tese_tuyuka_floracabalzar2010

Upload: luiz-fernandes

Post on 16-Jul-2015

110 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

Flora Freire Silva Dias Cabalzar

At Manaus, at BogotOs Tuyuka vestem seus nomes como ornamentosGerao e transformao de conhecimentos a partir do alto rio Tiqui (noroeste Amaznico)

So Paulo, 2010

UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

At Manaus, at Bogot Os Tuyuka vestem seus nomes como ornamentosGerao e transformao de conhecimentos a partir do alto rio Tiqui (noroeste Amaznico)

Flora Freire Silva Dias CabalzarTese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Antropologia.

Orientador: Profa. Dra. Dominique Tilkin Gallois

Verso Corrigida: ____________________________________ De Acordo: Dominique Tilkin Gallois

So Paulo, 2010

At Manaus, at Bogot. Os Tuyuka vestem seus nomes como ornamentosGerao e transformao de conhecimentos a partir do alto rio Tiqui (noroeste Amaznico)

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Antropologia.

Aprovada por

Dominique Tilkin Gallois Orientadora PPGAS / FFLCH / USP

Beatriz Perrone Moiss PPGAS / FFLCH / USP

Renato Sztutman PPGAS / FFLCH / USP

Geraldo Luciano Andrello Cincias Sociais / UFSCar

Cristiane Pacheco Lasmar UFRJ / IPPUR

So Paulo 2010

At Manaus, at Bogot Os Tuyuka vestem seus nomes como ornamentosGerao e transformao de conhecimentos a partir do alto rio Tiqui (Noroeste Amaznico) Esta tese corresponde a um experimento descritivo em torno das prticas e modos de conhecimento altorionegrinos, a partir do alto rio Tiqui (afluente do rio Uaups na Terra Indgena Alto Rio Negro, municpio de So Gabriel da Cachoeira, Amazonas), onde nasceram e se criaram os seus interlocutores, hoje dispersos entre o alto Tiqui, So Gabriel, Manaus... Tornando presente minha perspectiva antropolgica entre os Tuyuka, analiso percepes acerca dos processos de gerao e transformao dos saberes considerados de maior valor (niromakae). O objetivo consiste em descrever como conhecedores (masir) so percebidos a partir de atualizaes de aspectos da agnao ou das vitalidades transmitidas por linhas paternas. Agnao que se realiza sob novas formas nos movimentos de abertura ao exterior - nos abrandamentos das prticas de proteo, na nominao, na circulao de saberes e sua eficcia na composio de almas, corpos, pensamentos. 1. Antropologia Social. 2. Etnologia Indgena. 3. Redes de Saberes. 4. Tese. 5. Tuyuka [email protected]

Into Manaus, into Bogot The Tuyuka carry their given names as adornmentKnowledge generation and transformation beginnig at upper Tiqui River (Amazonian Northwest Region) This work is consistent with a descriptive experiment on the upper Negro river ways and uses of knowledge, beginning at the upper Tiquie River (a tributary of the Uaups river, municipality of So Gabriel da Cachoeira, Amazon), where the interlocutors of this work were born and raised, today dispersed among upper Tiqui river, Sao Gabriel, Manaus... Presenting my anthropological perspective among the Tuyuka, I analyze perceptions circa the generation and transformation processes of the most valued considered knowledge (niromakae). With analytical emphasis on knowledge networks, I describe agnation aspects or vitalities as they are transmittet through male lines; agnation which is carried out on new ways under overture to the exterior (softening of protection practices and nomination, alternative modes of knowledge circulation and its efficacy in the composition of souls, bodies and thoughts).

Dedico esta tese ao Aloisio, Tom e Clara. Porque creso com eles.

Agradeo a todos vocs: Dominique Gallois, pela inspirao e confiana. Aloisio Cabalzar, pelo amor, companheirismo, segurana e pacincia com que sempre me apia e incentiva, tambm nesta tese. Mandu Lima, pela inspirao e sabedoria. Marisa e Anita (suas filhas), pela amizade. Guilherme Tenrio e Higino Tenrio, por nos receberem tantas vezes em suas casas, comunidades e Escolas no alto rio Tiqui. Pela oportunidade de seguir aprendendo. Cristiane Lasmar, pela amizade e sugestes certeiras. Stephen Hugh-Jones, que procurou me situar ainda em tempo, ante ao universo to vasto e solvel de minhas prprias palavras. Aos velhos grandes conhecedores tuyuka. Todos os moradores das comunidades tuyuka de igarap Ona, So Pedro, Cachoeira Comprida, Fronteira e Pupunha, pelo apoio, hospitalidade e amizade. Professores e professoras da Escola Tuyuka. Em especial, Joo Bosco Rezende e Jos Vidal Ramos pelas longas conversas. Pedro Lima, pela intensidade de seus conhecimentos. Sabino e Alexandre Rezende, pelos ensinamentos que no podem parar. Justino Rezende, pela disponibilidade de falar, nos visitar, nos ler, nos comentar. E seu irmo Alexandre, pela inteligncia com que ensina. Raimunda Marques, viva de Casimiro Lima, suas filhas e filhos, por falarem apesar da saudade. Em especial, Hilda Lima, pela amizade e caxiris, to desejados na cidade. Mrio Tenrio e Catarina Marques, pela hospitalidade e lies de vida na cidade.

Edson, Frncio, Paulo Lima, Arimatia, Solange, Lenilza, Edilson Ramos, Joo Fernandes, Aparecida e Renato, pelo apoio nas tradues e exegeses das falas dos mais velhos. Lucinia e Josmar, por suas longas e jovens conversas. Aos amigos tukano. Amigos e diretores da FOIRN (Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro). Colegas do Ncleo de Histria Indgena e do Indigenismo, pelas oportunidades de trocar idias e perseguir as Redes (Amerndias). Projeto Temtico que conta com apoio da FAPESP. Ana Martha Ti Yano, em especial, pelo apoio na reviso final da Introduo, primeiro captulo e bibliografia desta tese. Geraldo Andrello e Renato Sztutman, pelas sugestes na Banca de Qualificao desta tese. Instituto Socioambiental, pelo apoio de toda ordem, em So Gabriel da Cachoeira. Beto e Fany Ricardo, Geraldo Andrello: que sempre nos receberam e apoiaram nessa jornada. Amigos do ISA, em especial Melissa Oliveira, Laise Diniz, Andreza, Adeilson, Sucy e Mocot. Amigas de rio Negro e muito antes, Marta Azevedo e Judite Albuquerque. Nossos amigos e de nossos filhos em So Gabriel: Alexandra, Marcos, Daniel e Camile Maranguape, Ily e Mariana, Linduria e Lorran; Celeste, Breno, Victor e Anabele; Dona Margarida. Ao CNPq, pela Bolsa de Doutorado, oferecendo condies de dedicao tese. FAPESP, que atravs do Projeto de Pesquisa Temtica Redes Amerndias, gerao e transformao nas terras baixas sul-americanas, desenvolvido no mbito no Ncleo de Histria Indgena e do Indigenismo da USP, apoiou minha pesquisa de campo de doutorado na cidade de So Gabriel da Cachoeira. Meu amigo Maurice Bazin (in memoriam), porque aprendemos um com o outro. Antonia Marques. Laureano Ramos. Emlio Rezende. Pasiko Barreto. Henrique Ramos. In memoriam. Minha me Maria Alice, minhas irms Camila e Silvia, porque sabemos que esto por perto.

Meu pai Cndido, Ana, Gabriel e Laura, acolhedores, sempre. Meus tios e primos. Meus sogros Maria Olvia e Alois; cunhadas Marieta, Margarida e Maria Olvia, porque a partir de Juiz de Fora, estamos em extensa famlia. Tia Dudu e tio Hlio (in memoriam), que estiveram mais prximos. Meus avs Cndido e Odila, porque sua memria ilumina geraes.

At Manaus, at Bogot. Os Tuyuka vestem seus nomes como ornamentosGerao e transformao de conhecimentos a partir do alto rio Tiqui (noroeste Amaznico)

Introduo 11. 2. 3. 4. Em busca de uma linguagem analtica 1 Contexto da pesquisa de campo no doutorado e experincias anteriores Pequena cronologia das mudanas de foco do doutorado 10 Eixo alto rio Tiqui - So Gabriel da Cachoeira 11 Os Opaya em expanso 17 Conexes e transformaes a partir do alto rio Tiqui 19 Alguns Opaya em So Gabriel da Cachoeira 21 Mio - um dos sibs associados aos Opaya no alto rio Tiqui Okokapeapona 28 Sabino, Alexandre e Renato Rezende (pai, filho, neto): Dasia 30 ltimas consideraes 31 Resumo dos Captulos 32 5

27

5. 6.

I1.

Modelo de socialidade dual, gerao e transformao de saberesRegimes de socialidade dual (Stephen Hugh-Jones e Viveiros de Castro) 35

35

1.1 Debates em torno de gnero e gerao (e senioridade), no alto rio Negro 35 1.2 Entre modelos gerais (amaznicos) e modelos locais altorionegrinos: elementos introdutrios 1.3 Anaconda e ancestralidade difusa nos objetos altorinegrinos (capacidades de pensamento e capacidades reprodutivas no rio Negro) 48

41

2.

Rebatimentos etnolgicos do dado e do construdo

4953

2.1 Sobre conhecimentos de maior valor (cultura) no rio Negro 50 2.2 Dos eixos de transformao da pessoa e dos saberes (riquezas) no rio Negro 2.3 Socialidade dual no rio Negro e circulao de saberes nesta tese 57

3.

Leitura potica: da expanso de predomnios agnticos em Cabalzar

6062

3.1 Predomnios agnticos no rio Tiqui 60 3.2 Expanso de predomnios agnticos: modelo local de relao entre agnao e cognao 3.3 Disperso e reaproximao (em novas bases) de irmos homens tuyuka 67 3.4 Da leitura potica 69

Nesta tese

71

II Os Tuyuka vestem seus nomes como ornamentos. Apreciaes contemporneas sobre a circulao dos saberes de maior valor (niromakae) 791. Em busca da bonita linha de origem: debates/confrontos (hikenore) entre os velhos conhecedores 861. 1 Originao e entoao cerimonial (por onde seguimos) 1. 2 Nossas trajetrias se cruzam 97 92

2.

Anlises com velho Manoel Lima (e outros)

103

2.1 Benzimento da alma (yeripona basere), coloque em uma folha 112 2.2 Benzimento da alma quando chega doena: faa um documento separado 114 2. 3 Benzimento da alma do danador (baya): isso outra coisa, faa outro documento 116 Compondo corpo alma dos primeiros 118 Conhecimento, poder e resistncia do baya 123 Hierarquia e substituio entre conhecedores 126 Circunscries do perigo e seus abrandamentos 134 Estratgias de abrandamento da alma e potncia do conhecedor (visibilidade ante aos Ancestrais e Gente- Ona) 141 Visibilidade ante Gente-Peixe: modos de igualar os seres (acalmando gente invejosa) 145 Visibilidade ante aos Ancestrais (possibilidades de abrandar e incrementar potncias e perigos): - Ns fomos benzidos como baya, fizemos jejum, mas no fizemos a iniciao 154 2.4 Por que as mulheres no podem ver as flautas sagradas? Por que os homens no podem sentir o calor que vem do sangue feminino? Anote isso em outra folha 161

3.

S pensa em comer, comer... Sobre o perigo e o medo

168176

3.1 Por que antes tudo era mais perigoso? Por que as mulheres tinham mais medo? 3.2 Potncias e perigos das transformaes entre (saberes) ancestrais, animais e brancos (basoka seore) 179 Concluso 184

III Saberes enredados, poderes abrandados1. 2.

193

3. 4.

Circulao de saberes em uma particular circunstncia de traduo 198 Entre geraes (velhos, professores, jovens): possibilidades de abrandamentos e incrementos 205 Kiti e niromakae 215 Confrontos entre maiores e menores; ndios e brancos (incio de conversa) 227 Irmos menores 243 At Manaus, at Bogot. Qualidades dos saberes em circulao e transformao

245

5.

6. 7.

Das trajetrias de Mandu (Manuel Lima), Casimiro Lima e Pedro Lima 251 Somos diferentes: mas todos somos (igualmente) comedores de moqueado (abrandamento do rigor de nossos jejuns) 273 Pedro Lima e o filho, bayaroa 275 -Faa como quiser! 282 Entre os velhos e os filhos dos estudantes (concluso do captulo) 286 Finado velho Laureano Vidal: precisa ter nome e levar adiante o que escuta 289 Finado velho Casimiro Lima: precisa fazer jejum 290 Jos Ramos: preciso entender melhor, buscar mais longe, 292 Higino Tenrio: Podemos conseguir, se prosseguirmos dando conselhos. 294

Concluso

299

Mltiplos modos de circulao de saberes e alguns focos 299 Aportes 300 Continuidades e separao: da ancestralidade difusa ancestralidade dispersa 300 Redes de sujeitos e redes de saberes 301 Expanso de predomnios agnticos 302 Kiti e niromakae: entre o abrandamento e a incrementao dos poderes e perigos (dos saberes em circulao) 304Redes agnticas: dos avs ou netos prprios aos outros eixos de confiana 306

Interesses 307 A discusso da tese

310

Bibliografia 315

At Manaus, at Bogot. Os Tuyuka vestem seus nomes como ornamentosGerao e transformao de conhecimentos a partir do alto rio Tiqui (noroeste Amaznico)

Introduo 11. 2. 3. 4. Em busca de uma linguagem analtica 1 Contexto da pesquisa de campo no doutorado e experincias anteriores Pequena cronologia das mudanas de foco do doutorado 10 Eixo alto rio Tiqui - So Gabriel da Cachoeira 11 Os Opaya em expanso 17 Conexes e transformaes a partir do alto rio Tiqui 19 Alguns Opaya em So Gabriel da Cachoeira 21 Mio - um dos sibs associados aos Opaya no alto rio Tiqui Okokapeapona 28 Sabino, Alexandre e Renato Rezende (pai, filho, neto): Dasia 30 ltimas consideraes 31 Resumo dos Captulos 32 5

27

5. 6.

I1.

Modelo de socialidade dual, gerao e transformao de saberesRegimes de socialidade dual (Stephen Hugh-Jones e Viveiros de Castro) 35

35

1.1 Debates em torno de gnero e gerao (e senioridade), no alto rio Negro 35 1.2 Entre modelos gerais (amaznicos) e modelos locais altorionegrinos: elementos introdutrios 1.3 Anaconda e ancestralidade difusa nos objetos altorinegrinos (capacidades de pensamento e capacidades reprodutivas no rio Negro) 48

41

2.

Rebatimentos etnolgicos do dado e do construdo

4953

2.1 Sobre conhecimentos de maior valor (cultura) no rio Negro 50 2.2 Dos eixos de transformao da pessoa e dos saberes (riquezas) no rio Negro 2.3 Socialidade dual no rio Negro e circulao de saberes nesta tese 57

3.

Leitura potica: da expanso de predomnios agnticos em Cabalzar

6062

3.1 Predomnios agnticos no rio Tiqui 60 3.2 Expanso de predomnios agnticos: modelo local de relao entre agnao e cognao 3.3 Disperso e reaproximao (em novas bases) de irmos homens tuyuka 67 3.4 Da leitura potica 69

Nesta tese

71

II Os Tuyuka vestem seus nomes como ornamentos. Apreciaes contemporneas sobre a circulao dos saberes de maior valor (niromakae) 791. Em busca da bonita linha de origem: debates/confrontos (hikenore) entre os velhos conhecedores 861. 1 Originao e entoao cerimonial (por onde seguimos) 1. 2 Nossas trajetrias se cruzam 97 92

2.

Anlises com velho Manoel Lima (e outros)

103

2.1 Benzimento da alma (yeripona basere), coloque em uma folha 112 2.2 Benzimento da alma quando chega doena: faa um documento separado 114 2. 3 Benzimento da alma do danador (baya): isso outra coisa, faa outro documento 116 Compondo corpo alma dos primeiros 118 Conhecimento, poder e resistncia do baya 123 Hierarquia e substituio entre conhecedores 126 Circunscries do perigo e seus abrandamentos 134 Estratgias de abrandamento da alma e potncia do conhecedor (visibilidade ante aos Ancestrais e Gente- Ona) 141 Visibilidade ante Gente-Peixe: modos de igualar os seres (acalmando gente invejosa) 145 Visibilidade ante aos Ancestrais (possibilidades de abrandar e incrementar potncias e perigos): - Ns fomos benzidos como baya, fizemos jejum, mas no fizemos a iniciao 154 2.4 Por que as mulheres no podem ver as flautas sagradas? Por que os homens no podem sentir o calor que vem do sangue feminino? Anote isso em outra folha 161

3.

S pensa em comer, comer... Sobre o perigo e o medo

168176

3.1 Por que antes tudo era mais perigoso? Por que as mulheres tinham mais medo? 3.2 Potncias e perigos das transformaes entre (saberes) ancestrais, animais e brancos (basoka seore) 179 Concluso 184

III Saberes enredados, poderes abrandados1. 2.

193

3. 4.

Circulao de saberes em uma particular circunstncia de traduo 198 Entre geraes (velhos, professores, jovens): possibilidades de abrandamentos e incrementos 205 Kiti e niromakae 215 Confrontos entre maiores e menores; ndios e brancos (incio de conversa) 227 Irmos menores 243 At Manaus, at Bogot. Qualidades dos saberes em circulao e transformao

245

5.

6. 7.

Das trajetrias de Mandu (Manuel Lima), Casimiro Lima e Pedro Lima 251 Somos diferentes: mas todos somos (igualmente) comedores de moqueado (abrandamento do rigor de nossos jejuns) 273 Pedro Lima e o filho, bayaroa 275 -Faa como quiser! 282 Entre os velhos e os filhos dos estudantes (concluso do captulo) 286 Finado velho Laureano Vidal: precisa ter nome e levar adiante o que escuta 289 Finado velho Casimiro Lima: precisa fazer jejum 290 Jos Ramos: preciso entender melhor, buscar mais longe, 292 Higino Tenrio: Podemos conseguir, se prosseguirmos dando conselhos. 294

Concluso

299

Mltiplos modos de circulao de saberes e alguns focos 299 Aportes 300 Continuidades e separao: da ancestralidade difusa ancestralidade dispersa 300 Redes de sujeitos e redes de saberes 301 Expanso de predomnios agnticos 302 Kiti e niromakae: entre o abrandamento e a incrementao dos poderes e perigos (dos saberes em circulao) 304Redes agnticas: dos avs ou netos prprios aos outros eixos de confiana 306

Interesses 307 A discusso da tese

310

Bibliografia 315

Introduo1. Em busca de uma linguagem analticaEsta tese corresponde a um experimento descritivo em torno das prticas de conhecimento altorionegrinos, a partir do alto rio Tiqui (afluente do rio Uaups na regio do alto Rio Negro, Terra Indgena Alto Rio Negro, municpio de So Gabriel da Cachoeira), regio na qual os interlocutores desta tese nasceram e se criaram, em boa parte, at a vida adulta. Tornando presente minha perspectiva antropolgica entre os Tuyuka, desenvolvo uma etnografia das redes de circulao de saberes e de suas transformaes. Analiso processos em curso de vivncia e percepo da gerao e transformao dos saberes considerados de maior valor (niromakae). A partir disso busco compreender o modo como so percebidos os conhecedores (masir), hoje dispersos entre o alto Tiqui e a cidade de So Gabriel da Cachoeira. O objetivo da tese mostrar de que modo algumas das transformaes que ocorrem nesse mbito podem ser melhor descritas como atualizaes de aspectos da agnao, referida por alguns autores como circulao de vitalidades por linhas paternas (Andrello, 2006; Stephen Hugh-Jones, 2002). Aliado a isto, proponho-me a encontrar uma linguagem analtica com vistas a no s refletir acerca de saberes que, tomados distintamente das pessoas, contribuem para diferenci-las, como tambm de que maneira sucede, no momento da passagem de uma rede de transmisso a outra, a transformao das prticas de conhecimentos. Nesses termos, exploro uma metodologia de anlise das conexes e fronteiras entre redes de saberes diferenciados em seus modos de enunciao, impactos, eficcias, agncias, modos apropriados de circular, e que me permita, igualmente, perceber os efeitos dos saberes enredados sobre as redes de sujeitos - estas ltimas j bem etnografadas no alto rio Negro. Percorro tambm um dilogo interno etnologia amaznica e regional, introduzindo uma reflexo sobre o regime de socialidade dual tal como apresentado por Stephen HughJones (socialidade ritual e socialidade domstica) e Viveiros de Castro (princpios da agnao e da cognao). Na defesa feita por Hugh-Jones dos modelos locais em detrimento de modelos gerais, o autor elabora uma reviso de seus trabalhos anteriores, enquanto dialoga diretamente com Strathern (gendered relations) e Viveiros de Castro (em torno do perspectivismo amaznico). Tal reviso se estende, de forma breve, a outras

1

etnografias recentemente desenvolvidas na regio do Uaups, em especial aquelas que problematizam a questo da descendncia, esta ltima pensada no em termos de linhagens, mas a partir de hierarquizao de valores, pessoas, grupos e bens. Por fim, inspirada em Cabalzar (2008), elaboro contrapontos entre o regime de socialidade dual altorionegrino e a idia de expanso de predomnios agnticos: movimentos de expanso atualizando a agnao e a hierarquia em novas bases - enquanto efeito dos dois plos ou princpios de socialidade (ainda que o autor no se utilize desse vocabulrio, j que circunscreve seu trabalho como um estudo de organizao social). Contudo, ainda que esteja ciente da pertinncia de remontar essas discusses para toda a etnografia do rio Negro, em virtude da densidade dificuldades envolvidas, optei por no seguir tal estratgia. No elaboro snteses comparativas, apenas dialogo pontualmente com alguns autores. * Alguns contrapontos surgem das revises sobre a prpria postura etnogrfica e analtica anteriormente desenvolvida por Stephen Hugh-Jones a partir da noo de casa e pessoa fractal no Rio Negro (1995; 2001, 2002a; 2002b; 2002c; 2009; 2009a). De modo anlogo a Tnia Lima (2005) que prope uma experincia de amerindianizao dos conceitos antropolgicos com o tema da perspectiva, Hugh-Jones faz o mesmo a partir da noo de casa no alto rio Negro: casa e suas riquezas, fabricao do corpo e nominao. O autor discute etnograficamente a circulao de aspectos da pessoa-grupo (suas continuidades) e revisa as noes de descendncia e hierarquia, colocando os sistemas sociais altorionegrinos em novo patamar comparativo. Com relao s etnografias mais recentes desenvolvidas na regio, dialogo especialmente com Cristiane Lasmar, Geraldo Andrello, Aloisio Cabalzar e Paulo Maia, sob ngulos terico-metodolgicos especficos: a) suas snteses a respeito dos processos de transformao nas teorias do conhecimento indgenas que se integram ao xamanismo, buscando acessar processos cosmopolticos de diferenciao ou alterao (Viveiros de Castro, 2002); b) suas propostas de confrontar modos de ao, estilos de vida e modos de existncia expressos nos idiomas da corporalidade (rotina diria, trabalho, dietas), tambm privilegiando os processos histricos (Lasmar, 2005). Neste movimento entre referncias, pretende-se pautar alguns dilogos internos ao discurso antropolgico na regio do alto rio Negro. Andrello (2004; 2006a) e Lasmar (2005) focam transformaes indgenas rumo ao mundo dos brancos: o primeiro atravs de processos de apropriao dos nomes dos brancos, dos papis (livros) e das mercadorias, bem como das noes indgenas de

2

civilizao, uma vez que os ndios se consideram civilizados; Lasmar, por sua vez, parte da experincia feminina e do casamento de mulheres indgenas com homens brancos no contexto urbano de So Gabriel da Cachoeira, e discute a percepo dos ndios dos processos corporais que atravessam o desejo de apropriao do saber dos brancos. * Nesse percurso, busco aproximar a discusso em torno da circulao de nomes e riquezas no rio Negro discusso da circulao de saberes, em redes empricas. Colocando em primeiro plano os saberes em circulao, proponho a possibilidade de acessar reajustes cosmopolticos em torno da fabricao do corpo e hierarquizao de pessoas e bens no rio Negro. Questes relativas s redes de sujeitos e aos processos de troca simblica (circulao de partes de corpos e propriedades metafsicas) que atravessam fronteiras sociopolticas, cosmolgicas e ontolgicas sero revisitadas na tese a partir das redes empricas de saberes. Esta tese, portanto, d precedncia analtica s formas de gerar conhecimentos, ou seja, s redes de saberes (Gallois, comunicao pessoal, abril 2009), mais que s redes de sujeitos: A questo priorizar as conexes que vo acontecendo e reconfigurando saberes, ao invs da circunscrio inicial nos tipos de conhecimentos ou nos conhecedores. Em linhas gerais, pode-se dizer que o presente trabalho consiste em um experimento descritivo focado nos confrontos enunciados em torno dos saberes especializados (prprios e de outros) e a diferenciao entre os conhecedores (masir) altorionegrinos - experimento este primordialmente focado nos processos de construo dos saberes e que proporcionar uma releitura das redes de sujeitos com seus conhecimentos: os papis do benzedor, paj, chefe, guerreiro, servo; dos conhecimentos como propriedade dos cls, sub-cls; do debate poltico previsvel em torno do controle dos conhecimentos, das prerrogativas especiais, estendendo-se s disputas por prestgio e atualizaes polticas das prerrogativas (Gallois, com. pessoal). Trata-se de uma leitura particular das especialidades com o foco nas redes que veiculam saberes e que produzem os agentes desses saberes. Saberes enredados fazendo coisas acontecerem onde no est previsto (Gallois, ms, 2009). Esta releitura est inspirada em uma discusso metodolgica que acontece no mbito do projeto Redes Amerndias.11

Redes Amerndias, gerao e transformao de relaes nas terras baixas sul-americanas - Projeto de pesquisa Temtica desenvolvido no mbito do Ncleo de Histria Indgena e do Indigenismo (NHII) da Universidade de So Paulo, sob coordenao da Profa. Dra. Beatriz Perrone-Moiss, entre 2007 e 2011, do qual venho fazendo parte. Em vrios sentidos este projeto temtico d continuidade s pesquisas desenvolvidas em projeto temtico anterior, no mesmo Ncleo: Redes de Relaes nas Guianas. O projeto se desenvolve sobre a temtica antropolgica da gerao e transformao de redes de relaes no universo

3

Segundo Gallois (idem):Ao invs de configurar como atores dessas redes os donos dos saberes, ou em outro registro, os autores, detentores ou transmissores de saberes, prefiro seguir os saberes e prticas que se transformam quando passam de uma rede de transmisso para outra. Se eu seguisse os donos, criadores, autores, detentores, usurios, grupos locais com saberes especficos etc, no poderia verificar to facilmente a ramificao que a circulao de saberes opera nas redes de sujeitos, revelvel em alguma conexo. Sigo redes de saberes para entender como eles (os ndios) percebem e distinguem conexes entre redes de saberes, identificando sujeitos.

Observar-se- contrastes entre saberes, enquanto circulam em trajetrias configuradas, percorrendo linhas paternas ou circulando em ambientes determinados, com modalidades apropriadas. Nesses termos, proponho uma descrio etnogrfica das intervises entre os homens tuyuka, percepes sobre trajetrias e circulao de seus conhecimentos, partindo de contextos polticos e mais cotidianos da uma aproximao parcial aos saberes ditos especializados. Nestes debates - como percebem conexes entre saberes transparecem percepes menos discutidas ou descritas na etnografia do agenciamento, via circulao ou transformao de saberes, das capacidades, das especialidades. * Embora no elabore teoricamente, esta tese influenciada pela proposta de descrio e anlise de modos de ao que criam pessoas e fazem coletividades, ao invs de produzir grupos, inspirada na antropologia ps-social e em autores como Strathern, Latour, Roy Wagner, Viveiros de Castro e Mrcio Goldman. Para ir alm das vises totalizadoras, sugerem estes autores, no se toma posio sobre um objeto deamerndio das terras baixas sul-americanas, propondo uma nova sntese comparativa em torno de como se organizam, em diferentes conjuntos regionais, redes de sujeitos, redes de discursos e redes de saberes. Com a noo de rede, de carter heurstico, busca-se superar os debates acerca das dicotomias clssicas, enfatizando-se o aspecto da comunicao e da transitoriedade das unidades, tomando-as como algo em constante fabricao, passveis de serem feitas e desfeitas a todo momento. Aproxima-se do que Viveiros de Castro dizia (1993c: 194, n.5) a respeito das morfologias amaznicas, que seriam. indutivas e no totalizveis, de tipo'rede; e de Strathern que, atravs da ferramenta metodolgica das redes de relaes, propunha buscar, na comparao, as variaes. "Variaes enquanto maneiras de cortar essas redes (que tambm no teriam valor fixo), interromper os fluxos, estabelecer descontinuidades. Em outras palavras, as maneiras de constituir, entre outras coisas, pessoas e coletivos. Composto por trs linhas de pesquisa, a primeira delas (redes de sujeitos) foca a constituio dessas redes e das unidades nelas e por elas geradas: constituio dos sujeitos em questo, que podem assumir diferentes formas. As modalidades de relaes concebidas pelos amerndios, inclusive com planos no-humanos. A segunda linha de pesquisas (Redes de discursos) volta-se para usos e processos de produo de enunciados relativos objetivao da "cultura", como operador estratgico de insero e confeco de redes que se estendem do plano local ao mundial. A terceira linha de pesquisas, na qual minha pesquisa pessoal se insere mais explicitamente (redes de saberes), foca princpios de gerao de modos de conhecimento e classificao do mundo, e sua articulao; aborda diferentes temas a partir dos modos de expresso de saberes.

4

conhecimento em detrimento dos interesses dos atores, procurando um controle sobre os dados e eliminando perspectivas alternativas. Mapas regionais ou genealogias, por exemplo, implicariam vises totalizadoras: pontos identificveis nos mapas, em detrimento das pessoas que mudam de lugar; as genealogias tambm, porque implicam fechamentos, sistemas de conceitos e seu potencial de transformao interno ao sistema, trajetrias particulares geneticamente possveis dentro dos princpios de que se parte de fenmenos circunscritos sob as caractersticas de identidade e fechamento(Strathern, 2004: xvii). Por isso, argumenta a autora: there is no map, only kaleidoscopic permutation (...) this is the insight, to elucidate obviously connected yet also differentiated sets of societies. Segundo Strathern (1988), se acabamos partindo de teorias, corpos de idias, conceitos que embasam uma descrio e que muito provavelmente no so aqueles usados pelos agentes, a estratgia explicitar isso, dando linguagem de anlise um dilogo interno, ao invs de usar o estilo monogrfico e sistmico para revelar as complexidades da vida social. Tal estratgia ajudaria a demonstrar como os fenmenos provocam uma forma analtica que no pretende ser comensurvel a eles, mas pretende, pelo menos, indicar um grau anlogo de complexidade. As discusses do primeiro captulo so indicativas de dilogos internos vislumbrados, cujos desdobramentos, aqui, no se consumam. As correlaes que vejo entre minha etnografia e outras discusses da antropologia regional do noroeste amaznico no rumam para quaisquer snteses ou sistematizao aprofundadas. Contudo, uma vez que elas interferiram em muito na minha etnografia, penso ser honesto apresent-las neste meu esforo limitado de organizar essas idias.

2. Contexto da pesquisa de campo no doutorado e experincias anterioresPara observar e falar da amplitude dos saberes e das vidas altorionegrinas, fiz o doutorado a partir de So Gabriel da Cachoeira, onde pude manter ciclos de conversaes com alguns Tuyuka, principais interlocutores desta tese. Desde a concepo da tese, imaginei a possibilidade de acompanhar processos de vida tuyuka desde o alto Tiqui, So Gabriel da Cachoeira ou de Manaus (Cabalzar, F. 2007). Todos eles j eram meus conhecidos de outras pocas em que convivi diretamente com os Tuyuka no alto rio Tiqui. Boa parte das conversas com os mais velhos deu-se em tuyuka. Sees de traduo e exegese aconteciam com apoio de seus filhos ou de jovens alunos da Escola Tuyuka de passagem pela cidade, ou ex-alunos hoje ali vivendo.

5

Anteriormente ao doutorado estive entre os Tuyuka no contexto de implementao de algumas escolas indgenas no alto rio Negro, organizadas atravs do Instituto Socioambiental (ISA) e da FOIRN (Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro) e de suas associaes locais. De 1999 a 2004 fiz assessoria antropolgica e pedaggica Escola Tuyuka, atravs do ISA, permanecendo entre 5 e 6 meses por ano nas comunidades do alto Tiqui para acompanhamento escolar e colaborao na organizao de oficinas, elaborao de materiais didticos e literatura, entre outras atividades. Realizamos uma srie de oficinas de polticas lingsticas e alfabetizao matemtica, tendo a oportunidade de realizar trabalhos conjuntos com assessores de outras reas como Maurice Bazin (matemtico e educador), Gilvan Muller de Oliveira (polticas lingsticas), e de outras instituies, como Jos Ribamar Bessa Freire da UERJ, Marlui Miranda, musicloga; Judite Albuquerque, dentre outros. Mesmo antes disso, em 1994, eu j havia estado por quatro meses nessa regio, acompanhando etapa de campo de Aloisio Cabalzar durante sua pesquisa de mestrado sobre organizao social (Cabalzar, 1995 e 2008). Ao longo desse tempo, pude adquirir um grau de familiaridade com a lngua que me permite comunicar-me razoavelmente bem em tuyuka, embora para alguns efeitos eu ache mais prudente trabalhar com apoio de tradutores e transcritores. Nestas etapas de atividades de campo, realizei entrevistas e vrios registros, alm de acompanhar a produo de um acervo de registros escritos em tuyuka, desde o momento em que iniciaram a escrita em sua lngua, e de observar uma srie de produtos de pesquisas temticas tuyuka, organizadas nesse perodo de 2000 a 2006. Durante a pesquisa de doutorado pude revisitar, transcrever ou traduzir (no todo ou parcialmente) uma parte desse material. No incio do doutorado em 2005, fiz uma viagem de um ms aos Tuyuka, em virtude da formatura da primeira turma da escola no ensino fundamental, quando permaneci, com o apoio do Instituto Socioambiental, vinte dias na comunidade de So Pedro ou Mpoea no alto Tiqui. Na ocasio participei da primeira reunio CANOA transfronteiria Coordenao Aliana Noroeste Amaznico - envolvendo povos Tukano Orientais do rio Piraparan colombiano e do alto rio Tiqui brasileiro e colombiano. Durante todos os perodos fora de campo mantive contato quase permanente com equipes do Instituto Socioambiental que continuam acompanhando atividades na regio no mbito de projetos de educao escolar indgena, manejo auto-sustentvel e valorizao cultural. Embora parte dos resultados desta tese tenha sido produzida no trabalho de pesquisa bibliogrfica, trata-se de uma tese fortemente influenciada pela experincia de

6

campo (inclusive aquela anterior ao doutorado), pelas discusses entretidas no processo de qualificao, e no mbito do projeto Redes Amerndias, gerao e transformao de relaes nas terras baixas sul-americanas, do qual venho participando desde 2006 (Proc. 05/57134-2, FAPESP) no Ncleo de Histria Indgena e do Indigenismo - NHII - da Universidade de So Paulo. A busca pelo entendimento de processos atuais vivenciados pelos Tuyuka no se encerra com a concluso da tese. Esta ltima, ao contrrio, pretende apenas explicitar as bases etnogrficas e conceituais que informam essa busca contnua. Nesse sentido, cada captulo procura reunir um conjunto de questes em cuja rbita transito, questes que retornam continuamente at o final do texto. * O contexto de minhas atividades entre os Tuyuka anteriormente ao doutorado foi marcado pelas iniciativas no mbito da Escola e suas polticas lingsticas. Algumas de suas lideranas j haviam seguido um percurso de at dez anos de escolarizao nos internatos salesianos, alimentando sua viso crtica quela filosofia de educao2 em um ambiente de vises conflituosas entre os prprios ndios. A reformulao de suas escolas, que se dava na poca, acontecia num mbito de negociaes permanentes e delicadas3 em torno de seus saberes ou culturas.

At os anos 80, o ensino escolar na regio do Uaups concentrava-se nas misses. Desde a dcada de 30 do sculo passado, os povos indgenas do alto rio Negro foram escolarizados e catequizados por missionrios salesianos. Foram obrigados a abandonar suas malocas e proibidos de falar suas lnguas nas escolas, cedendo em parte, sob ameaas e castigos. Dentre os ndios, alguns ainda foram porta-vozes (catequistas) dos padres na empreitada civilizatria quando jovens para, dcadas depois e j maduros, tornarem-se importantes lideranas tradicionais. Alguns velhos esconderam suas caixas de adornos rituais ao mesmo tempo em que seus filhos enviavam seus netos aos internatos.2 3

Segundo Rezende (2007), nos primeiros anos de internato o sistema educacional no abalou a base da educao tuyuka. Com o passar das dcadas, conforme cada vez mais crianas e adolescentes entravam no internato, foi possvel perceber que a educao escolar salesiana provocava a perda das prticas culturais. Este tipo de anlise se torna possvel vendo outros contextos scio-polticos. Naquela poca se pensava que, entrando mais cedo no internato, havia possibilidade de tornar-se mais civilizado. Na dcada de 1970, em PariCachoeira, muitos indgenas rejeitavam as prticas culturais, negavam a identidade indgena e se consideravam brancos (civilizados) (...). Os alunos e alunas no eram educados para as tradies indgenas (serem ndios), mas sim para os valores do mundo do civilizado (lngua portuguesa, costumes, profisso...). O sonho era um dia tornar-se branco. Quando um filho j sabia falar a lngua portuguesa, os prprios pais diziam: o meu filho j branco! Esta situao gerava orgulho nos jovens, pais, professores, salesianos e o governo. Por outro lado, surgiram mais explicitamente preocupaes com os valores indgenas, crticas ao modelo escolar, prtica salesiana etc. A nova interpretao daquela histria gerou conflitos entre os indgenas e missionrios. Os indgenas acostumados com as prticas da civilizao entendiam a proposta de valorizao das culturas indgenas como volta ao seu passado. Alguns salesianos (Pe. Casimiro, Pe. Eduardo Lagrio...) insistiam para que os indgenas recuperassem, revitalizassem e fortalecessem as prticas, porm, existiam outros que no queriam. Em Pari-Cachoeira, por exemplo, nas reunies de pais, algumas lideranas tradicionais diziam que a finalidade da escola deveria ser ensinar os conhecimentos das sociedades civilizadas. Somente na dcada de 1980, com os compromissos de associaes e organizaes indgenas, e com o apoio de outras entidades no-indgenas, que comeou o trabalho de conscientizao pela valorizao das culturas indgenas. Esta nova mentalidade surge dentro de um delicado processo de negociao entre aquilo que os jovens, lideranas, pais e comunidades sonham como fortalecimento das culturas e identidades indgenas.

7

Na poca, eles assumiam uma postura de reao ao impacto da educao salesiana no enfraquecimento dos vnculos dos mais jovens com as geraes mais velhas dos avs e com suas comunidades de origem, bem como de reao contra a reproduo de preconceitos lingsticos: as lnguas indgenas vistas como obstculos para o aprendizado do portugus. Reagiram, ento, lanando tentativas mais explcitas de recuperao de prticas que muito tempo foram reprimidas (Cabalzar, 1999: 373), de crtica ideologia da poca dos internatos. O desejo de apropriao dos conhecimentos ou capacidades dos brancos ocorreria de forma duplamente seletiva ou diferenciada nestas novas Escolas que ento comeavam a ser implementadas. Ao se definirem como Escolas tnicas4 e valorizarem os saberes rituais e xamnicos, como enfatizou Lasmar, elas atualizavam processos fundadores da socialidade indgena.Para os ndios, parece-me, essa escola diferenciada porque se prope sensvel no s diferena entre ndios e brancos, mas tambm diferena entre grupos indgenas (...) Essa escola pode ser entendida como uma tentativa de minimizar os efeitos colaterais do processo de apropriao dos conhecimentos dos brancos, de um duplo ponto de vista: procurando interferir o mnimo possvel na rotina da vida em comunidade (...) de modo que garantiria o acesso seletivo ao conhecimento dos brancos sem que os jovens precisassem se afastar, nem fsica nem conceitualmente, de sua comunidade de origem; e a escola assumindo um compromisso com a preservao e o resgate dos patrimnios culturais dos diferentes grupos, os quais se objetivariam, sobretudo, nas lnguas, nas rezas xamanicas, nas narrativas de origem, no conhecimento ritual, enfim, nos bens concedidos pelo Criador aos ancestrais dos ndios no momento em que se deu a diferenciao da humanidade (Lasmar, 2005: 255-63).

O campo das relaes entre as lnguas e seu fortalecimento parece ter especial relevncia nessa realidade regional onde o multilingismo estrutural. Um movimento de inverso dos preconceitos lingstico-culturais inerentes ao modelo de escola salesiana tem sido parte importante da agncia tuyuka e dos demais povos Tukano hoje. O sentido das intervenes tendem a se dar na direo do enriquecimento do plurilingismo, em oposio a orientaes na direo do monolingismo (empreitada salesiana no sculo

4 As escolas indgenas da regio vm se organizando por territrios tno-lingusticos, ou seja, em regies de predomnio das diferentes etnias e lnguas. Enquanto algumas Escolas englobam comunidades e territrios onde h predomnio de um grupo (Escola Indgena tapinopona Tuyuka, Escola Indgena Wanano), outras abrangem sub-regies mais complexas no sentido em que abarcam comunidades vizinhas de diferentes lnguas e etnias. Podemos citar como exemplos a Escola Indgena Baniwa-Coripaco (mdio Iana), a Escola Indgena Tukano Yupuri (mdio Tiqui), dentre outras. Nestes contextos existe um acmulo maior de informao e reflexo, tanto da parte dos professores e lideranas indgenas, quanto de alguns assessores e parceiros do ISA - Instituto Socioambiental (lingistas, matemticos, educadores), co-participantes de algumas etapas dos processos.

8

passado que perdurou at os anos 1980).5 Atravs da prtica de pesquisas, do uso das prprias lnguas no ensino, seu uso fora da escola, a realizao de registros diversos (escritos e audiovisuais) atualizam de novos modos seus vnculos geracionais. Segundo alunos da Escola: A pesquisa ajuda a explorar conhecimentos de cada um (...) Busca aproximar mais dos velhos, ou de quem tenha mais conhecimentos (...) Saia masire buere (conhecer atravs de questionamentos, perguntas, ou ensino via pesquisa), ensinar a conhecer melhor (...) Nesse sentido, os velhos vm se esforando muito de manifestar seus conhecimentos para ns (Rezende, 2007: 359). De dentro de situaes de assessoria e antropologia, vimos a Escola como meio de acessar recursos e conhecimentos, de atualizar relaes prximas e distantes. No doutorado, vimos a escola em meio circulao de saberes em redes e em seus circuitos de confiana entre diferentes redes de saberes. * A partir de So Gabriel da Cachoeira tambm mantive, nesse perodo, muitos contatos com moradores das comunidades tuyuka do alto Tiqui, com quem convivi em vrios momentos nos ltimos dez anos, desde que acompanhei a implantao da Escola Tuyuka, inspirada num desejo de mudar a educao escolar tradicional, aquela implementada pelos salesianos para civilizar - (basoka seore).6 Trabalhei, sobretudo, com homens tuyuka mais velhos, mas tambm com os afins dos tuyuka, mulheres e homens tukano e yebamas, dentre outros, focando-me nas histrias de vida, no rumo dos aprendizados especializados no curso da vida, privilegiando todas as oportunidades deA poltica escolar tuyuka veio se definindo referenciada em discusses mais amplas, de poltica lingstica, atravs de uma srie de decises para ampliar as possibilidades de uso do tuyuka: 1) confronto influncia da lngua franca indgena regional, o tukano, ou do portugus; ao fato de os jovens estarem adotando a lngua tukano entre eles no cotidiano, e de algumas mes - falantes de outras lnguas - no estarem incentivando seus filhos ao uso do tuyuka; 2) dentro das escolas, adoo da lngua tuyuka como lngua de instruo durante todo o ensino fundamental e no apenas como uma lngua dos primeiros anos do ensino, depois colocada em segundo plano pelo portugus; 3) realizao de diagnsticos comunitrios peridicos da situao da lngua tuyuka em relao s demais lnguas Tukano Orientais e ao portugus, garantindo participao comunitria na definio das estratgias e na avaliao e planejamento de cada nova etapa; 4) construo de conhecimentos atravs de prticas de pesquisas focadas nos prprios conhecimentos, desde os anos inciais at o ensino mdio.5

Para entender melhor a situao atual dos Tuyuka, importante ter em mente que, desde a dcada de 40 do sculo passado, esses povos foram compulsoriamente escolarizados e catequizados por missionrios salesianos. Foram obrigados a abandonar suas malocas e proibidos de falar suas lnguas nas escolas das misses, cedendo em parte, sob ameaas e castigos. Passado o perodo de interveno mais violenta e determinada dos salesianos, o tempo dos internatos e certa decadncia das misses,hoje os tuyuka, ao lado de muitas outras iniciativas indgenas no Brasil, vivem o processo de reorganizar ou organizar o ensino escolar em bases culturais (poltica e pedagogicamente). Quando os Tuyuka comearam o ensino de 5 e 6 sries em suas comunidades no final de 2001, crianas e jovens tuyuka abandonaram a escola da misso de PariCachoeira para construir seu prprio projeto de escola. Voltam para estudar em suas comunidades, onde passam a adotar o tuyuka como lngua de instruo at a 8 srie, uma deciso central com muitas conseqncias importantes nas escolas e fora delas. Sua poltica escolar deve ser entendida enquanto inserida numa discusso de polticas lingsticas e comunitrias, de escopo e conseqncias mais amplas.6

9

discusso das biografias e prticas de conhecimento, concentrando-me em episdios considerados mais significativos, tanto pelos narradores quanto por mim. Trabalhei, com apoio de tradutores jovens, uma srie de registros em udio e registros escritos, produtos de pesquisas conduzidas no mbito da Escola Tuyuka, das quais participei direta ou indiretamente em anos anteriores (2000-2006), quando convivi principalmente com moradores das comunidades de So Pedro, Cachoeira Comprida e igarap Ona. Concentro-me principalmente nas discusses no mbito dos projetos de gesto de conhecimento e processos de valorizao em voga em toda a regio, especialmente quando incidem sobre a questo da formao de danadores (bayaroa) e benzedores (basera) nos dias de hoje; nas pesquisas de temas importantes (nirmakae) conduzidas pelos alunos, em correlao com sua formao para ser baya (danador/cantador) e benzedor - a ser conduzida em limiares da Escola e fora dela; na forma de colocar demandas aos jovens.

3. Pequena cronologia das mudanas de foco do doutorado

Entrei no doutorado com o projeto de pesquisa Multilinguismo e relaes sociopolticas Tuyuka: Estudo das teorias do conhecimento, processo de produo e transmisso de conhecimentono atual contexto multilingue do alto Rio Tiqui / Uaups. Tratava-se de um enfoque etnogrfico nos contextos cotidianos de aprendizado e transmisso - rotinas interativas - hoje valorizados pelos Tuyuka, e das diferentes posturas geracionais e de gnero, usos apropriados e atribuio de importncia relativa s vrias lnguas nesses contextos. No incio do doutorado elaborei algumas reflexes sobre a experincia de campo j acumulada anteriormente, focando o contexto da Escola Indgena Tuyuka, naquilo que eu j havia feito entre os Tuyuka e o que faria adiante. Uma vez que se tratava de uma etnografia das situaes de transmisso e das teorias do conhecimento (como formulado no projeto inicial), era certo que a escola seria um dos contextos, especialmente de construo de alternativas polticas, pedaggicas, tcnico-cienticas relevantes para as comunidades tuyuka e regio como um todo, segundo uma lgica prpria. Desenvolvi interrogaes preliminares em torno do lugar de nossos trabalhos de assessoria na escola indgena em relao ao corte que separa natureza/cultura ou natureza/sociedade. Passei a vislumbrar os Tuyuka, construindo em seus encontros conosco novas relaes no

10

campo do plurilinguismo, da escola diferente da que tinham antes; das parcerias em projetos; das pesquisas. At incio do doutorado no havia tido contato com a literatura antropolgica ps-social mais recente que envolve autores que tambm se revisitam, como Roy Wagner, Strathern, Latour, Viveiros de Castro (quando este sugeriu a incompatibilidade entre duas concepes de antropologia),7 inspirados em Deleuze e Guattari e outros. Nesse sentido, as primeiras leituras levaram-me a uma reformulao da pesquisa, resultando, assim, na proposta atual. No meio do doutorado, redirecionei meu projeto para as percepes que os Tuyuka teriam das suas diferentes experincias, situaes e trajetrias de vida na atualidade, focando-me em trajetrias ou experincias de vida, processos micro-histricos nos quais se engajaram em diferentes momentos, ativando relaes e construindo significados, das motivaes para seus feitos e trajetrias. Era uma tentativa de olhar para sua dinmica, mltiplas dimenses, processos transformadores de comunidades ou culturas. Tratava-se de focar experincias e processos (sociocosmolgicos, sociopolticos) de diferenciao, e das conexes em suas diferenas. Apenas a partir da qualificao (F. Cabalzar, 2007) a questo central da pesquisa passou a enfatizar as especialidades altorionegrinas. O processo envolvido nas reflexes mais recentes e no processo etnogrfico encontra-se nos captulos da tese.

4. Eixo alto rio Tiqui - So Gabriel da CachoeiraDesenvolvo a tese partir do eixo alto rio Tiqui e So Gabriel da Cachoeira, na regio da Terra Indgena do Alto Rio Negro (a cidade, particularmente, est fora da referida Terra Indgena, que se estende a partir da margem direita do Rio Negro), demarcada e homologada, onde vive uma populao - pertencente s famlias lingsticas Tukano Oriental, Aruak e Maku - totalizada em cerca de aproximadamente quatorze mil pessoas. Fazem parte do sistema de exogamia lingstica (regra de casamento com pessoas que falam outra lngua e de outros grupos de descendncia) cerca de dezenove

7 E a necessidade de escolher entre elas. De um lado, o conhecimento antropolgico que resulta da aplicao de conceitos extrnsecos ao objeto - sabemos de antemo o que so as relaes sociais, a cognio, o parentesco, a religio, a poltica; de outro lado, um conhecimento antropolgico que pressupe igualdade conceitual entre procedimentos da investigao e procedimentos investigados. Assim, Viveiros de Castro define essa antropologia como a arte de determinar os problemas postos por cada cultura, que no so os mesmos, e no de achar solues para os problemas postos pela nossa. Os problemas reais de outras culturas so apenas problemas possveis para a nossa. Viveiros de Castro (2001: 26) comenta que o papel da antropologia dar a essa possibilidade (lgica) o estatuto de virtualidade (ontolgica), determinando, ou seja, construindo, sua operao latente em nossa prpria cultura.

11

grupos da famlia Tukano Oriental8 (o Tuyuka inclusive) entre os quais vigora, como conseqncia, um multilinguismo sistemtico (Gmez-Imbert, 1996: 445), sendo a grande maioria dos ndios plurilnge, falando duas, trs, ou mais lnguas (a lngua do pai, a lngua da me, a de avs que podem ser falantes de uma terceira lngua, etc). Tal contexto envolve plurilinguismo individual, coexistncia de vrias lnguas nas comunidades, devido, sobretudo, presena de mulheres de vrias origens, e o fato de cada lngua estar espalhada em vrias micro-regies, os grupos lingsticos no vivendo em reas contnuas. No alto rio Tiqui, foco uma rea de ocupao tuyuka que se define por uma srie de cinco comunidades tuyuka vizinhas: Mpoea ou So Pedro, Cachoeira Comprida e Fronteira no alto Tiqui brasileiro; Pupunha e Bella Vista no alto Tiqui colombiano. Nesse trecho todo, o tuyuka a principal lngua domstica e lngua de intercomunicao nas reunies polticas e cerimoniais. A etnografia inclui tambm uma comunidade tuyuka mais distante, rio abaixo: Ona igarap, localizada em territrio de ocupao de seus cunhados tukano, vizinho a Pari-Cachoeira, que sedia a misso salesiana neste rio. Vale situar brevemente o alto rio Tiqui. Taracu (situada no Uaups logo acima da foz do Tiqui) e Pari-Cachoeira (j no alto Tiqui) so comunidades antigas dos Tukano. Os missionrios salesianos a se instalaram (com grandes estruturas construdas em torno de internatos), respectivamente, em 1923 e 1940. Acima de Pari-Cachoeira, vem o trecho mais encachoeirado deste rio, que vai atravessar a fronteira Brasil Colmbia adiante (ver Cabalzar, org. 2005). Logo acima de Pari-Cachoeira est um trecho de ocupao tukano, ainda que os dois igaraps prximos misso sejam de ocupao tuyuka (na margem direita, o Igarap Ona; e o igarap Cabari na margem esquerda). Destes, vamos falar mais do igarap Ona, com comunidades tuyuka prximas aos cunhados tukano, onde Manoel Lima (Mandu), um dos principais interlocutores desta tese, foi criado.

Existe uma produo etnogrfica extensa e de qualidade referentes aos povos Tukano Orientais. Sem ser exaustiva, podemos destacar: Andrello (2006), rhem (1981, 1993, 1996, 2000, 2001), Bksta (1988), Torres Laborde (1969), Brzzi Alves da Silva (1962), Fulop (1954 e 1956), Reichel-Dolmatoff (1971 e 1975), Goldman (1963, 1977, 2004), Buchillet (1983, 1988, 1991a, 1991b, 1995, 1997), Cabalzar (1995, 1999, 2000, 2008), Cayn (2002), Chernela (1982, 1983, 1997a, 1997b, 2001, 2003, 2004), Correa (1996), C. Hugh-Jones (1977, 1979), S. Hugh-Jones (1977, 1979, 1988, 1992, 1993, 1995, 1996a, 1996b, 2001, 2002, 2006, 2009, 2009a, 2009b), Jackson (1974,1983, 1994, 1995a, 1995b), Koch-Grnberg ([1909] 1967), Lasmar (2005), Langdon (1975), Mahecha Rubio (2004), Ribeiro (1980).

8

12

Dos Tukano, vamos falar mais de So Domingos, no rio Tiqui prxima foz do Ona igarap. Acima do trecho de ocupao tukano vem um trecho de ocupao tuyuka que atravessa a fronteira. Daqui, vamos falar mais de Mpoea ou So Pedro, onde moram Guilherme e Higino Tenrio - principais lideranas tuyuka do rio Tiqui - e sede da Escola Tuyuka. J mais alto, na Colmbia, falaremos em linhas gerais, citando mais frequentemente o povoado tuyuka de Pupunha, onde vivem at hoje alguns irmos

13

maiores de Mandu, dentre eles Pedro e, at h alguns anos, o finado Casimiro Lima. Muitos moradores de Pupunha j viveram na regio de Pari-Cachoeira e do Ona igarap, e depois subiram novamente, de volta regio de ocupao de seus avs antigos. Mandu desceu, mas no voltou com eles. Acima dos tuyuka da Colmbia vem um territrio bar.

14

* A etnografia regional enfatiza que a lngua paterna dominante nas comunidades indgenas da regio (correspondente maloca tradicional), tanto como lngua pblica usada nas reunies comunitrias pelos homens e jovens, como enquanto lngua standard para os conhecimentos do grupo. A lngua paterna, em um ambiente onde vigora a exogamia lingustica e a residncia patrilocal, corresponderia a um recurso poltico que restringiria aos homens o acesso a certos conhecimentos e formas de comunicao. Segundo Chernela (2004:14), na transmisso de conhecimentos do sib de uma gerao outra os homens consideram essencial que as identidades lingsticas permaneam distintas e as fronteiras lingsticas bem delimitadas e estveis. Nesse contexto, a pluralidade de lnguas faladas pelas mulheres afins que chegam comunidade a partir do casamento substancia, de acordo com os homens, as influncias caticas das mulheres. Segundo a autora, as conversas multilnges das mulheres de fora acentuariam sua diferena, seu papel perifrico na perspectiva dos homens, cujos discursos correspondem a interaes monolnges que ocupam o centro das comunidades. Enquanto alguns autores contrapem acesso restrito dos homens aos conhecimentos do sib, ao papel desestruturador das mulheres, outros enfatizam a complementaridade entre as esferas masculina, e feminina do conhecimento a que homens e mulheres so, respectivamente, instrudos a dominar desde sua criao na infncia, juventude e vida adulta, em sua produtividade recproca. Nesse sentido, fala-se de conhecimentos especficos da mulher e do homem, pois que o aprendizado corresponde tambm ao manejo de substncias (poderes masculinos e femininos) que so perigosos uns aos outros: o consumo do ipadu, essencial aquisio de saberes masculinos, afetaria os poderes reprodutivos da mulher; enquanto o sangue feminino afetaria os poderes reprodutivos dos homens. Mesmo que certos saberes considerados de valor maior (niromakae) sejam identificados ao ambiente masculino e que a maioria das mulheres no seja instruda nesse sentido - mas sim para dominar outras esferas do conhecimento, menos exploradas e abordadas antropologicamente como a criao dos filhos, cuidados com gestaes e partos e o manejo da roa - ainda assim enfatiza-se (ver Mahecha, 2004: 120) que o pensamento altamente valorizado pelos homens s se completa com o das mulheres, e com o de outros homens cujos trabalhos no so propriamente xamnicos (idem). Tais saberes de valor maior correspondem a campos especficos de conhecimento, hierarquizados e complementares (idem: 135), e a ofcios diferentes a que cada pessoa

15

direcionada desde a nominao: benzimento realizado aps o nascimento entre os Tuyuka, em que se atribui criana, com o nome, transmitido por linha paterna, a inteno de um certo ofcio ou especialidade.9 * A criana tuyuka no alto Tiqui, como boa parte das crianas na regio, fala pelo menos duas lnguas, a do pai e a da me (na maioria dos casos tukano). Ter mais intimidade com a lngua da me no incio de sua socializao, fato que garante, justamente, a persistncia do multilinguismo caracterstico desta regio. Na socializao da criana, entretanto, deve-se lev-la a, progressivamente, abandonar a lngua da me pela do pai (Gmez-Imbert, 1996: 443), uma vez que compreenda que h mais de uma subcomunidade lingstica no seu campo social. Mahecha (2004: 235-6) enfatiza a importncia da competncia cultural tanto na lngua do pai como na da me, mais valorizadas respectivamente pelos parentes agnticos e afins. O domnio da lngua seria um indicador concreto dos conhecimentos que a pessoa tem de sua Gente. O emprego correto das diversas formas retricas valorizadas em diversos contextos seria a condio bsica para poder afirmar que se tem um pensamento completo. Tambm seria igualmente importante dominar um vocabulrio bsico em outras lnguas faladas nas regies por onde a pessoa circula (idem: 235-6).10 Considera-se que tanto homens como mulheres aprendem conhecimentos e prticas prprios, pelas quais zelam seguindo estratgias discursivas, no sentido de que o que assunto de mulher ou assunto de homem s pode ser contado em determinadas circunstncias e entre determinadas pessoas (Mahecha, 2004: 290). Esse zelo envolveria

9 Dentre estes campos especficos de conhecimento e ao, hierarquizados e complementares, alguns so saberes considerados de valor maior (niromakae) por seu poder de proteo e formao da pessoa, sendo centrais na diferenciao entre irmos homens por ordem de senioridade (critrio de hierarquia), e no manejo dos quais alguns conhecedores se tornam respeitados, enquanto irmos maiores e tambm segundo a profundidade de seus conhecimentos. Ainda que todo homem adulto possa manejar niromakae, considerase que a maior parte dos homens no o far, especializando-se em outros ofcios como o de bom trabalhador, bom pescador, bom caador. H pessoas benzidas para exercer estas outras funes, assim como hoje tambm se benze para exercer novas funes associadas com a dinmica das comunidades atuais. Aspectos de niromakae, como benzimentos de proteo e cura, tambm podem (embora raramente o sejam) ser manejados por mulheres que j passaram seu perodo frtil. Quanto aos conhecimentos de cantor, algumas mulheres tambm so preparadas desde o nascimento. J conhecimentos para entoaes cerimoniais so considerados exclusivamente masculinos entre os Tuyuka. (Ver Mahecha: 135) 10 Citando Cayon (2003, ms), Mahecha (2004) escreve que os seres no humanos donos dos lugares sagrados de certo territrio, falariam a mesma lngua da Gente que o maneja, mudando a novo territrio, os benzedores teriam que aprender as lnguas e benzimentos dos donos dessa regio.

16

ainda a tica do no envolvimento nas tradies alheias (Goldman, 2004), e o segredo na pronncia de nomes sagrados (S. Hugh-Jones, 2002).11 Mesmo que certos saberes sejam conhecidos por muitos, o manejo do secreto restringiria sua circulao, de modo que s se conta certos saberes mediante confiana e credibilidade (Mahecha, 2006: 298). Saberes mais secretos, seriam debatidos principalmente a partir da iniciao, quando se busca aprofundar os conhecimentos associados a especializaes e ao manejo de suas fontes de fertilidade como a menstruao (das moas) e o jurupari (entre homens). Nesse sentido, minha inteno enfatizar percepes em torno das relaes de confiana, que podem se construir para alm das relaes pais-filhos, avs-netos, ou paifilho do irmo do pai - filho do irmo. Uma vez que me concentro mais na circulao de saberes de maior valor (niromakae), discuto mbitos de abertura e abrandamentos a percebidos. Se a percepo da eficcia de saberes mais valorizados passa mais explicitamente pela circulao interna a linhas (a referida transmisso de saberes de valor maior de uma gerao a outra, internamente aos sibs), h rotas e modos de circulao traados por linhas em expanso.12 Por exemplo, no caso de irmos que seguem por distintas trajetrias e vivncias a partir das quais concebem seus saberes maiores. A partir da circulao de saberes maiores entre diferentes sibs (ou segmentos de sibs), outros modos de circulao se explicitam, no mbito da gerao e transformao dos saberes niromakae. * Os Opaya em expanso De antemo, apresento meus principais interlocutores na etapa da pesquisa de doutorado, em correlao com os maiores colaboradores tuyuka ao trabalho de Cabalzar (2008), desenvolvido tambm entre os Tuyuka do alto Tiqui. O referido antroplogo centrava-se na narrativa histrica do sib Opaya, sob a perspectiva dos irmos maiores Gire e Higino Tenrio, que vivem no alto rio Tiqui, na comunidade de Mpoea ou SoSegundo o autor, sua pronncia em contextos narrativos adequados como os benzimentos servem para controlar ou transformar as manifestaes de seu esprito. Segundo Mahecha (2004: 213), nomes pessoais ou nomes de lugares sagrados seriam mantidos em segredo, pois ao mencionar lugares de origem de certos conhecimentos e bens rituais especficos de cada Gente, invoca-se seus donos, que podem utiliz-lo com propsitos benficos ou perversos. Sua enunciao em certos contextos expe aos perigos dessa interao. A enunciao de nomes pessoais tambm implica em contato com os bancos de pensamento das pessoas e com os ancestrais falecidos em outras dimenses do cosmos.11

A idia das linhas em expanso, ou da expanso de predomnios agnticos; assim como de adensamentos (certos sibs ou segmentos de sibs), ou da expanso das redes de saberes, so mais detidamente definidas ao longo do captulo 1 ou desenvolvidas ao longo da etnografia como um todo.

12

17

Pedro. Entre os Opaya, eu j me aproximo mais dos irmos menores de Higino e Gire, como se reconhecem desde geraes passadas os respectivos avs de Mandu Lima, Pedro Lima e o finado Casimiro Lima, em relao aos avs de Higino e Gire.13 Estes irmos menores se encontraram em maior circulao territorial no alto rio Tiqui (entre Pupunha e igarap Ona entre os anos de 1920 e 1950 aproximadamente), assim como entre o Tiqui e So Gabriel da Cachoeira, onde Mandu vive desde os anos 1980 e onde veio a falecer em 2005 o velho Casimiro. Pedro, circulando tambm como seus irmos, sempre viveu em Pupunha,, tendo mais recentemente se aproximado mais da Escola Tuyuka, passando grandes temporadas em So Pedro ou Mpoea, comunidade sede da escola, onde colabora intensamente como conhecedor, em redes que privilegiam o registro dos saberes de maior valor (niromakae) a partir do ensino com pesquisas conduzidas pelos alunos frente aos velhos conhecedores. Pedro Lima tambm trouxe seus filhos mais novos para conclurem seus estudos (ensino mdio) na Escola Tuyuka. Pupunha a primeira comunidade Tuyuka passada a fronteira, rio acima, j na Colmbia, onde vigoram sistemas pblicos de sade, educao e territorialidade indgenas bastante diferenciados dos brasileiros. Cabalzar (2005; 2008) igualmente reconhece que, apesar de focar nos Opaya, as narrativas histricas dos Tuyuka, que convivem e colaboram poltica e ritualmente no alto rio Tiqui, s existem enredadas. Exploro aspectos desse enredamento a partir de prticas de conhecimento e percepes de conhecedores, que tambm se delineiam nesse sentido, diferenciando Opaya, Okokapea, Kumumua, Mio e Dasia. Relevo especificamente aspectos de seus debates em torno de niromakae, enquanto saberes de maior valor circulando entre redes ou, entre tais adensamentos. Busco perceber aspectos da expanso das redes de saberes: as linhas entre avs e netos homens, ancestrais e atual humanidade, por onde circulam foras vitais, poderes e riquezas (includas as narrativas, os benzimentos de proteo, as entoaes cerimonais, a partir das quais tambm se diferenciam). *

13 Mandu Opayadokapuara. Os Opaya em conjunto correspondem ao sib de mais alta hierarquia do rio Tiqui em relao aos outros sibs tuyuka dessa regio, seus irmos menores nessa ordem: os Okokapea e Kumumua, Mio e Dasia. Dentre os Opaya (assim tambm dentre os outros), tambm vigoram distines explicitadas por relaes de senioridade entre irmos. Mandu e seus irmos classificatrios Pedro Lima e finado Casimiro Lima, em conjunto (e enquanto netos de um mesmo av, Buabi Yaka), consideram-se menores em relao s lideranas maiores que esto hoje vivendo na comunidade de Mpoea ou So Pedro, Guilherme e Higino Tenrio (que so netos de um outro av, Poani Ekag ou Poani Urumutum, irmo maior de Buabi Yaka).

18

Conexes e transformaes a partir do alto rio Tiqui A continuidade que marca o territrio tuyuka no alto Tiqui desaparece no mdio e baixo rio Tiqui, onde prevalece uma descontinuidade maior por etnia, compondo uma situao de maior complexidade social no mbito de predomnio da lngua tukano. As comunidades tuyuka do alto Tiqui so prximas entre si, mantendo relaes sociais intensas (co-participao em ciclos rituais, colaborao nos trabalhos coletivos, trocas de bens e trocas matrimoniais). Abrigam no apenas grupos de descendncia tuyuka (que seria a ocupao clssica das malocas uaupesianas), mas tambm famlias afins coresidentes. No territrio tuyuka do alto Tiqui predomina a lngua tuyuka, usada inclusive pelos cunhados co-residentes naquela rea. A outra regio onde predomina uma ocupao territorial contnua tuyuka, no includa como foco desta tese, a do igarap Inambu, afluente do Papuri. H outras ocupaes no Castanha (afluente do mdio Tiqui); duas comunidades em afluente do igarap Machado (Komea); uma comunidade no baixo Tiqui (Vila Nova) e algumas famlias nos centros missionrios e urbanos regionais. Quando conversava na cidade de So Gabriel com os Tuyuka mais velhos que cresceram no alto Tiqui, sempre propunha que fizssemos todas as conversas em Tuyuka. Com os velhos, a conversa flua com bastante naturalidade; parecia mesmo que a lngua e seus saberes se compunham; j parecia um esforo, s vezes estril, para os demais, com os quais eu tinha que insistir que mantivessem o tuyuka no curso da entrevista. Apesar de morar h mais de vinte anos em So Gabriel, Mandu fala um portugus precrio. Minhas perguntas eventualmente colocadas em portugus no provocavam qualquer mudana de registro lingstico, embora com elas o interrompesse de modo bastante inconveniente, criando lacunas importantes ao quebrar sua linha narrativa. Quando procurei Mrio Tenrio, hoje com seus sessenta anos e h cerca de doze anos na cidade, quase vinte anos mais jovem que Mandu, ele simplesmente no conseguia manter o tuyuka, provavelmente pela conscincia das minhas dificuldades lingsticas. todo momento, passava do tuyuka para o portugus. Isso interessante, porque para Mandu essa mesma conscincia tinha efeitos distintos. Gostaria de comentar um episdio referente a esta conexo entre dinmicas sociopolticas, espaciais e as transformaes e possibilidades sociolingsticas nesse contexto multilnge. Ns, antroplogos, geralmente perguntamos s pessoas aqui da regio, num primeiro encontro, de onde so, de onde vm (comunidade /lngua /regio), o que j nos permite fazer um primeiro mapa de sua situao. Muito diferente do modo

19

indgena, em que se situam atravs de relaes mais finas de senioridade no parentesco e no mbito regional maior pela co-afinidade (fratrias). Conversando com Higino Tenrio e um de seus colegas wanano durante um curso de formao de assessores pedaggicos indgenas (APIS) em So Gabriel, esse wanano morador do alto rio Uaups comentou que quando est viajando, descendo para So Gabriel, conforme se distancia de seu territrio, a primeira pergunta que faz quando pra numa comunidade se tem peixe. A pergunta remete a uma dinmica de reconhecimento. L no alto Uaups, regio wanano, ele diz saber o que se passa com relao ao uso das lnguas pelos adultos e jovens (ou seja, ele sabe que lngua usar quando chega com um velho, com um jovem ou com uma criana nas comunidades). Conforme se afasta de l rumo a So Gabriel, no tem mais certeza do que vai encontrar. Se os jovens so falantes de portugus, tukano, e como vo se entender. E por isso que esta a primeira pergunta que faz, em tukano, quando encosta em uma comunidade desconhecida: - Tem peixe? - pergunta, em tukano, ansioso no por comer, mas por desvendar como ir se comunicar. Certas tendncias nas escolhas e prticas lingsticas na regio so mais ou menos conhecidas. No interior (como se referem a partir de So Gabriel da Cachoeira), o processo mais citado o da tukanizao de lnguas minoritrias frente ao Tukano. No caso das crianas nascidas na cidade, o de no falarem mais o tukano, muito menos suas lnguas (da famlia Tukano Oriental) minoritrias, mesmo com pais falantes. Por outro lado, aqueles que saem j jovens de suas comunidades, mesmo que no usem por um tempo, ou no usem com frequncia suas lnguas, no as esquecem. Mas nessas e em outras tantas partes, preciso sondar. Por isso tudo, interessam as conexes sociolingsticas que se estabelecem. Higino sempre comenta que para os pesquisadores como ns (antroplogos, que no falamos tuyuka), as festas de caxiri so momentos importantes de aprendizado, pois nesses momentos que as pessoas gostam de falar mais, em portugus inclusive. Por outro lado, diz que os antroplogos nunca iro entender sua cultura, por jamais se tornarem fluentes no tuyuka. Higino irmo menor de Guilherme Tenrio. So consideradas lideranas fortes do alto Tiqui, moradores de So Pedro. Higino Tenrio considerado pelos brancos como um tradutor, embaixador, moralizador deste processo de discusso da Escola Tuyuka na regio, tendo vislumbrado e investido nessa possibilidade de reverter, ao lado de seus parentes, muito desses processos como a tukanizao do tuyuka, o esvaziamento das comunidades, a suposta e assim to falada desvalorizao dos conhecimentos tradicionais

20

pelos jovens. nesse rumo que esto dinamizando o contexto multilinge em que vivem, onde a lngua j , desde a origem, operador de diferenciao social (vide clssica discusso em torno da exogamia lingstica na regio do alto rio Negro). Guilherme tem duas filhas jovens que moram h muitos anos em So Gabriel, tendo passado inclusive por Manaus algumas vezes, e voltado. A outra filha est casada com um tukano de Bela Vista (comunidade situada abaixo de Pari-Cachoeira). E seu filho mais velho vive a seu lado em So Pedro. Isso no que diz respeito a seu primeiro casamento, de que vivo h muitos anos. Posteriormente se casou com uma moa yebamaso coresidente, e j tm vrios filhos e filhas pequenos. Higino casado com uma tukano de So Domingos (Bubera-prayo), com quem tem oito filhos - quatro meninas e quatro meninos. So freqentes os relatos que nos fazem pensar nas atitudes (aparentemente mais femininas) de ir ainda alm, em busca de filhos ou irmos que se afastaram, viajaram, demoraram, nunca mais mandaram notcias. Cabalzar (inf. pessoal) tambm costuma comentar a respeito de uma estratgia explcita dos casais, de buscar uma diferenciao nos rumos dos filhos: ter um filho padre, um soldado, um professor, um na comunidade; o mesmo para as filhas. Sabemos que pais de filhos j criados circulam bastante nas vrias comunidades onde tm filhas (especialmente se vivos); at em So Gabriel, mais comum hoje em dia, e mesmo Manaus. Mas estas histrias a que me refiro so casos de filhos que foram to longe, que (pela falta ou forma das notcias recebidas) levaram-nas a procurlos. Casos de mes ou irms que foram bem longe, Colmbia ou Venezuela adentro, em busca de filhos ou irmos, sucedendo, ou no, em traz-los de volta. possvel voltar de longe, ou ainda de l sentir-se prximo. Afinal, como contava Higino em conversa com uma tia sua vivendo em Manaus: ele lhe disse que ela j no tinha mais nada a ver com eles (os parentes moradores do alto Tiquie), j que estava, h tantos anos, em Manaus. Ao que ela retrucou enfaticamente: -Como no, sobrinho, se eu penso em vocs todos os dias de minha vida? * Alguns Opaya em So Gabriel da Cachoeira So Gabriel uma cidade marcada pelo processo de migrao da populao indgena, onde bairros de conformao mais recente so praticamente indgenas, ocupados por uma populao que chega entre as dcadas de 80 (bairro do Dabaru) e 90 (bairro do Areal) e cuja formao est associada a programas municipais de distribuio de lotes e construo de casas populares. Segundo levantamento socioeconmico e

21

demogrfico feito em 200414 pela FOIRN em parceria com o Instituto Socioambiental, a maior parte da populao indgena migrante da cidade mantm vnculos importantes com as comunidades das terras indgenas, sendo que quase um dcimo dessa populao se considera morador temporrio, estando So Gabriel para realizar tratamento de sade, prestar servios ou participar de cursos temporrios, fazer compras ou sacar aposentadorias.15 Segundo Lasmar (2005), a proporo de hspedes aparentados maior nos bairros perifricos (Areal e Dabaru), reforando a hiptese de que as relaes de parentesco cumprem papel crucial no processo de fixao de pessoas que vm das comunidades ribeirinhas e passam a residir na cidade. A estadia temporria na casa de parentes na cidade seria o primeiro passo para que o indivduo consiga se estruturar e obter meios de residir ali permanentemente. Esta mesma pesquisa revelava que a populao infantil e jovem representa metade da populao da cidade, com acesso quase generalizado escola. Com efeito, uma das mais fortes motivaes (dentre outras) para a mudana de famlias para a cidade garantir acesso educao escolar. Isto posto, posso agora apresentar os contextos de vida de meus interlocutores em So Gabriel, comeando por dizer que so pessoas que se criaram em movimento. Segundo Mandu, no h quem no se crie em movimento hoje em dia (captulo 3). Em movimento, por exemplo, entre os velhos conhecedores e os patres. Em So Gabriel, encontrei-me com vrios netos de um mesmo homem, Buabi Yaka. Encontrei Mandu morando na Rua E do bairro Tiago Montalvo. J nos conhecamos do alto Tiqui, pois na poca em que fiz assessoria antropolgica Escola Tuyuka, ele

14 Segundo pesquisa Perfil da cidade de So Gabriel da Cachoeira- realizada entre 2002 e 2004 pelo ISA e FOIRN em parceria com as associaes de bairro da cidade, os bairros do Dabaru e Areal concentram juntos cerca de 52% da populao da cidade. Ali apenas 32,3% da populao so nascidos na cidade. Bairros mais antigos como Fortaleza e Centro apresentam uma proporo alta de moradores de fora - militares, funcionrios de ONGs, missionrios, entre outros - expressivamente alta (26,1%). A pesquisa traou um amplo perfil da populao da cidade de So Gabriel da Cachoeira, destacando os aspectos referentes s suas condies de vida. Um questionrio de dezesseis pginas foi aplicado em 51% dos 2.831 domiclios individuais da cidade. O questionrio contemplava uma ampla gama de temas que perfaziam um perfil do morador e traziam aportes para se pensar em polticas pblicas visando enfrentar os problemas da populao urbana. A base de dados resultante destes levantamentos trouxe aportes importantes para pensar os problemas da cidade e formular propostas de ao. Foi importante fonte de informaes durantes a elaborao do Plano Diretor do Municpio. Ver : http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=2136 e http://www.socioambiental.org/noticias/nsa/detalhe?id=2139.

O Levantamento mostra que essas pessoas continuam recebendo parentes vindos das comunidades, mais raramente os visitando; que quase 20% das famlias indgenas da cidade mantm stios e roas nos arredores da cidade; mas s 10% costuma receber produtos (como peixe, frutas, farinha, beiju.) de parentes que moram nas comunidades ribeirinhas; cerca de 5% envia produtos industrializados para parentes nas comunidades; e 26,4% dos chefes de domiclio declararam que costumam passar alguns perodos do ano em alguma comunidade.15

22

visitava com certa freqncia sua nica irm, casada na comunidade tukano de So Domingos. Assim chegava com mais freqncia tambm a Mpoea ou So Pedro, a convite de Higino e Gire. Aps falecimento da irm (em 2006), Mandu no voltou mais para o alto Tiqui. Seu cunhado tukano, com a morte da esposa, tambm passou a circular entre as casas dos vrios filhos, andana comum entre vivos (ou mes), o que inclui PariCachoeira, So Gabriel e proximidadese Manaus. Algumas vezes hospedava-se na cidade com seu cunhado.16 Minhas conversas com Mandu aconteceram ao longo dos vrios meses em que fiz campo na cidade. -Y pekas (minha branca, minha patroa), cumprimentava-me. O vale onde mora muito agradvel, tem um grande aaizal que faz vez de mata ciliar do pequeno igarap onde toda a vizinhana lava roupas, loua. Tenderia a dizer que tem um ar de comunidade. Sem gua corrente vale abaixo, ele vem sendo pouco a pouco ocupado irregularmente por novas casas. bastante comum, em So Gabriel, encontrarmos a linha da rua urbanizada mais adequadamente, enquanto os vales por detrs vo sendo ocupados informalmente. Mandu mora um pouco distante do rio Negro, mais apropriado para o banho, segundo a maioria dos moradores. Todas as ruas do seu e dos outros bairros mais novos foram asfaltadas durante a campanha eleitoral de 2008, inclusive reas perifricas da cidade ainda no ocupadas. Existe transporte coletivo (nibus) que passa de hora em hora nas proximidades, mas o transporte mais rpido feito com lotaes, os taxis coletivos. No entanto, quem precisa economizar ou nem pensa em gastar dinheiro com transporte, vai p a todo canto. Muitas vezes vi Mandu em seus freqentes percursos p entre o centro e sua casa, sempre com conhecidos e parentes indgenas. Ele tambm tem l no centro um patro em especial, um comerciante com quem mantm relao de maior confiana, pode fazer emprstimos ou comprar fiado, e que at cooperou com as folhas de zinco que cobrem a casa atual de Mandu. Mandu eventualmente hospeda algumas lideranas e professores do alto Tiqui em visita cidade, especialmente Higino Tenrio, que passa ultimamente, entretanto, a hospedar-se mais vezes em penses na regio central da cidade, e no mais na casa de16 Ovdio tem um filho em Manaus, outros em So Gabriel ou comunidades prximas. Em 2007 ficou um semestre praticamente direto morando com o cunhado Mandu, em So Gabriel. Quando comeamos nossas entrevistas, eles tinham planejado uma viagem de dois ou trs meses (outubro a dezembro) para Manaus. Ficariam hospedados na casa de um dos filhos de Ovdio, que tem filhos e filhas espalhados pela regio: em Manaus tem um filho que trabalha da FEPI; prximo de So Gabriel uma filha professora; no alto Tiqui dois filhos morando em Pari-Cachoeira (um professor no ensino mdio indgena; outro era prefeito-mirim). Como vemos, falar de Mandu sem seu cunhado, naquele perodo, quase no tinha sentido.

23

parentes, moradores de reas mais perifricas. Mandu tambm hospeda parte do pessoal do Castanho. Mas efetivamente, no havia hspedes em longas estadias, com tanta freqncia, na sua casa durante o perodo em que eu o visitava. Suas duas filhas, e outras mulheres aparentadas, preocupam-se com ele: dizem que, quando ele pretende ajudar companheiras, acaba perdendo dinheirinho. As filhas se preocupam quando ele bebe cachaa em excesso, o que mais freqente quando tem hspedes do alto Tiqui em sua casa. Com isso, acaba adoecendo, o que associado a uma tuberculose mal curada ou males de fgado. A cachaa em excesso percebida como um hbito marcadamente dos parentes, homens e mulheres, recm-chegados ou visitantes na cidade. E juventude. Apesar de sua idade (75 anos aproximadamente), Mandu tem um ar jovial que faz questo de explorar nas brincadeiras com as moas. Mandu se v bem disposto a qualquer trabalho, capaz de capinar ou derrubar roas at hoje sem preguia, porque realizou quando jovem os ritos de proteo e fortalecimento do corpo. Na rotina da cidade, est sempre circulando e sendo procurado por conhecidos, entre seus pares na feira, no comrcio ou entre os brancos da prefeitura, ONGs. Tambm tem hbitos cotidianos, com horas de descaso em sua casa e com vizinhos prximos, ou na casa de uma de suas duas filhas, onde faz suas refeies dirias, visita netos, banha no rio, passa manhs de domingos e feriados em pequenas rodas de homens (ele, genro, cunhado). * Nesse perodo em So Gabriel recebemos por duas longas temporadas em nossa casa a famlia de Pedro Lima, outro irmo (FFyBSS) de Mandu (ver Mandu, Pedro e Casimiro Lima na genealogia abaixo) que sempre viveu, e ainda vive, no alto Tiqui. Ele veio pensando em tirar documentos brasileiros, seus, da esposa e filho menor. At recentemente morava na Colmbia. Pedro tambm um velho jovial, o que, no seu caso, reflete-se num temperamento expansivo, voz marcante, locuo veloz, grande disposio e generosidade no falar, pelo que muitas vezes at criticado por parentes, sem por isso se deixar abater ou acabrunhar longamente com nenhum deles. Falo em conjunto desses velhos-joviais, e at com permisso, do finado Casimiro Lima, porque como disse sua filha, eles continuam at hoje disputando entre si quem maior conhecedor (masig). Mandu, Casimiro e Pedro Lima so irmos classificatrios, que tm av comum, bisav comum, tatarav comum. A mim, sua jovialidade conecta-se a sua inteligncia, presena de esprito, bom humor e disposio para contar o que sabem, e me inserir - com as devidas nuances e apropriado distanciamento - no ambiente da disputa.

24

Sua jovialidade tambm me parece conectada relativa proximidade e entusiasmo quando se encontram, enquanto velhos, irmos da mesma gerao, conhecedores, Opaya, netos de mesmos avs: Buabi Yaka paramera (coletivamente, netos de um tatarav comum Buabi Yaka, quatro geraes atrs).

Genealogia dos Opaya de Pupunha

(cf Cabalzar, 2008: 197)

Tambm mantive uma rotina de visitas casa dos filhos, filhas e esposa do finado Casimiro Lima, que comearam a baixar para a cidade h uns vinte anos. Primeiro veio uma filha, depois um irmo menor e uma sobrinha. Na primeira dcada dos anos 2000 os pais, em tratamentos de sade, passam a visit-la mais frequentemente na cidade. Como bem salienta Lasmar (2005) a respeito dos bairros da cidade, o Centro e a Praia no so bairros de ocupao indgena recente, os brancos predominam no Centro. Entretanto, Hilda, filha de Casimiro, viveu primeiro na praia com seus afins tariano. A partir de seu segundo casamento com um maranhense, adquiriram um terreno na entrada da cidade. O terreno onde trabalha suas roas da cunhada de seu primeiro casamento e esse uso comea a se tornar problemtico mais recentemente com a chegada cidade, tambm, de mais dois de seus irmos homens. Escutei muitos casos relacionados aos conhecimentos destes irmos classificatrios, Mandu e Casimiro Lima que perderam seus pais (F) muito cedo, esses sim irmos reais entre si - antes ainda da chegada da misso salesiana em Pari-Cachoeira. Mandu era o mais velho dos dois, e mora h vinte anos na cidade de So Gabriel. Casimiro

25

era nascido em 1935, e faleceu em 2005 aqui na cidade. A partir desse ano sua esposa passou a morar definitivamente na cidade e alcanaram agregar numa mesma vizinhana - ao lado da me e at motivados por ela - nove dos dez filhos do casal. Mandu nascido no territrio tradicional do seu sib Opaya no alto Tiqui, Casi j nascido e crescido na regio de ocupao temporria destes Opaya, prxima a Pari-Cachoeira em territrio dos tukano vizinhos. Por diferentes caminhos, os dois se tornam conhecedores de tudo o que os velhos (pais, avs) sabiam e faziam; Mandu, porque chegou a ver os mais velhos em suas Casas em festa. Casimiro aprimorou-se j adulto, atravs das vises do caapi, dos sonhos, dos benzimentos do sogro que era um grande paj tukano, e de todos os seus, assim chamados hoje, titios (irmos do pai, paksma, pais portanto) ou seja, pelo interesse e prtica vivenciados j na maturidade (pois ele comea a benzer o parto apenas a partir do quarto ou quinto filho, entre dez). Nenhum dos dois terminou de ser criado pelo pai, mas Mandu teve uma me bastante responsvel por aliment-lo ritualmente (dar apenas comidas benzidas, jejuar dos mesmos alimentos nos momentos mais rituais como festas). Ento por esse vis, Mandu e Casi so hoje legitimados de maneiras distintas. Mandu sabe quem benzeram seu nome com a inteno dele ser um grande baya, cantor e danador: um grande chefe e benzedor maior. J os filhos de Casimiro, no se lembrando de muitos detalhes ao certo, legitimam os relatos da me deles, que acompanhou o marido por quase cinqenta anos. Mandu e Casi tambm se aproximam no que foram criticados, por andarem circulando entre os tukano, ou Casimiro nos ltimos anos antes de morrer, entre o alto Tiqui e So Gabriel para tratamento de sade, visita s filhas etc. Alguns deslocamentos entre essas regies, facilitados em funo (hoje) do servio militar no exrcito, do sistema de sade ou do sistema educacional local, podem acabar adquirindo importncia maior.17 Os processos de encaminhamento para tratamento de sade na cidade em muitos casos coincidem com oportunidades para permanecer mais algum tempo ali com parentes, e hoje para os Tuyuka do alto Tiqui as opes j so muitas em So Gabriel, ainda que um tanto mais difcies em Manaus. A viagem como acompanhante de um parente um facilitador dessas visitas j intencionadas, cidade. As permanncias na casa do ndio numa cidade ou outra exigem a presena de umPaulo Maia e outros autores tem descrito ou comentado os processos mais recentes de ocupao da calha do rio Negro, tradicionalmente rio dos Bare mas com uma srie de comunidades prximas foz do Iana e do Uaups, alem daquelas situadas prximas a So Gabriel, apresentando hoje um grande nmero de pessoas vindas do Uaups e do Iana. Maia (2009: 150) nota que existia uma demanda no apenas de professores, mas tambm de pajs nesse trecho do rio Negro, dada a inexistncia de pajs verdadeiros da regio, visto que os ltimos pajs teriam falecido na dcada de 1980 e 1990, no deixando, ao menos de forma explcita, outros pajs na regio para ocuparem o seu lugar.17

26

acompanhante, que acaba circulando um pouco mais pelas cidades, sobretudo homens saem mais para beber com parentes, visitar outros ou andar pelo comrcio. Quando essa aproximao mais difusa a parentes , assim como a indisponibilidade da comida com que esto acostumados, so os motivos mais marcados por homens e mulheres mais velhas para desejarem, o quanto antes, retornar para casa ao conclurem etapas de tratamento e andanas (por So Gabriel, ou por Manaus). * Mio - um dos sibs associados aos Opaya no alto rio Tiqui Seguindo esse mapeamento superficial e parcial das moradas tuyuka que mais freqentei em So Gabriel, passo agora a Mrio, que do sib Mio, considerado av pelos irmos maiores. A relao entre sibs de posies hierrquicas extremas marcada pelo uso de termos de parentesco prprio para geraes distais. Assim, aqueles dos sibs dos servidores so chamados de avs, indistintamente. Mrio Tenrio, Catarina sua esposa, seus filhos e filhas esto em So Gabriel da Cachoeira desde meados dos anos 90. Suas noras, genros (indgenas e no-indgenas) e netos, sempre chegam, almoam, deixam seus filhos na casa deles. Geralmente as famlias mais aparentadas na cidade logram morar mais prximos uns dos outros, se chegaram numa mesma poca. Feliciano um irmo do Mrio, pai de Lucinia, colaboradora e tradutora desta tese, e mora em So Pedro no alto Tiqui, com Higino e parentes. Na poca de minha pesquisa, ele fazia parte da coordenao da AEIT Associao Escola Indgena tapinopona Tuyuka, e sempre vinha cidade resolver pendncias de projetos. Feliciano tem uma filha casada em Pari-Cachoeira; um filho casado com moa tukano prestando servio militar tambm em Pari; Lucinia recmcasada com um tukano morador de So Gabriel; outra filha casada com um yebamasa em So Pedro mesmo (ali h muitos cunhados yebamasa co-residentes); mais um filho e uma filha jovens solteiros. Quando me desencontrava de Mrio Tenrio, ficava a conversar com sua esposa Catarina, tukano de Caruru. Sempre chegava uma filha ou outra, pois se no so vizinhas de casa-ao-lado, so prximas o suficiente para se verem diariamente; quase todos os netos vm comer e passar as horas fora da escola na casa dos avs, onde tem sempre uma panela grande de macarronada, arroz ou feijo; beiju e farinha; vinho de aa ou pupunha nas pocas; mujeca ou peixe, sempre. O filho caula ainda solteiro morava com eles, e o mais velho mantinha moradia instvel nesse perodo: com a esposa ou com os pais.

27

Lucinia Tenrio est em SGC mais definitivamente desde incio de 2007. Ela abandonou a Escola Tuyuka sem concluir o Ensino Mdio. E no segundo semestre de 2007, casou-se na cidade. O marido estava servindo exrcito em So Joaquim, onde ficava durante meses, enquanto ela permanecia com os sogros. Eles so do Tiqui e do baixo e mdio Uaups. Okokapeapona Justino Rezende foi o primeiro indgena ordenado padre salesiano no rio Negro. Tuyuka do igarap Ona, tem escrito e divulgado textos de suas memrias, e sobre a vida dos Tuyuka. Em 2007, concluiu uma dissertao de mestrado sobre a Escola Tuyuka.18 Ele tem alternado temporadas de trabalho na regio do alto rio Negro - entre Iauaret e mais recentemente entre os Yanomami - co