textos literários sobre trabalho ou trabalhadores
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Textos Literários Sobre Trabalho Ou TrabalhadoresTRANSCRIPT
Não há vagas
Ferreira Gullar
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão.
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado: “não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.
O açúcar
Ferreira Gullar
O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da
mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
Operário do mar
Carlos Drummond de Andrade.
Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto,
no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul,
de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos
desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais
escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que
carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão
firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com
algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios,
os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles
levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos
Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder
oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali
corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário?
Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi
meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou
talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha
e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a
janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos
implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu
pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas
não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices
no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e
deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o
milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se
molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos.
Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e
confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a
um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados
pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do
mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada
vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra
as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa
tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de
compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?
Louvação
Rubem Braga
Já escrevi sobre isso: mas a coisa me impressionou, e além do mais
ainda não recebi os jornais, são seis e quarenta, e Chico Brito
combinou de passar às 8 horas para irmos às enxovas. Se começar a
procurar assunto, acabo perdendo a pescaria. E acontece que há
pouco, quando acordei, eu estava sonhando com isso. Via um homem
de avental e touca, como se fosse um sacerdote, mas um sacerdote
em paramentos brancos de padeiro. E ele erguia à luz um pequeno
pão branco. A luz era a mesma de meu quarto, um raio de sol fraco e
louro: e o pequeno pão brilhava como hóstia e o homem dizia: “É
puro, é puro.”
O jornal deu esse caso do padeiro de Brás de Pina que foi autuado
por estar fabricando pão com farinha de trigo pura. Entende-se que a
Prefeitura tem razão. Temos pouco trigo – precisamos misturá-lo. O
padeiro será punido, mas que ele ouça esse canto matinal em seu
favor.
Glória a ti, padeiro de Brás de Pina, padeiro do pão puro.
Entre o falso leite, a falsa arte, a falsa crítica de arte, o falso
dinheiro do governo, a falsa palavra do político; entre a falsa mulher,
a falsa meia de nylon, a falsa campanha e a falsa democracia – glória
a ti. Mergulhamos no frenesi das falsificações; nossos panos são de
falsos tecidos, os sapatos de falso couro, as garrafas de falsa bebida,
as palavras de falsa moral. Há orquestras tocando falsas músicas e
oradores com voz embargada, pela falsa emoção; e o chefe da Polícia
resolve punir falsos crimes. Os partidos fazem falsa coalizão ou se
colocam em falsa oposição ou hipotecam falso apoio; e todos comem
a falsa manteiga, bebem água de falsa pureza e tomam falsos banhos
sem água. De tudo nos queixamos aos falsos amigos; e todos nos
fazem falsas promessas, e nos oferecemos falsos banquetes; quando
tudo piora, o povo nas ruas promove falsos distúrbios, quebrando
falsos artigos de falsos comerciantes.
Tu, só tu, fazes o puro pão. Às escondidas, nesta cidade
pecaminosa; contra as posturas municipais e contra os costumes; é
aí, na penumbra de Brás de Pina, que formas a tua massa pura e a
levas ao forno de verdadeiro fogo do ideal, ao fogo do teu coração.
Glória a ti, verdadeiro padeiro, último preparador da branca hóstia da
verdade eterna e terrena do pão dos homens: glória a ti.
Sim, glória ao padeiro que acredita no pão. Não acreditam na paz
os homens que a fazem; até a guerra a fizeram sem acreditar. Glória
a ti, padeiro que fazes pão.
Meninos carvoeiros
Manuel Bandeira
Os meninos carvoeiros
Passam a caminho da cidade.
- Eh, carvoero!
E vão tocando os animais com um relho enorme.
Os burros são magrinhos e velhos.
Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.
A aniagem é toda remendada.
Os carvões caem.
(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se
com um gemido.)
- Eh, carvoero!
Só mesmo estas crianças raquíticas
Vão bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingênua parece feita para eles...
Pequenina, ingênua miséria!
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!
-Eh, carvoero!
Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,
Encarapitados nas alimárias,
Apostando corrida,
Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos
desamparados.