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Textos ficcionais e práticas culturais de portugueses com relação a Santiago de Compostela: contrastes e homologias M. Felisa Rodríguez Prado Grupo Galabra Universidade de Santiago de Compostela Resumo A partir de um corpus limitado de três obras ficcionais de Portugal nas quais surge (o Caminho de) Santiago e de setenta e nove entrevistas feitas a visitantes portugueses em Compostela, trata-se de apontar possibilidades de abordagem analítica de corpora extensos e de natureza diversa para identificar as imagens e as práticas culturais relacionadas com Santiago de Compostela contidas neles. Tentar-se-á, também, comprovar se (e em que medida) a literatura surge neste caso como elemento mediatizador da realidade, permitindo estabelecer vínculos ou homologias entre as representações que nela aparecem e os comportamentos sociais. Palavras-chave: imagens, textos ficcionais, práticas culturais, Portugal, Santiago de Compostela. Fictional Texts and Cultural Practices by the Portuguese about Santiago de Compostela: Contrasts and Homologies Abstract Using a selected corpus of three Portuguese fictions about (the Way of) Santiago and another one composed of seventy-nine interviews to Portuguese visitors to Compostela, this paper focuses on the possibilities of an analytical approach to a large and varied corpora so as to identify images and cultural practices related to Santiago de Compostela. Our study intends to decipher whether (and to what extent) reality is mediated by literary works, in this case, by identifying connections and homologies among representations and social behaviours. Keywords: images, fictional texts, cultural practices, Portugal, Santiago de Compostela. 1. Introdução Este trabalho, realizado no seio do grupo Galabra 1 da Universidade de Santiago de Compostela, enquadra-se no projeto de pesquisa Discursos, imagens e práticas culturais sobre Santiago de Compostela como meta dos Caminhos2 , situando-se como um pequeno contributo em forma de teste ou primeira aproximaçãopara o início da fase de estabelecimento de um diálogo contrastivo entre aquilo que se encontra e é transmitido tanto nos textos literários relacionados com Compostela como nos depoimentos dos visitantes à cidade, em termos de discursos, imagens e práticas culturais (sejam estas possíveis ou efetivadas). O universo de trabalho para o projeto ficou definido à volta de quatro âmbitos geo-culturais, isto é a Galiza, Espanha, Portugal e Brasil, principais focos emissores (regional, estatal, comunitário e extracomunitário, respetivamente) de visitantes para Compostela, conforme os dados do Centro de Estudos Turísticos (CETUR, 2014), e é materialmente alimentado por dous elementos basilares, o catalogador e o observatório à cidade, que se apresentam a seguir. O denominado observatório à cidade consiste na elaboração de um corpus de inquéritos (e 1 Trata-se de um grupo de pesquisa nos Sistemas Culturais Galego, Luso, Africanos de Língua Portuguesa e Brasileiro, cuja descrição e trabalhos estão acessíveis em http://www.grupogalabra.com. 2 Mais informações sobre o projeto, subsidiado pelo Ministerio de Economía y Competitividad da Espanha (referência FFI2012-35521) e pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) 2007-2013, encontram- se disponíveis em http://www.grupogalabra.com/investigacaoprojetos/99-discursos-imagens-e-praticas-culturais- sobre-santiago-de-compostela-comometa-dos-caminhos.html.

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Textos ficcionais e práticas culturais de portugueses com relação a Santiago de Compostela:

contrastes e homologias

M. Felisa Rodríguez Prado

Grupo Galabra – Universidade de Santiago de Compostela

Resumo

A partir de um corpus limitado de três obras ficcionais de Portugal nas quais surge (o Caminho de)

Santiago e de setenta e nove entrevistas feitas a visitantes portugueses em Compostela, trata-se de

apontar possibilidades de abordagem analítica de corpora extensos e de natureza diversa para

identificar as imagens e as práticas culturais relacionadas com Santiago de Compostela contidas

neles. Tentar-se-á, também, comprovar se (e em que medida) a literatura surge neste caso como

elemento mediatizador da realidade, permitindo estabelecer vínculos ou homologias entre as

representações que nela aparecem e os comportamentos sociais.

Palavras-chave: imagens, textos ficcionais, práticas culturais, Portugal, Santiago de Compostela.

Fictional Texts and Cultural Practices by the Portuguese about Santiago de Compostela: Contrasts

and Homologies

Abstract

Using a selected corpus of three Portuguese fictions about (the Way of) Santiago and another one

composed of seventy-nine interviews to Portuguese visitors to Compostela, this paper focuses on

the possibilities of an analytical approach to a large and varied corpora so as to identify images and

cultural practices related to Santiago de Compostela. Our study intends to decipher whether (and to

what extent) reality is mediated by literary works, in this case, by identifying connections and

homologies among representations and social behaviours.

Keywords: images, fictional texts, cultural practices, Portugal, Santiago de Compostela.

1. Introdução

Este trabalho, realizado no seio do grupo Galabra1 da Universidade de Santiago de Compostela,

enquadra-se no projeto de pesquisa “Discursos, imagens e práticas culturais sobre Santiago de

Compostela como meta dos Caminhos”2, situando-se como um pequeno contributo –em forma de

teste ou primeira aproximação– para o início da fase de estabelecimento de um diálogo contrastivo

entre aquilo que se encontra e é transmitido tanto nos textos literários relacionados com Compostela

como nos depoimentos dos visitantes à cidade, em termos de discursos, imagens e práticas culturais

(sejam estas possíveis ou efetivadas).

O universo de trabalho para o projeto ficou definido à volta de quatro âmbitos geo-culturais, isto é a

Galiza, Espanha, Portugal e Brasil, principais focos emissores (regional, estatal, comunitário e

extracomunitário, respetivamente) de visitantes para Compostela, conforme os dados do Centro de

Estudos Turísticos (CETUR, 2014), e é materialmente alimentado por dous elementos basilares, o

catalogador e o observatório à cidade, que se apresentam a seguir.

O denominado observatório à cidade consiste na elaboração de um corpus de inquéritos (e

1 Trata-se de um grupo de pesquisa nos Sistemas Culturais Galego, Luso, Africanos de Língua Portuguesa e

Brasileiro, cuja descrição e trabalhos estão acessíveis em http://www.grupogalabra.com. 2 Mais informações sobre o projeto, subsidiado pelo Ministerio de Economía y Competitividad da Espanha

(referência FFI2012-35521) e pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) 2007-2013, encontram-

se disponíveis em http://www.grupogalabra.com/investigacaoprojetos/99-discursos-imagens-e-praticas-culturais-

sobre-santiago-de-compostela-comometa-dos-caminhos.html.

Page 2: Textos ficcionais e práticas culturais de portugueses com ... · Textos ficcionais e práticas culturais de portugueses com relação a Santiago de Compostela: contrastes ... usos

entrevistas qualitativas) realizadas tanto a pessoas que visitam a cidade como a comerciantes e a

moradores compostelanos. Focaremos aqui apenas o relativo ao primeiro grupo, isto é, o que diz

respeito aos inquéritos a visitantes3 procedentes dos quatro âmbitos referidos acima, onde têm a sua

residência. Foram feitos ao longo de um ano, todos os dias (inclusive sábados, domingos e

feriados), com uma frequência variável segundo a relevância da data e a configuração dos

calendários galego, espanhol, português e brasileiro. As pessoas foram contatadas na área mais

urbanizada da cidade, sem se limitar exclusivamente ao entorno mais imediato da Catedral, por

membros da equipa treinados na realização de entrevistas e responsáveis pela fixação escrita – cujo

preenchimento demora entre 15 e 20 minutos – das respostas obtidas às perguntas do inquérito,

organizadas nos seguintes grandes blocos: processo de decisão da viagem, imaginário a respeito de

Santiago e da Galiza, usos da cidade de Santiago, meios de informação usados durante a visita,

aspectos ligados à gestão e à organização da viagem e, finalmente, caraterísticas sociodemográficas

do entrevistado. Com o objetivo de minimizar os efeitos de um hipotético conflito intercultural e

lingüístico na recolha de dados, entre as pessoas que fizeram este trabalho de campo encontrava-se

pessoal nativo português e brasileiro.

O catalogador é uma base de dados relacional complexa elaborada ad hoc no seio do projeto e

destinada a recensear, arrumar e disponibilizar os materiais relativos ao corpus documental que vai

ser manejado no decurso da pesquisa, incluindo (1) livros, (2) produtos audiovisuais e (3) páginas

web dos âmbitos de estudo relacionados com Santiago de Compostela e/ou os Caminhos de

Santiago e produzidos desde o ano 2008 até à atualidade4. Neste momento, o recenseamento, já

completo (embora estejam contempladas atualizações) e feito de acordo com procuras

protocolarizadas para cada um dos produtos, através de palavras-chave comuns para os diferentes

âmbitos –“Santiago de Compostela”, “Caminho de Santiago”, “Compostela” e “Galiza”–, ultrapassa

1000 referências. No entanto, a disponibilização de materiais (que tenciona ser completa) encontra-

se num estádio intermédio, dada a dificuldade de acesso a uma parte deles, por um lado, e

considerando que é preciso tratá-los informaticamente conforme às necessidades de exploração, por

outro lado. Por exemplo, os livros em suporte papel precisam ser submetidos à digitalização para

serem passíveis de tratamento electrónico.

Esta comunicação, que visa estabelecer um diálogo entre materiais portugueses procedentes tanto

do catalogador (nomeadamente, textos literários) como do observatório à cidade (respostas dos

visitantes aos inquéritos), apresenta-se como um teste que, realizando a análise de produtos

específicos do corpus e alimentando-se da reflexão teórico-metodológica do grupo Galabra

vinculada com o estudo dos processos culturais, permita avançar na pesquisa por meio da aplicação

de diversos métodos de tratamento da informação, entre os quais cabe aqui destacar o

Processamento de Linguagem Natural (PLN), técnica de análise textual automática para a

exploração do corpus.

No nosso trabalho queremos mostrar as possibilidades que o PLN oferece para, com o recurso a

sistemas de extração de informação (Gamallo e García, 2012) operados computacionalmente, e

mais exatamente através do trabalho com “palavras chave”, por um lado, e com “expressões

multipalavra”5, por outro, reduzir o volume de corpus extensos de modo a torná-los apreensíveis

através de mecanismos objetivos e objetiváveis. O processo implica a passagem do texto –no caso

das obras literárias, previamente digitalizado e submetido ao reconhecimento óptico de caracteres–,

em formato txt, através de um etiquetador, que o analisa com etiquetas morfossintácticas, para

depois ser submetido à extração, consistente na realização de três tarefas sequenciais: seleção,

filtragem e arrumação.

3 Importa referir que ficou definido como visitante qualquer pessoa que visita Compostela com uma periodicidade

não inferior a 7 dias, por motivos de lazer ou outros, e independentemente de que se aloje (ou não) na cidade. 4 Para mais especificações, veja-se o contributo de Roberto Samartim para este XI Congresso da AIL. 5 Devemos agradecer, neste ponto, a preciosa colaboração dada pelo colega Pablo Gamallo, docente e investigador

da USC, integrante do Grupo para o Processamento da Linguagem Natural.

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A tarefa de seleção, quando se extraem palavras chave, é feita por lemas, dentre todas aquelas

formas etiquetadas como N=nome, A=adjetivo e V=verbo, quer dizer, formas com conteúdo

essencialmente lexical (de tal modo que ficam postas de parte as formas com conteúdo

fundamentalmente gramatical, isto é, preposições, determinantes, advérbios e conjunções), cabendo

destacar que o sistema seleciona os nomes próprios, mesmo aqueles constituídos por mais de uma

forma (p.ex. “Caminho de Santiago”). No caso das expressões multipalavra, o sistema considera

candidatos a serem termo multipalavra todas aquelas expressões que aparecem em vários padrões

de etiquetas morfossintácticas (p.ex. N-A, A-N, N-N, N-Preposição-N).

A tarefa de filtragem consiste na seleção, por parte do sistema, daqueles lemas e daquelas

expressões que ocorrem no corpus com frequência superior a um dado patamar (freq=1, por

omissão).

Finalmente, a tarefa de arrumação consiste na organização das respetivas listagens por meio de

procedimentos estatísticos e em contraste com um corpus de referência6.

Assim, usando os resultados devolvidos pelo sistema após o tratamento para obtenção das palavras

chave e das expressões multipalavras, procederemos a comparar um corpus documental e um outro

de entrevistas, a fim de detetar em que medida e de que formas podem ligar-se os discursos

culturais com os reais, identificando as possíveis (des)coincidências entre as ideias e as práticas que

aparecem nos textos e as expressas pelas pessoas inquiridas durante a sua visita à cidade de

Compostela.

2. Corpus ficcional português

O levantamento do corpus de livros foi feito de acordo com as balizas cronológicas do projeto,

estabelecidas entre 2008 e a atualidade a fim de abranger um período ao mesmo tempo recente, para

observar tendências atuais, e suficiente, para determinar o (não) impacto da ocorrência do Ano

Santo Compostelano 2010. No caso das obras portuguesas, consistiu na procura daquilo que foi

(re)editado em Portugal e em português, desde o ano 2008, incluindo tematicamente o Caminho de

Santiago e/ou Santiago de Compostela. Foi feito seguindo um protocolo que marcava, para todos os

âmbitos, a pesquisa de “Santiago de Compostela”, “Caminho de Santiago”, “Compostela” e

“Galiza” por palavra-chave e por palavra no título nas bases de dados das bibliotecas nacionais – no

caso, a Biblioteca Nacional de Portugal; depois era complementada pela procura feita noutras

bibliotecas subsidiárias – tendo-se usado a Porbase, que é o catálogo colectivo em linha das

bibliotecas portuguesas, e a biblioteca do Congresso dos EEUU – e, ainda, na base de dados de

Worldcat; finalmente, a mesma pesquisa foi realizada em diversas livrarias portuguesas em linha

(nomeadamente, Bertrand, Wook, Leya, Fnac, Culturminho e Apolo 70). O processo de

levantamento foi inicialmente feito em folhas de cálculo e fechado em 26 de março de 2014,

aquando da exportação dos registos para um catalogador especificamente desenhado em função das

necessidades da pesquisa, tendo como resultado, na secção de livros do âmbito português, mais de

quarenta referências, quer no formato tradicional de papel (a maioria), quer em forma de e-book (5).

Para esta comunicação, enquanto primeira aproximação ao corpus documental lusitano, optou-se

por fazer uma abordagem nao exaustiva, mas sim representativa, do produto livro. Assim,

selecionaram-se as obras de ficção, entendendo que o contraste entre os discursos contidos nelas e

6 De acordo com Gamallo (2014), para as palavras chave, os lemas são filtrados mediante uma estatística chi-

quadrado entre os dados observados no corpus e os dados estimados num corpus de referência, o que resulta numa

listagem de lemas de maior a menor peso (para cujo cálculo foram utilizados os valores obtidos a partir da

comparação estatística entre os dados do corpus analisado -isto é, ocorrências observadas- e um corpus de

referência – quer dizer, ocorrências estimadas). Tratando-se das expressões multipalavra, o sistema procede a fazer

uma organização da listagem de maior a menor utilizando uma medida de associação estatística, à escolha entre

cinco possíveis: simples coocorrências (cooc), loglike (log), chi-quadrado (chi), informação mútua (mi) e SCP

(scp).

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os dos visitantes reais podia oferecer mais possibilidades do que com os guias de viagem ou as

obras de história e de espiritualidade. Dentro da ficção, considerando prioritário confrontar

discursos produzidos por portugueses, retiraram-se as quatro edições diferentes que teve, no período

em apreço e em Portugal, o Diário de um mago do brasileiro Paulo Coelho, bem como as traduções

para português do romance de sucesso Tarnished beauty (2008) da americana Cecilia Samartin

(cabe sublinhar que se trata da mesma obra e idêntica editora, Vogais, mas aparece com dous títulos

e capas diferentes: em 2010 como Don Peregrino e em 2012 como Beleza atormentada) e dos

romances El ángel perdido y La huella del hereje dos autores de best-sellers espanhóis Javier Sierra

e Susana Fortes, ambos thrillers de 2011, editados no ano a seguir em Portugal (O anjo perdido,

com a chancela de Planeta Manuscrito e A marca do herege, com a da Porto Editora).

Posteriormente, procedemos a identificar aqueles relatos de viagens e de aventura que, enquanto

diários de experiência(s), marcados pela auto-referencialidade, pelo fragmento autobiográfico e por

uma estreita relação entre ficcionalidade e referencialidade, constituem um “género difuso, híbrido,

escurridizo, cuya misma naturaleza invita a una aproximación desde una diversidad de

perspectivas” (Albuquerque-García, 2011), podendo mesmo ser considerados como “não ficção”.

Para a identificação destas obras e dado que se trata de textos bastante recentes, perante a escasseza

ou ausência de catalogações bibliotecárias e a falta de contato direto com uma parte dos títulos,

ficou estabelecido o recurso às informações editoriais acessíveis, quer em forma de sinopse

(divulgada pela própria editora ou através das livrarias em linha) quer através de quaisquer outros

elementos presentes na publicitação das obras (p.ex. classificação genérica ou temática, lemas

publicitários, considerações críticas, textos incluídos nas badanas, teasers ou book-trailers). Assim

sendo, pelo caráter ensaístico que amiúde lhes é atribuído e pela consideração que merecem de

reportagem, diário ou guia, a afastarem os textos do ficcional, foram desconsideradas as seguintes

obras:

- Eu, português impuro – No Caminho Francês de Santiago (2008) de Joaquim Figueiredo,

editorialmente classificado como ensaio e apresentado como “o testemunho que instrui e distrai,

descrevendo sem fantasia, mas com bom ritmo e sedução, as boas e as más experiências do autor e

do casal brasileiro que o acompanhou no percurso, também conhecido por Caminho das Estrelas” e

destacando, ainda, que nela constam elementos que “muitas outras obras sobre o percurso

pretensiosamente ignoram”, de tal modo que o relato se torna “um autêntico conselheiro e guia

prático para quem deseja peregrinar a Santiago de Compostela”;

- Ultreya, nos caminhos de Santiago (2009), assinada por João Ferreirar – na verdade, João Ribeiro

–, é uma edição de autor, classificada como crónicas ligadas ao catolicismo, cuja apresentação

destaca o caráter de testemunho da peregrinação: “Fazer o caminho de Santiago é uma experiência

única que nos abre à felicidade. Na viajem [sic] deste livro não se chega a Santiago, antes a uma

etapa intermédia, Burgos, com a firme esperança de retomar o Caminho até ao objectivo final”;

- Alguma dor cura a alma (2012), do jornalista Carlos Ferreira, que aparece com o rótulo de

biografia – portanto, ensaio – atribuído pela editora, ligando o Caminho Português para Santiago e o

Caminho de Fátima como vias de peregrinação para os dous principais santuários peninsulares (e,

ao mesmo tempo, como geradores de negócios), é apresentado enquanto “livro-reportagem” que

conta “a história dos caminheiros e de um jornalista que palmilhou os seus destinos”;

- Diário dos caminhos de Santiago (2013), incluído no catálogo de prosa da editora, remete, através

do próprio título, para uma forma convencional de fixação escrita das vivências, de tal modo que o

destaque editorial vai para o que consideram particularidade da obra: “Num registo invulgar, de

uma forma leve, bem humorada e repleta de pormenores de requinte, o autor Abílio Machado relata

as suas experiências nos caminhos: Português, Aragonês, Inglês, de Finisterra, de Navarra e

Prisciliano”;

- O Caminho português (2013) é apresentado como o relato da “fascinante história de Marjori

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Lotufo em sua peregrinação a Santiago de Compostela”, onde a “vivência dos históricos caminhos”

surge imbricada com “as experiências espirituais”, que compartilha publicamente “abrindo seu

diário”;

- O recentemente lançado Bom Caminho (2014), de Fausta Cardoso Pereira, aparece caraterizado

como “diário de bordo”, enquanto narrativa pessoal de uma peregrina que percorreu o Caminho

Português tanto de bicicleta como a pé, e contou com um convite editorial para o lançamento da

obra feito nestes termos: “Bom Caminho – Um relato na primeira pessoa da experiência

transformadora do Caminho Português de Santiago”7.

Acabaram, portanto, por ser selecionadas para efetuar o trabalho que agora apresentamos as únicas

três obras que aparecem editorialmente identificadas como ficcionais e se encontram diretamente

relacionadas com Santiago, Compostela e o Caminho de Santiago (que abreviaremos CS), através

do título e/ou da sinopse. Arrumadas cronologicamente, elas são:

- a novela A caminho de Santiago (2010) de Ana Saldanha (Porto, 1959 - ), que apareceu em

formato papel e e-book fazendo parte do catálogo da Editora Caminho, do grande grupo editorial

lusitano Leya8. Trata-se do terceiro número da coleção “Vamos viajar” numa segunda edição,

revista e alterada a respeito da primeira, datada de 19959, contando com um novo ilustrador (Pedro

Brito) e em cuja capa surge a protagonista adolescente tocando uma gaita de foles. Está destinada a

um público juvenil – “leitores medianos”, conforme rótulo da Casa da Leitura, que a coloca na área

Temática “Aventuras, Viagem, Geografia, Mistério, Amizade, Humor”10. Foi uma das primeiras

obras publicadas pela autora, que com mais de trinta livros infanto-juvenis editados se tornou uma

produtora portuguesa especializada e de grande sucesso neste tipo de narrativas, “uma das vozes

mais seguras e promissoras do panorama português contemporâneo”. Vários dos seus títulos são

considerados best-sellers e muitos encontram-se incluídos nas listagem de obras recomendadas do

projeto Ler+ para o âmbito escolar desenvolvido pelo governo português através do Plano Nacional

de Leitura. O motor diegético da história é a viagem, neste caso a Santiago de Compostela, de um

grupo de oito pessoas no qual se incluem três gerações de uma familia, vários amigos adolescentes

e um cão. A obra, de 90 páginas, conta com ingredientes (como o humor, o registo coloquial e os

diálogos vivos) e com um esquema narrativo (de acção pontuada de mistério e suspense)

semelhantes aos outros volumes da coleção, alguns dos quais são por vezes referidos. Parece

provável que a iniciativa de retomar editorialmente em 2010 A caminho de Santiago (em diante

ACS), que apresenta um roteiro de visita à capital galega não seja casual, mas esteja ligada à data,

momento de celebração do mais recente Ano Santo.

- O segredo de Compostela (2013) de Alberto S. Santos (Paço de Sousa - Penafiel, 1967 - )

lançado pela Porto Editora no mês de maio e tendo ocupado logo o sexto lugar no topo de vendas

portuguesas11, é, com perto de 500 páginas, o terceiro romance de um conhecido político, homem

de cultura e produtor lusitano que desde a sua estreia, em 2008, com A escrava de Córdova (já na

quinta edição, com mais de 20.000 exemplares vendidos12) ganhou um grande sucesso. O êxito,

confirmado com A profecia de Istambul (2010), levou-o a ultrapassar de longe vendas de 50.000

exemplares, situando-o como um dos atuais fabricadores de best-sellers nacionais, graças ao cultivo

7 http://www.planeta.pt/agenda/lancamento-de-bom-caminho-de-fausta-cardoso-pereira (13.03.2014). 8 A obra também se encontra, em edição digital de formato ePub, entre os produtos de Leya Brasil, conforme pode

comprovar-se em http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/4889805?PAC_ID=127108 (13.03.2014). 9 Foi editada, na altura, pelo selo Campo das Letras e contava com abundantes ilustrações de Fernando Oliveira. 10 http://195.23.38.178/casadaleitura/portalbeta/bo/portal.pl?pag=sol_lm_fichaLivro&id=2435 (13.03.2014). 11

Conforme consta da listagem de “Os mais vendidos de 20 a 26 de maio” publicada pelo jornal Expresso.

04.06.2013. Disponível em http://expresso.sapo.pt/os-mais-vendidos-de-20-a-26-de-

maio=f811777#ixzz2zLrg9xXm (13.03.2014). 12 Para isto terá contribuído, sem dúvida, o fato de se ter convertido em livro recomendado no Plano Nacional LER+

para os 10º, 11º e 12º anos.

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do romance histórico. Na mesma trilha, O segredo de Compostela (em diante, OSC), disponível

também como e-book e já reeditado em 2014, representa o desafio às histórias oficiais, ao situar os

restos Prisciliano no túmulo de Compostela e interrogar-se a respeito do sentido atual das

peregrinações, tendo sido objeto de forte campanha publicitária, cujo impato pode medir-se pela

destacada presença nos media: desde a escolha, através de uma votação no Facebook, da capa, até

às diversas entrevistas televisivas ao autor (só entre meados de maio e de junho no Porto Canal, na

SIC, na TVI, na RTP1 e na RTP2), passando pelas numerosas resenhas de que foi objeto.

- Entre o silêncio das pedras (2013) de Luís Ferreira (Barreiro, 1970 - ) veio a lume com a

chancela da modesta Esfera do Caos e é a primeira obra de ficção do autor. No texto editorial fica

destacada, publicitariamente, a sua dupla vertente, de romance que nos leva a percorrer “o lendário

Caminho de Santiago” e de “lição de vida”, “mensagem de fé” e “incitamento à descoberta do

melhor que há em nós”. Ao longo de 340 páginas, a narrativa é construída em torno a duas

personagens principais, uma masculina e outra feminina, cujos percursos paralelos vão encontrar-se,

entrecruzando-se até ao envolvimento sentimental, enquanto trilham o Caminho Português, numa

experiência decisiva para (a mudança d)as suas vidas. Também definido como “um livro de

histórias dentro da história”, foi apresentado por vez primeira em Alcochete – local no qual reside o

autor e, coincidentemente, o protagonista – em novembro de 2013 e, depois de um dilatado percurso

por espaços portugueses13, chegou a ter um lançamento em Compostela no dia 1 de março de 2014,

agendado numa clássica livraria da cidade, no centro histórico, em plena Praça de Cervantes, onde

se anunciou a comercialização da obra, para breve, através de uma editora brasileira. No ato

participou um reconhecido escultor compostelano, conforme ficou registado pela imprensa, que

noticiava deste modo: “Luis Manuel Ferreira presentó en la librería Couceiro su libro Entre o

silencio das pedras, con el Camino de Santiago como escenario de emociones, vida y

descubrimiento personal. Representantes de Esfera do Caos Editores y el escultor Cándido Pazos

acompañaron a Ferreira en el evento literario”14, sem apontar as ligações de Pazos com o brasileiro

Paulo Coelho15.

Para a abordagem das obras selecionadas, aplicou-se PLN submetendo o(s) texto(s) ao programa de

software livre PERL para obter as palavras-chave, devolvidas automaticamente numa listagem

organizada em função da frequência e relevância das mesmas, dentro do próprio texto e em relação

com um corpus de contraste constituído pela Wikipédia em português.

Procedeu-se, primeiro, à extração de informação das respetivas sinopses, que pela reduzida

extensão apenas se prestam à obtenção de palavras chave; no caso, extraíram-se 20 relativas a cada

obra, sendo que no conjunto destaca avultadamente “Santiago”, conforme se vê graficamente infra.

13 Dele dá conta Luís Ferreira através de https://www.facebook.com/events/441755282601687/ (11.04.2014). 14 La Voz de Galicia. 02.03.2014. 15 “Cándido Pazos trabaja en un proyecto con Paulo Coelho”. Faro de Vigo. 05.07.2013. Disponível em

http://www.farodevigo.es/portada-deza-tabeiros-montes/2013/07/05/candido-pazos-trabaja-proyecto-

paulo/840697.html (03.03.2014).

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Palavras chave das sinopses dos 3 textos ficcionais

Numa observação diferenciada, o uso analítico das cinco primeiras (do total de 20) ocorrências

permite-nos identificar logo focalizações diversas nos diferentes textos. Assim, em ACS

identificamos a primazia da cidade de Santiago, o destaque da narradora-protagonista adolescente e

os elementos de mistério introduzidos na viagem, caraterizada, não pacificamente, como de

peregrinação; já para o romance histórico OSC colocam-nos perante o protagonismo de Prisciliano,

a ligação dele com o lugar de Compostela e a abundância de elementos históricos e relativos à

religião cristã; no caso de ESP é o CS, enquanto prática contemporânea, que ocupa

significativamente o primeiro lugar, seguido de “Idade_Média”, a remeter para o peso atribuído aos

apontamentos históricos neste romance, e o nome do protagonista, ainda com “redescoberto,

trilhar” que tanto se referem ao percurso real das personagens pelo CS como ao conhecimento (ou

mesmo auto-conhecimento) que por essa via vão ganhando.

ACS OSC ESP

Santiago Prisciliano Caminho_de_Santiago

Cláudia Compostela Idade_Média

Misterioso História Pedro_Marques

Soar Santiago_de_Compostela Redescoberto

Peregrinação Cristandade Trilhar

Palavras-chave (primeiras 5) de cada uma das sinopses dos textos ficcionais

A seguir, foram processados os textos completos, para deles se retirarem tanto as palavras chave

(100) como as expressões multipalavra (200). Atendendo às limitações de tempo e de espaço,

apresentaremos apenas o relacionado com as primeiras, a começar pelo devido destaque, em

primeiro lugar, para o menor número de ocorrências de “Santiago”, que perde a centralidade em

favor de termos relacionados com a religião, a peregrinação e mesmo com Portugal.

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Palavras chave dos 3 textos ficcionais completos

Singularizando as palavras chave por obras, cabe dizer que em ACS pode identificar-se, para além

de Santiago de Compostela (à par com Jerusalém, em relação com peregrinação e Igreja Católica) e

a Galiza, a presença de abundantes localidades portuguesas (com destaque para o Porto, Barcelos,

Braga, Ponte de Lima, Valença) que se correspondem, basicamente, com os lugares de passagem e

paragem no percurso feito de carro, referências que remetem para o passado (p.ex. dom, História,

Idade Média), mas também elementos relacionados com a alimentação, particularmente doces

(sobretudo chocolate), com a música e/ou a fala galegas (Milladoiro, celta, música, gaita; Xelmirez,

xelado, Quedache, pantalóns) e, ainda, os armazéns “El Corte Inglés” de Vigo, espaço para compras

de roupas, e o “Guia” ou “Caminhos Portugueses” de peregrinação a Santiago, leitura (in)formativa

que surge em diversos momentos e lugares da viagem.

Palavras chave de ACS

Relativamente a OSC, as primeiras ocorrências identificam a dupla (religiosa e também amorosa)

protagonista, Prisciliano e Egéria – à qual se vão somando até uma vintena de personagens,

históricas ou inventadas –, enquanto a seguir abundam referências próprias do século IV a diversos

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aspetos da organização política e social (p.ex. ministro, imperador, governo, villa, corte, templo,

mercado) nos territórios representados através dos topónimos latinos, entre os quais Hispânia,

Galécia ou Aseconia (este último dizendo respeito à atual Compostela); cabe apontar, ainda, a

presença de termos ligados à religião, com particular destaque, conforme ilustra a seguir a nuvem

de palavras, para Deus.

Palavras chave de OSC

Em ESP os primeiros resultados remetem para o “peregrino” e a sua prática (p.ex. caminho,

caminhar, peregrinação, pausa), mas também para os elementos do seu quotidiano (albergue,

mochila, vieira, fonte, carimbo, seta, direção, credencial). Santiago, Caminho de Santiago e

Compostela surgem, do mesmo modo que –nesta ordem– a localidade galega de Tui e as

portuguesas Lisboa, Ponte de Lima, Valença e Alcochete; há escassas ocorrências a referir a

alimentação e algumas relativas à natureza (p.ex. sol, brisa, céu) mas cabe destacar o peso dos

termos a marcar o relacionamento com as pessoas e os objetos através da acção, nomeadamente o

olhar.

Palavras chave de ESP

Observa-se, portanto, como os resultados procedentes das sinopses, com Santiago e/ou CS em

destaque, se complementam, graças ao processamento dos textos completos, no caso das ficções

ambientadas na contemporaneidade, com referências portuguesas –fundamentalmente topónimos

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que marcam a procedência ou o percurso de deslocação das personagens, em ambos os casos em

direção Sul-Norte ou Portugal-Galiza–, alargando-se depois, de modo coincidente, com alguns

elementos gastronómicos –embora diversos– e, de modo divergente, com elementos que

representam a cultura galega em ACS e a cultura do Caminho em ESP.

3. Corpus de inquéritos a visitantes portugueses

A recolha de dados através do inquérito a visitantes, no quadro do Observatório, com duração de um

ano e ininterrupta, teve como resultado, para o âmbito português, a realização de 384 inquéritos a

pessoas residentes em Portugal, que é, dentre os países comunitários, aquele que contribui com o

número mais elevado de visitantes a Santiago16. No entanto, para a aproximação que agora

propomos e porque uma das necessidades de avanço na pesquisa é fazer a sondagem do material

com o qual trabalhamos em fases consecutivas, foi selecionado o trimestre que decorreu entre os

dias 23 de abril e 26 de julho de 2013, do qual se trabalharam um total de 79 entrevistas

correspondentes ao âmbito português.

As respostas oferecidas pelos entrevistados foram primeiro recolhidas em suporte papel e depois

convenientemente codificadas, em folhas de cálculo. Mais tarde, foram colocadas em formato txt

para serem submetidas a diversos métodos de tratamento de dados –com o fim de se proceder ao

trabalho de análise–, o primeiro dos quais consistiu em reunir todas as respostas de cada um dos

quatro âmbitos isoladamente para a extração de palavras e expressões através do PLN. A seguir

colocam-se, a título ilustrativo, os primeiros vinte resultados do processamento conjunto dos 79

inquéritos respondidos por visitantes portugueses:

PALAVRAS-CHAVE EXPRESSõES MULTIPALAVRA

Catedral Centro histórico

Não_Responde Volta de Catedral

Não_Sabe Posto de turismo

Santiago_de_Compostela Fim de rota

Não_Procede Prato de dia

Praça_do_Obradoiro Zona velha

Santo Gaita de foles

Portugal Licor café

Ponte_Vedra Missa de peregrino

Santiago Encontro de coros

Peregrino Paz de espírito

Caminho Galegas fim

Vigo Parte velha

Passear Estação de autocarros

Tui Localidades galegas

Catedral Casco+ histórico

The_Way Cultura portuguesa

Padrão Menu de peregrino

Pulpo+ Boa qualidade

Igreja Cidade religiosa

Resultados (20 primeiros) do inquérito a 79 visitantes portugueses

16 Conforme os dados do CETUR (2014), esta afirmação é válida para os anos 2008 (representando 5'3% do total),

2010 (subindo, por ocasião do Ano Santo, até 9,3%) e 2011 (6'8%), mas não se cumpre em 2009 nem em 2012, em

que a Alemanha (com 5,3% e 9,5%, respetivamente) se tornou o principal foco emissor europeu de visitantes para

Compostela, coincidindo com momentos de quebra da procura portuguesa (3'8% e 4,1%).

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Cabe apontar, logo à partida, que as primeiras ocorrências tanto de palavras como de expressões

servem para confirmar a identificação (e o uso) que os portugueses fazem da cidade com o ícone

que é a Catedral –ainda referida como Igreja e Basílica de Santiago– e com as áreas adjacentes. A

dimensão do fenómeno aparece reveladoramente na gráfica a seguir, onde se visualizam as

respostas dos portugueses entrevistados a respeito dos lugares que visita(ra)m em Compostela:

Lugares visitados em Santiago por 79 portugueses

Nas palavras chave o primeiro resultado, a Catedral, surge logo acompanhado pela Praça do

Obradoiro, a que depois se unem outros lugares de Santiago (Alameda, Rua do Franco, Av. João

XXIII, Cidade da Cultura, Rua de S. Francisco, Praça da Quintana, Rua do Vilar e Monte do Gozo)

que nos situam no entorno imediato da catedral, por um lado, no acesso à cidade dos peregrinos

vindos do oeste, por outro, e, ainda, dá o destaque para a mais nova referência – arquitetónica e não

só – situada no Monte Gaiás, a Cidade da Cultura. Na sequência, destacam as citações de lugares da

Galiza, lideradas por Santiago de Compostela e incluindo seis das sete cidades galegas (apenas falta

Lugo), bem como lugares significativos de passagem do CS Português (de Sul a Norte, Tui, na

fronteira, Redondela e Padrão, onde costuma iniciar-se a última etapa) e referências costeiras

ligadas com o turismo de sol e praia (Samil, São Genjo e Oleiros). O terceiro bloco significativo de

ocorrências é o relacionado com os peregrinos, o Caminho (também Caminho de Santiago e

Caminhos ou, singularizados, Caminho Francês e Caminho Português) e os objetos e atividades

caraterísticas (p.ex. o filme The Way, a “Oficina” do Peregrino, vieira, a Compostela). Em quarto

lugar, agrupam-se os elementos que dizem respeito à gastronomia, desde pulpo e mexilhão até

bocadillo, com resultados que remetem fundamentalmente para produtos que podem ser

identificados com a Galiza, de modo geral (p.ex. os mariscos, o vinho Alvarinho, o caldo galego, o

queijo de tetilla ou o licor-café) ou pela sua procedência específica (os pimentos de Padrão, a torta

de amêndoa de Santiago), ao lado de outros que coincidem com modos, produtos ou práticas

comuns no conjunto da Espanha (p.ex. tapas, paelha, tortilha, cañas).

De modo mais visual, o acima afirmado pode conferir-se nesta gráfica que integra os resultados da

extração das palavras chave e das expressões multipalavra:

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Palavras chave (100) e expressões multipalavra (200) do inquérito a 79 visitantes portugueses

No caso das expressões multipalavra, o protagonismo é, em primeiro lugar, para os elementos da

parte central e mais antiga da cidade, agregados coletivamente através de diversas denominações

(p.ex. cidade velha, casco histórico), e desagregados em “rua de lojas”, “ruelas estreitas” ou “ruas

principais”, que são aquelas que constroem a imagem de “ambiente medieval” e “cidade pequena”,

mas também o cenário para a “vida noturna” e a “animação noturna”, onde se encontram os “locais

de tapeo”. As práticas e os produtos relacionados com a alimentação têm presença significativa,

quer em forma de “prato do dia”, “menu do peregrino” ou “buffet livre”, quer através da citação do

licor café, o caldo galego, os pimentos de Padrão, o bolo de amêndoa, o polvo à galega, o cozido

galego e “variedade de mariscos”, avaliados positivamente (“boa qualidade”, “boa comida”).

Embora menos numerosas, também ocupam lugar de destaque as práticas correspondentes à “cidade

religiosa”, como a missa do peregrino, o abraço ao Santo, a imagem do Santo ou a aquisição de

lembranças religiosas, bem como as referências exatas a locais de serviços aos quais os visitantes

recorreram, como o posto de turismo, a estação de autocarros, o estacionamento de autocarros, o

“posto do peregrino” ou a estação de comboios. Cabe ainda referir a ocorrência, enquanto vias de

acesso à informação, de “coisas youtube”, “guia turístico” e “guia de excursão”. O que resulta mais

novidoso, com respeito aos resultados obtidos nas palavras chave, é a presença bastante destacada

de elementos lusitanos, explicitados em “cultura portuguesa”, “norte de Portugal”, “rota do

Caminho Português da Costa”, “proximidade com Portugal”, “semelhanças com Viseu” e

implícitos, por comparação, em “semelhanças com cultura”, “proximidade linguística”,

“proximidade cultural”, “cidades semelhantes”, a contemplar e a avaliar relacionalmente Santiago

de Compostela (considerada “bom resumo” e “resumo da Galiza”), com algum tipo de

continuidade/contiguidade galego-portuguesa17. Também, e talvez conetada com o anterior, surge a

valorização da população local, em forma de “simpatia de pessoas” e “simpatia de gente” ou de

“povo direto” e “povo frontal”.

Outra possibilidade de exploração do corpus de entrevistas, para o que nos ocupa, vem dada pelo

fato de o inquérito, de caráter quantitativo (embora com um elevado número de perguntas abertas),

conter perguntas específicas a respeito do consumo de produtos culturais relacionados com Santiago

17 Este aspeto é explorado pela colega Raquel Bello Vázquez no seu contributo para este Congresso.

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de Compostela, seja ele prévio à visita ou feito durante a mesma. As respostas recolhidas aparecem

como especialmente adequadas para atender um dos objetivos marcados no projeto, que é

estabelecer a relação entre a produção literária e cultural e as imagens que transmitem aos

consumidores. Assim, interrogadas a respeito de se leram algum livro ou viram algum filme sobre o

CS ou Santiago de Compostela, as pessoas portuguesas que responderam positivamente referiram

de modo maioritário o consumo de textos, entre os quais destacava Diário de um mago que,

conforme mostrou Torres Feijó (2011), elaborou um dos três discursos de alcance internacional

sobre Santiago de Compostela e o CS, o místico-esotérico, ao qual se somam o fundamentalmente

religioso da Igreja Católica e o eminentemente cultural(ista) fixado por organizações internacionais

como a UNESCO e o Conselho de Europa. Também, e mesmo com número mais elevado de

citações, aparece o filme The way, mas importa referir que tanto num caso como no outro é elevada

a percentagem de visitantes portugueses que mostra a ausência de coincidência entre a imagem de

Santiago que se apresenta nestes produtos e a que eles próprios têm (fundamentalmente, pelo

caráter místico, num caso, e pela escassa presença da cidade ou pela apresentação exclusiva do

Caminho Francês, no outro).

4. Discussão

À hora de procurar contrastes e homologias dos resultados obtidos através do PLN e para identificar

os possíveis desvios e coincidências a respeito das imagens e das práticas nos corpora, aplicaremos

uma classificação elaborada a partir do artigo de Torres Feijó (2012) “Interesses culturais e âmbitos

receptivos em dous romances sobre o Caminho de Santiago: Frechas de Ouro e O Enigma de

Compostela”, na qual foram definidos os que, no âmbito do projeto, denominamos “parâmetros da

cultura”, fixados como instrumento analítico para o grande bloco material da pesquisa contido no

catalogador, composto por materiais textuais, audiovisuais e virtuais sobre Santiago ou o CS. Estes

parâmetros da cultura são: espaço e paisagem (incluindo paisagem humana, natureza, clima),

lugares da Galiza, CS, Santiago de Compostela e lugares da cidade (em singularizações

particularmente rendíveis para os objetivos visados), história (onde se contemplam tanto história e

tradições como património material, política e história contemporânea), hábitos e costumes

(reunindo idiossincrasia, modos de vida, gastronomia, economia), identidade (em forma de vínculos

interterritoriais ou de identidade diferencial), língua (sem subparametrização), afetividade (em

forma de raízes e origens ou de relações pessoais), espiritualidade (contendo religião,

espiritualidade, esoterismo, mistério).

Cabe sublinhar, assim, que os resultados “Santiago” e “CS”, em destaque evidente, se

complementam em ambos os corpora com referências portuguesas, mas de modo diverso: nos

textos de ficção estas surgem entre as palavras chave e são sobretudo topónimos (portanto,

incluídos no segundo dos parâmetros) relacionados com a procedência ou os trajetos das

personagens, em boa parte coincidentes com localidades de passagem no CS; nos inquéritos, porém,

aparecem de modo mais volumoso nas expressões multipalavra e em forma de vínculos

interterritoriais, dentro do parâmetro da identidade.

Por outro lado, os elementos gastronómicos, incluídos no parâmetro de hábitos e costumes, têm

grande peso nos resultados do corpus de inquéritos, com importante presença do que são

consideradas especialidades locais compostelanas – como a torta de amêndoa – e galegas – p.ex.

mariscos – mas, também, de peculiaridades que de forma alargada ficam associadas à Espanha, quer

seja enquanto práticas diferenciadas – do tipo das tapas ou cañas –, quer seja pela ocorrência da

designação em língua castelhana – p.ex. bocadillo (isto é, sandes). O mesmo já não acontece, nem

em número de elementos nem na relevância deles, no caso dos resultados obtidos do corpus

ficcional, embora nos textos de que partimos haja importantes diferenças, tanto do ponto de vista

quantitativo como qualitativo, na presença de aspetos relacionados com a alimentação: desde as

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escassíssimas ocorrências, em parte justificadas pelo rigor ascético das práticas priscialinistas, de

OSC, até à referência a uma “peregrinação gastronómica”, em palavras do diário da adolescente que

reflete a viagem de ACS, passando pelas pormenorizadas descrições ou abundantes referências que

se identificam em ESP.

Abundam os aspectos de conexão e possível diálogo entre os corpora que não vieram à superfície

pelo procedimento aplicado ou cuja dimensão mal pode ser avaliada através dos resultados

devolvidos pelo PLN, alguns dos quais passamos a referir:

- ter visitado Santiago em mais de uma ocasião (ou tencionar uma nova visita), representando a

prática de uma percentagem destacada dos visitantes reais e nem sempre ligada a uma finalidade

religiosa ou de peregrinação, está também presente tanto na novela juvenil como no romance que se

ambienta no CS, obras nas quais se revela um conhecimento relativo quer da cidade quer da Galiza;

- também cabe assinalar que os espaços compostelanos referenciados literariamente no corpus

selecionado são bem mais reduzidos do que os citados pelos visitantes reais, quer pelo número, quer

pela concentração na catedral e no entorno imediato: em ACS um hotel sem identificar, a Praça das

Pratarias e as “ruas das lojas” e em ESP a “Oficina do peregrino” e a rua na qual se encontra (sem o

nome exato, Rua do Vilar), bem como a Praça do Obradoiro e a estação de autocarros, e em ambos

os casos surgem referências à visita à catedral, com certo pormenor, e ao uso de locais para petiscar

(sem singularizar nomes); já no best-seller histórico OSC, no qual apenas os capítulos inicial e final

se ambientam numa Compostela dos finais do séc. XIX, aparecem figuras históricas reais e outras

ficcionais movimentando-se entre a Sede episcopal, a Praça do Obradoiro e a Catedral;

- têm elevado interesse aquelas respostas em que as pessoas portuguesas inquiridas emitem, de uma

forma direta ou explícita, uma relação do seu país com a Galiza, uma singularização ou uma

diferenciação da Galiza, dado que estes são aspetos que ocupam um espaço não idêntico nem

homogêneo, mas sim significativo nos textos ficcionais visados. Em ACS isso acontece de modo

mais marcado através da história passada comum, mediante a apresentação figuras históricas e

mesmo elementos da tradição literária galaico-portuguesa (nomeadamente uma cantiga de amigo), e

por meio de uma ênfase especial nos aspetos (socio)linguísticos que tanto aproximam como afastam

a prática galega da portuguesa (e, ainda, da espanhola ou castelhana); mas também não faltam

ocorrências que classificamos dentro do parâmetro da afetividade, encenando um diálogo de

proximidade entre jovens portugueses e galegos que estabelecem relacionamentos de amizade e de

troca cultural. OSC, apesar de alinhar na combinação de vários dos elementos fortes do repertório

(doses de esoterismo, procura espiritual, mistério, ocultação e magia) no sucesso de outros best-

sellers contemporâneos internacionais – que, conforme assinala Torres Feijó (2014), informam de

gostos dominantes e podem, potencialmente, condicionar a receção de textos ou a interpretação de

fenómenos históricos –, apresenta, ao mesmo tempo, a vontade do autor, explicitada de forma

estratégica nas duas páginas finais da obra, sob o rótulo de “Agradecimentos”, de “contar histórias

que tocam ângulos menos conhecidos da nossa identidade” (Santos, 2013), onde o possessivo

remete diretamente para Portugal mas indiretamente para o noroeste peninsular, que aí mesmo

convoca para colocar a hipótese de ainda hoje a espiritualidade (comum e peculiar) dessa área se

encontrar marcada pelo priscilianismo; assim sendo, a ambientação centrada na Galécia romana,

que em tempos reunia a atual Galiza e o Norte de Portugal, e o protagonismo conjunto dado a duas

figuras excecionais e esquecidas (ou apagadas), Prisciliano e Egéria, servem para encenar raízes

históricas de aspetos identitários definidos não apenas por uma posição geográfica ou um certo

continuum da natureza, mas também pelos fluxos de comunicação.

Enfrentamo-nos a corpora diferentes, mas mais do que o seu caráter formal diferente é a

disparidade no grau de afinamento de ambos (isto é, a dispersão do corpus ficcional e a

concentração do corpus de inquéritos) que coloca mais problemas ou limitações à abordagem

testada neste trabalho. O fato de, no caso do inquérito, se terem elaborado perguntas para a

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obtenção – quer direta, quer indireta – de informações focalizadas para Santiago de Compostela (e a

Galiza) alia-se com/ao caráter sintético das respostas e ao alto grau de concreção nas referências

obtidas dos visitantes portugueses à cidade. No extremo oposto, o trabalho desenvolvido a partir dos

textos ficcionais completos, embora resulte útil e aponte possibilidades de análise objetiva quanto à

deteção do peso e do destaque relativo dos elementos relacionados com Compostela, revela certas

insuficiências para a aproximação mais exata às imagens e às práticas culturais portuguesas na

cidade; isto, porque são relativamente escassos os elementos específicos devolvidos por uma

filtragem indiferenciada (ou única) da totalidade do texto. Deste modo, parece conveniente que, tal

como o corpus de inquéritos reúne as respostas dos visitantes lusitanos, o corpus ficcional seja

reduzido, para um novo tratamento, àquelas partes que efetivamente possam responder às perguntas

constantes do inquérito; será a forma mais direta e precisa de se proceder à comparação destes

aspetos focalizados no projeto.

Falando do corpus documental, importa destacar que através da pesquisa no catálogo da Biblioteca

Nacional de Portugal se detetou, em termos editoriais, que ao longo do século XX e mesmo nos

anos anteriores a 2008 existia uma elaboração portuguesa bastante limitada de materiais originais

relativos a Santiago de Compostela e sobre o Caminho. Do mesmo modo, visualizou-se, para as

décadas passadas, o peso da importação – frequentemente por meio de tradução (embora haja que

pôr de parte o fenómeno de Paulo Coelho, já apontado). Por isso mesmo, resulta bastante

significativa a relativa proliferação deste tipo de materiais a que assistimos na atualidade, com

especial incidência a partir de 2010, o mais recente Ano Jacobeu. Será preciso observar em que

sentido se opera e explorar o que parecem tendências que se derivam da observação dos títulos e

das sinopses: a multiplicação dos chamados diários de bordo enquanto guias do CS, a aparição

bastante recente de textos ficcionais ligados de modos diversos com o CS ou a passagem da

focalização do Caminho Francês para a do Caminho (Central) Português, por exemplo. Caberá ver

em que medida o envolvimento das autoridades regionais e locais portuguesas ou de diversos

agentes não governamentais lusitanos no traçado e no apoio aos percursos do CS pelo país vizinho –

que contemplam vários roteiros, em três eixos fundamentais: o Central, o da Costa e o Interior – é

acompanhado pela produção de mais ou de novos materiais editados ao calor de interesses nacionais

ou de certa moda internacional e estudar se se está a adatar discurso português ou a adotar imagens

produzidas fora mas com alargado sucesso. Será conveniente, também, prestar atenção ao que

podemos chamar intercâmbio do olhar brasileiro e português (isto é, à circulação das imagens de

Santiago e da Galiza mediadas, através da língua portuguesa, pelas comunidades brasileira e

lusitana), já não apenas no sentido Brasil – Portugal, dado que, conforme ficou indicado, ACS se

encontra comercializado no país americano, nem limitado exclusivamente à elaboração de Coelho,

visto o lançamento português da obra de Marjori Lotufo.

Por enquanto, aquilo que se deduz deste corpus ficcional português é que a presença de Santiago de

Compostela está longe de se ligar direta, exclusiva e univocamente ao CS e, ainda menos, ao

Caminho Francês, como ocorre no caso do corpus equivalente do Brasil18. Isto acontece mesmo

detetando-se um importante paralelismo entre os títulos lusos e brasileiros (segredo e enigma de

Compostela; caminho e descaminho de Santiago; ausência de referência direta em ESP e Diário de

um mago) e de, também, aparentemente, coincidirem modos de construção destas ficções, seja

como diários, seja como visões críticas ou alternativas a respeito do CS ou das suas origens.

Contrariamente ao que se encontra nas três obras do Brasil, nas quais todas as personagens

principais fazem o CS e é em virtude do Caminho que advém a cidade de Compostela, as

motivações lusitanas surgem como sendo diversas (ou mesmo divergentes); no corpus selecionado,

na verdade, apenas a dupla protagonista de ESP peregrina a pé até à cidade, seguindo o Caminho

(Central) Português e cumprindo os vários rituais associados à peregrinação (que, no caso de Pedro,

também narrador em primeira pessoa, se estende até Fisterra).

18 Encontra-se explorado, em abordagem paralela a esta, na comunicação da colega M. Carmen Villarino Pardo a este

mesmo congresso.

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Relativamente às obras ficcionais aqui trabalhadas, pode concluir-se que, apesar de contarem com

presença da intriga, do mistério e de um certo suspense, nos três textos parece haver predomínio do

interesse pelo conhecimento, embora seja certo que em ESP os elementos históricos são usados com

alguma frequência para alimentar o tom de mistério e de irrealidade com o qual se envolve o

Caminho. História e lendas, particularmente presentes nas narrativas selecionadas, podem ser

interpretados como discursos que convivem no imaginário cultural, “curto-circuitando” a possível

imposição de uma versão única a respeito de Santiago e do CS, privilegiada noutros tempos por

interesses políticos e/ou religiosos. No best-seller português invalida-se a tradicional narrativa

mítico-religiosa ligada ao CS, oferecendo uma leitura plural que coincide com aquilo que Fernández

Rodríguez (2012: 68) apontou para algumas obras do corpus galego e espanhol: encena-se uma

percepção crítica do conhecimento e da cultura, tirando proveito de um tema de atualidade no

momento e de um fenómeno com o qual o público destinatário português pode sentir-se facilmente

identificado, ao se tratar de uma realidade compartilhada, próxima e relativamente conhecida, à qual

se faz referência direta e explícita no “Preâmbulo” e nos “Agradecimentos”. No caso do texto para

adolescentes, ganha uma importante dimensão a lição da viagem a respeito da importância do

convívio e das trocas que o contato com outras (novas) pessoas oferece, sublinhando-se o discurso

da experiência e da aprendizagem – isto é, do caminho em si próprio – mais do que a consecução de

uma meta qualquer; na obra encontra-se apoio ao saber enciclopédico que a instituição escolar tenta

transmitir, considerando que se trata de um saber útil (e utilitário), transmitindo com didatismo

conhecimentos geográficos e históricos, próximos dos interesses e da identidade portugueses e que

fazem com que nele ganhem importância os elementos que representam a cultura galega e o

passado comum lusogalaico. No romance ESP, o único ambientado no CS e o mais recente do

conjunto, apresenta-se mais a realidade do Caminho, formulada em termos de como são os lugares

que se atravessam, a paisagem, a gastronomia, o contato com os habitantes, as condições que

oferecem os albergues, o convívio com outros peregrinos, etc. sem se limitar o aspecto cultural ao

discurso europeísta da marca de Itinerário estabelecida pela UNESCO, através de referências a

monumentos e a elementos destacados da arquitetura de cada área, desenhando uma cartografia

monumental-paisagística unificada no percurso.

Campalto (2006), trabalhando com a hipótese de que existe uma ligação entre a literatura e o

processo de decisão dos turistas à hora de escolher o destino, tenta definir o papel que a literatura

cumpre na oferta turística. De acordo com Heelan (2004), tal papel, desempenhado desde longa

data, revigorou-se nos inícios do século XXI graças à publicação e ao sucesso de obras como The

Da Vinci Code e Harry Potter, a partir das quais se geraram viagens. No caso que tratamos, antes

parece que estejamos a assistir mais bem ao fenómeno inverso, no qual a (moda de uma certa)

experiência da viagem gera textos literários que podem ocultar mais do que mostrar e prejudicar

mais do que beneficiar o destino, pois, conforme aponta Mendes (2009), a peregrinação surge como

um período liminar e de communitas, durante o qual se constrói uma comunidade desestruturada,

onde todos os membros são iguais, e existe a oposição ao modo como se vive quotidianamente em

sociedade.

Nesse sentido, julgamos significativo que aquele dos três textos ficcioniais lusitanos em que

Santiago surge explícitamente como meta do CS seja, ao mesmo tempo, onde menos se encena uma

cultura ou identidade galega em certo diálogo ou continuidade com Portugal (perfeitamente

detetada e detetável, com algum destaque, no observatório à cidade através das respostas dos

visitantes portugueses).

O fato de a “cultura do Caminho (de Santiago)” não se relacionar com nenhuma cultura

especificamente e de não pertencer a nenhuma sociedade concreta, apenas existindo na medida em

que se participa n/dela, pode ajudar a compreender que não é por a catedral que funciona como

meta ficar na cidade de Compostela, capital da Galiza, que a cultura compostelana e galega ganham

protagonismo nos textos e nas práticas relacionadas com o CS. Longe de se apropriarem do

produto, Compostela e a Galiza correm o risco de serem por ele invisibilizadas cada vez mais,

conforme cresce, paradoxalmente, a visibilidade (em termos de marketing) do Caminho como

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destino turístico.

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