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Mas um dardo atravessou o cora��o de D. Evarista. Conteve-se, entretanto: limitou-se a dizer ao marido, que, se ele no ia, ela no iria tambm, porque no havia de meter-se sozinha pelas estradas. Ircom sua tia, redargiu o alienista. Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas no quisera pedi-lo nem insinu-lo, em primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era melhor, mais met dico e racional que a proposta viesse dele. Oh! mas o dinheiro que serpreciso gastar! suspirou D. Evarista sem convic��o. Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturrio prestou-me contas. Queres ver? E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via- l ctea de algarismos. E depois levou-a s arcas, onde estava o dinheiro.

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Alienist

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Mas um dardo atravessou o cora��o de D. Evarista. Conteve-se,

entretanto: limitou-se a dizer ao marido, que, se ele n�o ia, ela n�o

iria tamb�m, porque n�o havia de meter-se sozinha pelas estradas.

� Ir� com sua tia, redarg�iu o alienista.

Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas n�o

quisera pedi-lo nem insinu�-lo, em primeiro lugar porque seria impor

grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era melhor,

mais met�dico e racional que a proposta viesse dele.

� Oh! mas o dinheiro que ser� preciso gastar! suspirou D. Evarista

sem convic��o.

� Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o

escritur�rio prestou-me contas. Queres ver?

E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-

l�ctea de algarismos. E depois levou-a �s arcas, onde estava o

dinheiro.

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Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados,

dobr�es sobre dobr�es; era a opul�ncia.

Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista

fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais p�rfida das alus�es:

� Quem diria que meia d�zia de lun�ticos...

D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resigna��o:

� Deus sabe o que faz!

Tr�s meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher

do botic�rio, um sobrinho deste, um padre que o alienista

conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itagua�,

cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a

popula��o viu dali sair em certa manh� do m�s de maio. As

despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista.

Conquanto as l�grimas de D. Evarista fossem abundantes e

sinceras, n�o chegaram a abal�-lo. Homem de ci�ncia, e s� de

ci�ncia, nada o consternava fora da ci�ncia; e se alguma coisa o

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preocupava naquela ocasi�o, se ele deixava correr pela multid�o um

olhar inquieto e policial, n�o era outra coisa mais do que a id�ia de

que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de

ju�zo.

� Adeus! solu�aram enfim as damas e o botic�rio.

E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os

olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado;

Sim�o Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando

ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do g�nio e

do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas l�grimas e

saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.

CAP�TULO IV

UMA TEORIA NOVA

Ao passo que D. Evarista, em l�grimas, vinha buscando o Rio de

Janeiro, Sim�o Bacamarte estudava por todos os lados uma certa

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id�ia arrojada e nova, pr�pria a alargar as bases da psicologia. Todo

o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco

para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes,

sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que

metia medo aos mais her�icos.