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Esse é um teste pra ver se isso aqui funciona direitinho RE

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Nova Friburgo, Rio de Janeiro 2008

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Para Eloan, que eu posso chamar de Lô. Por seus palavrões absurdos e exagerados que me fizeram perceber que

eu poderia mesmo ser bom nesse negócio de escrever.

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u não sabia se deveria fazer uma página só de “agradecimentos”, e uma só de “apresentação”, ou qualquer coisa do tipo. Mas resolvi deixar tudo em uma página só. Uma página onde eu, o autor, vou falar sobre este meu primeiro “livro” utilizando

minhas próprias palavras, sem estar por trás de nenhuma personagem. E olha que nesse livro foram quatro de uma vez só. Personagens, quero dizer.

E Foi em nox -2 que eu comecei a perceber que eu realmente gosto de escrever pelo simples fato de que expor nossas opiniões através de uma outra pessoa é incrível. E é por isso que eu gostaria de agradecer à Gabi, à Sofia, ao Buca e ao Pedro Henrique (vulgo PH). Quatro “pessoas” que possuem um pouco de mim em aspectos diferentes de suas personalidades, e me emprestaram suas “vozes” para que eu pudesse dizer que não gosto de Biologia, nem de Educação Física sem ofender ninguém! Obrigado, Eli. Talvez você não tenha idéia disso, mas foi você que me deu o pontapé inicial para que começasse a levar esse livro a sério. Obrigado pelos elogios que me fizeram ficar sem graça naquela tarde chuvosa dentro do fusca azul. Por ser meu primeiro livro postado integralmente na internet, eu não poderia deixar de dizer o tal ”muito obrigado” para cada leitor que acompanhou toda a história na comunidade de nox -2, e teve a paciência de esperar que eu postasse apenas um capítulo por semana, só para fazer certo suspense. Obrigado Gabi e Lucas, por todas as vezes que vocês se dispuseram a me ouvir lendo um novo capítulo da história, e ao final, me diziam suas críticas, comentários e teorias para o que poderia acontecer no próximo capítulo. Obrigado, Rafa, por viajar comigo nas nossas aulas de Química com o professor Flávio, e a partir delas inventar o nome para a nossa banda de mentira, que acabou virando o nome da banda de mentira desse meu primeiro livro. Eu sei que até hoje você não deve se lembrar de como se calcula o nox de alguma substância, mas cada minuto de aula que eu perdi conversando com você valeu mais que a pena. E, finalmente, muitíssimo obrigado, MÃE. Por se preocupar com meus excessos de sarcasmo e ironia. Por se orgulhar de ter um pseudo-escritor na família. E por ser simplesmente minha mãe.

Amo muito cada um de vocês.

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Tá legal. Eu sei que ficar escrevendo no meio da aula de Biologia

não é lá muito certo. Principalmente quando você não é um dos melhores alunos da sala... Mas, fala sério! Essa tortura que as pessoas chamam de Biologia TÁ ME MATANDO!!! O professor Gil acaba de dizer que toda vez que encontrarmos a palavra helminto em algum lugar, é bom sabermos que tem a ver com vermes. Já que helminto quer dizer ‘verme’ em alguma língua dessas aí (Grego, Latim, Polonês... que seja!). Mas, peraí. EU TENHO CERTEZA QUE JAMAIS PRECISAREI DIZER A PALAVRA HELMINTO ALGUMA VEZ NA MINHA VIDA, JÁ QUE EVITO O ASSUNTO ‘VERMES’, pelo simples fato de que ELES SÃO NOJENTOS! Não agüento mais essa escola. E olha que ainda estamos em Março! Ainda faltam nove meses até as férias de fim de ano. NOVE MESES. Uma gestação inteira. Sem contar, claro, o outro ano inteiro que ainda falta. Levando em consideração que eu ainda estou no 2º ano do Ensino Médio. Não dá pra piorar. Enfim, nada disso importa! Quer saber? Hoje aconteceu uma coisa que me deixou meio ‘assim’ lá no banheiro feminino. Tá legal, milhares de coisas podem acontecer em um banheiro feminino ao ponto de nos deixarem ‘assim’, mas posso garantir que não é nada disso que você está pensando... Bem, no primeiro tempo, estávamos todos nós na aula de Educação Física. Particularmente, eu odeio aula de Educação Física no primeiro tempo, já que somos obrigados a aturar o fedor de suor provocado pelos exercícios físicos um do outro, levando em conta que nossa escola não é como as dos filmes americanos (com chuveiros para os alunos tomarem banho depois das aulas de Educação Física, e tal...) e que os meninos da minha sala simplesmente DESCONHECECEM UMA COISA CHAMADA DESODORANTE!!!

Bem, a aula como de costume estava um saco total. Lá estavam os meninos gostosões, porém sem cérebro jogando futebol. Lá estavam as meninas fúteis e populares babando por eles. Lá estava eu, sozinha, no canto dos impopulares, tentando me concentrar na leitura de “Orgulho e Preconceito”. Mas definitivamente não tem como se concentrar quando meninas soltando gritos histéricos para seus ídolos esportistas que – vale a pena comentar – ainda estão no segundo ano do ensino médio! Diante dessa situação toda, eu precisava tomar uma atitude para salvar minha integridade mental. Levantei daquela arquibancada nada confortável e fui.

Em direção ao banheiro. Não que eu precisasse satisfazer alguma necessidade fisiológica.

Muito menos massagear meu ego me olhando no espelho. Eu só queria andar pela escola... Sentir uns novos ares. Essas coisas que todo mundo faz quando pede pra ir ao banheiro. Estava chegando até a porta,

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quando senti um vento vindo do pátio. Aquela brisa (não me pergunte como) me deu uma animada, sabe?! Tá legal. Essa coisa toda de “brisa” é super estúpida. Não ouço falar de brisas animadoras desde que... Assisti “A Branca de Neve e os Sete Anões” pela última vez. Eu nem lembro se nesse filme havia ou não brisas animadoras. Mas, fala sério! Tinham animais da floresta que a ajudavam na faxina! E ela lavava, passava, cozinhava e fazia tortas de maçã pra SETE homenzinhos velhos, barbudos e extremamente FEIOS! E o que eles davam em troca à pobre coitada? Deixaram-na morrer envenenada por uma maçã. Grande recompensa por ajudar pessoas desprovidas de altura, né Dona Branca?

Ann... Onde eu estava mesmo? Ah, sim. A brisa. Ao sentir meu cabelo balançar devido aquela pequena movimentação de ar, eu não sei o que aconteceu comigo. Entrei no banheiro sorrindo e – juro pela minha mãe – comecei a cantar. CANTAR!!! Na verdade eu mais que cantarolei. E não tenho culpa se aquela música chiclete da Britney Spears ficou a manhã inteira na minha cabeça. O que importa é que eu entrei com toda a empolgação do “Gimme, gimme more” dentro daquele banheiro ignorando totalmente o fato de que poderia haver alguém lá dentro além de mim!!!

E havia. Quando me dei conta do que eu tinha acabado de fazer, já era

tarde demais. Eu olhei pelo espelho, e atrás de mim, saindo do único reservado com a porta inteira estava uma menina que eu nunca tinha visto na escola. Esse fato me espantou, já que ela não era do tipo que passava despercebida. Com um cabelo curto com mechas roxas e rosas, ela me olhou com uma cara de simpática. E para minha surpresa deu um sorriso pra mim.

ELA SORRIU!!! Se eu ouvisse alguém como eu cantando, sinceramente não sei o

que faria. Mas com certeza não iria sorrir. Acho que faria alguma coisa bem próxima de vomitar. Mas rejeitando todas as evidências, a garota estranha não vomitou. Ela simplesmente sorriu.

Opa! Sinal da hora do intervalo. Amém! NÃO AGUENTO MAIS ESSE CHEIRO DE TIVEMOS-EDUCAÇÃO-

FÍSICA-NO-PRIMEIRO-TEMPO!!! ●

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FINALMENTE! Sabe quando você tá com um problemão, e de

repente encontra a solução do jeito mais fácil possível? Uma coisa meio que “Opa! Achei a solução para o problema que estava impedindo completamente a minha concentração para fazer coisas relacionadas à escola!” Vamos combinar que qualquer coisa (por menos interessante que seja) é capaz de tirar minha concentração para fazer coisas relacionadas à escola. Mas isso estava se tornando sério.

Não aguentava mais receber bilhetes do Buca como esse: “Ei, linda! Quando é que você vai soltar as feras que existem

dentro de você e virar a vocalista da minha banda? BUCA” Tô falando totalmente sério. É bem deprimente ser chamada de

‘gata’ pelo cara que estuda com você desde o Jardim de Infância. Principalmente quando esse fato o fez tornar-se seu MELHOR AMIGO!!! E que história é essa de “soltar as feras”? Alguém tem que avisar para ele que isso não é nada, hum, legal. E eu já estava vendo a hora em que eu ia esquecer essa coisa toda de “amizade de Infância” e nunca mais olhar pra cara do Buca! Ele tá com essa idéia de montar uma banda desde o Primeiro ano. Tá, uma ótima idéia. Mas ele quer eu seja baixista/vocalista da tal banda!

Na parte do baixo eu dou conta – até que muito bem, por sinal – mas, peraí! EU JÁ MENCIONEI AQUI QUE EU NÃO SEI CANTAR??? E não vou saber nem em um milhão de anos! Mas eu não queria acabar com o lance entre eu e o Buca. A amizade, quero dizer. Mas também não queria afundar completamente a banda dele com a minha voz anasalada completamente HORROROSA!!! Então, o que eu deveria fazer? Como salvar a minha vida, sem arruinar o sonho do meu melhor amigo?

Indo ao banheiro. Foi assim que eu consegui acabar com o tal problema de vez. Bem, eu resolvi sair um pouco da sala no primeiro tempo. Sabe

como é, né? Pra andar pela escola pura e simplesmente. Fazer as coisas que as pessoas fazem quando pedem pra ir ao banheiro. Eu estava lá tranqüila, no único reservado com a porta não-quebrada. Ei! Deixando bem claro, eu não estava fazendo nada no banheiro da escola, viu?! Fazer ‘as coisas’ no banheiro da escola é definitivamente NOJENTO! Só estava lá, sentada, matando um máximo possível da aula de Física.

De repente, uma voz começou a cantar. E, cara, que voz era aquela!!! Tá legal que ela estava cantando aquela música chatiiinha da Britney Spears, que definitivamente não tem melodia nenhuma e gruda 7

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na cabeça como – perdoe-me pela comparação podre – CHICLETE! Mas aquela voz era tudo que eu e o Buca precisávamos pra nossa banda! Ela era doce, porém forte. Imponente, porém delicada! Cara. Era isso que eu estava precisando ouvir. Saí de dentro do reservado e vi de quem era aquela voz.

Era de uma garota não muito pirralha. Segundo ano, se não me engano. Ela pareceu muito sem graça quando me viu, mas eu tentei passar confiança. E então, eu sorri pra ela. Só isso. Depois saí do banheiro debilmente.

Tá bom. Pode me chamar de IDIOTA agora. Porque é isso que eu sou. UMA COMPLETA IDOTA!!! A garota que poderia ser a futura vocalista da minha banda estava ali, bem na minha frente. No mesmo banheiro que eu. Eu poderia, sei lá! Ter me apresentado. Perguntando o nome dela. Mas, não! Eu sorri e fui embora.

Mas isso não vai ficar assim. To disposta a encontrar essa garota na hora do intervalo. A escola nem é tão grande assim. E ela é fácil de ser reconhecida. Nem baixa, nem alta. Magrinha. Cabelos ruivos, quase laranjas. Parece não ser muito popular... Ah! Eu vou dar um jeito. E o Buca vai me ajudar. Afinal, os principais interesses envolvidos SÃO DELE!!!

Amém! O sinal acabou de tocar! Adeus sala de aula! Olá, carreira promissora no mundo da música! ●

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Sabe, eu não sou do tipo de cara que sai por aí escrevendo em

seus ‘diariozinhos secretos’, mas isso tudo foi idéia da Sofia. Ela disse no início do ano que iria me fazer bem começar a verbalizar os meus sentimentos. Eu nem tenho muitos sentimentos, mas, fala sério! O quê a Sofia me pede e eu não faço? Por que ela SEMPRE consegue me convencer das coisas? Por que eu sou tão idiota e não consigo me declarar pra garota por quem eu sou apaixonado desde o Jardim de Infância???

Ta vendo? Parabéns Bruno Carlos. Você acaba de revelar mais uma vez seus sentimentos pra UM PEDAÇO DE PAPEL INÚTIL!!!

Mas o que importa são meus grandes problemas agora! Eu tenho – por uma questão de honra e popularidade – que ter uma banda pra tocar na minha própria festa de formatura no final desse ano. E até agora só tenho isso:

Nome da Banda: ??? Vocalista: A SOFIA NÃO QUER ACEITAR ESSE CARGO! Baixista: Sofia Baterista: Eu Guitarrista: Algum ser vivente que está por aí esperando o destino

dar um ‘tchãn’ na vida dele, transformando-o num astro do rock. Mas... QUEM É ESSE SER VIVENTE???

Viu? Minha situação não é uma das melhores. To seriamente

pensando em desistir... Peraí! A Sofia acabou de me passar um bilhete: “Ei, Buh! Vou precisar de você na hora do intervalo. Acho

que encontrei a solução pros nossos problemas. SOFIA” Ai, ai... Eu já disse que ela consegue fazer um cara durão que

nem eu me derreter quando me chama de ‘Buh’?? Pois bem. To dizendo agora.

Ela consegue. Só ela. Sofia. Intervalo!!! ●

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Eu não acho muito certo para um aluno tão dedicado quanto eu,

ficar escrevendo numa espécie de diário recomendado por sua psicóloga. Mas eu não consigo me concentrar nessa aula de matemática! Eu já sei toda essa coisa de funções desde a sétima série! E estou tendo que aprender isso tudo agora no primeiro ano DE NOVO!!!

E a minha cabeça tem muito mais coisas pra se preocupar agora. Como por exemplo, a Feira de Cultura da Escola. A minha turma vai apresentar alguma coisa sobre música contemporânea. Eu odeio participar de atividades escolares que envolvam exposição pública, já que as pessoas parecem simplesmente não me notar! Mas a minha mãe disse pra diretora da escola que eu toco violão ‘muitíssimo bem’. Eu posso até ser um bom músico, como diz minha mãe. Mas eu não estou preparado pra dividir esse talento com a sociedade! Definitivamente não!

Mas será que a minha mãe sabe que eu sou motivo de piada desde a quinta série nessa escola? Talvez ela até saiba. Mas será que ela se importa com o fato de que participar dessa tal Feira de Cultura só vai piorar a minha situação? NÃO! ELA NÃO SE IMPORTA!!! Eu sou só um ser vivente que está esperando o destino dar um ‘tchãn’ na minha vida... Mas essa idéia de ‘tchãn-na-vida’ não vai rolar nem tão cedo.

O pior de tudo é que vai ter um ensaio geral da nossa apresentação hoje. No intervalo. NO MEIO DA ESCOLA TODA! Minhas esperanças de um dia deixar de ser o Nerd-Estranho-Que-Tem-Um-Nariz-Gigantesco acabaram completamente! A idéia de me apresentar pra escola inteira está me matando aos poucos.

Até que isso é bom. Levando em conta que a Feira é no sábado. E se eu morrer antes, não terei de me apresentar pra toda a escola de novo, e para os pais de toda escola também. INCLUSIVE A MINHA MÃE!

Ai meu Deus! Tocou o sinal. Humilhação eterna: Aí vou eu! ● Dever de Matemática: Livro páginas 32 – 37. Será que alguém podia me matar?

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Cara, eu não sei o que está acontecendo com o mundo, mas SÓ

PODE TER ALGUMA COISA ERRADA!!! Primeiro foi aquele meu ataque Branca de Neve/Britney na aula de Educação Física. Mas eu nem imaginava o que ia acontecer no intervalo. Foi tudo muito surreal. Nem sei direito como explicar. Foi meio que assim...

Sabe-se que o trigésimo termo de uma PA é 92 e que a razão é 3.

Calcule o primeiro termo: an = a1 + (n-1).R a30 = a1 + 29 . 3 92 = a1 + 87 92 – 87 = a1 a1 = 5 NÃO!!! O que aconteceu no intervalo não foi uma progressão

aritmética! É que o professor estava passando aqui na minha fileira, e eu precisei fingir que estava copiando a matéria. Pois bem. O que aconteceu foi o seguinte: Eu estava lá, num canto qualquer do pátio. Estava tudo a maior confusão. Acho que o primeiro ano estava ensaiando alguma coisa da Feira de Cultura (AI MEU DEUS! Eu nem sei o que a minha turma vai apresentar!!!). Bem, o que importa é que lá estava eu. Sozinha como sempre. De repente, vindo em minha direção, com uma cara de satisfação, eu pude vê-la: A GAROTA QUE ME OUVIU CANTANDO ‘GIMME MORE’ NO BANHEIRO FEMININO!!!

Junto com ela estava um bonitinho do terceiro ano. A única coisa que eu consegui pensar foi “Lá vem ela me apresentar para seu amigo bonitinho como A Idiota Que Canta Britney Em Banheiros De Acesso Público”. Humilhação completa.

Ela se aproximou de mim de um jeito que nunca nenhuma pessoa do terceiro ano havia feito. Eu já estava pronta pra pedir desculpas por ter sido tão idiota, e atrapalhar a paz que as garotas buscam quando vão ao banheiro feminino quando ela disse “Buca, é ela! A solução dos nossos problemas!”. Eu fiquei super confusa. Total. Afinal de contas, eu nunca fui solução dos problemas de ninguém! Nem os meus problemas de Progressões Aritméticas eu sei resolver sozinha! Tive que copiar a resposta desse aí de cima com o Rodolfo – um nerd que senta na minha frente e vive com milho agarrado entre os dentes.

Acho que ao perceber minha cara de confusão, a Garota-Do-Cabelo-Rosa-E-Roxo foi logo se apresentando: “Oi! Meu nome é Sofia, esse aqui é meu amigo...” E antes que ela terminasse as apresentações, o bonitinho se pronunciou: “Bruno Carlos! Mas como esse nome parece coisa de novela mexicana, pode me chamar de Buca!”. PERAÍ!!! Até então

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eu era a garotinha não popular do segundo ano, e agora, um bonitinho de nome composto do terceiro ano já estava me dizendo como eu poderia chamá-lo? Sem brincadeira. Eu não estava acreditando em nada daquilo.

Sofia parece que mais uma vez interpretou o meu olhar de ‘não estou entendendo nada disso’ e foi me explicando tudo. “Olha, garotinha... ann.. como é o seu nome mesmo?”

“Gabi” eu respondi meio insegura. Pensei em dizer “É Gabriela, mas pode me chamar de Gabi”, mas achei que o Buca poderia não achar a menor graça da brincadeirinha.

“Muito bem, Gabi” continuou Sofia “eu não sei se você se lembra de mim, mas eu estava no banheiro feminino hoje no primeiro tempo quando você entrou cantando aquela música da Britney... A do ‘gimme gimme more’, sabe?”

Eu fiz que sim com a cabeça já me preparando para a humilhação que estava por vir, e ela continuou. “Cara, eu só queria te dizer que você canta como eu nunca ouvi ninguém cantando antes!”. Eu fiquei completamente estatelada. Mas ela desprezou minha cara de pateta, e continuou falando. “Você conseguiu transformar ‘Gimme More’ na coisa mais incrível que eu já escutei, e eu queria saber se... você quer ser a vocalista da nossa banda!”.

Eu fiquei sem ação. Total. Eu? Canto bem? NEM A MINHA MÃE ME DISSE ISSO ALGUMA VEZ. E olha que ela é a minha MÃE! Eu posso ter parecido meio débil, mas fiquei um tempo em silêncio, olhando pra cara de Sofia. O tal do Bruno Carlos, vulgo ‘Bonitinho-do-Terceiro-ano’ sussurrou alguma coisa no ouvido dela, e em seguida ela disse “Hum... O Buca queria saber se você podia cantar alguma coisa pra ela ouvir!”.

Eu – não me pergunte como – me recuperei do choque inicial, e cantei a primeira música que veio à minha cabeça, como se o que ela tivesse pedido fosse uma ordem. E, quando me dei conta, já havia cantado o refrão todo de In Another Life da Ashlee Simpson. E não é um refrãozinho qualquer. Ele é grande, ok? Mais ou menos umas...

“Everywhere you go is everywhere I've been You finish all my sentences before they begin And I know that look in your eyes It's like I've seen you before about a million times In another life, In another life maybe, in another life you must've been mine…” SEIS LINHAS DE REFRÃO! E ali, pela primeira vez em toda minha vida eu pude perceber

uma coisa. Até que eu não canto tão mal! Tá legal, eu não sou uma... uma... Rainha dos Agudos que nem a Christina Aguilera. Mas eu canto de um jeito que eu gosto! E eles gostaram! Pude perceber isso no queixo caído do Buca. A única coisa que ele disse foi “Cara, tu manda muito!”.

EU MANDO MUITO??? Depois dessa frase comovente de Bruno Carlos, um barulho no

meio do pátio foi ficando cada vez mais alto, e ele sumiu. Sofia

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continuou na minha frente esperando a minha resposta. Na hora, só pude dizer “Você me dá um tempo pra eu pensar?”. E ela respondeu um simpático “Ok! A gente pode se encontrar na hora da saída?”.

Eu afirmei com a cabeça. E ela saiu dizendo que tinha que procurar o Buca no meio da bagunça que estava tendo lá no pátio. Eu dei um ‘tchauzinho’ com a mão, e ela novamente sorriu e disse “Até logo Gabi!”.

Em minhas condições normais, eu me interessaria por qualquer coisa diferente que talvez estivesse acontecendo naquela escola e iria para o pátio também só para ver de onde vinha aquele barulho todo, mas eu simplesmente NÃO ESTAVA NAS MINHAS CONDIÇÕES NORMAIS!!! Tinha acabado de descobrir que eu sabia cantar. Que teria a oportunidade de entrar numa banda. E que – acima de tudo – O BONITINHO DO TERCEIRO ANO ACHA QUE EU MANDO BEM!

Eu não tenho dúvidas de que devo aceitar o convite pra entrar pra banda... Mas, será que vai dar tudo certo?

Ai meu Deus! O QUÊ QUE EU TÔ FALANDO??? Acho que a vida da Gabriela tá precisando de um pouquinho de ação.

E a hora da ação chegou! ● Importante: VER O QUE A MINHA TURMA VAI FAZER NA FEIRA DE CULTURA

DO COLÉGIO!!!

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AI MEU DEUS! Parece que tudo tá começando a dar certo pra

nossa Banda Sem Nome Definido Ainda! Eu consegui achar a garota-Britney no intervalo! Ela estava exatamente onde eu previ que estaria: Perto das lixeiras de lixo orgânico! O Berço dos impopulares que cantam no banheiro!

O nome dela é Gabi! E ela definitivamente MANDA BEM PRA CACETE! Velho, ela conseguiu me arrepiar com uma música da Ashlee Simpson. ASHLEE SIMPSON! Mais uma princesinha POP que vai de encontro com meus princípios ‘anti-materialistas’ e tem uma irmã que canta músicas de cowboy! Mas não há dúvidas de que a garota consegue transformar qualquer música em algo bom aos ouvidos. Eu fui bem direta, sabe? Perguntei logo se ela queria entrar na nossa banda. Confesso que ela pareceu meio lesada quando eu perguntei, mas vou dar um desconto à pobre coitada, já que não é todo dia que a estranha de cabelo colorido do terceiro ano vem falar com você e te pedir para cantar só para ter certeza se a sua voz é boa, correto?

Marquei de encontrá-la na hora da saída. E ela vai me dar a resposta decisiva! Tomara que seja SIM!!!

Hum... Acho que agora seria uma boa hora pra perguntar ONDE O BUCA SE METEU??? Ele sumiu no meio do intervalo e não encontrei o cara em lugar nenhum depois...

Peraí! Ele acabou de entrar na sala! E tá levando a maior bronca do professor de História por causa do atraso... Coitadinho. Ele fica tão bonitinho com essa carinha de vítima.

Acabo de olhar pra ele com cara de ‘Onde-Você-Estava-Cabeção?’ e ele respondeu com esse bilhete:

Sofia! Parece que finalmente tudo vai começar a dar certo

nas nossas vidas! O meu sumiço se deve ao fato de que EU ACABEI DE ACHAR O QUE FALTAVA NA NOSSA BANDA!!!

Eu sei, boçal. Eu estava do seu lado quando você conversou com a

Gabi. E sabe que eu nunca tinha reparado, mas é verdade. Bruno Carlos é super novela mexicana!

Não! Não tô falando da Gabi. Porque ela já está garantida.

Tô falando da ooooutra coisa que estava faltando na banda. E por favor não pense que eu assisto novelas mexicanas.

Outra coisa? O que? O nome? Você se atrasou pra aula de História

pra ficar por aí buscando inspiração pra o NOME da banda??? Nossa,

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quanta dedicação! Parabéns. E eu sei que você assiste novelas mexicanas. SUA MÃE ME DISSE, BRUNO CARLOS!!!

Claro que não! O nome a gente vai pensar quando a banda já

estiver toda reunida! Eu encontrei o GUITARRISTA! Tá legal que ele não é ‘O CARA’, mas, ele manda muito bem! Mesmo! Dizer que vou matar minha mãe soa muito dramático?

O GUITARRISTA? Brilhante! Cara, tá tudo dando certo mesmo!

Quem é o cara? É de qual série? Não é do Ensino Fundamental não, né?! Porque eu pretendo montar uma banda. E não uma creche! E, pra sua informação, matar a mãe é mexicanamente dramático! TOTAL! Teve uma coisa dessas numa novela, não teve? Qual era? A Usurpadora? Esmeralda? Chiquititas? Café Com Aroma de Mulher? Aaaai... Não lembro!

AI MEU DEUS! A Usurpadora foi a das irmãs gêmeas (Paola e

Paulina). Esmeralda era aquela da garota cega que morava com a avó, ou alguma coisa assim. Chiquititas eram as órfãs que cantavam e dançavam. E Café Com Aroma De Mulher... Err... Fala sério! Essa eu não assisti! E o futuro guitarrista da banda é o...

AI MEU DEUS!!! O Buca não terminou de escrever o bilhete!

Porque o professor nos pegou passando bilhetinhos, e mandou o pobre coitado pra biblioteca fazer uma pesquisa extra! Coitadinho. Queria poder ir lá com ele. Com certeza seria mais divertido do que essa aula INSUPORTÁVEL! Sem contar que ele fica super bonitinho com aquela cara de ‘me ferrei porque não sei nada sobre as rivalidades imperialistas da Europa em 1914’.

Peraí! Será que o Buca é tão bonitinho assim? Cara, eu to estranha. ●

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Exercício de DETENÇÃO: Fale (em, no mínimo, 50 linhas) sobre as Rivalidades Imperialistas

da Europa em 1914. Pontos importantes: O Atentado de Sarajevo/O Tratado de

Versalhes. Cara, eu MATO aquele professor maldito! Ô, se mato! Como que

os autores mexicanos ainda não criaram uma trama envolvendo o assassinato de um educador carrasco com seus pobres alunos que simplesmente NÃO SE INTERESSAM PELO QUE ACONTECEU NA EUROPA EM 1914!!! Aliás, quem se importa? Aposto que essa novela ia dar muito mais audiência do que a história de menininhas órfãs que sabem dançar!

Sinceramente, eu não queria ter nascido no México. TODO MUNDO LÁ É ÓRFÃO!!! Exceto as pessoas milionárias. Mas levando em conta a minha sorte, se eu nascesse no México, eu não seria milionário! De verdade.

Essa biblioteca me dá medo. Ângela, a bibliotecária, me dá mais medo ainda. Sua cara cheia de rugas sem qualquer tipo de expressão me faz pensar que ela nasceu no século passado. Será que ela era viva em 1914? Será que ela sabe o que aconteceu na Europa nesse ano?

Ou será que seu rosto inexpressivo indica que ela está morta já faz tempo, mas não a enterraram, pra ela ficar aqui dando medo aos alunos desinteressados como eu? Aaahh... Pelo amor de Deus! Será que alguém pode vir aqui enterrar a pobre Dona Ângela? Ela merece uma pós-morte digna, como qualquer outro ser que um dia já foi vivo. Não merece?

Melhor eu parar de escrever. Tenho que fazer esse trabalho. E eu só queria a Sofia aqui pra me ajudar. Mas não pelo fato de que eu sou loucamente apaixonado por ela. É só porque ELA SABE MAIS HISTÓRIA DO QUE EU! E com ela aqui, Dona Ângela não pareceria tão assustadora. ●

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Muito bem. A sociedade enlouqueceu de vez! Antes de qualquer coisa, tenho que dizer que o ensaio geral pra

Feira da Cultura nem foi tão ruim. Estou psicologicamente estável agora. Eu me saí bem.

O que realmente me virou de cabeça pra baixo aconteceu depois do ensaio. Todo mundo da turma estava recolhendo o pouco de instrumento que nós usamos. Eu estava guardando meu violão quando alguém me tocou no ombro. Só isso já foi suficiente pra me assustar, levando em conta que as pessoas geralmente querem distância do Nerd-Estranho-Que-Tem-Um-Nariz-Gigantesco. Eu me virei e vi um cara que parecia bem auto-confiante. Auto-confiante o suficiente para nunca ter precisado de um psicólogo, ou alguma coisa assim. Tinha um sorriso popular. Típico de terceiro ano.

Eu olhei pra ele meio confuso. Tinha quase certeza de que ele iria me chamar de ‘babaca’, ou fazer alguma piada sobre minha disfunção nasal. Afinal, é isso que os caras do terceiro ano geralmente fazem comigo. Mas não. Ele não fez isso.

O cara simplesmente estendeu a mão, sorriu e disse “Oi, meu nome é Buca. Meu apelido, na verdade.” Ele parecia embaraçado. Mas continuou. “Olha, eu vi você tocando agora e... cara, você manda muito no violão. Já tocou guitarra alguma vez na sua vida?”

Eu olhei pra cara dele meio ‘assim’ e – morrendo de vergonha por estar falando com um superior – respondi “Ann.. Já, algumas vezes! Os princípios do violão e da guitarra são basicamente os mesmos... e...” Eu não pude terminar, porque ele me interrompeu.

“Certo! É exatamente de você que eu estava precisando.” Ele pouco se importou com a minha cara de ‘não estou entendendo nada’ e continuou falando. “Olha, cara, eu e umas amigas estamos montando uma banda. E ainda não temos um guitarrista. Mas tô achando que o garotão aí dá conta do recado, não dá?”

COMO ASSIM? Eu fiquei perplexo por algum tempo. O cara estava ali me chamando pra fazer parte de uma banda! Uma banda de verdade!

Eu sempre quis fazer parte de alguma coisa assim, sabe? Algum grupo que se reunisse pra fazer coisas legais! Coisas que não fossem jogar xadrez, ou estudar biologia, ou qualquer outra coisa chata. Enfim, eu só preciso estar com pessoas que me façam bem. E entrar nessa banda, talvez, vai me proporcionar exatamente o que eu estou precisando faz tempo.

Quando o Buca percebeu que o sinal pro fim do intervalo já havia tocado há bastante tempo, saiu correndo e antes de sumir completamente do pátio, me disse “Olha, eu te espero na saída, depois 17

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das aulas, certo? Preciso de uma resposta o mais rápido possível.” Eu fiz que sim com a cabeça, e acenei um ‘tchau’. Ele continuou andando e falando. “Até mais tarde então! Qual é o seu nome mesmo, cara?”

Eu automaticamente respondi. “Pedro Henrique!” “Saquei.” Ele disse. “Até o final das aulas então, PH!”. E foi

embora. Eu estou meio aéreo até agora. O cara chega de repente. Então,

ele me convida para participar de uma banda de verdade. E eu tenho certeza que essa história vai mudar completamente minha vida. E ainda se despede me chamando de PH! NINGUÉM NUNCA ME CHAMOU ASSIM!

Eu ainda não decidi ao certo qual vai ser a minha resposta. Tenho que pensar muito até lá.

Vai ser muito bom fazer parte de uma banda. Ter uma coisa diferente para fazer, sabe?

Mas não sei se estou pronto pra finalmente ter uma vida social ativa.

O sinal tocou. Chegou o fim das aulas. E junto, a hora da decisão. ● Dever de Biologia: Pesquisa sobre reprodução celular.

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Olha. Eu juro que não sei como explicar, mas, eu estou muito

feliz agora! Acabei de chegar em casa da escola e nem consegui almoçar de tanta emoção. Parece que pela primeira vez eu vou fazer alguma coisa que parece realmente valer a pena!

No final das aulas eu fui lá pro portão da escola, por onde saem todos os alunos. Fiquei esperando a Sofia aparecer, e não demorou muito até eu poder avistar o cabelo chamativo da minha futura colega de banda.

Ela parou na minha frente com seu sorriso confiante de sempre, olhou bem pra mim e perguntou “E aí Gabi?”. Eu tentei passar o máximo de confiança através do olhar, dei um sorriso de realização e disse “Sofia, acho que a partir de hoje, estamos juntas nessa!”.

Os olhos de Sofia brilharam e ela meio que instintivamente me abraçou. Aquele abraço me fez sentir uma coisa que eu já estava precisando a bastante tempo. O valor de uma amizade.

Acho que eu e Sofia não seremos apenas colegas de banda. Seremos bem mais que isso. Grandes amigas, eu diria.

Eu olhei pra Sofia e perguntei: “Hum... cadê o nosso baterista?”. Ela nem precisou responder, só olhou por cima dos meus ombros

e com uma cara de espanto misturada com confusão soltou um desafinado “ÃHN?!” ●

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Eu fiquei sem reação quando vi Buca se aproximando. Ele devia

estar meio louco, ou coisa pior. Gabi, a nova vocalista da nossa banda, ficou meio confusa com a

minha cara de espanto. Mas definitivamente, eu não acreditava no que estava vendo. Buca tinha me dito sobre o nosso novo guitarrista antes de ser expulso da sala de aula. Mas aquele não podia ser o cara de quem ele estava falando.

Porque o cara era totalmente torto. O cara não tinha nada a ver com a NOSSA banda. Porque ele era o Nerd-Estranho-Que-Tem-Um-Nariz-Gigantesco! ●

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A coisa mais engraçada que eu já vi foi a cara da Sofia quando me

viu chegando com o nosso novo guitarrista. Eu acho que ela esperava que eu trouxesse qualquer um – ATÉ A DONA ÂNGELA! (Deus a tenha) – pra apresentar como guitarrista, mas não o Pedro Henrique.

O cara era conhecido pelo mundo inteiro (tá legal, pela escola inteira) como o Nerd-Estranho-Que-Tem-Um-Nariz-Gigantesco. Olhando por certo ponto de vista, pelo menos ele era popular. Não do jeito positivo da coisa, mas popular, ele era!

Eu me aproximei das meninas e a Gabi, percebendo a situação já foi logo falando “Oi Buca! Cumprimente sua nova vocalista!”.

Sinceramente eu fiquei bem feliz. Apesar de a Gabi ser uma típica garotinha POP, ela iria saber com toda certeza atender o que a nossa banda precisava.

Sofia continuava quieta, mas eu quebrei o silêncio, que havia durando uns 30 segundos desde que Gabi tinha falado comigo. “Bem, gente” - comecei falando - “Conheçam o Pedro Henrique, nosso novo guitarrista!”.

“Oi Pedro!” Gabi falou com o cara toda educada. “Err... Oi!” Foi a vez de a Sofia dizer alguma coisa. “Oi meninas!” Pedro parecia muito acanhado. Estava vermelho,

meus eu sabia o que fazer pra quebrar aquele “climinha” chato que estava no ar. Antes que algum de nós pudesse se retirar eu disse: “Gente, agora que nós somos uma banda quase de verdade, eu proponho uma coisa. Todo mundo vem comigo até a praça!” ●

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Eu fiquei meio sem reação quando o Buca chamou todo mundo

pra ir até a praça. Afinal, eu sempre saio da escola e vou direto pra casa. Nunca tenho nada pra fazer, ninguém pra conversar... Mas a idéia parecia divertida!

A praça era bem na frente da escola, e tinha um banco lá no canto que ficava bem embaixo de uma figueira. Todo mundo sentou no banco, esperando o Buca dizer o que ele queria que nós fizéssemos.

Ele olhou pra mim e disse “Pedro, pega o seu violão, porque chegou a hora de todos nós sentirmos a música juntos!”.

Eu meio que não entendi nada que ele estava falando, mas peguei o violão. E eu realmente estava a fim de sentir a música. Seja lá o que isso significasse!

Olhei pro Buca com uma cara de ‘o quê que eu toco?’. E ele respondeu com uma cara de ‘toca o que você está sentindo’. A Sofia ficou com uma cara de ‘o quê que tá acontecendo’, enquanto a Gabi continuava com aquela cara de ‘nossa! Que legal!’.

Eu comecei a tocar uns acordes soltos. Eu não sabia o que cada um ali gostava. Só sabia que eu poderia tocar praticamente de tudo. Meu tempo ocioso – tempo este que os jovens normais gastam com seus amigos – era dedicado a baixar todo o tipo de música na internet, e aprender a tocá-las.

Mas naquele momento eu simplesmente não conseguia lembrar de alguma música do tipo ’agrada todo mundo’. Continuei tocando os acordes soltos, que aos poucos se tornaram uma melodia repetitiva, porém agradável aos ouvidos.

Ainda estava um clima de confusão pairando no ar, mas eu olhei pra Gabi meio que de repente (é, eu não consegui tirar os olhos dela) e ela balançou a cabeça me passando uma confiança incrível.

Então, ela abriu a boca. Começou a cantar. E ninguém conseguiu falar mais nada. ●

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“Eu só queria alguém pra me ouvir quando minha voz insiste em gritar. Eu queria simplesmente saber que você sabe me amar...”

Foi alguma coisa parecida com isso que saiu naturalmente da minha boca quando eu ouvi aquela melodia. Foi meio que instintivo. Até então, eu estava só sentindo a música. Mas só parecia uma melodia e nada mais. E eu sempre valorizei a letra. E essa letra veio do nada na minha cabeça.

Fala sério! Eu nem sou uma das mais românticas, e agora já estou por aí compondo músicas depois da aula com pessoas que acabei de conhecer!

O QUE ESTÁ ACONTECENDO COMIGO??? Todos aqueles ritmos que ouvimos debaixo daquela árvore de sei

lá o quê hoje à tarde foram totalmente inspiradores, sabe? De certa forma, sentimos como se todos nós fossemos um. Percebi os olhos de todo mundo brilhando.

E mais do que nunca, eu senti que a música já estava em mim. De uma maneira totalmente inexplicável.

Surpreendente. ●

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Eu fui muito idiota. Logo eu. Que sempre fui contra o

materialismo. Sempre fui contra as pessoas que só dão valor ao físico. LOGO EU!!!

Acabei julgando o pobre coitado do Pedro. E, cara, ele realmente, MANDA MUITO! Ele foi capaz de fazer todo mundo sentir a música correndo este

nós, sabe como é?! E quando a Gabi começou a cantar então? Ali ficou claro como a água que nós fomos feitos pra estarmos juntos. Fazendo música.

Tá legal que eu fiquei lá só olhando. Já que o Pedro tocava, a Gabi cantava, o Buca batucava... E eu lá. Apenas sentindo a cumplicidade rolando entre nós quatro.

Não tenho culpa se o baixo é um instrumento que num dá pra sair carregando por aí. E, por favor, eu simplesmente NÃO SEI CANTAR, MUITO MENOS BATUCAR!!!

Logo, a função de ‘sentir’ a música ficou sob minha responsabilidade.

E eu fiz isso bem. A gente marcou uma reunião de banda pra amanhã, na hora do

intervalo. Vai ter que ser rápido, mas dependendo do andamento das coisas, que problema há em matar a aula do terceiro tempo no banheiro do zelador?

Nenhum. ● Coisas para serem resolvidas na reunião de banda: 1. O nome da banda (URGENTE!!!) 2. Local de ensaio. 3. Temos que mudar o estilo visual do Pedro Henrique. Não quero que o meu

guitarrista seja confundido com o nerd do segundo ano que sempre tem milho agarrado no dente!

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Ei Buh! Teve muitas idéias pra nossa primeira reunião? Sofia ;* Tive algumas... Mas, cara, não consegui pensar em nada pro nome

da banda! Você teve alguma idéia? Se você considera ‘Os Espigas’ uma boa idéia, tive sim! Os Espigas??? AAAARRRRGGH! De onde você tirou isso? Até nas

MINHAS NOVELAS MEXICANAS eu conseguiria achar algo menos detestável.

É. Também achei um lixo total. Mas eu estava meio que

pensando a respeito do nerd do segundo ano. Um que sempre tem milho agarrado no dentes... Daí me veio essa idéia.

Ei! POR QUE VOCÊ ESTAVA PENSANDO NO NERD DO SEGUNDO

ANO QUE SEMPRE TEM MILHO AGARRADO NOS DENTES???? Ah... Quer saber? Esquece. Depois a gente conversa, certo?

Pára de me passar bilhetinhos, antes que algum professor de pegue de novo!

AI MEU DEUS DO CÉU! Será que a Sofia está... APAIXONADA pelo

nerd do segundo ano que sempre tem milho agarrado nos dentes? Nada contra pessoas com dificuldades de manter a higiene bucal

em dia, mas... ELE É ESTRANHO!!! ●

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Definitivamente, essa coisa toda de banda está me deixando

muito estranho! Eu não estou prestando atenção na aula de Química! COMO ISSO É POSSÍVEL?

Eu só consigo pensar em tudo que temos pra resolver hoje na reunião.

Pela primeira vez eu tenho alguma coisa pra fazer na hora do intervalo! Alguma coisa que não seja ficar na sala lendo mangás!

Sério. Isso está representando uma baita evolução pra mim. Mas eu não posso simplesmente abdicar todo o meu amor pelas

ciências exatas assim, de uma hora pra outra... Afinal, minha base familiar sempre priorizou o estudo, e eu...

O SINAL TOCOU! HORA DO INTERVALO. REUNIÃO A BANDA!!! Depois eu penso mais na base familiar! ● Dever de Química: Quem se importa??? EU TENHO UMA REUNIÃO DE

BANDA!!!

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Eu sei que eu não deveria estar escrevendo no meu diário feito

uma louca bem na hora do intervalo, mas é que... Qual é?! Essa é a minha PRIMEIRA reunião de alguma coisa.

E geralmente, nessas reuniões de coisas importantes tem uma mulherzinha que fica anotando tudo que acontece, as decisões tomadas, e tudo mais. Certo?

Pois é. Eu sou essa mulherzinha a partir de agora. Vou escrever tudo que vai ser decidido na reunião. O Pedro acabou de me falar que o nome disso é ata. O nome de

“escrever tudo que vai ser decidido na reunião”, quer dizer. Falando sério. Ele tem cara de que sempre sabe o nome das

coisas... Tipo... Ele deve saber o nome científico de todas as espécies de macacos albinos que existem na Polônia. E eu? Demorei décadas pra decorar como se escreve e aprender a pronunciar corretamente a palavra Chondrichthyes!

E EU NEM SEI O QUE SÃO CHONDRICHTHYES!!! Só sei que caiu alguma coisa a respeito desses, hum,

“organismos” na prova de Biologia da semana passada! Pedro acaba de me falar que Chondrichthyes é o nome dado ao

grupo de peixes cartilaginosos. Definitivamente, esse cara não é o que eu poderia chamar de

NORMAL! Opa! A reunião começou. Buca: Bom dia galera! Antes de qualquer coisa, sejam bem vindos

à nossa Primeira Reunião Oficial de Banda! A gente tem muita coisa pra discutir, e muito trabalho duro pela frente se nós quisermos chegar a algum lugar um dia. E a coisa mais relevante até agora é o nome da banda. A gente tem que escolher um, e essa decisão será a primeira coisa importantíssima que nós faremos juntos! Sendo assim... Alguém tem alguma sugestão?

(Silêncio mortal por uns 42 segundos)

Eu: Olha só... Eu não pensei em nenhum nome certo, mas pensei

em conceitos, sabe como é? Acho que seria legal ter um número no nome da banda... Sabe?! Isso marca o nome, deixa mais... Mais... Personalizado e tal... Vocês me entendem?

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Sofia: Perfeitamente! E eu acho a mesma coisa! Sabe como é, muitas bandas com números fazem muito sucesso... Tipo Blink 182... Matchbox 20... 30 Seconds to Mars... Sum 41... Aahh... Um monte!

Buca: Mas a gente tem que passar uma idéia também, entende?

Uma coisa que não seja óbvia, mas que exija um pouco de reflexão. Pra fazer as pessoas pensarem na gente!

Eu: Isso! A gente tem que fazer os outros se perguntarem como que

eles conseguiram viver tanto tempo sem a nossa música e tal... A gente tem que mostrar que o nosso som é uma coisa meio que MUITO necessária! Uma coisa vital... Tipo... Tipo...

Sofia: AR! Tipo ar... Só que, como o Buca falou, AR é muito óbvio...

Tem que ser alguma coisa mais subliminar. Mas que passe esse conceito da mesma forma! Alguma coisa tipo...

Buca: Oxigênio? Sofia: Nãããão! Oxigênio é bem óbvio também. E era o nome de um

grupinho de Axé infanto-juvenil que foi lançado nos anos 90... Lembram? Eu: Ah! Lembro sim. Eles fizeram sucesso por um tempo, mas

depois sumiram. Alguém tem notícia deles? Pedro Henrique (dando um salto do banco, como se tivesse

descoberto a cura do câncer): NOX MENOS DOIS!

Eu / Sofia / Buca: ??? Pedro Henrique: É exatamente isso o que a gente está

procurando! Não é óbvio. Tem um número! Representa uma coisa sem a qual você não vive sem! É... É... Genial!

Eu: Tá legal, menino prodígio... Meu pensamento não tá te

alcançando... Dá pra explicar? Buca / Sofia: (fazendo cara de que não entenderam nada também,

e gostariam, assim como eu, de que ele tentasse explicar aquela coisa de Nox sei lá o quê!).

Pedro Henrique: É bem simples. Como vocês estão em séries

superiores à minha, já devem conhecer o Nox. Buca: Não. Parece que não. Apresenta pra gente. Pedro Henrique: Tá legal... O Nox é a carga real ou parcial que os

átomos adquirem nas substâncias durante ligações iônicas ou covalentes. Ele é um valor numérico negativo, ou positivo. E o valor do Nox do

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Oxigênio, gás presente na atmosfera sem o qual ninguém sobrevive, vale -2 (menos dois).

Sofia: Cara! É isso! Perfeito! Nox -2! Oxigênio! Não vivemos sem! A

nossa banda! Tá tudo ligado de uma maneira muito louca! Muito incrível! Buca: É velho... Parece que a gente encontrou o que estávamos

procurando. Eu aceito a sugestão do cara aqui, ó. Total. Quem tá comigo? Sofia: Eu! Eu: Eu! Pedro Henrique: Hum... Eu?! Buca: Bom, galera! Parece que o primeiro passo já foi dado! Agora

a gente só precisa começar a ensaiar. Não adianta discutir mais nada por enquanto. O nosso estilo próprio vai vindo enquanto a gente for se comunicando através da música. Certo?!

Sofia: Tá legal. Muito lindo esse seu papo todo. Mas será que o Sr.

Vamos Nos Comunicar Através Da Música Que Flui Em Nossas Almas pensou em algum lugar pra gente ensaiar?

Buca: Ann... Não! Sugestões? Pedro Henrique: Tá certo... Eu sei que essa coisa de ‘banda de

garagem’ é bem piegas, clichê e tal... Mas a garagem lá de casa vive desocupada. E como eu já andei tocando meu violão lá, sei que a acústica é bem legal.

Buca: Perfeito meu garoto! É disso que eu gosto. Empenho. O

primeiro ensaio? Quando vai ser? Pedro Henrique: Por mim pode ser hoje mesmo. Depois da aula.

Tá bom assim pra todo mundo? Sofia: Pra mim tá ótimo. Meu baixo já está aqui. Eu trouxe hoje,

porque sabia que a gente ia resolver alguma coisa séria. Sabe como é? Intuição de mulher.

Buca: Bem, eu não sei quanto a mim. Eu não tenho como pegar

aquela minha bateria gigantesca em casa... A gente vai ter que dar um jeito e...

Pedro Henrique: Fica tranqüilo, meu rapaz. Não se preocupa com

isso. Eu já dei um jeito. E você Gabi? Pode ensaiar com a gente hoje?

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Eu: (Balanço com a cabeça dizendo quem sim, já que tá difícil dizer alguma coisa enquanto registro o que todo mundo está falando. ESSA GENTE FALA MUITO RÁPIDO!!!)

Buca: Tudo certo. A gente se encontra depois da aula. Eu e Sofia

vamos indo, porque o sinal já tocou, e eu não estou a fim de fazer outro trabalho pra compensar atrasos...

Fala sério! O sinal JÁ tocou? Hora de ir estudar, Dona Gabi. ●

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A reunião da Nox -2 foi simplesmente incrível. Eu me senti tão...

Bem. Tão... Útil! Levando em conta que fui eu quem resolveu os principais problemas que deveriam ser resolvidos. O nome da banda e o local de ensaio.

Eu queira ter escutado mais a voz da Gabi. Ela me deixa louco. A voz dela, quer dizer. Mas ela ficou bem concentrada no diário dela durante toda a reunião. E depois que o Buca disse que o sinal já havia tocado, ela saiu bem rápido. Sabe, ela parece aquele tipo de garota que chega sempre na hora, respeita os horários e tal...

E, depois disso, eu nem pude dar um ‘tchau’ pra ela. Nem pude olhar uma última vez para os olhos dela. Nem pude...

ESQUECE! Aula de Geografia! Prestar atenção. Ah! Depois da aula vai todo mundo lá pra casa! Para a MINHA casa! “- Ei, Pedro! Quem eram aquelas pessoas na SUA casa? - Ah! Eles? São meus... AMIGOS! Afinal, agora eu tenho amigos. E

eles vão à minha casa!” ● Dever de Geografia: Para que dever, se eu tenho amigos que vão à minha casa?

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Coisas para serem resolvidas na reunião da Nox -2: 1. O nome da banda (URGENTE!!!). - OK 2. Local de ensaio. - OK 3. Temos que mudar o estilo visual do Pedro Henrique. Não quero

que o meu guitarrista seja confundido com o nerd do segundo ano que sempre tem milho agarrado no dente! – RESOLVER ISSO HOJE, NO NOSSO PRIMEIRO ENSAIO! ●

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O primeiro ensaio oficial da Nox -2 foi simplesmente incrível.

Depois que a aula acabou, todo mundo se encontrou lá no portão da escola.

Sabe quando dá pra perceber aquele clima de tensão no ar? Pois é. Eu não era o único que estava sentindo aquela mistura de ansiedade e nervosismo. Parecia que aqueles olhos brilhando no rosto de todo mundo queriam dizer o mesmo que eu estava sentindo.

Qual é? Era o nosso PRIMEIRO ENSAIO totalmente oficial. Qualquer um estaria se sentindo meio tenso.

A gente ia parar numa lanchonete qualquer pra comer alguma coisa antes de ir, mas o Pedro Henrique disse que já havia ligado pra mãe dele, e ela estava nos esperando pra almoçar lá. Eu fiquei beeem sem graça.

Sabe como é, né?! MÃES. Sério, qual é o PROBLEMA das mães? Eu simplesmente morro de

medo delas. As mães sempre olham os amigos dos filhos com uma olhar meio crítico. E por mais que a gente sempre tente fazer tudo certo, elas conseguem achar um defeito na maioria das vezes.

Mas eu já tinha motivos o bastante pra me preocupar. (Na verdade, não tinha, mas ficar cheio de paranóia sobre o que a

mãe do guitarrista da minha banda ia achar de mim não ia adiantar de nada.)

O Pedro Henrique morava no mesmo bairro da escola, e a gente levou só uns 20 minutos pra chegar a casa dele. No caminho a gente conversou sobre um monte de coisas, sabe?! Afinal de contas, a gente precisava se conhecer! Eu não sabia quase nada sobre a Gabi, muito menos sobre o Pedro. E se dali pra frente a gente quisesse ser uma banda de verdade, a gente tinha que no mínimo saber o tipo de achocolatado em pó que cada um gostava.

Quando a gente chegou, a mãe do Pedro estava nos esperando na porta. Sério. Ela parecia meio... Estranha! Como se estivesse esperando o Papa, a Rainha Elizabeth (ela está viva ainda?) ou, sei lá, alguma dessas pessoas importantes pelas quais alguém esperaria na porta de casa.

Ela se foi logo se apresentando pra todo mundo, e dava pra perceber que o Pedro Henrique estava ficando muito sem graça.

(Tá aí outra incrível habilidade das mães. Deixar a gente sem graça na frente dos amigos!).

Enfim. O que ela disse foi alguma coisa do tipo “Oi crianças!” - CRIANÇAS! - “Eu sou a Rita, e vocês devem os novos amigos do Pedrinho, certo? Os que estão querendo montar uma banda, não é? Hum... Olha só 33

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pra vocês. Tão jovens. Com certeza irão fazer muito sucesso! Pedrinho falou muito de todos vocês! Estou ansiosa pra conhecê-los.”

Nesse momento o Pedro já estava me lembrando um avestruz, pelo jeito que ele se escondia em si mesmo, mas eu tentei passar um pouco de confiança num sorriso meio amarelado. Sem sucesso, obviamente. Acho que eu não conseguiria passar confiança através de um sorriso nem que a minha vida dependesse disso. A Dona Rita sinalizou, e nós fomos entrando.

Chegamos à cozinha, e a mesa estava posta. Todos nós nos sentamos. Eu até que tentei sentar perto da Sofia, pra, você sabe, dar um apoio qualquer se ela precisasse de mim. Mas qual apoio alguém precisaria numa mesa de almoço? No máximo uma coisa do tipo “me passa o molho?”. E pelo jeito a Sofia não parecia se preocupar muito com o fato de que talvez ela precisasse de certa ajuda com o molho na hora do almoço. Ela estava suficientemente entretida conversando com a Gabi. Coisa de menina, provavelmente.

Sendo assim, eu fiquei sentado entre o Pedro e sua mãe. Durante o almoço ela explicou que Pedro era filho único, e que seu pai trabalhava praticamente o dia inteiro na sede de uma multinacional. E eu só ouvia tudo sem falar nada, levando em conta que eu estava com A MAIOR FOME. E comi tudo mais rápido do que você poderia dizer “salada de beterraba com molho de aspargos”.

Depois que todo mundo já tinha comido, Dona Rita começou a recolher a mesa, e logo se ocupou com os afazeres domésticos. Ela parece ser bem sistemática. Isso talvez explique essa cobrança toda que o Pedro parece ter com os estudos.

Foi aí a deixa que nós tivemos pra sair dali de uma vez. O Pedro Henrique foi empurrando todo mundo pra uma porta nos fundos, e quando eu percebi, a gente já estava na tal garagem.

E, cara, não era uma garagem qualquer. Era A GARAGEM. É o tipo de lugar onde EU passaria umas boas horas descansando,

e não UM CARRO! O cara deixou a garagem dele feito um estúdio de verdade! Tá,

nem TÃO DE VERDADE assim. Segundo ele, só um “tratamento acústico” pra deixar o ensaio mais agradável, e menos barulhento.

Percebi que as garotas, assim como eu, ficaram impressionadas com o que viram. Sofia tirou seu baixo do case cheio de adesivos que carregava e conectou numa caixa que estava no canto da garagem. No outro canto, estava a guitarra vermelha do Pedro. E no centro, estava ela. O “jeitinho” que o Pedro disse que havia dado. Uma batera incrível. Total. Eu meio que me senti como criança na manhã de Natal, mas antes que pudesse ia lá e desfrutar do meu presente, eu olhei pro Pedro confuso, e só consegui dizer “Mas... Como?”.

E ele, com um pouco de orgulho de si mesmo, disse “Hum... Digamos que meu pai se empolgou com a idéia da banda, e me disse que estava disposto a ajudar a gente. E pelo jeito, essa ajuda foi bem melhor do que eu mesmo esperava. Não se preocupem. Meu pai disse que se sente na obrigação de investir na gente, mesmo sem conhecer vocês. E eu fui na dele. Agora, será que a gente pode fazer um pouco de música?”

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Sério. O pai do cara é LOUCO ou coisa parecida? Aquele equipamento, provavelmente foi muito caro. E nenhum de nós teria dinheiro pra pagar por aquilo. E o cara estava lá, investindo na bandinha de ‘garagem’ do filho! Aí, Senhor Pai-do-Pedro, será que você pode ensinar ao meu pai como ser tão VISIONÁRIO assim?

Tá legal. Resolvi deixar minha perplexidade de lado por um tempo, e curtir o momento. Ali nós tínhamos o equipamento, o pessoal pra “mexer” com o equipamento, maaas... O QUE A GENTE IA TOCAR??? ●

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Aquele climinha de ‘o que a gente deve tocar?’ ficou pairando no

ar. Todo mundo naquela garagem louca do Pedro Henrique ficou se entreolhando. Estávamos todos nas posições. Um microfone prata estava bem na minha frente. Nunca tinha chegado perto de um na minha vida. E agora chegou a minha vez.

Já que eu estava bem ali, não dava mais pra voltar atrás. Juntei toda a coragem que eu tinha e falei “Bem gente, desde ontem na praça, eu fiquei com aquela melodia na cabeça e... acho que escrevi alguma coisa!” Olhares voltados pra mim “Uma música, quero dizer.” Completei num tom sem graça.

Os olhos de Sofia brilharam. “Sério?” disse ela toda empolgada “Canta aí pra gente!”.

Silêncio total. Ninguém nem piscava. Buca, Pedro e Sofia, os três olhando pra mim, e eu morrendo de medo deles simplesmente odiarem o que eu havia escrito. Então, eu abri a boca, e a mágica aconteceu de novo. Como na praça, em baixo da árvore de sei lá o que. As palavras que saíram da minha boca foram...

Às vezes tento fingir que tudo está bem. As pessoas parecem não entender. Mas com você foi tudo diferente, e na minha mente, Você permaneceu até o anoitecer. Não quero parecer uma estúpida sentimental. Nem aquela que sofre por amor. Mas com você foi tudo diferente. E sua indiferença me fez sentir o que a gente prefere chamar de dor. Eu só queria alguém pra me ouvir quando minha voz insiste em

gritar. Eu queria simplesmente saber que você sabe me amar... ♪ Quando eu cheguei ao que era pra ser o refrão, o Pedro começou

a me acompanhar com a guitarra, sabe como? Uma coisa meio acústica e tal. Eu estava me sentindo uma completa idiota, mas quando aquela melodia que já parecia familiar pra nós quatro entrou nos meus ouvidos, eu não vi a hora de parar. ●

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Cara, eu nunca fui tão agradecida a mim mesma como eu sou

hoje por ter entrado no banheiro naquele momento. Ter descoberto a Gabi foi simplesmente incrível.

No ensaio de hoje parecia que todos nós já nos conhecíamos há muito tempo, sabe?! A gente ouviu em silêncio a Gabi cantar a música dela. Tá, eu vou ser sincera. Eu achei aquela letra beeem cafona, sabe como é?! Aquela coisa de “saber que você sabe me amar” e tal... Mas quem é que se importa? As pessoas GOSTAM disso! E eu não vou me opor a nada.

Estamos ensaiando a música dela, que ainda não tem um título definido. Mas o arranjo já tá bem legal. O Pedro Henrique trabalhou bastante a guitarra e o baixo, enquanto o Buca foi dando as batidas loucas lá dele.

Ah! O Pedro Henrique, não é mais Pedro Henrique! Como primeiro passo rumo a mudança do Nerd-que-tem-um-nariz-

gigantesco, ele passou a ser chamado de PH! Sabe como é, né?! Pra dar uma melhor primeira impressão.

Pê Agá! PH! Beeem melhor! E pela primeira vez eu estou com expectativa pra chegar logo

amanhã e ir pra escola. Porque agora, eu tenho amigos de banda na escola. E mal posso esperar pra encontrar com todos eles e mostrar a música que eu escrevi.

É. Eu escrevi uma letra. E espero que eles gostem. Ai, ai... Minha banda. Nox -2. Não estou nem acreditando. ●

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Pois é. PH! È assim que eu sou chamado agora. P de Pedro. H de Henrique. PH! Invenção da Sofia. Ela disse que é um programa de não sei

quantos passos pra dar um ‘tchãn’ no meu visual. E, sabe?! Eu to gostando disso tudo. O ensaio hoje aqui em casa

foi interessantíssimo. O pessoal gostou bastante do que eu fiz na garagem. Ficou bem profissional, sabe?! E eu me senti meio orgulhoso e tal...

E pela primeira vez eu to querendo que chegue a hora da escola logo, por outro motivo que não seja fome de saber.

Eu escrevi MESMO isso? FOME DE SABER??? Certo, o novo PH NÃO TEM fome de saber. Não que eu vá me tornar um completo idiota, mas não vou

conquistar a Gabi NUNCA com a minha fome de saber. Não que eu queira conquistar a Gabi um dia, mas... É. Eu quero sim. ● Ps: O velho Pedro estaria perdendo os cabelos agora porque não anotou qual é

o dever de Geografia. Mas o novo PH, nem liga pra Geografia!!!

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Muito bem. Mais um dia de aula, mais uma reflexão a ser feita: POR QUE A GENTE ESTUDA HISTÓRIA DA ARTE? Está aí uma coisa que eu nunca vou entender. E o pior, a sala

toda está reunida em grupos pra decidir o que cada um vai fazer na tal Feira de Cultura. Enquanto isso eu to aqui isolada num canto escrevendo nesse diário, pra professora PENSAR que eu tô fazendo alguma coisa útil.

Eu sinceramente não tô nem um pouco interessada em falar sobre o Renascimento numa Feira estúpida cheia de pais de alunos. Principalmente se essa Feira em questão for daqui a quatro dias.

É sério. Eu preciso de pelo menos uma semana pra me preparar psicologicamente pra falar de caras que fizeram esculturas de homens pelados MAL-DOTADOS, depois enlouqueceram, e depois morreram.

É sério. Qual é o PROBLEMA de caras como esses? Tá legal que no século XV tudo era bem diferente, já que não existia TV, creme pra cabelo e SANEAMENTO BÁSICO! Mas isso não é motivo pra esses caras se revoltarem dessa maneira.

Tá legal. Eu acho que Donatello tinha motivos pra se revoltar. Ele passou a infância sendo educado na casa de Roberto Martelli. QUE NEM ERA UM PARENTE DELE! E enquanto era educado na casa de um total desconhecido, sabe o que o PAI dele fazia?

Casacos de lã, provavelmente. O cara era tecelão. Eu não sei se nessa época já existia casaco, ou se as pessoas se

cobriam com lençóis, mas o que importa era que o pai não estava nem aí pra Donatello. Só ligava pra sua lã estúpida e seu tear estúpido.

É, acho que não odeio mais os caras do Renascimento. Eles tinham motivos de sobra pra ficarem loucos de vez. E ainda me ensinaram uma coisa importante sobre os pais em geral: ELES NÃO MUDAM!

Tá legal. Meus pais não saem por aí tecendo coisas de lã. Tanto porque, já teve uma tal de Revolução Industrial, que transformou o tear numa coisa totalmente obsoleta. Mas eles (os pais) continuam não nos dando atenção, e fazendo com que a gente enlouqueça cedo.

A minha mãe, por exemplo. Tá meio que me enchendo por causa da banda. Ontem quando eu contei tudo pra ela, sobre a banda, a galera, e tal, sabe o que ela me disse?

“Gabriela, minha filha. Eu não esperava isso de você.” COMO ASSIM? Não esperava ISSO de mim? Ter uma banda é tão normal hoje em dia. A maioria dos

adolescentes sonha em ter uma banda. Ou pelo menos é FÃ de uma banda! Mas, não. A minha mãe não pode simplesmente aceitar numa boa. Ela TEM que ser diferente. Afinal de contas, quem já deveria estar

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esperando alguma coisa era EU! Eu deveria esperar que a minha mãe não esperasse isso de mim.

O que ela esperava então? Que eu fosse estudar na casa de um Roberto-Não-Sei-Que-Lá para que ela pudesse ficar livre de mim, e se preparar pro próximo inverno tecendo casacos de lã?

Nunca. Desculpa mãe, mas é que a MINHA banda, agora faz parte da

MINHA vida. E não pretendo mudar isso nem tão cedo. Pelo menos até eu ficar louca de vez e começar a esculpir estátuas

de pessoas nuas. Mas até lá, nada muda! Ah! E muito obrigada, Donatello, por me fazer refletir sobre a vida.

Até que você não é tão chato como eu achava. Provavelmente, você sabia se comportar diante de uma garota.

Porque o PH não sabe. Ontem, enquanto a gente almoçava na casa dele, ele sentou do

meu lado e ficou o tempo todo me olhando com aquela cara de “se você precisar do molho, eu tô aqui pra pegar pra você”.

FALA SÉRIO! Será que os meninos acham ROMÂNTICO passar o molho pra

menina que eles amam? Não que eu ache que o PH me ame, nem nada. Afinal, quem iria

amar a RUIVA ESTRANHA aqui?! Tá legal que ele não é o maior exemplo de ‘não-estranheza’, mas... Ah! Esquece!

Não tô com paciência pra falar sobre relacionamentos. É tudo muito complicado. Os caras de hoje são muito cheios de mistério. Parece que morrem de medo de dizer EU TE AMO e tal...

Aposto que Donatello não era assim. E acho também que eu teria um ótimo relacionamento amoroso com ele. Se ele não fosse gay, obviamente.

Ai meu Deus! A aula já tá acabando e eu não fui lá ver o que eu tenho que fazer nessa maldita Feira de Cultura! Será que dá pra eu falar do meu amor não correspondido por Donato di Niccoló di Betto Bardi?

Tomara que sim. Oba! Hora do intervalo! ●

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Cara, eu tô seriamente feliz. Primeiro, porque acabei de entregar

pro professor o trabalho de detenção sobre a Revolução na Espanha de 1914. E ele simplesmente ficou com aquela cara de ‘nossa, que pesquisa completa e eficiente’, se decepcionando totalmente, já que ele não achava que um cara que passa bilhetinhos durante a aula jamais teria capacidade de fazer um trabalho daqueles.

Mas ele também não precisa saber que o PH meio que me ‘ajudou’. E isso também nem é o motivo todo da felicidade. O negócio é que

hoje no intervalo eu tive certeza total de que a Sofia é a garota mais incrível. Sério.

Depois que as primeiras aulas acabaram, quando nós encontramos a Gabi e o PH, ela chegou meio sem graça e disse “Ei, gente. Ontem a noite eu estava em casa, sabe?! E acho que escrevi uma letra. Ainda falta a melodia e tal, e nem sei se tá boa ou não. Mas eu queria que vocês vissem!”. Ela disse tudo isso muito rápido, como se quisesse logo terminar com tudo aquilo.

E ela estendeu uma folha de caderno, onde estava escrito com a letra dela o seguinte:

“Vocês querem nos moldar de um jeito esquisito. Esperam satisfazer suas expectativas. As suas idéias brilhantes não vão conseguir, Nos fazer com nossas mentes criativas. Porque eu não quero nem saber O que você espera que eu seja Eu sou normal, e acho suas roupas bregas. Nem tem problema só um gole de cerveja! Pode até não acreditar, mas eu sei que sou capaz De revolucionas essa coisa louca chamada mundo. Por que tudo tem que ser do jeito adulto, Se vocês nem gostam de chiclete de melancia? Tá legal, muita coisa a gente aprende com vocês Mas será que é difícil aprender com a gente também? Porque só eu sei como é difícil Tentar arrumar um amor de verdade Enquanto me preocupo com as notas de Biologia!” Cara. Eu amo essa garota. Eu até fico meio que sem palavras

falar, mas... QUE LETRA É ESSA? Uma crítica totalmente clara ao jeito adulto de governar as coisas. Um jeito de mostrar a indignação dos jovens que odeiam Biologia, e adoram chiclete de melancia! Chiclete de Melancia. Esse é o nome da música, aliás. O PH disse que já estava

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pensando na melodia, e a gente deve começar a ensaiá-la hoje depois da aula. E continuar trabalhando na música sem título definido ainda da Gabi, que é uma baladinha romântica.

Já pra Chiclete de Melancia, eu imagino uma batida mais forte, sabe?! Com mais força na guitarra, e um vocal mais poderoso. Que eu sei que a Gabi é capaz de fazer.

Agora a Sofia tá lá na frente da sala. Tentando convencer a turma a falar sobre a miséria na África causada pelo capitalismo dos países ricos, ao invés de falar sobre a história dos shoppings centers. Mas parece que os shoppings estão ganhando, já que foi a Betty que deu essa idéia.

A garota mais popular da sala, por quem todos os caras babam constantemente. Mas EU não! Porque eu só consigo babar por uma pessoa.

Tá legal. Essa coisa de babar é meio nojenta. Mas eu só quero dizer que eu só penso em uma pessoa o tempo

todo. Só ela tem minha atenção. E não é por causa do seu cabelo rosa e roxo.

É porque só ELA sabe prender o meu olhar, e... Ai! Ela tá vindo pra cá. A Sofia. Depois escrevo mais. ●

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Que fofo. O Buh consegue ser tão fofo às vezes. Acabei de sair da maior discussão com a Betty-Gostosona. Ela

queria que o tema da nossa turma pra Feira de Cultura fosse “A História dos Shoppings Centers”. Sério. Qual é o PROBLEMA dessa garota? Quero dizer, A HISTÓRIA DOS SHOPPINGS CENTERS???

Definitivamente não. O MEU assunto é bem mais interessante/menos fútil do que esse. Afinal de contas, quem nunca pensou nas consequências do capitalismo na África?

Parece que ninguém dessa sala estúpida pensou nas conseqüências. Já até cheguei a cogitar de que eles nem PENSAM, se você quer saber a minha opinião.

A idéia da Betty é totalmente capitalista. No título dela, duas palavras são EM INGLÊS!!! Mas, tudo bem, a turma toda optou pela futilidade da Betty. Mas eu nem ligo, já que a ‘turma toda’ NÃO inclui o Buh!

Eu voltei pro meu lugar meio irritada, sabe?! E fui logo descontando nele. “Não sei o que essa gente vê de interessante nessas drogas de shoppings! Que cultura isso representa? Será que ninguém mais nesse mundo se interessa pelo que tá acontecendo na África?”

E ele me olhou com aqueles olhos profundos dele, e disse “Hum... Ei, moça! Eu me interesso. E tô disposto a ouvir sobre os problemas da África. Isso se você quiser me contar, claro!”.

OLHA QUE FOFO! Ele quer me ouvir falar sobre a ÁFRICA! Ele não quer que eu fale

que ele é gostoso, não quer que eu fale que o amo. Ele simplesmente que me ouvir falar da África. Como se apenas

ouvir a minha voz bastasse. Não importa o que eu esteja falando, ele PRECISA OUVIR A MINHA VOZ!!!

Certo, Sofia. Pode voltar pro planeta Terra agora. Ele JAMAIS iria querer alguma coisa comigo. Não mesmo. Além do mais, eu não sei nem se EU tô gostando dele.

Iiihh... Melhor esquecer disso tudo e me concentrar no ensaio de hoje. Parece que o pessoal gostou de Chiclete de Melancia. Tá. O Buh meio que amou. Mas não importa!

Ah! Outra coisa pra me preocupar, enquanto esqueço o que eu acho que o Buh tá sentindo por mim: O meu combinado com o pH! Segredo total. Mas com certeza o Buh já deve saber. Já que eu transpareço meus segredos pra ele desde sempre. E ele capta tudo bem rápido.

CHEGA DE BUCA! ●

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O ensaio de hoje foi incrível! Não foi tão cedo como o de ontem.

Então, deu tempo de todo mundo comer um hambúrguer antes de vir aqui pra casa. Tanto porque, a minha mãe já havia me envergonhado o bastante ontem. Eu não precisava de mais um almoço em família.

Falando em família, eu meio que não aguento mais todo mundo querendo conhecer meu pai. Tá, é um direito da banda conhecer quem é que nos ajudou nesse começo e tal... Mas é que o meu pai NUNCA ESTÁ EM CASA!!! Quero dizer, agora ele está. Mas são quase onze da noite. Ele acabou de chagar do trabalho e provavelmente está trabalhando mais ainda no seu notebook. Fala sério. Ele só trabalha!

Eu sinto falta de quando a gente se via quase o dia todo, sabe?! Quando ele vinha me dar boa noite. Quando a gente ajudava a mamãe a fazer o almoço nos domingos e tal...

Parece que meu pai só tem pensado em trabalho ultimamente, e isso está acabando com a vida dele. Ele, pelo contrário do que eu achava, ficou super empolgado com a idéia da banda e tal. Isso ficou meio óbvio com a ajuda dele pra comprar os equipamentos. Ele acha que já estava na hora de eu começar a me socializar com pessoas da minha idade. Pessoas “normais”, como ele diz.

Ele fala que aqueles caras que vinham aqui em casa para as convenções de Mangá que eu organizava não eram normais. Tá, eles não são NORMAIS, sabe?! Mas até que são legais. Apesar dos aparelhos nos dentes, cabelos estranhos e narizes constantemente escorrendo. Sabe como é. Essa coisa de nerd.

O que importa é que agora eu tenho amigos bem normais. (Exceto pelo cabelo colorido da Sofia, mas quem se importa?) E aprece que meu pai tá orgulhoso em relação a tudo isso.

Apesar de não demonstrar. No ensaio de hoje a gente continuou trabalhando a música da

Gabi – que nós resolvemos chamar de Saber Amar. Tá legal, a julgar pelo nome, vão pensar que nós somos uns pagodeiros, ou sei lá o que. Mas é só a Gabi abrir aquela boca bem desenhada dela e qualquer um esquece essa coisa toda de rodinha, cerveja e espetinho de frango.

E a gente começou a ver as possibilidades de arranjos pra Chiclete de Melancia, a música da Sofia. Que, falando sério, é incrível. Eu fui ajudando com a melodia que eu tinha pensado durante a aula de Biologia, e o Buca foi dando a batida. A introdução com o baixo da Sofia ficou incrível. E o vocal. Bem, era a Gabi lá cantando. O que mais eu posso dizer?

Hoje ficou claro porque eu não consigo parar de pensar nela nem um segundo. Ela consegue ser tão doce, e tão forte ao mesmo tempo. Ela tem aquele jeito dela, meio diferente e tal... 44

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Mas, POR QUE ELA SE QUER OLHARIA PRA UM CARA QUE NEM EU???

Eu to depositando minha confiança em um plano aí da Sofia. Ela parece entender dessas coisas. E eu acho que tá meio na cara que eu tô gostando de verdade da Gabi. Mas se até ela (a Gabi, quer dizer) já percebeu, parece não demonstrar. Ela me trata como o simples guitarrista da banda. Só isso.

Às vezes eu sou tomado por uma coisa parecida com coragem, e me vejo contando pra ela como ela é linda, e como seus olhos não saem da minha cabeça. Mas aí eu caio na real. Quero dizer, OLHOS QUE NÃO SAEM DA MINHA CABEÇA??? Que tipo de ANOMALIA BIOLÓGICA eu sou?

Definitivamente, ela nunca olharia pra um cara como eu. Ela deve ter milhões de caras aos pés dela, e eu meio que não faço o tipo dela.

Eu acho que não faço o tipo de ninguém. A não ser o da MINHA MÃE! Mas... ECA! Acho que já tá na hora do Sr. Olhos-Na-Cabeça ir dormir. Amanhã é um novo dia, e... NOVO DIA? Do que eu estou falando? Sério. Eu não tô bem. ● AI MEU DEUS! Com toda essa coisa de banda, acabei esquecendo da Feira de Cultura da

Escola!!! É no sábado, e eu só tenho mais DOIS DIAS pra ensaiar as ‘músicas contemporâneas’ com aquele pessoal da sala.

Merda.

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Qual é o PROBLEMA comigo? Sério. Ontem à noite, depois do

ensaio, quando eu já estava em casa eu simplesmente não consegui parar de pensar no Buca! Não que eu estivesse com a mente vazia ou algo assim. Pra falar a verdade, eu tinha até bastante coisa pra pensar.

Como, por exemplo, em um jeito de falar sobre a história dos Shoppings Centers de uma maneira não-fútil, já que o assunto da nossa turma na Feira de Cultura vai ser esse mesmo. Mas quando eu pensava nisso, lembrava de como o Buca tinha sido fofo dizendo que estaria disposto a me ouvir falar sobre a pobreza na África.

Tentei pensar na banda, nas músicas, no meu plano com o PH. Mas isso me lembrava de como o Buh fica lindo atrás da bateria, com aquela cara de mal. De como os cabelos dele se mechem e tal...

Tentei pensar em quais seriam as probabilidades dos meus filhos serem gêmeos olhando a herança genética da minha família. Mas aí eu lembrei de que quando nós estávamos na quinta série, o Buh me disse que sempre quis ter SEIS filhos. Daí eu (tentando fazer uma piada) disse “Peraí! Seu sobrenome por acaso é COELHO?” e ele meio que não entendeu a minha piadinha sobre a facilidade de reprodução dos coelhos.

Sério. NO QUE EU ESTAVA PENSANDO QUANDO DISSE AQUILO???

Hoje eu JAMAIS faria uma piada daquelas. Levando em conta que com o tempo a gente aprende que os meninos odeiam as garotas que estudam anatomia de coelhos!

Peraí! Qual é a minha? Eu tô apaixonada pelo Buca? Tipo, APAIXONADA???

Creio que não. Já que eu não pretendo me apaixonar até ter uma carreira profissional bem estruturada. Eu vi esses dias no Discovery Channel que 32% das mulheres não alcançaram seus objetivos profissionais porque se apaixonaram e se casaram antes de alcançá-los. Tá, não deve ter sido no Discovery Channel, já que nesse canal só passam documentários chatos sobre lhamas, plantações de milho e geleiras. E eu definitivamente não me interesso por MILHO! Porque isso me lembra o nerd que sempre tem milho agarrado no dente. ECA! Sendo assim, eu acho que vi essa parada das mulheres não realizadas profissionalmente, por causa de seus maridos gostosões no Fox Life ou alguma coisa assim. Mas isso não importa. O que eu tô querendo dizer é: EU NÃO TÔ APAIXONADA! E pronto!

Ai meu Deus. Acabo de olhar pro quadro, e sabe o que eu vi? Um monte de letras soltas ligadas por uns palitinhos. O professor de Química acaba de escrever em cima daquelas ligações de sei lá o que: “IDENTIFICAR FUNÇÕES” 46

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Sério. Que tipo de garota eu sou??? Não sei identificar funções, faço piada com a genética dos coelhos, nem sei se estou apaixonada e não me interesso por plantações de MILHO!

Eu me odeio. ●

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É sério agora. Eu tô ficando louco. Sabe aquela minha teoria sobre a Sofia estar perdidamente

apaixonada pelo nerd que sempre tem milho agarrado no dente? Pois é. É tudo a mais pura verdade. A aula de Química tá um saco total. E eu não faço a menor idéia

de como identificar essas funções. Aí eu fui dar uma olhada no coderno da Sofia, mas o negócio é que ela não estava fazendo o dever.

Ela estava escrevendo no seu diário, e eu acabei lendo uma coisa que eu não queria. Lá, com todas as letras maiúsculas, estava uma palavra que me fez gelar.

MILHO. Do que mais ela poderia estar falando? Com certeza era alguma

coisa do tipo “Querido diário, estou perdidamente pelo nerd que sempre tem MILHO agarrado nos dentes...” ou pior! “Querido diário, ontem eu descobri que até o BEIJO dele tem gosto de MILHO...”

ECA!!! Ela não pode fazer isso. Simplesmente não pode! Ela merece coisa muito melhor. Tipo... EU! Tá legal que o intelecto

do cara é zilhões de vezes maior que o meu, mas QUAL É??? Ela não pode me rejeitar só porque na quinta série eu nem sabia

que os coelhos se reproduziam com facilidade! Quer saber? Talvez ela possa sim. Eu meio que cansei agora. Ela

é linda, tem olhos maravilhosos e tal, mas... Pra mim não dá mais, sabe?

Ela jamais me amaria em todas as hipóteses. Mulheres não costumam amar os caras que elas conheceram no Jardim de Infância. E eu não vou ficar me prendendo a alguém que se importa mais com o QI do que com a higiene bucal de um garoto.

É só. Bruno Carlos, hora de dar a volta por cima! ● DAR A VOLTA POR CIMA??? Do que eu tô falando? Esquece o fim da última frase. E esquece também a parte na qual eu refiro à mim mesmo na

terceira pessoa. Esquece tudo! Esquece que eu existo, que eu só queria ‘dar a volta por cima’, e

que um dia eu amei a Sofia.

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Cara, tá tudo muito estranho por aqui... O ensaio de hoje foi o

pior de todas as nossas vidas. Tá legal, nós só tivemos TRÊS ensaios até agora, mas, sem sombra de dúvidas, esse foi o pior de todos eles.

Não que não houvesse força de vontade na hora de ensaiar. Pelo quem me parece, até havia. Mas, sabe aquela coisa que a gente sentia no início de tudo quando tocamos juntos pela primeira vez?

Pois é. Definitivamente, essa “coisa” (seja lá o que ela fosse) não estava rolando mais. O clima estava pesado. Os olhares do Buca pra Sofia, e da Sofia pro Buca estavam cortantes. Eles não disseram uma palavra um ao outro durante o caminho até a casa do PH. Eu percebi logo de cara esse climinha, sabe como é?!

Cheguei a perguntar à Sofia o que tinha acontecido, mas ela me disse que não entendia porque o Buca tinha ficado completamente mudo depois do intervalo. E tudo que a Sofia perguntava, ele respondia da maneira mais seca e ríspida possível.

COMO ASSIM? Eu poderia jurar que esses dois foram FEITOS UM PARA O

OUTRO! Tá legal que parece que eles ainda não perceberam isso, mas tá na cara que eles se amam. Dá pra perceber pelos olhos brilhando da Sofia quando o Buca se aproxima. Pelas pupilas dilatadas do Buca quando ele está perto da Sofia.

Certa vez, eu li que quando os homens estão apaixonados, a pupila deles se dilata quando encontram a mulher amada. E meio que DÁ PRA PERCEBER aquelas pupilas gigantescas do Buca quando a Sofia está por perto.

E levando em conta que eles (a Sofia e o Buca, quero dizer) ficam perto um do outro praticamente o dia todo, eu posso afirmar que o COITADO do Buca, simplesmente NÃO SABE O QUE É TER PUPILAS DE TAMANHO NORMAL!!!!

O que é uma pena. Total. Durante o ensaio ninguém conseguia se encontrar num ponto só.

Os instrumentos pareciam estar totalmente desafinados. Mas não estavam! Pode parecer meio que loucura da minha parte, mas o que estava impedindo a música de fluir no ensaio de hoje, era a falta de cumplicidade, se é que você me entende. Numa tentativa de fugir daquele climão todo, o PH foi pra um canto, e começou a mexer num aparelhinho, que mais tarde eu descobri que era um afinador. Era isso que o PH estava tentando fazer, afinar a guitarra dele!

Enquanto isso, eu sofria com aquela pressão psicológica/sentimental que estava tomando conta da garagem. Olhei pro PH, pra ver se ele me passava algum olhar de confiança, mas ele parecia nem perceber o que estava acontecendo. 49

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Acho que aquele tal de afinador deixa as pessoas imunes a pressões psicológicas/sentimentais.

Depois de afinar lá o que não precisava ser afinado, o PH voltou pro lugar dele, e mais uma vez nós tentamos ensaiar Saber Amar (a minha música com nome de pagode!).

Mas estava óbvio que aquele ensaio não iria pra frente nem em um milhão de anos. Olhei pro PH e vi que ele já estava sem o afinador por perto. Então, eu tentei novamente.

Lancei pra ele um olhar do tipo “Ei?! Você não tá percebendo toda essa pressão psicológica/sentimental, não???”

E, cara, ele compreendeu meu olhar. PERFEITAMENTE! Ao passo que olhou com uma cara forjada de desânimo pra todos nós, e disse “Bom, gente. Por hoje eu acho que já está bom, certo?! E eu ainda tenho que ensaiar pra apresentação da minha turma na Feira de Cultura e tal...”

ÓTIMA DESCULPA! Buca e Sofia se despediram rapidamente de nós, e cada um foi

embora pra sua casa. Parecia que eles também não estavam mais aguentando ficar ali. Assim que eles saíram, parece que um ar diferente encheu a garagem. Foi meio que um alívio. Total.

Eu, então, olhei meio sem graça pro PH e disse “Bem... Acho melhor eu ir. Você ainda tem que ensaiar, e eu não quero te atrapalhar.” Ele assentiu com a cabeça, e eu saí.

Lógico que não comentei que nem sabia o que EU ia fazer na tal feira de cultura. Eu acho que tô perdida! Essa feira vai dar pontos extras em todas as matérias, e ‘todas as matérias’ são exatamente as que eu preciso de pontos extras no fim do ano! Então, é melhor eu correr atrás disso amanhã, ou... Ou eu vou me ferrar totalmente. ●

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É. Hoje a coisa estava realmente estranha no ensaio. Eu não sei

direito o que aconteceu, mas não foi nada bom. O Buca e a Sofia nunca me pareceram tão desconectados como hoje. Parecia que a música que eles faziam não batia com a que a gente já tinha ensaiado.

Percebi que a Gabi também não estava mais aguentando aquele clima todo, e achei melhor encerrar o ensaio por ali mesmo. Disse que tinha que ensaiar pra apresentação da minha turma na Feira de Cultura. Eu realmente TINHA que ensaiar, mas não tinha cabeça pra mais nada. Eu estava pensando muito nos últimos dias em todas as mudanças que estavam acontecendo comigo. Tipo a banda, a minha paixão repentina pela Gabi, a falta que eu sentia do meu pai às vezes... Tudo isso não saía de jeito nenhum da minha cabeça.

Não que eu estivesse preocupado nem nada, mas parece que foi isso que a minha mãe achou. Enquanto eu estava lá na garagem arrumando as coisas pra poder entrar em casa e fazer a lição, minha mãe veio falar comigo. “Dia cansativo, filho?”. Eu meio que me assustei, já que não costumo conversar muito com a minha mãe, mas naquela hora eu achei que poderia ser uma boa idéia. No que eu respondi “Não, mãe. Nem tanto...”

“Mas o que aconteceu então? Você tá com uma cara péssima!” Sério. Como as mães percebem quando a gente está com caras

péssimas. COMO??? Não importa como. Já que nem a ciência explica qual é a das mães... O que importa é que eu JAMAIS contaria pra ela tudo que estava se passando. Por isso dei uma desculpa idiota, porém convincente.

“Não é nada sério. Só estou meio preocupado com a Feira de Cultura. A minha turma vai fazer uma apresentação, e você sabe que eu não sou um dos melhores pra lidar com o público e tal...” Mamãe assentiu com a cabeça debilmente. Senti que o assunto ia morrer a qualquer momento, então meio que por instinto, eu comentei “Ah! Você e o pai vão na Feira no sábado, não vão?”

O sorriso da minha mãe ficou meio amarelo, e ela me disse que meu pai não poderia ir, porque tinha uma reunião importante fora da cidade, e não poderia faltar. Isso nem me surpreendeu muito. Mas me decepcionou um pouco. Eu queria que meu pai estivesse lá, mas não poderia fazer nada. Olhei pra minha mãe e disse “Humm... Tudo certo! Eu sinto falta dele às vezes. Mas tudo bem! Vou fazer a lição de casa. Boa noite!” Nem vi como é que a minha mãe reagiu. Simplesmente dei as costas, e fui andando rumo ao meu quarto. Tô sem ânimo pra fazer qualquer coisa. E só espero que o ensaio de amanhã seja melhor.

Isso SE houver ensaio. ●

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Sério. Qual é o PROBLEMA do cara que inventou as atividades

extracurriculares nas escolas? Principalmente as FEIRAS ESTÚPIDAS DE CULTURA!!! Hoje de manhã, como eu tinha prometido a mim mesma, eu fui à

secretaria procurar saber com a mulherzinha responsável pelos eventos da escola, o que a minha turma ia apresentar na tal Feira. Usei o meu melhor sorriso de “estou interessada pelo que acontece na escola” e perguntei pra ela a respeito das apresentações do Segundo ano. E sabe o que ela respondeu?

“Tarde demais ruivinha!”

??? RUIVINHA? Minha vontade era dizer que “Ruivinha” era a avó dela, mas me

lembrei de todos os livros de controle de raiva que eu já li na minha vida, respirei fundo e escutei o que ela tinha pra dizer. Só pra deixar claro, eu só li UM livro de controle de raiva em toda minha vida.

De qualquer forma, ela disse que a minha turma já está ensaiando uma tragédia grega há mais de três semanas, e que eu deveria ter me preocupado antes. Agora vou ter que fazer um trabalho sobre literatura barroca pra conseguir os pontos perdidos da feira.

LITERATURA BARROCA!!! Eu nem sei o que é isso. Definitivamente, estou ferrada.

Ferradíssima por sinal. Preciso entregar o tal trabalho amanhã, no dia da Feira. Nem comecei a fazer ainda e NEM SEI POR ONDE COMEÇAR!

O intervalo é daqui a pouco, e eu preciso encontrar a banda pra, você sabe, resolver o que faremos hoje. Porque se for pra ter um ensaio como o de ontem, definitivamente, não vale a pena!

Peraí! Tive meio que uma luz agora! Já sei o que fazer! Tá legal. Depois escrevo mais. ●

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Eu não tô mais aguentando ficar sem falar com a Sofia, mas eu preciso ser forte... Não vou ficar me rastejando por ela a vida toda, enquanto ela pensa nos milhos que acidentalmente ficam presos nos dentes de outros caras!

A gente fica se entreolhando durante as aulas. Mas ninguém tem coragem de dizer nada. Me parece que ela já percebeu que eu descobri tudo, e tem vergonha de dizer que tá apaixonada por um cara como AQUELE CARA!

Hoje, no intervalo, ficou decidido que não vai ter ensaio hoje à tarde. É lógico que isso não tem nada a ver com o que tá rolando (ou melhor, NÃO tá rolando) entre mim e a Sofia. Todo mundo precisa de um descanso de vez em quando, você sabe como é.

E por enquanto é só isso. Eu não vou falar mais nada. Ela é que tem que vir falar comigo.

Me dizer que na verdade nunca gostou do cara do milho no dente. Me dizer que na verdade sempre gostou de mim.

Mas, apesar de ser o que eu mais quero na vida, acho que não vai acontecer nem tão cedo. ●

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Será que alguém poderia me explicar o que é que está

acontecendo por aqui? Parece que eu perdi alguma coisa. As coisas não podem ter acontecido assim, tão de repente, ao ponto de eu nem saber por que o Buca simplesmente NEM OLHA MAIS PRA MIM!!!

Hoje à tarde nem vai ter ensaio! E eu nem sei quem foi que tomou essa decisão.

Eu estou começando a achar que o Buh descobriu de alguma forma que eu meio que estava achando que gostava dele. E já que eu sou uma completa idiota, e ele é o “Bonitinho do Terceiro Ano”, tratou de me dar um gelo total, pra eu me colocar de volta ao meu lugar.

Provavelmente foi isso! Não tem outra explicação. Como eu sou idiota. Eu estraguei tudo. Pra que destruir uma amizade tão legal quanto a nossa, só por causa de um amor que eu nem tinha certeza se existia?

E o pior. A Gabi ainda queria que eu a ajudasse num trabalho sobre literatura Barroca hoje a tarde. É sério. Eu estou sem condições de pensar em literatura Barroca. Total.

A minha sorte foi que, quando o PH me ouviu dizendo a ela que eu não poderia ajudá-la, ele meio que se prontificou na hora. E a Gabi aceitou a ajuda! O que foi bem legal pra mim, já que se ela não tivesse alguém que entendesse de literatura Barroca por perto, eu ia me sentir bem culpada.

E com toda certeza, o PH entende muito mais do que eu. De literatura Barroca, quer dizer.

Tem horas que eu até acho que eles dois (Gabi e PH, sabe) foram feitos um pro outro. Dá pra perceber que o olho dele brilha quando ela está por perto. E ele sempre quer parecer prestativo. Tipo “Ei! Estou aqui pra ajustar o volume do seu microfone, te passar o molho na hora do almoço e te ajudar com seus trabalhos sobre literatura Barroca!”

E isso é super fofo. Parece que é tudo que eu queria, sabe?! Não um cara bonitinho. Apenas um cara pra me passar o molho na hora do almoço. Um cara pra me ajudar com meus trabalhos sobre literatura Barroca (isso seria bem útil, levando em conta que eu NEM SEI o que é literatura Barroca!). Um cara de quem eu pudesse ouvir um “Eu Te Amo!”

E, sério, eu nem ia ligar se ele não entendesse nada obre a anatomia dos coelhos. ●

Ih! Quase que eu esqueço! Amanhã de manhã, antes da Feira, tem

a última etapa do meu lance com o PH! Espero que isso tire um pouco a minha cabeça desse monte de problemas.

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Meus problemas se resolveram de um jeito melhor do que eu

mesma esperava. Já tenho quem me ajude no trabalho lá da literatura Barroca! O PH! Que é simplesmente o cara mais inteligente do colégio. Exceto, é claro, esse nerd que senta na minha frente. O que tem o problema com o milho.

Vou pra casa dele depois da aula. Do PH! Não do nerd com milho no dente!

Tô pensando seriamente em sugerir que a gente coma em algum lugar antes de ir. Sério. Eu ia ficar beeeem sem graça se tivesse que ouvir todas aquelas histórias da mãe dele de novo durante um almoço “em família”.

É isso mesmo que eu vou fazer! E sobre o lance de nem ter ensaio hoje à tarde, eu só posso dizer: POR DEUS! O QUE ESTÁ ACONTECENDO??? ●

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ISSO NÃO PODE ESTAR ACONTECENDO!!! Hoje, a tarde foi mais que incrível! Sabe, a Gabi veio aqui pra casa. Ela precisava de ajuda pra fazer

um trabalho sobre literatura Barroca. Particularmente, não é o meu gênero preferido, mas por ela eu estudaria sobre QUALQUER COISA!!!

Quando a gente saiu da escola, paramos numa lanchonete qualquer pra comer um hambúrguer a pedido da Gabi. Eu disse que não tinha problema se ela almoçasse aqui em casa, mas ela insistiu, e eu não consegui negar.

Depois que nós chegamos aqui, fizemos o trabalho em poucos minutos. A minha internet banda larga é bem útil de vez em quando.

Enquanto eu imprimia as folhas do trabalho, ela me perguntou “O seu pai nunca fica em casa não?”

Eu fiquei meio surpreso com a pergunta. Desde o primeiro ensaio, nunca mais ninguém perguntou sobre o meu pai. Eu respondi dando de ombros que ele era um cara muito ocupado e tal. Ela me perguntou se ele iria à Feira de Cultura amanhã, e eu disse quem não. Só isso. Sem dar muita explicação. Eu tinha medo de começar a explicar, e acabar falando demais. Sabe como é. Acabar falando da falta que eu sinto do meu pai de vez em quando.

Depois a gente foi pra sala, e estava passando uns filmes de ficção científica na TV a cabo. Eu perguntei se ela queria assistir, e ela respondeu com um simples, e lindo “Por que não?”

Ficamos lá no sofá, assistindo aos filmes, mas nenhuma proximidade rolou. Ela em um canto, e eu no outro. E agora eu te pergunto:

QUAL É O PROBLEMA DESSES CANAIS DE FILMES??? Eles não poderiam estar exibindo uns filmes de romance? Ou

terror?? Ou qualquer coisa que a mantivesse do meu lado??? Fala sério. É meio que IMPOSSÍVEL rolar algum clima entre dois amantes

enquanto o Darth Vader fala com sua voz metálica “Luke, eu sou seu pai!”.

Tá legal que nós nem somos dois amantes, mas... Tá! Esquece. Quando os filmes acabaram, e começou a dar um documentário

chato sobre mulheres que tiveram mais de dez filhos, nós percebemos que já estava meio tarde, e o céu já tinha escurecido.

Me ofereci pra leva-la em casa, sabe como é, pra ela não correr nenhum perigo e tal...

Não que eu me atiraria em cima de um bandido armado pra salvar a vida da Gabi se ela fosse assaltada. Mas, a quem eu estou enganado? Eu só queria passar mais tempo ao lado dela. 56

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E nós fomos andando pela rua. Conversando. Rindo. Como dois velhos amigos. De repente, ela parou. Eu parei também, e olhei pro rosto dela. Ela pegou nos meus ombros, olhou bem nos meus olhos, e disse com uma voz exausta.

“Pedro, eu acho que...” QUE TE AMO??? Era isso que ela estava prestes a dizer? Ela

achava que me amava? Que estava apaixonada por mim??? Mas, não. Não foi isso. Porque ela completou com um:

“...estou passando mal!” E depois abaixou a cabeça, e vomitou. VOMITOU! Não seria necessário ser um perito em vômitos pra saber que o

hambúrguer que tínhamos comido mais cedo não tinha feito muito bem pra Gabi.

Ela ficou muito sem graça, e como já estávamos perto da casa dela, Gabi disse que podia ir sozinha dali pra frente. Mas eu não podia deixá-la ali, sozinha. Por isso, levantei sua cabeça, olhei bem nos seus olhos e disse: “Fica tranquila. Eu vou com você.”

E fui. Até o portão da casa dela. E depois de uma despedida seca, ela se virou, e entrou em casa. E mesmo com o lance todo do vômito, eu não consigo parar de

pensar naquela garota um segundo que seja. ● Lembrete: Amanhã de manhã tenho que encontrar a Sofia.

Segundo ela, estamos na última etapa do nosso plano.

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Cara, eu não sou normal. Definitivamente. Acabei de acordar, e

como de costume, olhei pra mesinha de cabeceira, pra ver as horas no meu despertador. E ao invés de encontrar o relógio, encontrei uma folha de papel. No topo estava escrito “Literatura Barroca”, e o resto estava ilegível, já que a folha estava completamente suja de... VÔMITO!

ECAAAAAA!!! Agora tudo veio à tona na minha cabeça. A volta. O hambúrguer.

O enjôo. A sujeira. E como o trabalho de literatura era a única coisa na minha mão, foi ele o que me auxiliou na hora de me limpar.

(Eu estou mesmo falando disso?) E agora eu não posso entregar um trabalho assim. Teria que ir de

novo à casa do PH, e fazer tudo de novo, mas já está em cima da hora e...

O PH!!! Foi ele que me ajudou. Agora eu lembro perfeitamente de tudo. Não que eu estivesse

bêbada, ao ponto de esquecer das coisas, mas QUAL É A DAQUELE HAMBÚRGUER???

E mesmo eu estando lá, toda... nojenta, o PH só olhou pra mim e disse “Fica tranquila. Eu vou com você.” Só isso. Ele olhou, e...

AI MEU DEUSINHO DO CÉU!!! Tô me lembrando como se fosse ontem (Tá, FOI ontem...)! O olhar

do PH. Estava diferente. Como eu nunca tinha reparado. Suas pupilas estavam DILATADAS!

O PH É APAIXONADO POR MIM??? Lógico! Como eu nunca havia reparado antes? Ele sempre esteve

perto de mim. Desde que a gente se conheceu a alguns dias e, agora, tudo está mais claro.

E eu GOSTO dele. Ele é um cara incrível. Com ele, até o DARTH VADER se torna divertido. Até fazer trabalhos sobre Literatura Barroca é interessante com o PH por perto.

E eu não posso deixar isso escapar. Tenho que ir até a casa dele. E tem que ser agora. ●

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Hoje. O dia da tal feira de Cultura. Sinceramente, quando acordei,

não estava com nenhuma de vontade de sair de casa. Principalmente se fosse pra falar da HISTÓRIA DOS SHOPPINGS CENTERS!

Mas eu não podia ficar em casa o dia todo. Tinha um compromisso serio com PH, nosso plano tinha que dar certo.

Tá legal. Não era nenhum “PLAAANO”, se é que você me entende. Eu só me vi na responsabilidade de dar um “up” no visual do cara.

Sabe como é né?! Aquele cabelo partido ao meio não vai abalar nenhuma fãzinha histérica. Quero dizer, o cara precisava de um visual novo! E foi isso que a gente andou fazendo nos últimos dias. Comprando roupas, acessórios e tal... Não que eu tenha me tornado a garotinha fútil, mas o cara tava precisando. E desde que eu percebi que o PH era louco de amor pela Gabi, vi que eu tinha que fazer alguma coisa a respeito.

Hoje de manhã, nós fomos dar um jeito no cabelo dele (que ficou incrível. Mega estiloso) e depois, ele foi lá pra casa colocar as roupas que nós compramos. Logo depois da hora do almoço, ele já estava pronto pra arrasar o coração da Gabi.

Em nenhum momento eu disse a ele que meio que desconfiava do amor dele pela Gabriela, mas ele deixava transparecer isso toda vez experimentava alguma coisa e perguntava “Você acha que... a Gabi vai gostar?”

E eu, com meu melhor sorriso de confiança respondia “Totalmente!”

A manhã passou rápido, e quando percebi, já estava lá na escola com o PH, onde uns alunos eufóricos do Ensino Fundamental corriam de um lado para o outro arrumando seus estandes, e colocando os instrumentos no palco principal. Até que o palco estava bem legal... Pra um colégio como o nosso.

Tinham muitos instrumentos lá. Se não me engano, uma banda de música clássica iria tocar no final do evento. Pra alegria dos convidados com mais de 63 anos, obviamente.

Percebi que a mudança do PH surtiu um pouquinho de efeito sim. Duas meninas da sétima série e uma da oitava, vieram me perguntar quem era o “garoto bonitinho” que chegou junto comigo!

JURO! A Feira já havia começado, quando dei falta do Buca. Ele ainda

não tinha aparecido, e a escola estava comendo a ficar cheia. Pais e alunos por todos os lados. Uma chatice total. Aposto que se o Buca estivesse ali, do meu lado, aquilo tudo estaria bem mais engraçado, mais divertido. Mas sem ele pra rir junto comigo, não fazia muito sentido ficar andando por aquela escola cheia de estranhos. A 59

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apresentação da turma do PH estava quase começando, mas houve algum problema com os microfones, e os técnicos estavam tentando resolver. O PH me parecia nervoso. Tipo, MUITO nervoso. Sua mãe estava lá, bem na frente do palco, com a maior cara de orgulho do filhão. Aquilo tudo estava chato demais. Fui dar uma volta, e fui ver o que as criancinhas tinham feito pra mostrar na Feira. Criancinhas são sempre bonitinhas, e com certeza iriam me ajudar a esquecer o Buca.

Enquanto caminhava até o fundo do pátio, pra ver as “obras de arte” de palitos de picolé e cola colorida das crianças da primeira série, senti uma mão me cutucando. E quando me virei, não consegui conter minha cara de surpresa. Porque, em pé, com uma cara de orgulho, estava ele.

O nerd que sempre tem milho agarrado no dente. “Ei! Você está interessada em ver meus experimentos sobre a

digestão de proteínas em pH maior que 0.5?” SÉRIO! Foi ISSO que lê me disse. Aquilo, apesar de ser totalmente vago pra mim (a parada da

digestão de proteínas, quero dizer), parecia mais interessante do que madeira reciclada coberta de tinta. O Buca não estava ali comigo. Eu não tinha mais nada pra fazer. Por que não?

Acompanhei o nerd que sempre tem milho agarrado nos dentes até o final do corredor e, quando cheguei lá com ele, na minha frente estava quem tinha estado na minha mente a manhã inteira.

Buca me olhou com uma cara de desaprovação. Depois olhou do mesmo modo pro nerd que sempre tem milho agarrado nos dentes e disse “Eu sempre soube.”

E saiu. Com uma cara que eu poderia dizer, que não era nada feliz.

Fui atrás dele, afinal, o que mais eu poderia fazer? As digestão das proteínas poderia esperar. ●

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Aquela manhã tinha sido bem agitada pra uma manhã de sábado.

Eu me surpreendi com o que a Sofia fez comigo. E pra falar a verdade, gostei bastante do meu novo “estilo”.

Estava me sentindo mais autoconfiante. Parecia que toda a vergonha que eu tinha das pessoas havia desaparecido.

Ou melhor, quase toda. Enquanto eu estava lá no palco principal da Feira, esperando os técnicos consertarem um problema dos cabos do microfone, eu olhava pra primeira fileira de gente ali na frente. E lá estava a minha mãe. super eufórica, como as crianças do ensino fundamental estavam quando a gente chegou na escola.

Não que ela me envergonhasse nem nada, mas... Será quem ela precisava MESMO ficar falando pra completos desconhecidos que eu era o filho DELA???

Enfim, tentei esquecer o mico que a minha mãe estava me fazendo pagar, e pensar em outra coisa. Mas nos últimos dias, a única coisa na qual eu conseguia pensar, era na Gabi. Ela ainda não tinha aparecido na escola. E eu queria muito ela lá, quando eu estivesse me apresentando.

Tá. A minha apresentação sobre música contemporânea era um saco total, mas se ela estivesse ali, olhando pra mim, eu faria tudo com mais tranquilidade.

Meu pensamento vagava, quando de repente uma coisa me despertou dos meus devaneios. Olhei para o fundo do pátio, onde umas criancinhas apresentavam coisas feitas de palito de picolé, e entrando pelo portão principal da escola estava ela. Não precisei me certificar se era ela mesma. Meu coração fez isso por mim, dando milhões de cambalhotas no meu peito.

Mas a Gabi não estava sozinha. Sento guiado pela mão dela, estava ele, que fez meu olhar congelar numa mistura total de tensão e alegria.

Meu pai. Gabi veio puxando-o pelo braço até a primeira fileira, o deixou ao

lado da minha mãe, e subiu pela lateral do palco. Eu caminhei até ela, e ali, no canto do palco, sem que quase ninguém percebesse, ela me olhou de um jeito como nunca tinha olhado antes. Sua cara demonstrava alívio e preocupação ao mesmo tempo. Ela tomou fôlego, e disse tudo, sem dar nenhuma pausa. Como uma espécie de desabafo:

“Olha PH. Eu posso estar ficando louca, ou algo parecido. Mas hoje de manhã eu acordei de um jeito que eu nunca tinha acordado antes. A noite de ontem foi extremamente decisiva pra mim. Eu não lembro de muita coisa, já que aquele maldito hambúrguer me fez passar muito mal, mas eu lembro claramente dos seus olhos dentro dos meus, e das suas 61

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pupilas dilatadas. Pode parecer loucura, mas parece que minha ficha caiu. Você é um cara incrível, e eu só queria te pedir desculpas por ser tão idiota. Por vomitar no meio da rua quando estou com você. Por te encher a paciência com meu estúpido trabalho de Literatura Barroca, que por sinal, está sujo de vômito, e vai me fazer perder meus pontos extras. Hoje de manhã, quando em dei conta de tudo isso, fui até a sua casa, e encontrei seu pai. Ele me disse que você tinha saído cedo, e que estava de saída. Eu simplesmente não acreditei, e contei a ele tudo que você me disse ontem. Sobre a falta que você sente dele de vez em quando. Disse que você ia se apresentar nessa Feira estúpida agora, e trouxe ele aqui pra ver você. E agora é seu papel encher seu pai de orgulho, certo? Bem, já deve estar na sua hora, e você provavelmente não quer perder seu tempo falando com a garota que vomita em publico e que descobriu que está te amando hoje de manhã...”

O que ela disse dali pra frente, eu não pude mais ouvir. ELA DESCOBRIU QUE ESTAVA ME AMANDO!!! Não podia acreditar que aquilo tudo estava acontecendo. De repente, ela parou de falar. E olhou pra mim. Eu nem sabia o que falar, e quando comecei a balbuciar umas

palavras um cara entrou no nosso meio, olhou pra Gabi e disse “Você é que vai cantar? O problema do microfone está resolvido. Vai lá, e arrasa!” e depois entregou o microfone nas mãos dela.

Gabi me olhou com uma cara de quem não estava entendendo nada e disse: “O que é isso?”. E, de repente, uma luz veio na minha cabeça, e eu disse rapidamente puxando Gabi até o centro do palco. “É uma maneira de você recuperar seus pontos perdidos, e se apresentar nessa Feira ‘estúpida’. Confia em mim.” ●

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Simplesmente não dava pra acreditar. Sério, eu nunca fui do tipo de cara que sai por aí dando ataques

em público, mas... O CARA DO MILHO NO DENTE??? Ver a Sofia lá, nos braços dele, foi o fim pra mim. Tá legal, ela

nem estava “nos braços dele”, só estava perto dele. Mas, qual é? Eu não queria mais saber do que os dois pretendiam fazer. Só queria sair dali. E fui isso que eu fiz. Caminhei até perto do palco, onde ia acontecer a apresentação do PH em alguns minutos.

Perto da última fileira de pessoas que iriam assistir a tal apresentação, estava muito tumultuado, e eu não consegui passar. No meio daquele monte de gente, senti uma mão puxar meu ombro pra trás, e quando me virei, ela estava lá.

Sofia me olhou nos olhos e eu quase me perdi naquele seu olhar profundo. Sua mão escorregou pelo meu ombro e chegou até a minha mão. Ela abaixou a cabeça, tomou fôlego, voltou a me olhar e disse “A gente precisa conversar”.

Continuei encarando-a, sem perder a postura séria. Na verdade, que queria abraçá-la naquele momento, mas eu não podia. Definitivamente não podia. Não naquelas circunstâncias.

Assenti com a cabeça, e ela me puxou para um canto do pátio, onde (por incrível que pareça) não havia ninguém correndo de um lado pro outro.

“Buca, eu só queria apenas entender. O que é que está acontecendo? Por que você mudou assim, tão de repente? Eu estou com saudades do que você era pra mim. E, tenho que confessar que passar esses últimos dois dias sem ter você do meu lado a todo instante não foi nada fácil”.

Foi isso que ela disse. Não tinha sido fácil pra ela. E PRA MIM??? Definitivamente tinha sido bem pior pra mim. Isso tudo que ela disse mexeu comigo, mas eu não iria dar o braço a torcer. Primeiramente, EU tinha que saber o que estava acontecendo. Entre ela e o nerd do milho nos dentes, quero dizer.

Olhei pra ela, sem demonstrar nenhuma emoção a respeito do que ela havia me dito. “Eu é que te pergunto, Sofia. O que é que está acontecendo? Queria que você soubesse que também não foi nada fácil pra mim ter de ficar sem você por um tempinho. Mas, sem sombra de dúvidas, é bem pior saber que por mais que eu queira, eu não posso te ter. Porque você já ama a outro”.

O QUE DEU EM MIM??? Isso que eu disse foi absolutamente RIDÍCULO! Mas foi o que eu disse na hora. Precisava falar. Não aguentaria nem mais um minuto sem dizer o que eu estava sentindo.

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Afinal, eu estava dizendo isso tudo à garota que me ensinou a verbalizar sentimentos, e queria mostrar à ela que eu tinha aprendido bem a lição.

Mas parecia que ela não havia entendido direito o que eu estava dizendo. Percebi isso pelo seu olhar de confusão, e seu murmúrio de “Ãhn?!”.

“Eu já sei sobre você e o nerd que sempre tem milho agarrado no dente. Não precisa mais fingir, Sofia. Eu entendo completamente você, mas é melhor eu me afastar, pra não ferir meus próprios sentimentos”, eu disse sem parar pra respirar. Em seguida, olhei nos olhos de Sofia. E eles continuavam confusos.

“Como assim?!” ela disse “Eu e o NERD DO MILHO NO DENTE??? Nunca mesmo! De onde você tirou essa idéia Buca?!”

“Eu não sei ao certo, mas... mas...” Fiquei sem palavras. “Isso jamais aconteceria. Primeiro porque... ECA! O cara é nojento.

Total!” Ela disse, e deu uma risadinha. Levantou a cabeça e olhou pra mim, e com um tom mais sério, continuou. “... e segundo, porque eu jamais conseguiria amar outro cara. Eu descobri o amor nas coisas simples. Descobri que o cara que eu amo, não tem milho nos dentes e nem faz trabalhos sobre a digestão das proteínas. O cara que eu aprendi a amar de verdade, não sabe nada sobre as Revoluções Européias de 1914, muito menos sobre a anatomia dos coelhos. E tem vergonha de assumir que assiste novelas mexicanas”.

Meu coração dobrou de tamanho, mas não fiquei tão impressionado ao ponto de não conseguir responder. No que eu disse, quase que completando tudo que a Sofia havia dito pra mim:

“E a garota que eu amo, é daquelas que vai ao banheiro feminino pra matar a aula de física, acha ‘a História dos Shoppings Centers’ um assunto fútil, e eu poderia ficar um dia inteiro escutando tudo que ela sabe a respeito dos conflitos na África. Porque pra mim, não importa do que estejamos falando. Já que só estar ao lado dela já é o suficiente pra me fazer entender o que é amar de verdade. Eu te amo Sofia”.

“Eu te amo Bruno!” ela disse quase que junto comigo. E ficou na ponta dos pés, pra alcançar a minha boca.

E me beijar. Enquanto a beijava, tudo em volta parecia rodar, como no final

das tais novelas mexicanas. Só que ali, não havia dublagem, e depois que o beijo acabasse não iriam subir os créditos. Afinal, eu nem QUERIA que o beijo acabasse. Parecia que tudo aquilo poderia durar pra sempre, que eu nem me importaria. Estar ao lado da Sofia era tudo que eu estava precisando, e respirar o mesmo ar que ela, me enchia de uma coisa que ainda não havia experimentado.

Amor, eu acho. Mas o beijo foi interrompido. Não por alguém, mas por nós dois. Paramos de nos beijar, quando ouvimos um som conhecido. Olhamos juntos para o palco, e lá estava a Gabi, ao lado do PH,

cantando sua música como nunca havia cantando antes. Pelo menos como eu nunca havia percebido que ela cantava antes.

Aquela música fazia parte de todo aquele momento, e a mão da Sofia encostada na minha me encorajou a fazer algo que eu nem sei se faria em condições normais.

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Mas, dá um desconto vai?! Eu estava COMPLETAMENTE apaixonado. ●

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Perfeito. Tudo aconteceu de um jeito completamente perfeito. Tudo que o Buca me disse. A música da Gabi e do PH começando

a tocar, e o Buca me puxando pelo braço com suas mãos fortes e me levando até o palco...

PERAÍ! ATÉ O PALCO??? É. Quando me dei conta de onde estava, era tarde demais. A

música que a Gabi cantou, e o PH tocou, já tinha acabado. O Buca olhou com o olhar mais confiante que eu já vira em toda a minha vida. “Talvez, fazendo isso, nós vamos conseguir os tais pontos extras, sem precisar falar sobre a história dos Shoppings Centers. E eu sei que você consegue, amor”.

ELE ME CHAMOU DE AMOR! Como eu não poderia fazer o que ele me dizia quando ele me chamava assim? COMO???

A Gabi permaneceu no centro do palco, com cara de “o que a gente vai fazer?” até que o Buca sussurrou alguma coisa no ouvido dela. Ela afirmou com a cabeça, e se aproximou do microfone. Buca foi pra trás de uma bateria que estava no fundo do palco, meio que esquecida. Eu peguei no outro canto um baixo e liguei a caixa de som que estava do lado. Toquei uma ou duas notas pra testar a potencia da caixa, que pra minha surpresa, era grande o suficiente pra fazer aquele monte de gente se calar e olhar pro palco como se fôssemos deuses ou coisa parecida.

Gabi estava mais confiante do que nunca, e aproveitou o silêncio geral pra começar a falar. “Boa tarde, funcionários, alunos e pais de alunos! Nos somos a Nox -2, o evento surpresa da nossa Feira de Cultura.” Olhei pra cara da mulherzinha responsável pelos eventos da escola, e ela parecia estar adorando aquilo tudo.

Sério. A mulher batia umas palminhas empolgadas enquanto a Gabi

continuava a falar. “Antes de nós tocarmos mais uma música eu queria falar de um cara que marcou muito a minha vida: Donatello!”

DONAQUEM??? Não entendi nada, mas Gabi sabia o que estava fazendo.

“Esse cara, tinha tudo pra ser um rebelde. Seu pai o deixou ser educado na casa de um desconhecido, pra poder ter tempo livre pra tecer casacos de lã. Tá certo que naquela época nem existiam escolas, mas o educador de Donatello parecia um estranho completo! Fala sério. Mas ao invés de virar um louco varrido, Donatello canalizou sua raiva na arte, e se tornou um escultor famosão, que vende peças de pessoas semi-nuas pelo mundo todo. E é sobre isso que nós jovens temos que pensar. Os

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adultos podem parecer uns repressores, nazistas, loucos, mas... O que a gente vai fazer a respeito? Usar gravatas, saias curtas e sair cantando por aí que somos uns rebeldes incompreendidos? NÃO MESMO! O negócio é canalizar a raiva toda numa coisa boa, e mostrar pros adultos que nós somos capazes sim, de fazer coisas muito mais importantes do que ter um sabor favorito de chiclete, fazer teatros gregos pra escola, e falar sobre como os Shoppings Centers se desenvolveram. E eu acho que já está na hora de mostrar o que a gente é capaz de fazer! Três, dois um... vai!”

E depois do “vai” da Gabi, eu entendi perfeitamente que tinha que começar meu solo de baixo da introdução de “Chiclete de Melancia”.

E depois a banda me acompanhou. E a Gabi cantou. E todo mundo aplaudiu. E eu me senti feliz como nunca havia me sentido antes.

Enquanto todos aplaudiam, e a Gabi fazia cara de “Aahh.. Pára, nós nem somos tão bons assim”, o Buca levantou da bateria e veio até mim.

“Eu sabia que você conseguiria. E olhar pra você me motivava a tocar cada vez melhor” foi o que ele disse.

“Humm...” eu fiz cara de pensativa “Será que o bonitinho do terceiro ano tem planos pra hoje à noite?”

“Acho que seria bem legal discutir com a garota mais linda da escola sobre as pressões que a África sofre pelos países capitalistas. O que acha?” Ele sorria pra mim.

“Sabe, eu tinha pensado em alguma coisa mais... interessante. Posso tentar te surpreender mais tarde, meu amor?” Eu disse, me aproximando dele, e abraçando-o por cima de seus ombros.

“Só você é capaz disso. Só você!” ele respondeu. E em seguida me beijou. E novamente eu senti meu coração pular uns trinta metros. Como da primeira vez em que ele me beijou. E dentro desse meu coração, algo me dizia que o Buca me faria mais feliz do que eu jamais fui na vida.

E, sem dúvidas, aquela não seria a última vez que ele faria meu coração saltar. ●

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Isso tudo que aconteceu foi simplesmente o desfecho perfeito para

essa semana. Quando a Sofia me beijou (e eu a beijei também) tudo pareceu girar, e quando eu olhei pro palco e vi que a Gabi e o PH estavam lá, eu sabia exatamente o que fazer.

Afinal, a escola poderia ser o melhor lugar pra começar a divulgar a Nox -2. Não poderia?

Quando todos nós já estávamos no palco, eu pude sentir o que eu senti na primeira vez que nós tocamos juntos. Nós quatro, dando o melhor de cada um pra fazer aquele monte de gente sentir o que a gente queria que eles sentissem.

QUE PAPO TODO DE ‘SENTIMENTO’ É ESSE??? Eu tô falando sério. A Sofia consegue me deixar completamente

estranho. Mas é uma estranheza incrível. Que eu gosto de sentir. O tempo todo eu só penso nela, e agora que parece que tudo vai

dar certo pra nós dois, eu só consigo pensar em uma coisa: FUTURO. O futuro é uma das coisas mais incertas de todas. Ninguém sabe

ao certo o que vai acontecer dali a um segundo que seja. Mas, será que essa coisa toda de que somos nós que fazemos o nosso próprio futuro é verdade? Ou será que a gente já nasce com um futuro premeditado e imutável?

Bem, eu não entendo muito disso, mas se você quer saber, pensar no futuro me deixa feliz. Porque no meu futuro eu vejo o sucesso. Eu vejo a Sofia, junto comigo pra sempre, com os nossos seis filhos...

Tá legal que ela quase me mata quando eu venho com essa história de seis filhos, mas com o tempo, eu consigo convencê-la.

Agora faltam menos de nove meses pro fim do ano letivo, e eu vou ter que estudar bastante. E me dedicar à banda. E à minha namorada.

Ai meu Deus! Será que eu dou conta disso tudo? Porque, fala sério. Eu só tenho dezessete anos. E um futuro inteiro pela frente...

Bom, é melhor deixar de lado essa coisa de futuro, fim do ano, seis filhos e tal...

Tenho que ir agora. A Sofia tá me esperando na casa dela. Ela disse que vai me surpreender. E eu to adorando essa idéia de surpresa... Sabe como é. Ela pode querer ficar falando sobre a África comigo, ou pode simplesmente não querer falar mais nada. A gente já passou muito tempo só falando. E talvez chegou a hora de, hum, “fazermos” alguma coisa. ●

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Pra falar a verdade eu nem sei como é que eu sobrevivi a tanta

coisa acontecendo ao mesmo tempo. Quando eu estava lá no palco, e vi meu pai entrando pelo portão principal da escola, eu simplesmente não entendi como aquilo poderia ser possível. Mas foi ela. Ela fez aquilo por mim.

Foi a Gabi que levou o meu pai até a escola, e ela sabia o quanto aquilo tudo era importante pra mim. Depois que nós quatro descemos do palco meu pai veio falar comigo. E pela primeira vez eu pude perceber um tom paterno na voz dele. “Desculpa filhão”. Foi o que ele disse.

Só isso. E depois ele não fez o que eu achei que ele faria. Ele não me deu

as costas e saiu correndo pra cumprir com mais um compromisso do trabalho. Ele apenas ficou parado. Me olhando de baixo pra cima. Até que ele se aproximou e me abraçou.

ELE ME ABRAÇOU! O MEU PAI ME ABRAÇOU! Eu juro que por um momento não entendi nada do que estava

acontecendo. Fala sério! O meu pai não me dava um abraço daqueles desde... desde... Sei lá! Desde MUITO tempo. E por mais simples que possa ter parecido, aquele abraço me fez um bem incrível.

E a quem eu deveria agradecer? Ah, claro. À Gabi. Conforme foi escurecendo, o pátio da escola foi esvaziando. Não

havia mais quase ninguém por lá. Apenas uns caras de uniforme azul que estavam desmontado a estrutura do palco, alguns professores, e a Gabi.

Ela estava lá no fundo, conversando com umas velhinhas muito engraçadas. Quando olhei aquele sorriso branco dela, cheio de inocência, me lembrei do discurso dela sobre Donatello antes da gente começar a cantar naquela tarde. E eu tenho que dizer que ela me surpreendeu. E eu gostei disso.

O nosso primeiro show. O primeiro abraço do meu pai. O que mais estava faltando?

Ah, claro. Uma coisa que eu já deveria ter feito há muito tempo, e mais uma vez, aquela pareceu a hora certa pra fazer o que eu TINHA que fazer.

Me aproximei da Gabi e das suas amiguinhas de idade, enchi o pulmão de ar, fiz algumas caretas sem perceber, e quando me dei conta ela já estava andando na minha direção.

Estava na hora. ●

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A Feira de Cultura sobre a qual eu nem queria pensar foi simplesmente o acontecimento da minha vida. Eu nem sei o que deu em mim mesma pra falar aquele monte de coisa e tal, mas, deu certo!

Meus pontos extras foram conquistados sem trabalhos de literatura Barroca vomitados. E sem nenhum esforço, porque cantar, pra mim, é o que eu mais me sinto bem fazendo. A mulherzinha dos eventos (QUAL É O NOME DELA AFINAL???) disse que a nossa apresentação surpresa foi o ápice da feira de Cultura, e definitivamente nós merecíamos méritos por isso.

E eu, obviamente, nem reclamei. O pai do PH se surpreendeu com o nosso desempenho. Total. Ele

veio falar comigo, e disse que eu tinha um futuro promissor nessa carreira. Sério.

Tá legal. Eu meio que adorei quando ele disse isso. Já que a gente tá cheio de planos pra banda. Eu já escrevi mais umas duas músicas, e estamos arrumando o arranjo delas, pra apresentações futuras, sabe como é. Eu to amando isso tudo. Tudinho.

E a coisa toda do Buca e da Sofia, então? Foi linda demais. Os dois meio que se completam, sabe como é? Ver eles lá, no final da Feira, abraçados fazendo planos pra noite, foi simplesmente inspirador.

Bem inspirador, por sinal. Enquanto uns caras com uniformes azuis desmontavam a

estrutura do palco, e eu conversava com umas senhoras de idade que elogiavam meu gosto pela arte de Donatello, eu pude ver o rosto sorridente (e bem bonitinho) do PH por trás delas, fazendo caretas,e revirando os olhos, pra que eu pudesse dar atenção a ele.

Definitivamente, era isso que eu queira. Mas aquelas velhinhas não paravam de falar!

Disse a elas que eu tinha uma coisa importante pra resolver, e caminhei até PH. Uma das senhoras cochichou um “Que gracinha” por trás dos meus ombros, mas nada disso mais importava.

Eu estava ali com o PH, e tinha de fazer aquele momento se tornar meio que... inesquecível. Se é que você me entende.

“Humm.. Oi!” Foi o máximo que eu consegui dizer. Um ‘Oi’ não é lá uma das coisas mais inesquecíveis que eu já vi, mas eu estava nervosa, e meu coração batia a mil por hora.

PH deu um sorriso e pegou na minha mão. O calor de sua mão eletrocutava meu corpo, e me fazia sentir uma coisa nova. Tipo, sei lá, totalmente inédita.

E isso era bom.

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“Bem,” PH começou a falar “Eu queria saber se, você está a fim de ir comigo ver uns filmes, sabe como é. Aqueles do Darth Vader, que você pareceu gostar”.

Olhei pra sua cara inocente, com um desdém irônico e disse “É. Pode ser. Desde que você esteja comigo, tudo vai ser ótimo. Mesmo que eu tenho que ouvir esse cara do capacete preto dizer ‘LUKE, EU SOU SEU PAI’ pela milionésima vez. Afinal das contas, acho que a gente vai arrumar alguma coisa mais legal pra fazer durante o filme”.

Ele me olhou com um sorriso malicioso e irônico. Nos dois começamos a rir, e pela segunda vez desde que o conheci, eu vi as pupilas do PH bem dilatadas enquanto ele me olhava nos olhos.

Só que dessa vez, eu não estava vomitando.

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