testando o livro

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Capítulo 2 Eu olhava todas aquelas pessoas sorridentes e bem arrumadas e me sentia cada vez mais entediada. Tinha sido contratada por uma empresa de segurança para falar um pouco sobre, bem, segurança. Sendo bem honesta, se tinha coisa que me tirava do sério era dar palestras. Eu não tinha nascido para aquilo e só aceitava porque Ricardo, meu chefe, dizia que era bom para mim e que eu precisava de uma rede de contatos que fosse além de Ian e Agatha. Troquei a taça de vidro aquilo não era cristal nem aqui e nem em qualquer outro lugar do mundo! de lado, segurando-a com a mão direita e respirei fundo. Não sei por que usavam taças, afinal. Ainda mais quando o conteúdo era água, como no meu caso. Ajeitei meu vestido preto. Quem foi que inventou o tomara-que-caia, hein? E quem foi o infeliz que disse que era mais chique do que alças? Revirei os olhos. Eu parecia uma velha resmungando. Mas o fato era que tudo ali estava acontecendo demais: o tempo demorava demais a passar, as pessoas sorriam demais, em tudo tinha frescura demais. “Só tem cadeiras de menos”, pensei ficando irritada e sentindo meus pés latejarem. O salto alto deve ter sido inventado pelo mesmo cara do tomara-que-caia. Ô gente mal amada. Um rapaz elegante passou por mim e me cumprimentou. Seus cabelos loiros caíam de forma bagunçada por sua testa, quase cobrindo seus olhos azuis. Tentei me lembrar de onde eu o conhecia. Talvez tenha sido algum bandido que eu tinha conseguido prender. Mas se fosse, ou ele ainda estaria na cadeia, ou estaria tentando me matar. Eu ainda não achava muito eficiente o sistema de reinserção social do governo e duvidava que um dos bandidos fosse vir me agradecer por tê-los colocado na linha novamente. Vai ver ele realmente estivesse tentando me matar. Aquele sorriso foi suspeito. Olhei rapidamente para os lados. Ele havia sumido. Olhei para cima. Nunca se sabe quando um ataque virá dos céus.

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Testando o livro

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Capítulo 2

Eu olhava todas aquelas pessoas sorridentes e bem arrumadas e me sentia cada vez

mais entediada. Tinha sido contratada por uma empresa de segurança para falar um

pouco sobre, bem, segurança. Sendo bem honesta, se tinha coisa que me tirava do

sério era dar palestras. Eu não tinha nascido para aquilo e só aceitava porque Ricardo,

meu chefe, dizia que era bom para mim e que eu precisava de uma rede de contatos

que fosse além de Ian e Agatha. Troquei a taça de vidro – aquilo não era cristal nem

aqui e nem em qualquer outro lugar do mundo! – de lado, segurando-a com a mão

direita e respirei fundo. Não sei por que usavam taças, afinal. Ainda mais quando o

conteúdo era água, como no meu caso. Ajeitei meu vestido preto. Quem foi que

inventou o tomara-que-caia, hein? E quem foi o infeliz que disse que era mais chique

do que alças? Revirei os olhos. Eu parecia uma velha resmungando. Mas o fato era que

tudo ali estava acontecendo demais: o tempo demorava demais a passar, as pessoas

sorriam demais, em tudo tinha frescura demais. “Só tem cadeiras de menos”, pensei

ficando irritada e sentindo meus pés latejarem. O salto alto deve ter sido inventado

pelo mesmo cara do tomara-que-caia. Ô gente mal amada.

Um rapaz elegante passou por mim e me cumprimentou. Seus cabelos loiros caíam de

forma bagunçada por sua testa, quase cobrindo seus olhos azuis. Tentei me lembrar de

onde eu o conhecia. Talvez tenha sido algum bandido que eu tinha conseguido

prender. Mas se fosse, ou ele ainda estaria na cadeia, ou estaria tentando me matar. Eu

ainda não achava muito eficiente o sistema de reinserção social do governo e duvidava

que um dos bandidos fosse vir me agradecer por tê-los colocado na linha novamente.

Vai ver ele realmente estivesse tentando me matar. Aquele sorriso foi suspeito. Olhei

rapidamente para os lados. Ele havia sumido. Olhei para cima. Nunca se sabe quando

um ataque virá dos céus.

- Gente, a comida disso aqui é horrorosa – disse Agatha surgindo do meu lado e me

fazendo pular de susto. – O que foi? Viu algum passarinho?

- De onde você surgiu? – perguntei tentando controlar minha respiração.

- Do banheiro, oras. Eu te avisei que estava indo fazer xixi. Provavelmente você não

estava prestando atenção, como sempre.

Encolhi os ombros. Eu prestava atenção em tudo, menos em minha melhor amiga

falando incansavelmente do meu companheiro de trabalho e braço direito. Agatha e eu

nos conhecíamos desde crianças. Ela estava lá quando tudo aconteceu e minha vida

mudou. Ela também estava lá quando entrei para a faculdade de Direito, quando me

formei, quando passei no Concurso Público e me tornei investigadora. Aliás, essa era a

forma mais ridícula de seleção que eu já tinha visto na vida. Até no Mc Donald’s tem

treinamento intensivo para quem quiser abrir uma lanchonete própria. Como

investigador, é uma prova. Um absurdo.

- Você devia voltar à realidade – Agatha me tirou de meu transe mais uma vez. – Tem

um loiro divino te olhando. Ele nem pisca.

Segui seu olhar e o encontrei. O cara que estava tentando me matar. Ele levantou sua

taça como se fizesse um brinde. Não retribuí.

- Ana Maria!

- Não estou com cabeça para descobrir sobre ele em cinco segundos, Agatha –

respondi automaticamente. – Na verdade, tudo o que eu mais quero é dar o fora daqui.

- Descobrir o que sobre ele? – ela perguntou confusa – E em pouco tempo assim, só o

Justin Bieber, amiga. Trinta segundos, lembra?

Agatha era jornalista e trabalhava numa revista de fofocas. Vivia ligada em tudo o que

acontecia no mundo dos famosos e sempre fazia piadas com as notícias que lia, o que,

considerando que eu não lia esse tipo de matéria, eu nunca entendia sobre o que ela

estava falando. Nisso ela era parecida com o Ian. Achava graça onde não tinha.

- Você sabe se ele é um assassino que eu mandei para a cadeia? Sabe se ele está

tentando me levar para a cama, me violentar e me matar enforcada com o lençol?

Bebi um gole de minha água enquanto minha amiga me olhava assustada.

- Você precisa de férias. Está começando a delirar. Desse jeito vai acabar morrendo

sozinha. Até eu vou acabar casando antes de você!

- Mas isso é óbvio – respondi. – Você é louca para botar um vestido branco e subir ao

altar. Eu não. Estou muito bem, obrigada.

Ela revirou os olhos.

- Até eu estaria se tivesse um amigo colorido como o seu.

Minha resposta seria muito mal educada e já estava na ponta da língua, mas fui

interrompida por meu celular. Peguei-o dentro da pequena bolsa que carregava e vi o

envelope piscando no visor. Mensagem de Ian.

“Tem uma pessoa aqui que eu sei que você adoraria ver. Estamos precisando do seu

super cérebro e sua falta de paciência para lidar com ela. Venha logo”.

- Temos que ir – falei colocando o celular de volta na bolsa e minha taça na bandeja do

primeiro garçom que vi. – Estão me esperando.

- Como assim? Você prometeu que ficaríamos até liberarem a mesa de doces, Ana!

Poxa vida, eu te acompanho sempre e nunca como um bombom sequer!

Encarei-a como uma mãe que tenta passar um recado telepático para uma criança

mimada. Ela emburrou e não deu sinal de que sairia do lugar. Suspirei e fui até a mesa

de doces. Conversei rapidamente com a garçonete, que me cedeu duas trufas de forma

gentil. Voltei pisando firme e entreguei-as a uma Agatha feliz.

- Nunca mais te trago comigo – jurei e saí em direção ao meu Mini Cooper, que estava

parado no estacionamento da casa de eventos.

- Desculpe a demora – falei enquanto entrava apressada na delegacia. Ian me ajudou a

tirar o casaco. As noites estavam sendo bem frias na cidade de São Paulo. – O que

houve?

- Bom, dois dias se passaram desde o último assassinato. O ator veio atrás de respostas

– ele respondeu e eu parei bruscamente na porta da minha sala. Olhei-o espantada.

- Ele veio aqui?

Ouvi vozes alteradas vindo da sala de Ricardo e olhei para Ian. Ele suspirou e jogou

meu casaco em cima de minha mesa, me conduzindo para a porta ao lado.

- Isso é um absurdo – o advogado de Bernardo praticamente gritava. – Vocês não estão

levando essas investigações a sério. É impossível que não tenham nenhuma

informação.

Se tinha algo que eu não suportava era duvidarem da minha capacidade. Menos ainda

colocarem na mesma situação a dedicação dos meus colegas de trabalho.

- Se o senhor acha que é tão simples assim, então procure sozinho pelas respostas –

falei atraindo todas as atenções para mim. Ele me olhou desconfiado.

- Você é quem mesmo?

- Ana Maria Paviani, investigadora responsável pelo caso do seu cliente. Mas me darei

muito por satisfeita em encerrar essas investigações se o senhor continuar ofendendo

as pessoas que trabalham aqui.

- Ana, não se preocupe – disse Ricardo. – Está tudo sob controle.

Encarei meu chefe. Rick era uma das pessoas mais doces e focadas que eu já havia

conhecido. Me pedir para não partir para cima do primeiro desgraçado que falasse mal

dele era como pedir a um bebê para não chorar.

- Não tem nada sob controle – o advogado continuou. – Se tivesse, meu cliente não

estaria aqui, sentado numa delegacia, esperando respostas sobre suas namoradas

assassinadas.

Ah é, o indivíduo estava ali. Eu não gostava dele e nem de sua cara arrogante, de seu

nariz empinado e da forma como ele tratava as pessoas. Tudo bem que era o ator mais

famoso da nossa geração, a paixão platônica de praticamente todas as adolescentes

brasileiras, mas isso não lhe dava o direito de agir como se fosse superior. Grande

merda suas duas indicações ao Oscar. Por outro lado eu sentia pena de Bernardo e

queria ajuda-lo a entender o motivo que levara as garotas à morte. Ele me encarou e

me olhou de cima a baixo com indiferença. Pronto. Toda minha pena havia sumido e a

vontade de manda-lo ao inferno tinha ressurgido em meu peito. Eu nunca tinha

conversado com o ator e nem queria. Pedi a Ricardo e Ian que fizessem o

interrogatório, já que, nas poucas vezes que cogitei em me aproximar, como agora, ele

me lançava aquele olhar de superioridade e eu não pensava em mais nada além de voar

em seu pescoço e socar seu nariz perfeito. Respirei fundo e saí da sala de meu chefe

antes que ele fosse obrigado a me prender por agressão.

Me joguei em minha cadeira e mordi o lábio inferior. Mais uma menina. Ou menos

uma tanto faz. O mais intrigante é que as três tinham se envolvido romanticamente

com Bernardo, apesar de eu jurar que ele não tinha um coração debaixo daquele peito

sarado. Eu devia começar mandando-o para a terapia. Talvez Ian tivesse razão e ele

fosse o assassino. Quando se cansava das garotas, dava um fim nelas, como na história

das Mil e Uma Noites. Apoiei o queixo em minha mão esquerda enquanto desenhava

algo indecifrável em meu bloco de anotações. Ian entrou em minha sala com duas

canecas de chocolate quente em suas mãos. Forcei um sorriso.

- Quando você fica com essa cara, é porque está pensando em alguma coisa absurda.

Arqueei as sobrancelhas.

- Blasfêmia! – respondi e ele riu. – Só estava cogitando a possibilidade de mandar o

Bernardo se consultar com o terapeuta da corporação. Vai ver ele que está matando as

meninas e eu estou aqui, quebrando a cabeça, com o assassino bem debaixo do meu

nariz.

O policial revirou os olhos.

- Bem capaz mesmo. O cara nunca abriu a boca para falar sobre o assunto.

- Como foi o interrogatório dele? – perguntei pegando meu caderno e olhando minhas

anotações. Datas, horários. Dados importantes sobre cada uma das meninas.

- Ele foi interrogado?

Engasguei com o chocolate quente e quase joguei a caneca na mesa. Senti o líquido

queimar minha língua e meus olhos lacrimejaram.

- Ninguém nunca interrogou o Bernardo Monteiro?

- O advogado dele nunca nos permitiu ficar...

- Mas que merda, Ian! – gritei ficando de pé. – Desde quando nós damos atenção a

advogado metido a besta? Eu jurava que você ou o Rick tinham interrogado o cara e

que ele não tivesse dito nada além do que já sabíamos!

- Não. As informações sempre foram passadas pelo advogado dele. Não conseguimos

ficar a sós com o ator.

Fechei meu caderno com força e peguei uma caneta. Saí pisando tão firme que podia

sentir meus saltos afundarem no chão frio da delegacia. Abri a porta da sala de

Ricardo com um estrondo e ele me olhou surpreso. Meus olhos se voltaram para o

rapaz de 23 anos, que permanecia sentado na mesma posição.

- Você – falei apontando para ele – me acompanhe. Precisamos conversar.

- Meu cliente não tem nada a dizer.

- Não te perguntei – respondi grosseira e olhei novamente para Ricardo. – É o

procedimento padrão. Ele tem que ser interrogado.

O advogado riu debochado.

- Ele não sairá daqui.

Trinquei os dentes.

- Sua função é advogar, não investigar. Ele vai vir comigo e vai ser interrogado, como

manda o protocolo. Bernardo pode ter informações que faltam para juntarmos as peças

do quebra cabeças e você está atrapalhando tudo!

- Digo e repito: meu cliente não sairá desta sala.

Eu não tinha nada contra esses profissionais. De verdade. Alguns eram bastante

solícitos e ajudavam muito. Mas topar com sujeitos como este era pedir para que eu

perdesse a compostura. Me aproximei e olhei para cima. Ele era bem mais alto do que

eu, assim como a maioria, já que eu não passava de 1.68m.

- Então me processe por isso.

Antes que ele pudesse pensar, me afastei. Peguei Bernardo pelo braço e o tirei da sala,

batendo a porta em seguida. Ouvi Ricardo gritar meu nome, mas o ignorei. Ele que me

desse uma advertência depois. Eu pouco me importava. Apesar dos protestos do ator,

joguei-o dentro da sala de interrogatórios e tranquei a porta.

- Você é maluca? – ele disse acariciando o braço.

- Não – respondi jogando o caderno sobre a mesa. – Malucos são eles por não terem

feito isso antes.

Puxei uma cadeira para Bernardo e me sentei diante dele, que continuava de pé, ainda

me olhando torto.

- Podemos ficar aqui a noite inteira se você quiser. Não me incomodo de esperar suas

pernas se cansarem até você se sentar.

- O que te faz pensar que eu vou responder a qualquer uma das suas perguntas?

Respirei mais fundo que meus pulmões me permitiam.

- O fato de você querer respostas tanto quanto eu. Ouça Bernardo, eu não gosto de

você. Não me agrada em nada ficar trancada aqui com um cara que se acha o máximo.

Mas é o meu trabalho e eu preciso que você colabore. Caso contrário, não tenho como

te ajudar. Entende?

Ele passou as mãos pelo rosto e sentou-se. Finalmente, tive vontade de dizer, mas a

situação em si já era complicada demais. Preferi me calar.

- Você não precisa gostar de mim – disse de forma seca. – Só me traga essas respostas

antes que eu enlouqueça.

Concordei com um aceno de cabeça e comecei meu interrogatório. Conversamos por

quase duas horas, sendo diversas vezes interrompidos por batidas na porta. Eu apenas

disse a ele que ignorasse. Fiquei aliviada ao perceber que Bernardo estava realmente

disposto a colaborar. Pediu-me a chave da porta e a abriu.

- Pois não? – perguntou a seu próprio advogado.

- Oh, finalmente ela deixou você sair. Vamos embora daqui.

- Eu estou no meio de um interrogatório. Só saio daqui quando responder a todas as

perguntas que ela tenha a fazer. E por favor, não nos interrompa mais.

O ator bateu a porta na cara de um homem em choque. Confesso que também me

espantei, mas o agradeci pela gentileza de pedir um pouco de sossego.

Não demorou muito mais e eu já estava satisfeita com as respostas de Bernardo

Monteiro. Revisei minhas anotações, confirmei alguns dados e o encarei.

- Eu sinto muito por tudo que tem acontecido – falei de forma sincera. Ele apenas

encolheu os ombros. – Se importa se eu te der dois conselhos?

- Diga.

- Tente não se envolver com nenhuma outra garota até terminarmos essas

investigações. Melhor pouparmos outra vida e não termos mais uma na lista do

cemitério.

Ele riu irônico.

- Não acho que eu esteja com cabeça para arranjar uma namorada a essa altura do

campeonato. E qual era o outro conselho?

- Troque de advogado – respondi de forma simples. – Esse não está muito disposto a

colaborar e não vai te ajudar em nada.

- Tem coisas que não sou eu quem decide. É o meu escritório.

Ah sim. Os assessores e tudo mais.

- Então troque de escritório e escolha um que tenha advogados melhores.

Passei por Bernardo e saí da sala. Queria sentar o mais depressa possível com toda a

papelada que eu tinha em minha sala e incluir as informações que eu tinha acabado de

colher.

- Eu vou processar a senhorita – ouvi a voz do advogado de Bernardo vindo de algum

lugar e me virei.

- Com base no quê? Que eu saiba seu cliente não tem intenção de me denunciar por

agressão. Fui até gentil com ele, apesar dos olhares indiferentes e do ar de

superioridade que ele joga na cara das pessoas.

- A senhorita está passando por cima do meu trabalho – ele começou a subir o tom e

aquilo me incomodou

Entreguei meu caderno a Ian, que tinha aparecido ao meu lado vindo sei lá de onde, e

coloquei as mãos na cintura.

- Digamos que o único trabalho que está sendo prejudicado aqui é o meu. E, por acaso,

o homem que devia ter mais interesse nas respostas é o que está dificultando as

perguntas.

- A senhorita é muito insolente.

Senti Ian congelar e quase pude ouvir o maxilar de Rick trincar. Bernardo estava atrás

do advogado, achando aquilo tudo extremamente entediante.

- E o senhor é muito abusado! Dê o fora da minha delegacia antes que eu perca a

paciência.

Eu esperava que ele fizesse o que eu tinha acabado de ordenar. Eu odiava essa coisa de

usar meu poder e tudo mais, então evitava o máximo qualquer medida drástica, dando

todas as chances possíveis para as pessoas, mesmo sem que elas mereçam. E ele

mereceu.

- Não consigo imaginar o que uma senhorita de meio metro de altura possa fazer –

disse ele antes de rir.

Me virei e o encarei.

- O senhor está preso – respondi tirando o caderno das mãos do policial. – Pode leva-

lo, Ian.

- O quê? Está maluca?

- Não. Está preso por desacato à autoridade. Caso não se recorde, eu, como

investigadora, tenho muito mais poder do que um advogadozinho qualquer.

O policial, com a ajuda de Ricardo, o levou para a cela da delegacia. Eu não pretendia

mantê-lo ali por muito tempo. Só até o dia seguinte. Bernardo respirou fundo.

- Está de carro? – perguntei ao notar que ele ainda estava ali.

- Precisava prender o cara?

- Não me responda com outra pergunta. Está de carro?

- Não – disse ele irritado. – Vou chamar um táxi.

Neguei com a cabeça. Ele era testemunha de um assassinato e queria andar no carro de

um estranho. Só tem gente louca nesse mundo!

- Vou te levar para casa.

E, ignorando seus resmungos em protesto, me virei para buscar meu casaco e a chave

do carro.

- Negativo, mocinha – ouvi meu chefe dizer e parei. – O Ian pode fazer isso. A

senhorita vai ficar e vamos conversar sobre os acontecimentos dessa noite.

Droga. Eu ainda tinha esperanças de conseguir mais algumas informações no trajeto da

delegacia até a casa do ator. Sem encarar Bernardo, passei por Ian e acompanhei Rick

até sua sala, me jogando na cadeira e ouvindo-o fechar a porta.

- Pensei que você não fosse mandar aquele cara para a cela – disse Ricardo sentando-

se à minha frente. – Sujeito chato!

- Ué, não é você o defensor dos pobres e oprimidos? Achei que fosse ficar bravo

comigo.

- Ele não é oprimido e muito menos pobre. Só achei desnecessária a forma como você

tirou o ator da minha sala – ele colocou seus óculos sobre a mesa e me encarou. – O

que conversamos sobre ser gentil com as testemunhas? Principalmente as que estão em

estado de choque?

Revirei os olhos.

- Não vamos entrar no assunto da falta de interrogação, não é? Porque se formos, eu

gostaria de dizer que...

- Não vamos, Ana Maria. Não vamos.

- Ótimo!

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Observei Ricardo enquanto ele estava

perdido em seus próprios pensamentos. Ele era a melhor definição de “um amor de

pessoa”, apesar de sua profissão exigir totalmente o contrário. Um homem doce, com

um coração enorme e uma inteligência invejável. No auge dos seus 40 anos, até que

estava em boa forma. Seu corpo já não era mais tão definido, mas seus cabelos pretos,

abundantes e cacheados faziam com que ele se parecesse um anjo moreno. Ele tinha

um sorriso amável, quase escondido debaixo de sua barba. Ricardo Gomes era casado

e tinha um filho adolescente, que morreu num acidente de carro. Sem conseguir se

recuperar do trauma, jogou-se de vez no trabalho, deixando de lado sua vida

matrimonial. A mulher o largou, mas ele já não se importava mais. Todo seu amor

paterno tinha sido direcionado a Ian e a mim, principalmente por ele ter sido amigo

dos meus pais antes deles serem assassinados. Peguei um chiclete que encontrei no

porta-canetas de meu chefe e o coloquei na boca. Só esperava que estivesse ali há

menos de um ano.

- Muito bem, o que você descobriu? – ele perguntou por fim e eu me ajeitei na cadeira.

- Ele não sabe muito mais do que a gente, Rick – respondi pesarosa. – Me disse apenas

que as meninas ficaram estranhas cerca de dois ou três dias antes de morrerem. Se

afastaram dele, evitavam atender as ligações.

- E ele não fez nada?

- Ele tentou. Na primeira ele não entendeu, na segunda ele ligou os pontos. Quando foi

alertar a terceira garota, chegou tarde demais. E foi assim que ele encontrou o corpo de

Elizabeth.

- Foi o que ele disse quando perguntei o que ele estava fazendo lá naquela hora.

Olhei pela janela. Era uma noite linda, de céu estrelado, apesar do frio. Eu só queria

que qualquer um daqueles pontinhos luminosos me desse uma ideia, mas nada de útil

passava na minha cabeça. Levantei e comecei a andar pela sala.

- Eu cheguei a pensar em mandar o Bernardo para conversar com o nosso psicólogo –

falei encostando meu rosto no vidro gelado e olhando o fraco movimento na rua. Meu

carro não estava lá, o que indicava que Ian já tinha saído com o ator. – Não só pela

situação que ele está passando, mas para ver se descobrimos alguma coisa a mais.

Nunca se sabe, vai que ele é o assassino.

- Se fosse, minha melhor investigadora já teria descoberto.

Encarei meu chefe e ele encolheu os ombros. Ricardo tinha razão. Eu conseguia pegar

uma mentira no ar como ninguém. E Bernardo me parecia bem honesto quando

respondeu minhas perguntas.

- Ele comentou que todas as meninas tinham perfis em redes sociais. Ele tem, mas não

controla. Fica por conta de seus assessores. Acha que podemos dar uma olhada nos

computadores?

- Poderia ser um começo – o policial se levantou e serviu-se de um copo d’água. –

Mas nossa equipe de informática já olhou as máquinas e não encontrou nada.

Cruzei os braços.

- Quando eu disse “nós”, me referia ao Ian e a mim. Você sabe muito bem que nossa

galera da tecnologia não é muito ligada em redes sociais. Eu poderia cuidar dessa parte

e tentar descobrir algo. Aliás, Rick, já passou da hora de mandar esse povo para um

curso de férias, hein? Temos uma equipe obsoleta e inútil quando o assunto é esse

monte de ferramentas que surgem a cada dia.

- Não temos verba – ele respondeu e encolheu os ombros. O pior é que era verdade. –

Você pode olhar o computador da Elizabeth se quiser, mas acho meio difícil

conseguirmos algo no da Isabella, por exemplo. O assassinato dela foi há dois anos.

Certamente os pais já se desfizeram da máquina, que deve ter sido formatada.

Soltei um muxoxo de reprovação.

- Mas quem precisa do computador da falecida? – ouvi a voz de Ian e me virei para a

porta. Ele tinha acabado de chegar e foi correndo até a sala de Ricardo. – O Facebook

não depende de uma máquina, depende da internet!

Sorri com aquela resposta óbvia.

- Mude para o Orkut – falei de forma animada. – Naquela época não existia Facebook.

E nem Twitter.

- Tempos difíceis!

Eu e Ian rimos com nossos comentários idiotas.

- Ele disse mais alguma coisa? – perguntei ligando o computador em minha sala. Já se

passavam das duas da manhã, mas eu estava elétrica. Ian faria plantão naquela noite,

então o que eu poderia ter de diversão tinha ido pelo ralo.

- Perguntou se você é sempre grosseira desse jeito.

Arqueei as sobrancelhas.

- Que sujeitinho abusado! E o que você respondeu?

Ian sorriu convencido.

- Que eu estava acostumado e que já tinha domado a Ana Maria o suficiente para que

ela demonstrasse um pouco de compaixão por mim.

Joguei minha borracha em sua direção, mas Ian desviou. Ele era ainda mais folgado

que o ator. E eu não era grosseira. Só levava as coisas mais a sério do que o

necessário. Ou não. Só quem sabe a dor da perda e da falta de respostas é que entende

como essas pessoas se sentem. Conectei meu pen drive na máquina e abri o arquivo

intitulado “Bernardo Monteiro – Assassinatos”. Era ridículo você chegar ao ponto de

ter uma página eletrônica para anotar dados não resolvidos, eu sei. O mais frustrante

era não ter muito mais o que incluir. Só que o comportamento das meninas havia

mudado.

- Eu não consigo imaginar o que acontece com essas garotas – comentei atraindo

novamente a atenção de Ian. – Quero dizer, o cara é esnobe, tinha duas namoradas

enterradas e a tal da Elizabeth ainda se envolveu com ele. Não estava na cara que ele é

uma furada ou algo assim?

- Talvez pelo gosto da fama? – perguntou o policial.

Encolhi os ombros. Podia ser. Mas uma fama que leva a morte não devia ser atraente.

Salvei o arquivo, retirei o pen drive e o guardei de volta na bolsa. Peguei meu caderno

de anotações e escrevi exatamente a mesma coisa.

- Não acredito que você continua com esses bloquinhos tortos, Ana!

- Quer que eu deixe tudo anotado no computador, para um bandido qualquer invadir,

descobrir as pistas e dar o fora?

Ian riu.

- Você já salvou no pen drive!

Revirei os olhos.

- Posso perder – respondi. – Além do mais, essas coisas tecnológicas sempre dão

problema. E se eu preciso de uma informação rápida e o computador não reconhece o

aparelho? Pelo menos tenho no meu caderno. Ele nunca me deixa na mão.

- Você é maluca!

- E você é xereta. Vai limpar o corredor, vai. Tá sujo.

Ian bufou e eu ri. Ele odiava quando eu bancava a superior e dava-lhe ordens banais,

como limpar algo ou me servir um copo d’água. Claro que eu nunca falava sério. Mas

às vezes ele passava na porta da minha sala com a vassoura em mãos, dizendo que

tinha varrido a frente da delegacia. Pura mentira. Eu podia ver a porta de entrada da

minha janela e Ian jamais varrera uma folha sequer.

Alguns minutos se passaram. A notícia da morte de Elizabeth já estava em todos os

sites. Fotos de Ian e Ricardo estampavam os principais portais de notícias, além de

declarações dos mesmos e do advogado de Bernardo. Para minha imensa sorte, eu não

participava dessa coisa toda de entrevistas. Rick me deixava de fora desse

procedimento por segurança. Uma vez que os bandidos sabem quem você é, seu

trabalho fica prejudicado. Claro que alguns sabiam quem eu era, mas nada que tivesse

me colocado em situações extremas. Coisa que provavelmente aconteceria se eu

ficasse famosa. Porque os piores bandidos não são aqueles que a gente prende todos os

dias.

As pessoas tendem a pensar que mandar um ou outro cara para a cadeia é a parte mais

perigosa. Não mesmo. Os que fazem todos os policiais tremerem na base são aqueles

bandidos que não podem ser vistos. Os “chefões”. E se eles descobrem quem trabalha

para derrubar seus impérios, mandam acabar com essas mesmas pessoas sem pensar

duas vezes. Eu investigava esses caras. E eles nunca nem ouviram falar meu nome.

Ricardo dava as entrevistas, dizendo apenas que “um investigador da corporação

descobriu”. A maioria devia achar que eu era um cara qualquer. Nem sequer

imaginavam que eu era, de fato, uma mulher.

- O que você pretende fazer, Ana? – perguntou Ian. Sua voz estava mansa e calma. Eu

gostava disso.

- Honestamente? Eu adoraria te responder isso. Mas não tenho a menor ideia.

- Vamos encontrar algo nos perfis virtuais das meninas.

Encarei meu grande amigo. Seus olhos azuis me encaravam com um misto de ternura e

confiança.

- Eu espero que sim, Ian. Porque sem isso, não sei mais o que fazer.

Ele se levantou e veio até mim. Senti suas mãos grandes e fortes tocarem meus ombros

numa massagem deliciosa, me fazendo relaxar. Ele sabia como me acalmar e o melhor

momento para fazer isso.

- Vai para casa – disse em voz baixa. – Descansa. Você provavelmente teve uma noite

estressante dando palestras e tudo mais. E teve que ficar nesse vestido por horas, sem

contar o salto alto.

Ri e balancei a cabeça. O policial me conhecia tão bem a ponto de me imaginar

reclamando das roupas e de tudo mais que eu pudesse. Levantei-me e o abracei.

- Você que devia ter ido comigo! – falei manhosa, sentindo seus lábios encostarem em

minha testa. – Pelo menos sei que sairia numa boa sem doces.

Soltei-o e comecei a juntar minhas coisas.

- Agatha?

Revirei os olhos.

- Tive que pedir duas trufas para a mulher do buffet – resmunguei e ele riu.

Despedi-me com uma piscadela e deixei a delegacia, encarando a noite fria de São

Paulo e já sonhando com meu travesseiro mais do que fofo.