texto em contexto saber afeto e compreensão

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    Lbero So Paulo v. 14, n. 27, p. 31-42, jun. de 2011Dimas A. Knsch Saber, afeto e compreenso: epistemologia da comunicao e dialogia

    Resumo: O autor discute o tema de uma nova posio inter-pretativa para o campo da comunicao (Sodr). A crtica ditadura do conceito se constri a partir da defesa do afeto,na perspectiva de uma epistemologia do dilogo e da compre-enso. O tema da compreenso leva a posicionar a discussosobre o assunto no GT de Epistemologia da Comunicaoda Comps nos ltimos anos. Aposta-se na humanizao dasrelaes entre os interlocutores pela via do afeto e da compre-enso, como base para uma postura cognitiva e tica apta acompreender, mais que a excluir e condenar.Palavras-chave:comunicao, epistemologia, compreenso.

    Saber, afecto y comprensin: epistemologa de la comuni-cacin y dialogaResumen: El autor discute el tema de una nueva posicininterpretativa para el campo de la comunicacin (Sodr). Lacrtica a la dictadura del concepto se construye a partir dela defensa del afecto, en la perspectiva de una epistemologadel dilogo y de la comprensin. El tema de la comprensinnos lleva a posicionar la discusin sobre el asunto en el GTde Epistemologa de la Comunicacin de la Comps en losltimos aos. Se apuesta en la humanizacin de las relacionesentre los interlocutores por la va del afecto y la comprensin,como base para una postura cognitiva y tica apta a compren-der, ms que a excluir y a condenar.Palabras clave:comunicacin, epistemologa, comprensin.

    Knowledge, affection and understanding: epistemology ofcommunication and dialogyAbstract:The author discusses the theme of a new interpreti-ve position for the field of communication (Sodr). A critiqueof the dictatorship of the concept is built from the defense ofaffection, from the perspective of an epistemology of dialogueand understanding. On the theme of understanding the discus-sion takes place on the subject in the GT of Epistemologia daComunicao in Comps in recent years. It thrives on the hu-manization of relations between interlocutors through the affec-tion and understanding as a basis for a cognitive and ethical pos-ture able to understand, rather than to exclude and condemn.Keywords:communication, epistemology, understanding.

    Saber, afeto e compreenso:epistemologia da comunicao e dialogia

    Dimas A. Knsch

    ma outra posio interpre-tativa para o campo da co-

    municao. O agir comunicacional exigeser liberado das concepes que o limitamao nvel de interao entre foras puramen-te mecnicas, para abarcar a diversidade danatureza das trocas, em que se fazem presen-tes os signos representativos ou intelectuais,mas principalmente os poderosos dispositi-vos do afeto (Sodr, 2006:12-13).

    Poderosos, os dispositivos do afetoacabam sendo alados por Sodr a um pa-tamar dos mais elevados no universo dosestudos e prticas de comunicao ou, maisespecificamente, dessa nova posio inter-pretativa que, em sua viso, urge ser encon-trada. Mais relevante, at, que os signos re-presentativos ou intelectuais.

    Tamanha nobreza concedida ao afetopode fazer, de verdade, sentido, quando seleva a srio o contexto intelectual em que oargumento pr-afeto se erige. Com efeito, agenerosa concesso ao capital cognitivo-co-municacional do afeto nasce, precisamente,de uma preocupao do autor com o queest aqum ou alm do conceito, o que sig-nifica dizer, no vasto e, pelo que se depreendedo argumento, no devidamente ou mesmoinexplorado territrio em que esses signos

    Doutor em Cincias da Comunicao (USP)Coordenador da Ps-graduao em

    Comunicao da Faculdade Csper LberoE-mail: [email protected]

    U

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    representativos ou intelectuais no exercemseu poder de domnio.

    Est-se distante, como se pode observar,de uma preocupao secundria ou mar-ginal, uma vez que nasce da crtica de que

    subsiste, na tradio dos estudos cientficosda comunicao, nada menos que uma dita-dura lgica da razo enquanto domnio uni-versal, na contramo do afeto. A essa dita-dura, Sodr (2006:14) contrape a exignciade outra atitude epistemolgica ou inter-pretativa (...), mais compreensiva, menosintelectual-racionalista, capaz de apreenderos fenmenos fora da medida universal.

    aqui que a outra posio interpretativapara o campo da comunicao, de que fala oautor, se deixa de fato elucidar, com fora ex-pressiva: na exigncia ou proposio de umaatitude epistemolgica compreensiva, capazde apreender os fenmenos fora da medidauniversal. Fora do conceito, portanto pelomenos do conceito enquanto detentor deum poder discricionrio, ditatorial. Fora dapura explicao. No territrio cognitivo doaqum e alm do conceito, o poder do afetose deixa aproximar e cria vnculos com a ati-tude compreensiva, em seu distanciamentoem relao ao conceito, de novo, enquantosigno absoluto da explicao.

    A crtica enftica ao racionalismo, o quevale dizer, a um modelo de pensamento quecostuma transitar vontade no reino aparen-temente slido e seguro dos universais, dasessncias, da ontologia, se faz acompanharpela insistncia, no menos enftica, no co-nhecimento compreensivo. Sodr relembraque na base de uma experincia ontolgicada comunicao (...) encontra-se o problemada compreenso, suscitado pela vinculaoinerente ao comum. A interpretao que fa-zemos do mundo a partir de nossos habituaisquadros conceituais til ao entendimentoe explicao. A compreenso, porm, ficaalm desses circuitos autolegimativos, fora dospuros atos de linguagem (Sodr, 2006:67).

    A compreenso humana vai alm daexplicao, dir Morin (2000:94-95). Aexplicao bastante para a compreenso

    intelectual ou objetiva das coisas annimasou materiais. insuficiente para a compre-enso humana. Esta, com efeito, compor-ta um conhecimento de sujeito a sujeito.Compreender, ele lembra, inclui, necessa-

    riamente, um processo de empatia, de iden-tificao e de projeo. Sempre intersubjeti-va, a compreenso pede abertura, simpatiae generosidade.

    Morin (2009:93) enxerga no ensino dacompreenso uma misso propriamenteespiritual da humanidade. Aplicada reaem movimento da epistemologia, a visa-da compreensiva que Sodr reivindica, emconfronto nada amigvel com o raciona-lismo vigente, dialoga, por sua vez, com aspreocupaes de Maffesoli, l onde o francs com semelhante empenho crtico e fervormilitante no combate ao que ele chama deterrorismo do conceito anuncia-se comodefensor intransigente de uma atitude cog-nitiva compreensiva, para a sociologia comopara o conjunto do saber cientfico.

    Maffesoli (1998:31) v o perigo de umaatitude de esprito que corta, separa, funcio-na a esmo, sem referncia ao real naquilo queeste tem de tangvel, de palpvel, de inteiro.Para ele, a esquize do racionalismo nofornece seno uma pura do homem e domundo. Produz um esquema que apresentacaractersticas importantes, mas ao qual faltao essencial: a vida.

    Vida que breve (Hipcrates), e todifcil de possuir completa e to triste depossuir parcial (Fernando Pessoa). preci-so aprender a fazer silncio para contemplar,por detrs ou na profundidade do que ossentidos revelam, o indizvel e o inconceb-vel. Sob os conceitos existe o mundo, sob omundo? (Morin, 1995:222).

    Afeto, compreenso e conhecimento.Como articul-los? Como faz-los conversa-rem entre si no ambiente em construo deuma epistemologia da comunicao?

    Delinear teoricamente alguns traos des-sa vinculao, apontando possibilidades,reais ou imaginadas, de sua existncia e deseus possveis significados para o campo dos

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    estudos comunicacionais: este o propsitoprimordial deste texto.

    O crdito oferecido imaginao, linhasantes, combina muito bem com a propostado ensaio. Porque a renncia, exigida pela

    cincia dita madura, a todo tipo de puro de-lrio intelectual e a aceitao das exignciasde mtodo e rigor como se argumentaradiante , no se podem fazer s custas daliberdade de se pensar, nem tampouco do vi-gor que as linguagens do afeto e da compre-enso sugerem.

    preciso assumir plenamente a qualida-de e a insuficincia que o termo ensasta con-tm, prope Morin (1998:13-14). O ensaio,com efeito, no pode seno tentar atingir umconhecimento pertinente, e deve tent-lo cor-rendo os seus riscos intelectuais. Inclusive orisco da autoria, que o exerccio responsveldo ensaio estimula e pode tornar visvel.

    Nesse sentido, a crtica ditadura doconceito, se por um lado direciona o olhardo pesquisador para o que est aqum ealm do conceito e, nele (no conceito),para a possvel absolutizao de seu poten-cial explicativo, tambm, por outro, no estautorizada a negar a possibilidade real deuma democracia da razo e do conceito.De uma razo frtil, dialgica. De uma ticacapaz de pensar a razo, o conceito e o no-conceito, o conhecimento e a vida, complexa(sentidos que se tecem e entretecem) e com-preensivamente (no sentido de juntar, inte-grar, pr em conversao, em dilogo). Aliarrazo iluminadora e amor humanidade, l-cida compreenso dos fenmenos naturais eprocura da felicidade terrena, cincia e tica,ensinava Epicuro (Pessanha, 1992:59).

    Um estatuto epistmico para a ternura

    A crtica dureza do logos o logosno dialgico se expressa, em Restrepo(1998:10), na exigncia de reconhecimentoda dimenso fundante do afetivo. O autorcolombiano acredita que a tradio ociden-tal de pensamento herdeira de algo a quechama de lgica arrasadora da guerra.

    Restrepo investe, sem d, contra a in-tolerncia do discurso total, aniquilador dadiferena e inimigo do crescimento e da sin-gularidade. Lamenta que h vrios sculosa ternura e a afetividade tenham sido des-

    terradas do palcio do conhecimento:

    Desde as precoces experincias da escola,adestra-se a criana num saber de guerra,que pretende uma neutralidade sem emo-es, para que adquira sobre o objeto deconhecimento um domnio absoluto, igualao que pretendem obter os generais que seapossam das populaes inimigas sob a di-visa de terra arrasada (Restrepo, 1998:14).

    A no-dialogia que o logos, a razo ou

    o conceito, no contexto desse discurso, emmaior ou menor dose revelam ou assumemno lhes pode ser imputada, sem mais, comopropriedades suas. A no-dialogia, a frieza, omecanicismo e o determinismo, que se vemem geral associados razo e ao conceito, soentendidos, antes, como resultantes de mo-dos e modelos de com eles e a partir deles sepensar o mundo, o conhecimento, a cincia.Questo de uso. Ou de ab-uso. Morin temmuito clara essa percepo, em sua crtica ao

    racionalismo. Para ele (1984:125), a verda-deiraAufklrungest muito ligada tolern-cia, e a verdadeira racionalidade profun-damente tolerante em relao s formas depensamento que no se lhe assemelham.

    Isso no o impede de brandir a espadacontra as assustadoras doenas do espri-to, provocadas, como ele argumenta, exata-mente pelo desvirtuamento do melhor que

    No territrio cognitivodo aqum e alm

    do conceito, o poder

    do afeto se deixaaproximar e cria

    vnculos com a atitudecompreensiva

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    a razo e a cincia podem oferecer huma-nidade: A grande doena o idealismo, queesquece que as idias so mediadores e tra-dutores; a reificao das idias, em que aidia se toma pelo real. A grande doena da

    razo a racionalizao, que encerra o realnum sistema lgico coerente, ao preo deterrveis mutilaes (Morin, 1984:32).

    Voltemos a Restrepo, em sua defesa deum estatuto epistemolgico para a ternura.Trata-se, para ele, de um enorme equvoco uma falcia epistemolgica a idia deque a expulso da ternura constitua umacondiosine qua nonpara a gerao do co-nhecimento:

    Muito mais que o isolamento de uma cer-ta percepo subjetiva e emocional queturva nosso acesso verdade, o que fica adescoberto nesse modelo epistemolgico a presena da afetividade plana e definidado guerreiro, preparado para submeter aum domnio homogeneizador a multipli-cidade da vida sem se importar com suareduo a um enunciado abstrato ou a umesquema (Restrepo, 1998:14).

    O torpor afetivo associa-se exaltao daexplicao causal. A dissociao entre cogni-o e sensibilidade veste-se com o manto deaxioma filosfico central na produo do sa-ber (cientfico). Dominam, enfim, o abstratoe o universal. O conceito. Sodr (2006:12) serefere, nesse mesmo contexto, a um velhocontencioso da metafsica, que se irradioupara o pensamento social: a oposio entre ologose opathos, a razo e a paixo. Tambm

    para ele, nesta dicotomia, a dimenso sens-vel sistematicamente isolada para dar lugar pura lgica calculante e total dependnciado conhecimento frente ao capital.

    Constitui um imenso desafio, para Res-

    trepo, a integrao da ternura s perspecti-vas cognitivas e acadmicas. O autor enten-de que precisamos nos articular a formasexpressivas distantes da pretenso universaldo significado e mais prximas dinmi-ca do contexto. A ternura e o afeto podemigualmente impregnar a linguagem, semdesprezo pelo rigor. As palavras podem serternas. A verdade tem, sim, como assumir aforma sugestiva de uma expresso calorosa eacariciadora.

    Restrepo avalia que a frieza do discursocientfico representa uma expresso das l-gicas de guerra que se inseriram na geraodo conhecimento. No se deve, no entanto,converter esta deformao histrica numnico parmetro de validade: , pois, acapacidade de gerar crtica e reflexo, e noo empobrecimento discursivo e literrio, acaracterstica que permite distinguir o pen-samento cientfico da repetio dogmtica eda charlatania (1998:16-17).

    O discurso pode encher-se de ternura,sendo possvel acariciar com a palavra. Asolidez argumentativa no est condenadaa sofrer danos por fazer-se acompanhar davitalidade emotiva (Restrepo, 1998:17). Naproposta do estudioso colombiano, portanto,no existe nenhuma relao de necessidade naruptura entre razo e afeto, cincia e ternura. possvel, ao conceito, ser terno. Boaventurade Sousa Santos (1989:35), nessa mesma linhade pensamento, sugere a ruptura com um pa-radigma de cincia que produz um discursoque se pretende rigoroso, antiliterrio, semimaginao nem metforas um paradig-ma que pressupe uma nica forma de co-nhecimento vlida, o conhecimento cientfi-co, como ele deixa explcito, linhas antes. Umdiscurso que corre o risco de se tornar desen-cantado, triste e sem imaginao.

    Sodr, mais uma vez, com o foco in-telectual no aqum e alm do conceito,

    No se pode perder devista nem a necessidade

    e utilidade dosconceitos, nem avitalidade e fertilida-

    de desses no processode conhecimento

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    dirige sua ateno para o vasto campo dono-racional. Acentua que so muitas asformas de compreenso que caminham naobscuridade (2006:31), ou fora do espaoem que a luz da razo domina. A zona obs-

    cura e contingente dos afetos no mat-ria do clculo, da razo e do mtodo, e, sim,da esttica considerada em sentido amplo,como modo de referir-se a toda a dimensosensvel da experincia vivida (2006:11).Tem em vista a relao entre duas subjeti-vidades, entre os interlocutores:

    Em termos mais prticos, a questo podeser resumida assim: quem , para mim,este outro com quem eu falo e vice-versa?Esta a situao enunciativa da qual no

    do conta por inteiro a racionalidade lin-gstica, nem as muitas lgicas argumen-tativas da comunicao. Aqui tm lugaro que nos permitimos designar comoestratgias sensveis, para nos referirmosaos jogos de vinculao dos atos discur-sivos s relaes de localizao e afetaodos sujeitos no interior da linguagem(Sodr, 2006:10).

    Haveria, neste ponto, um amplo espaopara a discusso do princpio dialgico deMartin Buber (1982) e do que esse autor

    chama de palavras-princpio eu e tu e eue isso (2004). Inspirada em Buber, e res-saltando, com Sodr, o lugar do afeto nacomunicao contra aquelas concepesque limitam o agir comunicacional aonvel de interao entre foras puramentemecnicas (Sodr, 2006:13) , CremildaMedina fala do signo da relao, ttulo deuma de suas obras, que traz por subttuloComunicao e pedagogia dos afetos(2006).A relao sujeito-objeto (eu-isso) na

    comunicao, pela via do afeto, do dilo-go e da compreenso, se deixa substituirpela relao sujeito-sujeito (eu-tu). Comtoda a carga de desafios, exigncias e tro-peos que essa opo carrega consigo. Ainovao nas prticas do signo dialgiconunca ocorre naturalmente em qualquerambiente de produo simblica (Medi-na, 2006:97).

    Aqum, em e alm do conceito

    Uma aproximao de tipo compreensivoao campo da comunicao, a seu objeto e asuas teorias. Esse era o objetivo de um texto

    apresentado ao GT Epistemologia da Co-municao da Comps, em seu XVIII En-contro Nacional, na PUC-MG, em junho de2009. A primeira parte do ttulo Aqum, eme alm do conceito: comunicao, epistemo-logia e compreenso (Knsch, 2009) dialo-gava com o aqum ou alm do conceito deSodr e com sua defesa do lugar do afeto naesfera de uma epistemologia compreensivada comunicao.

    A diferena de acento deixa-se revelar, no

    entanto, j no em que participa da formu-lao do ttulo. O argumento ali embutido o de que a renncia ditadura do conceito,ao racionalismo e compulso universal-ex-plicativa, quando inserida num ambiente in-telectual compreensivo, dialgico, se proces-sa tanto contraquanto como conceito. Poisdeve-se admitir que, no calor e na pressa emque a crtica s vezes se d, exageros e injus-tias acontecem. Ora, o discurso da compre-enso no fornece a ningum salvo-conduto

    contra a arrogncia, a incompreenso e odogmatismo.

    Voltando ao que se dizia antes, poisaconselhvel no se perder nunca de vistanem a necessidade e utilidade dos conceitos,nem a vitalidade e fertilidade de que essesmesmos conceitos podem se revestir, no pro-cesso nada simples, nem puro, de conheci-mento. No demais recordar novamenteRestrepo, quando ele afirma que a palavrapode ser terna. Pode ser frtil. Lcida. Sbia.

    Em outros termos, para prestar um crditoao saber comum, dos tempos da bacia de ba-nho: no se deve jogar fora a criana juntocom a gua do banho.

    Ainda no bojo dessa mesma inquietao,no resumo do texto indicado afirma-se pre-liminarmente o bvio: que a inteno no ,e nem pode ser, a de uma guerra santa con-tra a razo e a cincia. A indisposio, firme,

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    contra a transformao do conceito emcamisa-de-fora a negar o direito intuiocriadora; o direito formulao de noes,smbolos e imagens com densidade interpre-tativa; dialogia entre saberes; s incurses

    por territrios trans- e no-disciplinares. Aindisposio , no fundo, contra a ditadurado conceito.

    Essa mesma preocupao, de no se jogarfora simplesmente o conceito, retomada,linhas adiante no mesmo texto, quando seafirma que a crtica ao racionalismo nodura muito tempo para ser desclassificada,s vezes com violncia, como se fosse umapostura retrgrada de descrdito na cincia,quando no de apologia ignorante do obscu-

    rantismo. O autor se defende:No convm se assustar com certo tipo dereao, no exatamente racional nem tam-pouco cientfica, de um pensamento aqui eacol arredio crtica, por ter se habituadoa pr pontos finais l onde interrogaes,vrgulas, ponto-e-vrgulas e reticncias ofe-receriam maior garantia na difcil arte deexorcizar o dogmatismo e abrir o terreno compreenso (Knsch, 2009:64).

    Em Aqum, em e alm do conceito tra-

    zia-se, ento, para a roda de conversas umdos trabalhos apresentados ao mesmo GTno ano anterior, 2008, assinado por Francis-co Jos Paoliello Pimenta (2008), Indeter-minao; o admirvel; a crescente comuni-cabilidade. Nele, o autor retomava nove dosdez trabalhos selecionados para o mesmoGT da Comps em 2007, argumentando que,embora sustentados em vertentes de anli-ses bastante diferentes, esses trabalhos tmcuriosamente em comum suas nfases rela-

    cionadas a fenmenos caracterizados comoincertos, da esfera do sensvel, intuitivos,subjetivos, marcados pela diversidade, des-percebidos e instveis (Pimenta, 2008:1).

    A convergncia de posturas epistemol-gicas identificada por Pimenta era interpre-tada por este autor, em Aqum, em e almdo conceito, como reveladora de um graumaior ou menor de insatisfao epistemo-

    lgica e de imaginao de possibilidades deuma outra posio interpretativa para ocampo da comunicao, como quer Sodr(2006:13). Ou, em outras palavras, como cri-se do conceito e do signo da explicao, com

    um movimento em direo a formas menosabsolutas e mais compreensivas de entendi-mento e de interpretao do agir comunica-cional, bem como de seus estudos e teorias(Knsch, 2009:67).1 Trs dos textos eramtomados como exemplos especialmente elo-qentes dessa tese:a) Em meio ao desencanto: a comunicao

    fundada no pensamento mecnico-fun-cional, de Malena Contrera, criticava comfora o cartesianismo, o mecanicismo e ofuncionalismo que teriam impregnado oconhecimento cientfico em geral e co-municacional, em particular. Convidandopara uma revisita ao campo da vida dosvnculos e dos afetos, de que fala Sodr naobra aqui citada , a autora desafiava asteorias da comunicao a se aproxima-rem do terreno incerto e incontrolvel daalma humana (Contrera, 2007:11).

    b) Em A linguagem como mediao da in-tuio, Regina Rossetti argumentava emfavor da recuperao, para o discurso,da vitalidade da linguagem das imagense das metforas, transcendendo concei-tos rgidos e/ou pr-fabricados, para,com Bergson, se criar representaesflexveis, mveis, quase fluidas, sempreprontas a se moldarem sobre as formasda intuio. Pensava, para tanto, comBrincourt, no sentido de uma linguagemcapaz de sugerir o ser mais do que diz-lo (Rosseti, 2007:13).

    c) Em Comunicao, disciplinaridade e pen-samento complexo, o terceiro exemplo,

    1Numa outra linha analtica segue a proposta de Pimenta emseu trabalho. Para ele, a categoria semitica da Primeiridadee o conceito a ela associado de esteticamente admirvel, deCharles S. Peirce, podem ser teis para entendermos esta con-vergncia de posturas epistemolgicas. A hiptese era de queessas nfases, diversas, mas convergentes, poderiam estar asso-ciadas a um mero sentimento de crescente compartilhamentocomunicacional, permitido pela atual rede mundial de compu-tadores e sua tecnologia digital (Pimenta, 2008:11).

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    Immacolata Lopes, no seguimento dasidias de Morin, defendia a transdiciplina-ridade come contraa disciplina , lem-brando que o pensamento da complexida-de incita a distinguir e fazer comunicar,

    em vez de isolar e de disjuntar, e a darconta dos caracteres multidimensionaisde toda a realidade (Lopes, 2007:13-14).A autora alertava para o risco de a discipli-na se converter em doutrina e, em rpidainterlocuo com a noo de fim das cer-tezas (Prigogine), sustentava que o movi-mento transdisciplinar implica uma perdada certeza, quando uma disciplina comeaa sentir que no dona de seu objeto.A atitude compreensiva (no sentido de

    juntar, integrar, abraar significados, que otermo original latino comprehendere evoca)se anuncia em toda a sua fora na propos-ta do estabelecimento de relaes cada vezmais densas, no somente entre cinciashumanas e sociais, mas das cincias com asartes, com a literatura, com a experinciacomum, com a intuio, com a imaginaosocial. A autora precisava: No se tratasomente de uma interao de discursos emtermos de lgicas cientficas, mas tambmda interao de discursos em termos de di-versidade de linguagens e escrituras (Lopes,2008:15-16).

    O dilogo entre saberes plurais (Onde sterno dizes plural, aponta Roland Barthes)e a diversidade de linguagens e escrituraspossvel no se opem, por certo, ao mto-do e lgica, mas abrem consideravelmenteos horizontes interpretativos. Compreensi-vamente: A transdisciplinaridade no ooposto das disciplinas, mas complementar aelas, diz Lopes, pois que este novo rumo do

    conhecimento s tem sido possvel com baseem toda a riqueza de saberes produzida pe-las distintas disciplinas, e precisamente essaa base que tem permitido e exigido dar umsalto frente e passar para um pensamentotransdisciplinar (Lopes, 2007:15).

    O salto frente, que Lopes entende serpermitido e exigido, na configurao des-se novo rumo do conhecimento, se faz do

    mesmo modo visvel em outros momentosda produo do GT. No Encontro da Com-ps de 2008, por exemplo.2A comunicaodispe, hoje, de slidas promessas de ou-tras, e, talvez, novas propostas cientficas.

    Uma epistemologia renovada se faz possvel

    por meio da superao de parmetros tra-dicionais. A epistemologia da comunicaonecessita de outros desenhos tericos na re-viso de suas bases tradicionais e outros re-cursos metodolgicos na observao da rea-lidade social e cultural, resultado da crticanecessria a certo dogmatismo que impedeo exerccio vital da cincia (Ferrara, 2008:1).

    A noo de um exerccio vital da cincia,associada exigncia de outros desenhos te-ricos e de outros recursos metodolgicos,importante para Ferrara, dialoga com a vi-so da necessidade de uma outra lgica naexpresso da cincia, lgica essa no afeita

    2Um rpido olhar sobre o que aconteceu no GT Epistemo-logia da Comunicao em 2010 no demora em identificarconvergncias compreensivas, dialgicas, em vrios dos textosapresentados. Por exemplo, quando Francisco Jos PaolielloPimenta trata da epistemologia da comunicao e o grupo

    da Unisinos, propondo explicitamente trs esferas de dilo-go com vistas ao aprofundamento da compreenso do gruposobre a atual produo na esfera da Epistemologia da Comu-nicao. Quando Kleber Mendona prope uma inverso doolhar, quando Roseli Figaro fala da comunicao como cam-po de sentidos em disputa, ou, ainda, quando Jos Lus Braga,em Nem rara, nem ausente tentativa, caracteriza os fen-menos comunicacionais como tentativos. Ou, por fim semexcluir a possibilidade de um mergulho para a identificaodo aporte compreensivo nos demais textos aqui no contem-plados , quando Luiz C. Martino adverte para a importnciade uma releitura da idia da teoria dos dois estgios versusefeitos limitados. Ver os textos em www.compos.org.br.

    A crtica ao raciona-lismo no dura

    muito tempo para

    ser desclassificada,como se fosse uma

    postura retrgrada dedescrdito na cincia

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    a axiomas e postulados, como sugere IreneMachado, ao apresentar o ensaio como pos-sibilidade interpretativa na construo deconhecimentos, fora dos limites restritivosdo rigor da lgica tal como consagrada pela

    retrica clssica (Machado, 2008:2).

    A proximidade entre as vises das duaspesquisadoras se faz ainda mais estreitaquando se leva em conta o que afirma Ferra-ra (2008:1) sobre o objeto da comunicao,que , sobretudo, ambivalente: imprevisvel,mas complexo; mvel, mas indetermina-do; instigante, mas banal. Est posta, pois,a tarefa, ainda continuando com Ferrara(2008:1), de se pensar uma epistemologiafluida e em constante reviso do postuladode inteireza e totalidade que tem consagradoa cincia ocidental desde o sculo das Luzes.

    A crtica aberta ao racionalismo e ao pen-samento dos universais oferece uma base am-pla para o dilogo com a idia de que pos-svel resgatar a nobreza do ensaio no campoadubvel das mltiplas possibilidades inter-pretativas, como quer Machado. Sem abdicardo paradigma do rigor, possvel acreditarno vigor de uma linguagem pouco favorvelao rigor da lgica, mas muito aberta, contu-do, ao dilogo interpretativo dos diferentespontos de vida, o que o ensaio, enfim, se nogarante, possibilita (Machado, 2008:3-4).

    Um Deus perfeito e nico

    Na base dos conceitos de rigor, certe-za e verdade cientfica pode-se identificar

    uma tradio de pensamento que assumeum vis de tipo divino, onipotente. Esta a tese defendida em trabalho apresentadoao GT Epistemologia da Comunicao daComps, em seu XIX Encontro Nacional,

    na PUC-RJ, em junho de 2010. No apro-fundamento da trajetria de busca do autorpor tentar compreender a compreenso nasantessalas e salas da epistemologia da comu-nicao, o texto traz como argumento prin-cipal que, pela via da racionalizao, essatradio acaba por aproximar cincia e teo-logia, verdade e dogma, disciplina e doutri-na, remetendo ao limbo do esquecimento aprpria idia da possibilidade de formas me-nos avassaladoras de produo do conheci-mento, mais afetas ao dilogo, democrticas,compreensivas (Knsch, 2010:1).

    Ocupando-se com alguns momentos sa-lientes dessa tradio de Descartes em dire-o ao passado, para uma rpida visita a Par-mnides, a Scrates, a Plato com sua defesade um saber total, a Plotino e a Santo Agos-tinho, este com a percepo de que mundusest imundus , o artigo tece igualmente acrtica s pretenses universalistas e absolu-tas do saber e prope, para a cincia em gerale a comunicao em particular, uma atitudecognitiva aberta experincia do coletivo, aodilogo entre teorias e compreenso. E ofaz, compreensivamente, no sentido do res-gate do que a cultura cientfica sempre fezquesto de preservar: o princpio de que noexistem pontos finais nem certezas absolutasna rea do conhecimento (Knsch, 2010:1):

    A maior ou menor aproximao cogniti-va entre Verdade e Bem, Alma, Luz, Razoe Deus qualquer que seja a arquitetura

    que o discurso termine de fato por assu-mir [...] to antiga quanto a histriadas idias filosficas do Ocidente. Pene-trou fortemente o pensamento filosficoe teolgico. Serviu como base para a afir-mao categrica da existncia de Deus um Deus nico, tal como a verdade eajudou a moldar a mais nobre heranacientfica, essa que Pond (2007:A3) cha-ma de supremo fetiche da modernidade,seu senso comum cientfico, normal-

    O mal mais visvel

    de todo pensamentodualista exatamenteo de dividirrigorosamente asidias entre certas

    e erradas

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    mente dotado de grande carga emocionale dogmtica (Knsch, 2010:3).

    Talvez o mais odivel, no dogmatismo,seja identificar sua presena e ao perver-sas exatamente l, onde se afirma a preten-

    so de negar um estatuto sua existncia. Ocomentrio, feito oralmente pelo autor, po-siciona-se respeitosamente frente questo,levantada por um dos interlocutores do GT,do dogmatismo da crtica ao dogmatismo,assente, segundo essa viso, em Do con-ceito de um Deus perfeito e nico a teoriasque no dialogam. No mesmo percurso ar-gumentativo, interrogava-se ao autor se nohaveria brechas, pelo menos, para um habeascorpuspara o conceito.

    A compreenso impe que se prestem asmais elevadas honras crtica, nunca tentan-do escapar de fininho ao apelo de se compre-ender as razes do outro. Por outro lado, otexto que aqui se prope parece ter deixadosuficientemente claro que o pedido de umhabeas corpuspara o conceito no s per-tinente, como contribui sua maneira parao entendimento e a experincia da prpriaidia de uma atitude cognitiva compreensi-va. Por outro lado, no o caso de se pen-

    sar, rapidamente, que tenha sido resolvidodessa forma o problema, nem tampouco dese assustar com a acusao de dogmatismo.Talvez seja bom escutar, sem pr-juzos e emsilncio, o que pensa Schopenhauer sobre aarte da disputa ou dialtica, em sua con-cepo , quando ele diz que a verdade ob-

    jetiva de uma proposio e sua validade naaprovao dos litigantes e ouvintes so duascoisas distintas.

    Estigmatizado por certa tradio de pen-

    samento com o selo maldito de pessimistaincurvel, Schopenhauer (2009:3-4), em Aarte de ter razo, merece ser ouvido com re-verncia quando ousa propor que se reflitasobre a questo da maldade natural do g-nero humano: Se ela no existisse, se fsse-mos inteiramente honestos, em todo debatevisaramos apenas a trazer a verdade luz[...]. Se fosse assim, cada um deveria me-

    ramente esforar-se para julgar apenas demodo justo: portanto, deveria primeiro pen-sar e depois falar.

    A arrogncia, como de resto sabido, noconvm. O mal mais visvel de todo pensa-

    mento dualista exatamente o de dividir ri-gorosamente as idias entre certas e erradas,como divide a realidade e as pessoas numalista enorme de pares antagnicos. Vale, paraesse modelo de pensamento, a hierarquiados desiguais, numa atitude diametralmenteoposta do cultivo da idia de uma sinfo-nia dos diferentes. Humanos e no mqui-nas (Charlie Chaplin, no discurso final emO grande ditador), limitados e no divinos,revelamos mais facilidade em ceder aos im-pulsos da lgica arrasadora da guerra, queimpregna e corrompe o pensamento (Res-trepo), que ao virtuoso conselho de primei-ro pensar e depois falar (Schopenhauer).A aposta na compreenso constitui, de fato,um desafio dos maiores. Quase, talvez, comoum salto no escuro. Haver garantias?

    No h valores automticos na conver-sao, expe Jos Luiz Braga, em comen-trio crtico ao texto de Knsch, ainda quedefendendo tambm os encaminhamentosdialgicos. Tudo depende de como os con-versadores encaminham sua interao. Aquesto mais geral seria: que exigncias fazer,que critrios estabelecer para que se possamassegurar produtivas as trocas propostas?Mais: H sempre o risco, na conversao,da prevalncia do argumento da autoridade que nos faz regredir, no raramente, paracircunstncias pr-cartesianas. Como evitaressa prevalncia? (Braga, 2010:3).

    impossvel no prestar um mrito in-teligncia dessa observao. Como tambm a

    essas outras: No podemos desconhecer queh limites nas convergncias possveis; e quehipteses e interpretaes concorrentes po-dem no ser igualmente plausveis. H umoutro lado do dilogo, que no nem podeser apenas agregador e de convergncia, masse faz tambm de embate, de tensionamento,de processo agonstico entre as diferenas(Braga, 2010:3-4).

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    Cada uma dessas observaes est emcondies de reunir, por certo, uma levaimensa de bons argumentos em prol da cria-o de condies objetivas para o jogo dial-gico. Um jogo cujos resultados no esto da-

    dos, uma luta tantas vezes inglria. As teoriasda deliberao, hoje em ascenso no campodo estudo e das pesquisas, atestam esse fato.Serve o exemplo, dos mais eloqentes, dateoria da ao comunicativa de Jrgen Ha-bermas. Sodr (2006:54-55) lembra que Ha-bermas, mesmo distante dos essencialismosmentalistas e naturalistas, [...] ainda se atma uma essncia, a razo iluminista, suposta-mente capaz de sustentar o conhecimento dasociedade e do homem:

    Mais ainda: dela poderia advir a realizao,sempre obstaculizada, de ideais constantesdo projeto civilizatrio da modernidade,como os de igualdade e liberdade. Para isso,Habermas ataca o paradigma cartesiano dosujeito da conscincia e vai assentar a racio-nalidade numa lgica da intersubjetividade,preconizando uma tica do discurso, quedeveria ser capaz de responder perguntasobre as fontes da normatividade e estabele-cer as condies para a compreenso mtua.

    A compreenso que essa tica do discur-so prope, fundada numa intersubjetivida-de cuja garantia de autenticidade se enrazana razo e na lgica, como afirma ainda So-dr (2006:55), prescinde de qualquer apelo dimenso sensvel, no se detendo sobrenenhuma intimidade intersubjetiva de natu-reza afetiva. Sempathos, portanto.

    Pensemos, por um instante pelo menos,de modo diverso, ou complementar. Recu-perando, sem absolutizao, os poderososdispositivos do afeto, com cuja discusso se

    iniciou este texto, pode ser, de fato, pertinenteno entregar todo o ouro nas mos dos agen-tes do debate que se faz sob o signo da buscaracional ainda que lcida, quando no fa-lha em seus propsitos de normas e regraspara o dilogo. Com o foco desviado para oapelo ternura (Restrepo), que abre espao

    para a intimidade intersubjetiva de naturezaafetiva (Sodr), pode-se aventurar a aposta mais uma vez, sem garantias de sucesso nahumanizao das relaes entre as pessoas.

    A tica da compreenso, afirma Morin

    (2000:99-100), a arte de viver que nosdemanda, em primeiro lugar, compreenderde modo desinteressado. Demanda grandeesforo, pois no se pode esperar nenhumareciprocidade [...] A tica da compreensopede que se compreenda a incompreenso.O autor acrescenta: Se soubermos compre-ender antes de condenar, estaremos no cami-nho da humanizao das relaes humanas.Porque, reconhecendo-nos todos seres fal-veis, frgeis, insuficientes, carentes [...], po-deremos descobrir que todos necessitamosde mtua compreenso.

    Pode servir como auxlio, nessa tarefa, orecurso quilo para o que chama a atenoo senso comum quando ensina que con-versando a gente se entende. O adgio estlonge de poder ser lido com o olhar argidorda razo e do mtodo, uma vez que, tantasvezes, nem conversa nem entendimento h.Mas subsiste a um apelo ao afeto e no-violncia, que pode revelar uma reserva desanidade til e interessante, num mundodesde sempre acossado pelas violncias come sem sangue, tanto quanto, por outro lado,acostumado a sonhar com a impossvel.

    A rea da comunicao, com suas pro-messas, sem precisar assumir um cartersoteriolgico, salvacionista, bem que pode-ria se pensar como espao da compreenso,da cidadania, do entendimento. Na linhacompreensiva do menos portanto e maistalvez, pode-se encontrar nesse tipo de in-tencionalidade uma chance de aproximaoentre saber e sabedoria. Trata-se (quase) deum ato de f, esperana e utopia, que, alis,tambm movem a vida. Como podem mo-ver igualmente o esforo interpretativo e aslinguagens mltiplas em que esse labor cog-nitivo ousa se expressar.

    (artigo recebido mai.2011/aprovado mai.2011)

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    Referncias

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