texto normativo e norma jurÍdica: aproximaÇÕes e ...texto normativo da constituição e...

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1 TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS ELIEZER PEREIRA MARTINS 1 Este trabalho aborda o significado das expressões "texto normativo" e "norma jurídica", a fim de estabelecer mais precisamente os limites que envolvem a interpretação jurídica e garantir uma melhor compreensão de atuais decisões produzidas pelo STF. Para tanto, elege-se, como premissa de sustentação deste trabalho, a linha de pensamento desenvolvida por Eros Roberto Grau, ilustre jurista e ex-Ministro do STF. 1 Mestre e doutorando em direito (PUC/SP)

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    TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS

    ELIEZER PEREIRA MARTINS1

    Este trabalho aborda o significado das expressões "texto

    normativo" e "norma jurídica", a fim de estabelecer mais

    precisamente os limites que envolvem a interpretação jurídica e

    garantir uma melhor compreensão de atuais decisões produzidas

    pelo STF.

    Para tanto, elege-se, como premissa de sustentação deste

    trabalho, a linha de pensamento desenvolvida por Eros Roberto

    Grau, ilustre jurista e ex-Ministro do STF.

    1 Mestre e doutorando em direito (PUC/SP)

  • 2

    De pronto, vale rememorar a advertência de Celso Lafer, no

    sentido de que:

    "Não existe um critério unívoco da boa e correta

    interpretação, assim como não existe um critério unívoco

    da boa e correta tradução (...) No caso do Direito, a

    uniformização do sentido do jurídico, pela interpretação,

    tem a ver com o poder da violência simbólica, que, se

    apoiando na autoridade, na liderança e na reputação,

    privilegia um enfoque, entre muitos enfoques possíveis,

    que passa a ser o uso competentemente consagrado de

    uma escolha socialmente prevalecente".2

    Com isso, inicia-se a exposição com a simples afirmativa, e não

    menos importante, que sustenta: "todo e qualquer texto normativo é

    obscuro até o momento da interpretação". 3

    De efeito, cabe assentar, desde logo, que se rejeita a incidência

    do adágio latino in claris cessat interpretatio (a clareza afasta a

    interpretação), certo que, a nosso ver, todo texto normativo exige a

    devida interpretação jurídica.

    Apresentadas essas premissas gerais e no afã de registrar os

    pontos de ancoragem desta pesquisa, é de rigor a exposição de duas

    noções, a saber: a primeira, refere-se ao "texto normativo", ao

    aspecto físico, textual, escrito, verbi gratia, de um dispositivo legal; a

    1 In Tércio Sampaio Ferraz Junior. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2010,

    prefácio, XVIII. 2 Trecho de voto da lavra do ex- Minstro Eros Grau - Revista Trimestral de Jurisprudência do

    Supremo Tribunal Federal, Volume 216, p.22.

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    segunda, pertine à interpretação do texto, atividade de índole

    constitutiva exercida com base numa dada realidade histórica

    marcada no tempo e no espaço.

    Pois bem. Passa-se, então, a examinar, de maneira mais

    detida, cada uma dessas noções.

    A primeira, como acenado, representa o texto normativo, o

    texto construído e apoiado nas balizas do devido processo legislativo

    (processo legislativo legiferante), respeitados os devidos limites

    políticos, sociais e econômicos, implícitos e explícitos, da ordem

    jurídica vigente. Noutras palavras: o texto normativo é, simplesmente,

    o direito positivado pelo Estado, que traça, a partir da opção político-

    legislativa adotada, um horizonte de possibilidades para fins de futura

    interpretação. Pode-se indicar, à guisa de ilustração, algumas

    expressões sinônimas de texto normativo, como segue: texto legal,

    dispositivo, enunciado, diploma normativo, preceito normativo,

    arcabouço normativo, quadra normativa, cenário normativo. Eis que

    surge, nessa esteira, a noção de positivação do Direito, como arte de

    construção do texto normativo.

    A segunda, de outra banda, versa sobre a noção de norma

    jurídica. Norma, aqui, não é sinônimo de lei, de texto legal. Ao

    contrário, a norma jurídica consiste numa atividade de produção

    interpretativa.

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    Frise-se, a norma é produzida pelo operador do Direito, pelo

    intérprete do texto. É dizer, a norma jurídica é produzida a partir de

    diferentes sentidos possíveis contidos no texto, implícita ou

    explicitamente.

    Mas não é só. A norma jurídica é, ainda, extraída com esteio

    numa realidade histórica. A norma é produto de um dado período

    histórico. A cada momento histórico, portanto, surge nova norma

    jurídica.

    Assim, a norma jurídica é uma produção histórica pela via da

    interpretação jurídica. A norma jurídica, então, varia ao longo do

    tempo, e é, num certo sentido, um organismo vivo que brota e se

    desenvolve por intermédio de uma trama de elementos que formam

    e conformam o convencimento do intérprete.

    A formação da norma, a partir de um texto normativo

    constitucional, por exemplo, no contexto da realidade que a circunda,

    restou bem contextualizada pela seguinte passagem:

    "Como outra ilustração, cabe ressaltar que não é,

    tampouco, possível compreender o conteúdo normativo

    do enunciado ao art. 5º, X, da Constituição Federal

    (direito à privacidade e intimidade) sem levar em conta o

    estágio de desenvolvimento tecnológico. Pense-se, por

    exemplo, que o programa normativo do preceito parece

    dizer que aquilo que não é visível ao público deve ser

    considerado do domínio privado, não podendo, em

    princípio, ser objeto de livre exposição por terceiros, sem

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    ferir a privacidade de alguém. O avanço tecnológico,

    porém, tornou possível trazer ao olhar do público, por

    meio de lentes teleobjetivas, pessoas em situações que,

    antes, eram estritamente privadas. O desenvolvimento da

    técnica mudou a concepção do que é visível ao público.

    Essa evolução tecnológica, esse dado de fato, deve ser

    levado em conta para a compreensão do conteúdo

    normativo da proteção constitucional do direito à

    privacidade". 4

    É, portanto, um indicativo de que a norma jurídica mostra-se

    em contínuo movimento.

    Consigne-se, com efeito, que o texto normativo não se

    confunde com a norma jurídica. Vale, a propósito, marcar o que

    segue: o texto é estático; a norma jurídica, dinâmica.

    Com isso, é fácil identificar que a discussão do tema é

    polarizada a partir de duas perspectivas: de um lado, o texto

    normativo, que se confunde com a lei, com o direito posto; d’outra

    banda, a norma jurídica, criada pelo intérprete, a partir do texto (ainda

    que carregado de variações semânticas) e da realidade particular

    experimentada no momento da interpretação, e não da realidade que

    permeou a elaboração do texto.

    À guisa de exemplo, anota-se, como texto normativo, o art. 226,

    § 3º, da Carta Política de 1988, no sentido de que "para efeito da

    3 Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. 8ª

    ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 84.

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    proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e

    a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão

    em casamento".

    A rigor, trata-se de um texto que enuncia o significado jurídico

    da entidade familiar, limitando sua composição ao homem e à

    mulher.

    A Corte Suprema, todavia, ampliou a extensão da proteção do

    Estado, como sabido. O Texto Constitucional, resultado da

    manifestação do poder constituinte originário de 1988, permanece

    atualmente inalterado, intacto. Mudou-se, apenas, o sentido do texto.

    Deu-se a construção da norma jurídica a partir do texto e da realidade

    social pós-moderna. O conceito de família ganhou novos contornos

    jurídicos. O intérprete, in caso, a Corte Suprema, produziu uma

    norma jurídica conformadora para a união homoafetiva, a partir do

    texto normativo da Constituição e considerou, para tanto, a realidade

    histórica afeta, e inclusive afetiva, à interpretação da Constituição.

    Dessume-se, pois, que interpretar consiste numa operação

    constitutiva, criativa (e não apenas declaratória), que tem por objetivo

    extrair o real significado do texto, com espeque numa realidade

    determinada.

    Assim, o intérprete cria a norma jurídica aplicável ao caso em

    testilha, com base na multiplicidade de sentidos contidos no próprio

    texto e, também, na realidade fenomênica.

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    É também sabido que o texto normativo é marcado por uma

    variedade de opções interpretativas, o que viabiliza a construção da

    norma jurídica pela adoção de, pelo menos, uma via interpretativa a

    ser escolhida pelo hermeneuta.

    Com efeito, não há que se falar, a nosso ver, em voluntas legis

    (vontade da lei).

    A "lei", o texto normativo, não possui vontade.

    Há, de fato, por assim dizer, duas vontades: uma, a vontade do

    legislador no que toca à produção do texto na dinâmica do debate

    político-legislativo; a outra, a vontade do intérprete no ato de eleição

    da interpretação da lei, ao atribuir significado a ela, culminando-se na

    produção da norma jurídica.

    Aliás, vale reforçar que a vontade do legislador possui um valor

    reduzido no universo jurídico, como revela o Min. Gilmar Mendes:

    "a prática demonstra que o Tribunal não confere maior

    significado à chamada intenção do legislador, ou evita

    investigá-la, se a interpretação conforme à Constituição

    se mostra possível dentro dos limites da expressão literal

    do texto (Rp. 1.454, Rel. Min. Octavio Gallotti, RTJ,

    125:997; Rp. 1.389, Rel. Min. Oscar Corrêa, RTJ,

    126:514; Rp. 1.399, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ, 9 set.

    1988)" 5 - grifo nosso.

    4 Trata-se de trecho contido no voto paradigmático exarado nos autos da ADPF nº 132, em

    5.5.2011, p. 148.

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    Tendo em vista as noções expostas, inafastável registrar,

    agora, em síntese, a lapidar lição do professor Eros Roberto Grau:

    "Hoje temos como assentado o pensamento que

    distingue texto normativo e norma jurídica, a dimensão

    textual e a dimensão normativa do fenômeno jurídico. O

    intérprete produz a norma a partir dos textos e da

    realidade (..) A interpretação do direito tem caráter

    constitutivo --- não meramente declaratório, pois --- e

    consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos

    normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem

    aplicadas à solução de determinado caso, solução

    operada mediante a definição de uma norma de decisão.

    (...) Interpretar/aplicar é dar concreção [=concretizar] ao

    direito. Neste sentido, a interpretação/aplicação do direito

    opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação

    entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação

    particular; em outros termos, ainda: a sua inserção na

    vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao

    particular, do transcendente ao contingente; opera a

    inserção das leis [= do direito] no mundo do ser [= mundo

    da vida]. Como ela se dá no quadro de uma situação

    determinada, expõe o enunciado semântico do texto no

    contexto histórico presente, não no contexto da redação

    do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a

    outro, do universal ao singular, através do particular,

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    conferindo a carga de contingencialidade que faltava para

    tornar plenamente contingencial o singular" 6 - grifo nosso.

    E, por arremate, acentua o mestre Eros Grau:

    "Se for assim --- e assim de fato é --- todo texto será

    obscuro até a sua interpretação, isto é, até a sua

    transformação em norma. Por isso mesmo afirmei, em

    outro contexto, que se impõe observarmos que a clareza

    de uma lei não é uma premissa, mas o resultado da

    interpretação, na medida em que apenas se pode afirmar

    que a lei é clara após ter sido ela interpretada" 7.

    De tudo, pode-se construir a seguinte lógica de raciocínio.

    Num primeiro momento, o operador do Direito analisa o texto

    em vigor, o texto normativo (Constituição, lei ou quaisquer outros atos

    normativos), e adota um método interpretativo possível (diante da

    percepção de polissemia do texto) e, em seguida, firma seu

    posicionamento para fins de aplicação do Direito in concreto, fazendo

    surgir, com isso, a norma jurídica, a norma que decide a demanda

    posta em juízo. Noutras palavras: a "norma de decisão".

    Não é outro o pensamento de Gilmar Mendes, para quem

    "interpreta-se um preceito para que dele se possa extrair uma norma

    5 Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, volume 216 (abril a

    junho de 2011), p.22. 6 Idem, ibid, p. 23.

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    (uma proibição, uma faculdade ou dever), e com vistas à solução de

    um problema prático" 8.

    E mais:

    "A norma, portanto, não se confunde com o texto, isto é,

    com o seu enunciado, com o conjunto de símbolos

    linguísticos que forma o preceito. Para encontrarmos a

    norma, para que possamos afirmar o que o direito

    permite, impõe ou proíbe, é preciso descobrir o

    significado dos termos que compõe o texto e decifrar,

    assim, o seu sentido linguístico" 9.

    É, nessa dinâmica, que se assentam os problemas

    relacionados à decidibilidade do Direito, já que a norma jurídica é

    uma "norma de decisão", que ora se aproxima do texto normativo,

    ora se distancia dele, para dar conta da realidade jurídica enfrentada,

    o que, de algum modo, pode sugerir aparente distorção entre a

    decisão judicial e a "lei" em vigor.

    A aparente distorção deve-se, sobretudo, à grande sensação

    de apego à postura legalista que ainda instrui a aplicação do Direito

    brasileiro, de forte inclinação ao sistema civil law, que prima pela

    tradicional e fiel observância da lei.

    O ministro Gilmar Mendes, num certo sentido, explica:

    7 Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. 8ª

    ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 82. 8 Idem, ibid, p. 83.

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    "Ocorre que, por muitas vezes, em virtude de uma

    evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma,

    ou ainda por força de uma nova visão jurídica que passa

    a predominar na sociedade, a Constituição muda, sem

    que as suas palavras hajam sofrido modificação alguma.

    O texto é o mesmo, mas o sentido que lhe é atribuído é

    outro. Como a norma não de confunde com o texto,

    repara-se, aí, uma mudança da norma, mantido o texto"

    10.

    Cabe acentuar, neste ponto, que a problemática da

    decidibilidade é especialmente marcada pela adoção das "normas de

    decisão aditivas", que transformam o significado original do texto.

    Na mesma toada, registre-se:

    "é certo que o Supremo Tribunal Federal já está se

    livrando do vetusto dogma do legislador negativo,

    aliando-se, assim, à mais progressiva linha

    jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia

    aditiva, já adotada pelas principais Cortes Constitucionais

    do mundo" 11.

    9 Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. 8ª

    ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 134. 10 Trata-se de voto paradigmático exarado nos autos da ADI nº 4277, p. 761-762.

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    Vê-se, pois, que o constitucionalismo brasileiro do séc. XXI

    lança, de maneira inusitada, o grande desafio de se adaptar a outros

    sistemas jurídicos que conduzem à formação de uma postura

    político-jurídica intimamente ligada a certo distanciamento do texto

    normativo.

    Encerra-se, aqui, de modo a sustentar o reconhecimento de

    mais um contorno que engendra a dogmática jurídica, e, talvez, a

    título de provocação, a identificar mais um sinal de enfraquecimento

    do positivismo jurídico.

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    BIBLIOGRAFIA

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    ed., São Paulo: Saraiva, 2010.

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