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1 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO COLÉGIO PEDRO II REVISTA DE LÍNGUAS DO COLÉGIO PEDRO II ANO V NÚMERO V

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  • 1

    MINISTRIO DA EDUCAO

    COLGIO PEDRO II

    REVISTA DE LNGUAS

    DO COLGIO PEDRO II

    ANO V

    NMERO V

  • 2

    REITORA

    Prof Vera Maria Ferreira Rodrigues

    PR-REITORA DE ENSINO

    Prof Anna Cristina Cardozo da Fonseca

    CHEFE DO DEPARTAMENTO DE

    PORTUGUS E LITERATURAS

    EM LNGUA PORTUGUESA

    Prof Elaine Corra Barbosa Ramos

    CHEFE DO DEPARTAMENTO

    DE LNGUAS ANGLO-GERMNICAS

    Prof Maria Ins Azeredo Alonso

    CHEFE DO DEPARTAMENTO

    DE LNGUAS NEOLATINAS

    Prof Diva Maria Pimentel Rocha

    ORGANIZADOR

    Prof. Paulo Moreira Brtholo Jnior

    CAPA

    Joo Lucas de Freitas Brtholo (aluno do Campus Realengo II)

    IMPRESSO : Oficinas Grficas do Colgio Pedro II

  • 3

    CONSELHO EDITORIAL :

    PROF. PAULO MOREIRA BRTHOLO JNIOR

    PROF ELAINE CORRA BARBOSA

    PROF MARIA INS AZEREDO ALONSO

    PROF DIVA MARIA PIMENTEL ROCHA

    PROF. HRCULES ALBERTO OLIVEIRA

    PROF. JOS ANTNIO CAVALCANTI

  • 4

    AGRADECIMENTOS :

    A TODOS OS QUE COLABORARAM PARA ESTA EDIO .

    REVISTA DE LNGUAS

    DO COLGIO PEDRO II

    ISSN 2176-7432

    ANO V

    N V

    DEZEMBRO 2012

  • 5

    INDICE

    APRESENTAO pg. 6

    1 -AFINIDADES CONFLITIVAS DE DUAS VELHAS SENHORAS pg. 8

    Prof. Jos Antnio Cavalcanti

    2 - JORNALISMO CULTURAL: O ESPAO DA LITERATURA NA MDIA

    IMPRESSA pg 22

    Janaina de Cssia Campos Abreu

    3 - A VOZ E A VEZ DA MOAMBICANIDADE.

    UMA RELEITURA DO CONTO AS CICATRIZES DO AMOR DE PAULINA

    CHIZIANE. pg. 32

    Aline Verginia dos Santos

    4 - CONTANDO E FABULANDO: ORALIDADE E ESCRITA

    NA LITERATURA INFANTIL pg. 40

    Pilar Cordeiro Guimares

    5 - RECORDAES DO ESCRIVO ISAAS CAMINHA:

    TEMAS PARA REFLEXO pg. 55

    Elaine Brito Cunha

    6 - PARTICULARIDADES DA SINTAXE PRONOMINAL DO PB

    E AQUISIO DE PESSOA pg. 64

    Lia Santos de Oliveira Martins

    7 - MONTEIRO LOBATO: VIDA, REALIDADE E SONHO pg. 76

    Valeria Cristina de Abreu Vale Caetano

    8 - LES PASSAGES DE LOPRA ET POMMERAYE ARAGON,

    MANDIARGUES ET LE GOT DE LINSOLITE pg.87

    Ana Cndida Brando

  • 6

    APRESENTAO

    Tornara-se o Collegio de Pedro II o centro

    de que se ia irradiando a nova orientao

    cujos albores se vislumbravam nos concursos

    de linguas a que affluiam candidatos aqum

    eram familiares as doutrinas de Max Muller,

    Miguel Bral, Gaston Paris, Whitney, Littr,

    Darmesteter, Ayer, Brunot, Brachet,

    Frderich Diez, Bopp, Adolpho Coelho e outros,

    principalmente a dos autores allemes em que

    se estavam haurindo os elementos primordiaes

    para esta verdadeira Renascena dos estudos

    philologicos no Brasil.

    (MACIEL, Maximino, Grammatica Analytica, 1894)

    A REVISTA DE LNGUAS DO COLGIO PEDRO II, agora, de

    periodicidade anual, editada, a partir de 2008, o resultado de um trabalho coletivo dos

    Departamentos de Portugus e Literaturas em Lngua Portuguesa, de Lnguas

    Anglo-saxnicas e de Lnguas Neolatinas do Colgio Pedro II.

    Inicialmente, a idia era a retomada dos Cadernos Avulsos, organizados pelo

    Professor Antenor Nascentes, editados em meados do sculo XX - como meu projeto de

    dedicao exclusiva ao Colgio.

    Por sugesto da ento Chefe do Departamento de Lnguas Anglo-saxnicas,

    Professora Magda Massunaga, e do Chefe do Departamento de Portugus e Literaturas em

    Lngua Portuguesa, em 2008, Professor Manoel de Carvalho Almeida, esse objetivo foi

    ampliado e, aps entendimentos entre as chefias dos Departamentos envolvidos, tornou-se a

    Revista de Lnguas do Colgio Pedro II.

    Aqui, divulgada a produo acadmica e literria dos professores

    e as experincias pedaggicas desses Departamentos, com a finalidade primeira de integrar os

    professores de Lnguas do Colgio e servir de ferramenta para a divulgao dos trabalhos por

    eles produzidos

    Esta Revista uma homenagem aos grandes mestres que passaram na

    histria do mais que sesquicentenrio Colgio Pedro II e, dentre tantos, destacamos:

  • 7

    Joo Ribeiro, Jos M. Nunes Garcia, Fausto Barreto, Said Ali Ida,

    Augusto dos Anjos, Coelho Neto, Clvis do Rego Monteiro, Celso Cunha, Cndido Juc

    Filho, Joaquim Caetano da Silva (Professor de Rethorica, Lngua Grega e Grammatica

    Portugueza , Segundo Reitor do Colgio Pedro II) , Fausto Barreto, Vicente de Sousa,

    Vandick Londres da Nbrega, Evanildo Bechara, Domcio Proena Filho, Jayr Calhau,

    Antnio Jos Chediak , Antenor Nascentes, Carlos da Rocha Lima, Raimundo

    Barbadinho Neto, Walmrio Macedo, Olmar Guterres, Aurlio Buarque de Holanda

    Ferreira, Antnio Gonalves Dias ( Histria e Latim ), lvaro de Barros Lins , Artur de

    Oliveira, Joaquim Osrio Duque Estrada ( autor da letra do Hino Nacional ), Manuel

    Bandeira, Carlos de Laet, Jos de Oiticica, Silvio Elia, Afrnio Coutinho), Antenor

    Nascentes, Paulo Rnai, (Francs) Maximiano Augusto Gonalves, Hahnemann

    Guimares (Latim), Baro de Tautphoes (Alemo), Floriano de Brito (Francs), Dom Frei

    Antonio da Arrabida, Bispo de Anemria, (Primeiro Reitor do Colgio Pedro II, que fora

    preceptor dos prncipes D. Pedro e D. Miguel), Antonio Francisco Dutra e Melo

    (Ingls),Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (Literatura), e aos professores de Lnguas do

    Imperador Pedro II :Cndido Jos de Arajo Viana (Visconde e depois Marqus de

    Sapuca, senador do Imprio, Latim, Literatura e Cincias Positivas), Luis Aleixo Boulanger

    (Caligrafia), Padre Renato de Boiret (Primeiras Letras), Roque Schuch (depois Baro de

    Capanema, Alemo, Italiano e Histria Universal) , Nataniel Lucas (Ingls)

    (Paulo Brtholo Organizador da Revista de Lnguas do Colgio Pedro II e Professor de Portugus da Unidade Escolar So Cristvo III)

  • 8

    Afinidades conflitivas de duas velhas senhoras *

    Jos Antnio Cavalcanti

    Doutor em Potica pela UFRJ

    Professor de Lngua Portuguesa

    do Campus So Cristvo III

    Houve, quando ambas ainda existiam plenamente no vigor de um tempo ainda no

    transformado em moeda, uma rusga entre poesia e filosofia. A tradio lanou sobre

    Plato a responsabilidade por acirrar a desavena entre filsofos e poetas. Todos devem

    se lembrar de que em A Repblica, no Livro X, o discpulo de Scrates lanou um

    antema sobre os poetas, expulsando-os da plis ideal, com exceo dos autores de

    hinos aos deuses e encmios aos vares honestos e nada mais.

    A benevolncia com o laudatrio comprova que o receio de Plato no se voltava contra

    toda forma potica, mas especialmente contra aquela poesia por ele considerada

    mimtica, forma destruidora da inteligncia, responsvel por fazer com que o prazer e

    a dor assumissem o controle da cidade em detrimento da lei e do princpio tido como o

    melhor para comunidade.

    O filsofo ateniense afirmou que a poesia mimtica imita homens entregues a aes

    foradas ou voluntrias, e que, em consequncia de as terem praticado, pensam ser

    felizes ou infelizes, afligindo-se ou regozijando-se em todas essas circunstncias. O

    poeta, assim, instauraria na alma dos cidados um mau governo, inflamando paixes,

    despertando a parte irracional, alimentando fantasias e gerando descontrole e

    turbulncia. Era o mundo sensvel atropelando o mundo inteligvel, a iluso impedindo

    a nesis, sem a qual o Bem inalcanvel e a humanidade permanecer retida ad

    infinitum na zona de sombras onde se atolou.

    Com isso no se esgota a viso platnica, de extraordinria complexidade. Basta

    observar que no dilogo Fedro, uma anlise do Belo, o autor, ao formular a lei de

    Adastreia, reguladora do retorno ao mundo das almas que no conseguiram fugir

    doxa, devolve aquelas mais prximas da libertao a um homem destinado a ser amigo

    da sabedoria e da beleza ou cultor das Musas e do amor, ambos no mesmo plano,

    portanto, acima de reis, guerreiros, polticos, comerciantes etc. Tanto o filsofo quanto

    o poeta possuem, ento, almas com maior capacidade de captar o reflexo das ideias que

    contemplaram em existncias anteriores.

  • 9

    Importa tambm observar que o antema sobre a poesia foi lanado por um autor que

    recorreu ao longo de seus textos tradio potica grega da qual se revelou profundo

    conhecedor. Alm disso, a construo da dialtica platnica aproxima-se em muitos

    momentos da linguagem potica. Isso joga mais lenha na fogueira e nos faz evitar

    vises ligeiras e pre/conceituosas sobre as ideias platnicas.

    Maior deve ser o cuidado quando se sabe tambm que Plato no concedia grande

    importncia escrita, apesar dos numerosos dilogos e cartas que chegaram at ns.

    Observe-se, por exemplo, a passagem de Fedro em que Scrates critica a inveno da

    escrita, obra de um demnio egpcio, Teute, que a teria apresentado ao rei Tamuz como

    um remdio para o esquecimento e a ignorncia: Confiante na escrita, ser por meios

    externos, com a ajuda de caracteres estranhos, no no seu prprio ntimo e graas a eles

    mesmos, que passaro a despertar suas reminiscncias. No descobriste o remdio para

    a memria, mas apenas para a lembrana. O que ofereces aos que estudam simples

    aparncia do saber, no a prpria realidade.

    A poesia, a arte em geral na formulao platnica, capta a ausncia, o nada e constri-se

    sob o vazio; dele faz sua morada e dele, somente dele, do no lugar da arte, pode pro-

    duzir, no sentido atribudo ao termo por Plato em O banquete e recuperado por

    Heidegger: Todo deixar-viger o que passa e procede do no vigente para a vigncia

    , pro-duo.

    A criao o hiato entre o nada e o criado, entre o no existir e o vir-ao-mundo. Aquilo

    que gerado j no est no momento da prpria gerao, apesar de carreg-lo para

    sempre sob a forma do esquecimento. Na fenda criadora vige a inapreensibilidade da

    existncia, fluxo contnuo e simultneo de vida e morte.

    Agamben opera uma suspenso do tensionamento matricial da obra em Heidegger,

    instncia entre ser e no ser que aparece pronta, acabada, fixada na finitude que a

    informa como um mundo fechado. A posio sustentada por uma longa tradio

    filosfica, aos olhos do filsofo italiano, reduz a obra apenas sua superfcie visvel,

    perdendo o que escapa apreenso imediata, ou seja, a prpria arte. O que evita o

    esgotamento da obra a percepo de que:

    O ato de criao no , na realidade, segundo a instigante concepo corrente, um

    processo que caminha da potncia para o ato para nele se esgotar, mas contm no

    seu centro um ato de descriao [grifo do autor], no qual o que foi e o que no

    foi acabam restitudos sua unidade originria na mente de Deus, e o que podia

  • 10

    no ser e foi se dissipa no que podia ser e no foi.

    Alberto Pucheu, em ensaio sobre Estncias, exps com bastante propriedade o desvio

    agambeniano em relao ao produzir da obra de arte.

    Se (...) a tradio fazia com que a criao fosse compreendida enquanto a

    passagem do no ser ao ser, do informe forma, da potncia ao ato, do velado ao

    desvelado, considerando a obra como pronta, acabada, esgotada, o filsofo

    afirmaria que a obra de arte oferece no ser a afluncia do no ser, na forma a

    afluncia do informe, no ato a afluncia da potncia, no desvelado a afluncia do

    velado, fazendo com que, no retorno constante ao de onde veio privilegiado, ela

    seja sempre, inconclusiva, inacabvel, inesgotvel...

    Para Heidegger a pro-duo e o pro-duzir devem ser percebidos mediante a recuperao

    de sua significao para os gregos. Desse modo, no nomeia apenas os processos

    relativos ao artesanato e s formas poticas e artsticas, mas, principalmente, a

    [physis], sua forma mxima, pois independe de algo exterior a ela, j que porta em si

    mesma o eclodir da pro-duo. A matriz originria no estabelece, portanto, distines

    entre o que foi criado.

    Ao questionar o significado da tcnica e ao evocar a essncia grega da causalidade, o

    autor de Ser e tempo aclara o conceito de pro-duo:

    O deixar-viger concerne vigncia daquilo que, na pro-duo e no pro-duzir,

    chega a aparecer e apresentar-se. A pro-duo conduz do encobrimento para

    o desencobrimento. S se d no sentido prprio de uma pro-duo, enquanto e

    na medida em que alguma coisa encoberta chega ao des-encobrir-se. Este

    chegar repousa e oscila no processo que chamamos de desencobrimento.

    Para tal, os gregos possuam a palavra [aletheia]. Os romanos a

    traduziram por veritas. Ns dizemos verdade e a entendemos geralmente

    como o correto de uma representao.

  • 11

    Aps o filsofo constatar que a essncia da tcnica no um simples meio, um outro

    olhar a lana, ento, no mbito do des-encobrimento, ou seja, da aletheia. Assim, a

    palavra grega refere-se ao que pertence a de dupla maneira: tanto ao

    fazer da habilidade artesanal quanto ao fazer da grande arte e das belas-artes. A

    pertence . At a poca de Plato, e [episteme] eram palavras

    utilizadas para designar o conhecimento em seu sentido mais amplo.

    As ideias heideggerianas apontam para a rica possibilidade aberta pela ruptura das

    fronteiras demarcatrias do conhecimento, das linhas limtrofes entre tcnica, arte e

    pensamento. Na busca da essncia da tcnica, vislumbra-se o originrio da arte,

    concebida como o desencobrimento que leva a verdade ao fulgor de sua plena vigncia.

    A palavra tcnica, usada para referncia tcnica e criao artstica, reunia num nico

    des-encobrir uma infinidade de desdobramentos. Por isso, Heidegger diz que as artes

    no surgiram de um campo determinado da criao, no se originavam do artstico.

    Mas, ento, como era a arte? Talvez somente por poucos anos, embora anos

    sublimes? Por que a arte tinha o nome simples e singelo de ? Porque era

    um des-encobrir pro-dutor e pertencia . O ltimo des-velo, que

    atravessa toda arte do belo, era , era poesia.

    Quase ao final do ensaio A questo da tcnica, o autor aponta para o vigor do potico

    no desvelamento da verdade:

    o potico que leva a verdade ao esplendor superlativo que, no Fedro, Plato

    chama de , o que sai a brilhar da forma superlativa. O potico

    atravessa, com seu vigor, toda arte, todo desencobrimento do que vige na beleza.

    O ensaio de Heidegger retoma e sintetiza reflexes apresentadas em A origem da obra

    de arte, em que o autor j afirmava que a essncia da arte guarda o originrio. Aps

    analisar a relao entre arte, artista e obra, constata que a arte s pode ser apreendida da

    obra, apreenso que se d como virtualidade, pois o que a arte permanece constante

    opacidade. O carter de coisa das obras no facilita a aproximao porque a arte o que

    escapa s coisas e prpria obra, esta ltima , na verdade, forma simblica na qual a

    arte anuncia a sua presena e fuga simultneas. A partir da anlise da reproduo

    pictrica de um par de sapatos de campons por Van Gogh, o autor afirma que a

    essncia da arte seria ento o pr-se-em-obra da verdade do ente, ou seja, escapa

    coisalidade que a constitui para abrir-se como um mundo para ns.

  • 12

    Concebida a criao como um produzir, torna-se impossvel distinguir entre produo

    artstica e no artstica, ambas abrigadas no termo , j que os gregos referiam-se

    indistintamente ao arteso e ao artista como . As duas formas compartilham de

    idntica natureza determinada pela essncia da criao e por nela permanecerem retidas.

    Heidegger afirma que o tornar-se-obra da obra um modo do passar-a-ser e de

    acontecer da verdade. A verdade guarda a duplicidade de ser passagem: A verdade

    no verdade, na medida em que lhe pertence o domnio de provenincia do ainda-no-

    (des)-ocultado, no sentido da ocultao. Na verdade pulsa a tenso entre o negativo e o

    positivo: A verdade o combate original no qual, de cada vez a seu modo,

    conquistado o aberto, no qual tudo assoma e a partir do qual se retrai tudo o que se

    mostra e se erige como ente. Entendido o nada como a negao do ente e vendo-se

    neste aquilo que est disponvel e aparece no estar-a da obra, pode-se admitir que a

    verdade advm do nada.

    A exemplo do ensaio A questo da tcnica, Heidegger concede grande relevncia

    poesia no processo de desocultao da verdade, entendida como um acontecimento que

    se d mediante um processo radicado na poeticidade, caminho que o leva a declarar que

    Toda a arte [grifo do autor] , enquanto deixar-acontecer da advenincia da verdade do

    ente como tal, na sua essncia Poesia [grifo do autor]).

    Para justificar o primado do potico no terreno das artes, o filsofo formula uma

    concepo de linguagem.

    A linguagem no apenas e no em primeiro lugar uma expresso oral e

    escrita do que importa comunicar. No transporta apenas em palavras e frases o

    patente e o latente visado como tal, mas a linguagem o que primeiro traz ao

    aberto o ente enquanto ente.

    Na reflexo heideggeriana de linguagem, a poesia ocupa um lugar especial:

    A prpria linguagem Poesia em sentido essencial. Mas, porque a linguagem o

    acontecimento em que, para o homem, o ente como ente se abre, a poesia, a

    Poesia em sentido estrito, a Poesia mais original, no sentido do essencial. A

    linguagem no , por isso, Poesia, por ser a poesia primordial (Urpoesie), mas a

    poesia acontece na linguagem, porque esta guarda a essncia original da Poesia.

  • 13

    O vigor do potico imantiza a prosa a partir do sculo XIX e causa a indistino das

    fronteiras clssicas, ultrapassando as marcas de emprstimos mtuos para inscrever a

    criao no interior da juno e fratura da linguagem. A poeticidade constitui-se no

    centro do processo irradiador. A prosa passou a ser compreendida como uma forma que

    perdera a eficcia. O lao estreito entre prosa e representao, ao ser rompido, colocou a

    nu a insuficincia de seus recursos. A prosa era um discurso-simulacro-do-real. Buscou,

    ento, no potico no apenas a sonoridade, mas a liberdade, a poiesis, a inveno, o

    instrumental necessrio produo de um discurso desreferencializado em relao ao

    real ao qual caberia a ela somente transcrever, recodificando-o em literatura. A poesia

    permitiu a prosa instituir-se verdadeiramente como prosa, efetivamente ficcionalizar-se.

    Foi necessrio a vida morrer na prosa para que a prosa pudesse renascer.

    Se os modos de assumir o poema so revolvidos pelo surgimento do verso livre, do

    poema em prosa e da constelao grfica, a prosa tambm organiza novos modos na

    contramo do representacional, reinventando-se como forma potica. Portanto, constri-

    se um caminho de mo dupla para configurar na criao literria a vigncia do

    indiscernvel. No se trata de auferir ao texto literrio a propriedade conceitual em que o

    texto filosfico guarda as fronteiras de seu domnio, mas de avanar rumo ao que surge

    da vizinhana, do voltar-se da prosa potica para a prosa terica e vice-versa. Trata-se

    de desguarnecer fronteiras, deixar o texto exposto ao precrio de sua natureza, exposto

    como linguagem, que fratura e salto simultneos.

    Heidegger aponta exatamente para uma zona de confluncia entre poesia e pensamento,

    sob a sombra da linguagem, embora v apenas a determinado ponto, o limite do prprio

    de cada esfera:

    Tanto a poesia como o pensamento movimentam-se no elemento do dizer.

    Pensando a poesia, j nos vemos no mesmo elemento em que se movimenta o

    pensamento. Aqui no possvel decidir se a poesia propriamente um

    pensamento ou se o pensamento propriamente poesia. Fica obscuro o que

    determina a sua relao mais prpria e a partir de onde isso que chamamos sem

    hesitar de prprio surge propriamente. No entanto, qualquer que seja o modo

    em que nos vem mente poesia e pensamento, um mesmo elemento j sempre

    est a nos alimentar, quer lhe prestemos ateno ou no. Esse elemento a saga

    do dizer.

  • 14

    Guarda, assim, o filsofo as marcas segregadoras na distncia mantida pelo prprio do

    pensamento e da poesia, cuja ultrapassagem no arrisca, preferindo estabelecer na

    vizinhana uma propriedade de trocas enriquecedoras. Ainda que Heidegger resvale

    numa mudana de rumo que torna o seu pensamento impensvel sem o potico, insiste

    em guarnecer as fronteiras seculares da separao, aderindo distino hlderliana e

    revelando uma dvida ao hegelianismo:

    Mas pelo fato de a poesia, em comparao com o pensamento, estar de modo

    bem diverso e privilegiado a servio da linguagem, nosso encontro que medita

    sobre a filosofia necessariamente levado a discutir a relao entre pensar e

    poetar. Entre ambos, pensar e poetar, impera um oculto parentesco porque

    ambos, a servio da linguagem, intervm por ela e por ela se sacrificam. Entre

    ambos, entretanto, se abre ao mesmo tempo um abismo, pois moram nas

    montanhas mais separadas.

    II

    No muito comum encontrarmos autores que transitem pelas duas reas com a mesma

    desenvoltura. Antnio Ccero faz parte do seleto grupo para o qual a poesia no

    significa o abandono da filosofia. Prova viva dessa afirmao o lanamento

    simultneo de dois livros, Porventura, de poemas, e Poesia e filosofia, um conjunto de

    pequenos ensaios sobre o parentesco entre os dois discursos.

    Antnio Ccero, oriundo de famlia de intelectuais. Possui slida formao. Fugindo ao

    clima opressivo da ditadura, concluiu o curso de filosofia na Universidade de Londres e

    fez ps-graduao na Universidade Georgetown, nos EUA.. Conhece grego e latim, o

    que lhe d uma boa viso dos textos clssicos, tanto dos filosficos quanto dos poticos.

    Por outro lado, lida bem com as formas da contemporaneidade: tornou-se um letrista

    importante, lanou cd com leitura de seus textos, participou do filme Tabu, de Jlio

    Bressane, mantm o blog Acontecimentos, espcie de antologia pessoal propiciada pela

    tecnologia, alm de ser figura muito requisitada para eventos nos quais a cultura o

    centro das atenes.

    De sua produo anterior, vale a pena mencionar O mundo desde o fim (1995) e

    Finalidades sem fim (2005), ambos voltados para a reflexo, e Guardar (1996) e A

    cidade e os livros (2002), livros de poesia.

  • 15

    O autor deixa bem claro na introduo Poesia e filosofia o ngulo a partir do qual tece

    as suas ideias: penso que a poesia e a filosofia so atividades humanas inteiramente

    diferentes uma da outra. Tal posio, aparentemente bvia, serve para marcar um

    distanciamento da corrente contempornea que busca uma aproximao entre as duas

    linguagens, processo iniciado no primeiro romantismo alemo e que encontra em

    Giorgio Agamben e Alberto Pucheu argutos pensadores de novas possibilidades.

    Admite Ccero a possibilidade de existncia de um filsofo que jamais tenha escrito

    uma linha; toma Scrates para exemplificar a tese, o que me parece estranho, pois o

    mentor de Plato teria elaborado, refinado e criado mtodos e modos dialticos de

    filosofar, limitando-se apenas a deix-los banhados em pura oralidade. No entanto, no

    compreendi a razo pela qual no admite a existncia de um indivduo capaz de ser

    efetivamente poeta sem obra. Ainda mais se pensarmos que a poesia s existe em fuga,

    como impossibilidade, melhor, como potncia da linguagem que se materializa no

    poema sempre como falta.

    Uma caracterstica comum filosofia e poesia no possurem nenhuma utilidade

    prtica, a primeira por privilegiar abstrao, a segunda por tambm corresponder

    imerso em territrio imaginrio. Outra caracterstica, responsvel pela marginalidade

    de ambas na sociedade contempornea, a despreocupao com a temporalidade numa

    poca de acelerao incontrolvel do tempo. A transformao do tempo em mercadoria

    eliminou a noo de tempo livre, a fruio de autonomia, o espao de movimentao da

    subjetividade, de transformao interna, o cio criativo, a margem reflexiva, enfim,

    expurgou o tempo similar ao do demnio do meio-dia, o filtro interno em que o mundo

    se realimenta e se reinventa. O princpio do desempenho corresponde ao processo de

    instrumentalizao do ser humano, sua apropriao pelo reino espetacularizado e

    produtivista do imediato. Ora, o poema no rende, no produz nada que j no esteja

    nele encerrado. O valor do poema no semelhante ao da acumulao de capital.

    Autotlica linguagem, vale em si mesma. Nesse sentido, tanto a poesia quanto a

    filosofia rompem com a linha de montagem e o consequente utilitarismo. Temos, ento,

    um paradoxo: no h espao para ambas numa cultura cada vez mais chapada,

    googlenizada, digitalizada, instantnea, por outro lado, nunca foram to necessrias.

    Antnio Ccero toma emprestado o ttulo de um livro de Carlos Drummond de Andrade

    A vida passada a limpo para exemplificar alguns aspectos do trabalho potico. O

    poema advm de uma tomada de deciso ou de algum acaso inicial. O autor deixa de

    fora a possibilidade de possesso, ou seja, de o poema assaltar o poeta, invadi-lo,

    obrig-lo a dar-lhe forma. Qualquer que seja o caminho, todavia, o trabalho envolve um

    complexo processo de escolhas; ttulo, extenso, mtrica ou no, versos rimados ou

  • 16

    brancos, forma buscada na tradio ou proposta experimental etc. Isso no plano macro,

    digamos assim, porque o poema exige, na realidade, uma escolha a cada palavra. Fora a

    lapidao, a reescritura, s vezes a completa transformao textual. Cada mudana no

    poema implica uma mudana de todo o universo. Na depurao do texto, muitos

    universos so suprimidos pela eternidade. Acontece que um poeta no apenas o que

    faz versos ou poemas sem versos, mas o arquiteto de uma determinada potica, cria,

    assim, o barco, o rumo e o sistema de navegao em que se movimenta.

    No acredito, como Ccero, que o fim da vida de um poeta seja virar poesia, poeta no

    possui fim propriamente, aquele que se lana ao inalcanvel, o portador da recusa

    limitao da vida e da linguagem. No h poesia sem risco, sem a possibilidade do

    caminho de Hlderlin. Certamente h uma muito arraigada viso de poesia como zona

    de conforto, abrigo, autoajuda, melflua musicalidade, terapia, aquilo que vulgarmente

    denominamos perfumaria. Mais ainda: no h um caminho, receita, certificado de

    garantia. A fruio de um nico poema revela modos diversos de o leitor ideal fazer

    valer o tempo livre, investindo numa leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira,

    reflexiva e intuitiva, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e no

    linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingnua e

    informada.

    Um poema no se faz com ideias, mas com palavras, a resposta de Mallarm a Degas,

    que acreditava que, por possuir muitas ideias, poderia convert-las em poemas,

    exemplar na demarcao de territrios alheios, mas me parece insuficiente para impedir

    a percepo do texto potico como uma estrutura extremamente porosa aos ventos que

    sopram de outros campos do conhecimento. O em-si do poema, a sua

    monumentalizao, talvez seja uma forma de mant-lo intocado, num estado de pureza

    que no corresponde ao terreno das artes, avesso organizao de materiais em

    prateleiras arrumadas, rotuladas, submetidas padronizao cientfica ocasionalmente

    imposta por pensadores aos artistas. A frase de Mallarm mapeia o centro nervoso da

    produo potica, a palavra, verdade, mas no existe algo to fugidio quanto a

    apreenso do significado desse termo, um conceito no qual se cruzam caminhos

    diversos e nos constitui como sujeitos.

    No quarto ensaio do livro, o autor faz uma distino entre pensar o mundo e pensar

    sobre o mundo de extrema importncia para compreender o jogo de separao e

    aproximao entre poesia e filosofia. Ccero explora a diversidade sinttica para refinar

    o pensamento sobre a questo. Para ele, a presena da preposio aps o verbo pensar,

    construo mais usual, corresponde ao pensamento discursivo ou dianotico, segundo a

    classificao aristotlica, j a supresso do conector seria uma forma do pensamento

  • 17

    intuitivo e notico. Isso significa que a ciso trazida ao enunciado pela preposio, cria

    a possibilidade do pensamento filosfico pleno ao transformar o mundo em uma

    totalidade a ser pensada pelo sujeito. Sem a preposio, o pensamento rompe a

    segregao e passa a fazer parte tambm do mundo. Nas palavras do autor: a abolio

    da preposio sugere a abolio da separao e da mediao entre o pensamento e a

    coisa pensada. como se o pensamento no ficasse sobre, isto , acima ou, de algum

    modo, fora do mundo, para pens-lo. Portanto, h um pensamento solto, informe,

    apropriado por todos, e h um pensamento formalizado, preso ao rigor e s exigncias

    da filosofia. Pensar o mundo uma das possibilidades da poesia, como demonstra o

    autor ao final do ensaio com uma anlise do poema O rio, de Manuel Bandeira, e a

    exposio do poema Nuvens, de Jorge Luis Borges. Alis, um dos pontos altos do

    livro o uso de excelente repertrio de poemas magistralmente utilizados na defesa das

    concepes do autor.

    O quarto ensaio prepara o leitor para a percepo da natureza desigual das nuvens em

    que se movem poetas e filsofos. Ccero explicita as diferenas: Os assuntos do poeta

    no so to genricos e abstratos quanto os do filsofo. Antecipa possvel objeo

    daqueles que no acreditam na sua defesa de separao to radical, por isso no acredita

    que os poetas abordem de modo figurativo e implcito os assuntos tratados pelos

    filsofos. Entende que justamente quando mais parece se aproximar do universo

    filosfico que a poesia dele se afasta. Toma da Ode I.xi, de Horcio, um dos mais

    tradicionais motivos poticos, o carpe diem, como exemplo de comprovao de sua

    tese. Acrescenta que, em termos filosficos, no h absolutamente nenhuma novidade

    na ode horaciana. Isso no implica a supresso de seu carter de obra-prima, serve para

    comprovar que a filosofia no o ponto de chegada do poema, apenas um dos

    elementos integrantes de sua composio. A perfeio e a beleza da ode so propiciadas

    por outros recursos.

    Para tornar mais claro o seu ponto de vista, o autor enfatiza: Sustento que a poesia

    enquanto poesia inteiramente diferente da filosofia enquanto filosofia. Para

    acrescentar: No que no haja poemas que contenham teses filosficas ou textos

    filosficos que contenham trechos poticos. que o que torna um poema admirvel

    enquanto poesia no o que torna um texto filosfico admirvel enquanto filosofia.

    Considero um raciocnio quase irretocvel, s me pergunto se realmente no h

    nenhuma fenda, nenhuma fissura pela qual seja possvel a quebra dessa rigidez, do

    caminho nico e impermevel de ambas, ainda mais que so dimenses da linguagem,

    forma contaminada em sua essncia, propriedade de impureza. No haver em alguma

    falha da linguagem um verso que seja um conceito, um pensamento no ritmo

  • 18

    encantatrio do poema, um vazamento de palavras a misturar de modo incontrolvel

    poesia e filosofia?

    Outra ode de Horcio (III.xxx), na qual o poeta latino exalta a perenidade do poema,

    permite ao autor de Guardar, valendo-se de oposio foucaultiana, propor outra

    distino entre o texto potico e o texto filosfico: enquanto, de maneira geral, o

    poema sendo contemplado por si prprio, funciona como um monumento, um texto

    filosfico, sendo lido em vista da tese que afirma, funciona como um documento (grifo

    do autor).

    Antnio Ccero observa a no existncia em lngua portuguesa de antnimo para a

    palavra poesia. Alguns, equivocadamente, empregam prosa, quando o mais pertinente

    o emprego de expresses no poesia e no poema. A prosa no se contrape

    poesia ou ao poema, mas ao verso, fato explicado pela etimologia:

    Prosa, do vocbulo latino prorsus e, em ltima instncia, de provorsus que

    quer dizer em frente, em linha reta o discurso que segue em frente, sem

    retornar. Verso, do vocbulo latino versus, particpio passado substantivado de

    vertere, que quer dizer voltar, retornar, o discurso que retorna.

    Na verdade, tal diferena guarda na escrita as marcas da cultura oral primria, na qual

    no existiam gneros literrios, pois a palavra literria deriva de letra. No obstante,

    havia a diferena entre aquilo que se reitera e aquilo que no se reitera. Isso explica as

    formas distintas de epos - , enunciado reiterado, transformado em memria, e

    mythos - , , o enunciado no reiterado, originalmente com o significado de fala.

    Assim, na cultura no letrada o verso j um padro sonoro recorrente, enquanto a

    prosa apenas ocorrncia. A prevalncia do verso nos textos da antiguidade

    seguramente deve-se extraordinria dependncia da memria, face dificuldade de

    produo e circulao de textos escritos.

    O autor no compartilha da crtica agambeniana ciso da palavra e da consequente

    busca de uma suposta totalidade originria perdida. Eis como Agambem apresenta a

    questo logo na introduo do livro Estncias:

    De acordo com uma concepo que est s implicitamente contida na crtica platnica

    da poesia, mas que na idade moderna adquiriu um carter hegemnico, a ciso da

    palavra interpretada no sentido de que a poesia possui o seu objeto sem o conhecer, e

  • 19

    de que a filosofia o conhece sem o possuir. A palavra ocidental est, assim, dividida

    entre uma palavra inconsciente e como que cada do cu, que goza do objeto do

    conhecimento representando-o na forma bela, e uma palavra que tem para si toda a

    seriedade e toda a conscincia, mas que no goza do seu objeto porque no o consegue

    representar.

    Para reforar a excluso mtua dos dois campos do conhecimento, Ccero recorre a

    figura de Lucrcio, destitudo da condio de filsofo por faltar-lhe originalidade, mas

    em plena condio de grande poeta e brilhante divulgador da filosofia de Epicuro. A

    questo da originalidade, tanto em poesia quanto em filosofia, aponta para um pntano,

    mais hostil ainda no territrio filosfico, pois os poetas moem e remoem temas

    imemoriais, livres que esto da lida com ideias, porm os amantes do saber

    movimentam-se em possibilidades bem mais estreitas. Talvez, por esse prisma, se os

    poetas tornaram-se invisveis, os filsofos tenham sido extintos.

    A finalidade da obra filosfica a manifestao de uma proposio, tese, ou doutrina

    filosfica, assim como a da poesia a obra potica, embora esta possa conter

    proposies, como um dos elementos integrantes de sua constituio. Como os

    enunciados poticos no constituem proposies, mesmo aqueles situados mais

    prximos do carter proposicional (como as manifestaes de ars potica), o fato de

    serem eventualmente contraditrios no os desqualifica. Alguns tm na prpria

    contradio a prpria razo de ser.

    O ensasta valoriza a desfetichizao completa de todos os recursos poticos efetuada

    pelas vanguardas do sculo XX que derrubaram os limites das convenes mtricas e

    dos recursos retricos tidos at ento como condies necessrias e suficientes para a

    produo de um poema. A irrupo do verso livre no acarretou a eliminao das

    formas anteriores, pois a ao da vanguarda no foi o fechamento de portas abertas,

    mas a abertura de portas fechadas; no foi a renncia, mas a desprovincianizao ou

    cosmopolitizao da poesia. Trata-se, portanto, da contribuio milionria de todas as

    possibilidades estticas. Tal movimento liberou a poesia dos limites das aparncias

    acidentais e das contingncias histricas, da submisso camisa de fora das

    convenes poticas.

    A proposta iconoclasta das vanguardas trouxe o make it new poundiano para a linha

    de frente da esttica. bem verdade que a fria demolidora ajudou a reconfigurar o

    cenrio das artes, principalmente do ponto de vista cognitivo, ao revelar que

  • 20

    simplesmente no h jamais houve condio necessria ou suficiente para a

    produo de um poema.

    Sobre o culto novidade tambm incide o peso do reino das mercadorias, mas a crtica

    de Antnio Ccero no avana no campo das relaes de produo.

    Caso a novidade fosse critrio vlido, uma vez descobertas novas possibilidades, todas

    as anteriores estariam relegadas ao esquecimento. No entanto, as obras de Homero,

    Dante e Cames ainda exercem enorme fascnio sobre leitores contemporneos.

    Se a poesia o que escapa ao poema, escapa tambm a qualquer traduo, segundo

    Robert Frost. Apesar de a poesia ser uma arte em fuga constante, traduzir poemas pode

    propiciar uma certa aproximao entre o leitor sem domnio da lngua de origem e a

    verso original. H certamente outra questo normalmente no levada em considerao:

    inmeras vezes uma traduo nos atinge to profundamente que, quando aprendemos a

    ler o texto na lngua-fonte, no conseguimos nos desvencilhar do primeiro olhar sob a

    luz da lngua-alvo.

    Ccero l a filiao dos poetas s musas no como simples valorizao da memria, mas

    como verdadeira declarao de autonomia esttica. Os poetas, confessando-se ligados

    ao plano divino, conseguiram alto grau de liberdade para circular por todos os caminhos

    do discurso.

    Plato, em on, atribui a Scrates palavras que conferem aos poetas a propriedade de

    empregarem um discurso sem amarras: porque o poeta coisa leve, e alada, e sagrada,

    e no pode poetar at que se torne inspirado e fora de si, e a razo no esteja mais

    presente nele. A passagem, todavia, critica a incapacidade dos poetas, pois o discurso

    por eles proferidos viria dos deuses, no possuindo a originalidade daqueles produzidos

    pela razo, criados pelos seres humanos. Apesar disso, assinala, por outro lado, a ampla

    possibilidade da poesia, fora da zona de controle da cidade.

    O autor conclui os ensaios reafirmando a rigidez dicotmica de sua tese: mais que uma

    diferena, h uma oposio complementar entre poesia e filosofia. O ltimo perodo do

    livro explicita a natureza dessa complementaridade:

    (...) esta [a poesia] constitui a afirmao radical e imanente do mundo fenomenal,

    imediato, aleatrio finito, aquela [a filosofia] o ncleo do empreendimento moderno

    de crtica radical e sistemtica das iluses e das ideologias que pretendem congelar ou

    cercear a vida e, consequentemente, congelar e cercear a prpria poesia.

  • 21

    Resta saber se a poesia precisa de tutela, de defesa, de outro discurso que, sob a fantasia

    de combater iluses e ideologias, na verdade muitas vezes as justifica. A investigao

    do autor, formulada sob uma tica kantiana, realizada de modo esplndido, com

    profundo conhecimento de causa.

    Confesso que li com muito proveito as reflexes do filsofo e poeta, tanto que esta

    resenha me saiu muito extensa. O tema guarda, por sua prpria natureza, um carter

    inconclusivo, caracterstica que protege a riqueza inesgotvel de um campo proteico,

    formado e informado por matria em fuga, em incandescncia inesgotvel. No h,

    felizmente, o ponto final de uma certeza, nada foi resolvido porque no h nada a se

    resolver, mas a ser revolvido. Justamente por isso samos da leitura mais sedentos e

    enriquecidos.

    Continuo a acreditar que a poesia est mais prxima de uma forma de energia do que da

    ideia de monumento e que a diferena entre os dois discursos que a filosofia um no

    sei e a poesia um sei l!

    * Resenha do livro Poesia e Filosofia, de Antnio Ccero.

  • 22

    Jornalismo Cultural: o espao da literatura na mdia impressa

    Janaina de Cssia Campos Abreu

    Professora de Lngua Portuguesa do

    Campus So Cristvo III

    Ps-graduada em Jornalismo Cultural

    pela Universidade Estcio de S

    A influncia dos meios de comunicao na maneira de perceber, sentir, pensar e

    agir da sociedade contempornea transformou-se em objeto de estudo. Como territrio

    disciplinar vinculado mdia, o jornalismo age pela conquista das mentes e coraes de seus alvos: leitores, telespectadores ou ouvintes,1 atravs da informao cuja produo e circulao esto diretamente relacionadas ao modo como se exerce o poder,

    pressupondo conhecimento e interpretao dos fatos.

    Por outro lado, os grandes avanos da tecnologia dos meios de comunicao

    tambm proporcionaram o aquecimento do mercado, o que, segundo tericos como

    Adelmo Genro Filho, acabou por transformar o jornalismo, por exemplo, em negcio de

    poucos e a informao, em mercadoria (GENRO, 1987). Nesse sentido, a ideologia que

    constitui o discurso jornalstico principalmente aquele atrelado ao fenmeno social que a cultura: o Jornalismo Cultural torna-se mobilizadora das reflexes do presente estudo.

    No mbito cultural, percebe-se que os efeitos dos meios de comunicao

    estendem-se a outros campos, dentre eles o da literatura, fazendo com que a circulao e

    a recepo de obras literrias tornem-se incontornavelmente articuladas aos processos

    miditicos.

    O espao dedicado literatura sofreu transformaes geradas pelo

    desenvolvimento da prpria empresa jornalstica, o que acabou por tambm modificar a

    relao entre a legitimao de uma obra feita pelo crtico e a circulao desta.

    A influncia da indstria cultural associada ao processo de comunicao

    midiatizada que tem se relacionado com o universo dos indivduos h sculos. A

    capacidade de os mass media influenciarem as pessoas j era estudada, bem antes do

    advento da internet por pensadores como MacLuhan, Adorno e Horkheimer, por

    exemplo. Todavia, os diferentes estudos tm levado aos mais diversos pontos de vista,

    da a viso dos chamados apocalpticos e integrados. Enquanto estes defendem a relao

    entre indstria cultural e meios de comunicao, alegando ser uma forma de

    democratizao do acesso cultura e informao; aqueles a criticam afirmando ser

    esta produtora de uma cultura unidimensional e cmplice da dominao poltica.

    Segundo pesquisadores da corrente pessimista, o receptor seria um sujeito passivo no processo comunicacional fazendo com que o xito da comunicao miditica

    esteja na habilidade que esta tem de chamar a ateno do destinatrio e faz-lo aceitar a

    mensagem como desejada. Isso explicaria a falsa interatividade a que se refere Celso

    Campos:

    1 ROSSI, Clvis. O que Jornalismo. 8.ed. So Paulo: Brasiliense, 1980.

  • 23

    (...) comunicar tornou-se sinnimo de empregar mquinas e

    aparatos tecnolgicos. O sentido da ao comunicativa como

    uma ao em comum vai desaparecendo na funcionalidade da linguagem tecnificada, rompendo-se as ligaes que se

    sustentam a interao. Ao invs de unir, o processo separa e

    isola as pessoas (...). Observando o poder que a mdia tem de

    influenciar a sociedade, ditando modos de vida e costumes

    muitas vezes alheios cultura de nosso povo, temos a falsa

    impresso de interatividade entre emissor e receptor.2

    Em contrapartida, os tericos da corrente otimista acreditam que os media na verdade ampliam a voz do povo. a crena em um domnio do territrio miditico por

    uma massa popular que esbarra justamente no fato de ser a mdia um espao limitado e

    mercadolgico cujo acesso dado a poucos ou somente aos donos dela.

    Produto da moderna economia capitalista, o jornalismo outro objeto de estudo

    bastante questionado por pesquisadores do sculo XX, principalmente pelos tericos da

    Escola de Frankfurt, como Habermas. As opinies a respeito da comunicao

    jornalstica tambm se dividem sem chegar a uma concluso. De um lado, o espectro da

    tradio frankfurniana ronda com seu pessimismo as abordagens sobre o jornalismo:

    Diante da diluio, do enfraquecimento dos contedos no plano

    macrosocial, o jornalismo para sobreviver apela para a indstria

    imaginria de notcias. Criam-se fatos, forjam-se notcias,

    estimulam-se polmicas fictcias, constri-se o conflito em laboratrio. O estdio de TV, a redao de jornal deixam de ser meios de transmisso de fatos e tornam-se eles mesmos os

    produtores de mundos (MARCONDES,1993, p.63).

    De outro, uma viso menos apocalptica acredita que seja a hora de se separar o

    joio do trigo, como se costuma dizer na linguagem popular. Para alguns crticos, mesmo

    que se veja a informao produzida pelo jornalismo como mercadoria, preciso que se

    perceba a diferena entre as mercadorias e at mesmo entre o jornalismos produzidos (GENRO, 1987).

    Critica-se muito o mau uso que os jornalistas fazem do poderoso

    instrumento de que dispem. H mesmo quem estranhe que

    simples particulares tenham em mos esse poder capaz de fazer

    a paz e a guerra na sociedade em que atua.

    A realidade que a paz e a guerra no so feitas pelo jornal.

    Nenhum jornal tem a fora para mudar, por si mesmo, a sorte de

    um povo, em que pesem as hiprboles com que se costuma

    engrandecer, nos discursos de sobremesa, o papel da imprensa.

    Evitemos exagerar a capacidade de bem fazer e mal fazer do

    jornalismo. (JOBIM, 1960, p.54).

    O Jornalismo Cultural est, essencialmente, ligado acelerada transformao do

    mercado de produtos culturais que faz com que ele, insidiosamente, crie uma relao

    2 Disponvel em: http://www.planeta.terra.com.br/educacao/pedrocampos.

  • 24

    afetiva com o pblico, atraindo-o e provocando-o, levando-se em conta que este no

    homogneo em sua composio, sendo especfico para cada veculo. Deve-se admitir,

    ainda, que na contemporaneidade a ao dos mecanismos de controle sobre esse pblico

    torna-se mais intensa visto que o homem contemporneo no mais senhor exclusivo

    de sua memria. Filmes, novelas, vdeos e tudo mais penetram em sua intimidade,

    transmitem-lhe informaes, transformam seus comportamentos, pensamentos,

    sentimentos e valores a uma velocidade inenarrvel.

    O leitor, o telespectador ou o ouvinte torna-se um consumidor como outro

    qualquer, ainda que perante ele apresentem-se simulacros de democracia, de difuso

    cultural, de oportunidades iguais etc. A batalha pelas mentes e coraes temperada

    pelo mito da objetividade, em tese usada pelo jornalismo para que este se coloque numa

    posio neutra e publique suas notcias de forma a deixar ao leitor a pseudotarefa de

    tirar suas prprias concluses. Segundo o jornalista Danton Jobim, na mente popular, o jornal tem um destino herico a cumprir. Em sua ingnua concepo, jornalismo no

    um negcio, mas a empresa de um campeo permanentemente em guarda contra a

    iniquidade (1960 p.68).

    O Jornalismo Cultural , ao mesmo tempo, um reflexo jornalstico da criao cultural e, tambm, um tipo de criao cultural. Ele tem de atender a duas ordens de

    exigncias, simultneas e ambas igualmente legtimas: as exigncias da produo

    jornalstica e as exigncias do seu assunto (no caso, a cultura em geral), segundo Olavo de Carvalho

    3. Assim, por exemplo, um produto cultural alheio ao que seria notcia

    menos valorizado, mesmo que seja um bom produto; fazendo com que o jornalismo cultural torne-se apenas jornalismo geral de assunto cultural4. O que o desvirtua do que seria sua funo maior: tornar a cultura uma lente atravs da qual o homem v o mundo

    criticamente.

    A literatura, por sua vez, cumpre o papel social de transmitir os conhecimentos e

    a cultura de uma comunidade. No entanto, o acesso ao conhecimento caracteriza-se

    como um privilgio e s permitido para os elementos da classe dominante, ou queles

    que participam da dominao visto que estes sabem que a cultura quem condiciona a

    viso de mundo do homem.

    Sabe-se que, na verdade, o conhecimento determinado tanto pela situao

    histrica vivida pelo indivduo, ou pela sociedade, quanto pelas condies de

    manipulao dos fatos pelo sistema, ou seja, atravs da articulao das informaes

    disponibilizadas e da interao entre sujeito e mundo suas experincias que se obtm o conhecimento. Cabe ter em mente que a forma como essas informaes so

    disponibilizadas est de acordo com o modo como o poder exercido na sociedade.

    Dentro desse contexto, a construo do conhecimento e a produo e circulao da

    literatura esto muito mais relacionados do que se possa imaginar.

    A capacidade de articular criticamente elementos do mundo elaborando

    conhecimento exige informao; porm, esta resulta, sempre, de uma escolha que se faz

    em funo das relaes estabelecidas, ou preestabelecidas, na sociedade. O que

    possibilita que essa informao ganhe certo sentido ao passo que se articula com outras

    informaes, criteriosamente, inseridas no espao pblico de circulao; seja por sua

    3 Quatro perguntas para Olavo de Carvalho sobre jornalismo cultural. Disponvel em:

    www.olavodecarvalho.com.br . 4 Idem, ibidem.

  • 25

    abrangncia, densidade, finalidade, impacto, ineditismo ou veracidade5. Logo, percebe-

    se que aquilo que se entende por informao resulta, necessariamente, da ao poltica

    de instncias de poder (ou de instncias opostas a ele) na forma de um produto cultural

    scio-histrico.

    Essa ao poltica pode ser observada no que se refere a produo e a circulao

    de textos escritos. Ambas tornaram-se submetidas aos critrios de avaliao prprios do

    mercado, os quais nem sempre se estabelecem em funo de uma tica do

    conhecimento.

    A leitura, como ato ou hbito, ocorre dentro do meio social, resultante, portanto,

    da interao entre um sujeito e um objeto, o que constitui uma prtica social. Dessa

    forma, esse ato torna-se essencial para que o indivduo faa parte do meio em que vive.

    Na contemporaneidade, a leitura transforma-se em um processo de interao

    entre o que escrita e o que exibido graficamente: a palavra e a imagem. A leitura de

    textos literrios possui um valor diferenciado visto que o leitor exercita no s o seu

    poder criativo, sua imaginao ao compor cenrios e personagens, mas inicia um

    processo de entendimento e interpretao ao passo que no recebe a informao acabada como ocorre em relao mdia que vai alm daquelas pginas. A prtica da leitura fundamental para o desenvolvimento intelectual dos sujeitos contribuindo de

    forma inequvoca para a construo de experincias, conhecimentos e valores. Segundo

    Luis Filipe Ribeiro, em Literatura e Histria uma relao muito suspeita6:

    o texto, antes de mais nada, um produto. Nasce do trabalho

    humano e dele testemunho material eloqente. testemunho

    do esforo de criao individual, dos condicionamentos sociais,

    das dimenses culturais, das condies econmicas, dos

    conflitos ticos e das contradies polticas, que configuram o

    espao em que foi gerado e publicado. Assim, sua leitura e

    compreenso demanda que se desentranhe, de sua teia de signos,

    indcios dessa totalidade, sem o que ficar limitado a um jogo de

    armar destitudo das significaes que o tornam parte do legado

    cultural de que somos herdeiros.

    A leitura, principalmente a literria, uma atividade estimulante e enriquecedora

    do esprito humano, insubstituvel para a formao de cidados na sociedade moderna e

    democrtica. humanidade, a literatura traz o olhar crtico para a realidade.

    As mudanas ocorridas no meio social e nos suportes em que os textos so

    veiculados alteraram terminantemente o gosto pelo texto literrio. Ao longo dos sculos,

    a funo da leitura foi sendo transformada de acordo com os diversos fins propostos a

    ela, sejam eles polticos, econmicos ou culturais. Atualmente, na sociedade

    contempornea, sua funo pode estar vinculada ao aprendizado, obteno de

    informao, conservao da memria do passado, compreenso das relaes sociais

    ou mesmo ao simples prazer esttico proporcionado pela linguagem. Qualquer que seja

    a finalidade, a leitura sempre ser um instrumento de resistncia:

    5 Critrios estabelecidos por Luiz Percival Leme Brito no artigo Leitura e Poltica, que segundo ele

    balizam tanto a produo da informao quanto sua recepo (2001,p79). 6 Disponvel em: http://www.rbleditora.com/revista/geometria/ historia.html. Acesso em:06 setembro

    2004.

  • 26

    (...)a todas as contingncias massacrantes da condio humana:

    sociais, profissionais, psicolgicas, afetivas, ideolgicas,

    culturais. Proteo que nos salva de tudo, at de ns mesmos,

    pois nos liberta, nos permite a transcendncia, a superao das

    limitaes histricas; a descoberta do outro e de ns mesmos, a

    organizao do caos interior. Proteo que delimita um espao

    de reflexo e de emancipao do esprito por meio da

    interpretao simblica. A leitura , assim, o espao de

    liberdade por excelncia, pois lida com o pensamento e o

    imaginrio que so, por natureza, sem fronteiras, sem limites, e

    proporciona uma forma de felicidade. A leitura tambm um

    espao de liberdade porque o leitor l o que quer, quando quer,

    onde quer, no ritmo que quer. (GARCEZ, 1999)

    Ler permite posicionar-se diante do mundo, por isso, no se pode ignorar o

    carter poltico deste ato. Entretanto, o que acontece. H um mascaramento da

    dimenso poltica da leitura por parte dos discursos oficiais atravs da entrada ou

    retirada de circulao de determinado tipo de texto que no serve s polticas em

    vigncia. O que, por exemplo, a Santa Inquisio fazia? Queimava alm das bruxas e

    dos hereges, os livros em praa pblica para que no fossem veiculadas as idias que

    poriam abaixo a sua ideologia.

    Esse tipo de controle acontece, ainda, com os textos literrios. A existncia da

    literatura como objeto social est, primeiramente, vinculada relao autor-leitor; no

    entanto, a relao binria entre o produtor e o consumidor de obras literrias mediada por muitas instncias: a do editor, a do distribuidor, a dos livreiros, para ficarmos s nas

    alfndegas que o texto paga para ter direito a ser impresso, a circular e, eventualmente, a

    ser lido (LAJOLO,1995,p.16). A avaliao de um texto como sendo literrio vai alm da interao autor-leitor. preciso o aval de uma determinada classe competente: a do

    crtico. A est a trade que sustenta a literatura: leitor, escritor e crtico. Este ltimo ,

    hoje, o responsvel por fazer uma obra circular no corredor comercial, uma espcie de caminho obrigatrio que a obra deve fazer antes que se cumpra sua natureza social de

    criar um espao de interao entre autor e leitor (LAJOLO,1995,p.17). o endosso do carter literrio de um texto. o discurso do agente do aludido Controle, que em nome

    da verdade, e sempre em seu nome, julga as obras literrias.

    O analista, tanto como terico quanto como crtico, tem seus limites assinalados

    pelas marcas do discurso que pratica. O seu um discurso judicativo, isto , que

    procura fundar os juzos pelos quais devemos ou no apreciar determinada obra. Neste

    caso, fundar os juzos significa necessariamente ditar normas; ser antes explicar, ou

    melhor, sentenciar porque se l certa obra, porque se desprezam tais outras etc. a

    palavra do poder.

    A palavra tanto um poder do homem sobre o mundo quanto o do mundo sobre

    o homem. Um instrumento to poderoso sobre o mundo que acaba sendo instrumento

    de poucos. Muitas vezes, a palavra torna-se uma armadilha, uma forma de alienao.

    Uma tentao para confundir a vida com as coisas, experincia

    com discurso, sentimento com capitulao e submisso. Quando

    Miguel de Unamuno batiza a expresso El Sentimiento trgico

    de la vida, a impresso que sentimos de que o simples fato do

    anncio elimina j o trgico da vida. A palavra embeleza a dor.

  • 27

    No comum dizer que quem canta seus males espanta? como

    se o homem transferisse a sua dor para a palavra e essa

    realizasse, pelo menos provisoriamente, a cura.(GONALVES

    F., 2000,p.21).

    Neste caso, o poder da palavra literria se institui justamente por ser produtora

    de conhecimento, preservando no homem valores de cultura, instigando o seu lado

    humanizado e estabelecendo nova realidade. Para Luis Filipe Ribeiro7:

    O leitor constitui-se, a cada leitura, numa realidade histrica

    distinta, sofrendo condicionamentos variados, originrios de sua

    insero social e cultural. Uma mesma pessoa fsica, ao reler um

    livro, ainda que imediatamente primeira leitura, j no o

    mesmo leitor. um novo leitor, cujo cabedal de leituras inclui

    essa primeira, que se transformar em elemento de produo de

    sentido da releitura iniciada. Cada um l com os instrumentos de

    sua poca e de sua cultura, que conseguiu amealhar. A um

    capital maior, um maior dividendo de significaes. O leitor,

    sem deixar de ser pessoa individual, necessariamente uma

    realidade social e histrica. Na sua leitura, inscrevem-se as

    marcas de seu tempo, de sua cultura, de suas preferncias, de

    seu desejo e de sua loucura...

    Porm, a literatura, que durante sculos ocupara um papel relevante na vida social, tornou-se cada vez menos importante. Na Sociedade do espetculo (Guy Desbord), a escrita literria est confinada a um espao restrito na mdia, pelo fato de se

    prestar pouco espetacularizao, de acordo com Leyla Perrone-Moiss (1998, p.177). Para a autora, a explicao estaria no fato de que a leitura exige determinadas

    caracterstica que no condizem mais com a vida cotidiana como tempo e concentrao.

    Tal fato contribui para um desafeto crescente pela leitura, que se tornou um fenmeno

    mundial manipulado pelos representantes do poder da Indstria Cultural dentro de uma

    sociedade saturada de signos e imagens, os quais surgem como modelos ideolgicos.

    Ouvi recentemente, de uma criana com preguia de ler, a

    reclamao de que os livros tm muitas letras. De fato, para concorrer com os outros meios de comunicao, os livros atuais

    e futuros precisaro ter mais atrativos do que aqueles ocultos

    pelas letras. (MOISS, 1998, p. 178)

    A explicao para tal constatao dada por Vanderlei Dorneles, em Cultura da

    imagem: A ps-modernidade do pensamento8:

    Essa sociedade no pensa em termos de ideias e ideais, mas de

    imagens, corpos, prazer e consumo. Logo, a mdia focada no

    gosto e na expectativa do consumidor investe em peas visuais,

    corporais, no apelo emocional das formas, das cores. Como

    poderia a comunicao de ideias atrair pessoas que querem

    apenas consumir coisas?

    7 Disponvel em: http://www.rbleditora.com/revista/geometria/historia.html.

    8 Disponvel em: http://www.canaldaimprensa.com.br/opiniao /vint3/opinio1.htm

  • 28

    Nos Segundos Cadernos e Suplementos Culturais a palavra do poder proferida

    pela classe jornalstica onde o acmulo da funo de crtico e reprter muitas vezes

    proporciona uma cobertura cultural que refora de modo acrtico e redundante a

    produo da cultura de massa, cuja essncia manifesta a ideologia do espetculo por

    excelncia.

    revelia dos tericos que atribuem ao advento da tecnologia a diminuio do

    espao da literatura nos jornais, Isabel Travancas em Suplementos e leitores, defende os

    suplementos culturais como sendo o ltimo recanto para que escritores e obras no

    abandonem a imprensa. Porm, no se pode fechar os olhos para esse tipo de presena:

    quem so esses escritores e por que esto ocupando as pginas dos suplementos?

    Apesar de a crtica literria que era exercida nas dcadas de 1940 e 1950 chamada de crtica de rodap ter ficado restrita s academias e universidades e nos jornais ter tomado a forma de resenha, as atribuies de valor permanecem levando-se

    em conta tanto o gancho jornalstico quanto os ditames do mercado editorial.

    A legitimao a responsvel pela vida da obra literria: o nmero de tiragens de um livro, que em maior parte das vezes, corresponde quantidade de relatos

    positivos feitos e publicados sobre ele. O que de algum modo permite a um determinado

    autor dar continuidade sua obra e posteriormente poder public-la. Quando o espao

    do crtico torna-se um espao discursivo pblico e circulante, como o caso dos jornais

    dirios, este lhe oferece uma dupla canonizao:

    A crtica pode assumir a funo de ajudar o leitor a selecionar

    obras literrias. Mas no deve se deixar pautar de uma maneira

    imperativa. O leitor tem os seus prprios critrios. E no fundo o

    que um crtico se no um leitor? A diferena que o leitor

    comum no costuma mandar para um jornal uma carta com sua

    opinio sobre este ou aquele livro. O crtico no passa de um

    leitor que tem espao no jornal para dizer aquilo que pensa9.

    O discurso emitido possui um efeito de distanciamento que encarado pelo

    leitor como isento de ideologia, sendo tomado como produtor de valor artstico e

    inibidor de influncias externas sua constituio, principalmente as econmicas. No

    entanto, observa-se que a circulao da literatura tambm depende dos parmetros de

    poltica editorial e de consumismo que modelam, de modo arbitrrio, os critrios de

    seleo dos textos literrios. A marginalizao de uns em favor de outros tem vistas a

    ajustar o texto a ser veiculado s expectativas dos leitores (segundo a mentalidade dos

    prprios editores) onde, muitas vezes, percebem-se questes vinculadas identidade

    poltico-religiosa-cultural dominante.

    Entende-se, portanto, que o texto literrio pode se transformar em um aliado

    ideolgico do discurso dominante dada a importncia que tem na vida cotidiana como

    sendo um instrumento que direciona o olhar para os outros, para o mundo e para si

    mesmo. Logo, a idia veiculada pelos discursos oficiais de que a leitura um hbito

    adquirido por vontade prpria, independente dos vnculos sociais, transforma-se em

    uma farsa.

    inegvel dizer que a Indstria Cultural fixa de maneira exemplar a derrocada

    da cultura, transformando-a em mercadoria. No entanto, a capitulao dos aspectos

    mais superficiais produzidos por essa indstria pelo Jornalismo Cultural chama a

    9 Jos Saramago em entrevista disponvel em :http://www.ufmg.br/boletim/bol1230/pag5.html

  • 29

    ateno para a falta de compreenso das direes dos jornais com relao

    especificidade da cobertura cultural.

    De um lado encontra-se o apelo poltico imediato e as preferncias de certos

    grupos que acabam por predominar sobre o critrio do interesse profundo. O que acaba

    vigorando uma concepo reducionista, onde s tem importncia nas pginas culturais

    aquilo que poderia ser transferido tal e qual para as pginas de noticirio geral,

    comportamento, diverses, etc. Na correria do dia-a-dia, a superficialidade toma o

    espao da anlise, da crtica e do debate de idias. Os atuais Suplementos Culturais

    tornaram-se a prateleira das empresas promotoras de eventos, dos departamentos de

    marketing das empresas de cultura, das grandes editoras. A informao cultural consumida como qualquer outro produto das lanchonetes e, mais do que nunca, depende

    de modas efmeras criadas pelo mercado. Da explica-se a criao, por exemplo, de

    colunas onde famosos fazem a indicao de certas leituras. As pginas desses jornais

    tornaram-se veculo de uma publicidade que se reveste de jornalstica e que se

    subordina totalmente lgica da Indstria Cultural, que muitas vezes subestimada

    pelo ceticismo com relao ao que transmite aos homens a satisfao de suas necessidades.

    Segundo Marisa Lajolo, somos um povo telespectador; no somos nem nunca fomos um pas de leitores. Somos um povo sem tradio escrita. E estamos chegando

    era do descartvel, quando a literatura como prtica, corre o risco de tornar-se

    igualmente descartvel (1995 p.95). No predomnio do visual sobre o verbal, no uso das cores e de todo o requinte da indstria grfica, a literatura tona-se talvez a nica

    forma possvel de conscincia crtica da objetivao do indivduo. No entanto, Antenor

    A. G. Filho afirma que

    para ler o mundo, ningum faz as escolhas de livros de modo

    livre. A leitura do mundo por meio dos livros so direes j designadas por outros, por uma rede fechada de valores culturais

    onde so mediadas e compartilhadas as nossas fantasias, nosso

    modo de ser, e, por que no dizer, nossos preconceitos

    (2000,p.99).

    Por isso, preciso que o olhar crtico tambm esteja presente no que diz respeito

    ao espao dedicado literatura na mdia impressa para que o leitor pergunte-se que tipo

    de literatura essa e por que est sendo indicada.

    A partir do momento em que entendemos a cultura como sendo um fenmeno

    social que representa o nvel alcanado pela sociedade em determinada etapa histrica

    tendo o homem como resultado do meio cultural em que foi socializado (SODR,1999),

    passamos a perceber que esta torna-se um meio eficaz de manipulao. Mais do que a

    herana gentica, ela (a cultura) quem determina o comportamento humano

    justificando suas realizaes (LARAIA,2003). O conhecimento da realidade se d pelos

    sentidos, captamo-la pelo nosso corpo, pelos nossos olhos. A representao dessa viso

    de mundo, a percepo, vem atravs da linguagem, da cultura. Mas vendo o mundo

    apenas sob um nico prisma, o homem est propenso a considerar esta a verdade

    absoluta, sem estranhamento, sujeitando-se. preciso manter o olhar renovado, estar

    sempre em movimento descortinando as armadilhas dos discursos oficiais.

    Dentro deste contexto, compreende-se que o papel do jornalista estimular a

    conscientizao do ser humano, a viso crtica deste para a realidade denunciando as

    formas de manipulao. Comunicao social isso, voltar-se para a sociedade, para o

  • 30

    bem-estar desta utilizando-se das ferramentas que antes alienavam para resgatar o senso

    crtico. Ao Jornalismo Cultural prope-se que este procure tornar mais acessvel ao

    leitor comum as complexidades do esprito humano seja a filosofia, a msica, as artes, a

    literatura fazendo com que este atravs do conhecimento adquirido olhe para as

    banalidades da cultura de massa de maneira reflexiva. sua funo ajudar a educar e

    enobrecer ainda mais em um Pas com tamanha desigualdade social, econmica e

    cultural. O caminho no ser fcil, mas o desafio est lanado.

  • 31

    Referncias Bibliogrficas

    ADORNO,T.W. A Indstria Cultural. In: COHN, Gabriel (org.) Comunicao e

    Indstria Cultural. 4.ed.So Paulo: Nacional, 1978.

    CARVALHO,Olavo. Quatro perguntas para Olavo de Carvalho sobre jornalismo

    cultural. Disponvel em: www.olavodecarvalho.com.br . Acesso em: 06 jul.2012

    DORNELES, Vanderlei. Cultura da imagem: a ps-modernidade do pensamento.

    Disponvel em: www.canaldaimprensa.com.br/opiniao/vint3/opiniao1.htm. Acesso em

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    GARCEZ, Luclia Helena do Carmo. A leitura na vida contempornea. Disponvel em:

    www.inep.gov.br/download/cibec/pce/1999/leitura_vida_contemporanea.doc. Acesso

    em 23 set. 2012.

    GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da Pirmide para uma teoria marxista de

    jornalista. Porto Alegre: Tch, 1987.

    GONALVES F., Antenor Antnio. Educao e Literatura. Rio de Janeiro: DP&A,

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    LAGE, Nilson. Ideologia e Tcnica da Notcia. Petrpolis: Vozes, 1979.

    LAJOLO, Marisa. O que Literatura. 17.ed.So Paulo: Brasiliense,1995

    LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropolgico. 16.ed.Rio de Janeiro:

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    MARCONDES FILHO, Ciro. Jornalismo Fin-de-sicle. So Paulo: Scritta Editorial,

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    RIBEIRO, Luis Filipe. Literatura e Histria: uma relao muito suspeita. Disponvel

    em: www.rbleditora.com/revista/geometria/historia.html. Acesso em: 23 set. 2004.

    ROSSI, Clvis. O que Jornalismo. 8.ed.So Paulo: Brasiliense,1980

    SARAMAGO, Jos. Entrevista. Disponvel em:

    www.ufmg.br/boletim/bol1230/pag5.html. Acesso em: 23 set. 2012.

    SODR, Nelson Werneck. Sntese de Histria da Cultura Brasileira. Rio de Janeiro:

    Berthand Brasil,1999.

  • 32

    A VOZ E A VEZ DA MOAMBICANIDADE.

    UMA RELEITURA DO CONTO AS CICATRIZES DO AMOR

    DE PAULINA CHIZIANE.

    Aline Verginia dos Santos

    Especialista em Literaturas Africanas

    de Lngua Portuguesa pela UFRJ

    Professora de Lngua Portuguesa

    do Campus So Cristvo II

    Graas vivificao da palavra divina, tais foras

    comeam a vibrar. Em uma primeira etapa, convertem-

    se em pensamento; em uma segunda etapa, em som; e em

    uma terceira, em palavra.

    Amadou Hampt B

    Na Literatura Moambicana podemos refletir acerca dos diversos pontos

    inerentes a sua histria. A literatura, na essncia reflecte sobre e reflecte-se na prpria

    sociedade em que se insere. (ROSRIO, p. 126, 2010). A Literatura de Moambique

    muito ligada a questes do quotidiano, das tradies africanas, da oralidade,

    independncia, liberdade e da construo identitria moambicana. A independncia

    trouxe liberdade de circulao e Paulina Chiziane melhor acompanha a temtica de

    liberdade. (ROSRIO, 2010)

    Paulina Chiziane, primeira romancista moambicana, natural de Manjacaze e

    estudou em Maputo. Aprendeu o chope, sua lngua natal, o ronga e o portugus, fruto da

    colonizao.

    Em 1989, Chiziane escreveu o conto As cicatrizes do amor. Entre 1991 e 2008,

    Paulina publicou cinco romances: Baladas de Amor ao Vento (1991), O Stimo

  • 33

    Juramento (2000), Niketche, uma Histria de Poligamia (2002) e o Alegre Canto da

    Perdiz (2008). Em 2008, ela publicou o livro de contos As Andorinhas.

    No conto As cicatrizes do amor, Paulina Chiziane explora diversas vertentes da

    histria de Moambique. O mesmo desenrola-se atravs da comunicao (oralidade) e

    da memria relatada em uma roda de contos. Nessa narrativa so trabalhados traos

    culturais tradicionais, a figura feminina e sua represso e a desmistificao do

    preconceito atribudo s mulheres.

    O conto comea e termina no ndico, localizando o espao da felicidade.

    O cu nublado transfere o cinzento feio para a transparncia do ndico. (...) As guas

    do ndico balanam com mais fora sob o domnio do vento sul. (CHIZIANE apud

    GODINHO e ROSRIO, 1994). Moambique um pas banhado pelo ndico. Maria a

    protagonista do conto. Narra sua histria de vida para as pessoas numa rodada de

    mulheres sentadas na areia e os homens nas cadeiras. (CHIZIANE apud GODINHO e

    ROSRIO, 1994). A roda um dos smbolos da cultura africana.

    A posio das pessoas na rodada j denuncia a submisso e o preconceito

    atribudo s mulheres construdo ao longo do tempo, no s na cultura moambicana,

    mas em outras culturas, seno em todas. A maldade nasceu antes da humanidade. A

    culpa cabe s mes mas de toda a sociedade sentenciou a mulher. (CHIZIANE

    apud GODINHO e ROSRIO, 1994). A personagem Maria, nesta passagem, faz-nos

    pensar na discriminao como algo que vem desde os primrdios da humanidade. No

    cristianismo, religio imposta pelos colonizadores, a mulher fruto da culpa, uma vez

    que, atravs dela, surgiu o pecado original, como melhor nos afirma o trecho bblico de

    I Timteo captulo 2, versculo do 11 ao 15:

    A mulher oua a instruo em silncio, com esprito de submisso. No

    permito mulher que ensine bem que se arrogue autoridade sobre o homem,

    mas permanea em silncio. Pois o primeiro a ser criado foi Ado, depois

    Eva. E no foi Ado que se deixou iludir, e sim a mulher que, enganada, se

    tornou culpada de transgresso. Contudo, ela poder salvar-se, cumprindo os

    deveres de me, contanto que permanea com modstia na f, na caridade e

    na santidade. (BBLIA SAGRADA, p. 1518, 2002).

    Na mesma passagem do conto, citada no pargrafo acima, temos a construo e

    a desconstruo do mito. A culpa no s das mulheres, da sociedade. Outrossim, este

    conceito de religiosidade crist foi trazido pelos portugueses com um objetivo, a que

    convm tal citao, A colonizao apresentada como um dever, invocando a misso

  • 34

    civilizadora do Ocidente, competia a responsabilidade de levar o africano ao nvel dos

    outros homens. (MUNANGA, p.9, 1988).

    Maria conta uma grande e dolorosa histria de sua juventude, um crime, aos

    companheiros da rodada. Ao contar, ela revive os momentos vividos no passado como

    se fossem atuais, vive o passado no presente, Maria entristece. Ergue os olhos para o

    cu na splica do silncio. A mente recua na trajectria distante, mais veloz que a

    estrela cadente. Baixa os olhos para a terra infrtil, salpicada de ervas tisnadas.

    (CHIZIANE apud GODINHO e ROSRIO, 1994). Trata-se da fora da narrativa, a

    oralidade do jeito que ela .

    A narrao da experincia est unida ao corpo e voz, a uma presena real

    do sujeito na cena do passado. No h testemunho sem experincia, mas

    tampouco h experincia sem narrao: a linguagem liberta o aspecto mudo

    da experincia, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a

    transforma no comunicvel, isto , no comum. A narrao inscreve a

    experincia numa temporalidade que no a de seu acontecer (ameaado

    desde seu prprio comeo pela passagem do tempo e pelo irrepetvel), mas a

    de sua lembrana. A narrao tambm funda uma temporalidade, que a cada

    repetio e a cada variante torna a se atualizar. (SARLO, p. 31, 2007)

    Enamorada por um rapaz, ela engravidou e como o mesmo no tinha meios para

    lobolar, o pai de Maria no aceitou a unio do casal. O pai da criana foi para

    Johannesburg e Maria, depois que a criana nasceu, foi expulsa de casa. A ela s restou

    solido, o desprezo e a esperana de um dia encontrar seu amado do outro lado da

    fronteira. criana restou o enfraquecimento e quase a morte.

    Maria, ao narrar esse acontecimento em sua vida, mostra-nos trs vertentes, a

    tradio cultural, o abandono da tradio e a influncia dos pases sul-africanos.

    Moambique est rodeada de pases colonizados por ingleses e por isso um povo

    reservado (apesar de apreciar o riso e da dana) e, Johannesburg a maior cidade da

    frica do Sul e foi colonizada pelos ingleses.

    Em Moambique h um cruzamento cultural regido pela influncia rabe,

    influncia dos portugueses e as tradies culturais de seu prprio pas. Atualmente, a

    cultura moambicana est influenciada pelos avanos tecnolgicos e pela cultura norte-

    americana.

    Se quisermos falar de impacto da comunicao sobre as culturas africanas, no

    percamos de vista, ento, que o nosso continente mantm-se refm e alvo de

  • 35

    novas e sofisticadas formas de bombardeamentos, dos quais, todos das

    lideranas aos cidados, recebemos impactos de conseqncias imprevisveis.

    Por isso me pergunto: no ser hora de comear a pensar e traar novas

    estratgias para outras lutas de libertao? Qui mais culturais do que

    polticas? (ROSRIO, p. 19 e 20, 2010).

    O lobolo, uma espcie de dote paga ao pai da noiva, um resqucio da tradio

    cultural moambicana. Nos dias atuais, O lobolo foi negado, porm, existe

    eufemisticamente. (ROSRIO, 2010).

    A capulana, usada tradicionalmente pelas mulheres moambicanas para cingir o

    corpo, outra vertente da cultura de Moambique. Amarrei a capulana bem firme; com

    o beb bem seguro nas costas, jurei: os empecilhos que obstam a minha estrada sero

    removidos pela minha mo. (CHIZIANE apud GODINHO e ROSRIO, 1994). Esse

    traje simboliza a tradio e tambm, em outro trecho da narrativa, simboliza o abandono

    da tradio: Desatas o leno e a capulana. (CHIZIANE apud GODINHO e

    ROSRIO, 1994).

    Ao relutar, com o corpo de sua filha quase morta, Maria vive um momento

    decisivo, De repente o corao pulsou: uma moita cruzou o horizonte dos meus olhos.

    Ser ali, ser ali, o cemitrio da minha filha, e noite, bandos de corvos deliciar-se-o

    com o corpo frgil do meu rebento, ai!... (CHIZIANE apud GODINHO e ROSRIO,

    1994). Neste trecho, podemos nos reportar ao conto Pai contra me de Machado de

    Assis.

    Pai contra me foi escrito nos anos de 1880, antes da abolio. O conto traz

    questes de sobrevivncia e poder em meio abolio e aborda diversas vertentes. A

    primeira vertente so os vestgios de escravido existentes num perodo que antecede a

    libertao dos escravos. Os escravos, que no aceitavam tal condio, fugiam e por

    isso existia o ofcio do Capturador de Escravos, trabalho que sofria uma decadncia por

    conta da abolio. Esse conto de Machado mostra a luta pela sobrevivncia do filho de

    um apanhador de escravos recm nascido e o filho de uma escrava ainda grvida que

    fugira do seu senhor.

    A escravido simboliza a dor de uma nao ao perder um filho. Moambique

    sofre e chora por seus filhos arrancados de seu pas pelos portugueses. Para

    sustentarmos a nossa anlise, citaremos uma passagem que relata a justificativa, do

    ponto de vista do colonizador, sobre a escravido.

  • 36

    (...) tenta-se mostrar todos os males do negro por um caminho: a Cincia. O

    fato de ser branco foi assumido como condio humana normativa e o de ser

    negro necessitava de uma explicao cientfica. Uma primeira tentativa foi a

    de pensar o negro como um branco degenerado, caso de doena ou de desvio

    norma. A pigmentao escura de sua pele s podia ser entendida pelo

    clima tropical, excessivamente quente. Logo isso foi considerado

    insuficiente, ao constatar-se que alguns povos vivendo no equador, como os

    habitantes da Amrica do Sul, nunca se tornaram negros. Uma outra

    justificativa da cor do negro foi buscada na natureza do solo e na

    alimentao, no ar e na gua africanos. No satisfeitos com a teoria da

    degenerao fundamentada no clima, outros aceitaram a explicao de

    ordem religiosa, nascida do mito camtico entre os hebraicos. Segundo ele,

    os negros so descendentes de Cam, filho de No, amaldioado pelo pai por

    lhe ter desrespeitado quando o encontrou embriagado, numa postura

    indecente. Na simbologia de cores da civilizao europia, a cor preta

    representa uma mancha moral e fsica, a morte e a corrupo, enquanto a

    branca remete vida e pureza. Nesta ordem de idias, a Igreja Catlica fez

    do preto a representao do pecado e da maldio divina. Por isso, nas

    colnias ocidentais da frica, mostrou-se sempre Deus como um branco

    velho de barba e o Diabo um moleque preto com chifrinhos e rabinho. ...A

    nica possibilidade de salvar esse povo to corrupto era a escravido.

    (MUNANGA, p. 14 e 15, 1988).

    Dentre outras questes, a oralidade, presente em todo o texto atravs, sobretudo,

    na voz de Maria, uma forte caracterstica moambicana. O contexto da colonizao e

    da liberdade se d atravs da linguagem e do poder da palavra, (re)escrita da memria.

    Se a palavra fora, porque cria um vnculo de vaivm gerador de movimento e

    ritmo, conseqentemente de vida e ao. (...) a palavra por excelncia o grande agente

    ativo da magia africana. (B, p. 16 e 17, 1993). Atravs da voz que se emite a palavra

    e Moambique passa a ter vez dentro de sua prpria cultura, reconstruindo sua

    identidade e nacionalidade.

    Segundo as linhas de pensamento de Fanon, a colonizao est relacionada com

    a linguagem, com o aprendizado da lngua do colonizador gerando questes

    ambivalentes:

    Fanon ressalta inicialmente que racismo e colonialismo deveriam ser

    entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele.

    Isto significa, por exemplo, que os negros so construdos como negros. Em

    outras palavras, no haveria razo para as pessoas na frica, na Austrlia ou

    em outras reas do Pacfico Sul pensarem sobre si mesmas em termos raciais.

    Para entender como tais construes ocorrem, o caminho lgico examinar a

    linguagem, na medida em que atravs dela que criamos e vivenciamos os

    significados. Na linguagem est a promessa do reconhecimento; dominar a

    linguagem, um certo idioma, assumir a identidade da cultura. Esta promessa

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    no se cumpre, todavia, quando vivenciada pelos negros. Mesmo quando o

    idioma dominado, resulta a ilegitimidade. Muitos negros acreditam neste

    fracasso de legitimidade e declaram uma guerra macia contra a negritude.

    Este racismo dos negros contra o negro um exemplo da forma de narcisismo

    no qual os negros buscam a iluso dos espelhos que oferecem um reflexo

    branco. Eles literalmente tentam olhar sem ver, ou ver apenas o que querem

    ver. Este narcisismo funciona em muitos nveis. Muitos brancos, por exemplo,

    investem nele, j que teoricamente preferem uma imagem de si mesmos como

    no racistas, embora na prtica ajam freqentemente de forma contrria.

    (GORDON apud FANON, 2008).

    O conto tambm apresenta-nos a metfora do sonho em trs significados: o

    sonho surreal, o sonho lcido e o sonho psicanaltico.

    O sonho lcido impulsiona os seres transformao da realidade, o sonho

    surreal tem um sentido ilusrio e o sonho psicanaltico, segundo Freud, trata-se do

    resultado de uma atividade mental inconsciente, uma espcie de realizao dos desejos

    concretizada no sono.

    Quando Maria estava quase a abandonar a sua filha, uma velhota

    (representao da sabedoria) a levou para sua casa (a casa da velhota), mas, a me

    desolada no desistia do seu objetivo. Maria acabou adormecendo e sonhou, No sonho

    vi a minha pequena j crescidinha, rindo em gargalhadas rasgadas nos braos do pai.

    (CHIZIANE apud GODINHO e ROSRIO, 1994). Neste trecho podemos constatar o

    sonho atravs da lgica da psicanlise, como um recurso para lidar com contedos

    reprimidos ou desejados.

    Na tradio moambicana o sonho era uma forma dos antepassados se

    comunicarem. Traos da tradio cultural ainda so fortes em Moambique como

    lembra-nos Loureno do Rosrio,

    O mundo do feitio e dos mitos esteve sempre ligado ao comportamento