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ESPIRAL DO TEMPO > 55 Na sobriedade da fachada do Teatro de São Carlos, um relógio orienta os dias da cidade. À boca de cena, outro marcador de tempo é um exímio observador da sociedade. O pano de fundo é o mesmo, mas cada um marca o seu prórpio tempo. TEATRO NACIONAL DE S. CARLOS texto Vanda Jorge > fotos Nuno Correia A DOIS TEMPOS REPORTAGEM

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ESPIRAL DO TEMPO > 55

Na sobriedade da fachada do Teatro de São Carlos, um relógio orienta

os dias da cidade. À boca de cena, outro marcador de tempo é um exímio

observador da sociedade. O pano de fundo é o mesmo, mas cada um

marca o seu prórpio tempo.

TEATRO NACIONAL DE S. CARLOS

texto Vanda Jorge > fotos Nuno Correia

A DOIS TEMPOS

REPORTAGEM

Orelógio da sala de ópera está so-bre o palco, mas nunca chegou asua hora de subir ao palco. Lá noalto, o seu ar vigilante é eviden-

te, diz-se mesmo acerca do Teatro de São Car-los que se falasse seriam muitas as históriasque teria para contar. Viu de perto MariaCallas, ouviu vezes sem conta Verdi, Wagner ePuccini, poderia contar as histórias de suicí-dio, a da bailarina que se torna princesa e a dopolítico que, neste palco, num comício histó-rico, implanta a Mocidade Portuguesa.

Fora de cena e sem protagonismo, o reló-gio tem sido apenas um espectador atento aestas e a muitas outras histórias, mas comonão aplaude, também não é aplaudido. Os anos foram-lhe roubando utilidade e, ac-tualmente, não é mais do que um elementodecorativo, mantendo, no entanto, o seu ardiscreto e gracioso, o mesmo com que se apresentava à sociedade lisboeta dos séculosXVIII e XIX.

O teatro lírico de São Carlos, inauguradoem 1793, nunca foi entendido como umasimples casa da música. Enquanto símbolo daburguesia em ascensão, torna-se, desde cedo,a casa da sociedade e o centro da vida políticado País, uma espécie de clube da alta socieda-de, onde se festejavam e comentavam os prin-cipais acontecimentos da vida lisboeta, doPaís e de uma sociedade que procurava ser ele-gante. Escreveu Artur Trindade que «(...) em cada noite de São Carlos, fazem-se dez

contratos comerciais, trocam-se 20 juras deamor e oferece-se um quarteirão de colares depérolas. Logo é necessário e útil.»

Tão necessário e útil quanto o relógio àboca de cena.

ANOS DOURADOS DO SÃO CARLOS

Os ensaios são exigentes e os horários rigoro-sos. É no intervalo que separa as duas aulasdiárias de canto que Osvaldo Macedo de Sousaesclarece que, além de útil, «o relógio da salaera importantíssimo», reportando-se à alturaem que o público assistia à ópera sentado nacadeira que trazia de casa e aos serões em que osilêncio não era nota dominante. Osvaldo deSousa está no Coro do São Carlos há vinteanos, partilha a paixão pela música com a car-reira de historiador e o trabalho nas áreas doHumor e da Caricatura. Domina a história e ashistórias que se contam do teatro, conhece osseus protagonistas e é com alguma agrado quefala do relógio dourado, o tal observador dasociedade que tantas vezes foi um elementoimportante aos próprios espectáculos.

Tal como a ópera que ‘ou se ama ou se detesta’, também o palco do São Carlos era de extremos: um sonho para uns e símbolo detemor para outros. Conhecido pela ferocidadenas suas manifestações de desagrado ou pelasatitudes de puro delírio muitas das vezes des-pertadas por motivos políticos, o público doSão Carlos organizava-se por grupos, tal qualos clubes de fãs dos nossos dias, queriam ver e

olhar para o tecto e orientar-se pelos seus ponteiros foi um gesto que o

público aprendeu desde os primeiros espectáculos, já que relógio surge com

a construção do próprio teatro

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Osvaldo Macedo de Sousa

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REPORTAGEM

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soltar uns vivas apenas ao seu cantor eleito, oresto do serão era passado nas salas atrás doscamarotes, numa noite de convívio.

Neste espaço onde ‘se faziam e desfaziamas reputações da época’, sem a possibilidade deolhar para o pulso, o relógio sobre o palco erao único a regrar a noite, «servia, por exemplo,para saber que dentro de dez minutos subia aopalco determinado cantor», explica o histori-ador, e aí o público regressava à sua cadeira.

Olhar para o tecto e orientar-se pelos seusponteiros foi um gesto que o público apren-deu desde os primeiros espectáculos, já querelógio surge com a construção do próprioteatro, como se lê numa referência histórica:

«sobre o vão recto do frontispício há um fron-tão curvo com uma grelha em elementos rocaille e um relógio. Este era ornamentadocom um Cupido que olhava a plateia ladeadopor duas figuras: o tempo empunhando a suafoice e uma musa tocando uma lira». Desserelógio de grandes dimensões e com um enor-me mostrador, ainda há memória, em 1842,altura em que terá sido substituído por umoutro mais pequeno, e em que a simbologia damúsica dá lugar a grinaldas de flores, uma dec-oração mais simplista que se mantém até hoje.No lugar do mecanismo original está um maisrecente que, sem manutenção, se vai tentandomanter fiel às suas funções. Em dias de espec-

táculo acerta-se o relógio da sala que com osmodernos sistemas de legendagem instaladossob o palco volta a sentir os olhares da plateia.

DAR TEMPO AOS CIDADÃOS

É pelo pórtico que hoje se faz a travessia dolargo de São Carlos, o mesmo pórtico ondetantas vezes pararam as carruagens que dei-xavam as senhoras à porta da ópera sem apanharem um único pingo de chuva. O passo é largo e o tempo está contado ao se-gundo, tornando-se quase impossível repararna fachada do monumento, onde os pon-teiros do relógio do frontispício indicam umatraso de vinte minutos, um sinal da sua falta

de orientação que nem os mecanismos mo-dernos conseguem inverter. O largo do teatrotransformou-se num ponto de passagem nacidade longe de ser o tal vértice cultural de-scrito por Eça de Queirós em que depois deum jantar no Grémio Literário, a sociedadebebia um café na Brasileira e assistia à Óperano São Carlos. A importância do Chiado noséculo XIX, a verdadeira nação cultural e polí-tica, fazia também a importância do própriorelógio que tinha então a força de orientar otempo dos cidadãos. A data da sua construçãoé incerta, embora se acredite que terá sidoacrescentado à fachada do monumento nasremodelações de 1956, substituindo o meda-lhão de origem, sendo também essa a dataprovável da alteração no relógio da sala. Incer-ta é ainda a sua origem, mas dado o gosto dosportugueses pelo que vinha de fora, calcula-seque será de fabrico francês ou suíço.

À semelhança de outros edifícios públicosda época, o São Carlos sentiu necessidade dedar o tempo às pessoas e torna-se útil à socie-

dade, numa altura em que «os relógios públi-cos marcavam a posição social do monumen-to», explica Osvaldo de Sousa. Tal como ossinos da aldeia, de que falava Fernando Pessoa,marcavam as horas, instala-se «numa fachadasem interesse para o público, um relógio quechama a sua atenção e se torna um orientadordo tempo dos cidadãos». Em pleno séculoXIX, com um relógio decorado com elemen-tos de rococó, grinaldas de flores e as armas doreino, o São Carlos tornava-se um centro socialimportante com um relógio que finalmentemarcava o ritmo dos dias. O impacte visual e a própria relação da cidade com o relógio do teatro estão diferentes, cada um segue a sua vida sem olhar para aquele conjunto quealguém descreveu como «belo harmonioso eextremamente bem proporcionado». Hoje, co-mo há dois séculos atrás cada um dos relógiosmarca o seu próprio tempo, conhecem de coros seus papéis e nem por isso a expectativa émenor, a noite é de estreia, talvez possam seraplaudidos.

O Teatro de São Carlos ficou famoso pelo

brilho dos artistas que nele têm actuado, ao

longo dos últimos dois séculos. Ficou, também,

famoso por, desde cedo, se ter assumido como

um centro experimental dos avanços tecnológi-

cos. Esta necessidade de estar à frente do seu

tempo fez com que, por exemplo, os primeiros

telefones do País fossem instalados precisa-

mente no São Carlos, uma espécie de solução

financeira que garantia a sobrevivência do tea-

tro. Em 1887, ligava-se, por meio de uma linha

directa, o teatro à casa do ouvinte, que, não

podendo estar presente no espectáculo, podia

ouvir a ópera pelo telefone. A própria família

real consta da lista desses utilizadores.

O preço aumentava segundo a distância a que morasse o assinante

e consoante a récita fosse ordinária ou extraordinária, e assim que o

utente pegava no telefone ficava de imediato registada no São Carlos a

sua utilização. A Casa da Ópera faz também parte da história por ter rece-

bido a primeira iluminação eléctrica, numa época em que as ruas de

Lisboa ainda eram iluminadas a gás. Estávamos no ano de 1883, e o

teatro já usava oito lâmpadas de arco voltaico de Brush, suspensas em

torno do lustre de gás que se conservava aceso para o caso de falhar a

electricidade.

A inovação não agradou ao público exigente do São Carlos, que a

considerou insuficiente e desagradável, por dar um aspecto ‘cadavérico

às damas’, voltando-se ao gás. Seguiram-se novas tentativas, mas só

quatro anos mais tarde a iluminação a gás e toda a sua tubagem foi reti-

rada, o teatro foi totalmente electrificado e foi colocado a meio da sala

um grande lustre eléctrico comprado em Paris. Só mais tarde, a partir de

1903, a electricidade se espalhou pela cidade de Lisboa.

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Turandot (Giacomo Puccini) – Teatro Nacional de São Carlos (Janeiro 2004) © Alfredo Rocha

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À noite, a fachada ilumina-se e o relógio assume o seu papel

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Turandot (Giacomo Puccini) – Teatro Nacional de São Carlos (Janeiro 2004).Na foto: Jon Villars (Calaf), Bailarinos da CeDeCe © Alfredo Rocha >

em dias de espectáculo acerta-se o relógio da sala que com os modernos

sistemas de legendagem instalados sob o palco volta a sentir os olhares

da plateia

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REPORTAGEM