fotografias - memórias reais e poéticas ficcionais - douglas velloso

53
SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL – SENAC MINAS EAD - Programa de Pós-graduação - Modalidade a Distância Especialização em Artes Visuais: Cultura e Criação Turma AVMG09 Douglas Velloso FOTOGRAFIA – MEMÓRIAS REAIS E POÉTICAS FICCIONAIS Belo Horizonte 2012

Upload: douglasvelloso

Post on 22-Jan-2016

91 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Por meio do presente estudo tem-se a intenção de potencializar, como um espaço artístico único, o binômio ficção-imagem; e a partir de propostas criativas trabalhar a relação entre narrativa e visualidade como registro da memória. A fotografia é tratada como potencializador criativo e também como linguagem visual. Os valores implícitos de seus fragmentos de tempo, lugares e transmissão também são alicerce da produção teórica e prática. Em tal estudo se busca uma tensão maior entre os campos da arte, com o foco na memória, pela relevância que esta tem com a linguagem visual da fotografia e com a linguagem narrativa do texto ficcional. No conjunto de textos e de imagens, trabalha-se a ligação entre memória e informação. Com um olhar poético a produção se orienta, tendo como resultado a leitura de imagens e textos. Assim, essa produçãoplástica e textual reunida compõe um único volume – apresentado por um quadro que precisa ser lido, onde as narrativas acompanham suas respectivas fotografias. Nele estão formalizados os textos e as imagens produzidas, a partir do processo criativo, estruturado nas relações entre texto e imagem.Dissertação apresentada ao Departamento de Educação a Distância do Senac Minas, como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Artes Visuais - Cultura e Criação. Orientado por Lilian Lacerda.

TRANSCRIPT

Page 1: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL – SENAC MINASEAD - Programa de Pós-graduação - Modalidade a Distância

Especialização em Artes Visuais: Cultura e CriaçãoTurma AVMG09

Douglas Velloso

FOTOGRAFIA – MEMÓRIAS REAIS E POÉTICAS FICCIONAIS

Belo Horizonte

2012

Page 2: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL – SENAC MINASEAD - Programa de Pós-graduação - Modalidade a Distância

Especialização em Artes Visuais: Cultura e CriaçãoTurma AVMG09

Douglas Velloso

FOTOGRAFIA – MEMÓRIAS REAIS E POÉTICAS FICCIONAIS

Dissertação apresentada ao Departamento de Educação a Distância do Senac Minas, como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Artes Visuais - Cultura e Criação. Orientado por Lilian Lacerda.

Belo Horizonte

2012

Page 3: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

V441D Velloso, Douglas. 1984- Fotografia: Memórias Reais e Poéticas Ficcionais/Douglas Velloso

Belo Horizonte, 2012. Senac Minas Gerais. 52 p.: il. Inclui Bibliografia

Orientadora: Lilian Lacerda

Dissertação – Educação a Distância (Especialista em Artes Visuais Cultura e Criação). Senac Minas, 2012. 1. Fotografia 2. Artes Visuais 3. Memória I. Título

CDU 502.3/77

Page 4: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Douglas Velloso

FOTOGRAFIA – MEMÓRIAS REAIS E POÉTICAS FICCIONAIS

Dissertação apresentada ao Departamento de Educação a Distância do Senac Minas, como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Artes Visuais - Cultura e Criação. Orientado por Lilian Lacerda.

Douglas Velloso, 12 de Novembro de 2012

________________________________________Professora Mestra Lilian Lacerda

Tutora/Orientadora

________________________________________Professor Doutor Alessandro Ferreira Costa

Professor convidado

________________________________________Professora Doutoura Roberta Lopes

Coordenadora

Page 5: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Em agradecimento à Deus pela saúde que me concede.

À Ana Normand, pelo incentivo gratuito, claro, amoroso e dedicado.

À Lilian Lacerda por nos fazer ainda mais focados em nós mesmos.

Page 6: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

LISTA DE FIGURAS

Figura 01 - Sophie Calle – The Blind (Painéis de texto, impressão fotográfica e impressões em

cromogénicos, de dimensões variadas. Museu Metropolitano de Arte de Nova York, 1986.

Disponível em http://artlifelovejess.blogspot.com.br/2011/05/blind-sophie-calle.html, acessado em

08/12/12.)

Figura 02 - Sophie Calle - Wait for Me (Impressão sobre papel e impressão fotográfica, 170 x 100

cm + 50 x 50 cm, Hasselblad Center at the Goteborg Museum of Art, Suécia, 2010. Disponível em

http://www.artnet.com/artwork/426211085/139228/sophie-calle-wait-for-me.html, acessado em

08/12/12).

Figura 03 – Sophie Calle - The other (Da série "Les Autobiographies", impressão fotográfica e

impressão de texto sobre papel, 170 x 130 cm + 27.56 x 39.37 cm, 1992. Disponível em

http://www.perrotin.com/Sophie_Calle-works-oeuvres-19750-1.html, acessado em 08/12/12).

Figura 04 - Sophie Calle - Room with a view (Da série "Les Autobiographies", impressão

fotográfica e impressão de texto sobre papel, 170 x 130 cm + 50 x 50 cm, Gallery Paula Cooper,

Nova York, 2003. Disponível em http://arttattler.com/archivesophiecalle.html, acessado em

06/12/12).

Figuras 05 a 09 - Leonilson - Cadernos de desenhos e anotações de 1981-1983 (Projeto Leonilson:

Sob o peso dos meus amores – exposição virtual, disponível em

http://www.itaucultural.org.br/leonilson/index, acessado em 06/12/12).

Figua 10 - Leonilson - Cadernos de desenhos e anotações de 1988-1989 (Projeto Leonilson: Sob o

peso dos meus amores – exposição virtual, disponível em

http://www.itaucultural.org.br/leonilson/index, acessado em 06/12/12)

Figura 11 - Paulo Bruscky – Envelopoema ( Intervenção em papel pardo, 24x34 cm, Coleção

particular do artista, 1979. Disponível em

http://www.bolsadearte.com/public/2011/realizados/dezembro2011/135.htm, acessado em

06/12/12))

Page 7: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Figura 12 - Paulo Bruscky – Xeroperformace (Intervenção em papel pardo, 24x49 cm, Coleção

particular do artista,1994. Disponívem em

http://pessoal.educacional.com.br/up/4380001/8084188/t207.asp, acessdo em 08/12/12)

Figura 13 - Paulo Bruscky – Titulo de eleitor cancelado (Fotocópia, intervenção, 06x04 cm,

Coleção particular do artista,1980. Disponível em

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_IC/Enc_Obras/dsp_dados_obra.cfm?

cd_obra=7078&cd_idioma=28555&cd_verbete=2995&num_obra=15, acessado em 08/12/12)

Figura 14 - Paulo Bruscky – Envelopema (Intervenção em papel pardo, 24x49 cm, Coleção

particular do artista,1989. Disponível em http://fluxus-zen.blogspot.com.br/2011/07/paulo-bruscky-

brasil.html, acessado em 08/12/12)

Page 8: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO – MEMÓRIAS DE UM RECOMEÇO ….................................................... 01

2. MEMÓRIAS EM PARES – SINÔNIMOS VISUAIS ….......................................................... 04

2.1 - Vulnerabilidade e memória por Sophie Calle …........................................................... 052.2 - Memórias bordadas de Leonilson …............................................................................. 082.3 - Paulo Brusky, um colecionador de memórias ............................................................... 12

3. PRETÉRITO PERFEITO POR SEUS REGISTROS DE IMAGENS ….............................. 16

4. CONCLUSÃO …......................................................................................................................... 30

5. REFERÊNCIAS …...................................................................................................................... 42

Page 9: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

RESUMO

Por meio do presente estudo tem-se a intenção de potencializar, como um espaço artístico

único, o binômio ficção-imagem; e a partir de propostas criativas trabalhar a relação entre narrativa

e visualidade como registro da memória. A fotografia é tratada como potencializador criativo e

também como linguagem visual. Os valores implícitos de seus fragmentos de tempo, lugares e

transmissão também são alicerce da produção teórica e prática. Em tal estudo se busca uma tensão

maior entre os campos da arte, com o foco na memória, pela relevância que esta tem com a

linguagem visual da fotografia e com a linguagem narrativa do texto ficcional. No conjunto de

textos e de imagens, trabalha-se a ligação entre memória e informação. Com um olhar poético a

produção se orienta, tendo como resultado a leitura de imagens e textos. Assim, essa produção

plástica e textual reunida compõe um único volume – apresentado por um quadro que precisa ser

lido, onde as narrativas acompanham suas respectivas fotografias. Nele estão formalizados os textos

e as imagens produzidas, a partir do processo criativo, estruturado nas relações entre texto e

imagem.

Palavras-chave: Fotografia. Memória. Criação. Ficção.

Page 10: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

ABSTRACT

Through the following study the intention is to potentialize, as a unique artistic space, the

binomial ficction-image; as from criative proposals to work the relation between narrative and

visuality as a register of memory. Photography is treated as creative potentializer as well as a visual

language. The implicit values of its fragments of time, places and transmission are also the

foundation of theoretical and practical production. The study seeks a greater tension between fields

of art, with the focus on memory, by the relevance that it has with the visual speech of photography

and the narrative speech of the fictional text. On the set of texts and images, the study presents the

connection between memory and information. The producion is oriented by a poetic look and has as

its results the reading of images and texts. Therefore this plastic and textual production all together

composes a single volume presented by a chart that must be read, which the narratives are followed

by their respectives photographs. On it the texts and images produced are formalized through the

creative process structured in the relations between text and image.

Keywords: Photography. Memory. Creation. Fiction.

Page 11: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

1. INTRODUÇÃO

Prestando atenção nas referências visuais que sempre nos cercam, a intenção dessa proposta

de trabalho se processou por meio da apropriação de algumas dessas referências cotidianas para se

criar um inventário de memórias. Para incorporar fragmentos de tempo, a primeira referência de

linguagem levantada como objetivo é a linguagem da fotografia, que abre o campo para múltiplas

associações e que transita pelos mais diversos campos – deixando sempre seus rastros visuais,

temporais e pessoais, por onde quer que caminhem. O outro foco escolhido nessa apropriação, para

dar vazão à criatividade e deixar coeso esse inventário de memórias, é a linguagem narrativa

ficcional – esse pilar é que está ligado à criatividade, à produção material das ideias, à pessoalidade

da proposta em questão, à poética que pode ser contemplada e lida.

A base dessas duas linguagens está na memória, carregada de fragmentos de imagens reais e

mentais, que estão definidos por um tempo particular e específico. Estão ali guardadas lembranças

esquecidas, lembranças gravadas que abrem para infinitos braços de leitura – e como a imagem se

tornou fundamental à comunicação, da mesma forma a criação se fez fundamental para a narrativa

textual, escrita. Essa escrita se fundamentou e cresceu em importância, se desenvolvendo por

séculos, mas nunca se distanciando por completo do significado da imagem. Escrever fez o homem

marcar em um suporte a sua fala, a sua vontade, seu alfabeto de valores. A imagem e a escrita abrem

para que registremos a nossa memória para o futuro, definindo aquele espaço de tempo como

importante para o seu portador e todos os envolvidos.

O conceito de memória, dentro da proposta de trabalho, está ligado ao conceito criativo da

conservação da imagem, uma criatividade que, ao mesmo tempo em que ilustra um feito, eterniza

uma homenagem, uma ideia. A memória entra como instrumento fundamental de união social, um

pilar que sustenta o pretérito – sendo sua guarda realmente efetiva, não abrindo brecha para o

isolamento. Pode se colocar a palavra memória no singular pela singeleza e no plural pela força

narrativa do ontem – e a mesma pode trazer para o seu entorno diversos sinônimos, pode definir,

pode simplesmente evocar, pode reconhecer e se deixar conhecer, pode esconder, pode remotar. A

memória se conceitua ambiciosa, não importando se apresentada como de trato íntimo ou coletivo –

acontecimentos sempre são referências marcantes, tornando dados cognitivos como peças

1

Page 12: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

facilitadoras de conhecimento. A memória está sempre em movimento, disparando os sentidos

através do tempo – resignificando todo o seu entorno, inclusive as verdades cravadas no pretérito.

A fotografia, como linguagem cotidiana, também cresceu em significados, foi democratizada

e ganhou corpo para ser referência de registro individual e coletivo, o que abriu espaço também

para ser suporte artístico, pelas mãos de uma vanguarda que recebeu a captação do real como

exemplo da velocidade contemporânea. Da mesma forma, como feito com a imagem real da

fotografia, as vanguardas também trabalharam a linguagem narrativa como meio de divulgação

artística, atrelando sempre esses dois focos ao desejo criativo ligado mais à pessoalidade do artista,

aos seus anseios, descobertas e correlações. Os movimentos de vanguarda europeus eram aqueles

que alicerçavam a cultura de seu período, estando, inclusive à frente desse tempo, segundo seus

manifestantes. Deste modo a fotografia se legitima como espaço particular da memória, um

produto social que referencia o fragmento do tempo, que eterniza o momento de leitura visual das

nossas ações. É o primeiro meio funcional de registro que une o homem à máquina, através do uso

da representação. E, dentro de todo esse contexto está o valor da lembrança, um valor carregado de

certo esquecimento, de certa nostalgia – mostrando que, pela memória, os fragmentos de lembrança

constitutivos estão definidos por um tempo.

O objetivo da proposta de conclusão de curso se alicerçou primeiramente na linguagem da

fotografia, através do disparo recorrente que a memória produz, no qual a fotografia se abre como

suporte de experimentação; e é exatamente nesse foco que o presente estudo se sustenta,

principalmente na implicação do processo de criação de realidade. Em segundo lugar, como

objetivo funcional, a proposta é de se aliar esse aspecto fundamental da fotografia com a ficção

literária, com a memória histórica desse fragmento de espaço – e todos os focos de motivação do

trabalho aparecem no resultado final exposto, apresentando o valor pessoal inserido nesses tópicos

trabalhados em conjunto. E esse valor pessoal está explícito através da linguagem da fotografia;

através do casamento dos aspectos fundamentais da fotografia com as da ficção literária, aspectos

estes sempre ligados à memória histórica desse fragmento de espaço.

Recolher imagens fotográficas com registro pessoal e individual de passado, que sejam

significantes para seus portadores, fez com que o trabalho de apropriação desse fragmento pessoal

abrisse espaço para a criatividade. Essas imagens dispararam a criação de narrativas ficcionais,

2

Page 13: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

deixando explícito um tempo específico que se presume existir naquela imagem estrangeira, sem

mesmo saber sobre o potencial de verdade que aquela imagem dispara. Esses textos se apresentam

através de uma linguagem ficcional sobre o que a imagem produziu como motivador visual e

criativo, e se tornando uma referência textual e sobre aquela imagem específica.

Dessa maneira, o norte da pesquisa passa pela relação com o tempo dos suportes escolhidos

e das palavras criadas sobre eles, a efemeridade e as suas respostas através do tempo; o espaço da

imagem apropriada, dos seus respectivos textos e sua transmissão; o rastro, os fragmentos e os erros

– e como objetivo manter equilibrado as proposições plásticas com a produção escrita, sempre

embasada na teoria, em referências já legitimadas e criadoras de conceitos sobre memória, arte,

poesia, fragmento, tempo e narrativa. A teoria sobre o assunto estará bem embasada por nomes

como Boris Kossoy, Roland Barthes, André Bazin, Susan Sontag e Philipe Dubois; referências para

suportar todo o conteúdo da proposta pessoal. As referências visuais sobre a memória, a escrita e a

fotografia segue como objetivo de pesquisa; através da apresentação de trabalhos poéticos e de

extrema intimidade de Sophie Calle, do objetivismo e da simplicidade de Leonilson e da liberdade

criativa que suporta os arquivos de Paulo Bruscky. O objetivo dessa proposta é justamente usar

desse espaço múltiplo que a imagem fotográfica oferece, e trabalhar e modificar essa realidade

interior da fotografia. E a definição do tema objeto de estudo, após abrir as colocações sobre o

assunto, se define como Fotografia: memórias reais e poéticas ficcionais.

3

Page 14: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

2. MEMÓRIAS EM PARES: SINÔNIMOS VISUAIS

O século XX se volta em favor da visualidade real, fazendo-a crescer como fator de

importância significativa, alicerçada pelo desenvolvimento da indústria gráfica e sua melhoria nos

meios de impressão – exatamente ao mesmo tempo que se abre uma crise de representação

crescente e discutida no meio das artes. O surgimento de fotos aliadas ao texto faz a divulgação

mais atraente, democratizando o espaço de comunicação e sendo referência da velocidade que a

comunicação passara a exigir. Dentro do espaço das artes visuais, a fotografia se legitima e surge

como documento imagético de sentimento sobre um fragmento de tempo – e a palavra, que não

pode deixar de se expressar nesse mesmo nicho, torna-se o próprio documento pessoal de próprio

punho. Essas duas referências, quando ligadas a desejos de criação e arte, sempre trocam de pares,

como em uma dança que marca a memória de seus idealizadores/proprietários. Cortázar abre a

questão de forma clara, deixando evidente o espaço que a narrativa e a fotografia têm em comum –

e também o espaço diferenciado de experimentações pessoais que estas abrem:

Enquanto no cinema, como no romance, a captação dessa realidade mais ampla e multiforme é alcançada mediante o desenvolvimento de elementos parciais, acumulativos, que não excluem, por certo, uma síntese que dê o clímax da obra, numa fotografia ou num conto de grande qualidade se procede inversamente, isto é, o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas que também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie deabertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto. 1

A ampliação do espaço e do tempo permitiu com que o cotidiano fosse expandido e as

relações facilitadas, por uma rapidez temporal/tecnológica que refletiam o desejo social do homem

de se manter presente em todos os lugares, em todas as formas e por dentro de todas as novidades.

As articulações extremamente novas, advindas da modernidade, foram velozmente apropriadas

pelos artistas para diversas formas de utilização, passando pela experimentação, pela mimese, pela

leve interpretação visual do cotidiano, pela intelectualidade necessária, pelo impacto social, pela

representação caótica pura e simples, pela montagem como conceito, etc. Deste modo, a classe

artística abraçou essa busca de mais referências que desafiassem a intelectualidade e que ocupasse o

1 CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.151-152.

4

Page 15: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

novíssimo espaço aberto para se denominar também uma linguagem artística. E muitos foram os

pares criativos que se utilizaram da individualização da linguagem narrativa e do fragmento

conjunto de espaço e tempo pessoal inerente à fotografia para serem referências de suas propostas

artísticas.

Como referências artísticas que alicerçam a pesquisa em questão, as escolhas de pares

passou por quem conseguiu deixar claro tanto a força da imagem e da linguagem narrativa como a

importância documental e artística, referências que trabalham a intimidade através da fotografia

e/ou da escrita. Sophie Calle, Leonílson e Paulo Bruscky foram os escolhidos para o

aprofundamento visual como referência artística. Sophie Calle pelo uso constante do conceito de

intimidade, da memória exposta de forma forte e sutil, tudo ao mesmo tempo. Leonilson pela

simplicidade construtiva, formal e literal de suas ideias bordadas em poéticos fragmentos de texto.

Paulo Bruscky pela audácia multidisciplinar no trato com a linguagem narrativa e a imagem

fotográfica, além de guardar e preservar junto consigo parte da memória da arte que lhe agrada.

2.1. Vulnerabilidade e memória por Sophie Calle

A artista francesa Sophie Calle (1953) propõe suas narrativas, estimula a ficção fazendo uso

do leitor e de sua intimidade como referência. O conceito de memória sempre esteve presente em

seus trabalhos – as apropriações, as intimidades expostas, os relatos, as experiências individuais, as

fotografias cotidianas se tornam fundamentais para construção de alguns de seus detalhados e

meticulos planos de trabalho. O seu uso de texto, narrativo ou ficcional, é uma incitação que

provoca o seu espectador construir uma resposta, deixando margem para vários pontos de foco e

diferentes interpretações. Quando a narrativa se torna apenas fragmento, a interpretação é colocada

nas costas do leitor com uma carga maior. Calle usa dessa força de forma diferente, transferindo de

forma correta e dosada a sua carga para seus leitores, colaboradores - pois textos e as imagens de

Sophie Calle são indissociáveis quando apresentados em conjunto. Como referência, abro a

proposta The Blind, datada de 1986 e que nos mostra essa relação entre imagem fotográfica,

memória e narrativa, apresentada por Calle de forma poética.

5

Page 16: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Figura 01 - Sophie Calle – The Blind

Nessa proposta, Calle entrevistou pessoas cegas e solicitou que estas definissem o belo e

qual o exemplo que seus entrevistados tinham do conceito de beleza. As respostas apropriadas por

Calle foram acompanhadas da fotografia em close de seus respectivos, em preto e branco sobre

moldura barata. Calle criou também adaptou imageticamente as referências citadas pelos cegos e as

expôs, de forma simples e didática. Nesse projeto as imagens e fotos nos deixam a mercê da

completude de um texto, de um manual, de um ponto de partida para percorrer – de forma poética a

obra passeia por diversos meios de comunicabilidade. Sophie trás aos seus leitores/espectadores,

formalmente, seus relatórios sobre essas ações; por meio de registros fotográficos, de registros em

narrativa e da memória sobre as situações que ela mesma se propôs investigar. Nessa proposta The

Blind, Calle trata a solidão de forma poética, criando registros memoriais tão significativos quanto

os registros imagéticos, usando de toda a exploração dos sentidos – inclusive pelo uso da memória.

Existem diversas propostas de Sophie Calle ligando a linguagem fotográfica com a escrita, e entre

6

Page 17: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

elas estão os trabalhos Wait for Me (2010), Room with a view (2003) e The other (1992) onde a

artista nos mostra um pedaço de sua intimidade através de uma foto pessoal ligada a uma narrativa

de memória sobre o espaço de tempo específico em que aquela imagem se originou – são trabalhos

que seguem a mesma linha de construção intimista, de uma suavidade e de um posicionamento

poético tão singelo que faz com que a obra tome um tempo maior do espectador que deseja por

completo absorvê-la.

Figura 02 e 03 - Sophie Calle - Wait for Me (2010) e The other (1992)

7

Page 18: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Figura 04 - Sophie Calle - Room with a view (2003)

2.2. Memórias bordadas de Leonilson

Associando o conceito da precariedade dos suportes com o conceito da narrativa

esteticamente pessoal, o artista cearense José Leonilson (1957-1993) aparece como um testemunho

dessa troca entre o eterno e o status que ele traz para a simplicidade do suporte cotidiano e frágil,

mas incrivelmente real. O trato com a narrativa se faz presente na simplicidade com que os efeitos

poéticos de Leonilson chamaram a atenção – tanto pela força visual de seus trabalhos quanto pela

difícil classificação do artista dentro de um único meio produtor da arte. Leonilson recolhe com

propriedade, do cotidiano, as palavras que lhe servem como alicerce comunicativo para traçar linhas

8

Page 19: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

poéticas - cada proposta criativa de Leonilson se sustenta como um registro íntimo e irônico, um

mergulho pessoal ao interior. Seus bordados, suas colagens, cadernos, gravuras, composições e

desenhos, cercados de palavras fortes, apresentam a busca do artista pela harmonia, uma relação

com a memória com o objetivo de fazer o sublime se aliar ao novo, passando pelos conceitos do

gesto e da individualidade. São orações poéticas modernas em linhas de cor – reiterando a arte, ao

mesmo tempo, de forma singular e precária.

Leonilson abre em suas propostas um discurso introspectivo, através de referências artesanais,

memoriais e temporais – uma observação de si mesmo, registrada em códigos, signos e palavras que

falam em primeira pessoa. Valorizava a origem, deixava a vida influenciar suas escolhas artísticas.

Lisete Lagnado, primeira pesquisadora do artista, encontra o espaço exato da introspecção na obra

de Leonílson, afirmando que:

Leonilson – discípulo de um ideal romântico malogrado – foi movido pela compulsão de registrar sua interioridade a fim de dedicá-la aos objetos de desejo. Esse legado, enunciado por um 'eu' cuja expiação é incessante, reavalia a subjetividade após as experiências conceituais. Isto é, desgastada a reflexão sobre o destino da arte que teve a metalinguagem como ápice, a obra volta-se neste momento para o questionamento do sujeito.2

Leonilson é um artista que conseguiu imprimir um estilo próprio para seus trabalhos, nos

quais não existe um foco específico, um tema único ou apenas uma crítica – seu trabalho está no

todo cotidiano. Como referências de uso da escrita e da imagem da memória, Leonilson faz de seus

cadernos de anotações preciosos meios de introspecção, apresentando o pensamento do artista

através de seu próprio punho, através de sua própria imagem como artista. Como recurso de

memória, as anotações além de ser objeto de estudo pessoal, são incrivelmente plásticas e

imagéticas. São dois cadernos pessoais do artista escolhidos como referência, os Cadernos de

desenhos e anotações de 1981-1983 e os Cadernos de desenhos e anotações de 1988-1989.

2 LAGNADO, Lisete. Leonilson: São tantas as verdades. DBA/Companhia Melhoramentos: São Paulo, 1998 , p. 879

Page 20: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

10

Page 21: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

11

Page 22: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Figuras de 05 a 09 - Leonilson - Cadernos de desenhos e anotações de 1981-1983

Figura 10 - Leonilson - Cadernos de desenhos e anotações de 1988-1989

2.3. Paulo Bruscky, um colecionador de memórias

Quando a memória é o foco, sempre se espera que essa esteja protegida, passada para um

suporte rígido onde possa readquirir sentido. Paulo Bruscky (1949) assim o fez, criando um arquivo

de memórias de substancial importância, pois seu acervo pessoal de guardados artísticos reflete não

somente a sua história pessoal, mas a história da riqueza da arte brasileira, garimpada e guardada de

forma segura em seu atelier em Recife. Bruscky transforma o estável, o cotidiano e abre a arte para

fora, deixando claro que esta precisa ser vista. Bruscky tem a capacidade de poetizar o objeto já

pronto, tirando dele a precariedade e colocando foco – mostrando que a arte pode se abrir em

qualquer espaço. O próprio Bruscky se afirma, mostrando o seu papel como propositor artístico:

É claro, é uma utopia, mas arte existe em todo canto, na maneira de ver e não de fazer. Eu sei que é uma utopia, mas o artista é muito necessário, infelizmente ele tem que agir, porque as pessoas em grande parte não sabem ver. Então, o artista tem obrigação de mostrar. A arte existe independente do artista.3

3 BRUSCKY, Paulo. Entrevista por MARSILLAC, A.L.M., Porto Alegre, 2010.12

Page 23: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Dentro desse contexto de ação da arte, do espaço que esta precisa para se mostrar, Bruscky

aparece com o conceito da circularidade como fundamental – a poética precisa aparecer e passar de

mão em mão, para ser reconhecida e com valor. Esse valor é encontrado no retorno que o artista

consegue se propondo a deixar sua criação circular, ser consumida, lida, modificada, ser

provocadora. Como referência dessa arte que ensina a ver, obras como Xeroperfomance (1984),

Envelopoema (1989) e Título de Eleitor cancelado (1980) mostram essa interferência

particularizada sobre o que já foi visto, sobre o privado, sobre aquilo que circula – além de

questionar os meios em que faz parte, principalmente o meio artístico desgastado pelo

engessamento ocasionado das regras e o espaço político opressor em que o artista estava inserido.

Paulo Bruscky manipula ludicamente o real, articulando limites entre todas as formas de discurso –

legitimando as relações, as trocas críticas, físicas e funcionais.

Figura 11 - Paulo Brusky – Envelopoema (1979)

13

Page 24: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Figura 12 - Paulo Brusky – Xeroperformace (1984)

Figura 13 - Paulo Brusky – Título eleitoral cancelado (1980)

14

Page 25: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Figura 14 - Paulo Brusky – Envelopoema (1989)

Paulo Bruscky se apropria da linguagem da carta, do envelope, do selo, do carimbo para

tratar a questão cotidiana da circularidade – sempre buscando novas maneiras de ver a experiência

artística em todo o espaço, subvertendo a arte para que esta se poetize em detalhes angariando força.

Sua narrativa está no fragmento de texto, no signo forte da letra – não somente como imagem, mas

também como memória, dessacralizando a arte e colocando essa próximo à intimidade do artista, do

seu pensamento e principalmente dos seus ideais e ações. Uma ampliação da escrita, onde qualquer

forma reconhecida por ter um signo comum tem potencial para ser vista de outra forma, de forma

artística, de uma forma sem regras – sempre apropriando do cotidiano e colocando nele sentido.

Suas interferências são como uma assinatura de um reconhecedor, um curador dando veredicto e

inserindo um espírito investigativo à arte.

15

Page 26: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

3. PRETÉRITO PERFEITO POR SEUS REGISTROS DE IMAGENS

Pretérito, palavra que reflete o ontem, momentos que deixaram marcas para serem

lembradas – fragmentos, pedaços de memórias guardadas em gavetas, em envelopes, em fotografias

recortadas, em histórias que nos definem como personalidades. Termo que se refere claramente ao

tempo – e à amplitude que é sinônimo deste - ligado a uma ação significativa de registro.

Pretérito [pre.té.ri.to adj (lat praeteritu)]: Que passou; passado. sm (Gram) Tempo verbal que exprime ação passada ou estado anterior; passado. P. imperfeito: tempo que indica uma ação passada, em relação ao presente, e que estava se exercendo quando outra se realizou: Estudava, quando ele entrou. P.-mais-que-perfeito: tempo que exprime ação anterior a outra, que já é passada no momento em que se fala: Ele partira, quando eu cheguei. P. perfeito: tempo que exprime ação passada e liquidada: Ele viajou. Futuro do p.: tempo que substituiu o antigo «condicional», e em que o processo indicado como posterior a um momento do passado é anterior ao momento em que se fala. Refere-se comumente a processos que não chegaram a realizar-se: Morreria se não viesses.4

Como a linguagem artística, o pretérito tem relações com o perfeito, o imperfeito e o mais

que perfeito - a arte se encontra dentro do homem como parte de sua memória, como particular fator

de registro do pretérito através da sensibilidade dos sentidos. Nesse espaço específico é que a

fotografia toma corpo, como referência de um registro que não se mostrava meramente

interpretativo, mas também documental e fragmentar da realidade. E a fotografia é esse registro

denunciante do passado, um meio de registro transformador que tinha como objetivo eternizar essa

ebulição das transformações sociais advindas da modernização cada vez mais crescente. A imagem

do passado sempre é um objeto que desperta atenção pelo seu sentido de representatividade, por

abrir um fragmento da história pretérita e, principalmente, por poder ser usada – a imagem real pode

muito bem ser descartada, pode envelhecer conjuntamente com o seu propositor ou dono, poder

perder a nitidez, pode esconder, pode suportar, pode criar expectativas sobre, pode ser uma

miniatura de algo ainda maior, pode ser pessoal e intransferível. Susan Sotang afirma essa

importância da maleabilidade que a imagem fotográfica abre, sendo objeto até mesmo de

apropriação pela sua conexão com o passado:

4 MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Editora Melhoramentos Ltda, São Paulo: 2008.16

Page 27: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. É envolver-se em uma certa relação com o mundo que se assemelha com o conhecimento – e por conseguinte com o poder. (...) A fotografia brinca com a escala do mundo, pode ser reduzida, ampliada, cortada, recortada, consertada e distorcida. Envelhece ao ser infestada pelas doenças comuns aos objetos feitos de papel; desaparece; valoriza-se, é comprada e vendida; é reproduzida. 5

Essa apropriação da imagem fotográfica é o que interessa para a sequência desse estudo,

pois é dessa apropriação que a criatividade vai se valer – existe a clara necessidade de a imagem

disparar o desejo de se colocar no papel uma estória, com cores e sem h, para deixar claro que os

textos criados não passam de uma ficção sobre aquilo que desperta a fotografia como fator de

registro pessoal. As ficções necessitam também seguir todo esse percurso de valorização do

passado, precisam ser fatores de significação de memória, precisam casar com esse envelhecimento

da fotografia, precisam estar doentes em conjunto, precisam deixar marcas para suportar o seu

receptor. Precisam inclusive ser ousados, para receber um desejo de foco. É evidente que erra-se

quando se ousa escrever. E quando se escreve de outras maneiras, usando da estética e apropriando-

se das imagens, a ousadia cresce ainda mais – as pautas de um velho papel podem sim ser linhas do

horizonte, da mesma forma que palavras podem se tornar imagens compositivas de uma criação.

Gilles Deleuze fala dessa relação entre criação e troca, na qual “o artista é criador de verdade, pois a

verdade não tem de ser alcançada, encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada”.6

Seguindo o objetivo da pesquisa, foram apropriadas diversas imagens de memória durante

todo o processo criativo; fotografias que deixavam claro a passagem do tempo e da importância das

histórias que fazem parte daquele universo representado em um fragmento, uma verdade criada e

armazenada em imagens 3x4, por exemplo. Para a proposta criativa em questão, um bom número de

fotografias de identificação foi conseguido, principalmente imagens da época da infância – o que

traz à tona a memória e o que faz sentido essas permanecerem guardadas por tantas décadas, pois ali

está um rosto conhecido e ao mesmo tempo distante, diferente, preto e branco. Com as quatro

imagens antigas e infantis selecionadas, a proposta criativa circula por uma narrativa que traz à tona

a época de infância novamente, do ponto de vista de um dos retratados – sempre relacionado à

memória e à passagem do tempo e suas consequências.

5 SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Trad. Joaquim Paiva. Rio de Janeiro : Arbor, 1981, p.04.

6 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Cinema 2. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990, p. 179.

17

Page 28: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Foi mesmo ontem que eu estava sentado

naquela árvore com os pés a balançar.

Estávamos em quatro e nos alimentávamos

de goiabas brancas e mangas-rosa. Tínhamos

pipas e peões que rodavam no chão e no céu.

Gostávamos de chuva quando a tarde

começava a cair. Líamos histórias e

inventamos outras muitas. O céu ficava

laranja e as nuvens se tornavam um cinza

quase azul. Jogávamos e perdíamos. Nossas

mãos balançavam e se encontravam quando

fazíamos festa nas noites de frio. Foi ontem

mesmo. Meus joelhos eram fortes, os mais

fortes dos quatro. Jogávamos e perdíamos.

Hoje eu jogo sem saber se consigo perder.

A narrativa que fora criada para acompanhas as fotografias é particular, saudosista e foca no

relacionamento e suas dificuldades e/ou facilidades – o verbo jogar entra como ligação entre

pretérito e presente, sobre a dificuldade de se relacionar que foi crescente com a passagem do

tempo. E as fotografias que dão origem ao texto mostram, literalmente, a identidade infantil e

distante do presente dos envolvidos – a memória do passado passa pelo encontro das quatro

identificações e reconhecimento da importância desse pretérito na formação dessa identidade adulta

e atual dos protagonistas. Dentro dessa mesma temática, três fotos apropriadas têm um mesmo

personagem infantil, nas quais duas dessas imagens fazem par e estão em perfeito estado, sempre

em preto & branco com uma mudança leve de pose do fotografado e seu telefone; são imagens

maiores, onde se percebe um esmero maior do fotógrafo com o resultado final. A terceira imagem –

que é cópia de uma das do par inicial – se apresenta como uma figura bem mais desgastada, tem

perdas nos suporte e está recortada toscamente – é a única do conjunto que tem tons de cor, um tom

fraco, aquarelado, destoando do conjunto. A proposta de criação narrativa desse trio de imagens

18

Page 29: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

passa pelo conceito de desgaste, de mudança pelo tempo – da falsidade por trás da cor real, pela

perda da sensibilidade e do correto com o passar do tempo. A memória, no texto criado, está em um

passado que poderia ser correto, poderia seguir com esmero, mas que seguiu por outro campo e se

desgastou, se entristeceu e se manchou com cores fáceis em demasia.

Fui criado desde muito novo por duas mães. Uma

branca e outra velha, que só usava branco. Minha

cabeça era redonda e negra, com uma marca

acima da orelha direita - uma cicatriz discreta.

Roubava doces, bolsas, chaveiros e placas

amarelas. Sinalizava esquinas, jogando água em

vidros de gente pouco importante. Comi fogo

pelas noites e pão dormido de anteontem. Entrei

em contrário, fechei os olhos e roubei um

cachorro que nunca cresceu. Comia pouco, sorria

menos ainda. Cresci e tive pés velozes, bem

marcados. Corria muito, sorrindo menos ainda.

Roubei tecido com detalhes em flor. Já podia ser

pego, apesar de discreto. Uma mãe morreu e

mesmo assim não parei. Organizei-me junto aos

meus, parei de correr e só pulava quando o trem

passava na minha carreira. Envenenei-me pelo

ócio e pela vadiagem, criando cores no cabelo.

Hoje enxergo somente a cor de uma farda e vejo

em meu rosto outras cicatrizes, nada discretas.

Minhas unhas estão negras e meus pés rápidos

hoje não se movimentam mais. Perdi a segunda

mãe pelo juízo. Em meio às grossas correntes de

ferro presas ao meu pescoço, escondo o medo de

uma farda que se move de um lado para o outro.

Medo que eu tenho das cobras que comeram o

meu cão que nunca cresceu. Medo que eu tenho

de nunca mais querer ver a noite outra vez.

19

Page 30: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

O objetivo criativo dessa proposta é perceber o quanto a nossa imagem pode se desgastar

com o tempo, e como nossa memória pode se influenciar e recortar o pretérito com base no presente

– mesmo que possamos pintar o passado, ele se mantém real e reflete todo o medo que assola o

presente. A memória pode se influenciar através dessa diferença entre o ontem e o hoje, pode

reavaliar percursos e perceber os erros dentro da linha do tempo - o conceito de diferença está

intrinsecamente ligado à transgressão, à inexatidão, controvérsia, prejuízo, incômodo, transtorno.

Em duas das imagens apropriadas, a representação familiar se apresentara muito forte, pelo signo da

figura masculina como pilar dentro da sociedade, tanto como provedor quanto como engrenagem de

seu tempo. O tempo também modifica essas engrenagens, a memória deixa marcas também em

quem observa de fora – e esse foi o motivo escolhido para iniciar a ficção sobre a fotografia em

questão. O alicerce criativo passa por esse ponto de vista de quem narra alguém que é de fora, mas

que carrega uma intimidade sobre o seu descrito, sobre suas atividades cotidianas, suas memórias de

passado, suas amizades nunca esquecidas e sobre a sua rotina familiar. A casa é o elemento de

conversão, o elemento de silêncio, de velhice, de introspecção – mas onde cabem todos que se

fazem especiais na memória longa de tempos vividos.

Ele era calado, quase não se notava a sua presença. Abrigava na sombra das filhas e dos netos a

sua imensa felicidade. Chamava a atenção poucas vezes, gostava de cães e de limpeza. Tinha um

bom corpo e uma mulher fiel, que lhe deu a força que precisava para poder descansar. Não era

20

Page 31: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

jovem, e nem velho demais para ter certeza da hora. Era um homem que, sem pretensão de ser

mais do que era, criou uma família. Criou também em sua casa grande o hábito de manter fechadas

as portas, deixando sempre aberta às grades do jardim. E quando abria a porta da frente, era Natal.

Amigos antigos se misturavam a netos cada dia mais velhos. E fortes. Tão fortes que mal percebem

a fraqueza que é estar só. Mas quando tiverem eles seus filhos vão perceber o momento certo de

se calar. E o bisavô verá de cima que as portas sempre estarão abertas a quem conseguir enxergar

além do jardim.

A proposta narrativa é particular, intimista pelo trato familiar e a narrativa de fora para

dentro mostra a existência de um espaço aberto, de diálogo – ao mesmo tempo em que trata da

introspecção. Dentro desse mesmo nível familiar e pessoal, mas com um foco antônimo ao último

citado, duas fotografias de uma mesma personagem foram escolhidas para ser um par e serem

usadas em conjunto no processo criativo – as imagens abrem para busca de uma identidade

feminina distanciada pelo tempo infantil. As fotografias foram as primeiras a serem trabalhadas

como uma carta formal, realista e de trato íntimo pelo passar do tempo, deixando evidente que a

memória está presente em um passado que não existe mais e que questiona o presente. Ao mesmo

tempo em que a imagem é plástica, a narrativa insere elementos de erro e de tristeza que passam a

aparecer nas imagens – como se a linguagem fragmentar da fotografia pudesse captar não somente

o fragmento do tempo real, mas também a indiferença e o descuido reconhecidos em um olhar. De

temática familiar, a narrativa criativa aborda principalmente o lado humano por trás da memória – e

mostra de certa forma, que a escrita é uma linguagem de mais fácil exposição, pelo distanciamento

das duas pontas envolvidas no diálogo.

21

Page 32: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Minha querida filha. Dessa vez espero que você ultrapasse as primeiras linhas do papel. Escrevo a você

para que se lembre de seu pai. Faz vinte anos que você deixou a casa que nunca lhe acolheu. Uma frase

que você mesma ainda deve dizer. Esse lugar nunca me acolheu. Faz vinte anos que você deixou seu pai,

marcada pela dor da incompreensão. Seu pai é um homem rude, machista e infiel. Você sabe que tudo

na vida dele foi um mar de rispidez e ignorância. Sim minha filha, ignorância. Seu pai não teve a

oportunidade de ver nada nascer, nem sequer o que ele mesmo plantava. Sua única ordem era o

cansaço. Sua única certeza era que o sol era o seu relógio. E hoje ele nem sequer pode enxergar o

tempo. Sua única diversão é a bebida, seguida por gritos de ordem. Minha filha, seu pai não é um doente

ou um escravo da cegueira. Ele é apenas incapaz de mudar de opinião. Nem você, a coisa mais perfeita

que ele teve nas mãos, fez isso mudar. Sei que as últimas palavras dele a você hoje são cicatrizes; que

você percebe no espelho, quando chora. Minha filha, não peço a você que apareça ou que escreva

palavras falsas em um papel qualquer. Peço apenas que você se lembre do seu pai sem mágoa ou

rancor. Apenas busque perdoá-lo, lembre que ele precisa de ajuda, e não de acusações. O tempo já lhe

mostrou as consequências, as reações. Seja mais inteligente do que ele e não deixe para resolver essa

mágoa quando seu pai se for e você ser inundada pelo remorso. Lembre-se do seu pai, por o momento

de um instante. Reze por ele, se ainda acreditar em Deus. Quanto a mim, não se preocupe. Estou feliz

em perceber que tudo que passei me faz hoje perceber que os erros que cometi não se repetirão nunca

mais. Mesmo porque hoje já não me resta tanto tempo assim.

22

Page 33: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

O conjunto de imagens atrelado à produção ficcional criativa, nessa proposta, leva o

espectador a criar conexões com a fraqueza e imperfeições do ser humano, mostrando que a

fotografia também pode ficar marcada com o tempo que antecede a ruptura, a separação – fixando a

memória do portador no tempo em que o equilíbrio ou a inocência dominavam. A memória das

relações humanas está impressa em papel fotográfico por muitas décadas, sendo esse um dos focos

mais evidentes da ação fotográfica – o de manter eternizado um encontro ou um momento

específico, com outros escolhidos para tal. A próxima produção apresentada tem como referência

visual a fotografia que registra o encontro de duas garotas que aparentam ter uma proximidade real,

pois o resultado revelado é um abraço natural entre as fotografadas. Dentro dessa temática intimista,

a produção ficcional trata dessa aproximação fraternal entre duas do mesmo gênero, tratando

sempre de todo o percurso de vida e da memória retida dessa aproximação - os erros, os acertos, os

preconceitos e as acomodações de uma história longa de vida descrita de forma poética e simplista

Somos diferentes demais, mas temos a

mesma força. Temos por equilíbrio a

família, a resistência, a solidão e a

saudade. Erramos em demasia, por

querer abraçar o mundo. Somos irmãs,

companheiras, trabalhadoras. Guiamos

caminhos diferentes, mas temos a mesma

dificuldade em dizer não. Isso porque

somos apenas humanas, que buscam

sempre manter o exemplo naquilo que

propomos e nem sempre são valorizados.

Temos filhos, netos e cansaço de esperar.

Agradecemos toda chuva que cai e nunca

nos esqueceremos das nuvens do

passado. Somos caluniadas por sermos

simples e apedrejadas por sermos

egoístas. Mas não somos egoístas, muito

menos simples. Somos mulheres que

temos as cicatrizes dos erros em nossa

23

Page 34: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

face. Mantemos um disfarce apenas para

não incomodar. Somos irmãs até na falta

de jeito com as coisas boas e com as

cores claras demais. Não queremos saber

o que sentimos, escondemos qualquer

demonstração de afeto. Mas somos

irmãos na vontade de fazer tudo aquilo

que um dia foi escrito para nós

obedecermos. E cumprimos ordens.

Vemos a morte como meio e as lágrimas

como fim. E cumprimos ordens de voltar

para fazer tudo assim novamente.

A ficção criada mostra não somente a aproximação e as evidentes afinidades disparadas pela

imagem fotográfica; mas também foca toda uma linha histórica muito comum à figura feminina – e

todo esse furacão de mudanças e certezas por elas alcançado. O uso da palavra disfarce foi

objetivado por aliar a função da fotografia com a função temática da narrativa, criando um ciclo que

evidencia que a fotografia e a posição social escondem algo muito maior por trás do disfarce muitas

vezes solicitado para ambas ser aceitas como perfeitas. Outra narrativa proposta criativamente após

o recebimento de uma fotografia é também focada na relação próxima entre o seu protagonista e

suas amizades, aqui tratada de forma poética – o foco da criação passa pelo conceito da valorização

trabalhador, os seus prazeres e angústias. O conceito de jardim é retomado, não agora como apenas

um local de beleza plástica, de acolhimento – mas sim como um lugar de exposição para o que vem

de fora, um lugar de trabalho pesado onde o importante é encaixar cada engrenagem em seu devido

espaço.

24

Page 35: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Estava exausto. Carregara pedras por toda a manhã, para enfeitar um jardim de poesias.

Pedras opacas, quase ocres, guardadas em um saco de tecido com cores que aprecio. Pedras

que guardavam há séculos palavras mudas, sílabas sem tom. Todos que passavam olhavam

como gelo aquele jardim. Amigos acenavam, mas não me ofereceram ajuda. Gostaria de ouvir

ao menos palavras de incentivo. Contudo, apenas acenavam. Mesmo assim, cada amigo

antigo possuía um pedaço de meu jardim de poesias em seu nome. Os mais velhos e

importantes amigos ficavam representados próximos à janela. Os outros mais recentes perto

a cancela, para tocar-lhes o ego. Enfeitei tais jardins antigos com palavras novas. Deixei o ocre

das pedras se misturarem ao mar de branco e verde que tanto cultivo. Já imaginava algum

companheiro com pedras na mão a formar palavras, a seu gosto e entendimento. Meu

cansaço embriagava e os sonhos já sumiam aos olhos. Resolvi descansar com água, para

esperar a luz amarela de um sol fosco iluminar minhas pedras em mais um dia. Amanhã,

carregarei mais pedras cruas de cor e vogais para saciar a construção de poesias em meu

jardim.

Ao mesmo tempo leve e poética, a temática em questão se mostra pesada por se tratar do uso

das pedras como decoração/metáfora para o prosseguimento de trocas sociais. Percebe-se na

fotografia a valorização do contato social, que contrasta com a dificuldade e o cansaço que se tem

ao objetivar manter a ordem das relações quando estas precisam aparecer. O trabalho narrativo abre

para a própria memória guardada de relações, e para a poética das palavras sempre escolhidas para

25

Page 36: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

nos apresentar e nos representar perante os mais próximos - a poética, como construção de relações,

é colocada como objetivo de satisfação. Na penúltima proposta da série, a memória é apresentada

de maneira mais intimista, trazendo a questão infantil do trato com a memória – do ponto de vista

adulto sobre proposições sonhadoras de seu passado de criança. A fotografia apropriada ocupa bem

essa força como fragmento de passado – principalmente quando a imagem está relacionada com um

espaço específico de um tempo sem retorno, sempre bem caracterizado pela guarda da imagem

infantil como uma representante de toda uma fase. O processo criativo despertado com a fotografia

de retrato se aparece amplo, mas quando se cria um alicerce temático ficcional, a imagem

fotográfica automaticamente se fecha no foco criativo proposto. No texto ficcional, o enredo é

poético, um tanto quanto criativo e com doses de sonhos tipicamente infantil – nota-se também no

contexto da narrativa pinceladas de histórias que se conectam ao protagonista, além de influências

despertadas por elementos criativos visuais. Cria-se toda uma imagem mental sobre a visualidade

do objeto tratado no texto, inclusive atrelando esse objeto à fotografia de seu 'portador'.

Ganhei de presente uma pequena caixa pintada

com frutas. Dentro existia um lápis sem cor, uma

borracha meio azul e meio vermelha, e uma

agenda do ano de meu nascimento. Desenhei na

contracapa da agenda um sol redondo e logo

abaixo rabisquei o meu nome. Com a borracha

apaguei as folhas das frutas da caixinha – é que

não gostava daquele verde opaco quando

criança. Depois de um tempo, criei na caixa

feijões brancos em chumaços de algodão úmido.

Quando percebi que os brotos começavam a

surgir, tirei a tampa da caixa e a virei pelo

contrario. Pensava que as pêras eram pintadas à

cor do sol e que essa cor fizesse crescer as

coisas. Mas o sol nunca teve cor. Já a agenda só

teve o meu nome escrito, por muitos anos, em

meio a um mundo de folhas somente datadas.

Por causa disso a jogaram fora. Se soubesse

outras palavras, teria plantado feijões nas linhas

da minha agenda. No mês de Março.

26

Page 37: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

A motivação narrativa, nesse trabalho, passa pela angustia de se deixar claro a importância

desse pretérito do protagonista, e de como essa angústia da apresentação de um dado/objeto

descrito de forma tão sutil e também de modo tão significativo aproxima as duas pontas da ficção -

detalhes de como uma mente criativa funciona através de um evento cotidiano mostram uma ficção

extremamente preso à um universo artístico sempre ligado ao cotidiano do protagonista. O último

texto ficcional criado parte do princípio da memória saudosista e familiar, do tempo infantil

cravado na memória como especial. Novamente recebi um par de fotografias para criação de uma

mesma origem, e percebi a imagem em comum do passado carregando nos braços a lembrança de

um lugar especialmente delineado por coadjuvantes importantes para a formação atual da

protagonista – como se o passado ainda lhe protegesse o seu presente de forma poética e

extremamente saudosista.

Era uma sinfonia de sons leves, em pedaços de manhã iluminados pela maestria de pássaros.

Orvalho clareando o tapete verde, que cobre a terra leve e macia. Terra que abraça as flores;

flores que encurtam distâncias e nos fazem perder o medo das cores. As árvores fortes daquele

lugar dão o exemplo da perseverança no trabalho. Pedi licença ao tempo para experimentar a

sombra que me convidava a sentir um pouco de mim. A solidão ali se torna lembrança de finais

27

Page 38: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

de tarde, onde tínhamos por companhia um cão fiel, de pelo curto e amarelado. A saudade ali

se torna muda, por falta daquela palavra que deveria ser dita ao calor de um abraço que hoje

não tenho. A tristeza ali se torna egoísmo, pois nem sequer conseguimos usar nossos olhos em

benefício da beleza das cores naturais. De olhos fechados lembrei uma canção que lembrava os

tempos de menina, onde a chuva era a porta de entrada de uma festa. E onde estão meus

estimados companheiros? Se foram tantos janeiros, desde que eu deixei meus pais. Adeus

lagoa, poço verde da esperança. Meu tempo de criança que não volta nunca mais.

Percebe-se, na criação ficcional, uma valorização de um lugar específico, conservado não

somente na memória; mas também ainda fragmentado no presente da protagonista. A criação partiu

do ponto de vista de se narrar um lugar do passado, já que as imagens fotográficas deixam claro o

foco relacional ligado à família – uma criação que necessitava sutileza e controle do tempo, que

realmente fosse equilibrado como as imagens apropriadas. A composição e a plasticidade das fotos

pedem uma criação de extremo bom gosto, principalmente que acenda da memória uma luz que

possa nos carregar ao pretérito perfeito. Em todos os trabalhos plásticos, a apresentação visual da

criação exigiu que se manteasse a sutileza das criações, assim o lugar onde a memória se

estabeleceu através da imagem fotográfica precisa sempre combinar com o mesmo tempo das

criações literárias e os suportes escolhidos para estas serem lidas. Às vezes, esse percurso é trilhado

para chegar a outros tempos, outros espaços - espaços que desejamos que outros compartilhem, para

criarmos redes e sairmos do lugar comum. Borris Kossoy (2005) afirma que a fotografia cresce em

importância não somente pelo seu valor como imagem formal e instantânea, mas também pelo valor

da múltipla dimensionalidade da fotografia, principalmente nas primeiras décadas do século XX.

Kossoy deixa claro o quanto esse fragmento de imagem abre para realidades, de qualquer cor e

forma, de qualquer verdade e pensamento:

A imagem fotográfica tem múltiplas faces e realidades. A primeira e mais evidente

está ali, é o conteúdo da imagem fotográfica, congelada, imóvel, registrada no

documento, é um testemunho, uma segunda realidade. As outras faces são

exatamente as que não podemos ver, ficam ocultas, não se explicitam, chamamos de

primeira realidade. Podemos intuir, é o outro lado do espelho e do documento, é a

28

Page 39: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

vida, a situação dos homens retratados, a história do tema, ou seja, a realidade

interior. Ao apreciarmos uma fotografia, nos vemos ali, parado, quase sem perceber

mergulhando no seu conteúdo, imaginando a trama dos fatos, tentando descobrir o

que estava acontecendo naquele exato momento, as circunstâncias em que estava

envolvido o assunto, enfim, é um exercício mental de reconstituição quase intuitivo.

Podemos ver que a reconstituição, sendo ela dirigida a investigação histórica ou até

mesmo como mera recordação pessoal, sempre implica num processo de criação de

realidades, onde se resulta em imagens mentais elaboradas pelos próprios receptores

envolvidos.7

Kossoy deixa claro o quanto a fotografia abre como suporte de experimentação, e é

exatamente nesse foco que os trabalhos plásticos se sustentam, principalmente na implicação do

processo de criação de realidades, que tem a necessidade de envolver através da memória - e a

narrativa nasce da experiência pessoal de quem narra ou de quem transmite essa narrativa. Pedaços

e fragmentos de ficção acabam por dar cor a essas estórias fotografadas em preto e branco. Fazer

com que sua narrativa seja imaginada, transmitida e tratada em cores é uma bela ousadia, pois o

objetivo principal das propostas criativas é alcançar o olhar do outro, sem imediatismo, na busca de

focos diversos de interpretação.

7 SAMAIN,Etienne (org.). O Fotográfico. Segunda edição. Huitec Editora / Senac Editora. São Paulo, 2005, p. 4029

Page 40: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

4. CONCLUSÃO

De acordo com a proposta inicial, se escolheu a fotografia como a escada para proposições

plásticas e criativas – e também foi a escolhida por ser o objeto imagético por excelência da

memória. Mas, durante o percurso criativo, a imagem fotográfica antiga e apropriada passou a ser

não somente um ativador de memória, mas também um motivador criativo e um estimulador de

sensações. Abrindo sobre a experiência da criação plástica, o tempo e o espaço gastos com a

contemplação da fotografia se tornaram o mesmo do da criação das cartas, da escolha dos papéis e

da proposição de colocar as narrativas em um suporte de próprio punho – esse ponto é que se

percebe o tamanho criativo que existe em uma produção de artes visuais e o tamanho do esmero que

às vezes passa despercebido quando se tem apenas o objeto final para ser contemplado.

Em todo momento a palavra memória se fortalecia como objetivo, fazendo que o antes

pudesse chamar a atenção e desarmasse o momento veloz atual - o objeto artístico precisava sair da

zona de conforto para ser legitimado. A velocidade é tanta que hoje se faz necessário estar sempre

atento àquilo que nos cerca - e ao mesmo tempo ir na contra mão disso tudo para poder entender em

qual contexto se deve atuar. Dentro dessas definições, o aprofundamento nos mostra que a arte é o

fim em si mesma, onde a particularidade objetivada das relações se torna objetivo, força de atenção,

participação e troca. A arte - e todos os meios de produção criativa influenciada por ela - está

intimamente ligada à mudança do olhar do espectador, tirando este do lugar comum na busca

refletiva sobre aquilo que lhe é apresentado, fruindo esteticamente sobre tal.

Como o processo criativo é de contínuo crescimento, o que se precisa deixar claro quando se

entrega um objeto pronto para um leitor é que a organização de uma proposta de trabalho em artes

visuais passa pela responsabilidade de se deixar uma marca, um signo, uma identidade - a criação

precisa passar pelo crivo do conceito de responsabilidade e de identidade. Reconhecer uma obra

como sua é distinguir que todo o processo de criação valeu a pena; é o primeiro passo para se seguir

em frente. Alfredo Bossi deixa clara a necessidade com que se devem tratar todas as etapas

criativas, afirmando que “a arte é um fazer. A arte é um conjunto de atos pelos quais se muda a forma,

se transforma a matéria oferecida pela natureza e pela cultura. Nesse sentido, qualquer atividade

humana, desde que conduzida regularmente a um fim, pode chamar-se artística.”8

8 BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. Editora Ática. Série Fundamentos. São Paulo. 2004. p. 13.30

Page 41: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

A palavra trabalho passa a ter a sua frente um artigo. O trabalho. Um trabalho. Esse artigo,

definido tão poucas vezes, e indefinido quase todas as outras, é o que se faz reconhecer que alguma

coisa está latente. O verbo criar é tão amplo quanto sua significação, se conectando a pares e

sinônimos, mudando o foco com o tempo e se influenciando com trocas interartísticas. Essa troca se

tornou o objetivo desse projeto, que foi alcançado devido à interação entre a memória, a fotografia e

a escrita – sempre tirando proveito do espectador como receptor de uma ideia que, sem sua

presença, se torna um objeto sem objetivo. A busca é refletir no outro um turbilhão de percepções,

passando pelo conforto visual, pelo incômodo e pela alegria da descoberta.

Criar significa pensar no outro, perceber seu potencial e transformar um simples gesto em

ação consciente e responsável. O suporte proposto para leitura, aliado ao objetivo de despertamento,

passa por esse conceito de criar para receber respostas, e sem esperar a sacralização do objeto ou até

mesmo sua eternização. Ela precisa permanecer na memória pelo tempo necessário para gerar

incômodo sentimento ou indiferença. Precisa fundamentalmente ser uma pedra no cotidiano veloz e

extremamente urbano - um espaço de instante onde o que se percebe é a eficiência poética

funcionando como desejado. Perceber o trabalho por completo, pronto para ser lido ou devorado, é

prazeroso pelo fato de que o objetivo fora cumprido corretamente - quando se entrega um trabalho

para a leitura de outros que não acompanharam o processo criativo, este trabalho já não te pertence,

este foge ao controle das mãos e cria vida, modificando os sentidos de quem o absorve, de quem o

lê. O autor é o ator que em final de peça apenas acompanha os olhos ávidos de quem aplaude o que

foi feito e está terminado – atores que em final de peça apenas reconhecem que o melhor está por

vir, e que aplausos são apenas o ingrediente pra se começar outra busca, criar novas imagens, novas

histórias e outras belas memórias para se guardar em qualquer espaço disponível.

31

Page 42: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

32

Page 43: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

33

Page 44: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

34

Page 45: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

35

Page 46: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

36

Page 47: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

37

Page 48: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

38

Page 49: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

39

Page 50: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

40

Page 51: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

41

Page 52: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

5. REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

_________________. El Império del signos e variaciones sobre la escritura. Barcelona: Paidós, 2002.

_________________. O prazer do texto. São Paulo: Objetiva, 2006.

BAUDELAIRE, Charles. Correspondências. In: TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/N-Imagem, 1997.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São

Paulo: Martins Fontes, 1990.

BRUSCKY, Paulo. Entrevista por MARSILLAC, A.L.M. Porto Alegre, 2010.

CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Cia da Letras, 1990.

DUBOIS, Phillipe. O ato fotográfico. Trad. Marina Appenzeller. 5. ed. Papirus: Campinas, 2001.

FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (org.). Escritos de Artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2006.

KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

______________. Realidades e ficções na trama fotográfica. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2002.

LAGNADO, Lisete. Leonilson: São tantas as verdades. São Paulo: DBA/Companhia

42

Page 53: Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso

Melhoramentos, 1998.

MENEZES, Philadelpho. Poética e Visualidade. Ed. UNICAMP: Campinas, 1995.

MELENDI, Maria Angélica. A linguagem não é transparente. In: A Imagem Cega, Tese de Doutorado, FALE,UFMG, 1999.

MENEZES, Philadelpho. Poética e Visualidade. Campinas: Ed. UNICAMP, 1995.

KRAUSS. Rosalind. L’originalité de l’avant garde et autres mythes modernistes. (1985.) Trad. Jean-Pierre Criqui. Paris: Macula, 1993.

SAMAIN,Etienne (org.). O Fotográfico. Segunda edição. Huitec Editora / Senac Editora. São Paulo, 2005.

SONTANG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Trad. Joaquim Paiva. Rio de Janeiro, Arbor, 1981.

Reconheço-me na solidão da noite e guardo adjetivos para um futuro próximo.

43