testemunho pessoal sobre frei hermógenes harada - dom joão mamede filho

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Scintilla Revista de filosofia e mística medieval, vol. 6.2, jul.- dez. 2009 TESTEMUNHO PESSOAL SOBRE FREI HERMÓGENES HARADA, OFM Dom João Mamede Filho, OFM Conv. * Vi pela primeira vez o frei H. Harada em 1974, no Seminário dos Frades Menores Conventuais, no bairro do Rio Comprido, na Cidade do Rio de Janeiro (RJ). Nessa época, estudava filosofia e teologia na escola do Mosteiro de São Bento. Convidado pelo nosso Mestre, frei H. Harada conversou cerca de uma hora com nossa turminha de sete frades professos simples para estudar a possibilidade de se efetuar um encontro de reflexão mensal. Conversa vai e conversa vem, chegou-se à conclusão de que era melhor, um sábado de manhã, por mês, subirmos a Petrópolis, na casa onde acontecia o curso do CEFEPAL, para ali, das 9 às 12hs, refletirmos com o frei H. Harada, almoçarmos com os cursistas, e retornarmos para casa. Daqueles dias mensais de reflexão (não me lembro se isso durou mais que um ano?!) me ficaram a experiência de que o frei Hermógenes Harada botava cupim na cabeça da gente. Eu não conseguia negar a sua fala mas também não conseguia aceitá-la toda. Lembro-me que eram conversas sobre a Igreja e sua identidade. Autoridade dentro da Igreja. Vida religiosa, vocação, fraternidade etc. Muitas vezes acordava de noite e me pegava pensando no tema de algum encontro com o frei H. Harada. Depois disso, voltei a encontrar o frei H. Harada em 1983 num encontro de ex- cefepalistas de mês de julho, em Campinas, onde se estudou a Legenda dos Três Companheiros. Aí foi que me ficou claro que o caminho de São Francisco começou de um encontro real, pessoal, íntimo com o Senhor e não de uma bolação da cuca, de uma ideologia, de uma explicação da vida do mundo. Ele foi tocado, atingido, visitado por algo. O resto da sua vida foi tirar a limpo esse atingimento. E chegou ao Cântico das criaturas. No fundo, ele concluiu que aquilo que o atingiu aquela noite... ’podia ser picado em pedacinhos que não conseguiria me mexer...” (LTC 3). Está se dando dia e noite. E em cada coisa: no sol, na lua, nas estrelas, na terra, na água, no vento.... na ofensa, na dor e na morte, para quem afinar o sensorial, está se dando o mesmo toque dia e noite. Deus é amor em todos os seus atos e em todos os seus gestos. Aí comecei a frequentar os encontros periódicos do mês de julho, primeiro em Campinas, depois, no Embu, em São Paulo. Em 1986 fui morar em Curitiba, como mestre no seminário Casa São Francisco (OFM Conv) e frequentei reflexões mensais que o frei H. Harada conduzia, sobre as Admoestações de São Francisco e outros escritos, na Casa das Irmãs Franciscanas de São José, em Rondinha, Campo Largo (PR). * Dom João Mamede Filho é bispo auxiliar de São Paulo na Região Lapa.

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Scintilla – Revista de filosofia e mística medieval, vol. 6.2, jul.-

dez. 2009

TESTEMUNHO PESSOAL SOBRE FREI HERMÓGENES

HARADA, OFM

Dom João Mamede Filho, OFM Conv.*

Vi pela primeira vez o frei H. Harada em 1974, no Seminário dos Frades Menores

Conventuais, no bairro do Rio Comprido, na Cidade do Rio de Janeiro (RJ). Nessa

época, estudava filosofia e teologia na escola do Mosteiro de São Bento. Convidado

pelo nosso Mestre, frei H. Harada conversou cerca de uma hora com nossa turminha de

sete frades professos simples para estudar a possibilidade de se efetuar um encontro de

reflexão mensal. Conversa vai e conversa vem, chegou-se à conclusão de que era

melhor, um sábado de manhã, por mês, subirmos a Petrópolis, na casa onde acontecia o

curso do CEFEPAL, para ali, das 9 às 12hs, refletirmos com o frei H. Harada,

almoçarmos com os cursistas, e retornarmos para casa.

Daqueles dias mensais de reflexão (não me lembro se isso durou mais que um ano?!)

me ficaram a experiência de que o frei Hermógenes Harada botava cupim na cabeça da

gente. Eu não conseguia negar a sua fala mas também não conseguia aceitá-la toda.

Lembro-me que eram conversas sobre a Igreja e sua identidade. Autoridade dentro da

Igreja. Vida religiosa, vocação, fraternidade etc. Muitas vezes acordava de noite e me

pegava pensando no tema de algum encontro com o frei H. Harada.

Depois disso, voltei a encontrar o frei H. Harada em 1983 num encontro de ex-

cefepalistas de mês de julho, em Campinas, onde se estudou a Legenda dos Três

Companheiros. Aí foi que me ficou claro que o caminho de São Francisco começou de

um encontro real, pessoal, íntimo com o Senhor e não de uma bolação da cuca, de uma

ideologia, de uma explicação da vida do mundo. Ele foi tocado, atingido, visitado por

algo. O resto da sua vida foi tirar a limpo esse atingimento. E chegou ao Cântico das

criaturas. No fundo, ele concluiu que aquilo que o atingiu aquela noite... ’podia ser

picado em pedacinhos que não conseguiria me mexer...” (LTC 3). Está se dando dia e

noite. E em cada coisa: no sol, na lua, nas estrelas, na terra, na água, no vento.... na

ofensa, na dor e na morte, para quem afinar o sensorial, está se dando o mesmo toque

dia e noite. Deus é amor em todos os seus atos e em todos os seus gestos.

Aí comecei a frequentar os encontros periódicos do mês de julho, primeiro em

Campinas, depois, no Embu, em São Paulo.

Em 1986 fui morar em Curitiba, como mestre no seminário Casa São Francisco (OFM

Conv) e frequentei reflexões mensais que o frei H. Harada conduzia, sobre as

Admoestações de São Francisco e outros escritos, na Casa das Irmãs Franciscanas de

São José, em Rondinha, Campo Largo (PR).

* Dom João Mamede Filho é bispo auxiliar de São Paulo na Região Lapa.

Penso que este tempo cimentou bem minha compreensão das perspectivas e horizontes

do frei H. Hermógenes. Cheguei a pedir ao meu superior provincial para frequentar o

então curso de filosofia de três anos que os Frades Menores implementavam para os

formandos da Província da Imaculada, exatamente na mesma Rondinha. Isso não me foi

concedido. O provincial disse que não tinha gente disponível para poder me liberar.

Participei, esporadicamente, de alguns seminários no estudantado de Rondinha mas não

pude ir além disso.

Nunca perdia os encontros do mês de julho e sempre que podia participava de retiro e

outros encontros conduzidos pelo frei H. Harada em diversos lugares. Certa vez ele deu

um curso para os frades da minha província conventual, em Curitiba. Era um clima

tenso. No meio do percurso os formandos (cerca de 40 jovens junioristas) queriam a

“cabeça” do mestre, nada mais e nada menos. Frei H. Harada convocava todos a

controlar a emoção e permanecer na razão. Ele tentava salvar o salvável.

A partir de 1989 trabalhei com a revista Mensageiro de Santo Antônio, e bem cedo

comecei a publicar temas de espiritualidade extraídos de apostilas e escritos outros do

frei H. Harada. Dois anos depois, ele se propôs a re-escrever a espiritualidade e

publicar, em capítulos, na Revista. Trata-se de uma série bastante longa de artigos

sempre focando a espiritualidade. Sobre essa série de artigos, uma superiora geral de um

instituto me disse que os têm todos numa pasta e que, quando está muita tensa com os

problemas e dificuldades do seu instituto, lê um deles, e retoma a calma e a serenidade,

enfrentando com maior sucesso os seus desafios.

Depois passei a participar de outros tipos de encontro: os de carnaval, para formadores

em Curitiba. Já depois do ano 2000 começaram os encontros de psicólogos e

formadores, dos quais já aconteceram sete, um por ano, cada vez num lugar diferente.

Quando o frei Fernando Mason, OFM Conv., se tornou bispo, o frei H. Harada sugeriu

um encontro anual na sua diocese para estudarmos juntos a Bíblia. E surgiu os

“Bíbliapira” de Piracicaba e que aconteceram apenas 2 vezes. Quando o frei H.Harada

foi hospitalizado, com enfarto, estávamos exatamente às vésperas do 3º Bibliapira. Em

vez de ir para o encontro, em Piracicaba, fomos a Curitiba, visitá-lo no hospital.

Testemunho em estrito senso.

Um confrade, que junto comigo participava dos encontros do frei H. Harada, costuma

me dizer: “este homem nos fez de novo. Nos recriou”. E é bem essa a sensação.

Andando atrás do frei H. Harada e ouvindo suas reflexões, nos tornamos outras pessoas.

Chesterton, no seu livro sobre São Francisco de Assis, diz que ninguém que teve algum

contato com São Francisco foi o mesmo depois disso. Todos que tiveram um contato

com ele, depois disso foram outras pessoas. Algo semelhante nos aconteceu, em relação

ao Frei H. Harada.

Omito aqui todas as consequências menos louváveis que advieram, dentro dos nossos

conventos e províncias religiosas, devido à nossa aproximação ao frei H. Harada.

Muitas vezes, em horas de tensão, premido por desafios e dificuldades, fiz como aquela

irmã, acima referida, que se tranquilizava, lendo alguma reflexão do frei H. Harada.

Um jovem que estava para desistir da vida religiosa, participou de um encontro com o

frei H. Harada e comentou depois: “sabe que a vida religiosa voltou a dar-me um

calorzinho”. Ele não saiu e se tornou frade.

Não tive o frei H. Harada como confessor. Mas algumas vezes me confessei com ele.

Era suave, claro, direto e firme. Limpava a área. Tenho a mesma experiência que o frei

Jaime descreveu no dia do sepultamento: suas correções eram doídas (de dor), mas não

feriam. Semelhante a certa novela de cangaceiros, em que alguns vigias se distraem e

alguém consegue entrar no acampamento e levar coisas, sem serem percebidos. Um dos

vigias era dos mais valentes e maior amigo do comandante geral. Este ordena então que

os vigias distraídos sejam castigados com guasca, amarrados nus em árvores. Indicou os

que deveriam executar os castigos, e daquele que era seu maior amigo, quis se ocupar

ele próprio. Como para dizer: é tão grave a falha. Podíamos todos ter sido mortos. O

castigo tem que ser bem dado para nunca mais acontecer a falha. Se tivesse acontecido

comigo, quereria o mesmo castigo. E aquilo não diminuiu em nada a amizade. Era,

digamos, questão técnica. Comparo com isso as correções do Frei H. Harada.

Quanto à filosofia, acho que o frei H. Harada ajudava a gente a manter a cabeça na

postura saudável, em que as coisas da fé, os mistério da fé, têm chance de se mostrar

como realidades vivas e atuantes. Na medida em que fui entendendo as explicações do

frei H. Harada, vivenciava mais viva e intensamente os mistérios pascais, as liturgias da

Semana Santa e outras. Concluí, na última celebração da Vigília Pascal, por exemplo,

que a liturgia é uma massagem. Ela massageia os sensores da fé. Aguça a sensibilidade

para os mistérios celebrados.

Alguém me disse, certa vez, que o frei H. Harada teria dito que sua reflexão era original

e originante. Se não disse, eu pessoalmente, acho que são mesmo assim. A compreensão

da gente não se fixa. O permanecer na compreensão já nos expõe e leva a novas

compreensões.

Muitas afirmações do frei H. Harada ficavam na minha cabeça por ano inteiro sem que

eu as compreendesse. De repente, um belo dia, vinha a compreensão, a evidência, a

iluminação. Houve um tempo em que ele me dava, aos sábados à noite, aulinhas

particulares de filosofia. Líamos alguma página de Ser e tempo, de Heidegger, e ele

comentava. Quantas vezes ele me disse, por exemplo, “você está vendo aquela árvore

lá. Pois é, você pensa que ela está lá, mas ela não está lá do jeito que você pensa”!!! Eu

fiquei com isso na cabeça por um ano inteiro pelo menos. Certo dia, voltando com ele

de Cocalzinho (GO), onde estivemos para um encontro de reflexão, ao meio dia, ao sair

do restaurante e entrar no carro que estava estacionado debaixo de uma árvore, eu

entendi aquela afirmação. E assim quantas outras se deram do mesmo jeito!!

O frei H. Harada faleceu perto das 18h do dia 21/05/09 e eu soube, por telefonema, de

frei Antônio Corniatti, às 19:30h. Depois de um primeiro baque, liguei para o frei

Marco Aurélio Fernandes, em Brasília, e fui o primeiro a lhe dar a notícia. Lembro que,

naquele dia então me veio o seguinte pensamento e eu lhe disse: “Minha mãe está

velhinha, bem fraquinha. Qualquer hora vou receber a notícia fatal. Mas se chegassem

juntas, as duas notícias, minha cabeça e meu coração se confundiriam. Eu não saberia

distinguir qual a mais dura, qual doía mais?!?”

Acho que o frei H. Harada vivia constantemente na “boa vontade”. Ele não andava atrás

de realizações subjetivas e gozos. Um dia ele me disse que quando estava naturalmente

alegre por dentro, fazia questão de esconder, fazia cara de sério para que ninguém

percebesse. E quando estava um pouco triste, aí então contava piada, ficava

espalhafatoso para que ninguém percebesse também.

Terminando o sepultamente do frei H. Harada, naquela tarde serena de 22 de maio de

2009, tive, num repente, a impressão de que todos – éramos cento e tantas pessoas –

acordamos de um sonho. Ele não está mais!? Onde estávamos, afinal?!?!?

Parece que um vendaval se abateu sobre a vida do frei e ele foi levado por isso a vida

toda. E, por tabela, fomos junto. Agora cessou...! Que será de nós?

No impulso do vendaval que o tomou ele nos alienou a todos... alienou-nos da alienação

do século atual...

São Paulo, 03 de setembro de 2009.