tessmaria rita spina bueno

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Maria Rita Spina Bueno Níveis de Seleção: uma avaliação a partir da teoria do “gene egoísta” SÃO PAULO 2008

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    Maria Rita Spina Bueno

    Nveis de Seleo: uma avaliao a partir da teoria do

    gene egosta

    SO PAULO 2008

  • Maria Rita Spina Bueno

    Nveis de Seleo: uma avaliao a partir da teoria do

    gene egosta

    Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia sob a orientao do Prof. Dr. Osvaldo Pessoa Jr.

    So Paulo 2008

  • Dem-me um erro frutfero, cheio de sementes,

    brotando com suas prprias correes. Podem

    guardar a sua verdade estril para vocs mesmos.

    Vilfredo Pareto

  • Agradecimentos

    Ao Professor Dr. Osvaldo Frota Pessoa Jr., por sua orientao, incentivo e

    generosidade intelectual. Sua coragem em abordar os temas filosficos de modo to

    amplo tem sido uma fonte de inspirao para mim.

    Aos Professores Drs. Pablo Rubn Mariconda e Diogo Meyer pela

    participao na banca de qualificao de mestrado, com sugestes valiosas para o

    desenvolvimento desta dissertao. Ao Professor Charbel Nio El-Hani pelo envio

    de sugestes bibliogrficas importantes e pela participao na banca.

    Ao Professor Dr. Paulo Otto pelo excelente curso de gentica de populaes.

    Aos colegas e amigos dos departamentos de filosofia e biologia da USP.

    Aos meus grandes amores, Luiz e Julia, que me apiam do princpio ao fim,

    luzes na minha vida.

    A toda minha famlia, por sua unio e amor.

  • RESUMO

    BUENO, M. R. S. Nveis de Seleo: uma avaliao a partir da teoria do gene egosta. 2008. 111 f. Dissertao Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.

    Esta dissertao de mestrado aborda a controvrsia em torno de qual o

    nvel biolgico no qual a seleo natural atua, com nfase na proposta de Richard

    Dawkins do gene egosta e nas questes que surgem em torno da mesma.

    Examina-se um panorama de questes de filosofia da biologia abordadas a partir do

    problema dos nveis nos quais a seleo natural atua. Esperamos que ao avaliar o

    impacto da teoria do gene egosta na problemtica evolutiva, consigamos

    compreender sua importncia. O objetivo deste trabalho filosfico, delineando as

    questes e clarificando alguns termos do debate, sem se propor a tomar partido por

    uma ou outra posio.

    O primeiro captulo apresenta as origens histricas do debate, partindo do

    ponto de vista original de Charles Darwin no qual o indivduo era a entidade

    efetivamente selecionada. Em seguida, buscamos entender como novas questes

    empricas, em especial a busca de explicaes biolgicas para o altrusmo,

    conduziram a propostas de seleo de grupo. No segundo captulo delineamos

    como o desenvolvimento da gentica possibilitou que um novo nvel de seleo

    fosse proposto: o gene, e acompanhamos a exposio de Dawkins sobre o ponto de

    vista do gene egosta, em especial a partir de seus dois livros mais relevantes

    sobre o tema: O gene egosta e O fentipo estendido. O terceiro captulo examina

    diversas aproximaes filosficas no contexto de resposta pergunta: o que uma

    unidade de seleo?. Nosso estudo consistente com a tese de que as foras

    seletivas atuam simultaneamente em diversos nveis.

    PALAVRAS CHAVE: seleo natural, gene egosta, fentipo estendido, Richard

    Dawkins, nveis de seleo, seleo de grupo.

  • ABSTRACT

    BUENO, M. R. S. Levels of Selection: an evaluation from the theory of selfish gene. 2008. 111 f. Thesis (Master Degree ) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.

    This Masters thesis studies the controversy over what is the biological level in

    which natural selection takes place. Emphasis is given to Richard Dawkins proposal

    of the selfish gene and to the issues that arise therefrom, which include many

    questions in the philosophy of biology. We hope that by assessing the impact that

    the theory of the selfish gene has had on the problems of evolution, one may

    understand its importance. The aim of this study is philosophical, raising questions

    and clarifying the terms of the debate, without taking side on one or another position.

    The first chapter presents the historical origins of the debate, starting with the

    original view of Charles Darwin that the individual is the entity that is effectively

    selected. We then set out to understand how new empirical problems, specifically the

    search for biological explanations for altruism, led to proposals of group selection. In

    the second chapter, we depict how the development of genetics allowed that a new

    level of selection be proposed: the gene. We analyze Dawkins exposition of the point

    of view of the selfish gene, especially in the two most important books on the

    subject: The selfish gene and The extended phenotype. The third chapter examines

    several philosophical approaches to the question what is a unit of selection?. Our

    study is consistent with the thesis that selective forces act simultaneously in different

    levels.

    KEYWORDS: natural selection, selfish gene, extended phenotype, Richard Dawkins,

    levels of selection, group selection.

  • SUMRIO

    CAPTULO 1 INTRODUO 1.1 O TEMA ............................................................................................................1 1.2 A TEORIA DE SELEO NATURAL ................................................................3 1.3 NVEIS DE SELEO .......................................................................................8 1.3.1 UM PEQUENO HISTRICO ..........................................................................8 1.3.2 DEFININDO: ALVO, UNIDADE E NVEL DE SELEO .............................13 1.3.3 UM EXEMPLO: O CASO DO CAMUNDONGO Mus musculus ....................15 1.3.4 SELEO INDIVIDUAL ...............................................................................17 1.3.5 SELEO DE GRUPO ................................................................................21 1.4 CONCLUSO .................................................................................................27 CAPTULO 2 EXEGESE DOS LIVROS O GENE EGOSTA E O FENTIPO ESTENDIDO 2.1 UMA INTRODUO AO PONTO DE VISTA GENE-CNTRICO ....................28 2.2 O COMPORTAMENTO ALTRUSTA ...............................................................33 2.3 SELECIONISMO OU DETERMINISMO? .........................................................36 2.4 ADAPTAO ..................................................................................................38 2.5 MANIPULAO ..............................................................................................43 2.6 REPLICADORES E VECULOS ......................................................................46 2.7 APTIDO .........................................................................................................52 2.8 O FENTIPO ESTENDIDO ............................................................................55 2.9 O RESGATE DO INDIVDUO ..........................................................................68 2.10 CONCLUSO CRTICAS TEORIA DO GENE EGOSTA .....................71 CAPTULO 3 INVESTIGAES FILOSFICAS SOBRE O DEBATE EM TORNO DOS NVEIS DE SELEO 3.1 A TAXONOMIA PROPOSTA POR ELIZABETH A. LLOYD ............................75 3.2 REALISMO VERSUS PLURALISMO ..............................................................80 3.2.1 CAUSALIDADE ............................................................................................82 3.2.2 CRTICAS AO REALISMO GENE-CNTRICO DE DAWKINS ....................88 CAPTULO 4 CONCLUSO .................................................................................96 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................101

  • CAPTULO 1 INTRODUO

    1.1. O TEMA

    O ponto em torno do qual articulamos esta dissertao a proposta de

    anlise da teoria da evoluo por seleo natural expressa nos livros de Richard

    Dawkins: O Gene Egosta e O Fentipo Estendido. Embora este trabalho no

    pretenda ser uma anlise destes livros, toma-os como ponto de partida por

    apresentarem um ponto de vista que explicita um conceito que consideramos

    fundamental para a compreenso da teoria da seleo natural: a competio. Outro

    aspecto que nos interessou nos livros, em especial em O Gene Egosta, sua

    postura provocativa, chamar aos homens de mquinas de sobrevivncia de genes

    (DAWKINS, 2001, p. 41) e ainda dizer que [...] a posio, , no fundo, ortodoxa,

    embora expressada de forma no habitual (DAWKINS, 2001, p. 31) no algo

    usual1, sendo, do nosso ponto de vista, bastante instigante. A forma como Dawkins

    efetua sua proposta tambm aponta outra questo relevante em filosofia da biologia:

    o uso da linguagem teleolgica em biologia.

    Alm de ressaltar os pontos acima, almejamos entender a teoria do gene

    egosta e o conceito de fentipo estendido, sempre que possvel em relao ao

    desenvolvimento da biologia experimental. Dawkins desenvolve sua teoria dentro do

    debate relativo aos nveis de seleo, que busca definir qual o nvel biolgico no

    qual a seleo natural atua. Portanto, entendemos ser necessrio pontuar os

    deslocamentos pelos quais esse debate passa durante os sculos XX e incio do

    1 Diogo Meyer ressaltou, durante o processo de qualificao desta dissertao, outro aspecto revelador da postura de Dawkins: sua escolha em publicar seus principais livros fora do sistema de reviso de pares, como obras de divulgao cientfica, que, ainda assim, tiverem um impacto cientfico significativo.

  • 2

    XXI. Visto que os organismos esto arranjados em uma estrutura hierrquica em

    que se podem perceber entidades de vrios nveis (genes, clulas, indivduos,

    grupos e espcies), a questo entender qual a entidade que sobrevive, ou no

    sobrevive, como conseqncia do processo de seleo natural. As caractersticas e

    comportamentos apresentados pelos organismos so a evidncia emprica da

    evoluo, portanto, a compreenso do processo evolutivo pelo qual estas se

    estabeleceram de extrema relevncia. As mesmas normalmente so observadas

    em um determinado nvel de organizao biolgica, contudo, isto no significa que,

    necessariamente, as mesmas tenham surgido a partir da seleo de entidades deste

    mesmo nvel. Um comportamento como o altrusmo, que s observado quando o

    objeto de estudo so grupos de indivduos, pode no ser o resultado de seleo de

    grupos, sendo decorrente de seleo de genes. Portanto, a questo central em torno

    da qual este debate ocorre explicar como surgem as caractersticas e

    comportamentos que os seres vivos apresentam a partir da seleo de entidades em

    diferentes nveis biolgicos de organizao.

    Nossos objetivos neste trabalho so: ressaltar a importncia do conflito como

    um ponto em comum entre a base da teoria darwiniana e o debate sobre nveis de

    seleo e apresentar algumas das contribuies da filosofia da biologia para este

    debate. Daniel Dennett, um filsofo da cincia, afirma que: No existe cincia livre

    de filosofia; existe apenas cincia cuja bagagem filosfica embarcada sem passar

    pela vistoria (1998, p. 21). Clarificar os conceitos e explicitar os pressupostos

    cientficos efetivamente fundamental para uma cincia cujas teorias no se

    baseiam em leis2, mas em conceitos e mecanismos, como o de seleo natural em

    2 Seguimos aqui a posio de Dennett e Mayr. Vale ressaltar que no existe um consenso amplo sobre se a biologia uma cincia baseada em leis. Embora isto seja afirmado por diversos pesquisadores, contestado por vrios outros. Indicamos MAYR (1998, cap.2) como uma boa introduo ao tema.

  • 3

    biologia evolutiva, ou o de recursos e competio em ecologia.

    Embora nossa perspectiva seja da filosofia da biologia, entendemos que

    interessante explicitar brevemente os fundamentos biolgicos da teoria da seleo

    natural, visto que esta dissertao ocorre no mbito da Filosofia, atingindo

    prioritariamente no-bilogos. Em seguida a um sucinto histrico de duas posies

    prvias proposta gene-cntrica de Dawkins, a de seleo individual e a de seleo

    de grupo, tal como formulada em seu incio, apresentaremos a posio de Dawkins.

    Para finalizar, analisaremos algumas das crticas mais comuns tese de Dawkins e

    indicaremos possveis anlises filosficas que podem ser desenvolvidas a partir

    desta temtica.

    1.2. A TEORIA DE SELEO NATURAL

    A validade da evoluo por seleo natural um assunto que tem provocado

    persistentes e apaixonadas controvrsias, reaes que vo do apoio fervoroso at a

    total rejeio. Publicada em 1859, a famosa obra de Charles Darwin, A origem das

    espcies, marcou o incio de uma revoluo nas cincias e de uma profunda reviso

    nas concepes filosficas e religiosas. Para entendermos porque o darwinismo

    mais do que apenas uma referncia em biologia, precisaramos tanto compreender a

    estrutura de pensamento pr-darwiniano bem como alguns fundamentos de sua

    teoria. Por no ser este o foco dessa dissertao, faremos apenas uma

    apresentao bastante sinttica da teoria da evoluo por seleo natural.

    No sculo XIX, a nascente biologia j acumulava muitos fatos interessantes

    sobre os seres vivos, em especial sobre a adaptao dos organismos e sobre a

    diversidade existente da natureza. Os taxonomistas organizavam essa variedade de

  • 4

    maneira que a cada tipo de organismo se combinaria uma essncia, que seria

    definitiva, e, portanto, eterna e imutvel. Segundo Ernst Mayr (1998, p. 290): O

    essencialismo sustenta que a diversidade da natureza, tanto inanimada como

    orgnica, o reflexo de um nmero de universais imutveis. Essa postura

    essencialista e tipolgica era uma das caractersticas do pensamento pr-

    darwiniano, e, em biologia, conduz ao problema de que nenhuma das

    categorizaes propostas conseguia abarcar toda heterogeneidade j conhecida.

    Ainda acompanhando Mayr (1984), o darwinismo representou o incio de um

    contraponto ao pensamento tipolgico, pois sua base o pensamento populacional.

    Se no primeiro a variao entendida como a manifestao imperfeita das

    essncias (ou tipos), no segundo se acentua a unicidade de cada coisa do mundo

    orgnico, fator que fundamental para o entendimento dos fenmenos da seleo

    natural.

    Darwin teve a oportunidade de conhecer e estudar uma enorme diversidade

    de fauna e flora durante a viagem bordo do Beagle. Durante cinco anos, entre

    1831 e 1836, percorreu toda a costa sul-americana, parou nas ilhas Galpagos,

    passou pela Austrlia e depois pelo Sul da frica. Aps seu retorno escreveu alguns

    livros sobre a viagem e comeou a desenvolver uma teoria que explicasse suas

    observaes, teoria esta que foi expressa em sua obra maior: A origem das

    espcies. Nesta, Darwin pretendia duas coisas: provar que as espcies evoluem e

    mostrar como este processo ocorre. A noo de evoluo vinha sendo discutida

    havia vrios anos, mas a compreenso do mecanismo de descendncia com

    modificao e da seleo natural que possibilita a Darwin aprofundar sua pesquisa

    e responder aos indcios que j apontavam para a evoluo das espcies.

    A idia fundamental de Darwin que o processo resultante das condies de

  • 5

    sobrevivncia em tempos de escassez de recursos leva necessariamente a

    indivduos melhor equipados para enfrentar os mesmos problemas. Em seus

    prprios termos:

    Considerando-se que, durante o longo percurso dos tempos e sob variveis condies de vida, os seres vivos modificaram tanto diversas partes de seu organismo - e acho que isso incontestvel; considerando-se que, devido alta tendncia de crescimento geomtrico do nmero das espcies, ocorre uma renhida luta pela sobrevivncia, especialmente em determinada idade, ou determinada estao, ou determinados anos - e isso tambm certamente no tem contestao; conseqentemente, dada a infinita complexidade das inter-relaes dos seres vivos entre si e de cada um deles com suas condies de existncia, acarretando uma diversidade infinita quanto a seus hbitos, estruturas e constituies internas, diversidade essa que lhes proveitosa, penso que seria mesmo extraordinrio se jamais houvesse ocorrido alguma variao til exclusivamente para o bem-estar do ser, da mesma forma que ocorreram tantas variaes teis aos propsitos do homem. Mas se de fato ocorreram variaes teis a qualquer ser vivo, seguramente os indivduos dotados delas tero maior probabilidade de ser preservados na luta pela existncia; e em virtude do forte princpio de hereditariedade, eles tendero a produzir descendentes dotados das mesmas caractersticas. Foi esse este princpio de preservao que, para ser conciso, dei o nome de Seleo Natural (DARWIN, 2002, p.126-127)

    interessante notar como Mayr (1998, cap. 11) apresenta a teoria de Darwin

    a partir de apenas trs inferncias baseadas em cinco fatos:

    Fato 1 todas as espcies possuem grande potencial de fertilidade, sendo que, se

    todos os indivduos nascidos se reproduzissem, o tamanho das populaes

    cresceria exponencialmente,

    Fato 2 o tamanho das populaes normalmente estvel,

    Fato 3 os recursos disposio dessas populaes so limitados e relativamente

    constantes,

    Inferncia 1 Visto que produzido um maior nmero de indivduos do que os

    recursos disponveis podem suportar e que o tamanho das populaes permanece

    estvel, deve haver uma luta pela sobrevivncia, com apenas uma pequena parte da

    prole sobrevivendo,

    Fato 4 existe uma grande variabilidade nas populaes, no existindo indivduos

    que sejam idnticos,

    Fato 5 grande parte da variao entre os indivduos herdvel,

    Inferncia 2 a sobrevivncia no ocorre apenas ao acaso, mas depende em parte

    da constituio hereditria dos indivduos que sobrevivem.

    Inferncia 3 No curso das geraes, esse processo de seleo natural conduzir a

  • 6

    uma mudana gradual e continua das populaes com a evoluo e produo de

    novas espcies.

    Darwin no pretende oferecer uma explicao para a origem da vida ou

    mesmo da primeira espcie; ele inicia seu trabalho considerando a presena de

    muitas espcies como um dado. Entende que o princpio de seleo natural a

    viso unificadora para a gerao de adaptao e de diversidade, ambos sendo

    aspectos diferentes de um nico fenmeno complexo. O que Darwin est propondo

    um rompimento completo com o essencialismo. Ele sugere que um processo

    materialista e temporal, um conjunto de passos sucessivos e sem propsito, pode, e

    efetivamente produz, organismos que exibem algo que parece ser mais que apenas

    regularidade, algo que parece um projeto intencional3. Lewontin (1984) afirma que

    esta a principal mudana que o darwinismo introduz na biologia. Em suas

    palavras:

    [...] a natureza essencial da revoluo darwiniana no nem a introduo do evolucionismo como uma viso de mundo (j que historicamente este no o caso), nem a nfase na seleo natural como a principal fora na evoluo (visto que empiricamente este pode no ser o caso), mas sim a substituio de uma viso metafsica da variao entre os organismos por uma viso materialista (1984, p. 4).

    Aps a morte de Darwin, em 1882, vrias correntes se formaram na biologia,

    com o darwinismo experimentando um certo ocaso. A redescoberta das leis de

    Mendel, em 1900, polarizou as discusses em dois campos: os mendelianos contra

    os naturalistas. Os ltimos se interessavam pela diversidade enquanto os

    geneticistas mendelianos buscavam explicar a transformao a partir do foco nos

    genes e suas caractersticas associadas. Segundo Ernst Mayr (1998), apenas a

    partir de uma nova gerao de geneticistas, entre 1936 e 1947, foi possvel uma

    sntese entre estas duas tradies de pesquisa, possibilitando o estabelecimento de

    3 Seguimos aqui a concepo apresentada por Dennett (1998), que a desenvolve a partir de dois pontos: a concepo da atuao da seleo natural como equivalente a um algoritmo (cap. 2.5) e o princpio de acumulao de projeto [design] (cap. 3). Embora muito interessante, a discusso destes conceitos ultrapassa o escopo desta dissertao.

  • 7

    uma base comum biologia, afirmando o gradualismo da evoluo e robustecendo o

    pensamento populacional.

    Em resumo4, a proposta de evoluo por seleo natural da sntese neo-

    darwiniana pode ser entendida a partir dos seguintes atributos apresentados pelos

    organismos: herdabilidade das caractersticas dentro de uma histria populacional,

    variao individual nas caractersticas, tendncia dos organismos em aumentar seu

    nmero exponencialmente com a conseqente competio por recursos limitados

    em um ambiente em constante mudana. Dadas estas condies, segue-se uma

    alta probabilidade de que alguma variao em uma caracterstica torne seu

    possuidor mais bem adaptado e que este tenha uma maior chance de sobrevivncia

    e assim tenda a deixar um nmero proporcionalmente maior de descendentes com a

    mesma variao nas geraes seguintes. Em resumo, qualquer entidade que

    apresente variao, reproduo e herdabilidade pode evoluir. Esse o modelo

    causal que explicaria a fixao de certas caractersticas vantajosas nas populaes.

    A nova sntese resolveu uma srie de problemas em biologia, possibilitando

    um novo significado para conceitos como evoluo e espcie, e criando novas

    possibilidades para entendermos como os fenmenos evolutivos efetivamente

    operam nos casos individuais.

    4 Seguindo a exposio de James Lennox (1992).

  • 8

    1.3. NVEIS DE SELEO

    1.3.1. UM PEQUENO HISTRICO

    O tema Nveis de Seleo tem sido objeto de estudo em biologia evolutiva

    praticamente desde que Darwin publicou sua teoria da evoluo por seleo natural.

    A posterior composio entre a teoria original darwiniana com a nova compreenso

    dos fenmenos da hereditariedade, aliada progressiva sofisticao das anlises

    em etologia (disciplina que estuda o comportamento individual e social dos animais)

    e ao novo tratamento das questes biolgicas, levou a um aumento significativo no

    grau de relevncia do tpico nveis de seleo em filosofia da biologia. Um nmero

    expressivo de pesquisadores, tanto bilogos quanto filsofos, tem se dedicado ao

    mesmo, produzindo uma bibliografia bastante abrangente.

    A questo bsica que se coloca neste debate relativa ao nvel biolgico no

    qual a seleo natural opera, e neste sentido que podemos entender os motivos

    que levaram importantes bilogos a considerarem-no relevante para a soluo de

    questes empricas e metodolgicas no contexto da Biologia Evolutiva. Por tratar

    diretamente com a base causal da teoria de evoluo e com seus conceitos

    fundamentais, as anlises efetuadas levaram ao desenvolvimento de um

    instrumental conceitual bastante amplo, no s em relao a conceitos biolgicos,

    como aptido e adaptao, mas tambm em relao a questes tipicamente

    filosficas, tais como causalidade, realismo e reducionismo.

    Como vimos at agora, para o darwinismo a competio constitutiva do

    mundo vivo, ocorrendo prioritariamente entre organismos. A evoluo operaria

  • 9

    favorecendo, ou desfavorecendo, estes e no entidades de nvel superior, tais como

    grupos, espcies ou ecossistemas. Naturalmente, por desconhecer os mecanismos

    de hereditariedade, Darwin nem cogitava a possibilidade de seleo em nveis mais

    baixos. Portanto, inicialmente o indivduo era considerado como o nico objeto de

    seleo. Com o desenvolvimento da biologia, em especial da gentica e da etologia,

    este foco no indivduo passou a ser questionado, com a suposio da existncia de

    seleo tanto em nveis superiores como inferiores.

    Historicamente, foi a impossibilidade de explicar alguns comportamentos

    observados em animais apenas pela seleo individual que levou aos primeiros

    questionamentos sobre se o indivduo era o nico nvel de seleo possvel.

    Segundo Elliott Sober e David Sloan Wilson (1994), a necessidade de se definir a

    unidade de seleo entre o organismo e o grupo surge quando se procura explicar o

    altrusmo. Entendemos que o conceito de luta pela sobrevivncia traz consigo a

    percepo de que o comportamento egosta seria sempre o esperado. O fato de o

    comportamento altrusta5, entendido como aquele cujo efeito aumenta as

    expectativas de sobrevivncia de outro s custas da diminuio de suas prprias,

    ser to comum na natureza que necessitaria, portanto, de uma explicao. Se a

    nica unidade de seleo fosse o organismo, seria de se esperar que no houvesse

    a evoluo de traos altrustas. Passou-se a postular que haveria no mnimo um

    nvel superior no qual a seleo natural poderia operar: o grupo. O pressuposto

    bsico desta proposta que o grupo como um todo se beneficiaria quando um

    indivduo altrusta se encontrasse no mesmo. Apresentando um exemplo: em vrias

    espcies de pssaros ocorre um comportamento conhecido como gritos de alarme,

    que basicamente a emisso de um aviso por um dos pssaros quando este

    5 Segundo WRIGHT (1980), o uso do termo altrusta, no contexto biolgico aqui apresentado, foi introduzido por J.B.S. Haldane em 1932, no livro The Causes of Evolution.

  • 10

    percebe a presena de um predador. Com isso, o bando todo busca um refgio, mas

    o passaro que gritou pode atrair o predador para si. A explicao para a evoluo

    deste comportamento por seleo de grupo afirma que o mesmo pode estabelecer-

    se apesar de o pssaro que emite o aviso ter suas chances de sobrevivncia e

    reproduo diminudas, pois o comportamento favorece os demais membros do

    grupo. Eric Charnov e John Krebs (1975) apresentam o argumento desenvolvido por

    Roberto L. Trivers no artigo The Evolution of Reciprocal Altruism de 1971 da

    seguinte maneira: Ele [Trivers] argumenta que mesmo que o pssaro sentinela

    [caller] se coloque em um maior perigo imediato, os gritos de alarme podem evoluir

    se os falces forem menos efetivos em, ou tenham menor tendncia a iniciar,

    ataques a grupos com sentinelas [callers] (p. 108). A presena do sentinela

    aumentaria a aptido (conceito que mede a taxa de reproduo diferencial) de todos

    os indivduos do grupo, portanto, grupos com uma pequena quantidade de

    sentinelas evoluem.

    Este exemplo tambm nos ajuda a perceber que embora muitas vezes no

    haja perdas explicativas quando se aplica a concepo de seleo de grupo a um

    determinado comportamento, a explicao ao nvel do indivduo tende a ser mais

    parcimoniosa6. No caso, o comportamento dos pssaros que emitem gritos de

    alarme poderia ser explicado de forma mais simples considerando-se que a aptido

    do sentinela no diminui com a emisso do alarme, ao contrrio, este pssaro

    encontra-se em uma posio privilegiada, pois sabe exatamente a localizao do

    predador. Ao gritar, gera um movimento no bando que atrai a ateno do predador,

    aumentando a sua prpria possibilidade de encontrar um refgio melhor. Ambas as

    explicaes so possveis, mas a segunda apresenta a vantagem de invocar uma 6 O princpio de parcimnia afirma que em face de mais de uma explicao para um dado fenmeno, devemos adotar a mais simples. Portanto, estamos usando parcimonioso como sinnimo (ou quase) de simplicidade.

  • 11

    menor quantidade de mecanismos para explicar o mesmo fato.

    Se a etologia foi a disciplina que impulsionou tanto a proposta de seleo

    individual quanto a de seleo de grupo, foi o desenvolvimento da gentica que

    levou admisso de uma nova unidade de seleo: o gene. Segundo Richard D.

    Alexander e Gerald Borgia (1978), esta proposta ganha ateno a partir dos

    trabalhos de William D. Hamilton, saindo fortalecida por refletir a tendncia atomista

    dos geneticistas de populaes. A partir da teoria do gene egosta, proposta por

    Dawkins em 1976, o debate se intensificou, incluindo pelo menos trs nveis: gene,

    indivduo e grupo. Novos conceitos se tornam necessrios para a melhor

    compreenso do tema, e Dawkins cria os termos replicadores e veculos,

    afirmando que quando se trata de unidades de seleo a nfase deveria ser apenas

    sobre os replicadores. No livro O Gene Egosta, encontramos as primeiras

    definies do conceito de replicador, como um tipo de entidade que [...] possua a

    propriedade extraordinria de ser capaz de criar cpias de si mesma (DAWKINS,

    2001, p. 13), e do conceito de veculo como mquinas de sobrevivncia

    construdas pelos replicadores. David Hull (1980) considera que estes conceitos so

    importantes, mas precisam ser modificados, e prope o conceito de replicador como

    qualquer entidade que transmite sua estrutura diretamente por meio da replicao,

    de interagente para as entidades que interagem com o ambiente, como um todo

    coeso, de tal forma que influenciam sua prpria capacidade de sobrevivncia e

    reproduo, e de linhagem para o conjunto de organismos conectados pelos

    processos de reproduo e seleo, ou seja, as entidades efetivamente em ao na

    evoluo darwiniana. Esses conceitos foram considerados to relevantes que Robert

    Brandon prope a distino entre os debates: unidades de seleo quando se trata

    de replicadores e nveis de seleo quando o foco so os interagentes.

  • 12

    Embora grande parte deste debate tenha se dado durante os anos 1980,

    tendo atingido uma espcie de impasse no incio dos anos 1990, o assunto no foi

    abandonado. Surgem novas modelagens do processo de seleo natural que

    sugerem um modelo hierrquico, no qual as foras seletivas atuam simultaneamente

    em vrios nveis. Este modelo tem sido defendido por uma corrente importante de

    filsofos, do qual podemos destacar nomes como os de Sober e Wilson. Seguindo a

    exposio de Laurent Keller (1999), entendemos que o debate sobre nveis de

    seleo continua produzindo resultados empricos e metodolgicos relevantes, os

    quais tm sido atualmente usados por vrios bilogos na avaliao do

    desenvolvimento da hierarquia existente no mundo biolgico. Keller afirma que os

    dois assuntos que despertam mais interesse nos centros de pesquisa multinvel

    buscam respostas s seguintes questes: (1) Como a seleo natural entre

    veculos biolgicos de nveis inferiores cria veculos de nvel superior, e (2) dado que

    existem mltiplos nveis de veculos, como a seleo natural em um nvel afeta a

    seleo em nveis inferiores ou superiores (p. 7). Keller prope uma analogia com a

    fsica de partculas, entendendo os veculos de nvel superior como sendo

    compostos de veculos de nvel inferior. Cada um destes veculos experimenta

    foras evolutivas bipolares de atrao e repulso, a primeira significando a tendncia

    cooperao entre parceiros de mesmo nvel, e a segunda refletindo a competio

    entre os mesmos. Alm destas duas foras, ainda atuaria no sistema uma fora

    centrfuga, representando a aptido de um veculo que deixa o grupo. Este modelo

    permitira responder as duas questes acima propostas, a partir de pontos

    levantados pela pesquisa emprica. Por exemplo, no estudo da origem da vida seria

    relevante a definio de quais foras evolutivas de atrao ligam veculos de nvel

    inferior (pedaos de DNA, cromossomos ou clulas) em veculos intermedirios

  • 13

    (organismos multicelulares). Conceitos usuais em biologia, como a vantagem do

    maior tamanho e diviso de trabalho, poderiam ser descritos atravs da interao

    de foras proposta neste modelo. Da mesma maneira, a compreenso de como os

    veculos intermedirios se agrupam em veculos de nvel superior (grupos sociais)

    poderia ser descrita nos termos deste modelo. Por exemplo, a necessidade de

    encontro de um parceiro em espcies sexuais poderia ser descrita em termos de

    foras de atrao temporrias. Outro ponto interessante que podemos ressaltar

    que, neste modelo, a atuao das foras de atrao, repulso e centrfuga nas

    entidades de nvel inferior que moldaria as propriedades dos veculos

    intermedirios. Assim, a separao das linhagens de clulas reprodutivas do

    restante das clulas do organismo, considerada como uma etapa importante para o

    desenvolvimento da individualidade, poderia ser entendida como um mecanismo de

    reduo das foras repulsivas, j que torna necessria a integridade do organismo

    para a reproduo.

    1.3.2. DEFININDO: ALVO, UNIDADE E NVEL DE SELEO

    Na seo anterior apresentamos um histrico do debate em torno do tema

    nveis de seleo, enfatizando a questo central do mesmo: a definio do nvel

    biolgico no qual a seleo natural atua. Para tanto, referimo-nos distino entre

    unidades de seleo e nveis de seleo, porm, sem explicitar a definio destes

    termos, o que procuraremos fazer nesta seo a partir da exposio de Templeton

    (2006).

    Templeton introduz a distino entre unidades e alvos de seleo a partir do

    conceito de unicidade do gentipo, que foi desenvolvido originalmente por Mayr e

  • 14

    corresponde afirmao de que o indivduo deve ser considerado como um todo,

    no podendo ser divisvel nos genes que o compem. Mayr afirma que o indivduo

    que vive ou morre, se acasala ou no, frtil ou estril. Em outros termos,

    apenas o indivduo que tem visibilidade quando a questo em foco a atuao da

    seleo natural e, neste sentido, o gentipo teria uma unicidade com o indivduo

    devendo ser considerado como o nico alvo de seleo. Esta afirmao

    interessante, porm, encerra um problema j que os indivduos que apresentam

    reproduo sexuada geram descendentes com um gentipo diferente e

    posteriormente morrem, portanto, no existe uma continuidade dos gentipos ao

    longo do tempo. Esta constatao levou Mayr a postular que o indivduo seria o alvo

    de seleo, mas no a unidade que permanece e responde evoluo. Partindo

    desta afirmao, Templeton define unidade de seleo como o nvel de

    organizao gentica que permite a previso da resposta gentica seleo (2006,

    p. 408), e alvo de seleo como o nvel de organizao biolgica que exibe o

    fentipo sob seleo (2006, p. 409). Para que o processo seletivo seja visto de

    forma integral, seriam necessrios ambos os conceitos, e neste sentido que ele

    afirma: A unidade de seleo sempre algum nvel de organizao gentica

    recorrente no espao e no tempo. O alvo de seleo algum nvel de organizao

    biolgica que exibe um fentipo que influencia a probabilidade da recorrncia da

    unidade de seleo no tempo e no espao (TEMPLETON, 2006, p. 409).

    As distines acima apresentadas nos parecem condizentes com a proposta

    de Brandon de classificao do debate sobre nveis de seleo, que apresentamos

    na seo anterior. Brandon avalia que os conceitos de replicador e interagente,

    propostos por Hull, so fundamentais para o entendimento dos nveis de seleo,

    enquanto Templeton afirma a necessidade da distino entre unidade e alvo de

  • 15

    selo. Consideramos que, em certa medida, estes conceitos apresentam uma

    equivalncia, pois em biologia os genes so os replicadores por excelncia, sendo o

    foco quando o debate sobre unidades de seleo. J quando o debate ocorre em

    torno do nvel de organizao biolgica que efetivamente responde seleo, o foco

    a ser considerado so os interagentes, os prprios alvos de seleo.

    1.3.3. UM EXEMPLO - O CASO DO CAMUNDONGO Mus musculus

    Embora estejamos apresentando este trabalho a partir do ponto de vista da

    seleo gene-cntrica, para entendermos melhor o escopo do debate aqui proposto

    interessante apresentarmos um caso no qual a questo dos nveis de seleo tem

    relevncia explicativa, sendo necessrio invocar a atuao da seleo natural em

    vrios nveis para explicar o fenmeno observado. Aproveitamos tambm para

    explicar alguns termos e processos genticos, que consideramos necessrios para o

    entendimento da teoria do gene egosta.

    O caso que escolhemos o dos camundongos Mus musculus, conforme

    estudados por Richard C. Lewontin e Leslie Dunn (1960)7. Estes camundongos

    vivem em pequenos grupos (demes), com o cruzamento entre machos e fmeas

    ocorrendo apenas entre membros do mesmo grupo.

    Normalmente, nos organismos diplides, isto , que carregam os

    cromossomos ao pares, a formao dos gametas atende ao que se conhece por

    justia da meiose. Ou seja, durante o processo de meiose, os cromossomos se

    separam com a distribuio de cada cromossomo do par homlogo para as clulas

    sexuais em proporo igual. Cada um dos cromossomos carrega uma srie de

    7 Ver TEMPLETON (2006, p. 422-424) para uma apresentao rigorosa do mesmo exemplo a partir dos conceitos de gentica de populaes.

  • 16

    genes, que podem se apresentar em mais de uma forma alternativa (alelo). O par de

    cromossomos pode conter o mesmo alelo de um gene, caso em que o organismo

    considerado homozigoto para aquele gene, ou alelos diferentes, caso em que o

    organismo heterozigoto. Apesar da diviso equitativa dos cromossomos com seus

    respectivos alelos ser o padro, existem casos nos quais esta regra subvertida e

    um dos alelos do gene tem uma representao maior do que os cinqenta por cento

    esperados aps a diviso meitica. Nestes casos, considera-se que o alelo que

    possui esta maior representatividade um alelo distorcedor da segregao da

    meiose.

    A anlise gentica dos camundongos Mus musculus mostra que eles

    apresentam um alelo em uma proporo diferente da esperada no processo normal

    de meiose. Eles possuem um gene que apresenta um t-alelo, isto , um distorcedor

    da segregao na meiose. No caso dos camundongos machos heterozigotos, que

    contm dois alelos distintos, quando um deles o t-alelo, a proporo de

    espermatozides contendo o mesmo de 85 por cento, em vez dos 50 por cento

    usualmente esperados. Isto nos levaria a considerar uma forte presso seletiva

    favorvel a cromossomos que contenham o t-alelo. Porm, este no o nico efeito

    do t-alelo, pois os machos que o possuem nos dois cromossomos so estreis.

    Neste caso poderamos entender uma forte presso seletiva contrria aos

    organismos que contenham o t-alelo. Em resumo, machos heterozigotos para o t-

    alelo produzem mais espermatozides contendo o t-alelo e machos homozigotos

    para o t-alelo no produzem nenhum.

    A partir destes dois processos contrrios, Lewontin e Dunn efetuaram uma

    previso da freqncia que o t-alelo teria na natureza. Porm, a freqncia real se

    mostrou bem mais baixa que a prevista, o que indicava a ao de uma terceira fora.

  • 17

    Para encontrar a mesma, foi necessrio entender a estrutura populacional dos

    grupos desta espcie. Como j vimos, os camundongos se organizam em pequenos

    grupos, com cruzamento apenas interno. Grupos em que ocorrem machos

    heterozigotos devem possuir um alto nmero de fmeas que possuem o t-alelo,

    recebido a partir de seu pai, e tambm um nmero de machos homozigotos e

    estreis. Novos grupos so formados e no caso das fmeas pertencerem a grupos

    nos quais todos os machos so homozigotos para o t-alelo, elas no tm filhotes, o

    que, com o tempo, leva o grupo extino. Ou seja, a aptido, conceito que mede a

    taxa de reproduo diferencial, das fmeas dependeria no apenas de seu gentipo,

    mas tambm do grupo ao qual pertencem, o qual tem um papel determinante sobre

    a aptido. Isto explicaria o fato de a freqncia do t-alelo ser menor na natureza do

    que na previso inicial. Neste caso, haveria uma conjugao de trs foras seletivas

    agindo em duas direes: a seleo cromossmica favorecendo o t-alelo e a seleo

    individual e de grupo desfavorecendo o mesmo.

    1.3.4. SELEO INDIVIDUAL

    A teoria de evoluo por seleo natural propiciou um novo campo explicativo

    para a presena de determinadas caractersticas nos seres vivos e para as causas

    de seu comportamento. uma teoria causal, na qual as caractersticas e

    comportamentos podem ser entendidos a partir de dois tipos de explicaes vlidas,

    que postulam causas prximas ou causas remotas. As primeiras permitem avaliar

    como os seres vivos operam, sendo baseadas em estudos nos campos da etologia,

    anatomia e fisiologia. As causas remotas so as evolutivas, que passaram a ser

    compreendidas a partir da teoria de evoluo darwiniana. FERREIRA (2003)

  • 18

    apresenta um exemplo interessante, no qual podemos distinguir estes dois tipos de

    respostas, ambas apresentadas questo de por que uma determinada ave inicia

    seu processo migratrio. A resposta que aplica causas prximas explicar que o

    menor perodo de luz solar desencadeia uma resposta hormonal e neurolgica na

    ave, que inicia a migrao. A outra resposta possvel prope uma explicao deste

    comportamento como sendo o resultado de um processo evolutivo no qual a ave

    adaptou-se disponibilidade sazonal de alimento, com as populaes que, por

    mutao, desenvolveram o comportamento hereditrio de migrar tendo uma maior

    viabilidade, com a conseqente fixao do trao. Sober (1998, p. 482) afirma que a

    distino entre causas prximas e causas evolutivas nas explicaes biolgicas

    uma ferramenta interessante para entendermos a aparncia de projeto [design] na

    natureza: O desenho [design] dos sistemas explicado pela evoluo por seleo

    natural ao longo do tempo, enquanto seu funcionamento particular explicado por

    condies locais.

    Segundo Lewontin (1970), a teoria de Darwin geral e propicia um sistema

    preditivo para explicar mudanas em todos os nveis da organizao biolgica.

    Como j vimos (seo 1.2), qualquer entidade que apresente variao, reproduo e

    herdabilidade pode evoluir. Para que a evoluo ocorra por seleo natural

    necessrio que essas estejam presentes na forma de variao fenotpica, aptido

    diferencial e hereditariedade da aptido, o que ocorre com os seres vivos. O fato de

    Darwin ter apresentado suas posies a partir de uma anlise centrada em

    indivduos no invalida que a teoria seja aplicada a todos os nveis de organizao

    biolgica, pois os princpios da teoria permitem que a mesma seja ampliada. Para a

    compreenso da seleo como um mecanismo causal necessrio determinar qual

    a unidade na qual a mesma opera. Lewontin entende que se pode aplicar o conceito

  • 19

    de seleo individual sempre que apenas o conhecimento do gentipo do indivduo e

    das variveis ambientais relevantes seja suficiente para a compreenso do

    processo. Ele afirma que, embora no seja aplicvel a todos os casos, o teorema de

    Fisher para seleo natural, que declara que a taxa de mudana adaptativa de uma

    populao em um dado perodo limitada quantidade de variao gentica

    presente nas unidades que esto sendo selecionadas, tem duas conseqncias

    importantes quando o assunto so nveis de seleo. A primeira que a rapidez de

    resposta s presses seletivas depende da herdabilidade das diferenas em

    aptido, herdabilidade que tanto mais alta quanto mais baixo nos nveis de

    organizao biolgica a unidade se encontra; uma clula tem um nvel de

    herdabilidade maior que um organismo, pois no h mudanas entre essa e suas

    clulas descendentes. A segunda conseqncia que a taxa de evoluo

    dependente da taxa de reproduo e mortalidade, ou seja, o tempo do ciclo de vida

    da unidade selecionada relevante. Isto, aliado ao fato de serem os organismos que

    percebemos estar em processo evolutivo, fez com que a resposta mais imediata

    para a questo da determinao do nvel no qual a seleo natural atua fosse o

    indivduo; estes seriam, portanto, os focos de atuao da seleo. Essa foi

    realmente a primeira resposta que se teve relativamente questo da unidade foco

    de seleo. Segundo Stephen Jay Gould (1984), para Darwin toda seleo se daria

    no nvel do indivduo. A centralidade do conceito de luta pela sobrevivncia para a

    teoria darwiniana e o fato desta ocorrer diretamente entre organismos o levou a

    concluir que a evoluo beneficia ou prejudica os indivduos e no entidades de

    nvel superior, tais como espcies ou ecossistemas. Naturalmente, por desconhecer

    os mecanismos de hereditariedade, Darwin nem cogitava na possibilidade de

    seleo em nveis mais baixos que o organismo, efetuando uma relao direta entre

  • 20

    o indivduo e a luta pela sobrevivncia, como podemos perceber no seguinte trecho:

    Em relao ao que ocorre na natureza, absolutamente necessrio termos em mente as seguintes consideraes: nunca nos esquecermos de que todo ser organizado que vive em torno de ns se esfora ao mximo, por assim dizer, para crescer e multiplicar-se; que cada um, pelo menos em determinados perodos de sua vida, tem de lutar para sobreviver; que uma destruio considervel inevitavelmente incide sobre os mais jovens ou sobre os mais velhos, seja em cada gerao, seja a intervalos peridicos (DARWIN, 2002, p. 83).

    O fato de serem sempre indivduos que interagem com o meio ambiente e

    que produzem descendncia diferencial conduziu Darwin postulao do indivduo

    como sendo a unidade de seleo fundamental; o que no significou que deixasse

    totalmente de considerar a possibilidade da existncia de algum mecanismo de

    seleo de grupo relevante para o desenvolvimento de comportamentos sociais

    complexos tais como o altrusmo. Embora este tpico no seja desenvolvido no livro

    A Origem das Espcies, podemos v-lo indicado: Nos animais gregrios, [a seleo

    natural] adapta a estrutura de cada indivduo em prol da comunidade; cada qual,

    conseqentemente, beneficiado pela modificao adquirida (DARWIN, 2002, p.

    100).

    Esta posio monoltica no se manteve, e o debate em torno da existncia e

    amplitude das unidades de seleo tomou corpo. O desenvolvimento da biologia, em

    especial da gentica e da etologia, levou a questionamentos relativos relevncia

    da unicidade do foco no indivduo e a suposies sobre a existncia de seleo

    tanto em nveis superiores como inferiores ao do organismo. Historicamente, a

    primeira alternativa a ser vista com uma possvel unidade de seleo foi o grupo,

    porm, questes bastante prximas induziram proposio da seleo gnica em

    um curto espao de tempo. A existncia de comportamentos altrustas entre os

    animais e a dificuldade de explicao por meio de seleo apenas no nvel do

    indivduo foi um forte motivador da busca por mecanismos de seleo em outros

    nveis. A fundao da etologia na dcada de 1930 por Konrad Lorenz, Niko

  • 21

    Tinbergen e Karl von Frisch e o desenvolvimento da teoria neodarwinista a partir de

    1960 foram essenciais aos questionamentos da seleo individual como o nico

    nvel de seleo. Estudos do comportamento animal, vistos agora como relativos

    evoluo, apresentaram tantos problemas que parecia necessrio postular outro

    nvel de seleo. Isto, aliado ao fato da especiao ser considerada como uma

    conseqncia do processo de seleo natural, levou incluso da espcie como

    sendo relevante para o mecanismo de seleo natural, e, portanto, atuando como

    um nvel de seleo. O estudo de diversos casos nos quais os indivduos

    apresentavam um comportamento altrusta provocou novas abordagens, em

    especial as de seleo de grupo e de parentesco. Segundo essas abordagens,

    como traos altrustas so ruins para o indivduo e bons para o grupo, se o nico

    nvel de seleo fosse o organismo no haveria a evoluo de traos altrustas.

    Apesar de todos esses desenvolvimentos e novas propostas, a seleo individual se

    mantm at os anos 1990 como a resposta padro para a maioria dos

    pesquisadores.

    1.3.5. SELEO DE GRUPO

    O bilogo Vero C. Wynne-Edwards foi um dos primeiros defensores da

    possibilidade de seleo de grupo. Em seu livro Animal Dispersion in Relation to

    Social Behavior, de 1962, usa o fato de que em muitas espcies o tamanho das

    populaes parece ser auto-regulado como base para postular a atuao da seleo

    em nvel do grupo, afastando-se do tratamento usual que considerava as restries

    externas como a melhor explicao para essa constncia. Wynne-Edwards afirma

    que haveria um comportamento altrusta dos indivduos em favor do grupo, o qual

  • 22

    seria a unidade que efetivamente sobreviveria. Esta teoria foi bastante criticada.

    Cassidy (1978, p. 578) considera que as primeiras crticas teoria de seleo de

    grupo se constroem a partir de trs pontos: sua incapacidade para suportar a

    tradio anterior, a afirmao que as suposies empricas nas quais esta teoria se

    baseia serem provavelmente falsas e que a mesma seria suprflua. No nossa

    inteno explicitar estes pontos em cada uma das criticas que vamos apresentar,

    mas procuraremos indicar os mesmos. Alm disto, grande parte das crticas est

    posta a partir do argumento de que a seleo interna s populaes bem mais

    intensa do que entre populaes diferentes. interessante notar que este

    argumento tem sua base em alguns dos conceitos fundamentais da teoria de

    seleo natural, estando em plena sintonia com o teorema de Fisher e com as

    conseqncias que Lewontin apresenta para o mesmo (ver seo 1.3.4). Se

    utilizarmos a classificao acima apresentada por Cassidy, diramos que esta

    posio parte do ponto de que a seleo de grupo, em alguma medida, no daria

    suporte a tradio darwinista.

    Para George C. Williams, no livro Adaptation and Natural Selection, de 1966,

    o critrio de parcimnia tem um papel significativo na rejeio da seleo de grupo,

    ou, nos termos de Cassidy, afirma que o conceito de seleo de grupo seria

    suprfluo. Williams apresenta explicaes alternativas, no nvel de seleo

    individual, para cada um dos exemplos de Wynne-Edwards, afirmando que a

    possibilidade de uma explicao mais simples, que necessita de menos nveis

    explicativos, tornaria desnecessria a postulao da seleo de grupo. A morte por

    senescncia, por exemplo, no precisa ser considerada como uma caracterstica

    que garante a manuteno de recursos para a populao, mas simplesmente como

    o resultado da seleo de indivduos que alcanam a idade reprodutiva mais cedo.

  • 23

    Os seres vivos morrem no somente em decorrncia de fatores ambientais ou

    doenas, pois a decadncia biolgica parte de seu desenvolvimento normal.

    Segundo Nesse (1988), existem dois tipos principais de explicao evolutiva para a

    morte por senescncia. A primeira seria que os genes que regulam esta

    caracterstica nunca foram sujeitos a presso seletiva, visto que afetam a aptido

    somente em uma idade posterior reprodutiva. A segunda explicao afirma que os

    genes que respondem pela senescncia foram selecionados a favor devido a seus

    efeitos positivos na aptido dos indivduos quando jovens, com a senescncia sendo

    o resultado de efeitos pleiotrpicos (mltiplos) destes genes em uma idade mais

    avanada. Esta segunda a proposta de Williams, que a considera mais

    parcimoniosa, pois para a mesma necessrio apenas um nvel explicativo, com a

    seleo individual respondendo integralmente pela evoluo desta caracterstica.

    Tambm outros comportamentos, como os gritos de alarme8 e o cuidado maternal,

    seriam mais bem explicados por seleo de parentesco, um tipo de seleo

    individual no qual o grau de relacionamento gentico entre dois indivduos

    relevante, pois um gene que apresentar, como um de seus efeitos, o aumento das

    chances de sobrevivncia de suas cpias em algum parente poder ser selecionado

    positivamente. Alm destes, Williams apresenta outro argumento baseado no

    mesmo tipo de sistematizao dos princpios de seleo natural efetuado por

    Lewontin, afirmando que a variao gnica normalmente sofre maior influncia do

    nvel mais baixo, no caso, o indivduo, o que confirmaria no haver a necessidade de

    se considerar a seleo de grupo como um fator preponderante para a seleo.

    Hull (1980) tambm critica a posio de Wynne-Edwards, a partir de um ponto

    diferente, argumentando que ele efetuou uma escolha inapropriada de seu caso

    8 Detalhamos este conceito na seo 1.3.1.

  • 24

    central de estudo, a auto-regulao de tamanho nas populaes, isto apesar de ter o

    tipo de grupo correto em mente, que so os grupos com alto nvel de organizao

    que exibam caractersticas prprias. A importncia desse tipo de grupo no teria

    sido corretamente entendida por muitos pesquisadores posteriores, que trataram

    como grupos passveis de seleo a qualquer grupo de indivduos espacialmente

    prximos. Ainda assim, Hull assume a inexistncia da seleo de grupo, pois:

    Qualquer coisa que possua as caractersticas necessrias para ser selecionado no

    mesmo sentido no qual organismos so selecionados tem as caractersticas

    necessrias para ser tratado como um indivduo e no como um grupo ( HULL,

    1980, p. 313). Para Hull, uma boa definio de indivduo desmonta a postulao de

    seleo de grupo.9

    Embora estas sejam crticas importantes e vrios pesquisadores, como

    Elisabeth Lloyd (2001), afirmem que a posio mais aceita atualmente que as

    condies para a ocorrncia de seleo de grupo so bastante restritas, sendo raras

    na natureza, o conceito de seleo de grupo no deixou de ser considerado como

    um possvel campo explicativo. Alexander e Borgia (1978), por exemplo, consideram

    que: At o ponto em que a seleo de grupo significa simplesmente a ocorrncia de

    extino (ou reproduo) diferencial de grupos de indivduos, nenhum bilogo

    negaria sua existncia (p. 450). Mesmo nesses termos, as condies para que a

    seleo de grupo ocorra seriam empiricamente incomuns, pois os grupos em

    questo deveriam ser prximos o suficiente para repor os grupos extintos, mantendo

    ao mesmo tempo a independncia necessria para que exista a possibilidade da

    ocorrncia de diferentes caractersticas em cada grupo. Portanto, para esses

    autores, a questo da relevncia da seleo de grupo para a modelagem de 9 A definio do conceito de indivduo de grande relevncia para o tema nveis de seleo. Apesar disso, decidimos no desenvolver a mesma nesta dissertao, por no ser uma questo central quando o foco o gene egosta.

  • 25

    caractersticas individuais permanece, com a modelagem de grupos que apresentam

    este tipo de estrutura populacional e sua posterior busca na natureza se

    apresentando como um dos poucos caminhos de anlise das possibilidades da

    seleo de grupo que poderiam ser empreendidos. Argumentam que, de qualquer

    forma, a continuidade dessa anlise estaria justificada, pois a estrutura e

    organizao dos sistemas na qual a vida se apresenta parece ser resultado da

    seleo operando em diferentes nveis hierrquicos. Seria possvel uma viso

    expandida de seleo de grupo que considerasse que [...] as interaes entre

    entidades de todos os nveis na hierarquia dos sistemas vivos podem ser

    consideradas em termos de sua contribuio para os padres de reproduo

    (ALEXANDER & BORGIA, 1978, p. 455). A seleo gnica ou individual poderia ser

    a responsvel por estabelecer os grupos e espcies existentes, mas sua

    permanncia ou extino se daria por seleo de grupo. Alexander e Borgia no

    aceitam a afirmao de Dawkins de que espcies no so replicadores; para eles,

    espcies se multiplicam e do origem a novas espcies, podendo ser consideradas

    como replicadores.

    Sober (1984) procura demonstrar que a anlise fundamental a ser feita no

    deveria buscar explicar a baixa ocorrncia da seleo de grupo na natureza, mas

    mostrar que a controvrsia existente seria um dos sinais da indeterminao do

    conceito de seleo de grupo. Ele ir, ento, procurar uma nova proposta para o

    mesmo, inicialmente examinando alguns dos conceitos aceitos por ambos os lados

    da disputa para posteriormente desmontar algumas de suas aparentes

    conseqncias. O primeiro ponto a apresentar uma concordncia ampla so os

    requisitos aceitos por todos para que a seleo natural possa atuar: necessrio

    que exista uma variao nos objetos, que essa se reflita em sucesso reprodutivo

  • 26

    diferencial e que seja transmitida hereditariamente; em outras palavras, que exista

    variao hereditria em aptido. Isto posto, Sober ir definir o conceito de aptido da

    seguinte maneira: A aptido de um objeto sua propenso, ou disposio, a ser

    reprodutivamente bem sucedido (SOBER, 1984, p. 191). Porm, quando se busca

    determinar se um determinado conjunto de objetos est submetido a um mesmo

    processo seletivo, devemos considerar estas condies como necessrias, porm,

    no suficientes. Ou seja, para considerarmos que determinados objetos estejam sob

    um mesmo processo de seleo preciso ainda que exista alguma influncia causal

    comum que afete suas chances de reproduo, o que ocorre, por exemplo, quando

    estes objetos esto em competio. Sober ressalta que esta influncia deve ser

    entendida tanto em termos do ambiente fsico quanto das caractersticas biolgicas

    dos organismos envolvidos. Aps estabelecer estas condies como suficientes

    para que a seleo natural ocorra, Sober ir afirmar que embora os objetos clssicos

    da seleo natural sejam organismos que existem em uma dada populao, nada

    impede que se examinem os grupos como estes objetos, pois estes tambm podem

    responder a estas condies. A concepo mais aceita afirmaria que: A seleo de

    grupo ir envolver a seleo entre grupos, enquanto a seleo individual envolve a

    seleo dentro de grupos (SOBER, 1984, p. 192).

    Em resumo, apesar de ter sido alvo de muitas crticas, a proposta de seleo

    de grupo no foi completamente abandonada, permanecendo diversas

    propostas de reviso e desenvolvimento de conceitos que permitem uma

    anlise mais detalhada da possibilidade de seleo de grupo como uma fora

    evolutivamente relevante.

  • 27

    1.4. CONCLUSO

    Neste captulo procuramos apresentar um panorama histrico e filosfico das

    questes relativas ao tema nveis de seleo que precedem a proposta da teoria do

    gene egosta de Dawkins, fazendo um resumo das noes de seleo individual e

    seleo de grupo. Vimos que a posio original de Darwin era que a unidade de

    seleo o indivduo, e que foi o prprio desenvolvimento da biologia, em especial

    da etologia e da gentica, que possibilitou o surgimento de novas hipteses de

    resposta pergunta: qual a unidade que efetivamente selecionada no processo de

    evoluo por seleo natural?. A seleo individual permanece a resposta ortodoxa,

    mesmo em face da proposta de seleo de grupo.

  • CAPTULO 2 EXEGESE DOS LIVROS O GENE EGOSTA E O FENTIPO ESTENDIDO

    Este captulo acompanha de perto a exposio da teoria do gene egosta e a

    construo do conceito de fentipo estendido tal como Dawkins as efetua no livro O

    Fentipo Estendido. Tomamos a deciso de incluir esta explicao mais

    pormenorizada por considerar que esta dissertao est sendo apresentada na

    Faculdade de Filosofia, e, portanto, a concepo de Dawkins no bem conhecida.

    Em geral, os argumentos expostos so os de Dawkins, e buscamos colocar as

    referncias s pginas do livro no incio de cada assunto. Os nossos comentrios

    esto sinalizados.

    2.1. UMA INTRODUO AO PONTO DE VISTA GENE-CNTRICO

    Dawkins etlogo por formao, possuindo um profundo interesse pelo

    comportamento animal, buscando explicaes para o mesmo a partir da teoria

    darwiniana da evoluo. Em seus livros O Gene Egosta, de 1976, e O Fentipo

    Estendido, de 1982, pretende apresentar uma viso pessoal sobre a evoluo da

    vida, colocando em questo o ponto de vista tradicional que apresenta o indivduo

    como o melhor ponto de partida para o entendimento de fenmenos adaptativos. O

    primeiro livro pode ser entendido como um livro de divulgao cientfica, no qual o

    autor se dirige ao pblico em geral. no livro de 1982 que Dawkins ir aprofundar

    os conceitos necessrios fundamentao de sua teoria, alm de introduzir o

    conceito de fentipo estendido, que explicitaremos no curso deste trabalho.

    Dawkins examina as implicaes evolutivas do comportamento egosta e

    altrusta, extraindo, a partir das mesmas, uma proposta bastante diferente, a teoria

  • 29

    do gene egosta. Suas teses seguem a linha de pesquisa de Williams, sendo

    baseadas na anlise etolgica do comportamento animal a partir de uma

    interpretao bastante estrita da teoria darwiniana. Em seu livro O Gene Egosta

    prope a existncia de um nvel privilegiado de seleo, a gnica. Devido s suas

    caractersticas de variabilidade, hereditariedade e reproduo diferencial, os genes

    seriam o elemento que efetivamente se reproduziria. Para explicitar a diferena entre

    genes e organismos, introduz o conceito de replicador, equivalente menor

    unidade capaz de fazer cpias de si mesma10. O replicador seria tambm a unidade

    mais estvel e, portanto, mais apta a sobreviver e gerar descendncia. Dawkins

    afirma que as capacidades de longevidade, fecundidade e fidelidade de cpia so as

    prioritariamente selecionadas, portanto, o replicador seria o nvel de seleo por

    excelncia. Os organismos no produzem organismos que sejam cpias fiis de si

    mesmos, os grupos tambm no, os genes sim. A definio de gene que Dawkins

    usa elaborada de forma a que esse sempre seja a unidade bsica de seleo

    natural, considerando um gene como a menor poro de material cromossmico que

    dura potencialmente por um nmero suficiente de geraes para servir como

    unidade de seleo natural. Quanto menor a unidade gentica, mais provvel que

    muitos organismos a compartilhem e que, portanto, essa possua o maior nmero de

    cpias e dure pelo maior perodo de tempo. Com esta argumentao, Dawkins

    coloca sob nova perspectiva o problema do altrusmo, pensando-o como algo que s

    existe do ponto de vista do organismo, sendo o gene sempre egosta.

    Cabe aqui um esclarecimento sobre o uso de termos antropomrficos e

    teleolgicos, tais como o uso do qualificativo egosta para o gene. Naturalmente o

    uso destes termos por Dawkins e pelos demais bilogos sempre figurado. Embora

    10 Mantivemos aqui o enunciado original de Dawkins, apesar do uso teleolgico da linguagem, conforme explicitado em seguida.

  • 30

    exista uma tendncia filosfica em evitar este tipo de uso da linguagem, o mesmo

    bastante comum na biologia, sendo inclusive objeto de controvrsia entre

    reducionistas que buscam eliminar este tipo de utilizao e emergentistas ou

    instrumentalistas que tendem a justificar a necessidade de uso de analogias ligadas

    a causas finais e intencionalidade. No foco deste trabalho analisar a

    complexidade dos argumentos e conceitos envolvidos neste debate11; apenas a

    ttulo de exemplo, podemos examinar, grosso modo, os conceitos de adaptao e

    funo como casos nos quais os bilogos argumentam em favor de um uso positivo

    da teleologia. Em geral, quando um bilogo examina uma determinada caracterstica

    de um organismo supondo que seja uma adaptao, ele o faz atravs da resposta

    pergunta para qu?, ou seja, investiga qual seria a funo desta caracterstica, no

    sentido de avaliar sua finalidade para o organismo e assim definir sua relao com a

    aptido do indivduo que a possui, fazendo uso de analogias de forma a determinar

    os processos fsicos, qumicos e biolgicos que levaram evoluo e fixao desta

    caracterstica. Com estas consideraes, podemos excluir as crticas mais

    superficiais feitas teoria do gene egosta, que a acusam de conferir

    intencionalidade aos genes. GOULD (1984, p. 122), um dos principais crticos de

    Dawkins, esclarece que: Quando ele [Dawkins] afirma que genes se esforam para

    fazer mais cpias de si mesmo, ele quer dizer: a seleo opera no sentido de

    favorecer genes que, por acaso, variam de tal forma que mais cpias sobrevivem

    nas geraes subseqentes. Estas duas formas de compor a frase so

    significativas das duas formas de expresso em biologia, a primeira aceita o uso de

    metforas intencionais e a segunda busca um maior rigor terico. Procuraremos,

    nesta dissertao, usar deste rigor, reescrevendo as afirmaes quando as mesmas

    11 Uma boa introduo a este debate est em FERREIRA (2003).

  • 31

    aparecerem, como comum no texto de Dawkins, carregadas de intencionalidade.

    Outro ponto importante para ns compreender os motivos que levaram Dawkins a

    considerar que sua posio ortodoxa, sendo diferente apenas por ser expressa de

    forma no habitual. Sua teoria causou um impacto significativo, tendo defensores e

    crticos enfticos. Tericos das mais diversas correntes evolutivas criticaram seus

    argumentos e, especialmente, o tratamento monoltico que ele deu ao tema.

    Analogamente ao conceito de replicador, Dawkins introduz o de veculo, as

    mquinas de sobrevivncia que propagam os replicadores. Embora ambos os

    conceitos sejam relevantes para o desenvolvimento posterior dos estudos de nveis

    de seleo, o conceito de veculo considerado problemtico por diversos

    pesquisadores. Estes conceitos e os outros argumentos de Dawkins favorveis a

    seleo gnica so melhor apresentados em seu livro O Fentipo Estendido.

    A proposta de Dawkins est baseada em uma diviso no clssica dos nveis

    de hierarquia biolgica. Embora reconhea que a categorizao dos fenmenos

    biolgicos em gene, clula, rgo, organismo, populao e ecossistema relevante

    para diversos fins em biologia, afirma que, para explicar adaptaes evolutivas

    geradas por seleo natural necessrio outro tipo de categorizao. Prope

    classificar as entidades biolgicas a partir dos conceitos acima apresentados, de

    replicadores e veculos, considerando que esta distino mais significativa,

    oferecendo explicaes mais parcimoniosas. De forma simplificada podemos definir

    replicadores como entidades capazes de conservar sua estrutura ao longo do tempo

    e veculos como mquinas de sobrevivncia elaboradas pelos replicadores. uma

    viso gene-cntrica, visto que defende que o nvel de seleo que melhor

    proporciona uma explicao dos comportamentos adaptativos aquele que

    considera replicadores como a unidade de seleo, replicadores cujo melhor

  • 32

    exemplo so os genes. Seu foco nos genes como a entidade que efetivamente

    selecionada no o distancia do conceito de indivduo, como poderia parecer

    primeira vista, mas o conduz a novas perguntas acerca da organizao da vida.

    Consideramos que Dawkins est buscando questionar, o quanto seja possvel, a

    prpria organizao da percepo humana, que, ao analisar um comportamento ou

    estrutura, tende a consider-los como dotados de interesse ou propsito. O fato de

    percebermos os indivduos como uma entidade dotada de intencionalidade necessita

    de uma explicao, da mesma forma que necessrio explicar que estas mesmas

    entidades so constitudas de unidades menores. Outra questo importante para

    Dawkins relativa formao das entidades complexas que conhecemos como

    indivduos. Os genes que tiveram maior sucesso evolutivo foram os que

    apresentaram um padro de organizao gregrio, e isto interessante o suficiente

    para que se estudem os motivos. Assim, quando o foco de interesse biolgico o

    indivduo, a pergunta que Dawkins considera fundamental : qual o valor de

    sobrevivncia que existe em empacotar a vida em unidades discretas chamadas

    organismos?

    A proposta de Dawkins no apresentar uma nova teoria, nem mesmo novas

    hipteses ou modelos. Mesmo no livro O Fentipo Estendido, destinado a

    especialistas, e no qual os conceitos apresentados em trabalhos anteriores so

    aprofundados, afirma que o ponto de vista gene-cntrico e o conceito de fentipo

    estendido apenas levam a uma melhor compreenso da evoluo e do

    comportamento animal. No prope um novo mecanismo evolutivo, mas que o

    direcionamento do olhar para o gene, quando se trata de evoluo adaptativa, tem

    um resultado positivo, pois possibilita o surgimento de diferentes alternativas

    explicativas, e, com isso, aumenta a possibilidade de encontrarmos explicaes

  • 33

    mais parcimoniosas para os fatos observados. Dawkins defende que apesar de o

    prprio conceito de fentipo estendido, centro do livro, no ser diretamente testvel,

    a mudana de ponto de vista pode levar ao surgimento de novas hipteses

    testveis; com isso justifica a possibilidade de um texto terico ter validade mesmo

    sem apresentar hipteses testveis. A mudana de ponto de vista , em si mesma,

    importante, gerando novas abordagens na cincia. Essa posio permite que

    Dawkins faa um uso extensivo de experimentos mentais que embora no sejam,

    nem precisem ser, realistas, servem para clarificar nosso pensamento sobre a

    realidade.

    Dawkins compara sua posio com o efetuar de uma traduo, da linguagem

    do indivduo para a linguagem do gene, que, ele defende, apresenta uma srie de

    vantagens. Embora entendamos o ponto defendido por Dawkins e consideremos

    que, em muitos casos, a linguagem gnica realmente apresente vantagens, em

    especial em relao parcimnia explicativa, avaliamos que a traduo a que ele se

    prope mantm a linguagem teleolgica, e portanto deixa de considerar um ponto

    relevante e que poderia alterar o modo de expresso em biologia.

    2.2. O COMPORTAMENTO ALTRUSTA

    Um dos focos de interesse da etologia o estudo do comportamento altrusta,

    cuja explicao, como j apresentamos, foi considerada durante bastante tempo

    como um desafio teoria evolutiva e sua nfase na sobrevivncia individual. Esse

    o ponto de partida de Dawkins em O Gene Egosta, livro que apresenta essa teoria

    de forma geral, e que consideramos, em especial pelo extensivo uso de linguagem

    no-terica, como uma das primeiras incurses desse autor no que posteriormente

  • 34

    se tornaria um de seus grandes interesses: a divulgao cientfica da teoria da

    evoluo darwiniana. Ele considera que os seres vivos podem ser examinados de

    distintos pontos de vista, com cada rea da biologia possuindo um foco especfico

    que permite uma melhor anlise de seu objeto de estudo. Um cuidado comum a

    todas as reas, em especial a que trata do comportamento adaptativo, o

    distanciamento entre a maneira como a espcie humana aplica certos termos a si

    mesma e o conceito que est sendo apresentado pelo bilogo. O primeiro termo a

    aclarar altrusmo: [...] o comportamento altrusta se favorece outros indivduos

    s custas do altrusta (DAWKINS, 1982, p. 57). Altrusmo aqui no deve ser

    entendido no campo da tica humana, mbito no qual o altrusmo social desejvel,

    sendo aplicado tanto s famlias como a toda a espcie humana e eventualmente a

    todos os seres vivos. A no separao entre conceitos biolgicos e termos da tica

    humana um dos fatores que conduz a uma certa confuso nas respostas que a

    biologia apresenta quando se pergunta qual o nvel de altrusmo que deve ser

    esperado segundo a teoria darwiniana. A expresso Gene Egosta deve ser

    entendida sempre como um ponto de vista, uma maneira de fazer novas perguntas

    para fatos e idias familiares; evidentemente no uma proposta que trate os genes

    como entidades dotadas de finalidade ou aplique aos mesmos o conceito de

    egosmo como se aplica psicologicamente aos seres humanos. Embora Dawkins

    explicite claramente qual o escopo do uso do termo gene egosta, entendemos que

    este um dos problemas que advm do uso da linguagem teleolgica e intencional

    em biologia. Embora o uso de metforas e da linguagem finalista seja bastante

    comum em biologia, existem uma srie de argumentos que advertem sobre o risco

    que esse uso representa, conforme j apresentamos (seo 2.1).

  • 35

    Os conceitos de aptido12, definido como a contribuio que um determinado

    gentipo efetua para a prxima gerao de uma populao, e de aptido inclusiva,

    que abarca a passagem dos genes no s atravs da reproduo prpria, mas

    tambm pelo apoio reproduo dos parentes, esto no cerne de um dos teoremas

    centrais da etologia moderna. Este afirma que o padro de ao que pode ser

    esperado do indivduo o comportamento de forma a beneficiar sua aptido

    inclusiva, maximizando a passagem de seus genes s prximas geraes tanto

    atravs de reproduo prpria quanto atravs do apoio de seus parentes. Isso,

    aliado s teses de Darwin, que consideravam o indivduo como centro focal, induziu

    vrios bilogos, em especial quando interessados em explicaes funcionais,

    suposio de que o organismo individual a unidade apropriada de trabalho e que

    os comportamentos devem ser entendidos em termos de conflito entre indivduos

    que tendem a maximizar sua aptido inclusiva. Para Dawkins a primeira afirmao

    no conduz necessariamente segunda, e o fato histrico da ateno sobre o

    indivduo no deve conduzir concepo do indivduo como o foco natural da

    biologia, ele um dos nveis de organizao da vida, isto evidente, mas no reflete

    uma necessidade. A vida poderia no ter evoludo no sentido do indivduo, e assim

    este no deve ser tomado de forma naturalizada. A proposta de Dawkins em O

    Fentipo Estendido desconstruir lentamente esse foco no indivduo, buscando

    mostrar que, quando se trata de explicar comportamentos adaptativos, o foco no

    replicador geralmente proporciona explicaes mais parcimoniosas.

    12 Existem diversos problemas em relao definio do conceito de aptido, no os discuto por no consider-los relevantes para o tema em questo. Entendo que Dawkins usa definies bsicas de termos complexos, tal como gene ou aptido, considerando que isto suficiente para o desenvolvimento de seu trabalho.

  • 36

    2.3. SELECIONISMO OU DETERMINISMO?

    Aps apresentar sua definio de altrusmo e sua proposta de seleo gnica,

    Dawkins entende que necessrio expor seu ponto de vista sobre o papel do gene

    na determinao do fentipo de um organismo. Ir defender que no um

    determinista, uma das crticas mais comuns a sua posio, e que possvel

    compreender os fenmenos evolutivos sem que seja necessrio explicitar os

    processos complexos pelos quais os fentipos so gerados.

    Dawkins defende que o nvel no qual a seleo natural ocorre o gentico, o

    que conduz a que toda sua teoria se desenvolva em torno do conceito de gene. J

    vimos (seo 2.1) a definio de gene que Dawkins usa, entendemos que uma

    definio bastante ampla e que considera o gene apenas do ponto de vista da

    seleo natural.13 Apesar disto, a centralidade do gene em sua teoria levou a uma

    srie de crticas, em especial em relao ao determinismo de sua proposta. Dawkins

    (1982, pp. 18-29) no se considera um determinista, pois para ele essa afirmao

    embute uma confuso comum em biologia entre selecionismo e determinismo.

    Ambos so modelos causais; de forma preliminar, podemos entender o

    determinismo gentico como a afirmao de que as relaes entre o genoma e o

    organismo se do em uma relao de causalidade unidirecional e rgida. J o

    selecionismo gnico o princpio que afirma que as caractersticas adaptativas so

    resultado da ao da seleo natural sobre os genes. Para Dawkins, a correta

    compreenso da seleo natural como sobrevivncia diferencial de genes mostra

    que a evoluo se d por selecionismo gnico, sendo que somente no mbito do

    13 O conceito de gene tem sido objeto de muita avaliao. Seria uma questo interessante avaliar como as mudanas no conceito de gene, desde a publicao de O Fentipo Estendido, afetaram a posio de Dawkins e se seu conceito frouxo de gene resiste ou est adequado. No iremos desenvolver esta temtica, o que poderia ser feito a partir de Keller (2002) e El-Hani (2007).

  • 37

    desenvolvimento se pode falar, em algum sentido, em determinismo gentico.

    Para a correta compreenso da distino acima preciso considerar o

    conceito de causalidade e sua aplicao em biologia. Causalidade um conceito de

    difcil demarcao tanto em cincia quanto em filosofia, no se podendo demonstrar

    definitivamente, de maneira operacional, que um evento C causa um resultado R

    particular. Assim sendo, a concepo que os bilogos geralmente adotam a de

    trabalhar com esse conceito de forma simplificada, no mbito da correlao

    estatstica. A abordagem das influncias genticas fica muito mais clara quando se

    emprega esse mtodo, pois a maioria das diferenas fenotpicas pode, em alguma

    medida, ser entendida como geneticamente afetada. Dawkins trata como evidente

    que o organismo no definido por seu genoma, sendo que o mesmo somente se

    expressa em relao ao ambiente no qual est inserido. O foco no gene no uma

    defesa do mito do determinismo gentico14, somente a afirmao de que

    diferenas genticas so relevantes quando o que est em estudo a evoluo

    adaptativa. Se a passagem dos genes dos pais para os filhos inexorvel, seus

    efeitos fenotpicos claramente no o so, e a elucidao das interaes entre os

    genes e o meio o campo da embriologia do desenvolvimento. Fentipos so

    gerados durante o desenvolvimento do organismo, em processos de grande

    complexidade e envolvendo uma srie de fatores, tanto os presentes no genoma

    quanto no ambiente. No entanto, para o estudo da evoluo no necessrio

    especificar esses processos, sendo suficiente aceitar que os genes afetam os

    fentipos e que h diferenas entre as caractersticas possveis. Partindo da

    suposio que todos os fenmenos tm uma causa material, se pode afirmar que,

    em alguma medida, todos os fentipos so afetados pelos genes presentes no

    14 Este um tema muito interessante, sugerimos a leitura de LEITE (2007) para os interessados em aprofundar-se no mesmo.

  • 38

    organismo. O que no equivalente a afirmar a tese determinista forte, que o

    conjunto de genes determina inexoravelmente os traos fenotpicos apresentado por

    um organismo. A tese defendida por Dawkins que na presena de um determinado

    alelo (forma alternativa do gene) o organismo tende a apresentar o fentipo em

    questo em comparao com outro organismo que apresenta outro alelo, quando

    so mantidas as demais condies. So essas diferenas em tendncias que levam

    os geneticistas a tratar um determinado gene como para o fentipo X, significando

    apenas que, demais fatores permanecendo iguais (ceteris paribus), a presena

    deste gene leva a um estado morfolgico e fisiolgico que tende a produzir o

    fentipo (ou comportamento) em questo.

    2.4. ADAPTAO

    Antes de prosseguir no desenvolvimento de sua viso de seleo natural

    centrada na competio, Dawkins precisa esclarecer o sentido que o termo

    adaptao tem em sua teoria. Embora este conceito tenha sido sujeito a vrias

    interpretaes em biologia, Dawkins ir ignorar grande parte da polmica,

    assumindo que uma verso bastante simples de adaptao suficiente para sua

    teoria. De forma resumida, ele ir considerar como adaptaes somente as

    caractersticas geradas pelo processo de seleo natural.

    A seleo natural a sobrevivncia diferencial de genes, e nesse sentido

    que: Para discutir a possibilidade de padres de comportamento evolurem por

    seleo natural temos que postular a variao gentica com respeito tendncia ou

    capacidade de atuar de acordo com esse comportamento (DAWKINS, 1982, p. 18).

    Vrios so os eventos evolutivos, nem todos produzem adaptao; Dawkins (1982,

  • 39

    p. 19) est interessado especificamente nos que produzem adaptao diretamente

    por seleo natural. Muitos comportamentos e traos fenotpicos, em especial os

    adaptativos, so extremamente intricados, sua formao provavelmente envolveu

    diversas etapas com seleo de diversos loci (cada locus representa a posio de

    um gene em um cromossomo) ao longo do tempo evolutivo. O entendimento desse

    processo relevante e de grande interesse, porm no invalida a afirmao de que,

    por mais complexo que seja um estado, a diferena entre o mesmo e um outro

    estado alternativo pode ser causada ou alterada por algo extremamente simples.

    Dawkins (1982, p. 23) exemplifica isto com um experimento mental. A leitura um

    comportamento complexo, que necessita de uma srie de fatores para ocorrer, no

    entanto a presena de um gene que causa dano cerebral levando dislexia

    suficiente para que esse no ocorra. Nesse caso, pela nomenclatura padro em

    gentica, o alelo do gene que causa dislexia, o alelo de tipo selvagem [wild type],

    pode ser tratado como um gene para leitura. Nomear um gene dessa forma no

    significa que sua simples presena determine o comportamento. Outro ponto

    importante a ser considerado a diferena entre a gerao de um comportamento

    complexo e sua situao atual. A remoo da casca de ovo vazia do ninho pelas

    gaivotas de cabea preta um comportamento intricado, provavelmente tendo sido

    suscitado por seleo natural atravs de uma srie de passos evolutivos.

    Atualmente est constitudo, e se pode facilmente pensar em um gene em cuja

    presena esse comportamento no ocorra. Novamente, o tipo selvagem deste gene

    pode ser nomeado como para a remoo da casca vazia, o que no implica em

    afirmar que o processo seletivo se deu apenas neste locus. Genes esto sempre

    implcitos em qualquer discurso sobre adaptao darwiniana, o que no significa que

    todas ou a maioria das caractersticas de um organismo sejam adaptativas. A

  • 40

    evoluo ocorre atravs de vrios processos e muitos de seus resultados no so

    adaptaes, sendo que, sempre que a evoluo se d por seleo natural, o que

    obtemos uma resposta adaptativa.

    O que Dawkins (1982, p. 32) est afirmando que processos evolutivos, tais

    como a mutao nos genes, a migrao de indivduos entre populaes ou a deriva

    gentica (o processo de flutuao randmica na freqncia dos alelos de uma

    populao) no levam necessariamente a adaptaes. So foras evolutivas que

    efetivamente podem conduzir fixao de determinadas caractersticas em uma

    populao, mas sem garantia de que estas caractersticas sejam adaptaes, ao

    contrrio do processo de seleo natural, que sempre conduz a adaptaes.

    As explicaes adaptacionistas tm sido alvo de vrias crticas15, em especial

    quando so entendidas a partir da definio de Richard Lewontin, citadas por

    Dawkins a partir do artigo Sociobiology as an adaptationist program, publicado em

    Behavioral Science 24 de 1979: aquela avaliao que assume sem maiores provas

    que todos os aspectos da morfologia, fisiologia e comportamento dos organismos

    so solues adaptativas timas para problemas (DAWKINS, 1982, p. 30). Para

    Dawkins, o programa adaptacionista um valioso simulador de hipteses, vrias

    delas testveis. O fundamental manter sempre presente que nem todas as

    caractersticas so adaptativas, existindo uma srie de restries perfeio. O

    conceito de evoluo deve ser o centro de qualquer avaliao em biologia,

    especialmente quando se busca estabelecer se uma caracterstica adaptativa ou

    no.

    15 No vamos comentar aqui as crticas ao programa adaptacionista. Embora as mesmas sejam relevantes, consideramos que Dawkins consegue defender bem seu ponto de vista adaptacionista, fugindo do que seria um adaptacionismo ingnuo, tal como criticado por GOULD & LEWONTIN (1970). Isto porque, embora geralmente considere as caractersticas isoladamente, no considera o organismo sempre como um todo otimizado. Alm disso, Dawkins mantm o escopo de seu trabalho em caractersticas que so resultado de seleo natural, porm, sem desconsiderar a existncia de outras que so geradas por outros processos evolutivos.

  • 41

    Cabe aqui comentar que Dawkins mantm um foco extremamente fechado

    nos processos que o interessam. No nega a existncia de outros mecanismos

    evolutivos, mas os considera como no sendo significativos evolutivamente quando

    no esto em acordo com a sua viso da teoria darwiniana. Nesse sentido que

    apresentamos como o autor caracteriza o valor evolutivo de algumas das restries

    habitualmente apresentadas perfeio adaptativa das caractersticas de um

    organismo.

    Segundo Dawkins (1982, p. 32), as mutaes neutras, que induzem

    mudanas na estrutura de um polipeptdio sem efeito na atividade enzimtica da

    protena, no deveriam ser consideradas mutaes do ponto de vista evolutivo, pois

    no geram diferenas fenotpicas. Esse exemplo paradigmtico do tratamento que

    Dawkins oferece aos mecanismos evolutivos que no se alinham com sua viso da

    evoluo; ele aceita a existncia dos mesmos como fato, mas retira todo o

    significado dos mesmos para o processo evolutivo. So processos que ocorrem na

    natureza, mas que no podem ser considerados como foras evolutivas.

    Dawkins (1982, pp. 35-53) considera como reais restries perfeio das

    caractersticas dos organismos somente as condies que esto em acordo com o

    que seria a correta concepo de seleo natural. A primeira a defasagem no

    tempo [time lag]: existe uma diferena entre o perodo no qual os genes para uma

    determinada caracterstica foram selecionados e o tempo atual. Isso claramente

    percebido quando a ao humana provoca mudanas rpidas no ambiente e muitos

    animais mantm comportamentos que passam a ocorrer como respostas

    anacrnicas. O gene depende do contexto para se expressar, se o contexto muda, o

    mesmo gene pode ter um efeito diferente. Outro fator que impede que organismos