada variante torna a se atualizar. (SARLO, p. 31, 2007)
Enamorada por um rapaz, ela engravidou e como o mesmo no tinha meios para
lobolar, o pai de Maria no aceitou a unio do casal. O pai da criana foi para
Johannesburg e Maria, depois que a criana nasceu, foi expulsa de casa. A ela s restou
solido, o desprezo e a esperana de um dia encontrar seu amado do outro lado da
fronteira. criana restou o enfraquecimento e quase a morte.
Maria, ao narrar esse acontecimento em sua vida, mostra-nos trs vertentes, a
tradio cultural, o abandono da tradio e a influncia dos pases sul-africanos.
Moambique est rodeada de pases colonizados por ingleses e por isso um povo
reservado (apesar de apreciar o riso e da dana) e, Johannesburg a maior cidade da
frica do Sul e foi colonizada pelos ingleses.
Em Moambique h um cruzamento cultural regido pela influncia rabe,
influncia dos portugueses e as tradies culturais de seu prprio pas. Atualmente, a
cultura moambicana est influenciada pelos avanos tecnolgicos e pela cultura norte-
americana.
Se quisermos falar de impacto da comunicao sobre as culturas africanas, no
percamos de vista, ento, que o nosso continente mantm-se refm e alvo de
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novas e sofisticadas formas de bombardeamentos, dos quais, todos das
lideranas aos cidados, recebemos impactos de conseqncias imprevisveis.
Por isso me pergunto: no ser hora de comear a pensar e traar novas
estratgias para outras lutas de libertao? Qui mais culturais do que
polticas? (ROSRIO, p. 19 e 20, 2010).
O lobolo, uma espcie de dote paga ao pai da noiva, um resqucio da tradio
cultural moambicana. Nos dias atuais, O lobolo foi negado, porm, existe
eufemisticamente. (ROSRIO, 2010).
A capulana, usada tradicionalmente pelas mulheres moambicanas para cingir o
corpo, outra vertente da cultura de Moambique. Amarrei a capulana bem firme; com
o beb bem seguro nas costas, jurei: os empecilhos que obstam a minha estrada sero
removidos pela minha mo. (CHIZIANE apud GODINHO e ROSRIO, 1994). Esse
traje simboliza a tradio e tambm, em outro trecho da narrativa, simboliza o abandono
da tradio: Desatas o leno e a capulana. (CHIZIANE apud GODINHO e
ROSRIO, 1994).
Ao relutar, com o corpo de sua filha quase morta, Maria vive um momento
decisivo, De repente o corao pulsou: uma moita cruzou o horizonte dos meus olhos.
Ser ali, ser ali, o cemitrio da minha filha, e noite, bandos de corvos deliciar-se-o
com o corpo frgil do meu rebento, ai!... (CHIZIANE apud GODINHO e ROSRIO,
1994). Neste trecho, podemos nos reportar ao conto Pai contra me de Machado de
Assis.
Pai contra me foi escrito nos anos de 1880, antes da abolio. O conto traz
questes de sobrevivncia e poder em meio abolio e aborda diversas vertentes. A
primeira vertente so os vestgios de escravido existentes num perodo que antecede a
libertao dos escravos. Os escravos, que no aceitavam tal condio, fugiam e por
isso existia o ofcio do Capturador de Escravos, trabalho que sofria uma decadncia por
conta da abolio. Esse conto de Machado mostra a luta pela sobrevivncia do filho de
um apanhador de escravos recm nascido e o filho de uma escrava ainda grvida que
fugira do seu senhor.
A escravido simboliza a dor de uma nao ao perder um filho. Moambique
sofre e chora por seus filhos arrancados de seu pas pelos portugueses. Para
sustentarmos a nossa anlise, citaremos uma passagem que relata a justificativa, do
ponto de vista do colonizador, sobre a escravido.
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(...) tenta-se mostrar todos os males do negro por um caminho: a Cincia. O
fato de ser branco foi assumido como condio humana normativa e o de ser
negro necessitava de uma explicao cientfica. Uma primeira tentativa foi a
de pensar o negro como um branco degenerado, caso de doena ou de desvio
norma. A pigmentao escura de sua pele s podia ser entendida pelo
clima tropical, excessivamente quente. Logo isso foi considerado
insuficiente, ao constatar-se que alguns povos vivendo no equador, como os
habitantes da Amrica do Sul, nunca se tornaram negros. Uma outra
justificativa da cor do negro foi buscada na natureza do solo e na
alimentao, no ar e na gua africanos. No satisfeitos com a teoria da
degenerao fundamentada no clima, outros aceitaram a explicao de
ordem religiosa, nascida do mito camtico entre os hebraicos. Segundo ele,
os negros so descendentes de Cam, filho de No, amaldioado pelo pai por
lhe ter desrespeitado quando o encontrou embriagado, numa postura
indecente. Na simbologia de cores da civilizao europia, a cor preta
representa uma mancha moral e fsica, a morte e a corrupo, enquanto a
branca remete vida e pureza. Nesta ordem de idias, a Igreja Catlica fez
do preto a representao do pecado e da maldio divina. Por isso, nas
colnias ocidentais da frica, mostrou-se sempre Deus como um branco
velho de barba e o Diabo um moleque preto com chifrinhos e rabinho. ...A
nica possibilidade de salvar esse povo to corrupto era a escravido.
(MUNANGA, p. 14 e 15, 1988).
Dentre outras questes, a oralidade, presente em todo o texto atravs, sobretudo,
na voz de Maria, uma forte caracterstica moambicana. O contexto da colonizao e
da liberdade se d atravs da linguagem e do poder da palavra, (re)escrita da memria.
Se a palavra fora, porque cria um vnculo de vaivm gerador de movimento e
ritmo, conseqentemente de vida e ao. (...) a palavra por excelncia o grande agente
ativo da magia africana. (B, p. 16 e 17, 1993). Atravs da voz que se emite a palavra
e Moambique passa a ter vez dentro de sua prpria cultura, reconstruindo sua
identidade e nacionalidade.
Segundo as linhas de pensamento de Fanon, a colonizao est relacionada com
a linguagem, com o aprendizado da lngua do colonizador gerando questes
ambivalentes:
Fanon ressalta inicialmente que racismo e colonialismo deveriam ser
entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele.
Isto significa, por exemplo, que os negros so construdos como negros. Em
outras palavras, no haveria razo para as pessoas na frica, na Austrlia ou
em outras reas do Pacfico Sul pensarem sobre si mesmas em termos raciais.
Para entender como tais construes ocorrem, o caminho lgico examinar a
linguagem, na medida em que atravs dela que criamos e vivenciamos os
significados. Na linguagem est a promessa do reconhecimento; dominar a
linguagem, um certo idioma, assumir a identidade da cultura. Esta promessa
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no se cumpre, todavia, quando vivenciada pelos negros. Mesmo quando o
idioma dominado, resulta a ilegitimidade. Muitos negros acreditam neste
fracasso de legitimidade e declaram uma guerra macia contra a negritude.
Este racismo dos negros contra o negro um exemplo da forma de narcisismo
no qual os negros buscam a iluso dos espelhos que oferecem um reflexo
branco. Eles literalmente tentam olhar sem ver, ou ver apenas o que querem
ver. Este narcisismo funciona em muitos nveis. Muitos brancos, por exemplo,
investem nele, j que teoricamente preferem uma imagem de si mesmos como
no racistas, embora na prtica ajam freqentemente de forma contrria.
(GORDON apud FANON, 2008).
O conto tambm apresenta-nos a metfora do sonho em trs significados: o
sonho surreal, o sonho lcido e o sonho psicanaltico.
O sonho lcido impulsiona os seres transformao da realidade, o sonho
surreal tem um sentido ilusrio e o sonho psicanaltico, segundo Freud, trata-se do
resultado de uma atividade mental inconsciente, uma espcie de realizao dos desejos
concretizada no sono.
Quando Maria estava quase a abandonar a sua filha, uma velhota
(representao da sabedoria) a levou para sua casa (a casa da velhota), mas, a me
desolada no desistia do seu objetivo. Maria acabou adormecendo e sonhou, No sonho
vi a minha pequena j crescidinha, rindo em gargalhadas rasgadas nos braos do pai.
(CHIZIANE apud GODINHO e ROSRIO, 1994). Neste trecho podemos constatar o
sonho atravs da lgica da psicanlise, como um recurso para lidar com contedos
reprimidos ou desejados.
Na tradio moambicana o sonho era uma forma dos antepassados se
comunicarem. Traos da tradio cultural ainda so fortes em Moambique como
lembra-nos Loureno do Rosrio,
O mundo do feitio e dos mitos esteve sempre ligado ao comportamento