textos da iniciaÇÃo cientÍfica. - lauracavalcanti.com.br ma[1... textos da iniciação...

29
Textos da Iniciação Científica. Nº 11 1 TEXTOS DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA. Orientação: Profª. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Departamento de Antropologia Cultural FOLCLORE E CULTURA BRASILEIRA NA OBRA DE MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ Marina Mafra Agosto, 2008 [email protected]

Upload: dangminh

Post on 19-Jan-2019

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

1

TEXTOS DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA.

Orientação: Profª. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Departamento de Antropologia Cultural

FOLCLORE E CULTURA BRASILEIRA NA OBRA DE MARIA

ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ

Marina Mafra

Agosto, 2008

[email protected]

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

2

Folclore e cultura brasileira na obra de Maria Isaura Pereira de Queiroz

Resumo: Em um primeiro momento, a pesquisa examina o lugar dos trabalhos sobre

folclore e manifestações culturais na obra da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz.

Em seguida, ressalta sua contribuição no contexto dos debates e da produção intelectual

dos anos 1950 e 1960 e indica as aproximações e os distanciamentos conceituais entre

Pereira de Queiroz, Roger Bastide e Florestan Fernandes. Apresento então os possíveis

desdobramentos desse aspecto de sua obra para os estudos contemporâneos de folclore e

cultura brasileira.

Palavras-Chave: Maria Isaura Pereira de Queiroz; cultura brasileira; folclore; pensamento

social; sociologia; antropologia; cultura popular.

Introdução

Há quase três anos iniciei uma pesquisa, sob a orientação da professora Maria Laura

Viveiros de Castro Cavalcanti, sobre os estudos de folclore e cultura brasileira realizados

pela socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz. Apesar de ter se dedicado profundamente

ao tema do folclore, principalmente durante os anos 1950 e 1960, os trabalhos de Pereira

de Queiroz sobre manifestações culturais permaneceram pouco discutidos e reconhecidos

no âmbito das ciências sociais. Questões como o campesinato brasileiro, o mandonismo

rural e a religiosidade popular acabaram sendo as maiores referências quando se debate sua

obra.

Maria Isaura Pereira de Queiroz se formou na graduação em 1949, na Universidade

de São Paulo (USP), onde também defendeu tese de mestrado intitulada “Sociologia,

Antropologia e Política” (1951), sob a orientação do sociólogo francês Roger Bastide. Em

1959, tornou-se doutora em sociologia pela École Pratique Des Hautes Études, VI Section,

Université de Paris, mediante a aprovação da tese “La Guerre Sainte au Brésil: le Mouvement

Messianique du Contestado”. Na USP, lecionou sociologia no Departamento de Ciências

Sociais e fundou e dirigiu o Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU).

Devido à intensa convivência profissional e afetiva, na visão da própria autora, sua

formação teórica foi marcada profundamente pelas concepções de Roger Bastide. Assim

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

3

também, as discussões com o sociólogo Florestan Fernandes, para quem Pereira de

Queiroz trabalhou como “assistente”, estiveram presentes em suas interpretações acerca da

cultura brasileira, e definindo contornos de sua trajetória intelectual.

Num primeiro momento de pesquisa, busquei perceber o lugar ocupado pelos

trabalhos sobre folclore e manifestações culturais ao longo da obra de Pereira de Queiroz.

Em seguida, tentei ressaltar sua contribuição no contexto dos debates e da produção

intelectual dos anos 1950 e 1960, e indicar as aproximações e os distanciamentos

conceituais entre Pereira de Queiroz, Roger Bastide e Florestan Fernandes. Apresento

finalmente os possíveis desdobramentos que esse aspecto de sua obra oferece para os

estudos contemporâneos de folclore e cultura brasileira.

Os estudos de folclore na obra de Maria Isaura Pereira da Queiroz

Os trabalhos em que Queiroz se propôs a dialogar com os estudos de folclore se

enquadram no interesse central por aquilo que ela chamava de cultura rústica brasileira, uma

cultura mais antiga conservada por certos grupos sociais, em especial no interior do país.

Para a autora, a cultura rústica caracteriza-se por “um estilo de vida que (...) resultou de

uma adaptação dos primeiros colonos europeus ao novo ‘habitat’ e de seu contato com os

indígenas e africanos” (Queiroz, 1973: 137). Ela tenderia a desaparecer onde quer que se

implantasse a cultura urbana do tipo ocidental, formada na Europa, e junto com ela, as

atividades e festas tradicionais do homem do campo também estariam sendo degradadas.

Nesse sentido, para a autora, a cultura rústica no Brasil seria principalmente uma civilização

popular (Queiroz, 1973: 177) e estaria sofrendo um lento processo de transformação

decorrente do novo gênero de vida ocidental e europeu que penetrava nos grandes centros

urbanos e se expandia para o interior.

Maria Isaura recorre à caracterização de Antonio Candido (“Os parceiros do Rio

Bonito”, cap. I, pgs. 38 e 43-48) para definir o universo das culturas tradicionais do homem

do campo no Brasil. Este universo se basearia em relações sociais fundamentais

desenvolvidas nos agrupamentos de algumas ou muitas famílias, que adotariam uma

economia de subsistência, e que estariam vinculadas pelo sentimento de localidade, pela

convivência, pelas práticas lúdico-religiosas, pelo auxílio mútuo. A solidariedade vicinal

seria decorrente desse processo de “participação” entre os membros da vizinhança e

caracterizaria o “tipo cultural” do homem do campo.

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

4

Essa perspectiva de análise se insere no contexto da intensa urbanização ocorrida

nas décadas de 1950 e 1960. Pereira de Queiroz e alguns sociólogos de sua geração

consideravam que o Brasil passava por uma fase de transição da sociedade tradicional para

a moderna e que tal processo de mudança marcava uma nova etapa na história do país,

merecendo, portanto, minuciosas reflexões. Atuante no debate intelectual da época, a

pesquisadora estava empenhada em compreender o impacto dessa modernização no

universo da cultura rústica, visto que, na sua visão, o avanço do capitalismo e o ritmo

acelerado de urbanização faziam com que certos costumes e hábitos interioranos fossem se

degradando pela influência dos valores urbanos. Assim ela afirmava: “A transformação da

sociedade tradicional traz consigo em geral o desaparecimento do Bumba-meu-boi (...).”

Este “acompanha então as vicissitudes da sociedade tradicional e, como esta, torna-se cada

vez mais característica do meio rural” (Pereira de Queiroz, 1967). Dessa maneira, os novos

meios de comunicação levavam para o campo os problemas das cidades grandes,

colocando em perigo valores tradicionais, já há muito cristalizados na mentalidade

camponesa. Porém, devido ao seu relativo isolamento, o interior ainda constituía o espaço

em que as manifestações folclóricas persistiam com mais vigor.

A partir dessa perspectiva, que abarcava o meio rural em seus processos dinâmicos,

Pereira de Queiroz analisava os fatos folclóricos em decorrência da própria mudança da

sociedade rural em que estavam inseridos, mas, ao mesmo tempo, buscava na vivacidade

do folclore as explicações dessa dinâmica social. Desse modo, a autora considerava

interessantíssimo para a Antropologia e a Sociologia o desenvolvimento dos “estudos

folclóricos, pois poderiam desvendar não apenas a dinâmica dos fatos folclóricos como

também muito da dinâmica dos pequenos grupos”. (Queiroz, 1969: 135)

O folclore segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz

A definição utilizada pela autora para o termo “folclore” seria tanto um conjunto de

conhecimentos, provérbios, cantos, mitos, legendas, crenças que se incorporaram à tradição

de uma comunidade, quanto também a disciplina que os estuda. A primeira função dos

“fatos folclóricos” seria a de evidenciar e reforçar a “personalidade” dos pequenos grupos

ou comunidades. O folclore, através de suas crenças, seus costumes e suas peculiaridades,

torna um grupo diferente dos demais.

A autora refere-se à Câmara Cascudo para evidenciar a oposição entre uma cultura

sagrada, hierárquica, e a cultura popular, aberta à transmissão oral e coletiva, e destinada à

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

5

manutenção dos usos e costumes do convívio cotidiano. Esta última formaria as práticas

folclóricas. Nas sociedades não secularizadas, os fatos folclóricos se opõem aos fatos

religiosos. Já nas sociedades secularizadas, a oposição é entre o fato folclórico, visto como

inculto, espontâneo, coletivo, anônimo e o fato erudito, considerado mais requintado

porque encerra um conhecimento quase científico, exato, raciocinado. Essa diferenciação

busca evidenciar justamente a noção de folclore utilizada por Pereira de Queiroz (1969): o

folclore como um tipo específico de fato cultural.

Outra marca que, na visão da autora, define o “fato folclórico” seria seu caráter de

“tradicional”. Ou seja, para uma manifestação tornar-se folclórica é preciso que tenha tido

uma duração considerável num meio social e que tenha sido transmitida informalmente, de

uma geração para outra. Assim, lendas, costumes e doutrinas são preservados ao passarem,

pela fala e pelo exemplo, de pais para filho; o fato folclórico torna-se, desta maneira,

praticamente uma “sobrevivência”. A sua origem acaba por se perder no tempo, mas o

folclore permanece vivo, na medida em que mantém sua função em relação ao seu grupo,

onde ele surgiu e continua sempre a surgir.

O folclore, como disciplina, teria aparecido, inicialmente, com o intuito de

“recolher os fatos folclóricos; classificá-los; procurar sua origem; buscar compreendê-los

no seu significado; tentar saber como sobrevivem” (Queiroz, 1969). De acordo com a

autora, os folcloristas preocupavam-se em apontar a origem remota e as influências

africanas ou indígenas das manifestações folclóricas. Dedicavam-se mais à coleção e

descrição de dados e tinham como principais diretrizes a classificação, a filiação e o registro

do folclore brasileiro. No entanto, a análise das condições vigentes do grupo ficava quase

sempre ausente.

Em sua visão, a princípio, os folcloristas se envolveram com a Antropologia

Cultural para buscar na função dos fatos folclóricos a sua explicação. No entanto, a

percepção da estrutura e da organização interna do grupo em que existia o folclore era

essencial; para essa abordagem, os folcloristas precisariam aclamar pela Sociologia. O fato

folclórico aparecia, assim, como um fato social e cultural. Tanto a concepção antropológica

quanto a sociológica podiam seguir dois procedimentos: a análise do passado, visando

saber sobre a estrutura social do grupo e a função do folclore nesse grupo; a análise do

presente, que exigia uma pesquisa de campo.

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

6

Para Maria Isaura Pereira de Queiroz,

muitas práticas religiosas, muitas festas, muitas danças dramáticas têm por função principal a manutenção da estrutura e organização sociais tradicionais, não só fomentando a coesão e solidariedade internas, como também reafirmando a vigência dos valores que tornam possível a existência da comunidade. (Queiroz, 1969: 133)

Essa perspectiva orienta a hipótese geral sobre a função básica de todas as práticas

folclóricas. Mas estas, ligadas ao seu grupo, tendem a desaparecer quando este se desfaz,

seja por uma anomia, uma desorganização interna que põe em perigo a solidariedade

grupal, seja pelo aparecimento de uma nova estrutura e organização social da sociedade

moderna. A partir dessa afirmação, a autora considera que o folclore brasileiro tem uma

função conservadora e, quando não pode exercê-la, tende a desaparecer.

É possível perceber que Pereira de Queiroz analisa a conservação e a sobrevivência

do folclore ligando-as à solidariedade interna do grupo em que este surgiu e no qual este

desempenha uma função conservadora, integradora e mantedora de estruturas e valores.

A autora coloca três pontos importantes acerca dos estudos de folclore. Primeiro,

ela lembra que não há um desaparecimento total do folclore, mas sim o desaparecimento

de certas formas folclóricas específicas que, porém, são substituídas por outras. Além disso,

os fatos folclóricos desaparecem em certos grupos, mas surgem em outros.

Depois a socióloga aponta para a importância do desenvolvimento dos estudos de

folclore para as análises da Antropologia Cultural e da Sociologia, pois estes estudos

ajudam a desvendar não apenas a dinâmica dos fatos folclóricos, como também a dinâmica

dos pequenos grupos, ou seja, a conservação, a modificação e a organização destes.

Por fim, Maria Isaura faz um alerta para que se estude não apenas o folclore

tradicional, mas também as novas formas que surgirem. Caso contrário, ficariam excluídos

os “comportamentos efervescentes” das pequenas sociedades modernas que podem vir a se

firmar como práticas folclóricas. Para esse objetivo, seria também essencial rever as

definições de fato folclórico e as teorias já existentes sobre o assunto para que a disciplina

Folclore não fique presa às considerações tiradas de apenas um tipo de sociedade, a

sociedade tradicional.

A hipótese final de sua análise sobre folclore brasileiro se resume, no entanto, à

idéia de que “os fatos folclóricos não são peculiares a um tipo de sociedade, mas podem

surgir em todos os grupos de pequena envergadura, como expressão dos mesmos, com a

finalidade de manter-lhes a existência e a especificidade” (Queiroz, 1969).

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

7

As pesquisas de Pereira de Queiroz sobre folclore e cultura brasileira

Maria Isaura Pereira de Queiroz concentrou suas interpretações basicamente na

análise do Bumba-meu-boi, como uma manifestação do teatro popular no Brasil, e da Dança de

São Gonçalo, sendo esta, talvez, a pesquisa de campo em que a autora mais tenha se

preocupado com o tema do folclore. Há também outros trabalhos em que a autora aborda

a cultura brasileira, como “Os Penitentes”, no qual ela descreve um costume antigo do meio

rural que se enquadra nas manifestações conhecidas como “Encomendação das almas”. A

socióloga dedicou ainda estudos a manifestações culturais brasileiras que constituem

sobrevivências portuguesas, mostrando assim traços dessa tradição que se transpuseram para a

nossa cultura.

Na presente pesquisa, enfatizamos, principalmente, a Dança de São Gonçalo e o

Bumba-meu-boi, justamente por serem essas as manifestações folclóricas a que a socióloga

mais dedicou seus estudos e por me proporcionarem, consequentemente, um maior

aprofundamento no tema.

“Sociologia e folclore: a dança de São Gonçalo num povoado baiano”, escrito em 1958, foi o

livro no qual Maria Isaura se deteve mais direta e especificamente às questões de folclore. A

proposta do livro pertencia a um projeto, elaborado por um convênio entre o governo da

Bahia e a Columbia University, de Nova Iorque, de promover pesquisas sócio-culturais em

comunidades típicas das várias regiões do estado da Bahia para a obtenção de

conhecimentos que pudessem vir a servir para o planejamento de educação, saúde,

administração dessas comunidades. Em 1950, Pereira de Queiroz, uma das participantes do

projeto, conheceu a comunidade de Santa Brígida, onde faria, a partir daí, os estudos

previstos pelo convênio.

Já os estudos sobre Bumba-meu-boi não se basearam na experiência do trabalho de

campo, nem chegaram a formar um livro. Suas análises sobre esse folguedo ficaram

restritas a alguns artigos publicados especialmente durante as décadas de 1950 e 1960,

reeditados em anos seguintes. “O bumba-meu-boi, manifestação de teatro popular no Brasil” é o

mais conhecido atualmente. A abordagem do Bumba-meu-boi interessava Maria Isaura na

medida em que, para a autora, ele fazia parte da forma tradicional de vida brasileira.

Portanto, era essencial perceber a função e o papel deste folguedo dentro da comunidade

de que ele era integrante. Suas pesquisas tiveram como referências análises e livros de

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

8

autores, como Câmara Cascudo (Dicionário do Folclore Brasileiro, 1954), Theo Brandão

(1953; 1961), Max Gluckman (1952), entre outros.

Segundo a autora, essas pesquisas correspondiam a um projeto mais amplo que

toma o tema do folclore local, interpretado sociologicamente, como um meio de apreender

a cultura, a estrutura social, a economia, a religião e o comportamento dos habitantes de

uma determinada unidade social ou comunidade. De acordo com Pereira de Queiroz

(1969), o folclore proporciona um “ambiente de relações íntimas e carregadas de

afetividade” onde “se formam costumes e peculiaridades, crenças, lendas, que tornam um

grupo diferente dos demais”. Portanto, os traços folclóricos, abarcados dentro do contexto

cultural de que fazem parte e na comunidade que os realiza, precisavam ser incluídos na

pesquisa como elementos importantes para análise e interpretação da organização e

estrutura do grupo vigente.

A Dança de São Gonçalo

Na década de 1950, seguindo o já citado projeto elaborado pelo governo da Bahia e

a Universidade de Columbia, Maria Isaura Pereira de Queiroz tomou conhecimento da

existência de uma comunidade, no arraial de Santa Brígida, (município de Jeremoabo,

Bahia, próximo à divisa com Alagoas) que baseava sua organização em torno de um velho

chefe religioso. O interesse por esse grupo se deu pelo fato, comum na cultura rústica

brasileira, de exaltação mística e de aglutinação de populações em torno de beatos.1 Além

disso, para a autora, era surpreendente perceber como a estrutura tradicional dessa

sociedade rústica nacional e sua cultura sertaneja não tinham sido ainda atingidas, apesar de

todos os fatores de mudança que ali vinham atuando. A partir daí, a socióloga iniciou sua

pesquisa em 1955, voltando a campo novamente em 1956.

Santa Brígida abrigava duas populações que não se misturavam, os alagoanos e os

baianos. Cada uma vivia segundo relações distintas e cada uma desempenhava e avaliava a

dança de São Gonçalo de uma maneira própria e peculiar. Os alagoanos foram mais

focalizados durante a pesquisa da autora, por conservarem mais ou menos íntegra a antiga

cultura rústica brasileira, fato que podia ser evidenciado pelo respeito profundo à dança

vista como uma cerimônia essencialmente religiosa. Já a dança na comunidade baiana não

preservava mais as antigas práticas; os divertimentos profanos eram mais valorizados e sua

cultura parecia estar em mudança, absorvendo elementos novos e antigos.

1 Ver a respeito os trabalhos de Pereira de Queiroz 1957; 1960; 1965.

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

9

A Dança de São Gonçalo foi trazida pelos portugueses no início da colonização e

era realizada para obter ou agradecer casamentos. Mas, na época da pesquisa, ela resultava

de promessas feitas com os mais diversos fins. As pessoas prometiam rodas da dança para

cumprirem as chamadas “promessas de vivo” ou “promessas de defunto”. A primeira se

realizava quando a promessa era paga ainda em vida; já a segunda era a mais recorrente e se

efetuava “quando alguém, tendo prometido realizar rodas de São Gonçalo, alcançou a

graça, mas não conseguiu em vida se desincumbir da promessa, seu espírito fica sem

descanso e vem pedir aos parentes e amigos vivos que cumpram a promessa em seu lugar”

(Queiroz, 1958).

Regras severas regulavam o comportamento e as atitudes dos executantes e do

próprio público durante a dança. As exigências obrigavam roupas discretas, seriedade,

compenetração e silêncio. Requebros e improvisos, risos, fumo, bebida, namoro, eram

coisas altamente proibidas, pois tudo isso tornaria a cerimônia religiosa sem valor. Apesar

de não haver restrições para dançar, todos reconheciam a necessidade de certos dons,

vocações e qualidades especiais, outorgadas por Deus, para participar da Dança de São

Gonçalo. Isso poderia levar, como esclarece a autora, a uma tendência em transformar o

grupo dos executantes num grupo de “especialistas”, que se diferenciariam do resto do

povoado por possuírem uma vocação especial.

“‘O povo de São Gonçalo’, embora existindo virtualmente dentro da comunidade,

tem existência efetiva nas ocasiões em que a Dança se realiza” (Queiroz, 1958). Desse

modo, no momento da cerimônia, os tocadores e as dançadeiras alagoanos constituíam um

grupo destacado da comunidade, com relações próprias e regras específicas, assim como

ocorria na comunidade geral de Santa Brígida. Mas tal grupo de executantes não era

autônomo, estava integrado e atrelado à comunidade maior. Isso já indica como a estrutura

do grupo se assemelhava à própria estrutura social da comunidade em geral.

Um ponto crucial para Pereira de Queiroz é a existência de um chefe religioso local,

ao qual todos estavam subordinados, inclusive o mestre da dança, liderança máxima na

cerimônia de São Gonçalo. Esse mestre era quase o “dono” da dança, só ele podia chamar

a atenção, repreender e corrigir os executantes durante os ensaios ou “serviço”. Isso

impedia o riso alheio, mostrando a igualdade entre todos. O único que se sobrepunha,

portanto, era o mestre, cuja liderança decorria de seu conhecimento e habilidade. Sua

autoridade chegava a se estender para o público em geral, e assim ele garantia a ordem, o

respeito e o comportamento digno que a cerimônia exigia. Afora o mestre da dança,

nenhum outro elemento de destaque e liderança existia na estrutura do São Gonçalo. A

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

10

igualdade entre os executantes e a superioridade do mestre eram os princípios estruturais

do grupo.

Além das vocações especiais dos tocadores e dançantes, a chefia da dança também

exigia determinadas habilidades. No caso, inteligência, raciocínio, sensibilidade e autoridade

do chefe para ensinar o povo eram fatores essenciais para a continuidade da Dança.

Porém, como já foi dito, o chefe local era quem de fato dirigia a comunidade,

comandando todas as atividades econômicas, sociais, religiosas e políticas. Seu dote e suas

qualidades superiores eram reconhecidos por todo povo. Na Dança de São Gonçalo,

porém, o mestre era a única autoridade e o líder local reconhecia que nesse setor seus

conhecimentos eram inferiores. Mas, fora desta cerimônia, o mestre da Dança se igualava

aos demais, formando com estes um grupo em que todos estão no mesmo nível (estrutura

social igualitária) e em que a única pessoa realmente possuidora de status superior é o líder

religioso local. Portanto, a cerimônia de São Gonçalo se integrava perfeitamente à

comunidade e às suas atividades. Tanto a Dança quanto o mestre estavam subordinados ao

chefe local, correspondendo assim, inteiramente, à estrutura que organizava a sociedade de

Santa Brígida.

Assim como o líder da comunidade tinha autoridade sobre o povo em geral, o

mestre da dança de São Gonçalo exercia sua “supremacia” no grupo de dançantes. Maria

Isaura acrescenta:

A mesma igualdade de nível para os membros e o mesmo tipo de liderança estão vigentes na estrutura da Dança de São Gonçalo e na comunidade de Santa Brígida. A estrutura da Dança de São Gonçalo é inteiramente consistente com a estrutura social da comunidade em que é levada a efeito, os mesmos princípios estruturais básicos regem ambas. (Queiroz, 1958)

Apesar da igualdade entre os membros, havia uma tendência para a estratificação na

comunidade de Santa Brígida e a dança desempenhava um papel específico para cada

camada social. Para a classe inferior, aprender a dançar significava se integrar à

comunidade, já que a maioria das dançadeiras e dos tocadores pertenciam à camada

economicamente intermediária. Assim, a participação na cerimônia podia ser,

indiretamente, um sinal de ascensão e de integração social. “Dançar São Gonçalo é, então,

índice de certas posses, de certa integração e de certo tempo de permanência na

comunidade” (Queiroz, 1958). Já a camada superior, raramente executava a dança, mas a

defendia fortemente quando sentia que esta estava sendo ameaçada.

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

11

Desta maneira, a Dança atuava como elemento de homogeneização das diferentes

camadas sociais, acabando com o princípio de estratificação da comunidade. A classe mais

elevada colaborava com a intermediária, a inferior participava dessa mesma posição e, com

isso, todos eram nivelados na condição intermediária. A cerimônia, assim, reconhecia o

comportamento característico de cada camada, mas apagava suas diferenças ao mostrar que

não há privilégios e que, na dança, todos pertencem ao mesmo nível social. Ao

desempenhar essa função de integração e homogeneização, a Dança concorria também

para manter a comunidade num todo coeso e solidário. Seu papel não era facilitar a

mobilidade social, ou seja, os indivíduos não ascendiam econômica e socialmente, mas

eram iguais enquanto membros do grupo dançante. Pereira de Queiroz afirma, então, que a

semelhança estrutural entre a comunidade e o “povo de São Gonçalo” decorria, portanto,

dos mesmos princípios de organização: o princípio de igualitarismo e o princípio de

liderança “do mais capaz”.

A função aglutinadora da dança é vista como ligada ao seu caráter religioso. O ritual

mantém, reforça e intensifica os sentimentos essenciais de que depende a sociedade.

Considerada por todos alagoanos como uma cerimônia religiosa, a Dança de São Gonçalo,

procurava reafirmar constantemente esse caráter fundamentalmente religioso, através de

sua função homogeneizadora.

Por fim, a autora conclui: “A dança fornece, pois, apoio à ordem social existente

(corrigindo, por exemplo, as tendências à diferenciação interna), com relação à qual é fator

nitidamente integrativo, decorrendo seu prestígio talvez da correspondência íntima entre

sua estrutura e a da comunidade rústica” (Queiroz, 1958).

O Bumba-meu-boi

Em relação ao Bumba-meu-boi, Pereira Queiroz enquadra-o entre as “danças

dramáticas”, herdadas dos colonizadores portugueses. Apesar das sobrevivências

portuguesas nesse espetáculo, a trama em torno do qual se constrói a ação seria

inteiramente de origem brasileira.

A trama segue um tema básico, principal, mais ou menos fixo. Mas temas

secundários podem ser acrescentados segundo as inspirações e o desejo de quem

representa. Assim, o texto não é rígido, mas é adaptável de acordo com a época, o lugar e

as circunstâncias. Ele permite variações, improvisações que se baseiam geralmente nos

acontecimentos importantes que se passaram e que se quer comentar.

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

12

As cenas secundárias são constituídas muitas vezes “por críticas de usos e

costumes” e são adicionadas ao texto principal para dar-lhe uma nova roupagem. Mas

também “o próprio tema central encerra sátiras irreverentes contra os médicos, contra o

clero, contra as autoridades” (Queiroz, 1967). Dessa maneira, o pequeno drama se

transforma num espetáculo caracterizado por cenas burlescas, satíricas, moralizantes e

fabulosas, representadas por animais estranhos, personagens fantásticos que amedrontam e

divertem o público.

O Bumba-meu-boi pertencia, de acordo com Maria Isaura, à forma de vida

tradicional da população rústica brasileira. A análise da autora sobre este espetáculo popular

é totalmente consistente com sua ambição de perceber se certas manifestações folclóricas

sofrem modificações, transformações com o passar do tempo. Visto o estado de

permanente mudança pelo qual passava o país, Pereira de Queiroz afirmava que a

sociedade brasileira era composta de dois pólos, o moderno e o tradicional e, devido a este

fato, formas de vida estavam sendo produzidas constantemente, ajustando e acomodando

elementos díspares; tradicionais e modernos.

Uma das funções mais remotas desse folguedo seria a de estimular a solidariedade

do grupo de vizinhança. Ao contribuir para o acontecimento da festa, todos sentiam de

maneira mais vigorosa que pertenciam à comunidade. Havia também a função econômica,

porque o cortejo do Boi seguia pelo pobre povoado, batendo de porta em porta, pedindo

donativos. Mas tal papel foi se perdendo com a entrada de elementos modernos no

interior.

A função de espetáculo, no entanto, tornou-se a mais importante. Primeiro, porque,

na vida monótona do meio rural brasileiro, o Bumba-meu-boi aparece como uma das

poucas manifestações artísticas, estéticas, que permite a auto-realização de vocações de

dançarinos, atores, poetas. Para Pereira de Queiroz, a tradicional civilização brasileira

aproxima-se das civilizações primitivas por estabelecer uma “amálgama dos diversos

setores culturais, pela falta de uma divisão do trabalho desenvolvida, pela tonalidade

dominante dos valores tradicionais e religiosos” (Queiroz, 1967). A arte aparece, assim,

quase sempre dentro das comemorações religiosas, como um elemento indispensável para

o abrilhantamento dessas festas. Para a socióloga, a análise do Bumba-meu-boi se insere

também nessa interpretação.

Outra função dessa manifestação folclórica seria a solidariedade total de um grupo

local, deste a baixa até a alta escala social. Ou seja, esse folguedo promove a reunião de

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

13

todas as camadas sociais durante sua realização, toda a sociedade participa do divertimento

e é nesse momento que a sociedade se exprime como conjunto.

O papel de crítica é fundamental no estudo do Bumba-meu-boi. De início, ele pode

ser visto como um meio de defesa da classe popular contra os detentores de poder e

autoridade. Os pequenos se utilizavam da farsa do auto para obter um domínio sobre os

grandes, a crítica se dirigia às autoridades locais ou a acontecimentos que tivessem chocado

a moral popular, a moral tradicional ou religiosa. O público também julgava, vaiava ou

aplaudia.

Mas o folguedo, segundo a autora, não é apenas um instrumento inconsciente de

crítica às camadas superiores, mas sim um meio de controle de todo o grupo, em todas suas

camadas. Isso ocorre porque, de fato, todas as classes sociais são satirizadas, de maneira

imparcial, pelo espetáculo. O bêbado, o magistrado injusto, o malandro, o padre que não é

casto, o patrão ou o fazendeiro egoísta são todos reprimidos por seus comportamentos mal

reputados. Sua função, portanto, é permitir um controle sobre todos.

Aqui se liga outra função, a de reforçar a obediência aos valores por parte do grupo

em sua totalidade. Ou seja, o Boi serve para difundir e impor os valores ideais da sociedade

tradicional, da civilização rústica brasileira. Sua finalidade aparece, então, como uma

tentativa de melhorar o que se considera ruim, anormal ou faltoso na vida cotidiana e nos

indivíduos.

A autora, então, acrescenta:

Se distinguirmos reforma como uma atividade orientada para consertar e melhorar aquilo que não é bom numa sociedade dada, sem chegar a pôr em questão a própria estrutura e organização da mesma, diríamos que o Bumba-meu-boi, na sociedade tradicional brasileira, tem intuitos reformistas implícitos. (Queiroz, 1967)

Dessa maneira, é possível perceber que há uma defesa dos valores tradicionais do

grupo, não há uma vontade de abalá-los ou substituí-los por outros, a fim de que uma

existência melhor possa se instalar. Essa manifestação pertence claramente à sociedade

global, e seu papel é conservador. O seu controle social visa reforçar e revigorar

comportamentos que correspondem à moral tradicional.

Para Maria Isaura, o folguedo do Bumba-meu-boi se enquadra nos chamados “ritos

de rebelião” (formas de conflito que acabam se tornando em meios de reforçar a

solidariedade interna e solidificar a estrutura e organização do grupo), de Max Gluckman

(1952). A autora se utiliza desse termo afirmando que:

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

14

os conflitos e as tensões que existem em tais sociedades (primitivas) podem então ser dramatizados de maneira relativamente simples, operando uma catarse: a sociedade se purifica de seus conflitos e de suas paixões fazendo de certo modo sua autocrítica... A sociedade tradicional brasileira se parece, nesse ponto, com sociedades primitivas. Também nela o Bumba-meu-boi tem o valor de uma autocrítica. (Queiroz, 1967)

Pereira de Queiroz esclarece que o Bumba-meu-boi tende a desaparecer ou perder

suas funções nas situações de transformação da sociedade tradicional. Esse folguedo

acompanha as mudanças da sociedade tradicional e quase não consegue se manter quando

esta se moderniza, tornando-se mais presente apenas no meio rural. Mas, para a autora,

mesmo que essas manifestações folclóricas conseguissem permanecer na nova sociedade

moderna, suas funções seriam reinterpretadas ou perdidas.

Para a autora, o folclore brasileiro é muito pouco estudado “nas suas funções que

desempenha como elemento característico das sociedades tradicionais, e menos ainda

como uma sobrevivência nas sociedades modernas a que tem de se adaptar para não

desaparecer” (Queiroz. 1967). Ela ressalta ainda a importância que se deve dar para a

iniciativa de decifrar quais os processos da dinâmica social estão implicados na modificação

e na conservação da herança cultural.

Estudos de Folclore e Sociologia

Tendo em vista suas análises a respeito do folclore brasileiro, torna-se crucial

discutir brevemente a relação das ciências sociais dos anos 1950 com os chamados estudos

de folclore. O tema do folclore já estava em voga quando se inicia o processo de

institucionalização do ensino superior dessas disciplinas. Nessa década, foram criadas a

Comissão Nacional do Folclore (1947) e a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro

(1958), marcando um período de apogeu na história desse campo de estudos. De acordo

com Cavalcanti e Vilhena (1990), pode-se dizer que Sociologia, Antropologia e Folclore

eram, na época, “interlocutores próximos”.

Os anos 1940 e 1950 foram de forte vitalidade para os estudos de folclore e

também um período de transição no desenvolvimento das ciências sociais no Brasil,

quando a institucionalização desse campo, iniciada na década anterior, consolidava-se.

Apesar do lugar relativamente periférico que o folclore ocupou no espaço acadêmico da

época, Luís Rodolfo Vilhena aponta para a “impressionante capacidade que (o movimento

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

15

folclórico) demonstrou de mobilizar a opinião pública em torno dos temas da identidade

nacional e da cultura popular” (1997: 27, 28). O projeto do movimento folclórico visava,

antes de tudo, sensibilizar a sociedade, as autoridades e os demais intelectuais para a

importância do assunto.

Podemos situar as pesquisas de Pereira de Queiroz sobre o tema do folclore, em

especial a pesquisa sobre a Dança de São Gonçalo (Queiroz, 1958) nesse panorama

intelectual. O tema do folclore inseriu-se então na pauta de discussões dos teóricos da

época, sendo frequentemente alvo de interpretações divergentes, principalmente no que se

refere à natureza dos estudos de folclore como disciplina científica. Florestan Fernandes foi

a principal figura que, privilegiando o procedimento sociológico, rejeitou a idéia do folclore

como uma disciplina autônoma, contrariando, assim, os ideais dos folcloristas da época.

Pereira de Queiroz, ao participar da polêmica, enfatizou a aplicação do método

sociológico aos estudos dos fatos folclóricos. Isso significava analisá-los como parte do

modo de vida das comunidades em que estavam inseridos. Ou seja, os significados dessas

manifestações só poderiam ser compreendidos quando fossem estudados,

metodologicamente, a partir do contexto sociocultural de que faziam parte. A autora

encarava a sociologia como uma nova maneira de se analisar a cultura brasileira. Seguindo

os passos de Florestan Fernandes, ela argumentava que

sendo o fato folclórico um fato social, cumpre examiná-lo sob esse aspecto, e para tal é necessária uma formação sociológica. (...) A sociologia, neste caso, está servindo como um processo para a análise do fato folclórico; ela é um instrumento de trabalho posto ao serviço do folclore, visando esclarecê-lo. (Queiroz, 1958)

Em seus trabalhos, Maria Isaura preconizava: a) a descrição do fenômeno

folclórico; b) a análise de sua integração ao sistema sócio-cultural de que é parte; c) o

estudo de sua função social. O tema do folclore local era um elemento essencial nas

análises de pesquisas sociológicas, na medida em que possibilitava uma compreensão mais

ampla da organização e da estrutura geral do grupo vigente. Desse modo, enquanto a

sociologia estava a serviço do folclore, as expressões culturais serviam a um conhecimento

sociológico mais global, pois ao estudá-las, abarcava-se também a economia, a religião, a

cultura, a estrutura social, os jogos de poder, de uma dada sociedade.

Apesar das divergências em relação aos folcloristas, pode-se perceber que

analisando as tradições, as danças, os cantos, os festejos, os estilos de vida, como procurou

fazer principalmente em sua pesquisa sobre a Dança de São Gonçalo, a socióloga acabou

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

16

por coincidir parte importante de seu campo de investigação com aquele tipicamente

cultivado entre antropólogos e folcloristas2.

A questão da mudança social

O enfoque sociológico de Pereira de Queiroz apoiava-se em uma visão histórica,

que direcionava a atenção tanto para as continuidades quanto para as transformações de

diversas práticas religiosas e comemorativas. Nesse sentido, sua concepção de continuidade

pode ser evidenciada quando a autora afirma que o bumba-meu-boi e a dança de São

Gonçalo “têm por função principal a manutenção da estrutura e organizações sociais

tradicionais, não só fomentando a coesão e a solidariedade internas, como também

reafirmando a vigências dos valores que tornam possível a existência em comunidade.” Por

outro lado, seu interesse pelos processos de transformação se verifica à medida que

esclarece que a permanência dos elementos tradicionais se perde com o aparecimento de

novas estruturas e valores advindos do movimento de modernização.

O tema da mudança social é crucial em seus trabalhos sobre cultura brasileira. A

idéia de tradição, tão discutida nos trabalhos de Pereira de Queiroz, não deve ser associada

ao conceito do imobilismo, do imutável. A tradição envolvia uma transmissão viva, ativa, a

coexistência com a criatividade, com a inovação (Queiroz, 1982). O espetáculo do bumba-

meu-boi, por exemplo, difundia os valores ideais da sociedade tradicional, reforçando sua

obediência, mas era, ao mesmo tempo, “um episódio dramático” que servia para a

“expressão de talentos locais” e para a realização de vocações artísticas criativas.

Pereira de Queiroz afirmava, portanto, que os fatos folclóricos desempenham um

papel conservador, integrador de estruturas e valores. Porém, esse caráter preservador do

folclore não impedia a autora de enaltecer a dinâmica da cultura e da sociedade,

argumentando que as manifestações folclóricas estão vivas e, ligadas ao seu grupo, sofrem

com as mudanças que abalam a própria estrutura e organização social da coletividade.

Desta maneira, quando ocorre uma desorganização interna que põe em perigo a

solidariedade grupal, formas folclóricas específicas tendem a ser substituídas por outras,

num constante processo de surgimento e desaparecimento.

2 De acordo com Gláucia Villas Boas (1999), Maria Isaura, em sua busca incessante da identidade cultural brasileira, conjugava tratamentos antropológicos e históricos, sob a primazia da sociologia.

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

17

O tema do folclore em Roger Bastide

Os estudos de folclore e cultura brasileira realizados por Pereira de Queiroz estão,

ainda que implicitamente, em diálogo com as concepções de seus mentores Roger Bastide e

Florestan Fernandes. Procuro delinear um panorama geral das experiências intelectuais

desses dois autores no campo do folclore e evidenciar suas peculiaridades teóricas, mas

também suas conformidades com a obra de Pereira de Queiroz.

No caso de Roger Bastide, tomamos como parâmetro principalmente seu livro

intitulado “Sociologia do Folclore Brasileiro” (1959). O sociólogo francês introduz seu estudo

esclarecendo seu conceito de folclore:

A palavra folclore é tomada, neste livro, não no sentido restrito que lhe dão os norte-americanos – o de tradição oral -, mas no sentido mais amplo que lhe atribuem tanto os europeus como os sul-americanos, e que engloba os costumes e festas bem como as lendas e provérbios. O folclore é a cultura inteira do ‘folk’. (Bastide, 1959)

Referindo à citação de Bastide, Pereira de Queiroz, em uma nota de seu artigo

afirma: “De acordo com nosso mestre Roger Bastide, adotamos para folclore o ‘sentido

mais amplo que lhe atribuem os europeus como os sul-americanos’, e não o ‘sentido

restrito que lhe dão em geral os norte-americanos – o de tradição oral’” (Queiroz, 1969:

123). Portanto, já é possível perceber que, se tratando da concepção e definição do termo

folclore, os dois autores se aproximam.

Para Bastide, o folclore só existe encarnado numa sociedade e não levar em conta o

estudo dessa sociedade é apreender-lhe apenas em sua superfície. Assim como Pereira de

Queiroz, sua análise está emoldurada pela noção de que os fatos folclóricos podem não

sobreviver quando certas formas de sociabilidade desaparecem e é por tal razão que o

exame das estruturas sociais, dos grupos, das instituições e do conjunto da organização

social é fundamental para sua compreensão. O folclore está ligado a um gênero de vida e

tende a desaparecer quando este estilo de vida sofre uma brusca modificação.

Além disso, sua abordagem considera o folclore brasileiro, excluindo as

contribuições indígenas, como um folclore de importação, em parte vindo da África e em

parte de Portugal. No caso das tradições portuguesas, o folclore não foi destruído, pois a

mesma sociedade foi transplantada de Portugal para cá, mas ocorreu uma modificação na

medida em que a sociedade se adaptava. Já em relação ao africano, o autor nos diz que:

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

18

a escravidão destruía inteiramente os quadros sociais do folclore e as culturais nacionais flutuavam no vácuo. Se não morreram completamente, é porque a política portuguesa permitiu a reconstituição nas cidades das ‘nações’, o que deixava ao folclore a possibilidade de se ressoldar a quadros sociais parcialmente similares aos da África. (Bastide, 1959: Introdução)

Bastide afirma que se pode praticamente estabelecer uma lei para entender o

folclore brasileiro: tudo o que venha a alterar o gênero de vida europeu ocasiona o

desaparecimento ou a transformação do folclore; tudo o que possa recordar esse tipo de

vida da Europa conduz à manutenção dos traços folclóricos importados. Isso valeria tanto

para o folclore africano quanto o luso.

Roger Bastide faz também uma referência ao procedimento da Antropologia

Cultural para a interpretação do folclore e considera que o ponto de vista culturalista só

poderá ser válido se integrar, e não repelir, o antigo ponto de vista histórico das pesquisas

das fontes do folclore. Portanto, “o ponto de vista culturalista deve ser, num segundo

momento, integrado no ponto de vista sociológico” (op. cit.: Introdução). Sua intenção é

mostrar o perigo de encarar o folclore numa antropologia não sociológica.

Mais uma vez, torna-se perceptível a semelhança deste sociólogo com Queiroz. O

folclore só é compreensível quando incorporado à vida da comunidade, descrito no interior

dos grupos. Bastide traz mais comentários. Conforme as regiões, é possível encontrar

léxicos folclóricos diferentes, seja uma mesma dança com nomes diversos, seja um mesmo

nome compreendendo realidades distintas. Isso decorre do caráter fluido do folclore

brasileiro. Ao contrário do folclore europeu, nossas manifestações apresentam uma

excepcional fluidez e mobilidade, mas isso não impede sua manutenção e perpetuação.

Estamos diante de um folclore que se decompõe e se recria a cada instante. Desta maneira,

as diversidades regionais adquirem grande importância no Brasil. Além disso, para Bastide,

não existe um folclore nacional, pois o folclore data de uma época em que as nações não

tinham ainda se constituído, mas há, por outro lado, folclores internacionais e variações

regionais.

Ao mesmo tempo em que afirma a não existência de um folclore nacional, ou seja,

que aponta para uma dimensão universal das expressões culturais, Roger Bastide

acrescenta, em outro momento, que o folclore está ligado ao patriotismo, sendo parte do

sentimento nacional. Por isso, o estudo sociológico dos elementos folclóricos deve incluir o

que Halbwachs (1925) chamou de “memória coletiva”. A memória do grupo para

funcionar depende da cooperação de todos os membros da comunidade, cada um trazendo

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

19

lembranças que se completam mutuamente e que só podem ser evocadas quando há um

momento de encontro de uns com os outros. A memória coletiva, ao juntar esses

fragmentos das lembranças individuais pode reconstituir o folclore puro. O que subsistirá

será aquilo que estiver mais profundamente cravado no coração.

Outro ponto marcante nos estudos deste autor é saber em que medida o folclore

português, base do folclore brasileiro, pôde resistir à sua brusca transplantação para o

Brasil. Se o folclore está ligado a um tipo de vida e desaparece quando este é destruído,

como se apresentou a situação do folclore português na mudança para um novo gênero de

vida? A partir desta evidência, Roger Bastide faz sua primeira conclusão:

o folclore vive em dois planos, (...) inicialmente no plano material, na infra-estrutura dos vilarejos, na morfologia dos grupos, dos sexos e das idades, no ritmo das estações e das festas e também na consciência dos homens, em seus sentimentos e atitudes, como realidade espiritual. É esse segundo folclore que os portugueses trouxeram com eles, como saudade da Mãe-Pátria. (Bastide, 1959: 12)

Em relação aos indígenas, Roger Bastide se refere ao folclore incipiente do Brasil

formado por fragmentos dramáticos da vida dos santos entremeados de danças nativas; um

sincretismo entre o catolicismo jesuíta e os jogos indígenas. Em relação aos africanos, são

as condições sociais que determinaram a formação de seu folclore no Brasil. Aqui também

houve uma justaposição do que ele chamou de arque-civilização negra e de um folclore

artificial imaginado pela Igreja. Tratava-se de emprestar das civilizações africanas certos

elementos “utilizáveis”, mas mudando-lhes a função.

Para Bastide, o folclore dos negros entra em processo de desaparecimento à medida

que há um desenvolvimento da instrução, uma melhoria econômica deste e uma imitação

dos jovens pelas danças dos “civilizados”. Desta maneira, tanto este folclore quanto o dos

índios acabam encontrando seus últimos vestígios no carnaval. Mais uma vez aparece a

similaridade com Pereira de Queiroz, a sobrevivência das manifestações folclóricas

depende da solidariedade dos grupos, desaparecendo onde quer que sua força se afrouxe, e

subsistindo onde a solidariedade é mais estreita.

O folclore, acrescenta o autor, necessita de um grupo social para viver, “mas é

preciso ainda que ele encontre seu lugar num conjunto estrutural, num gênero de vida que

englobe toda a comunidade brasileira (...) e que possa localizar sua ação num calendário

fixo, numa duração socialmente ordenada” (Bastide, 1959: 22). Daí ele assinala a

necessidade de que o folclorista brasileiro reconheça o estudo das organizações de folclore,

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

20

com seu regulamento, hierarquia, tipos de solidariedade, “em vez de limitar-se a simples

descrição, de certo modo anatômica, da festa em si mesma” (Bastide, 1959: 22). Também

aqui, de modo semelhante à Pereira de Queiroz, se considera limitado o trabalho feito pelos

folcloristas.

Outra semelhança aparece no que se refere às manifestações religiosas, como a

Dança de São Gonçalo. O restrito número de sacerdotes para uma população tão dispersa

nessa imensidão do país leva a comunidade camponesa de origem missionária a refazer-se a

si própria e a se proporcionar “‘o seu próprio alimento místico’. (...) A fé das populações

rurais, ante a qualquer ausência de qualquer fiscalização de Igreja, cria seus próprios órgãos

e instituições. A vigília européia é aqui substituída pelo culto, privado mas festivo, onde a

reza continua através da dança e do canto” (op. cit.: 23).

Pereira de Queiroz em seu artigo “Três sobrevivências portuguesas na civilização

rústica brasileira” (1973), faz um comentário sobre essa situação presente no Brasil:

Acreditamos que o papel de rito funerário assumido pela Dança entre nós se deva principalmente a caracteres específicos do meio rural brasileiro, onde houve sempre grande falta de padres. (...) A Dança de São Gonçalo, por sua vez, assumiu uma das funções da missa: a de aliviar as almas que partem para o outro mundo. (Queiroz, 1973: 181)

Bastide (1959: 24) ainda acrescenta: “o folclore rural torna-se assim a missa da

gente humilde”. Assim, para esses autores, esse catolicismo acaba, muitas vezes, se

expressando em manifestações folclóricas e se conformando às necessidades subjetivas da

comunidade, de acordo com suas angústias e possibilidades econômicas.

Finalmente, uma idéia geral da concepção de folclore de Bastide se delineia na

afirmação de que os folclores indígena, africano ou português, por serem móveis,

deslocam-se ao longo do calendário, “fixando-se ao sabor das folganças populares. Sente-se

que o que mais importa é a alegria da reunião, o sentimento da solidariedade vivida” (op. cit.:

31).

O folclore é fruto da cooperação e necessita da vida em comunidade. É um complexo de gestos, em que cada grupo representa seu papel e que se completa na festa coletiva. Onde as condições de vida são muito duras, onde a estrutura social se apresenta sob a fórmula de uma aglomeração de famílias e, não, da colaboração de grupos funcionais; onde a rarefação da população ou dos recursos se acentua e o homem sente-se esmagado pelo meio que o cerca – as tradições populares acabam por se estiolar e desaparecer. No Brasil, reciprocamente, o folclore tem um caráter tanto urbano como rural (...). Foi somente a

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

21

partir do desenvolvimento da industrialização e já sob a República, que a cidade perdeu essa função conservadora do folclore (idem, 1959: 46)

Folclore em Florestan Fernandes

Florestan Fernandes é outra figura importante para a trajetória intelectual de Pereira

de Queiroz. Sua passagem pelo campo do folclore foi marcada pela polêmica a respeito da

natureza do folclore como disciplina independente. O sociólogo rejeitava a idéia de

transformá-lo em uma ciência autônoma. Apesar dos estudos de folclore terem sido

considerados por Florestan como “uma área de aprendizagem (de 1941 a 1945) e um setor

marginal no âmbito das suas preocupações” (Fernandes, 2003: XII), não se pode negar a

importância desses trabalhos para sua formação e para o debate acerca do papel do folclore

no campo intelectual do país. Tomamos como referência para a análise o livro “O folclore em

questão”, que, editado pela primeira vez em 1978, reuniu o diálogo travado, entre os anos

1941 a 1962 com os estudos do folclore brasileiro.

Como Pereira de Queiroz, Fernandes também teve como mestre o sociólogo Roger

Bastide, cuja importância para seu aperfeiçoamento no campo do folclore foi assim

reconhecida:

Roger Bastide, o grande estimulador de quase todos esses estudos, sugere-nos como explorar o folclore na investigação da sociedade brasileira: seja na análise das origens e evolução das instituições mágico-religiosas afro-brasileiras; seja na interpretação das influências dinâmicas – de natureza geográfica, econômica, psicocultural ou social – que permitem esclarecer as transformações do folclore europeu na Brasil e na sua fusão com outros folclores, nativos ou africanos. (Fernandes, 2003: 112)

Em outra passagem, podemos perceber as semelhanças da noção de folclore

utilizada por Florestan, Roger Bastide e Maria Isaura Pereira de Queiroz. A abordagem do

folclore como “realidade objetiva” adotada por esses sociólogos seria definida por

Fernandes da seguinte maneira: “por fim, a (direção) mais inclusiva e elástica, freqüente nas

investigações sociológicas, que converte o folclore em verdadeiro sinônimo da noção de

‘folk culture’ ou ‘cultura popular’” (op. cit.: 110). O folclore abrange “todos os elementos

culturais que constituem soluções usuais e costumeiramente admitidas e esperadas dos

membros de uma sociedade, transmitidas de geração a geração por meios informais”

(Fernandes, 2003: 110). Essa conceituação, do ponto de vista da sistematização dos dados,

teria “a vantagem de englobar elementos da cultura material, ergológica, como elementos

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

22

de natureza não material’ (idem). Mais tarde, parece que os estudiosos que se utilizavam de

tal caracterização reconheceram a vantagem de conceituações mais restritas e precisas,

como as preferidas pelos etnólogos.

A maior preocupação de Fernandes em relação aos estudos de folclore foi revelar a

contribuição que o sociólogo, e outros cientistas sociais, podiam dar à investigação

folclórica, assim como esclarecer os contornos da esfera do trabalho intelectual específica

do folclorista propriamente dito. Em sua visão, a preocupação de “salvar” e de:

prestigiar o folclore estava se dissociando, cada vez mais, do fervor de estudá-lo objetivamente, de modo intensivo e sistemático. Ele afirma, também, que essa excitação dos folcloristas, e demais intelectuais, pelo folclore brasileiro e pelos estudos folclóricos em geral esteve sempre entrelaçada “na raiz da busca de uma identificação mais profunda e mesmo de uma certa comunhão da intelligentzia brasileira com o ‘saber popular’ e com os estratos ao mesmo tempo mais humildes e mais conspícuos do Povo. (Fernandes, 2003: XXI)

Para Fernandes, “os propósitos científicos ambiciosos”, nas análises do folclore,

sempre se propuseram a se fixar somente nos aspectos formais das manifestações

folclóricas. Porém, era preciso levar em consideração a necessidade de observar e conhecer

o folclore “como uma dimensão psicocultural das condições de existência social” (op. cit.:

10). Há aqui, no que diz respeito à utilização dos estudos de folclore, uma forte semelhança

com a abordagem de Pereira de Queiroz. De acordo com o autor, o etnólogo ou o

sociólogo não estudam o folclore propriamente dito, como fazem os folcloristas, mas a sua

inserção e influência na organização da personalidade, da cultura e da sociedade; as

manifestações folclóricas seriam extremamente relevantes para a compreensão da dinâmica

social.

Assim, Fernandes reafirma que a investigação do folclore permite aos cientistas

sociais perceber os fenômenos que lançam enorme luz sobre o comportamento humano,

como a natureza dos valores culturais de uma coletividade, as condições em que eles se

atualizam, a importância deles na formação do horizonte cultural dos membros dessa

comunidade, as situações que eles emergem como sentimentos compartilhados

coletivamente, a sua significação como índices do tipo de integração, do grau de

estabilidade e do nível civilizatório do sistema sociocultural, etc. (Fernandes, 2003: 11).

Em outro momento, referindo-se a si próprio, o autor comenta: “Florestan

Fernandes procura descrever como a preservação, a transformação e as funções

socializadoras do folclore se vinculam à estabilidade de certas formas de organização da

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

23

vida grupal ou ao ritmo de mudança da sociedade paulistana como um todo” (op. cit.: 111).

É claramente perceptível a semelhança com Queiroz que preocupa-se em perceber a

relação das manifestações folclóricas com a mudança da sociedade em que elas estão

inseridas. Posteriormente, o autor mostra que seus estudos de folclore se concentraram em

São Paulo e que jamais poderiam ser encarados como uma norma ou um tratado do

folclore brasileiro. Diferente de Bastide, que parecia admitir, segundo a tradição francesa,

que o folclore é uma ciência social particular, Fernandes, como já foi dito, relutava em

conferir ao folclore a condição de ciência positiva autônoma. Em sua visão, o estudo

científico do folclore não poderia ser unificado, justamente porque cada ciência social

analisa os dados folclóricos a partir do seu próprio ponto de vista (psicológico, sociológico,

antropológico, histórico, etc.). Não caberia ao folclore, portanto, reduzir os diferentes

pontos de vista a um denominador comum, “o folclore, como ponto de vista especial, só se

justifica como disciplina humanística” (Fernandes, 2003: 6). O folclore, como realidade

cultural, psicocultural ou sociocultural, constitui objeto de investigação científica de

disciplinas como a etnologia, sociologia, psicologia, através dos métodos e recursos

próprios destas. O folclore, como disciplina humanística, pode, portanto, lançar mão do

trabalho científico, mas isso não justifica sua consideração como uma ciência independente

propriamente dita.

Nesse sentido, “os fatos apresentados e caracterizados como folclóricos estão

compreendidos numa ordem de fenômenos mais ampla – a cultura – e podem ser

estudados como aspectos particulares da cultura de uma sociedade, tanto pela sociologia

cultural como pela antropologia.” (op. cit.: 13) Os fatos folclóricos se referem a modalidades

diferentes de uma cultura e, portanto, só podem ser estudados a partir dessa mesma

cultura.

A visão do folclore como realidade social é compartilhada tanto pelos folcloristas

quanto pelos cientistas sociais. Mas Fernandes não abre mão de apontar as diferenças entre

esses dois campos intelectuais. Assim como Queiroz, ele considera que o treinamento do

folclorista leva-o a analisar o folclore em si mesmo, enquanto uma modalidade do saber

humano, pondo em relevo, principalmente, os caracteres estéticos que lhe são intrínsecos.

Já os sociólogos e demais cientistas sociais, preferem estudar os fatos folclóricos em

conexão com o comportamento humano, com a dinâmica da cultura e com a organização

da sociedade. Porém, os dois procedimentos estão expostos a limitações e a fraquezas.

Sendo assim, o essencial para Fernandes é que os folcloristas e os cientistas sociais,

empenhados pelos estudos de folclore, entrem num consenso, numa colaboração

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

24

interdisciplinar. A análise do folclore tem muito a aproveitar das contribuições dos

folcloristas, no que se refere ao registro e classificação do material, e dos cientistas sociais,

no que se refere à percepção do folclore como um todo socialmente integrado. Quando

isso for possível, os estudos de folclore estarão submetidos a menores lapsos e terão

melhores qualidades, supõem Florestan Fernandes.

Para finalizar, os elementos folclóricos abrangem indistintamente todas as classes

sociais, na visão do autor. Esses elementos folclóricos, expressando, algumas vezes, regras

de conduta,

passam a agir como um dos veículos de uniformização dos padrões de comportamento, contribuindo para tornar possível a vida em sociedade, criar uma mentalidade característica dessa sociedade tomada como um todo, pelo menos quanto aos seus valores essenciais, e perpetuar a configuração sociocultural em que esses valores estão integrados. (Fernandes, 2003: 45)

Considerações Finais

Certas concepções acerca do folclore e da cultura brasileira permeiam a obra desses

três autores. Apesar de partirem de pontos de vista diversos e de enfatizarem aspectos

diferentes na discussão dos estudos de folclore, Pereira de Queiroz, Bastide e Fernandes

apresentam muitas questões em comum, adotam também conceitos similares e

interpretações que se complementam.

Pereira de Queiroz baseou suas pesquisas principalmente em dados etnográficos,

em trabalhos de campo e em análises de manifestações e expressões culturais específicas,

buscando por essa via perceber as formas de relacionamento interno da sociedade e

deduzir noções mais amplas do folclore nacional. A socióloga partiu das interpretações da

dança de São Gonçalo e do Bumba-meu-boi e inseriu suas reflexões no campo mais

abrangente das discussões sobre identidade e cultura brasileira. Sua pesquisa aponta

também para dimensões e metodologias antropológicas, pois, a partir de dois casos

particulares de cultura popular, ela reflete sobre o papel e a função que o folclore, enquanto

realidade vivida, exerce em dada comunidade ou grupo social.

Já Bastide parece elaborar seu discurso fazendo freqüentemente um contraponto

com o folclore ocidental europeu. Além disso, sua análise procura dar conta da

especificidade de cada matriz cultural, a indígena, a africana e a portuguesa, colocando em

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

25

evidência os caminhos de cada uma até se fundirem e formarem o que hoje é o folclore

brasileiro; por isso, considera o nosso folclore como uma expressão importada, dando

grande ênfase à questão do sincretismo cultural forjado no Brasil. Como apontou Peixoto

(2002), Bastide se apresenta como um intérprete estrangeiro em terras brasileiras. Seu

interesse pela autenticidade da cultura brasileira não se realiza apenas na busca de produtos

genuinamente nacionais, mas inclui também

a contribuição de legados culturais distintos que se mesclaram em diferentes momentos da história do país, e que produziram sínteses particulares, diferentes dos padrões primeiros que aqui chegaram. A originalidade corresponde à mescla cultural, à criação dotada de caráter próprio, não se confundindo, portanto, com ‘pureza’ ou ‘cópia’. (Peixoto, 2002)

Fernandes, tendo como referência principalmente o folclore paulista, se empenhou

em fazer uma análise crítica dos estudos de folclore, procurando discutir como esse tema se

inseria nas ciências sociais da época. Dedicou-se a pensar na relação do folclore com os

demais campos de conhecimento que se definiam naquele tempo, como a sociologia, a

antropologia, a etnologia e a psicologia.

Desse modo, dando prioridade a diferentes questões, esses três autores adotaram

abordagens parecidas, apreendendo as ocorrências folclóricas como ligadas às situações

sociais de vida. Para eles, as manifestações culturais estão abarcadas pela sociedade e

evidenciam a integração da coletividade ao expressarem o sentimento comum do grupo, ao

unificarem seus comportamentos e suas mentalidades a partir de valores compartilhados.

Noções como “solidariedade”, “cooperação”, “papel social” do grupo ou dos indivíduos,

integram a concepção de folclore desses autores. Verificam-se também similaridades

quanto ao procedimento sociológico e quanto à idéia de um risco de desaparecimento das

manifestações folclóricas causado pela alteração do gênero tradicional de vida.

O contexto intelectual

Produzindo no contexto das décadas de 1940 a 1960, Fernandes, Bastide e Pereira

de Queiroz viveram em uma época em que a questão da identidade brasileira emergia com

total vigor. O debate sobre “construção nacional” se apresentava em diversos âmbitos,

sendo assunto corrente entre os intelectuais do período, tanto sociólogos quanto

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

26

folcloristas. Esses autores se valiam da dinâmica das manifestações folclóricas para alcançar

melhor conhecimento do nosso país e buscavam assim definir o “caráter brasileiro”.

Os folcloristas engajados neste empenho efervescente da época, por meio do viés

particular do folclore, procuravam chegar a uma visão global da nação e da própria cultura.

No entanto, como mostrou Luís Rodolfo Vilhena (1997), enquanto os sociólogos foram

considerados intérpretes do Brasil, os folcloristas, não menos ativos nesta discussão, foram

vistos como intelectuais não acadêmicos. Pereira de Queiroz, Bastide e Fernandes

contrapuseram-se freqüentemente às abordagens teóricas dos folcloristas, pois supunham

uma falta de rigor científico nas análises destes últimos. Porém, apesar das oposições, esses

dois grupos de estudiosos (sociólogos e folcloristas) se dedicaram a temas comuns, o da

cultura brasileira e do folclore, para, a partir daí, contribuírem para a definição da

identidade nacional.

Essa convergência dos objetos de estudo parece estar ligada, por um lado, à própria

expansão temática e teórica no campo das ciências sociais nesse período, que abria espaço,

nos meios institucionais, para a interpretação de diversos aspectos da vida social, como, por

exemplo, o folclore. Por outro lado, vincula-se, como mostrou Vilhena (1997), ao fato de o

movimento folclórico ter em vista a criação de um ambiente nacional propício aos ideais

folcloristas. As ações de proteção e valorização do folclore e da cultura popular visavam,

principalmente, atrair a atenção da sociedade e dos demais intelectuais para a discussão do

tema. Desse modo, não se pode negligenciar a contribuição dos folcloristas para a

vitalidade dos estudos de folclore, que se impuseram tanto em diversas pesquisas da época

quanto em várias esferas das políticas culturais do país.

Algumas considerações sobre folclore e cultura brasileira nos dias de hoje

Pensando em termos atuais, pode-se perceber que a mobilização em torno do

folclore e da cultura popular continua vigorosa, atingindo outros âmbitos. Tais

manifestações têm sido valorizadas e reativadas em museus, movimentos sociais, filmes e

em programas governamentais – como o do patrimônio imaterial, por exemplo. Considero

que isso reflete uma mudança significativa na perspectiva de dinâmica cultural, daqueles

tempos para cá.

Enquanto nos anos 1950 e 1960 afirmava-se a extrema importância da preservação

do contexto sociocultural para a continuidade das expressões folclóricas, hoje em dia tem

se valorizado a promoção de expressões de caráter tradicional em outros âmbitos, que não

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

27

aqueles onde se originaram. Ou seja, enquanto naquela época as práticas culturais ficavam

praticamente restritas às suas próprias localidades, cada vez mais verifica-se uma ampla

circulação de manifestações culturais justamente com o objetivo de promover a divulgação,

a vitalidade e a permanência destas. Desse modo, danças, cantos e músicas tradicionais

saem de suas conjunturas e são realizadas em outras esferas sociais, econômicas, culturais,

sem a idéia de que este caminho ocasione perdas de suas especificidades congênitas.

Políticas públicas e ações governamentais vêm promovendo, pelo mundo afora,

shows e apresentações de expressões culturais tradicionais pensando, assim, na sua

promoção e efervescência. Os espetáculos em outras cidades ou em casas de shows acabam

servindo como estímulo para ensaios de danças, toques e gestos, além de atraírem a atenção

de outras gerações, que passam a querer participar do folguedo. Além disso, o coco, o

cavalo-marinho, a ciranda, o maracatu, por exemplo, têm ganhado novos espaços

socioculturais através de conjuntos musicais que se utilizam de seus ritmos e cantos. Do

meu ponto de vista, essa movimentação não deixa de ser também um mecanismo de

preservação das culturas populares.

Atitudes como estas parecem indicar o intento de integração da cultura popular no

mundo moderno, globalizado, cosmopolita. Atualmente, procura-se pensar em como as

culturas populares podem se aliar ao desenvolvimento econômico do grupo ou até da

região a que pertencem. A preocupação passa a ser como conciliar o avanço tecnológico,

urbano, industrial com a dinâmica e a diversidade cultural. Essa postura parte de políticas

governamentais ou de órgão públicos que não podem desprezar o progresso econômico e

social; porém, não deixam de lançar um novo olhar sobre as atividades das culturas

populares, assim como fizeram Pereira de Queiroz, Bastide e Fernandes em seu tempo.

É importante, contudo, frisar que o trânsito das culturas populares para além de

seus ambientes de origem não significa obrigatoriamente descuido com as condições de

produção e reprodução das manifestações populares e com a preservação de nossos bens

culturais. A noção contemporânea de patrimônio imaterial, por exemplo, embora operando

com perspectivas diversas daquelas dos autores examinados também se voltou para o tema

da preservação, dinâmica e mudança das práticas culturais tradicionais em seus contextos

de origem. Essas questões permanecem atuantes nos debates teóricos e metodológicos

contemporâneos, assim como nas políticas públicas que focam sua atenção nas culturas

populares correntes. Isso não pode deixar de ser atribuído, em parte, ao empenho de

Pereira de Queiroz, Bastide e Fernandes, que, dialogando com o Movimento Folclórico,

contribuíram para a vitalidade de uma discussão que permanece atual.

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

28

BIBLIOGRAFIA:

BASTIDE, Roger. 1948. “Opiniões sobre o Folclore”. In: O Pensamento da América. Rio de

Janeiro, 25 de janeiro.

________. 1959. Sociologia do Folclore Brasileiro. São Paulo: Editora Anhambi S. A.

________. 1949. “Variações sobre Tradições Populares”. In: O Estado de São Paulo. 8 de

janeiro.

BRANDÃO, Theo. 1953. O Reisado Alagoano. Separata da Revista do Arquivo Municipal nº

CLV. Departamento de Cultura. São Paulo.

________. 1961. “Folguedos natalinos de Alagoas”. In: Estudos alagoanos. caderno 9.

Maceió: Departamento Estadual de Cultura.

CASCUDO, Luís da C. 1954. Dicionário do Folclore Brasileiro . Rio de Janeiro: INL.

CAVALCANTI, M. L. V. C.; VILHENA, L. R. 1990. “Traçando Fronteiras: Florestan

Fernandes e a Marginalização do Folclore”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro. vol. 3, nº

5, p. 75-92.

FERNANDES, Florestan. 2003. O Folclore em Questão. 2ª ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes.

GLUCKMAN, M. 1952. “Rituals of Rebellion in South-East Africa”. In: Order and Rebellion

in Tribal Africa. London: Kohen & West.

HALBWACHS, M. 1925. Les Cadres Sociaux de la Mémoire. Paris: Presses Universitaires de

France.

PEIXOTO, Fernanda. 2002. “Mário e os primeiros tempos da USP”. In: Revista do

Patrimônio Histórico Artístico Nacional. nº 30, IPHAN.

QUEIROZ, Maria. I. P. de. 1977. “A sociologia brasileira na década de 40 e a contribuição

de Roger Bastide”. In: Ciência e Cultura. São Paulo. v. 29, n. 12.

________. 1960. “Aspectos gerais do messianismo”. In: Revista de Antropologia. São Paulo.

v. 8, n.1.

________. 1982. “Balanço da tradição de pensamento sobre cultura e sociedade a partir do

século XIX no Brasil”. In: Cadernos Ceru. São Paulo. 17.

________. 1980. “Cientistas sociais e o auto-conhecimento da cultura brasileira através do

tempo”. In: Cardernos Ceru. São Paulo. n. 13.

________. 1969. “Funções Sociais do Folclore”. In: Vozes. v. 63, nº10.

________. 1967. “O bumba-meu-boi, manifestação de teatro popular no Brasil”. In: Revista

do Instituto de Estudos Brasileiros. n. 2. São Paulo.

Textos da Iniciação Científica. Nº 11

29

________. 1973. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil.

Petrópolis: Vozes.

________. 1965. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Dominus/Edusp.

________. 1957. “O movimento messiânico do Contestado e o folclore”. In: II Reunião

Brasileira de Antropologia. Anais. Salvador.

________. 1958. Sociologia e Folclore: a dança de São Gonçalo num povoado baiano. Salvador:

Progresso.

________. 1978. “Uma nova interpretação do Brasil: a contribuição de Roger Bastide à

sociologia brasileira”. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo. n. 20.

VILLAS BÔAS, Gláucia K. 1999. “Entre a tradição e a contemporaneidade: a sociologia de

Maria Isaura Pereira de Queiroz”. In: KOSMINSKY, Ethel. (Org.). Agruras e prazeres de uma

pesquisadora: a sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Marília: UNESP / Fapesp.

VILHENA, Luís Rodolfo. 1997. Projeto e Missão, o movimento folclórico brasileiro 1947-1964. Rio

de Janeiro: Funarte, FGV.