tessmaria rita spina bueno
TRANSCRIPT
-
UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Maria Rita Spina Bueno
Nveis de Seleo: uma avaliao a partir da teoria do
gene egosta
SO PAULO 2008
-
Maria Rita Spina Bueno
Nveis de Seleo: uma avaliao a partir da teoria do
gene egosta
Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia sob a orientao do Prof. Dr. Osvaldo Pessoa Jr.
So Paulo 2008
-
Dem-me um erro frutfero, cheio de sementes,
brotando com suas prprias correes. Podem
guardar a sua verdade estril para vocs mesmos.
Vilfredo Pareto
-
Agradecimentos
Ao Professor Dr. Osvaldo Frota Pessoa Jr., por sua orientao, incentivo e
generosidade intelectual. Sua coragem em abordar os temas filosficos de modo to
amplo tem sido uma fonte de inspirao para mim.
Aos Professores Drs. Pablo Rubn Mariconda e Diogo Meyer pela
participao na banca de qualificao de mestrado, com sugestes valiosas para o
desenvolvimento desta dissertao. Ao Professor Charbel Nio El-Hani pelo envio
de sugestes bibliogrficas importantes e pela participao na banca.
Ao Professor Dr. Paulo Otto pelo excelente curso de gentica de populaes.
Aos colegas e amigos dos departamentos de filosofia e biologia da USP.
Aos meus grandes amores, Luiz e Julia, que me apiam do princpio ao fim,
luzes na minha vida.
A toda minha famlia, por sua unio e amor.
-
RESUMO
BUENO, M. R. S. Nveis de Seleo: uma avaliao a partir da teoria do gene egosta. 2008. 111 f. Dissertao Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.
Esta dissertao de mestrado aborda a controvrsia em torno de qual o
nvel biolgico no qual a seleo natural atua, com nfase na proposta de Richard
Dawkins do gene egosta e nas questes que surgem em torno da mesma.
Examina-se um panorama de questes de filosofia da biologia abordadas a partir do
problema dos nveis nos quais a seleo natural atua. Esperamos que ao avaliar o
impacto da teoria do gene egosta na problemtica evolutiva, consigamos
compreender sua importncia. O objetivo deste trabalho filosfico, delineando as
questes e clarificando alguns termos do debate, sem se propor a tomar partido por
uma ou outra posio.
O primeiro captulo apresenta as origens histricas do debate, partindo do
ponto de vista original de Charles Darwin no qual o indivduo era a entidade
efetivamente selecionada. Em seguida, buscamos entender como novas questes
empricas, em especial a busca de explicaes biolgicas para o altrusmo,
conduziram a propostas de seleo de grupo. No segundo captulo delineamos
como o desenvolvimento da gentica possibilitou que um novo nvel de seleo
fosse proposto: o gene, e acompanhamos a exposio de Dawkins sobre o ponto de
vista do gene egosta, em especial a partir de seus dois livros mais relevantes
sobre o tema: O gene egosta e O fentipo estendido. O terceiro captulo examina
diversas aproximaes filosficas no contexto de resposta pergunta: o que uma
unidade de seleo?. Nosso estudo consistente com a tese de que as foras
seletivas atuam simultaneamente em diversos nveis.
PALAVRAS CHAVE: seleo natural, gene egosta, fentipo estendido, Richard
Dawkins, nveis de seleo, seleo de grupo.
-
ABSTRACT
BUENO, M. R. S. Levels of Selection: an evaluation from the theory of selfish gene. 2008. 111 f. Thesis (Master Degree ) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.
This Masters thesis studies the controversy over what is the biological level in
which natural selection takes place. Emphasis is given to Richard Dawkins proposal
of the selfish gene and to the issues that arise therefrom, which include many
questions in the philosophy of biology. We hope that by assessing the impact that
the theory of the selfish gene has had on the problems of evolution, one may
understand its importance. The aim of this study is philosophical, raising questions
and clarifying the terms of the debate, without taking side on one or another position.
The first chapter presents the historical origins of the debate, starting with the
original view of Charles Darwin that the individual is the entity that is effectively
selected. We then set out to understand how new empirical problems, specifically the
search for biological explanations for altruism, led to proposals of group selection. In
the second chapter, we depict how the development of genetics allowed that a new
level of selection be proposed: the gene. We analyze Dawkins exposition of the point
of view of the selfish gene, especially in the two most important books on the
subject: The selfish gene and The extended phenotype. The third chapter examines
several philosophical approaches to the question what is a unit of selection?. Our
study is consistent with the thesis that selective forces act simultaneously in different
levels.
KEYWORDS: natural selection, selfish gene, extended phenotype, Richard Dawkins,
levels of selection, group selection.
-
SUMRIO
CAPTULO 1 INTRODUO 1.1 O TEMA ............................................................................................................1 1.2 A TEORIA DE SELEO NATURAL ................................................................3 1.3 NVEIS DE SELEO .......................................................................................8 1.3.1 UM PEQUENO HISTRICO ..........................................................................8 1.3.2 DEFININDO: ALVO, UNIDADE E NVEL DE SELEO .............................13 1.3.3 UM EXEMPLO: O CASO DO CAMUNDONGO Mus musculus ....................15 1.3.4 SELEO INDIVIDUAL ...............................................................................17 1.3.5 SELEO DE GRUPO ................................................................................21 1.4 CONCLUSO .................................................................................................27 CAPTULO 2 EXEGESE DOS LIVROS O GENE EGOSTA E O FENTIPO ESTENDIDO 2.1 UMA INTRODUO AO PONTO DE VISTA GENE-CNTRICO ....................28 2.2 O COMPORTAMENTO ALTRUSTA ...............................................................33 2.3 SELECIONISMO OU DETERMINISMO? .........................................................36 2.4 ADAPTAO ..................................................................................................38 2.5 MANIPULAO ..............................................................................................43 2.6 REPLICADORES E VECULOS ......................................................................46 2.7 APTIDO .........................................................................................................52 2.8 O FENTIPO ESTENDIDO ............................................................................55 2.9 O RESGATE DO INDIVDUO ..........................................................................68 2.10 CONCLUSO CRTICAS TEORIA DO GENE EGOSTA .....................71 CAPTULO 3 INVESTIGAES FILOSFICAS SOBRE O DEBATE EM TORNO DOS NVEIS DE SELEO 3.1 A TAXONOMIA PROPOSTA POR ELIZABETH A. LLOYD ............................75 3.2 REALISMO VERSUS PLURALISMO ..............................................................80 3.2.1 CAUSALIDADE ............................................................................................82 3.2.2 CRTICAS AO REALISMO GENE-CNTRICO DE DAWKINS ....................88 CAPTULO 4 CONCLUSO .................................................................................96 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................101
-
CAPTULO 1 INTRODUO
1.1. O TEMA
O ponto em torno do qual articulamos esta dissertao a proposta de
anlise da teoria da evoluo por seleo natural expressa nos livros de Richard
Dawkins: O Gene Egosta e O Fentipo Estendido. Embora este trabalho no
pretenda ser uma anlise destes livros, toma-os como ponto de partida por
apresentarem um ponto de vista que explicita um conceito que consideramos
fundamental para a compreenso da teoria da seleo natural: a competio. Outro
aspecto que nos interessou nos livros, em especial em O Gene Egosta, sua
postura provocativa, chamar aos homens de mquinas de sobrevivncia de genes
(DAWKINS, 2001, p. 41) e ainda dizer que [...] a posio, , no fundo, ortodoxa,
embora expressada de forma no habitual (DAWKINS, 2001, p. 31) no algo
usual1, sendo, do nosso ponto de vista, bastante instigante. A forma como Dawkins
efetua sua proposta tambm aponta outra questo relevante em filosofia da biologia:
o uso da linguagem teleolgica em biologia.
Alm de ressaltar os pontos acima, almejamos entender a teoria do gene
egosta e o conceito de fentipo estendido, sempre que possvel em relao ao
desenvolvimento da biologia experimental. Dawkins desenvolve sua teoria dentro do
debate relativo aos nveis de seleo, que busca definir qual o nvel biolgico no
qual a seleo natural atua. Portanto, entendemos ser necessrio pontuar os
deslocamentos pelos quais esse debate passa durante os sculos XX e incio do
1 Diogo Meyer ressaltou, durante o processo de qualificao desta dissertao, outro aspecto revelador da postura de Dawkins: sua escolha em publicar seus principais livros fora do sistema de reviso de pares, como obras de divulgao cientfica, que, ainda assim, tiverem um impacto cientfico significativo.
-
2
XXI. Visto que os organismos esto arranjados em uma estrutura hierrquica em
que se podem perceber entidades de vrios nveis (genes, clulas, indivduos,
grupos e espcies), a questo entender qual a entidade que sobrevive, ou no
sobrevive, como conseqncia do processo de seleo natural. As caractersticas e
comportamentos apresentados pelos organismos so a evidncia emprica da
evoluo, portanto, a compreenso do processo evolutivo pelo qual estas se
estabeleceram de extrema relevncia. As mesmas normalmente so observadas
em um determinado nvel de organizao biolgica, contudo, isto no significa que,
necessariamente, as mesmas tenham surgido a partir da seleo de entidades deste
mesmo nvel. Um comportamento como o altrusmo, que s observado quando o
objeto de estudo so grupos de indivduos, pode no ser o resultado de seleo de
grupos, sendo decorrente de seleo de genes. Portanto, a questo central em torno
da qual este debate ocorre explicar como surgem as caractersticas e
comportamentos que os seres vivos apresentam a partir da seleo de entidades em
diferentes nveis biolgicos de organizao.
Nossos objetivos neste trabalho so: ressaltar a importncia do conflito como
um ponto em comum entre a base da teoria darwiniana e o debate sobre nveis de
seleo e apresentar algumas das contribuies da filosofia da biologia para este
debate. Daniel Dennett, um filsofo da cincia, afirma que: No existe cincia livre
de filosofia; existe apenas cincia cuja bagagem filosfica embarcada sem passar
pela vistoria (1998, p. 21). Clarificar os conceitos e explicitar os pressupostos
cientficos efetivamente fundamental para uma cincia cujas teorias no se
baseiam em leis2, mas em conceitos e mecanismos, como o de seleo natural em
2 Seguimos aqui a posio de Dennett e Mayr. Vale ressaltar que no existe um consenso amplo sobre se a biologia uma cincia baseada em leis. Embora isto seja afirmado por diversos pesquisadores, contestado por vrios outros. Indicamos MAYR (1998, cap.2) como uma boa introduo ao tema.
-
3
biologia evolutiva, ou o de recursos e competio em ecologia.
Embora nossa perspectiva seja da filosofia da biologia, entendemos que
interessante explicitar brevemente os fundamentos biolgicos da teoria da seleo
natural, visto que esta dissertao ocorre no mbito da Filosofia, atingindo
prioritariamente no-bilogos. Em seguida a um sucinto histrico de duas posies
prvias proposta gene-cntrica de Dawkins, a de seleo individual e a de seleo
de grupo, tal como formulada em seu incio, apresentaremos a posio de Dawkins.
Para finalizar, analisaremos algumas das crticas mais comuns tese de Dawkins e
indicaremos possveis anlises filosficas que podem ser desenvolvidas a partir
desta temtica.
1.2. A TEORIA DE SELEO NATURAL
A validade da evoluo por seleo natural um assunto que tem provocado
persistentes e apaixonadas controvrsias, reaes que vo do apoio fervoroso at a
total rejeio. Publicada em 1859, a famosa obra de Charles Darwin, A origem das
espcies, marcou o incio de uma revoluo nas cincias e de uma profunda reviso
nas concepes filosficas e religiosas. Para entendermos porque o darwinismo
mais do que apenas uma referncia em biologia, precisaramos tanto compreender a
estrutura de pensamento pr-darwiniano bem como alguns fundamentos de sua
teoria. Por no ser este o foco dessa dissertao, faremos apenas uma
apresentao bastante sinttica da teoria da evoluo por seleo natural.
No sculo XIX, a nascente biologia j acumulava muitos fatos interessantes
sobre os seres vivos, em especial sobre a adaptao dos organismos e sobre a
diversidade existente da natureza. Os taxonomistas organizavam essa variedade de
-
4
maneira que a cada tipo de organismo se combinaria uma essncia, que seria
definitiva, e, portanto, eterna e imutvel. Segundo Ernst Mayr (1998, p. 290): O
essencialismo sustenta que a diversidade da natureza, tanto inanimada como
orgnica, o reflexo de um nmero de universais imutveis. Essa postura
essencialista e tipolgica era uma das caractersticas do pensamento pr-
darwiniano, e, em biologia, conduz ao problema de que nenhuma das
categorizaes propostas conseguia abarcar toda heterogeneidade j conhecida.
Ainda acompanhando Mayr (1984), o darwinismo representou o incio de um
contraponto ao pensamento tipolgico, pois sua base o pensamento populacional.
Se no primeiro a variao entendida como a manifestao imperfeita das
essncias (ou tipos), no segundo se acentua a unicidade de cada coisa do mundo
orgnico, fator que fundamental para o entendimento dos fenmenos da seleo
natural.
Darwin teve a oportunidade de conhecer e estudar uma enorme diversidade
de fauna e flora durante a viagem bordo do Beagle. Durante cinco anos, entre
1831 e 1836, percorreu toda a costa sul-americana, parou nas ilhas Galpagos,
passou pela Austrlia e depois pelo Sul da frica. Aps seu retorno escreveu alguns
livros sobre a viagem e comeou a desenvolver uma teoria que explicasse suas
observaes, teoria esta que foi expressa em sua obra maior: A origem das
espcies. Nesta, Darwin pretendia duas coisas: provar que as espcies evoluem e
mostrar como este processo ocorre. A noo de evoluo vinha sendo discutida
havia vrios anos, mas a compreenso do mecanismo de descendncia com
modificao e da seleo natural que possibilita a Darwin aprofundar sua pesquisa
e responder aos indcios que j apontavam para a evoluo das espcies.
A idia fundamental de Darwin que o processo resultante das condies de
-
5
sobrevivncia em tempos de escassez de recursos leva necessariamente a
indivduos melhor equipados para enfrentar os mesmos problemas. Em seus
prprios termos:
Considerando-se que, durante o longo percurso dos tempos e sob variveis condies de vida, os seres vivos modificaram tanto diversas partes de seu organismo - e acho que isso incontestvel; considerando-se que, devido alta tendncia de crescimento geomtrico do nmero das espcies, ocorre uma renhida luta pela sobrevivncia, especialmente em determinada idade, ou determinada estao, ou determinados anos - e isso tambm certamente no tem contestao; conseqentemente, dada a infinita complexidade das inter-relaes dos seres vivos entre si e de cada um deles com suas condies de existncia, acarretando uma diversidade infinita quanto a seus hbitos, estruturas e constituies internas, diversidade essa que lhes proveitosa, penso que seria mesmo extraordinrio se jamais houvesse ocorrido alguma variao til exclusivamente para o bem-estar do ser, da mesma forma que ocorreram tantas variaes teis aos propsitos do homem. Mas se de fato ocorreram variaes teis a qualquer ser vivo, seguramente os indivduos dotados delas tero maior probabilidade de ser preservados na luta pela existncia; e em virtude do forte princpio de hereditariedade, eles tendero a produzir descendentes dotados das mesmas caractersticas. Foi esse este princpio de preservao que, para ser conciso, dei o nome de Seleo Natural (DARWIN, 2002, p.126-127)
interessante notar como Mayr (1998, cap. 11) apresenta a teoria de Darwin
a partir de apenas trs inferncias baseadas em cinco fatos:
Fato 1 todas as espcies possuem grande potencial de fertilidade, sendo que, se
todos os indivduos nascidos se reproduzissem, o tamanho das populaes
cresceria exponencialmente,
Fato 2 o tamanho das populaes normalmente estvel,
Fato 3 os recursos disposio dessas populaes so limitados e relativamente
constantes,
Inferncia 1 Visto que produzido um maior nmero de indivduos do que os
recursos disponveis podem suportar e que o tamanho das populaes permanece
estvel, deve haver uma luta pela sobrevivncia, com apenas uma pequena parte da
prole sobrevivendo,
Fato 4 existe uma grande variabilidade nas populaes, no existindo indivduos
que sejam idnticos,
Fato 5 grande parte da variao entre os indivduos herdvel,
Inferncia 2 a sobrevivncia no ocorre apenas ao acaso, mas depende em parte
da constituio hereditria dos indivduos que sobrevivem.
Inferncia 3 No curso das geraes, esse processo de seleo natural conduzir a
-
6
uma mudana gradual e continua das populaes com a evoluo e produo de
novas espcies.
Darwin no pretende oferecer uma explicao para a origem da vida ou
mesmo da primeira espcie; ele inicia seu trabalho considerando a presena de
muitas espcies como um dado. Entende que o princpio de seleo natural a
viso unificadora para a gerao de adaptao e de diversidade, ambos sendo
aspectos diferentes de um nico fenmeno complexo. O que Darwin est propondo
um rompimento completo com o essencialismo. Ele sugere que um processo
materialista e temporal, um conjunto de passos sucessivos e sem propsito, pode, e
efetivamente produz, organismos que exibem algo que parece ser mais que apenas
regularidade, algo que parece um projeto intencional3. Lewontin (1984) afirma que
esta a principal mudana que o darwinismo introduz na biologia. Em suas
palavras:
[...] a natureza essencial da revoluo darwiniana no nem a introduo do evolucionismo como uma viso de mundo (j que historicamente este no o caso), nem a nfase na seleo natural como a principal fora na evoluo (visto que empiricamente este pode no ser o caso), mas sim a substituio de uma viso metafsica da variao entre os organismos por uma viso materialista (1984, p. 4).
Aps a morte de Darwin, em 1882, vrias correntes se formaram na biologia,
com o darwinismo experimentando um certo ocaso. A redescoberta das leis de
Mendel, em 1900, polarizou as discusses em dois campos: os mendelianos contra
os naturalistas. Os ltimos se interessavam pela diversidade enquanto os
geneticistas mendelianos buscavam explicar a transformao a partir do foco nos
genes e suas caractersticas associadas. Segundo Ernst Mayr (1998), apenas a
partir de uma nova gerao de geneticistas, entre 1936 e 1947, foi possvel uma
sntese entre estas duas tradies de pesquisa, possibilitando o estabelecimento de
3 Seguimos aqui a concepo apresentada por Dennett (1998), que a desenvolve a partir de dois pontos: a concepo da atuao da seleo natural como equivalente a um algoritmo (cap. 2.5) e o princpio de acumulao de projeto [design] (cap. 3). Embora muito interessante, a discusso destes conceitos ultrapassa o escopo desta dissertao.
-
7
uma base comum biologia, afirmando o gradualismo da evoluo e robustecendo o
pensamento populacional.
Em resumo4, a proposta de evoluo por seleo natural da sntese neo-
darwiniana pode ser entendida a partir dos seguintes atributos apresentados pelos
organismos: herdabilidade das caractersticas dentro de uma histria populacional,
variao individual nas caractersticas, tendncia dos organismos em aumentar seu
nmero exponencialmente com a conseqente competio por recursos limitados
em um ambiente em constante mudana. Dadas estas condies, segue-se uma
alta probabilidade de que alguma variao em uma caracterstica torne seu
possuidor mais bem adaptado e que este tenha uma maior chance de sobrevivncia
e assim tenda a deixar um nmero proporcionalmente maior de descendentes com a
mesma variao nas geraes seguintes. Em resumo, qualquer entidade que
apresente variao, reproduo e herdabilidade pode evoluir. Esse o modelo
causal que explicaria a fixao de certas caractersticas vantajosas nas populaes.
A nova sntese resolveu uma srie de problemas em biologia, possibilitando
um novo significado para conceitos como evoluo e espcie, e criando novas
possibilidades para entendermos como os fenmenos evolutivos efetivamente
operam nos casos individuais.
4 Seguindo a exposio de James Lennox (1992).
-
8
1.3. NVEIS DE SELEO
1.3.1. UM PEQUENO HISTRICO
O tema Nveis de Seleo tem sido objeto de estudo em biologia evolutiva
praticamente desde que Darwin publicou sua teoria da evoluo por seleo natural.
A posterior composio entre a teoria original darwiniana com a nova compreenso
dos fenmenos da hereditariedade, aliada progressiva sofisticao das anlises
em etologia (disciplina que estuda o comportamento individual e social dos animais)
e ao novo tratamento das questes biolgicas, levou a um aumento significativo no
grau de relevncia do tpico nveis de seleo em filosofia da biologia. Um nmero
expressivo de pesquisadores, tanto bilogos quanto filsofos, tem se dedicado ao
mesmo, produzindo uma bibliografia bastante abrangente.
A questo bsica que se coloca neste debate relativa ao nvel biolgico no
qual a seleo natural opera, e neste sentido que podemos entender os motivos
que levaram importantes bilogos a considerarem-no relevante para a soluo de
questes empricas e metodolgicas no contexto da Biologia Evolutiva. Por tratar
diretamente com a base causal da teoria de evoluo e com seus conceitos
fundamentais, as anlises efetuadas levaram ao desenvolvimento de um
instrumental conceitual bastante amplo, no s em relao a conceitos biolgicos,
como aptido e adaptao, mas tambm em relao a questes tipicamente
filosficas, tais como causalidade, realismo e reducionismo.
Como vimos at agora, para o darwinismo a competio constitutiva do
mundo vivo, ocorrendo prioritariamente entre organismos. A evoluo operaria
-
9
favorecendo, ou desfavorecendo, estes e no entidades de nvel superior, tais como
grupos, espcies ou ecossistemas. Naturalmente, por desconhecer os mecanismos
de hereditariedade, Darwin nem cogitava a possibilidade de seleo em nveis mais
baixos. Portanto, inicialmente o indivduo era considerado como o nico objeto de
seleo. Com o desenvolvimento da biologia, em especial da gentica e da etologia,
este foco no indivduo passou a ser questionado, com a suposio da existncia de
seleo tanto em nveis superiores como inferiores.
Historicamente, foi a impossibilidade de explicar alguns comportamentos
observados em animais apenas pela seleo individual que levou aos primeiros
questionamentos sobre se o indivduo era o nico nvel de seleo possvel.
Segundo Elliott Sober e David Sloan Wilson (1994), a necessidade de se definir a
unidade de seleo entre o organismo e o grupo surge quando se procura explicar o
altrusmo. Entendemos que o conceito de luta pela sobrevivncia traz consigo a
percepo de que o comportamento egosta seria sempre o esperado. O fato de o
comportamento altrusta5, entendido como aquele cujo efeito aumenta as
expectativas de sobrevivncia de outro s custas da diminuio de suas prprias,
ser to comum na natureza que necessitaria, portanto, de uma explicao. Se a
nica unidade de seleo fosse o organismo, seria de se esperar que no houvesse
a evoluo de traos altrustas. Passou-se a postular que haveria no mnimo um
nvel superior no qual a seleo natural poderia operar: o grupo. O pressuposto
bsico desta proposta que o grupo como um todo se beneficiaria quando um
indivduo altrusta se encontrasse no mesmo. Apresentando um exemplo: em vrias
espcies de pssaros ocorre um comportamento conhecido como gritos de alarme,
que basicamente a emisso de um aviso por um dos pssaros quando este
5 Segundo WRIGHT (1980), o uso do termo altrusta, no contexto biolgico aqui apresentado, foi introduzido por J.B.S. Haldane em 1932, no livro The Causes of Evolution.
-
10
percebe a presena de um predador. Com isso, o bando todo busca um refgio, mas
o passaro que gritou pode atrair o predador para si. A explicao para a evoluo
deste comportamento por seleo de grupo afirma que o mesmo pode estabelecer-
se apesar de o pssaro que emite o aviso ter suas chances de sobrevivncia e
reproduo diminudas, pois o comportamento favorece os demais membros do
grupo. Eric Charnov e John Krebs (1975) apresentam o argumento desenvolvido por
Roberto L. Trivers no artigo The Evolution of Reciprocal Altruism de 1971 da
seguinte maneira: Ele [Trivers] argumenta que mesmo que o pssaro sentinela
[caller] se coloque em um maior perigo imediato, os gritos de alarme podem evoluir
se os falces forem menos efetivos em, ou tenham menor tendncia a iniciar,
ataques a grupos com sentinelas [callers] (p. 108). A presena do sentinela
aumentaria a aptido (conceito que mede a taxa de reproduo diferencial) de todos
os indivduos do grupo, portanto, grupos com uma pequena quantidade de
sentinelas evoluem.
Este exemplo tambm nos ajuda a perceber que embora muitas vezes no
haja perdas explicativas quando se aplica a concepo de seleo de grupo a um
determinado comportamento, a explicao ao nvel do indivduo tende a ser mais
parcimoniosa6. No caso, o comportamento dos pssaros que emitem gritos de
alarme poderia ser explicado de forma mais simples considerando-se que a aptido
do sentinela no diminui com a emisso do alarme, ao contrrio, este pssaro
encontra-se em uma posio privilegiada, pois sabe exatamente a localizao do
predador. Ao gritar, gera um movimento no bando que atrai a ateno do predador,
aumentando a sua prpria possibilidade de encontrar um refgio melhor. Ambas as
explicaes so possveis, mas a segunda apresenta a vantagem de invocar uma 6 O princpio de parcimnia afirma que em face de mais de uma explicao para um dado fenmeno, devemos adotar a mais simples. Portanto, estamos usando parcimonioso como sinnimo (ou quase) de simplicidade.
-
11
menor quantidade de mecanismos para explicar o mesmo fato.
Se a etologia foi a disciplina que impulsionou tanto a proposta de seleo
individual quanto a de seleo de grupo, foi o desenvolvimento da gentica que
levou admisso de uma nova unidade de seleo: o gene. Segundo Richard D.
Alexander e Gerald Borgia (1978), esta proposta ganha ateno a partir dos
trabalhos de William D. Hamilton, saindo fortalecida por refletir a tendncia atomista
dos geneticistas de populaes. A partir da teoria do gene egosta, proposta por
Dawkins em 1976, o debate se intensificou, incluindo pelo menos trs nveis: gene,
indivduo e grupo. Novos conceitos se tornam necessrios para a melhor
compreenso do tema, e Dawkins cria os termos replicadores e veculos,
afirmando que quando se trata de unidades de seleo a nfase deveria ser apenas
sobre os replicadores. No livro O Gene Egosta, encontramos as primeiras
definies do conceito de replicador, como um tipo de entidade que [...] possua a
propriedade extraordinria de ser capaz de criar cpias de si mesma (DAWKINS,
2001, p. 13), e do conceito de veculo como mquinas de sobrevivncia
construdas pelos replicadores. David Hull (1980) considera que estes conceitos so
importantes, mas precisam ser modificados, e prope o conceito de replicador como
qualquer entidade que transmite sua estrutura diretamente por meio da replicao,
de interagente para as entidades que interagem com o ambiente, como um todo
coeso, de tal forma que influenciam sua prpria capacidade de sobrevivncia e
reproduo, e de linhagem para o conjunto de organismos conectados pelos
processos de reproduo e seleo, ou seja, as entidades efetivamente em ao na
evoluo darwiniana. Esses conceitos foram considerados to relevantes que Robert
Brandon prope a distino entre os debates: unidades de seleo quando se trata
de replicadores e nveis de seleo quando o foco so os interagentes.
-
12
Embora grande parte deste debate tenha se dado durante os anos 1980,
tendo atingido uma espcie de impasse no incio dos anos 1990, o assunto no foi
abandonado. Surgem novas modelagens do processo de seleo natural que
sugerem um modelo hierrquico, no qual as foras seletivas atuam simultaneamente
em vrios nveis. Este modelo tem sido defendido por uma corrente importante de
filsofos, do qual podemos destacar nomes como os de Sober e Wilson. Seguindo a
exposio de Laurent Keller (1999), entendemos que o debate sobre nveis de
seleo continua produzindo resultados empricos e metodolgicos relevantes, os
quais tm sido atualmente usados por vrios bilogos na avaliao do
desenvolvimento da hierarquia existente no mundo biolgico. Keller afirma que os
dois assuntos que despertam mais interesse nos centros de pesquisa multinvel
buscam respostas s seguintes questes: (1) Como a seleo natural entre
veculos biolgicos de nveis inferiores cria veculos de nvel superior, e (2) dado que
existem mltiplos nveis de veculos, como a seleo natural em um nvel afeta a
seleo em nveis inferiores ou superiores (p. 7). Keller prope uma analogia com a
fsica de partculas, entendendo os veculos de nvel superior como sendo
compostos de veculos de nvel inferior. Cada um destes veculos experimenta
foras evolutivas bipolares de atrao e repulso, a primeira significando a tendncia
cooperao entre parceiros de mesmo nvel, e a segunda refletindo a competio
entre os mesmos. Alm destas duas foras, ainda atuaria no sistema uma fora
centrfuga, representando a aptido de um veculo que deixa o grupo. Este modelo
permitira responder as duas questes acima propostas, a partir de pontos
levantados pela pesquisa emprica. Por exemplo, no estudo da origem da vida seria
relevante a definio de quais foras evolutivas de atrao ligam veculos de nvel
inferior (pedaos de DNA, cromossomos ou clulas) em veculos intermedirios
-
13
(organismos multicelulares). Conceitos usuais em biologia, como a vantagem do
maior tamanho e diviso de trabalho, poderiam ser descritos atravs da interao
de foras proposta neste modelo. Da mesma maneira, a compreenso de como os
veculos intermedirios se agrupam em veculos de nvel superior (grupos sociais)
poderia ser descrita nos termos deste modelo. Por exemplo, a necessidade de
encontro de um parceiro em espcies sexuais poderia ser descrita em termos de
foras de atrao temporrias. Outro ponto interessante que podemos ressaltar
que, neste modelo, a atuao das foras de atrao, repulso e centrfuga nas
entidades de nvel inferior que moldaria as propriedades dos veculos
intermedirios. Assim, a separao das linhagens de clulas reprodutivas do
restante das clulas do organismo, considerada como uma etapa importante para o
desenvolvimento da individualidade, poderia ser entendida como um mecanismo de
reduo das foras repulsivas, j que torna necessria a integridade do organismo
para a reproduo.
1.3.2. DEFININDO: ALVO, UNIDADE E NVEL DE SELEO
Na seo anterior apresentamos um histrico do debate em torno do tema
nveis de seleo, enfatizando a questo central do mesmo: a definio do nvel
biolgico no qual a seleo natural atua. Para tanto, referimo-nos distino entre
unidades de seleo e nveis de seleo, porm, sem explicitar a definio destes
termos, o que procuraremos fazer nesta seo a partir da exposio de Templeton
(2006).
Templeton introduz a distino entre unidades e alvos de seleo a partir do
conceito de unicidade do gentipo, que foi desenvolvido originalmente por Mayr e
-
14
corresponde afirmao de que o indivduo deve ser considerado como um todo,
no podendo ser divisvel nos genes que o compem. Mayr afirma que o indivduo
que vive ou morre, se acasala ou no, frtil ou estril. Em outros termos,
apenas o indivduo que tem visibilidade quando a questo em foco a atuao da
seleo natural e, neste sentido, o gentipo teria uma unicidade com o indivduo
devendo ser considerado como o nico alvo de seleo. Esta afirmao
interessante, porm, encerra um problema j que os indivduos que apresentam
reproduo sexuada geram descendentes com um gentipo diferente e
posteriormente morrem, portanto, no existe uma continuidade dos gentipos ao
longo do tempo. Esta constatao levou Mayr a postular que o indivduo seria o alvo
de seleo, mas no a unidade que permanece e responde evoluo. Partindo
desta afirmao, Templeton define unidade de seleo como o nvel de
organizao gentica que permite a previso da resposta gentica seleo (2006,
p. 408), e alvo de seleo como o nvel de organizao biolgica que exibe o
fentipo sob seleo (2006, p. 409). Para que o processo seletivo seja visto de
forma integral, seriam necessrios ambos os conceitos, e neste sentido que ele
afirma: A unidade de seleo sempre algum nvel de organizao gentica
recorrente no espao e no tempo. O alvo de seleo algum nvel de organizao
biolgica que exibe um fentipo que influencia a probabilidade da recorrncia da
unidade de seleo no tempo e no espao (TEMPLETON, 2006, p. 409).
As distines acima apresentadas nos parecem condizentes com a proposta
de Brandon de classificao do debate sobre nveis de seleo, que apresentamos
na seo anterior. Brandon avalia que os conceitos de replicador e interagente,
propostos por Hull, so fundamentais para o entendimento dos nveis de seleo,
enquanto Templeton afirma a necessidade da distino entre unidade e alvo de
-
15
selo. Consideramos que, em certa medida, estes conceitos apresentam uma
equivalncia, pois em biologia os genes so os replicadores por excelncia, sendo o
foco quando o debate sobre unidades de seleo. J quando o debate ocorre em
torno do nvel de organizao biolgica que efetivamente responde seleo, o foco
a ser considerado so os interagentes, os prprios alvos de seleo.
1.3.3. UM EXEMPLO - O CASO DO CAMUNDONGO Mus musculus
Embora estejamos apresentando este trabalho a partir do ponto de vista da
seleo gene-cntrica, para entendermos melhor o escopo do debate aqui proposto
interessante apresentarmos um caso no qual a questo dos nveis de seleo tem
relevncia explicativa, sendo necessrio invocar a atuao da seleo natural em
vrios nveis para explicar o fenmeno observado. Aproveitamos tambm para
explicar alguns termos e processos genticos, que consideramos necessrios para o
entendimento da teoria do gene egosta.
O caso que escolhemos o dos camundongos Mus musculus, conforme
estudados por Richard C. Lewontin e Leslie Dunn (1960)7. Estes camundongos
vivem em pequenos grupos (demes), com o cruzamento entre machos e fmeas
ocorrendo apenas entre membros do mesmo grupo.
Normalmente, nos organismos diplides, isto , que carregam os
cromossomos ao pares, a formao dos gametas atende ao que se conhece por
justia da meiose. Ou seja, durante o processo de meiose, os cromossomos se
separam com a distribuio de cada cromossomo do par homlogo para as clulas
sexuais em proporo igual. Cada um dos cromossomos carrega uma srie de
7 Ver TEMPLETON (2006, p. 422-424) para uma apresentao rigorosa do mesmo exemplo a partir dos conceitos de gentica de populaes.
-
16
genes, que podem se apresentar em mais de uma forma alternativa (alelo). O par de
cromossomos pode conter o mesmo alelo de um gene, caso em que o organismo
considerado homozigoto para aquele gene, ou alelos diferentes, caso em que o
organismo heterozigoto. Apesar da diviso equitativa dos cromossomos com seus
respectivos alelos ser o padro, existem casos nos quais esta regra subvertida e
um dos alelos do gene tem uma representao maior do que os cinqenta por cento
esperados aps a diviso meitica. Nestes casos, considera-se que o alelo que
possui esta maior representatividade um alelo distorcedor da segregao da
meiose.
A anlise gentica dos camundongos Mus musculus mostra que eles
apresentam um alelo em uma proporo diferente da esperada no processo normal
de meiose. Eles possuem um gene que apresenta um t-alelo, isto , um distorcedor
da segregao na meiose. No caso dos camundongos machos heterozigotos, que
contm dois alelos distintos, quando um deles o t-alelo, a proporo de
espermatozides contendo o mesmo de 85 por cento, em vez dos 50 por cento
usualmente esperados. Isto nos levaria a considerar uma forte presso seletiva
favorvel a cromossomos que contenham o t-alelo. Porm, este no o nico efeito
do t-alelo, pois os machos que o possuem nos dois cromossomos so estreis.
Neste caso poderamos entender uma forte presso seletiva contrria aos
organismos que contenham o t-alelo. Em resumo, machos heterozigotos para o t-
alelo produzem mais espermatozides contendo o t-alelo e machos homozigotos
para o t-alelo no produzem nenhum.
A partir destes dois processos contrrios, Lewontin e Dunn efetuaram uma
previso da freqncia que o t-alelo teria na natureza. Porm, a freqncia real se
mostrou bem mais baixa que a prevista, o que indicava a ao de uma terceira fora.
-
17
Para encontrar a mesma, foi necessrio entender a estrutura populacional dos
grupos desta espcie. Como j vimos, os camundongos se organizam em pequenos
grupos, com cruzamento apenas interno. Grupos em que ocorrem machos
heterozigotos devem possuir um alto nmero de fmeas que possuem o t-alelo,
recebido a partir de seu pai, e tambm um nmero de machos homozigotos e
estreis. Novos grupos so formados e no caso das fmeas pertencerem a grupos
nos quais todos os machos so homozigotos para o t-alelo, elas no tm filhotes, o
que, com o tempo, leva o grupo extino. Ou seja, a aptido, conceito que mede a
taxa de reproduo diferencial, das fmeas dependeria no apenas de seu gentipo,
mas tambm do grupo ao qual pertencem, o qual tem um papel determinante sobre
a aptido. Isto explicaria o fato de a freqncia do t-alelo ser menor na natureza do
que na previso inicial. Neste caso, haveria uma conjugao de trs foras seletivas
agindo em duas direes: a seleo cromossmica favorecendo o t-alelo e a seleo
individual e de grupo desfavorecendo o mesmo.
1.3.4. SELEO INDIVIDUAL
A teoria de evoluo por seleo natural propiciou um novo campo explicativo
para a presena de determinadas caractersticas nos seres vivos e para as causas
de seu comportamento. uma teoria causal, na qual as caractersticas e
comportamentos podem ser entendidos a partir de dois tipos de explicaes vlidas,
que postulam causas prximas ou causas remotas. As primeiras permitem avaliar
como os seres vivos operam, sendo baseadas em estudos nos campos da etologia,
anatomia e fisiologia. As causas remotas so as evolutivas, que passaram a ser
compreendidas a partir da teoria de evoluo darwiniana. FERREIRA (2003)
-
18
apresenta um exemplo interessante, no qual podemos distinguir estes dois tipos de
respostas, ambas apresentadas questo de por que uma determinada ave inicia
seu processo migratrio. A resposta que aplica causas prximas explicar que o
menor perodo de luz solar desencadeia uma resposta hormonal e neurolgica na
ave, que inicia a migrao. A outra resposta possvel prope uma explicao deste
comportamento como sendo o resultado de um processo evolutivo no qual a ave
adaptou-se disponibilidade sazonal de alimento, com as populaes que, por
mutao, desenvolveram o comportamento hereditrio de migrar tendo uma maior
viabilidade, com a conseqente fixao do trao. Sober (1998, p. 482) afirma que a
distino entre causas prximas e causas evolutivas nas explicaes biolgicas
uma ferramenta interessante para entendermos a aparncia de projeto [design] na
natureza: O desenho [design] dos sistemas explicado pela evoluo por seleo
natural ao longo do tempo, enquanto seu funcionamento particular explicado por
condies locais.
Segundo Lewontin (1970), a teoria de Darwin geral e propicia um sistema
preditivo para explicar mudanas em todos os nveis da organizao biolgica.
Como j vimos (seo 1.2), qualquer entidade que apresente variao, reproduo e
herdabilidade pode evoluir. Para que a evoluo ocorra por seleo natural
necessrio que essas estejam presentes na forma de variao fenotpica, aptido
diferencial e hereditariedade da aptido, o que ocorre com os seres vivos. O fato de
Darwin ter apresentado suas posies a partir de uma anlise centrada em
indivduos no invalida que a teoria seja aplicada a todos os nveis de organizao
biolgica, pois os princpios da teoria permitem que a mesma seja ampliada. Para a
compreenso da seleo como um mecanismo causal necessrio determinar qual
a unidade na qual a mesma opera. Lewontin entende que se pode aplicar o conceito
-
19
de seleo individual sempre que apenas o conhecimento do gentipo do indivduo e
das variveis ambientais relevantes seja suficiente para a compreenso do
processo. Ele afirma que, embora no seja aplicvel a todos os casos, o teorema de
Fisher para seleo natural, que declara que a taxa de mudana adaptativa de uma
populao em um dado perodo limitada quantidade de variao gentica
presente nas unidades que esto sendo selecionadas, tem duas conseqncias
importantes quando o assunto so nveis de seleo. A primeira que a rapidez de
resposta s presses seletivas depende da herdabilidade das diferenas em
aptido, herdabilidade que tanto mais alta quanto mais baixo nos nveis de
organizao biolgica a unidade se encontra; uma clula tem um nvel de
herdabilidade maior que um organismo, pois no h mudanas entre essa e suas
clulas descendentes. A segunda conseqncia que a taxa de evoluo
dependente da taxa de reproduo e mortalidade, ou seja, o tempo do ciclo de vida
da unidade selecionada relevante. Isto, aliado ao fato de serem os organismos que
percebemos estar em processo evolutivo, fez com que a resposta mais imediata
para a questo da determinao do nvel no qual a seleo natural atua fosse o
indivduo; estes seriam, portanto, os focos de atuao da seleo. Essa foi
realmente a primeira resposta que se teve relativamente questo da unidade foco
de seleo. Segundo Stephen Jay Gould (1984), para Darwin toda seleo se daria
no nvel do indivduo. A centralidade do conceito de luta pela sobrevivncia para a
teoria darwiniana e o fato desta ocorrer diretamente entre organismos o levou a
concluir que a evoluo beneficia ou prejudica os indivduos e no entidades de
nvel superior, tais como espcies ou ecossistemas. Naturalmente, por desconhecer
os mecanismos de hereditariedade, Darwin nem cogitava na possibilidade de
seleo em nveis mais baixos que o organismo, efetuando uma relao direta entre
-
20
o indivduo e a luta pela sobrevivncia, como podemos perceber no seguinte trecho:
Em relao ao que ocorre na natureza, absolutamente necessrio termos em mente as seguintes consideraes: nunca nos esquecermos de que todo ser organizado que vive em torno de ns se esfora ao mximo, por assim dizer, para crescer e multiplicar-se; que cada um, pelo menos em determinados perodos de sua vida, tem de lutar para sobreviver; que uma destruio considervel inevitavelmente incide sobre os mais jovens ou sobre os mais velhos, seja em cada gerao, seja a intervalos peridicos (DARWIN, 2002, p. 83).
O fato de serem sempre indivduos que interagem com o meio ambiente e
que produzem descendncia diferencial conduziu Darwin postulao do indivduo
como sendo a unidade de seleo fundamental; o que no significou que deixasse
totalmente de considerar a possibilidade da existncia de algum mecanismo de
seleo de grupo relevante para o desenvolvimento de comportamentos sociais
complexos tais como o altrusmo. Embora este tpico no seja desenvolvido no livro
A Origem das Espcies, podemos v-lo indicado: Nos animais gregrios, [a seleo
natural] adapta a estrutura de cada indivduo em prol da comunidade; cada qual,
conseqentemente, beneficiado pela modificao adquirida (DARWIN, 2002, p.
100).
Esta posio monoltica no se manteve, e o debate em torno da existncia e
amplitude das unidades de seleo tomou corpo. O desenvolvimento da biologia, em
especial da gentica e da etologia, levou a questionamentos relativos relevncia
da unicidade do foco no indivduo e a suposies sobre a existncia de seleo
tanto em nveis superiores como inferiores ao do organismo. Historicamente, a
primeira alternativa a ser vista com uma possvel unidade de seleo foi o grupo,
porm, questes bastante prximas induziram proposio da seleo gnica em
um curto espao de tempo. A existncia de comportamentos altrustas entre os
animais e a dificuldade de explicao por meio de seleo apenas no nvel do
indivduo foi um forte motivador da busca por mecanismos de seleo em outros
nveis. A fundao da etologia na dcada de 1930 por Konrad Lorenz, Niko
-
21
Tinbergen e Karl von Frisch e o desenvolvimento da teoria neodarwinista a partir de
1960 foram essenciais aos questionamentos da seleo individual como o nico
nvel de seleo. Estudos do comportamento animal, vistos agora como relativos
evoluo, apresentaram tantos problemas que parecia necessrio postular outro
nvel de seleo. Isto, aliado ao fato da especiao ser considerada como uma
conseqncia do processo de seleo natural, levou incluso da espcie como
sendo relevante para o mecanismo de seleo natural, e, portanto, atuando como
um nvel de seleo. O estudo de diversos casos nos quais os indivduos
apresentavam um comportamento altrusta provocou novas abordagens, em
especial as de seleo de grupo e de parentesco. Segundo essas abordagens,
como traos altrustas so ruins para o indivduo e bons para o grupo, se o nico
nvel de seleo fosse o organismo no haveria a evoluo de traos altrustas.
Apesar de todos esses desenvolvimentos e novas propostas, a seleo individual se
mantm at os anos 1990 como a resposta padro para a maioria dos
pesquisadores.
1.3.5. SELEO DE GRUPO
O bilogo Vero C. Wynne-Edwards foi um dos primeiros defensores da
possibilidade de seleo de grupo. Em seu livro Animal Dispersion in Relation to
Social Behavior, de 1962, usa o fato de que em muitas espcies o tamanho das
populaes parece ser auto-regulado como base para postular a atuao da seleo
em nvel do grupo, afastando-se do tratamento usual que considerava as restries
externas como a melhor explicao para essa constncia. Wynne-Edwards afirma
que haveria um comportamento altrusta dos indivduos em favor do grupo, o qual
-
22
seria a unidade que efetivamente sobreviveria. Esta teoria foi bastante criticada.
Cassidy (1978, p. 578) considera que as primeiras crticas teoria de seleo de
grupo se constroem a partir de trs pontos: sua incapacidade para suportar a
tradio anterior, a afirmao que as suposies empricas nas quais esta teoria se
baseia serem provavelmente falsas e que a mesma seria suprflua. No nossa
inteno explicitar estes pontos em cada uma das criticas que vamos apresentar,
mas procuraremos indicar os mesmos. Alm disto, grande parte das crticas est
posta a partir do argumento de que a seleo interna s populaes bem mais
intensa do que entre populaes diferentes. interessante notar que este
argumento tem sua base em alguns dos conceitos fundamentais da teoria de
seleo natural, estando em plena sintonia com o teorema de Fisher e com as
conseqncias que Lewontin apresenta para o mesmo (ver seo 1.3.4). Se
utilizarmos a classificao acima apresentada por Cassidy, diramos que esta
posio parte do ponto de que a seleo de grupo, em alguma medida, no daria
suporte a tradio darwinista.
Para George C. Williams, no livro Adaptation and Natural Selection, de 1966,
o critrio de parcimnia tem um papel significativo na rejeio da seleo de grupo,
ou, nos termos de Cassidy, afirma que o conceito de seleo de grupo seria
suprfluo. Williams apresenta explicaes alternativas, no nvel de seleo
individual, para cada um dos exemplos de Wynne-Edwards, afirmando que a
possibilidade de uma explicao mais simples, que necessita de menos nveis
explicativos, tornaria desnecessria a postulao da seleo de grupo. A morte por
senescncia, por exemplo, no precisa ser considerada como uma caracterstica
que garante a manuteno de recursos para a populao, mas simplesmente como
o resultado da seleo de indivduos que alcanam a idade reprodutiva mais cedo.
-
23
Os seres vivos morrem no somente em decorrncia de fatores ambientais ou
doenas, pois a decadncia biolgica parte de seu desenvolvimento normal.
Segundo Nesse (1988), existem dois tipos principais de explicao evolutiva para a
morte por senescncia. A primeira seria que os genes que regulam esta
caracterstica nunca foram sujeitos a presso seletiva, visto que afetam a aptido
somente em uma idade posterior reprodutiva. A segunda explicao afirma que os
genes que respondem pela senescncia foram selecionados a favor devido a seus
efeitos positivos na aptido dos indivduos quando jovens, com a senescncia sendo
o resultado de efeitos pleiotrpicos (mltiplos) destes genes em uma idade mais
avanada. Esta segunda a proposta de Williams, que a considera mais
parcimoniosa, pois para a mesma necessrio apenas um nvel explicativo, com a
seleo individual respondendo integralmente pela evoluo desta caracterstica.
Tambm outros comportamentos, como os gritos de alarme8 e o cuidado maternal,
seriam mais bem explicados por seleo de parentesco, um tipo de seleo
individual no qual o grau de relacionamento gentico entre dois indivduos
relevante, pois um gene que apresentar, como um de seus efeitos, o aumento das
chances de sobrevivncia de suas cpias em algum parente poder ser selecionado
positivamente. Alm destes, Williams apresenta outro argumento baseado no
mesmo tipo de sistematizao dos princpios de seleo natural efetuado por
Lewontin, afirmando que a variao gnica normalmente sofre maior influncia do
nvel mais baixo, no caso, o indivduo, o que confirmaria no haver a necessidade de
se considerar a seleo de grupo como um fator preponderante para a seleo.
Hull (1980) tambm critica a posio de Wynne-Edwards, a partir de um ponto
diferente, argumentando que ele efetuou uma escolha inapropriada de seu caso
8 Detalhamos este conceito na seo 1.3.1.
-
24
central de estudo, a auto-regulao de tamanho nas populaes, isto apesar de ter o
tipo de grupo correto em mente, que so os grupos com alto nvel de organizao
que exibam caractersticas prprias. A importncia desse tipo de grupo no teria
sido corretamente entendida por muitos pesquisadores posteriores, que trataram
como grupos passveis de seleo a qualquer grupo de indivduos espacialmente
prximos. Ainda assim, Hull assume a inexistncia da seleo de grupo, pois:
Qualquer coisa que possua as caractersticas necessrias para ser selecionado no
mesmo sentido no qual organismos so selecionados tem as caractersticas
necessrias para ser tratado como um indivduo e no como um grupo ( HULL,
1980, p. 313). Para Hull, uma boa definio de indivduo desmonta a postulao de
seleo de grupo.9
Embora estas sejam crticas importantes e vrios pesquisadores, como
Elisabeth Lloyd (2001), afirmem que a posio mais aceita atualmente que as
condies para a ocorrncia de seleo de grupo so bastante restritas, sendo raras
na natureza, o conceito de seleo de grupo no deixou de ser considerado como
um possvel campo explicativo. Alexander e Borgia (1978), por exemplo, consideram
que: At o ponto em que a seleo de grupo significa simplesmente a ocorrncia de
extino (ou reproduo) diferencial de grupos de indivduos, nenhum bilogo
negaria sua existncia (p. 450). Mesmo nesses termos, as condies para que a
seleo de grupo ocorra seriam empiricamente incomuns, pois os grupos em
questo deveriam ser prximos o suficiente para repor os grupos extintos, mantendo
ao mesmo tempo a independncia necessria para que exista a possibilidade da
ocorrncia de diferentes caractersticas em cada grupo. Portanto, para esses
autores, a questo da relevncia da seleo de grupo para a modelagem de 9 A definio do conceito de indivduo de grande relevncia para o tema nveis de seleo. Apesar disso, decidimos no desenvolver a mesma nesta dissertao, por no ser uma questo central quando o foco o gene egosta.
-
25
caractersticas individuais permanece, com a modelagem de grupos que apresentam
este tipo de estrutura populacional e sua posterior busca na natureza se
apresentando como um dos poucos caminhos de anlise das possibilidades da
seleo de grupo que poderiam ser empreendidos. Argumentam que, de qualquer
forma, a continuidade dessa anlise estaria justificada, pois a estrutura e
organizao dos sistemas na qual a vida se apresenta parece ser resultado da
seleo operando em diferentes nveis hierrquicos. Seria possvel uma viso
expandida de seleo de grupo que considerasse que [...] as interaes entre
entidades de todos os nveis na hierarquia dos sistemas vivos podem ser
consideradas em termos de sua contribuio para os padres de reproduo
(ALEXANDER & BORGIA, 1978, p. 455). A seleo gnica ou individual poderia ser
a responsvel por estabelecer os grupos e espcies existentes, mas sua
permanncia ou extino se daria por seleo de grupo. Alexander e Borgia no
aceitam a afirmao de Dawkins de que espcies no so replicadores; para eles,
espcies se multiplicam e do origem a novas espcies, podendo ser consideradas
como replicadores.
Sober (1984) procura demonstrar que a anlise fundamental a ser feita no
deveria buscar explicar a baixa ocorrncia da seleo de grupo na natureza, mas
mostrar que a controvrsia existente seria um dos sinais da indeterminao do
conceito de seleo de grupo. Ele ir, ento, procurar uma nova proposta para o
mesmo, inicialmente examinando alguns dos conceitos aceitos por ambos os lados
da disputa para posteriormente desmontar algumas de suas aparentes
conseqncias. O primeiro ponto a apresentar uma concordncia ampla so os
requisitos aceitos por todos para que a seleo natural possa atuar: necessrio
que exista uma variao nos objetos, que essa se reflita em sucesso reprodutivo
-
26
diferencial e que seja transmitida hereditariamente; em outras palavras, que exista
variao hereditria em aptido. Isto posto, Sober ir definir o conceito de aptido da
seguinte maneira: A aptido de um objeto sua propenso, ou disposio, a ser
reprodutivamente bem sucedido (SOBER, 1984, p. 191). Porm, quando se busca
determinar se um determinado conjunto de objetos est submetido a um mesmo
processo seletivo, devemos considerar estas condies como necessrias, porm,
no suficientes. Ou seja, para considerarmos que determinados objetos estejam sob
um mesmo processo de seleo preciso ainda que exista alguma influncia causal
comum que afete suas chances de reproduo, o que ocorre, por exemplo, quando
estes objetos esto em competio. Sober ressalta que esta influncia deve ser
entendida tanto em termos do ambiente fsico quanto das caractersticas biolgicas
dos organismos envolvidos. Aps estabelecer estas condies como suficientes
para que a seleo natural ocorra, Sober ir afirmar que embora os objetos clssicos
da seleo natural sejam organismos que existem em uma dada populao, nada
impede que se examinem os grupos como estes objetos, pois estes tambm podem
responder a estas condies. A concepo mais aceita afirmaria que: A seleo de
grupo ir envolver a seleo entre grupos, enquanto a seleo individual envolve a
seleo dentro de grupos (SOBER, 1984, p. 192).
Em resumo, apesar de ter sido alvo de muitas crticas, a proposta de seleo
de grupo no foi completamente abandonada, permanecendo diversas
propostas de reviso e desenvolvimento de conceitos que permitem uma
anlise mais detalhada da possibilidade de seleo de grupo como uma fora
evolutivamente relevante.
-
27
1.4. CONCLUSO
Neste captulo procuramos apresentar um panorama histrico e filosfico das
questes relativas ao tema nveis de seleo que precedem a proposta da teoria do
gene egosta de Dawkins, fazendo um resumo das noes de seleo individual e
seleo de grupo. Vimos que a posio original de Darwin era que a unidade de
seleo o indivduo, e que foi o prprio desenvolvimento da biologia, em especial
da etologia e da gentica, que possibilitou o surgimento de novas hipteses de
resposta pergunta: qual a unidade que efetivamente selecionada no processo de
evoluo por seleo natural?. A seleo individual permanece a resposta ortodoxa,
mesmo em face da proposta de seleo de grupo.
-
CAPTULO 2 EXEGESE DOS LIVROS O GENE EGOSTA E O FENTIPO ESTENDIDO
Este captulo acompanha de perto a exposio da teoria do gene egosta e a
construo do conceito de fentipo estendido tal como Dawkins as efetua no livro O
Fentipo Estendido. Tomamos a deciso de incluir esta explicao mais
pormenorizada por considerar que esta dissertao est sendo apresentada na
Faculdade de Filosofia, e, portanto, a concepo de Dawkins no bem conhecida.
Em geral, os argumentos expostos so os de Dawkins, e buscamos colocar as
referncias s pginas do livro no incio de cada assunto. Os nossos comentrios
esto sinalizados.
2.1. UMA INTRODUO AO PONTO DE VISTA GENE-CNTRICO
Dawkins etlogo por formao, possuindo um profundo interesse pelo
comportamento animal, buscando explicaes para o mesmo a partir da teoria
darwiniana da evoluo. Em seus livros O Gene Egosta, de 1976, e O Fentipo
Estendido, de 1982, pretende apresentar uma viso pessoal sobre a evoluo da
vida, colocando em questo o ponto de vista tradicional que apresenta o indivduo
como o melhor ponto de partida para o entendimento de fenmenos adaptativos. O
primeiro livro pode ser entendido como um livro de divulgao cientfica, no qual o
autor se dirige ao pblico em geral. no livro de 1982 que Dawkins ir aprofundar
os conceitos necessrios fundamentao de sua teoria, alm de introduzir o
conceito de fentipo estendido, que explicitaremos no curso deste trabalho.
Dawkins examina as implicaes evolutivas do comportamento egosta e
altrusta, extraindo, a partir das mesmas, uma proposta bastante diferente, a teoria
-
29
do gene egosta. Suas teses seguem a linha de pesquisa de Williams, sendo
baseadas na anlise etolgica do comportamento animal a partir de uma
interpretao bastante estrita da teoria darwiniana. Em seu livro O Gene Egosta
prope a existncia de um nvel privilegiado de seleo, a gnica. Devido s suas
caractersticas de variabilidade, hereditariedade e reproduo diferencial, os genes
seriam o elemento que efetivamente se reproduziria. Para explicitar a diferena entre
genes e organismos, introduz o conceito de replicador, equivalente menor
unidade capaz de fazer cpias de si mesma10. O replicador seria tambm a unidade
mais estvel e, portanto, mais apta a sobreviver e gerar descendncia. Dawkins
afirma que as capacidades de longevidade, fecundidade e fidelidade de cpia so as
prioritariamente selecionadas, portanto, o replicador seria o nvel de seleo por
excelncia. Os organismos no produzem organismos que sejam cpias fiis de si
mesmos, os grupos tambm no, os genes sim. A definio de gene que Dawkins
usa elaborada de forma a que esse sempre seja a unidade bsica de seleo
natural, considerando um gene como a menor poro de material cromossmico que
dura potencialmente por um nmero suficiente de geraes para servir como
unidade de seleo natural. Quanto menor a unidade gentica, mais provvel que
muitos organismos a compartilhem e que, portanto, essa possua o maior nmero de
cpias e dure pelo maior perodo de tempo. Com esta argumentao, Dawkins
coloca sob nova perspectiva o problema do altrusmo, pensando-o como algo que s
existe do ponto de vista do organismo, sendo o gene sempre egosta.
Cabe aqui um esclarecimento sobre o uso de termos antropomrficos e
teleolgicos, tais como o uso do qualificativo egosta para o gene. Naturalmente o
uso destes termos por Dawkins e pelos demais bilogos sempre figurado. Embora
10 Mantivemos aqui o enunciado original de Dawkins, apesar do uso teleolgico da linguagem, conforme explicitado em seguida.
-
30
exista uma tendncia filosfica em evitar este tipo de uso da linguagem, o mesmo
bastante comum na biologia, sendo inclusive objeto de controvrsia entre
reducionistas que buscam eliminar este tipo de utilizao e emergentistas ou
instrumentalistas que tendem a justificar a necessidade de uso de analogias ligadas
a causas finais e intencionalidade. No foco deste trabalho analisar a
complexidade dos argumentos e conceitos envolvidos neste debate11; apenas a
ttulo de exemplo, podemos examinar, grosso modo, os conceitos de adaptao e
funo como casos nos quais os bilogos argumentam em favor de um uso positivo
da teleologia. Em geral, quando um bilogo examina uma determinada caracterstica
de um organismo supondo que seja uma adaptao, ele o faz atravs da resposta
pergunta para qu?, ou seja, investiga qual seria a funo desta caracterstica, no
sentido de avaliar sua finalidade para o organismo e assim definir sua relao com a
aptido do indivduo que a possui, fazendo uso de analogias de forma a determinar
os processos fsicos, qumicos e biolgicos que levaram evoluo e fixao desta
caracterstica. Com estas consideraes, podemos excluir as crticas mais
superficiais feitas teoria do gene egosta, que a acusam de conferir
intencionalidade aos genes. GOULD (1984, p. 122), um dos principais crticos de
Dawkins, esclarece que: Quando ele [Dawkins] afirma que genes se esforam para
fazer mais cpias de si mesmo, ele quer dizer: a seleo opera no sentido de
favorecer genes que, por acaso, variam de tal forma que mais cpias sobrevivem
nas geraes subseqentes. Estas duas formas de compor a frase so
significativas das duas formas de expresso em biologia, a primeira aceita o uso de
metforas intencionais e a segunda busca um maior rigor terico. Procuraremos,
nesta dissertao, usar deste rigor, reescrevendo as afirmaes quando as mesmas
11 Uma boa introduo a este debate est em FERREIRA (2003).
-
31
aparecerem, como comum no texto de Dawkins, carregadas de intencionalidade.
Outro ponto importante para ns compreender os motivos que levaram Dawkins a
considerar que sua posio ortodoxa, sendo diferente apenas por ser expressa de
forma no habitual. Sua teoria causou um impacto significativo, tendo defensores e
crticos enfticos. Tericos das mais diversas correntes evolutivas criticaram seus
argumentos e, especialmente, o tratamento monoltico que ele deu ao tema.
Analogamente ao conceito de replicador, Dawkins introduz o de veculo, as
mquinas de sobrevivncia que propagam os replicadores. Embora ambos os
conceitos sejam relevantes para o desenvolvimento posterior dos estudos de nveis
de seleo, o conceito de veculo considerado problemtico por diversos
pesquisadores. Estes conceitos e os outros argumentos de Dawkins favorveis a
seleo gnica so melhor apresentados em seu livro O Fentipo Estendido.
A proposta de Dawkins est baseada em uma diviso no clssica dos nveis
de hierarquia biolgica. Embora reconhea que a categorizao dos fenmenos
biolgicos em gene, clula, rgo, organismo, populao e ecossistema relevante
para diversos fins em biologia, afirma que, para explicar adaptaes evolutivas
geradas por seleo natural necessrio outro tipo de categorizao. Prope
classificar as entidades biolgicas a partir dos conceitos acima apresentados, de
replicadores e veculos, considerando que esta distino mais significativa,
oferecendo explicaes mais parcimoniosas. De forma simplificada podemos definir
replicadores como entidades capazes de conservar sua estrutura ao longo do tempo
e veculos como mquinas de sobrevivncia elaboradas pelos replicadores. uma
viso gene-cntrica, visto que defende que o nvel de seleo que melhor
proporciona uma explicao dos comportamentos adaptativos aquele que
considera replicadores como a unidade de seleo, replicadores cujo melhor
-
32
exemplo so os genes. Seu foco nos genes como a entidade que efetivamente
selecionada no o distancia do conceito de indivduo, como poderia parecer
primeira vista, mas o conduz a novas perguntas acerca da organizao da vida.
Consideramos que Dawkins est buscando questionar, o quanto seja possvel, a
prpria organizao da percepo humana, que, ao analisar um comportamento ou
estrutura, tende a consider-los como dotados de interesse ou propsito. O fato de
percebermos os indivduos como uma entidade dotada de intencionalidade necessita
de uma explicao, da mesma forma que necessrio explicar que estas mesmas
entidades so constitudas de unidades menores. Outra questo importante para
Dawkins relativa formao das entidades complexas que conhecemos como
indivduos. Os genes que tiveram maior sucesso evolutivo foram os que
apresentaram um padro de organizao gregrio, e isto interessante o suficiente
para que se estudem os motivos. Assim, quando o foco de interesse biolgico o
indivduo, a pergunta que Dawkins considera fundamental : qual o valor de
sobrevivncia que existe em empacotar a vida em unidades discretas chamadas
organismos?
A proposta de Dawkins no apresentar uma nova teoria, nem mesmo novas
hipteses ou modelos. Mesmo no livro O Fentipo Estendido, destinado a
especialistas, e no qual os conceitos apresentados em trabalhos anteriores so
aprofundados, afirma que o ponto de vista gene-cntrico e o conceito de fentipo
estendido apenas levam a uma melhor compreenso da evoluo e do
comportamento animal. No prope um novo mecanismo evolutivo, mas que o
direcionamento do olhar para o gene, quando se trata de evoluo adaptativa, tem
um resultado positivo, pois possibilita o surgimento de diferentes alternativas
explicativas, e, com isso, aumenta a possibilidade de encontrarmos explicaes
-
33
mais parcimoniosas para os fatos observados. Dawkins defende que apesar de o
prprio conceito de fentipo estendido, centro do livro, no ser diretamente testvel,
a mudana de ponto de vista pode levar ao surgimento de novas hipteses
testveis; com isso justifica a possibilidade de um texto terico ter validade mesmo
sem apresentar hipteses testveis. A mudana de ponto de vista , em si mesma,
importante, gerando novas abordagens na cincia. Essa posio permite que
Dawkins faa um uso extensivo de experimentos mentais que embora no sejam,
nem precisem ser, realistas, servem para clarificar nosso pensamento sobre a
realidade.
Dawkins compara sua posio com o efetuar de uma traduo, da linguagem
do indivduo para a linguagem do gene, que, ele defende, apresenta uma srie de
vantagens. Embora entendamos o ponto defendido por Dawkins e consideremos
que, em muitos casos, a linguagem gnica realmente apresente vantagens, em
especial em relao parcimnia explicativa, avaliamos que a traduo a que ele se
prope mantm a linguagem teleolgica, e portanto deixa de considerar um ponto
relevante e que poderia alterar o modo de expresso em biologia.
2.2. O COMPORTAMENTO ALTRUSTA
Um dos focos de interesse da etologia o estudo do comportamento altrusta,
cuja explicao, como j apresentamos, foi considerada durante bastante tempo
como um desafio teoria evolutiva e sua nfase na sobrevivncia individual. Esse
o ponto de partida de Dawkins em O Gene Egosta, livro que apresenta essa teoria
de forma geral, e que consideramos, em especial pelo extensivo uso de linguagem
no-terica, como uma das primeiras incurses desse autor no que posteriormente
-
34
se tornaria um de seus grandes interesses: a divulgao cientfica da teoria da
evoluo darwiniana. Ele considera que os seres vivos podem ser examinados de
distintos pontos de vista, com cada rea da biologia possuindo um foco especfico
que permite uma melhor anlise de seu objeto de estudo. Um cuidado comum a
todas as reas, em especial a que trata do comportamento adaptativo, o
distanciamento entre a maneira como a espcie humana aplica certos termos a si
mesma e o conceito que est sendo apresentado pelo bilogo. O primeiro termo a
aclarar altrusmo: [...] o comportamento altrusta se favorece outros indivduos
s custas do altrusta (DAWKINS, 1982, p. 57). Altrusmo aqui no deve ser
entendido no campo da tica humana, mbito no qual o altrusmo social desejvel,
sendo aplicado tanto s famlias como a toda a espcie humana e eventualmente a
todos os seres vivos. A no separao entre conceitos biolgicos e termos da tica
humana um dos fatores que conduz a uma certa confuso nas respostas que a
biologia apresenta quando se pergunta qual o nvel de altrusmo que deve ser
esperado segundo a teoria darwiniana. A expresso Gene Egosta deve ser
entendida sempre como um ponto de vista, uma maneira de fazer novas perguntas
para fatos e idias familiares; evidentemente no uma proposta que trate os genes
como entidades dotadas de finalidade ou aplique aos mesmos o conceito de
egosmo como se aplica psicologicamente aos seres humanos. Embora Dawkins
explicite claramente qual o escopo do uso do termo gene egosta, entendemos que
este um dos problemas que advm do uso da linguagem teleolgica e intencional
em biologia. Embora o uso de metforas e da linguagem finalista seja bastante
comum em biologia, existem uma srie de argumentos que advertem sobre o risco
que esse uso representa, conforme j apresentamos (seo 2.1).
-
35
Os conceitos de aptido12, definido como a contribuio que um determinado
gentipo efetua para a prxima gerao de uma populao, e de aptido inclusiva,
que abarca a passagem dos genes no s atravs da reproduo prpria, mas
tambm pelo apoio reproduo dos parentes, esto no cerne de um dos teoremas
centrais da etologia moderna. Este afirma que o padro de ao que pode ser
esperado do indivduo o comportamento de forma a beneficiar sua aptido
inclusiva, maximizando a passagem de seus genes s prximas geraes tanto
atravs de reproduo prpria quanto atravs do apoio de seus parentes. Isso,
aliado s teses de Darwin, que consideravam o indivduo como centro focal, induziu
vrios bilogos, em especial quando interessados em explicaes funcionais,
suposio de que o organismo individual a unidade apropriada de trabalho e que
os comportamentos devem ser entendidos em termos de conflito entre indivduos
que tendem a maximizar sua aptido inclusiva. Para Dawkins a primeira afirmao
no conduz necessariamente segunda, e o fato histrico da ateno sobre o
indivduo no deve conduzir concepo do indivduo como o foco natural da
biologia, ele um dos nveis de organizao da vida, isto evidente, mas no reflete
uma necessidade. A vida poderia no ter evoludo no sentido do indivduo, e assim
este no deve ser tomado de forma naturalizada. A proposta de Dawkins em O
Fentipo Estendido desconstruir lentamente esse foco no indivduo, buscando
mostrar que, quando se trata de explicar comportamentos adaptativos, o foco no
replicador geralmente proporciona explicaes mais parcimoniosas.
12 Existem diversos problemas em relao definio do conceito de aptido, no os discuto por no consider-los relevantes para o tema em questo. Entendo que Dawkins usa definies bsicas de termos complexos, tal como gene ou aptido, considerando que isto suficiente para o desenvolvimento de seu trabalho.
-
36
2.3. SELECIONISMO OU DETERMINISMO?
Aps apresentar sua definio de altrusmo e sua proposta de seleo gnica,
Dawkins entende que necessrio expor seu ponto de vista sobre o papel do gene
na determinao do fentipo de um organismo. Ir defender que no um
determinista, uma das crticas mais comuns a sua posio, e que possvel
compreender os fenmenos evolutivos sem que seja necessrio explicitar os
processos complexos pelos quais os fentipos so gerados.
Dawkins defende que o nvel no qual a seleo natural ocorre o gentico, o
que conduz a que toda sua teoria se desenvolva em torno do conceito de gene. J
vimos (seo 2.1) a definio de gene que Dawkins usa, entendemos que uma
definio bastante ampla e que considera o gene apenas do ponto de vista da
seleo natural.13 Apesar disto, a centralidade do gene em sua teoria levou a uma
srie de crticas, em especial em relao ao determinismo de sua proposta. Dawkins
(1982, pp. 18-29) no se considera um determinista, pois para ele essa afirmao
embute uma confuso comum em biologia entre selecionismo e determinismo.
Ambos so modelos causais; de forma preliminar, podemos entender o
determinismo gentico como a afirmao de que as relaes entre o genoma e o
organismo se do em uma relao de causalidade unidirecional e rgida. J o
selecionismo gnico o princpio que afirma que as caractersticas adaptativas so
resultado da ao da seleo natural sobre os genes. Para Dawkins, a correta
compreenso da seleo natural como sobrevivncia diferencial de genes mostra
que a evoluo se d por selecionismo gnico, sendo que somente no mbito do
13 O conceito de gene tem sido objeto de muita avaliao. Seria uma questo interessante avaliar como as mudanas no conceito de gene, desde a publicao de O Fentipo Estendido, afetaram a posio de Dawkins e se seu conceito frouxo de gene resiste ou est adequado. No iremos desenvolver esta temtica, o que poderia ser feito a partir de Keller (2002) e El-Hani (2007).
-
37
desenvolvimento se pode falar, em algum sentido, em determinismo gentico.
Para a correta compreenso da distino acima preciso considerar o
conceito de causalidade e sua aplicao em biologia. Causalidade um conceito de
difcil demarcao tanto em cincia quanto em filosofia, no se podendo demonstrar
definitivamente, de maneira operacional, que um evento C causa um resultado R
particular. Assim sendo, a concepo que os bilogos geralmente adotam a de
trabalhar com esse conceito de forma simplificada, no mbito da correlao
estatstica. A abordagem das influncias genticas fica muito mais clara quando se
emprega esse mtodo, pois a maioria das diferenas fenotpicas pode, em alguma
medida, ser entendida como geneticamente afetada. Dawkins trata como evidente
que o organismo no definido por seu genoma, sendo que o mesmo somente se
expressa em relao ao ambiente no qual est inserido. O foco no gene no uma
defesa do mito do determinismo gentico14, somente a afirmao de que
diferenas genticas so relevantes quando o que est em estudo a evoluo
adaptativa. Se a passagem dos genes dos pais para os filhos inexorvel, seus
efeitos fenotpicos claramente no o so, e a elucidao das interaes entre os
genes e o meio o campo da embriologia do desenvolvimento. Fentipos so
gerados durante o desenvolvimento do organismo, em processos de grande
complexidade e envolvendo uma srie de fatores, tanto os presentes no genoma
quanto no ambiente. No entanto, para o estudo da evoluo no necessrio
especificar esses processos, sendo suficiente aceitar que os genes afetam os
fentipos e que h diferenas entre as caractersticas possveis. Partindo da
suposio que todos os fenmenos tm uma causa material, se pode afirmar que,
em alguma medida, todos os fentipos so afetados pelos genes presentes no
14 Este um tema muito interessante, sugerimos a leitura de LEITE (2007) para os interessados em aprofundar-se no mesmo.
-
38
organismo. O que no equivalente a afirmar a tese determinista forte, que o
conjunto de genes determina inexoravelmente os traos fenotpicos apresentado por
um organismo. A tese defendida por Dawkins que na presena de um determinado
alelo (forma alternativa do gene) o organismo tende a apresentar o fentipo em
questo em comparao com outro organismo que apresenta outro alelo, quando
so mantidas as demais condies. So essas diferenas em tendncias que levam
os geneticistas a tratar um determinado gene como para o fentipo X, significando
apenas que, demais fatores permanecendo iguais (ceteris paribus), a presena
deste gene leva a um estado morfolgico e fisiolgico que tende a produzir o
fentipo (ou comportamento) em questo.
2.4. ADAPTAO
Antes de prosseguir no desenvolvimento de sua viso de seleo natural
centrada na competio, Dawkins precisa esclarecer o sentido que o termo
adaptao tem em sua teoria. Embora este conceito tenha sido sujeito a vrias
interpretaes em biologia, Dawkins ir ignorar grande parte da polmica,
assumindo que uma verso bastante simples de adaptao suficiente para sua
teoria. De forma resumida, ele ir considerar como adaptaes somente as
caractersticas geradas pelo processo de seleo natural.
A seleo natural a sobrevivncia diferencial de genes, e nesse sentido
que: Para discutir a possibilidade de padres de comportamento evolurem por
seleo natural temos que postular a variao gentica com respeito tendncia ou
capacidade de atuar de acordo com esse comportamento (DAWKINS, 1982, p. 18).
Vrios so os eventos evolutivos, nem todos produzem adaptao; Dawkins (1982,
-
39
p. 19) est interessado especificamente nos que produzem adaptao diretamente
por seleo natural. Muitos comportamentos e traos fenotpicos, em especial os
adaptativos, so extremamente intricados, sua formao provavelmente envolveu
diversas etapas com seleo de diversos loci (cada locus representa a posio de
um gene em um cromossomo) ao longo do tempo evolutivo. O entendimento desse
processo relevante e de grande interesse, porm no invalida a afirmao de que,
por mais complexo que seja um estado, a diferena entre o mesmo e um outro
estado alternativo pode ser causada ou alterada por algo extremamente simples.
Dawkins (1982, p. 23) exemplifica isto com um experimento mental. A leitura um
comportamento complexo, que necessita de uma srie de fatores para ocorrer, no
entanto a presena de um gene que causa dano cerebral levando dislexia
suficiente para que esse no ocorra. Nesse caso, pela nomenclatura padro em
gentica, o alelo do gene que causa dislexia, o alelo de tipo selvagem [wild type],
pode ser tratado como um gene para leitura. Nomear um gene dessa forma no
significa que sua simples presena determine o comportamento. Outro ponto
importante a ser considerado a diferena entre a gerao de um comportamento
complexo e sua situao atual. A remoo da casca de ovo vazia do ninho pelas
gaivotas de cabea preta um comportamento intricado, provavelmente tendo sido
suscitado por seleo natural atravs de uma srie de passos evolutivos.
Atualmente est constitudo, e se pode facilmente pensar em um gene em cuja
presena esse comportamento no ocorra. Novamente, o tipo selvagem deste gene
pode ser nomeado como para a remoo da casca vazia, o que no implica em
afirmar que o processo seletivo se deu apenas neste locus. Genes esto sempre
implcitos em qualquer discurso sobre adaptao darwiniana, o que no significa que
todas ou a maioria das caractersticas de um organismo sejam adaptativas. A
-
40
evoluo ocorre atravs de vrios processos e muitos de seus resultados no so
adaptaes, sendo que, sempre que a evoluo se d por seleo natural, o que
obtemos uma resposta adaptativa.
O que Dawkins (1982, p. 32) est afirmando que processos evolutivos, tais
como a mutao nos genes, a migrao de indivduos entre populaes ou a deriva
gentica (o processo de flutuao randmica na freqncia dos alelos de uma
populao) no levam necessariamente a adaptaes. So foras evolutivas que
efetivamente podem conduzir fixao de determinadas caractersticas em uma
populao, mas sem garantia de que estas caractersticas sejam adaptaes, ao
contrrio do processo de seleo natural, que sempre conduz a adaptaes.
As explicaes adaptacionistas tm sido alvo de vrias crticas15, em especial
quando so entendidas a partir da definio de Richard Lewontin, citadas por
Dawkins a partir do artigo Sociobiology as an adaptationist program, publicado em
Behavioral Science 24 de 1979: aquela avaliao que assume sem maiores provas
que todos os aspectos da morfologia, fisiologia e comportamento dos organismos
so solues adaptativas timas para problemas (DAWKINS, 1982, p. 30). Para
Dawkins, o programa adaptacionista um valioso simulador de hipteses, vrias
delas testveis. O fundamental manter sempre presente que nem todas as
caractersticas so adaptativas, existindo uma srie de restries perfeio. O
conceito de evoluo deve ser o centro de qualquer avaliao em biologia,
especialmente quando se busca estabelecer se uma caracterstica adaptativa ou
no.
15 No vamos comentar aqui as crticas ao programa adaptacionista. Embora as mesmas sejam relevantes, consideramos que Dawkins consegue defender bem seu ponto de vista adaptacionista, fugindo do que seria um adaptacionismo ingnuo, tal como criticado por GOULD & LEWONTIN (1970). Isto porque, embora geralmente considere as caractersticas isoladamente, no considera o organismo sempre como um todo otimizado. Alm disso, Dawkins mantm o escopo de seu trabalho em caractersticas que so resultado de seleo natural, porm, sem desconsiderar a existncia de outras que so geradas por outros processos evolutivos.
-
41
Cabe aqui comentar que Dawkins mantm um foco extremamente fechado
nos processos que o interessam. No nega a existncia de outros mecanismos
evolutivos, mas os considera como no sendo significativos evolutivamente quando
no esto em acordo com a sua viso da teoria darwiniana. Nesse sentido que
apresentamos como o autor caracteriza o valor evolutivo de algumas das restries
habitualmente apresentadas perfeio adaptativa das caractersticas de um
organismo.
Segundo Dawkins (1982, p. 32), as mutaes neutras, que induzem
mudanas na estrutura de um polipeptdio sem efeito na atividade enzimtica da
protena, no deveriam ser consideradas mutaes do ponto de vista evolutivo, pois
no geram diferenas fenotpicas. Esse exemplo paradigmtico do tratamento que
Dawkins oferece aos mecanismos evolutivos que no se alinham com sua viso da
evoluo; ele aceita a existncia dos mesmos como fato, mas retira todo o
significado dos mesmos para o processo evolutivo. So processos que ocorrem na
natureza, mas que no podem ser considerados como foras evolutivas.
Dawkins (1982, pp. 35-53) considera como reais restries perfeio das
caractersticas dos organismos somente as condies que esto em acordo com o
que seria a correta concepo de seleo natural. A primeira a defasagem no
tempo [time lag]: existe uma diferena entre o perodo no qual os genes para uma
determinada caracterstica foram selecionados e o tempo atual. Isso claramente
percebido quando a ao humana provoca mudanas rpidas no ambiente e muitos
animais mantm comportamentos que passam a ocorrer como respostas
anacrnicas. O gene depende do contexto para se expressar, se o contexto muda, o
mesmo gene pode ter um efeito diferente. Outro fator que impede que organismos