tese zé marcello trilhos arrancados

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tese sobre o desmonte das principais ferrovias no Brasil

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    TRILHOS ARRANCADOS : Histria

    da Estrada de Ferro

    Bahia e Minas (1878 1966)

    JOS MARCELLO SALLES GIFFONI

    Belo Horizonte Inverno

    2006

  • 2

    JOS MARCELLO SALLES GIFFONI

    TRILHOS ARRANCADOS : Histria

    da Estrada de Ferro

    Bahia e Minas (1878 1966)

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor.

    Orientador: Prof. Dr. Douglas Cole Libby

    Belo Horizonte Inverno

    2006

  • 3

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    Tese defendida e aprovada pela banca examinadora

    constituda pelos professores:

  • 4

    RESUMO

    Este trabalho dedica-se ao entendimento da relao entre o Estado e a ferrovia no

    perodo de 84 anos de existncia da EFBM. Estrada de Ferro que ligou o extremo sul da

    Bahia e o nordeste de Minas Gerais entre 1882 e 1966.

    A partir do estudo da ocupao do nordeste mineiro, da anlise das polticas de

    desenvolvimento nacionais e locais que atravessaram o perodo acima, pretendemos refletir

    sobre o processo de mudana do discurso estatal com relao ao transporte ferrovirio no

    Brasil, culminando na poltica de erradicao dos trilhos e em grande impacto econmico e

    social para a regio atendida pela ferrovia em questo.

    RESUM

    Ce travail a comme but lentendement du rapport entre lEtat et le chemin de fer

    dans la priode de quatre-vingt quatre annes de lexistence de lEFBM, qui a li la partie

    extrme sud de ltat de Bahia au nord-est de ltat de Minas Gerais, entre 1882 et 1966.

    partir de cette etude, de lanalyse des politiques de dveloppement nationales et

    locales qui ont travers la priode sus-cite, nous voulons rflchir sur le processus de

    chengement du discours de ltat relativement au transport par chemin de fer au Brsil, en

    aboutissant la politique dradication des voies frres sans quil ya ait eu un si grand

    impact conomique et social pour la rgion desservie par cette ligne.

  • 5

    AGRADECIMENTOS Das Utopias

    Se as coisas so inatingveis... ora! No motivo para no quer-las...

    Que tristes os caminhos, se no fora A mgica presena das estrelas!

    Mrio Quintana

    Trabalho pronto. Posso dizer que foi extremamente prazeroso realiz-lo. Misso

    cumprida, ciclo fechado, compromisso realizado. Ao lado de todas as angstias, decepes,

    terrorismos, excluses, medos, dificuldades materiais e individuais que este trabalho me

    trouxe, tive tambm o privilgio de conviver com pessoas especiais que sempre me

    avisaram da existncia da msica, da poesia, da solidariedade, sensibilidade, afetividade,

    cuidado, humildade, a sinceridade de olhar no olho e enxergar a alma do outro.

    Instrumentos e sentimentos que me deram fora para continuar firme e acreditar que

    podemos fazer diferente. E, como o poeta, ainda pensar na utopia, por mais distante que

    esteja.

    Espero passar ao leitor o prazer que foi, para mim, fazer este trabalho. Um trabalho

    de compromisso com a universidade pblica e tudo de positivo que ela pode gerar. Fruto de

    uma relao de dezessete anos com o meio acadmico com o qual acredito colaborar na

    abertura de uma fronteira pouco freqentada pela historiografia regional que o nordeste

    mineiro.

    Este trabalho conclui um importante ciclo na minha vida. Para acab-lo, com prazer

    e consistncia, os desafios foram muitos e, no seu percurso, diversas pessoas e instituies

    contriburam.

    Agradeo e compartilho esta tese de Doutorado com:

    Fernando Brant e Milton Nascimento pela autoria de Ponta de Areia, msica que despertou

    o interesse pelo tema desta tese;

    Neilton Lima pela divulgao da exposio Trilhos Arrancados, a semente deste trabalho,

    no stio www.onhas.com.br desde 1998;

    Aos alunos e a todos os meus colegas da Faculdade Cincias Humanas de Pedro Leopoldo

    que, de alguma forma, colaboraram para a minha estada em Belo Horizonte, com dicas de

  • 6

    leituras, receitas e prosas agradveis nas viagens de ida e volta: Rafael, Rogrio, Edna,

    Ulisses, Jnia, Beth, Washington...;

    Marivone Rausch pela indicao das informaes do livro Tortura Nunca Mais sobre

    funcionrios da EFBM e a indicao de seu irmo Marcelo para uma boa prosa final a

    respeito da velha Bahiminas;

    A regio e a populao que provocou este trabalho desde 1996. Gente de corao aberto

    para o mundo, pejado de alegria e sonho, prontos para dar um sorriso, lanar um verso e

    enfrentar o destino material nem sempre agradvel;

    Os amigos cariocas dos tempos do sonho da Instantes: Sandor Buys, Srgio Paulo

    Aunheimer Filho, Marcos Jos Caldas (compadre e co-orientador), Fernando Csar, Raul

    Motta, Mnica Torres (que me acompanhou nas primeiras empreitadas da Bahia e Minas),

    Marcelo Oliveira (compadre e poeta retratista), Alexandre Feitosa, Carlos Arimatheia, Lis

    Lancaster, Carlos Guerreiro;

    Os poetas Paco Cac e Wlademir Dias Pino por tudo que me ensinaram sobre o fazer da

    poesia e do sonho;

    Dilma Andrade de Paula, pelo apoio intelectual, inspirao profissional e na f pela

    universidade pblica, gratuita e de qualidade;

    Os amigos Miguel Renato, Adriana e Beatriz (para lembrar a importncia de ser criana e

    da amizade fraterna);

    A famlia Casa Nova (Vera, Andrea, Tlio e Clarice) pela recepo em BH, cumplicidade

    carioca, carinho, apoio acadmico e gosto pela poesia;

    A famlia pirlimpimpim: Tnia Grace, Darkan, Clara, Darta, George, Dona Julieta e Izabel

    Ribeiro (pelas prosas com boa comida, violadas, cantigas, danas e contradanas do Vale);

    Mara Isabel Chanoca pela reviso dos textos finais;

    Todos os funcionrios das bibliotecas e arquivos que freqentei em todos esses anos:

    Ministrio da Fazenda, RFFSA (Rio de Janeiro e Belo Horizonte), IHGB, Biblioteca

    Nacional, Arquivo Pblico Mineiro, UFMG (Fafich e Face), Hemeroteca do Estado de

    Minas Gerais;

    A natureza do Campus Pampulha (principalmente no outono azul e temperado de Minas);

    Antonio Greco e todos os apaixonados por ferrovia que me ajudaram a estudar e entender

    os caminhos dos documentos e, claro, pelas boas prosas;

  • 7

    A arte do Tai Chi Chuan pelo equilbrio de mente, corpo e esprito;

    Jos Moura e Clarice pelo carinho e reconhecimento do meu trabalho;

    A irmandade marcial da Brazil Hung Fut (em especial Ivan Pinheiro e Marcone Abdo) e

    todos os meus alunos de Tai Chi Chuan (Parque Municipal, Espao da Harmonia,

    Funed/Escola de Sade), que me receberam de braos abertos em BH e alimentam o sonho;

    Os Embaixadores da Lua Josino Medina e Paulinho Amorim e a Companhia Pra Sonhar;

    Maria do Carmo do Centro de Estudos Mineiros por todo o apoio prestado e pela parceria

    potica em, ch, verso, origami e imagem;

    Todos os funcionrios do Departamento de Histria e da Ps que me acompanharam nesses

    quatro anos;

    Alessandro Magno da Silva do setor de matrcula da UFMG que acompanhou toda minha

    trajetria acadmica com carinho, ateno e respeito;

    Os hericos alunos do Estgio Docente (2 semestre/2004) que resolveram topar a

    empreitada de estudar Gramsci;

    Todos os entrevistados da famlia ferroviria da Bahia e Minas que abriram suas casas e

    coraes para mergulhar em suas memrias de ferro: Adaltiva Teixeira da Silva; Alyrio

    Gomes Eusbio; Arani Santana Campos; Ciro Flvio Bandeira de Melo; Epaminondas

    Conceio Caj; Geralda Chaves Soares; Jos Alves dos Reis; Jos Penna Magalhes

    Gomes; Josefa Alves dos Reis; Jlio Jos de Barros; Leondia Silva Brauer; Luis Henrique

    Guimares Lisboa; Luiz Eloy de Almeida; Manoel Otoni Neiva; Maria da Conceio

    Pereira; Nadege Aparecida da Silva Carvalho; Nilton Ferreira de Souza Curi; Olivier

    Alves Ferreira; Orlando Machado Barreto; Therezinha Guimares; Valdete Tarone Tomich;

    Zenith Frana Caj;

    Rodney Ruas e famlia pela recepo em Carlos Chagas com indicaes preciosas de

    entrevistados e prosas quase sem fim no seu quintal com direito a caf e biscoito de goma.

    As Professoras Regina Horta, Helosa Starling, Eliana Dutra e Regina Helena. Mulheres

    que contriburam de forma importante e desafiadora no processo de construo desta tese;

    O Professor Bebeto da Cincia Poltica que me acolheu nas aulas e debates sobre

    Gramsci;

    O Professor e Orientador Douglas Cole Libby, pelo apoio importante nos meandros da

    universidade, sempre pronto/disponvel para conversar e localizar minhas contradies e

  • 8

    exageros/disparates acadmicos. Proporcionou total liberdade de elaborao sem deixar de

    fazer suas crticas. Meu nico leitor no perodo entre qualificao e defesa;

    Os professores que me formaram nos tempos de Niteri: Ilmar Mattos, Margarida de Souza

    Neves, Ciro Flamarion Cardoso, Geraldo Beauclair, Leandro Konder, impossvel esquec-

    los;

    As professoras Virgnia Fontes e Mrcia Motta, pessoas tambm importantes na minha

    formao de historiador e colaboradoras importantes no incio deste trabalho pelas cartas de

    indicao para o Programa de Ps da UFMG;

    A CAPES pela concesso de trs anos de bolsa;

    Denise Sena, Moiss Pereira de Barros, Renato Paixo, Rubensmidt Riani, e Maria do

    Carmo Daldegan por acreditarem no meu trabalho e me receberem com muito carinho na

    Fundao Ezequiel Dias/Escola de Sade de Minas Gerais. Apoio importantssimo;

    Minha Famlia mineira e carioca que deu o apoio de vrias formas do incio ao fim: Jos

    Carlos de Meirelles Giffoni (pai), vora Salles Giffoni (me e corretora dos textos finais),

    Carlos Guilherme S. Giffoni (irmo), Elizamar dos Santos Ramos (irm), Maria da

    Conceio Laurita (pela ajuda fundamental no primeiros anos de Miguel), famlia

    Albuquerque (em especial Vanda pela ateno de Tia participante e amiga), meu av

    Manoel Ramalho da Silva (o exemplo que carrego pelos tempos) e finalmente, minha

    esposa Iomara Albuquerque (fada azul que me trouxe a BH e despertou toda essa histria) e

    nosso rebento Miguel que nos desperta desafio e encantamento.

    Belo Horizonte,

    Invernoquaseprimavera, 2006

  • 9

    (...) a estrada de ferro avana sobre as ondas que so chinesas e sobre a mortalha e o mar do Oriente. Prossegue irregular at as nuvens do planalto e Pucalpas e perdidas alturas andinas muito alm dos limites do mundo, tambm perfura um buraco profundo na mente de um homem e transporta um bocado de cargas interessantes dentro e fora dos buracos, e tambm esconderijos e horrorosos pesadelos semelhantes eternidade, como voc ver.1

    1 KEROUAC, Jack A terra das ferrovias In: Viajante Solitrio Porto Alegre, L&PM, 2005 p. 91-2.

  • 10

    SUMRIO RESUMO/RESUM 4

    AGRADECIMENTOS 5

    ABREVIATURAS 11

    INTRODUO 13

    CAPTULO I O Grande Norte 28

    CAPTULO II Guerra Justa 52

    CAPTULO III Estado e Desenvolvimento 78

    CAPTULO IV Expanso e Recolhimento 126

    CAPTULO V Trilhos Arrancados 160

    CONCLUSO 197

    ANEXO I Dados Econmicos da EFBM 205

    ANEXO II Produo Agropecuria Da rea De Influncia da EFBM 216

    ANEXO III Memrias de Ferro 219

    ANEXO IV Municpios e Estaes da EFBM 295

    DOCUMENTOS 300

    BIBLIOGRAFIA

  • 11

    ABREVIATURAS

    APBH - Arquivo Pblico de Belo Horizonte

    APM Arquivo Pblico Mineiro

    BMF Biblioteca do Ministrio da Fazenda

    BRFFSA/BH Biblioteca da RFFSA/BH

    BRFFSA/RJ Biblioteca da RFFSA/RJ

    BN Biblioteca Nacional

    DNEF Departamento Nacional de Estradas de Ferro

    DNER Departamento Nacional de Estradas de Rodagem

    EFBM Estrada de Ferro Bahia e Minas

    HEMG Hemeroteca do Estado de Minas Gerais

    IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    MT Ministrio dos Transportes

    MVOP Ministrio de Viao e Obras Pblicas

  • 12

    Dedico este trabalho a gente do Jequitinhonha e Mucuri que cultiva a vida com alegria, canto, dana e f.

  • 13

    INTRODUO O conceito do equilbrio entre ordem social e ordem natural com fundamento no trabalho, na atividade terico-prtica do homem, cria os primeiros elementos de uma intuio do mundo, liberada de qualquer magia e bruxaria, e d o pretexto para o ulterior desenvolvimento de uma concepo (uma maneira de pensar) histrica, dialtica, do mundo, para compreender o movimento e o devir, para valorizar a soma dos esforos e dos sacrifcios que o presente custou ao passado e que o futuro custa ao presente, para conceber a atualidade como sntese do passado, de todas as geraes passadas, a qual se projeta no futuro.1

    Tudo comeou no ano de 1996, nas salas de leitura da Biblioteca Nacional e do

    Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro em tardes azuis do Rio de Janeiro. Uma msica

    na cabea (Ponta de Areia) e uma Histria por pesquisar nos levou a um projeto de viagem

    a fim de desvendar/conhecer o que tinha sobrado daquele caminho de ferro que ligava

    Minas ao mar. Viagem que se transformou em exposio fotogrfica e documental sobre a

    Estrada de Ferro Bahia e Minas. Exposio que se materializou em alguns lugares do

    nordeste mineiro, passando pelo mercado de Itinga, a Cmara de Nanuque e a Biblioteca de

    Jordnia.2 Tudo isto gerou uma experincia de vida e encantamento com o que h de mais

    precioso naquelas paragens: a boa gente que, mesmo diante das adversidades materiais,

    cultiva a vida com alegria, canto, dana e f, sempre mantendo a casa e o corao abertos

    para quem chega. Diante de todo este estmulo, saber do destino da EFBM passou a ser

    compromisso e tema de Doutorado.

    1 Antonio Gramsci Caderno 12, pargrafo 2 In: FERREIRA, Oliveiros S. Os 45 Cavaleiros Hngaros: uma leitura dos Cadernos de Gramsci Braslia, Hucitec/UnB, 1986 p. 56

  • 14

    Para alm da motivao pessoal, podemos dizer que o tema ferrovirio possui

    relevncia atual diante das demandas em que vivemos sobre transporte no Brasil, como a

    do quase colapso da malha rodoviria nacional. A partir de fins da dcada de 80, at hoje,

    temos acompanhado uma maior produo acadmica sobre histria da ferrovia no Brasil

    com temas bem variados que passam pela anlise econmico-social, a questo indgena, a

    escravido, a modernidade/modernizao e com uso freqente de entrevistas na produo

    de documentos.3 Uma produo acadmica que ainda carece de projeo pois, so poucas

    as iniciativas que buscam uma integrao entre pesquisadores e uma quase ausncia de

    debate e encaminhamento sobre polticas de preservao e conservao da massa de

    documentos deixada pela RFFSA.

    ***

    O presente trabalho prope um estudo do caso da Estrada de Ferro Bahia e Minas,

    buscando em sua histria o comportamento do Estado sobre a ferrovia no Brasil. Para isso

    utilizamos documentos diversos como relatrios de Estado, peridicos, legislao,

    memorialistas, dados estatsticos (produo e populao) e entrevistas com ferrovirios e

    passageiros que de alguma forma se relacionaram com a EFBM.

    uma ferrovia que tem sua origem intimamente ligada ao projeto liberal mineiro de

    descentralizao do Imprio, principalmente, o projeto pensado por Tefilo Otoni e sua

    Companhia de Navegao do Mucuri. Sua histria faz parte da constituio de uma

    2 Esta exposio foi realizada por meios prprios e o apoio das organizaes dos Festivales de Itinga (1998), Jordnia (1999) e do mdico e ecologista Ivan Claret de Nanuque em 1999. 3 Como trabalhos significativos citamos HARDMAN, Francisco Foot Trem fantasma: a modernidade na selva SP: Cia das Letras, 1988; EL-KAREH, Almir Chaiban - Filha Branca de Me Preta: a Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II, 1855-1865 - Petrpolis, RJ: Vozes, 1982; MAIA, Andra Casa Nova Nos Trilhos do Tempo: memria da ferrovia em Pedro Leopoldo Belo Horizonte, Mazza Edies, 2003; QUEIROZ, Paulo Roberto Cim Uma Ferrovia Entre Dois Mundos: a EF Noroeste do Brasil na primeira metade do sculo 20 Bauru, SP: EDUSC, 2004. Mais sobre esta diversidade ver Bibliografia.

  • 15

    identidade regional que conhecemos hoje como nordeste mineiro. Isto , a zona entre os

    vales do Jequitinhonha e Mucuri e a fronteira do Sul da Bahia e Esprito Santo.

    A questo central do trabalho o entendimento do processo de como esta ferrovia

    se estabeleceu com o signo do progresso e redeno de uma regio e foi erradicada sob o

    signo do atraso. Ambas aes financiadas pelo Estado.

    importante ressaltar que quando tratamos de Estado significa a relao

    permanente, intensa e orgnica entre sociedades civil e poltica elaborada por Antonio

    Gramsci. O Estado a arena em que se decidem os embates polticos, especialmente e

    sobretudo aqueles referentes difuso das concepes de mundo; o locus de unificao,

    de realizao da hegemonia das classes dirigentes. Concepes de mundo que verificamos

    nos embates entre as elites e suas orientaes morais e intelectuais para a sociedade,

    localizadas nas diferentes polticas de transporte por que passa a relao da ferrovia com o

    Estado no correr do tempo. 4

    A documentao analisada nesta tese foi garimpada nas seguintes instituies:

    Suplemento Anual Da Revista Ferroviria (1940 1966) Biblioteca da RFFSA/BH;

    Relatrios de Provncia/Estado e do Ministrio de Viao e Obras Pblicas [MVOP]

    (1879-1952) - Internet: http://brazil.crl.edu Center for Research Libraries/ Latin American

    Microfilm Project / Brazilian Government Document Digitization Project / Funding

    provided by the Andrew W. Mellon Foundation; Legislao Provincial/Estadual sobre

    ferrovias Arquivo Pblico de Belo Horizonte; Legislao Imperial/Federal sobre

    ferrovias Biblioteca do Ministrio da Fazenda RJ; Contrato entre a Companhia EFBM

    e Provncia de Minas Gerais, 1886 IHGB/RJ; Relatrio da CMBEU (Comisso Mista

    4 Sobre Estado em Antonio Gramsci ver FERREIRA, Oliveiros S. Os 45 Cavaleiros Hngaros: uma leitura dos Cadernos de Gramsci Braslia, Hucitec/UnB, 1986 p. 206.

  • 16

    Brasil Estados Unidos) 1953 - BMF RJ; Relatrios da VFCO (Viao Frrea Centro

    Oeste) 1965-1969 - BRFFSA/BH; Guia de Horrio de 1949/EFBM acervo do

    pesquisador; Dossi descritivo da histria administrativa da EFBM do MVOP

    BRFFSA/RJ; Resolues administrativas e legislao ferroviria do perodo das

    erradicaes - BRFFSA/BH e BRFFSA /RJ; Planos Virios de Minas Gerais de 1896 e

    1923 - APM; Jornal Folha de Nanuque (dcada de 60) HEMG.

    Outro documento importante que utilizamos foram as entrevistas. Montamos um

    roteiro que partia da mesma pergunta: Quais as lembranas da EFBM? A partir da resposta

    de cada entrevistado seguiam-se assuntos diversos que normalmente envolviam a trajetria

    de cada um: sentimentos; o uso do trem; qualidades/problemas; peculiaridades/causos; a

    importncia da estrada; relaes de trabalho; presena comunista; relao com os ndios;

    relao com os coronis; greve; corrupo; o fim da ferrovia e suas causas. Alm disto,

    foi feita uma pequena biografia do entrevistado que identifica sua relao com a estrada e

    sua origem social. Foram realizadas vinte e trs entrevistas, das quais catorze esto

    presentes nesta tese.

    O processo de abordagem variou de acordo com a forma como o depoente foi

    apresentado. Normalmente se deu por um contato telefnico, no qual se faziam as devidas

    apresentaes, explicava-se a inteno do trabalho e marcava-se um primeiro encontro. Na

    maioria dos primeiros encontros a entrevista foi realizada na ntegra sem necessidade de

    retorno. Apenas em uma entrevista tal no aconteceu. O encontro comeava sempre com

    uma conversa descontrada, para quebrar a inibio causada pela presena do gravador.

  • 17

    Para que os entrevistados se sentissem mais vontade, os encontros foram marcados em

    local por eles escolhido.5

    Vemos a histria oral como metodologia cujo uso sistemtico possibilita esclarecer

    trajetrias individuais, eventos ou processos que, s vezes, no tm como ser entendidos ou

    elucidados de outra forma. So histrias de movimentos sociais populares, de lutas

    cotidianas encobertas ou esquecidas, de verses menosprezadas. claro que tomamos o

    devido cuidado para no cair no erro de considerar seu uso como a verdadeira histria

    dos excludos.6 Ao mesmo tempo pretendemos trat-la como documento to importante

    quanto as outras formas de registro e evidncias e no como simples suporte para estes.

    Nesse caminho, seguimos a orientao de Alessandro Portelli:7

    Fontes orais contam-nos no apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez.8

    A histria oral nos apresenta mais significados do que eventos. Isso no implica

    que a histria oral no tenha validade factual. As entrevistas revelam situaes ou aspectos

    desconhecidos de eventos conhecidos. Apresentam nova luz sobre as reas inexploradas da

    vida diria das classes no-hegemnicas. No fornecem dados estatsticos, mas custos

    psicolgicos dos eventos.9

    A importncia do testemunho oral pode se situar no em sua aderncia ao fato, mas de preferncia em seu afastamento dele, como imaginao, simbolismo e desejo de emergir.10

    5 Alm de Belo Horizonte, visitamos Betim; Carlos Chagas, Nanuque, Ponta de Areia, Araua e Tefilo Otoni. Sobre Roteiro ver Anexo V. 6 Sobre Histria Oral ver FERREIRA, Marieta de Moraes (org.) - Usos e Abusos da Histria Oral - RJ, FGV, 2000. 7 PORTELLI, Alessandro O que faz a histria oral diferente In: Projeto Histria, n. 14, SP, fev. 1997 pp. 25-39. 8 Idem p. 31 9 Idem 10 Idem p. 32

  • 18

    Dentro dessa importncia do documento oral, frisamos que ... o controle do

    discurso histrico permanece firmemente nas mos do historiador. o historiador que

    seleciona as pessoas que sero entrevistadas, que contribui para a moldagem do testemunho

    colocando as questes e reagindo s respostas; e que d ao testemunho sua forma e

    contexto finais. 11

    A opo por esse tipo de documento est carregada por um envolvimento profundo,

    poltico e pessoal, que traz o historiador para dentro da histria, assumindo suas

    responsabilidades e compromissos.12

    Os depoimentos tm um papel importante para entender a relao do Estado com os

    trabalhadores e a populao atendida pela EFBM e o enraizamento, ou no, do sentido

    antieconmico da ferrovia na opinio das pessoas. Alm disto os depoimentos contribuem

    como parceiros na confirmao de fatos ou conjunturas apresentadas em outros

    documentos.

    Buscamos nos documentos citados as nuanas, ambigidades e estratgias dos

    discursos do Estado durante o tempo de existncia da EFBM (1878 1966). Pretendemos

    assim, localizar na poltica de transportes (especificamente ferrovirio e o caso da EFBM)

    os agentes sociais e os interesses que defendem no embate pela hegemonia do pas (direo

    intelectual e moral), em seus diversos momentos/temporalidades que a existncia da

    ferrovia atravessa.

    O corte cronolgico extenso est ligado questo sobre a relao do Estado com a

    ferrovia. Para isso precisei estudar toda a trajetria da EFBM. O tempo que tive na

    11 Idem p. 37 12 Idem p. 38

  • 19

    realizao deste trabalho no permitiu flego suficiente para aprofundar todo o perodo

    proposto. De acordo com os documentos encontrados, privilegiei os cortes temporais

    referentes Primeira Repblica e as conjunturas ps-1945 at a instalao da ditadura

    militar, buscando entender e deixar claro o processo de mudana do olhar do Estado sobre a

    EFBM. Por ser um trabalho pioneiro no tocante a esta ferrovia, pensamos que a opo por

    um corte longo contribui tambm para evidenciar todo um leque de questes que ainda

    esto por ser trabalhadas tanto sobre a ferrovia quanto no processo de formao do nordeste

    mineiro. Temas ainda carentes de trabalhos acadmicos.

    REGIO, FRONTEIRA, TERRITRIO, DES-TERRITRIO

    A procura de uma mais-valia mxima conduz a uma especializao relativa dos centros industriais, sem preocupaes de equilbrio entre as cidades ou entre as regies. Nas mos das burguesias urbanas, a acumulao do capital efetua-se desigualmente consoante as pocas, as especulaes e os lugares. Mas, de maneira geral, as concentraes tendem a acentuar-se, aglomerando os meios de produo, a mo-de-obra e as atividades volta dos lugares mais polarizantes. O desenvolvimento desigual do espao aparece pois como uma regra e no como um acidente do crescimento. Os desequilbrios regionais so normais. A reordenao do territrio manifesta-se como um reboco tardio e nem sempre eficaz. 13

    Pensando na multiplicidade de realidades que a regio de fronteira proporciona,

    adotamos o conceito de regio fluida de Frmont. Segundo o autor francs a regio fluida

    ocorre em pases onde o campesinato no possui razes profundas e os domnios da

    civilizao industrial so reduzidos.14 Caractersticas que se aproximam do caso do

    nordeste mineiro no perodo estudado. No primeiro momento, podemos considerar a regio

    como espao de refgio e fuga permanente de povos indgenas do colonizador em diversas

    13 FRMONT, Armand A Regio, Espao Vivido Coimbra, Livraria Almedina, 1980 p. 85. Grifo meu. 14 Idem p.168.

  • 20

    temporalidades. Em segundo lugar, a presena ocidental/colonizadora foram incipientes at

    a segunda metade do sculo XIX, sendo um espao pouco enraizado com movimento

    migratrio intenso. Um lugar de muitas promessas de riqueza e prosperidade.

    Nestas condies, a regio no pode de maneira nenhuma definir-se num espao bem delimitado, to ntido nos seus contornos como na sua durao. A regio existe de fato, mas numa certa fluidez. Fluidez em ligao direta com a prevalecente nas relaes que unem os homens e os lugares. Fluidez, quer dizer o carter daquilo que, como um lquido, facilmente deformvel, mvel e cambiante, e, deste modo, bastante difcil de captar.15

    Verificamos esta fluidez na forma como a regio chamada pelo discurso estatal

    at meados do sculo XX e, at hoje, pelo senso comum, como integrante do norte mineiro.

    Apesar de alguns autores considerarem o conceito de regio um obstculo, que

    estaria obsoleto e sendo sobrepujado pela lgica das redes, acompanhamos o argumento de

    Rogrio Haesbaert de que o conceito possui vigor e incorporou a idia de rede.

    o caso, por exemplo, da regio funcional (baseada nas redes urbanas de comrcio e servios) e da regio como produto da diviso territorial do trabalho (fundamentada nas redes de reproduo do capital), ambas admitindo amplamente a sobreposio de limites regionais.16

    Neste ponto consideramos importante o exemplo de regio funcional e de produto

    da diviso territorial do trabalho para entender a importncia e o papel da Estrada de Ferro

    Bahia e Minas.

    A partir do entendimento da ocupao deste trecho do nordeste mineiro que liga os

    vales do Jequitinhonha e Mucuri ao extremo sul da Bahia, mapeamos o processo de

    urbanizao e, por conseguinte, da lgica capitalista. Pensando esta regio podemos indicar

    que a EFBM possui um papel importantssimo na introduo de um ritmo capitalista e na

    15 Idem p. 169-70. 16 HAESBAERT, Rogrio Territrios Alternativos SP, Contexto, 2002 p. 134.

  • 21

    formao da rede urbana que se estabelece entre os vales citados. Por conta deste papel

    consideramos que a ferrovia tambm contribuiu de maneira efetiva na constituio de uma

    identidade regional da qual localizamos sinais expressivos na dcada de 1960.17 Alm

    disso, h tambm uma srie de impactos sociais, econmicos, polticos e ambientais no

    correr de sua existncia e aps sua erradicao.

    Consideramos o quanto importante, atualmente, a articulao entre regio,

    territrio e rede para dar conta da multiplicidade de campos de ao e anlise que existem.

    So conceitos que mostram ...a emergncia concomitante de situaes mais complexas e,

    em parte, ambivalentes, em que o controle e os enraizamentos convivem numa mesma

    unidade com a mobilidade, a fluidez e os des-enraizamentos 18

    Nossa experincia com a regio em estudo nos aponta para este tipo de abordagem

    do espao, com o intuito de nos levar para a questo principal desta tese que se encontra no

    olhar do Estado sobre a EFBM em diversas temporalidades.

    Antes de chegar neste ponto importante definir como vemos territrio e rede.

    Para entender territrio nos remetemos ao espao social de Frmont. Este define

    o territrio de um grupo ou de uma classe numa dada regio proporcionando ...uma malha

    na trama das relaes hierarquizadas do espao e dos homens....19 Nesta malha/rede

    localizamos movimentos e mutaes dos espaos sociais que, no nosso estudo, se

    encontram no campo da fronteira. Espao de movimento, conflito, conquista, imposio,

    convencimento. Vemos fronteira como agente histrico, sendo um espao privilegiado da

    produo de antagonismos e laos de solidariedade, da afirmao e negao de identidades,

    17 Analisamos este fato por meio de artigos de jornais da regio que se encontra no captulo V que trata do processo de erradicao dos trilhos. 18 HAESBAERT, op. cit. p. 137 19 FRMONT, op. cit. p. 145

  • 22

    da (re)elaborao de representaes, da (re)inveno de lendas e tradies, do desencontro

    dos homens, dos conflitos e das conquistas materiais.20 Conflitos entre concepes de

    vida, vises de mundo e tempos histricos.

    Francisco Antnio Zorzo, a partir das referncias de Deleuze, Guattari e Foucault,

    prope o conceito de territrio como a expresso de uma fora social que singulariza o

    espao e deve ser pensado como um fluxo, apresentando uma multiplicidade que se

    sobrepe, se prolifera, se desdobra, se soma espacialmente. 21

    Segundo Haesbaert, territrio sempre esteve mais prximo das idias de controle,

    domnio e apropriao (polticos e/ou simblicos).22

    Atravs das prticas sociais e da tcnica, o espao natural se transforma e dominado, tornando-se um espao quase sempre fechado, esterilizado, vazio, como o espao dos aeroportos e das auto-estradas. Esse conceito de espao dominado s adquire sentido quando contraposto ao conceito inseparvel de apropriao.23

    A partir do conceito de apropriao de Lefebvre temos ...um processo efetivo de

    territorializao, que rene uma dimenso concreta, de carter predominantemente

    funcional, e uma dimenso simblica e afetiva. A dominao tende a originar territrios

    puramente utilitrios e funcionais, sem que um verdadeiro sentido socialmente

    compartilhado e/ou uma relao de identidade com o espao possa ter lugar. 24

    Ainda, com Haesbaert, ... o territrio o produto de uma relao desigual de

    foras, envolvendo o domnio ou controle poltico-econmico do espao e sua apropriao

    20 MYSKIW, Antno Marcos - Verbete Fronteira In: MOTTA, Mrcia (org.) - Dicionrio da Terra RJ, Civilizao Brasileira, 2005 pp. 226 229 21 ZORZO, Francisco Antonio Ferrovia e Rede Urbana na Bahia (1870-1930) Feria de Santana, Universidade Estadual de Feira de Santana, 2001 p. 6 22 HAESBAERT, op. cit. p.119 23 Idem p. 120 24 Idem

  • 23

    simblica, ora conjugados e mutuamente reforados, ora desconectados e

    contraditoriamente articulados. 25

    Nas leituras que adotamos recorrente a ligao entre territrio e rede, tornando

    mais complexas as realidades sociais estudadas. A idia de rede surge no sculo XIX para

    explicar as formas espaciais disseminadas pelo capitalismo: redes de transporte articuladas;

    redes urbanas; redes tcnicas... Redes para destruir e reordenar territrios

    Poderamos afirmar, ento, que as sociedades tradicionais eram mais territorializadas, enraizadas, e que a sociedade moderna foi se tornando cada vez mais resificada ou reticulada, quer dizer, transformada atravs de fluxos cada vez mais dinmicos, marcados pela velocidade crescente dos deslocamentos, passando de um mundo tradicional mais introvertido para um mundo moderno cada vez mais extrovertido e globalizado. Isso no significa, entretanto, (...) que a desterritorializao, atravs de redes (especialmente as redes do capital financeiro e da sociedade de consumo), torna-se cada vez mais dominante, como se um processo inexorvel rumo a um mundo sem territrios estivesse em vias de concretizao. 26

    No caminho desta reflexo sobre espaos sociais, fluidez, fluxo, apropriao,

    controle, domnio, relaes desiguais de fora, espao de fronteira, territorializaes, des-

    territorializaes pensamos a ferrovia como elemento que carrega tudo isso ao se instalar

    em determinada regio. Instaura um territrio frtil de representaes de diferentes grupos

    sociais e cdigos de um movimento mundial de modernizao que fez parte da expanso

    capitalista em diferentes regies do mundo. Ao mesmo tempo des-territorializou os

    cdigos culturais baseados em ritmos locais tradicionais, remodelando o alinhamento das

    instituies existentes.27

    As prticas territoriais tornam-se, portanto, uma fonte privilegiada para o estudo de uma sociedade que pegou o trem da modernizao sem

    25 Idem p. 121 26 Idem p. 122 27 ZORZO, op. cit. p. 2

  • 24

    passar pela revoluo burguesa nem pelos outros acontecimentos da era industrial, tidos como os grandes relatos da modernidade. O estudo territorial, por meio de anlises aparentemente simples dos movimentos da populao, dos limites e fronteiras, da conectividade de redes de comunicao e transporte reintroduz o estudo das diferenas de desenvolvimento econmico no processo de expanso do capitalismo e pode tornar compreensvel a complexidade e a singularidade daquela realidade regional.28

    O caso da EFBM possui o perfil acima citado, mostrando a importncia de

    entendimento da construo do espao vivido do nordeste mineiro. Agregamos a esse olhar

    das prticas territoriais a perspectiva gramsciniana de Estado ampliado e Hegemonia,

    aprofundando os campos de disputa de poder, mostrando a existncia de uma autonomia

    estatal diante dos interesses diretos dos grupos dominantes.

    Ter hegemonia assegurar a direo intelectual e moral do processo poltico-social, impondo uma concepo de mundo que seja aceita por meio de convencimento ou de aes coercitivas ampliando o espao social em que atua ao longo de determinado perodo histrico. 29

    Sobre esta perspectiva recorremos ao argumento do territrio ferrovirio e de seu

    ritmo de mquina que impe determinadas formas de vida do mundo do trabalho e do

    consumo. A ferrovia pode ser vista como uma manifestao cultural de determinada classe

    social (a burguesia) que penetra os corpos e as almas dos outros tornando-se bem universal.

    A ferrovia faz parte de um processo de orientao moral e intelectual, fruto das disputas

    de poder e vises de mundo da elite brasileira, que se faz pelo uso de coero e

    convencimento. Coero na perseguio eliminao/aculturao dos povos indgenas, na

    ocupao das terras e imposio de regras e hbitos. Convencimento pelo argumento

    modernizador, velocidade, surpresa, promessas de riqueza e prosperidade, aproximao do

    28 ZORZO, op. cit. p. 3 29 Ver FERREIRA, Oliveiros op. cit. p. 221

  • 25

    centro da civilizao.30 Elementos que contribuem e podem ser aprofundados se pensarmos

    a reproduo ampliada do capital ocorrida pela moldagem do Estado e o estabelecimento e

    imposio de uma ao econmica universalmente aceita pelo senso comum ao que

    exclui de sua rbita de interesses e benefcios a grande maioria da sociedade.31

    Desde o incio devemos deixar bem claro que no pretendemos defender o retorno

    da EFBM ou encontrar os culpados de seu arrancamento. Por mais dramtico que sua

    histria se mostre e emocione, nossa inteno tentar trazer um caminho de entendimento

    do processo que levou a esse drama. Um processo que se encontra muito alm do perodo

    autoritrio da ditadura militar ou do nacional-desenvolvimentismo de JK. Um processo que

    tem sua essncia no comportamento e resultado dos embates das diferentes elites gestoras

    das polticas pblicas do Brasil desde o Imprio. Representantes de um Estado que

    interfere, muda vidas, concentra riquezas, exclui, divide, e conduz a mudana do seu jeito.

    ***

    A partir dos referenciais tericos e dos documentos apresentados acima, dividimos

    esta tese em cinco captulos. O primeiro faz um resumo da ocupao da regio onde foi

    instalada a ferrovia e que hoje denominada nordeste mineiro. Alm disso, mostramos uma

    leitura da formao da elite liberal do Serro e Diamantina cujos projetos so fundamentais

    para entender a ocupao intensa do espao existente entre a margem direita do

    Jequitinhonha, a bacia do Mucuri e o extremo sul da Bahia. Ocupao que explicita o

    conflito com os povos indgenas da regio e o processo de des-territorializao desses

    mesmos povos. O instrumento representativo deste processo foi o empreendimento da

    Companhia de Navegao do Mucuri realizado pelo liberal do Serro, Tefilo Otoni.

    30 ZORZO, op. cit. p. 122 31 FERREIRA, Oliveiros op. cit. p. 84 -5.

  • 26

    O segundo captulo continua a mostrar o processo de formao do nordeste mineiro,

    sendo foco principal o momento posterior ao fim da Companhia de Navegao de Tefilo

    Otoni. Tratamos ento da instalao do aldeamento capuchinho de Itambacuri e da EFBM.

    Dois instrumentos importantes para entender o processo de des-territorializao do

    elemento indgena e de formao de um outro territrio que comea a apresentar uma elite

    proprietria com certa influncia poltica e econmica.

    O captulo seguinte trata exclusivamente da EFBM e sua relao com o Estado

    Republicano do final do sculo XIX e incio do sculo XX. Relao pautada por uma

    poltica que caminhou no fio da navalha entre valores liberais que propunham uma

    autonomia da ferrovia com a administrao pblica e valores intervencionistas que

    possuam a preocupao estratgica de Minas Gerais em estimular intensamente o

    desenvolvimento econmico das diversas regies do Estado.

    O penltimo captulo analisa o processo de enraizamento do territrio ferrovirio

    que ganha fora na dcada de 20 e se cristaliza com a chegada dos trilhos em Araua, no

    ano de 1942. Ao mesmo tempo mostramos o processo de mudana da administrao

    estadual para a federal e como ganha fora a mudana de olhar do Estado sobre a ferrovia.

    Analisamos os problemas estruturais que se agravam com a conjuntura de Guerra Mundial

    e crescimento da opo rodoviria que surge com fora a partir dos resultados apresentados

    pela Comisso Mista Brasil Estados Unidos. Resultados que vo ter papel importante na

    definio das polticas de desenvolvimento do pas principalmente durante e depois do

    governo do presidente JK.

    O quinto e ltimo captulo d continuidade anlise das polticas de

    desenvolvimento do pas aps os estudos da CMBEU at a ditadura militar e a tendncia da

  • 27

    poltica de transportes em privilegiar a construo de rodovias e implementar um plano de

    erradicao de ramais ferrovirios antieconmicos.

    No plano da regio procuramos analisar o processo de erradicao da EFBM que

    marcado por um embate entre os argumentos macroeconmicos do Estado

    Administrativo/Tecnocrata e parte da elite/sociedade civil organizada da regio que

    pretendia manter a ferrovia em funo de um projeto poltico emancipacionista do nordeste

    mineiro e extremo sul da Bahia.

    Alm disto oferecemos ao leitor a possibilidade de aprofundar as leituras que

    propomos na presena de cinco anexos que tratam dos seguintes assuntos, respectivamente:

    I - registro da trajetria de receita e despesa da EFBM em quase toda sua existncia;

    estatsticas variadas (densidade de trfego, quantitativo de cargas e passageiros; despesas de

    pessoal e equipamentos); quadro sobre o comportamento da quilometragem das ferrovias

    no Brasil; II - trata das estatsticas de produo agropecuria do nordeste mineiro; III -

    registro de 14 entrevistas na ntegra e do roteiro de entrevista elaborado para esta tese; IV

    dados da Enciclopdia dos Municpios Brasileiros com que indicam a contribuio da

    EFBM na formao da rede urbana montada no entorno de seus trilhos e a relao das

    estaes da ferrovia.

    Terminadas as devidas explicaes, convidamos o leitor a seguir pelos meandros

    dos trilhos do Caminho de Ferro que ligou o extremo sul da Bahia e o nordeste mineiro

    durante 84 anos.

    Boa Viagem!

  • 28

    CAPTULO I

    O GRANDE NORTE

    Toda a regio, desde o rio das Pedras at as cabeceiras do Mucuri, forma uma das regies agrcolas mais extensas e uniformemente frteis do Brasil, que fica ao sul do Amazonas, e no posso deixar de exprimir a minha firme crena de que, tendo a natureza to abundantemente favorecido o Mucuri, em dias no muito distantes v-lo-ei regurgitando de gente e constituindo a principal via de comrcio com o interior de Minas.

    (Charles F. Hart Geologia e Geografia Fsica do Brasil)1

    Sabemos que Minas so muitas. As minas do centro com sua formao

    colonial/barroca, sede da capitania, provncia e estado. As do sul e seu dilogo profundo

    com So Paulo e seus bandeirantes tendo o Rio Grande como divisa. As do Oeste que se

    juntam ao Tringulo no caminho para o planalto central. A Mata que divisa com Rio de

    Janeiro e Esprito Santo. O Norte que segue os cursos do So Francisco e Jequitinhonha,

    com seus diamantes e gado. O Vale do Rio Doce que caminha para o Esprito Santo e

    compe o Leste mineiro. Por ltimo, deixamos o nordeste das Minas. Parte do nosso objeto

    de estudo e regio que tem pouca influncia da civilizao ocidental at pelo menos o incio

    do sculo XIX. Territrio quase exclusivo de vrios grupos indgenas genericamente

    chamados de botocudos pelo colonizador. A Coroa portuguesa deixou praticamente

    intocada a rea cujas fronteiras naturais podemos situar entre o vale do Jequitinhonha (sua

    margem direita), o sul da Bahia entre Belmonte/Porto Seguro at a fronteira com o Esprito

    Santo, fechando no territrio mineiro pelo vale do rio Mucuri. Como se forma essa regio?

    Como se relaciona com o Estado?

    1 CHAGAS, Paulo Pinheiro -Tefilo Otoni: ministro do povo Belo Horizonte, Itatiaia, 1978 p. 162

  • 29

    Enquanto boa parte de Minas Gerais possui uma histria de colonizao que

    remonta aos sculos XVII, XVIII e sua constituio de regio

    administrativa/poltica/cultural, o nordeste mineiro (como tambm o rio Doce) se constitui

    representativamente a partir da segunda metade do sculo XIX e primeira do XX.

    Quanto ao debate sobre a nomeao norte mineiro no nossa inteno polemizar

    tal assunto. O uso deste termo feito a partir das evidncias que mostram como os atores

    histricos se nomeavam regionalmente. No correr deste e do prximo captulo temos vrios

    exemplos dessa nomeao em mapas, passando por peridicos de Serro e Diamantina e em

    documentos que tratam da questo indgena do Itambacuri. A nomenclatura norte mineiro,

    vlida para toda rea acima da regio ferrfera de Minas, se estende nas evidncias at o

    incio do sculo XX. Em 1901 comeamos a perceber uma diferenciao nesta

    nomenclatura que passa a distinguir o norte do nordeste. Distino que pretendemos

    acompanhar durante todo o trabalho.

    Antes do sculo XIX, a regio foi visitada e em parte ocupada pelo colonizador

    portugus da capitania de Porto Seguro na sua busca de pedras e metais preciosos.

    Uma ocupao rarefeita de expedies exploradoras, sem enraizamento. Como

    Francisco Bruza de Espinosa e o jesuta Azpicuelta Navarro que em 1554 seguiram o

    Mucuri rumo ao norte acreditando na existncia do Eldorado (Lagoa Vupabuu, Serra

    Resplandecente...) no Jequitinhonha. Na mesma trilha encontramos Martim Carvalho

    (1567), Sebastio Fernandes Tourinho (1573), Antonio Dias Adorno (1580), Diogo Martins

    Co e Marcos de Azeredo (1598).

    A partir de 1674 tem-se notcias da formao de povoados na expedio de Ferno

    Dias Pais: Ibituruna, Itacambira, Itamarandiba, Serro Frio, Rio Doce, sertes da Bahia e a

    lagoa de gua Preta no Mucuri, onde encontra turmalinas.

  • 30

    Em 1752, ainda em busca de pedra preciosas, o Mestre-de-Campo Joo da Silva

    Guimares instalou uma fazenda no Mucuri durante trs anos, sendo rechaado pelos ndios

    forando o retorno a Minas Novas, cidade polarizadora da regio. Na mesma poca

    Teixeira Guedes encontra o Rio Todos os Santos (afluente do Mucuri, onde mais tarde ser

    instalada a cidade de Filadlfia) 2

    A ocupao mais efetiva da regio tem incio com a chamada guerra justa

    incentivada por D. Joo VI em 1808. Uma Carta Rgia ordenava a formao de militares

    para a guerra e liberava a escravizao de ndios enquanto durasse a sua ferocidade.

    Alm disso incentivava o povoamento da mata, dispensando os colonos do pagamento de

    impostos por dez anos e perdoando por seis anos aos devedores do governo que fossem

    abrir posses no que hoje conhecemos como nordeste de Minas.3

    Diante desses incentivos encontramos a parceria do Coronel Bento Loureno Vaz

    de Abreu e Lima e o ministro da Coroa Conde da Barca na abertura de uma estrada pelo

    vale do Mucuri, ligando Minas Novas foz do mesmo rio em S. Jos do Porto Alegre. O

    ministro financiou a expedio do Coronel e instalou uma fazenda s margens do Mucuri

    com a inteno de explorar as madeiras de lei ali abundantes. Chegaram a construir pontes,

    mas tanto a fazenda como a estrada no resistiram presso dos ataques indgenas e foram

    esquecidas aps a morte do Conde.4

    2 CHAGAS, Paulo Pinheiro op. cit. p. 150 3 RIBEIRO, Eduardo Magalhes (org.) - Lembranas da Terra: histrias do Mucuri e Jequitinhonha Contagem, Cedefes, s/d p. 183. O incentivo da ocupao refora a vontade da Coroa Portuguesa de estar presente em todo territrio de seus domnios, no s ocupando, mas produzindo riquezas. No mesmo perodo temos registros de doaes de salinas na Lagoa de Araruama. Ver Giffoni, Jos Marcello - Sal: um outro tempero ao Imprio (1801-1850) Rio de Janeiro, APERJ, 2000. 4 CHAGAS, Paulo Pinheiro op. cit. p. 151 e MATTOS, Izabel Missagia - Civilizao e Revolta: os botocudos e a catequese na provncia de Minas Bauru, EDUSC, 2004 pp. 98-99 - de acordo com as memrias sobre o Mucuri escritas pelo Baro de Tschudi.

  • 31

    Em 1834 o governo provincial buscou um lugar para instalar um presdio,

    suscitando a navegabilidade do Mucuri. O local do presdio e a confirmao da

    navegabilidade ficou a cargo do engenheiro francs Pierre Victor Renault em1836, por

    ordem da Provncia de Minas. O engenheiro considerou que os bugres que habitavam o

    Mucuri eram o nico obstculo que se oferecia a uma comunicao, por gua, entre a

    comarca de Minas Novas e o litoral.5

    Em 1845 a provncia da Bahia realizou uma expedio sob o comando do tenente

    de navegao Hermenegildo Barbosa de Almeida que explorou os rios Mucuri e Perupe,

    confirmando a navegabilidade do primeiro de sua foz at a cachoeira de Santa Clara.

    Almeida descreveu os povos do Baixo Mucuri e indicou o excesso de hostilidades das

    autoridades locais com os ndios.6

    Em 1847, o presidente da provncia Quintiliano Jos da Silva retoma a questo do

    povoamento do Mucuri:

    Em todo o sistema fluvial de Minas, o rio Mucuri um daqueles que no presente, oferecem maiores vantagens, no s por sua fcil navegao como pela fertilidade de suas matas e pela salubridade de seu clima. (...) O meu plano , alm da complexa explorao do rio, torn-lo quanto antes navegvel, ao menos por canoas, desde a barra de Todos os Santos at sua foz no oceano, na Vila de So Jos do Porto Alegre [hoje Mucuri -BA].7

    As promessas de riquezas, terras ubrrimas e prosperidade atravessaram os anos

    que nos levam aventura do liberal histrico Tefilo Otoni. Segundo Paulo Pinheiro

    Chagas, ainda em 1836 Otoni tinha olhares para o nordeste mineiro, especificamente a

    regio do Suau Grande. Em 1841, como deputado, entrou no debate sobre a comunicao

    de Minas com o mar, colocando vantagem no plano de ligar Minas-Novas a Caravelas:

    5 CHAGAS, op. cit. p. 152 6 MATTOS, op. cit. p. 102-03

  • 32

    O municpio de Minas Novas se aproveita j do Jequitinhonha e de sua nascente e insignificante navegao para obter alguns gneros de primeira necessidade da Bahia; muitos outros desses gneros, ou se vo buscar em costas de bestas cidade da Bahia ou ao Rio de Janeiro, caminhando-se por terra a distncia de cento e cinqenta para duzentas lguas. Toda esta interessante comarca est, entretanto, em muita vizinhana com Porto Seguro e Caravelas. A populao tem afludo para aquele lado e se facilitarem as comunicaes, o algodo, interessante ramo da produo agrcola de Minas Novas, e que hoje talvez no se produza em maior escala em razo das despesas extraordinrias de transporte, imediatamente ter um incremento considervel (...)8

    a partir da experincia proporcionada por Tefilo Otoni que vislumbramos uma

    ocupao mais sistemtica da regio que nos interessa. Precisamos fazer um desvio para

    buscar algumas explicaes que vo nos dar alguns fios a serem puxados e tecidos sobre a

    origem de Otoni e seus projetos.

    Entender a formao do nordeste mineiro para alm da seqncia cronolgica

    apresentada acima nos levou a um mergulho que passa pela biografia de Tefilo Benedito

    Otoni e aprofunda para antes do sculo XIX remetendo-nos formao e participao

    poltica das elites do chamado Norte Mineiro que possua como cidades plo Diamantina e

    Serro.

    Uma histria que comea na explorao do diamante pela coroa portuguesa com

    seus rigores e vcios de poder. Uma relao de opresso baseada na explorao mercantil

    que contribuiu na formao de uma elite questionadora da ordem monrquica e que vai se

    impor e provocar debates e aes importantes no cenrio poltico do Imprio.

    No Norte Mineiro o policial precedia o judicial, a justia se fazia pelas foras

    aquarteladas no Tijuco demonstrando que o interesse da interiorizao da Coroa visava

    7 CHAGAS, op. cit. p.153 8 CHAGAS op. cit. p. 154

  • 33

    apenas ao exclusivo mercantil.9 O Estado o responsvel pela instalao da cidade e de

    seus aparatos oficiais e a Igreja, sendo uma instncia de poder.10

    A instalao da cidade por conta da explorao de diamantes e ouro provocou

    tambm a construo de uma vocao agrcola e pecuria para a periferia (a regio do

    Serro, mata do Peanha e Rio Vermelho) do distrito diamantino diante da carncia de bens

    de primeira necessidade do mesmo.

    Segundo Jos Moreira de Souza a vigilncia da ordem territorial instalada no

    distrito diamantino desenvolveu uma conscincia anti-realeza, anticlerical e,

    aparentemente, anti-absolutista, ao mesmo tempo que cuidar de manter clandestinos os

    processos que conduzem a tal.11

    Ainda o mesmo autor nos mostra que a elite do norte mineiro se constituiu por

    uma estratificao tnica que passa dos valores econmicos e institui a dominao pela

    ameaa e emulao de seus valores firmando sua hegemonia. Uma elite forjada no s pelo

    estrato tnico dominante e civilizador branco representado principalmente pelas aes

    das irmandades religiosas leigas mas tambm pela incorporao de valores de outros

    estratos tnicos como o lundu, o quimbete, o candombe, o reinado, a dana de caboclo,

    assim como valores brancos (a modinha, a marujada, doces e quitandas) que se

    mulatizam:

    a crioulizao do branco e do negro que enseja a estratificao tnica.

    Diferenciando-a da estratificao por casta ou por estamentos, encobrindo-as quando tentam se afirmar como diretoras. Afinal, o processo determinante maior o que aponta para a explicitao do problema do Estado mercantil, da independncia poltica de uma elite que se criouliza, ou seja, constri valores

    9 SOUZA, Jos Moreira de Cidade: momentos e processos Serro e Diamantina na formao do Norte Mineiro no sculo XIX So Paulo, Marco Zero, 1993 p. 29 10 SOUZA, op. cit. p. 33 11 SOUZA, op. cit. p. 33 e 42

  • 34

    prprios perante situaes concretas de dominao, criando o espao apropriado.12

    O espao construdo por esta elite crioula difere da oligarquia, prope a integrao

    nacional, promove uma convergncia que fixa uma identidade regional e aponta para um

    discurso nacionalista.13 Discurso construdo pela leitura de clssicos e da formao dos

    filhos desta elite na Europa iluminista que busca o fim da dominao do territrio pelo

    processo mercantil, passando a promover a construo de novo espao social que implique

    viver e defender seus interesses no lugar da explorao querendo mudar sua condio de

    subsidirio do processo mercantil.14

    Como exemplo deste posicionamento poltico temos a Conjurao do Tijuco

    (1798-1801) que tem incio na insatisfao do excesso de poder delegado ao intendente e os

    fiscais do distrito diamantino que se desenrola por uma luta pela privatizao do direito s

    lavras e num debate sobre a participao do Estado, cidadania e insero de Diamantina no

    processo poltico regional.15 O esforo da elite do Tijuco na transio de Reino Unido para

    a Independncia o de se aproximar e identificar com as Minas do Norte, as Minas do

    espao clandestino dos caminhos da Bahia e construir, atravs da representao da

    liberdade, o conceito de cidadania.

    Busca-se um direito cidade que vai alm do acesso de morar num stio com ruas

    e praas, igrejas e teatros, Cmaras. A elite diamantina se sentia aprisionada, limitada, sem

    o direito do livre encontro manifestao e a condies de construir sua prpria linguagem.

    A Conjurao do Tijuco terminou favorvel elite local que desenvolveu

    comrcio e aumentou sua influncia, dando flego para a construo de um espao de

    12 SOUZA, op. cit. p. 47 13 Segundo SOUZA este comportamento til gestao de uma burguesia crioula patriciado com pretenso de ser apenas preposto dos centros de consumo. op. cit. p. 49

  • 35

    poder no Norte Mineiro que se concentrava entre a Vila do Prncipe (Serro) e Diamantina.

    Ambas com elite letrada, a primeira era sede da Comarca e a segunda possua populao e a

    fora do diamante.16

    Espao de poder que gesta a organizao de um governo provisrio que se

    deveria estabelecer em Vila do Prncipe, com o apoio de Rio Pardo e Minas Novas.17

    O despertar do Distrito Diamantino para a cidadania o despertar de uma nova regio, o Norte Mineiro, que, durante o sculo XIX, se esforar, atravs de suas elites, por ter voz e espao prprios, representao e propostas especficas da urbanidade. (...) caber ao Tijuco concentrar populao, enquanto Vila do Prncipe continuar a promover o surgimento de povoados e estabelecer neles, atravs das aes do Senado e da Casa da Cmara, as formas de dominao discutidas que, sem transigir, civiliza os moradores, indicando-lhes a convivncia pacfica.18

    Da unio de Serro e Diamantina surge um projeto de articular o Norte Mineiro

    como espao regional, sendo suas fronteiras a Comarca do Serro Frio, o serto do So

    Francisco e os limites desconhecidos com o Esprito Santo.19 Delimitao geogrfica que

    confirmamos em mapas do sculo XIX mostrando um norte que transcende aos pontos

    cardeais. 20

    14 SOUZA, op. cit. p. 48 15 Sobre a Conjurao do Tijuco ver SOUZA, op. cit. p.51-58 16 Segundo SOUZA - A aliana entre as elites crioulas da Vila do Prncipe e os proprietrios do Distrito Diamantino, (...) permite que no se confunda a presena de prepostos da dominao mercantil com a aliana dos moradores. A escolha de vila do Prncipe como lugar apropriado para sediar o governo provisrio indica suficientemente que as elites da regio reconheciam os mritos dos moradores daquela localidade para se opor s pretenses de continusmo que se desenvolviam na capital. op. cit. p. 61 17 SOUZA, op. cit. p. 60. 18 SOUZA, op. cit. p. 63. 19 SOUZA, op. cit. p. 62. Grifo meu. 20 Mapa encontra-se em BLASENHEIM, Peter L. As Ferrovias de Minas Gerais no sculo XIX In: LOCUS: Revista de Histria, Juiz de Fora, vol 2, n.2 p. 81-110.

  • 36

    Constitui-se uma elite que busca a cidadania como uma forma de afirmao

    regional, mudando as relaes com a regio de que depende. Diamantina concentra

    populao e mantm o poder de deciso na cidade, chamando as elites locais a se reunirem

    l para negociar o processo de urbanidade. O Serro reconhece a importncia de Diamantina

    e se especializa em atividades de abastecer o mercado florescente do Tijuco.

    Em 1821 a regio apresentava elevada taxa de alforrias, um tero de pretos livres,

    e nmeros expressivos de reproduo interna de escravos, metade da populao escrava era

    formada por pardos. Para o mesmo ano, os brancos contam 14% da populao livre e pretos

    forros so 25% entre os livres. 21

    No correr do sculo XIX a denominao regional de Serro perde espao para a

    denominao de Norte. Na verdade h uma ampliao das fronteiras regionais que passam a

    abranger a Mata do Suau, Doce e Turvo chegando regio de pecuria de Montes Claros,

    Salgado e Minas Novas. A imprensa desenvolvida entre Serro e Diamantina

    21 SOUZA, op. cit. p. 64 65.

  • 37

    (respectivamente 17 e 77 peridicos entre 1820 e 1910) mostra o esforo de disseminar a

    representao do Norte em mbito regional e nacional.22

    Um esforo de industrializao ganha fora com a chegada da Corte Portuguesa ao

    Brasil. A poltica de D. Joo VI estimulou a introduo da indstria txtil e grfica no

    Serro, gerando os primeiros jornais. Constituem-se tambm sociedades de capital dando

    outro proveito ao que foi entesourado ou era consumido com produtos manufaturados na

    Europa, sendo uma dessas sociedades a de industrializar o diamante, setor que mantinha a

    dependncia da regio para a dominao mercantil.23

    Ao mesmo tempo a instituio de privilgios privados de explorao das lavras e a

    explorao direta do Estado monrquico fortaleceram os conflitos na ordem espacial que se

    mostra na crioulizao da elite regional que aspirava a ser dirigente. No processo de

    Independncia mostram seu projeto alinhado aos ideais da Revoluo Francesa:

    federalismo, industrializao e desenvolvimento de mercado autnomo.24

    Tal projeto esbarrava na conjuntura de formao do Estado Brasileiro que, para

    manter a unidade territorial e poltica, exigia a continuidade do empreendimento de uma

    oligarquia mercantil-escravista centralizadora. Aliado a esse quadro encontramos as regies

    centrais num esforo de obter produtos de exportao e consolidao de seus mercados

    regionais por meio de suas foras produtivas e redirecionamento do capital/dinheiro

    acumulado no interior do empreendimento.25

    Forma-se a percepo de articulao entre os lugares do interior da regio

    mercantil-escravista gerando fora econmica e poltica que prepara a formao de uma

    22 SOUZA, op. cit. p. 67. 23 SOUZA, op.cit p. 68. 24 SOUZA, op.cit p. 70. 25 Idem

  • 38

    identidade norte mineira agregando os interesses das zonas dos currais com a minerao

    (ouro e diamante).26

    Os interesses regionais no se mostram apenas nos aspectos de

    representao do espao e de suas especificidades; a idia bsica a de ampliao do direito do cidado, conduzida pela condio de participar da vida econmica, eliminados os entraves da dominao mercantil e, por conseqncia, na vida poltica, determinando o prprio destino. Resultar disso o desenvolvimento de propostas de formao de uma regio especfica, com polticas adequadas de colonizao, entendida em sentido estrito, de consolidao de mercado regional e de ruptura definitiva com o modelo oligrquico que cria constrangimentos ao desenvolvimento regional.27

    Diante deste quadro desenvolvem-se duas correntes entre as elites locais: aqueles

    que so a favor do regime monrquico representativo e mantm a dominao mercantil e os

    que defendem as idias federalistas e liberais radicais apostando nas mudanas de relaes

    de produo e na industrializao.

    Dessas duas correntes seguimos o rumo dos radicais e seu projeto liberal para

    entender os caminhos que levam formao do nordeste mineiro.28

    Em Minas, a ideologia liberal vinha-se formando desde que o regime colonial entrou em crise. A formao do projeto liberal no Norte Mineiro, alm da figura do Padre Rolim, contar com a dos irmos Vieira Couto e, posteriormente, o outro ramo dessa famlia, os Vieira Otoni, a que se alinham os Queiroga e os Machado.29

    Proprietrios ilustrados e abastados que consideravam ter acesso representao

    legtima de nao e percepo da inconvenincia da ordem territorial que coage

    inconscientemente os no-proprietrios e os pequenos proprietrios. Liberdade sentido

    e resultado da luta contra a limitao de ser abastado sem poder sobre a ordem espacial que

    26 SOUZA, op.cit p. 70-71. 27 SOUZA, op.cit p. 71. Grifo meu. 28 Sobre a chamada corrente conservadora tratamos dela no processo de formao da regio salineira de Cabo Frio (RJ) em GIFFONI, op. cit.

  • 39

    se quer nacional. Pensa-se um Estado republicano que vem de uma ilustrao mais clssica

    (Ccero, Tcito, Cornlio, Plutarco) do que francesa/iluminista. Um projeto que bate de

    frente com o Estado monrquico e seu Poder Moderador que se impe aos povos e os faz

    reconhec-lo. Os povos deviam instituir o Estado e no reconhec-lo simplesmente.

    Politicamente, o projeto liberal do norte mineiro busca o poder constituinte dentro

    do Estado Monrquico e, economicamente, prope uma outra ordem visando criao de

    uma nao na qual s a propriedade estabeleceria uma ordem espacial fundamental. O

    proprietrio cidado portador do esclarecimento que traduzido pelos ideais de

    progresso.

    Ideais presentes nos componentes bsicos do programa liberal: colonizao,

    industrializao e desenvolvimento tcnico, mas que no se mostram questionadores da

    ordem escravista, mantendo assim um dos pilares da hegemonia oligarca do Imprio.

    A construo do projeto liberal norte mineiro pode ser dividido em trs perodos:

    um que abrange a Inconfidncia e Independncia e tem como autor principal os irmos

    Vieira Couto; outro que vai de 1831 a 1869 que incorpora os ideais representados por

    Tefilo Otoni; e por ltimo a gerao que passa pela transio de Imprio/Repblica e tem

    como expoentes Josefino Vieira Machado e os irmos Felcio dos Santos.30

    Em Tefilo Otoni, filho da elite crioulizada e ilustrada do Serro, o foco terico

    muda dos franceses para os norte-americanos, em especial T. Jefferson e B. Franklin.

    (...)Em Otoni, os EUA aparecem como lugar perfeito, definitivo, acabado. Ali a histria cumpriu, completamente, seu caminho. (...) Otoni d os EUA como o tempo e o local da completude histrica: tudo j foi conquistado. O progresso passa a ser apenas cumulativo na autopreservao da utopia.31

    29 SOUZA, op.cit p. 73. 30 SOUZA, op.cit p. 73-5. 31 DUARTE, Regina Horta Histria, Verdade e Identidade Nacional: quatro panfletos polticos do Segundo Reinado In: LOCUS: revista de Histria, Juiz de Fora, vol. 2, n 2.p. 121.

  • 40

    Mantm a figura do cidado ativo/esclarecido que entra em defesa dos

    oprimidos que so considerados irresponsveis e sem controle. O alvo principal o

    absolutismo e a oligarquia, ao mesmo tempo que importante negociar diante de uma

    possvel rebelio irresponsvel dos oprimidos a anarquia. 32 Seu projeto se mostra

    mais poltico em suas aes como o 7 de abril de 1831; a republicanizao da

    constituio que vem da Constituio de Pouso Alegre e o Ato Adicional de 1834; a

    revolta de 1842. 33

    Aps a derrota em Santa Luzia sua atuao poltica se reduz, voltando suas foras

    para um projeto econmico que se prope no estar atrelado aos interesses agro-exportador-

    escravista, buscando uma descentralizao econmica do porto do Rio de Janeiro. No

    tocante escravido constri-se um discurso a favor da imigrao estrangeira com o intuito

    de colonizar o territrio e reforar a construo de uma nao.34

    O meio mais seguro de favorecer a emigrao para o nosso pas ser fazer crer, nos pases onde a populao pode emigrando dar vantagens ao Brasil, que a constituio e as leis so uma realidade do nosso pas. E os que vierem abrigar-se debaixo dessa salvaguarda, sero protegidos em suas pessoas e fortuna contra todos os atentados.

    Tefilo Otoni35

    32 SOUZA, op.cit p. 76. 33 SOUZA, op.cit p. 77. 34 Neste ponto recordamos os debates sobre o preconceito da elite letrada quanto a capacidade do trabalhador nacional e o plantel de escravos para se construir o conceito de nao que pretendiam. Ver COSTA, Emlia Viotti da Da Monarquia Repblica: momentos decisivos SP, Brasiliense, 1987 e COSTA, Emlia Viotti da Da Senzala Colnia SP, Brasiliense, 1989. 35 Segundo SOUZA (...) no um projeto revolucionrio, nem tem poder intrnseco de mudar o cotidiano, lugar privilegiado da reforma da cultura popular e das representaes. (...) Otoni pouco explcito quanto a um programa secularizante. Ataca apenas os aspectos decorrentes da imigrao, sem ir ao cerne do problema(...) In: SOUZA, op. cit. p. 79.

  • 41

    Este projeto econmico possui o desenvolvimento tcnico e a imigrao como

    eixos principais na luta contra a opresso do cidado pelo Estado. Um Estado que

    desconhece a nao e quer apenas o domnio do territrio.

    As colnias do Mucuri surgem como ponto convergente dos esforos do norte

    mineiro de conquistar seus canais de comunicao e desenvolvimento e tambm uma

    confrontao ao Estado Absolutista/Monrquico.36

    Voltamos do nosso desvio linha principal com outros olhos sobre a construo

    do espao social do nordeste mineiro.

    Em maio de 1847 legaliza-se a Cia. de Navegao do Mucuri. Organizada por

    Tefilo e Honrio Otoni, tendo como scios parentes e amigos como Irineu Evangelista de

    Souza, o Baro de Mau. Com aprovao do Imprio, a Provncia de Minas entra como

    acionista (1/4 das aes) e autoriza:

    1. A construo de duas estradas do armazm superior da Companhia para a cidade de Minas Novas e outra para as de Serro e Diamantina, com faculdade de cobrar pedgio; 2. Iseno por oitenta anos dos impostos provinciais; 3. Obrigao por parte do governo de no permitir a abertura de outras estradas que vo ter s margens do Mucuri, da barra do Todos os Santos para cima; 4. Construo de um quartel nas matas do Mucuri.37

    Descobrir os limites quase desconhecidos com a Bahia38, colonizar com mo-de-

    obra livre europia germanizar o Mucuri, colonos como associados e no proletrios.

    Construir uma democracia pela posse da terra baseada na experincia dos EUA de Jefferson

    e Franklin. Valorizar as riquezas do norte cortando o nordeste mineiro de estradas.

    Respeitar e convencer os povos indgenas dos valores da civilizao ocidental. Comunicar

    36 SOUZA, op.cit p. 82-3. 37 CHAGAS, op.cit. p. 155. 38 Em mapa do Atlas Chorographico Municipal mostrado por MATTOS, op. cit. p. 323, ainda no ano de 1926 existem reas de floresta consideradas pouco conhecida no municpio de Tefilo Otoni.

  • 42

    o Norte de Minas com o Rio de Janeiro, atravs do rio Mucuri e do oceano, criando, assim,

    um porto de mar para a provncia central.

    Em seus discursos podemos localizar uma vontade represada na experincia como

    poltico e o potencial sonhador de realizar como empreendedor.39

    Da Tribuna da Cmara dos Deputados, pedi ao governo que pusesse o norte de Minas em comunicao com o litoral do Mucuri. Estava longe de mim fazer monoplio desta idia generosa. Mas, depois de bradar em vo seis anos, procurei realizar, como industrial, o que no tinha podido conseguir como poltico.40

    No embalo do sonho descentralizador surge Filadlfia margem do rio Todos os

    Santos evocando a liberdade americana de Thomas Jefferson.41 Localizada em ponto

    estratgico para a comunicao do litoral com o serto tendo Minas Novas e Peanha como

    pontos de passagem para se chegar ao Serro e Diamantina42. Corria o ano de 1853 entre

    antigas e novas promessas de riquezas e junto s divergncias no trato com os ndios43

    dificultando o acesso s suas terras, a mata se fazendo presente nos civilizados com calor,

    chuva, doenas (malria), animais, parasitas, muralhas de espinhos e cips. Desmatar era

    necessrio para ter sade. Seguem-se tambm dificuldades polticas e econmicas com

    questionamentos sobre a produo e a qualidade de vida dos colonos ali chegados. Entre

    estes vieram indivduos arregimentados em prises alems que trouxeram outros valores

    civilizados diferentes das idias de progresso, trabalho e modernidade. Eram poucos os que

    aceitavam aventurar-se nas fronteiras do nordeste mineiro e Otoni forado a usar brao

    escravo e contratar colonos que no desejava.

    39 CHAGAS, op.cit. p. 156-7. 40 OTONI, Tefilo B. Breve Resposta In: CHAGAS, op.cit. p. 157. 41 CHAGAS, op.cit. p. 176. 42 CHAGAS, op.cit. p. 199. 43 Ver MATTOS, op.cit. que analisa as contradies da poltica indigenista do Imprio e Repblica Velha.

  • 43

    A polcia de Potsdam aproveitou o ensejo para depurar a populao daquela cidade, descartando-se de uma centena de indivduos onerosos e suspeitos.44

    Quanto navegao do Mucuri, Tefilo Otoni esbarrou nos dados equivocados de

    quem os precedeu causando atrasos e prejuzos.45

    Ainda sobre as dificuldades impostas pela natureza, frei Serafim de Gorizia ,

    quarenta anos depois da experincia de Otoni, dizia o seguinte:

    Os mosquitos eram insuportveis, representavam para ns um verdadeiro martrio, zombando at das fogueiras e da fumaa, e nos causando to grande fadiga que, em poucas horas, alm de nervosos, nos deixavam extenuados.46

    Aproveitamos o depoimento de frei Gorizia, um dos responsveis pelo aldeamento

    de Itambacuri no final do sculo XIX, para fazermos outro importante desvio na construo

    do espao social do nordeste mineiro.

    So os rumos da espinhosa relao com os povos indgenas da regio, os famosos

    botocudos. Botocudos que na verdade eram diversos grupos com lngua e costumes

    diferentes. Segundo Chagas, se dividiam em Giporoks, Macunis, Arans, Ta Monhecs,

    Bakus, Porukuns, Pojichs, Nak-Nanuks estes divididos em Pots, Potones,

    44 OTONI, Tefilo B. A Colonizao do Mucuri In: DUARTE, Regina Horta (org.) Notcias Sobre os Selvagens do Mucuri BH, Ed. UFMG, 2002. 45 A Companhia do Mucuri se baseou nos estudos feitos por Hermenegildo de Almeida (1846) e do engenheiro da Companhia em 1851 (Wisenski) que afirmavam a navegabilidade do Mucuri para definir o tipo de embarcao que circularia pelo rio. Os clculos foram feitos no perodo de cheia do rio, no tempo de seca apenas barcos de calado reduzido poderiam navegar. Isto provocou prejuzos a Cia. Ver OTTONI, Tefilo B. Consideraes Sobre Algumas Vias de Comunicao Frreas e Fluviaes a Entroncar na Estrada de Ferro de D. Pedro II e no rio de S. Francisco Acompanhadas de um Estudo Especial sobre o modo de ligar a mesma Estrada de Ferro de D. Pedro II com as Seces navegveis dos rios Verde e Sapucahy. Rio de Janeiro, Typ. Do Correio Mercantil, Rua da Quitanda n. 55 1865 p. 27 (Documento cedido atenciosamente pela professora Regina Horta Duarte) 46 Fr. Jacinto de Palazzolo, O. F. M. Cap. Nas Selvas dos vales do Mucuri e do Rio Doce. Apud. CHAGAS, op.cit. p. 180.

  • 44

    Krakatans...47 Povos que, segundo Tefilo Otoni, tiveram participao decisiva no

    estabelecimento da Cia do Mucuri.48

    No sculo XIX localizamos dois olhares que se completam sobre a questo

    indgena do Mucuri: de um lado, vemos a contradio do chamado indigenismo de gabinete

    que previa o aldeamento dos povos indgenas e sua absoro pela sociedade majoritria

    contra o comportamento hostil com relao aos ndios das autoridades e moradores/colonos

    da regio. Alm disso, temos bem claro o esforo do governo imperial de se fazer presente

    em todo territrio nacional por via da ocupao de reas pouco habitadas.

    Pensando a questo indgena no Mucuri confirmamos o que indicam outros

    pesquisadores no tocante do olhar sobre os ndios no sculo XIX. A explorao de seu

    trabalho perde importncia para o interesse por suas terras.49

    Autores como Izabel Missagia de Mattos e Eduardo Magalhes Ribeiro nos

    mostram o quanto foi cruel e sofrido o processo de absoro das populaes indgenas

    daquela regio. Um processo que envolve diversas questes passando pela presso da

    sociedade majoritria que empurra diferentes grupos para reas de florestas cada vez mais

    restritas. A obteno de alimentos se agrava provocando conflitos inter/intratribais que

    expulsam grupos da mata, obrigando-os a conviver com a sociedade brasileira. A cultura

    desses povos ficou fragilizada ainda mais com as estratgias tanto violentas quanto

    pacficas de contato. Enfrentava-se o horror do seqestro de crianas50, a matana de

    47 CHAGAS, op. cit. p. 183. 48 OTONI, Tefilo Benedito Noticia sobre os Selvagens do Mucuri em uma carta dirigida pelo Sr. Tefilo Benedito Otoni ao Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo In: DUARTE, op. cit. 49 Autores que confirmam esta interpretao: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org.) Histria dos ndios no Brasil SP, Cia. das Letras, 1992 e SILVA, Francisco Carlos Teixeira da Camponeses e criadores na formao social da misria: Porto da Folha no Serto do So Francisco (1820-1920) Niteri, UFF, 1981. Dissertao de Mestrado em Histria. 50 Tefilo Otoni denuncia este trfico de crianas indgenas (kurucas) In: DUARTE, op. cit. p. 49. Tambm comum encontrar o registro na memria das famlias da regio o fato de que algum parente, principalmente

  • 45

    aldeias por ou sem motivos, a criao de presdios indgenas onde era proibido falar outra

    lngua que no fosse a lngua portuguesa entre outras estratgias. Junto com esta violncia

    encontramos a imposio de valores como obrigao de trabalho, lucro, propriedade e

    religiosidade.

    Tefilo Otoni registra, em texto sobre as populaes indgenas do Mucuri, a

    brutalidade exercida pelos colonizadores/civilizadores da regio que usavam de recursos

    hediondos como oferecer carne indgena aos ces sob o argumento de ca-los com mais

    eficincia. Tudo muito distante do modelo de civilizao.51

    Diante do que viu da relao entre luso-brasileiros e ndios, o prncipe alemo

    Maximiliano Wied considerou que no haveria memria dos tapuios, pois indiferente

    para as futuras geraes, se um botocudo ou uma fera tenham vivido, outrora, nesse ou

    naquele lugar.52

    desse conflito que surge a cultura e a identidade que conhecemos hoje dos vales

    do Jequitinhonha e Mucuri. Segundo Izabel Mattos, o processo de civilizao indgena

    mostrou-se como uma via de mo dupla em que o colonizador tambm foi colonizado

    ao ter que se submeter a valores indgenas no processo de negociao de aes para atingir

    seus objetivos assimiladores. Isto estabeleceu novas conexes identitrias no previstas

    provocando fundamentos para outras formaes culturais que se fazem presentes na

    regio.53 Podemos tambm agregar a influncia do elemento indgena nas reflexes sobre a

    crioulizao da elite norte mineira levantada por Souza.

    mulheres, tenha sido pego no lao ou pego no perro (perro cachorro em espanhol). Memria que carrega o valor/argumento de que aquele parente era bugre, mas ficou manso. 51 DUARTE, op. cit. p. 31-2. 52 RIBEIRO, op.cit. p. 183. 53 MATTOS, op. cit. p. 442. Quanto s manifestaes desta influncia citamos o sem nmero de manifestaes culturais ligadas a festas catlicas, mas que esto recheados de signos/valores africanos e indgenas como os Caboclinhos, Catops, Marujadas, Bois de Janeiro, Folias de Reis.

  • 46

    Hoje vemos o quanto essas culturas possuem razes como no exemplo dos Krenak,

    dos Machacalis, dos Arans, Pancararus, Patachs que mesmo massacrados fazem-se

    presentes com seus valores e estratgias de sobrevivncia diante da sociedade majoritria.54

    EVIDNCIAS DO CAMINHO DE FERRO

    A linha principal vem chegando para desenrolar mais fios de olhares carregados de

    cores do passado que pintam um quadro recheado de adjetivos nem sempre de boas

    lembranas.

    Mesmo diante de problemas, a regio continua recebendo colonos, desmatando e

    abrindo estradas. Estas ltimas tornam-se o principal investimento diante das dificuldades

    de navegao do Mucuri, sendo a principal delas a que ligava a cachoeira de Sta. Clara a

    Filadlfia, surgindo um plano de uma rede rodo-ferroviria entre Caravelas, Filadlfia,

    Minas Novas e Diamantina.55

    Aps dez anos de presena no Mucuri, surge a idia de constituir-se uma nova

    provncia. Projeto que contava com o apoio do Marqus do Paran, mas no saiu do papel e

    de debates legislativos.

    A nova provncia compreenderia a comarca de So Mateus, no Esprito Santo; as

    comarcas de Caravelas e Porto Seguro na Bahia; a comarca de Jequitinhonha e parte das do

    Serro e S. Francisco em Minas. Seus limites seriam leste, o oceano; ao norte o rio Pardo,

    que desgua no atlntico e o rio Verde, afluente do S. Francisco; oeste o rio S. Francisco;

    e, ao sul o rio Doce e alguns de seus afluentes do noroeste. Com o nome de Santa Cruz,

    Mucuri ou Porto Seguro, com uma populao de aproximadamente 200.000 habitantes.56

    54 Verificamos isto na presena do ndio em vrias universidades e a existncia de projetos de educao indgena, com a formao de professores ndios como o que existe na aldeia Krenak de Resplendor (MG). 55 CHAGAS, op.cit. p. 202. 56 CHAGAS, op. cit. p. 203. S vamos ter notcias de uma certa autonomia do nordeste mineiro diante da influncia do norte no perodo da morte de Joo Pinheiro (1908).

  • 47

    Em 1857, Tefilo Otoni faz algumas consideraes logsticas sobre a possibilidade

    de uma nova provncia:

    Esta situao foi criada pela Companhia do Mucuri. Todos os que reconhecem como palpitante esta necessidade pblica confessam que s as nossas estradas tornaro possvel a sua realizao, e que a estrada de Sta. Clara para Filadlfia ser a principal artria por onde se comuniquem as marinhas da nossa provncia, com seus 30 mil habitantes e o interior (...) Apenas tome algum incremento as populaes das matas ao norte do vale do Paraba, as necessidades pblicas criar-lhe-o novos mercados no litoral adjacente. Mas daqui at os Abrolhos no oferece a nossa costa outros portos onde se possa imaginar levantado no futuro o comrcio estrangeiro, seno o porto da de cidade de Vitria e o de Caravelas. O porto de Vitria ter de ser utilssimo s populaes a leste de Ouro Preto, Mariana, Itabira e uma parte do Serro (...) Do Serro para o norte, porto vizinho, com barra e ancoradouro capaz de sustentar uma alfndega e um vasto comrcio, o porto de Caravelas. (...) A simples enunciao destes dados prova que a grande artria de comunicao, que deve ligar Caravelas ao interior, tem de seguir o vale do Mucuri, ou, por outra, tem de ser a nossa estrada de Sta. Clara a Filadlfia, prolongada para o oeste at Diamantina e, para leste, at Caravelas.57

    Tefilo Otoni nos apresenta um projeto descentralizador do porto do Rio de

    Janeiro para toda a provncia de Minas Gerais a partir das necessidades logsticas de cada

    regio, no caso o centro e o norte de Minas. Necessidades que no convencem elite

    centralizadora do Imprio.

    Apesar de todo esforo investido na regio, o caminho da Companhia a

    encampao pelo Governo Imperial que se nega a ceder emprstimo para manter o

    funcionamento das atividades. O dinheiro no vem e governo e Companhia entram num

    acordo desfavorvel para Tefilo Otoni. Depois de encampada, a Companhia deixa de

    existir.

    Mesmo com o fim da Companhia, as notcias de fertilidade e promessas de futuro

    promissor continuam a surgir dizendo que a terra ubrrima com sinais de fartura de

    57 CHAGAS, op. cit. p. 203-4.

  • 48

    gneros alimentcios. O caf introduzido por Otoni apresenta resultados.58 Fartura

    confirmada por Eduardo Ribeiro que localiza em depoimentos de agricultores o registro de

    um tempo de harmonia com a natureza e abundncia de alimentos.59

    Muitos estrangeiros fixam moradia e a violncia contra e dos ndios recrudesce.

    Aumenta a necessidade de terra e a fronteira empurra/massacra/absorve os povos

    autctones.60

    Todos os municpios da zona fisiogrfica do Mucuri pertenceram ao primitivo

    municpio de Tefilo Otoni, sem exceo de um s. O municpio de Tefilo Otoni era

    constitudo de toda a atual zona do Mucuri. guas Formosas, Carlos Chagas, Itambacuri,

    Malacacheta, Pavo e Pot tiveram seus territrios desmembrados diretamente do de

    Tefilo Otoni. Os demais, Atalia, Bertpolis, Campanrio, Frei Gaspar, Frei Inocncio,

    Ladainha, Machacalis, Nanuque, Nova Mdica, Pamp, Pescador, S. Jos do Divino e

    Umburatiba desmembram-se dos primeiros. Ampliando a regio para o que conhecemos

    hoje como nordeste mineiro temos outro municpio plo que Araua, do qual

    desmembram-se outros como Itinga e Novo Cruzeiro. E uma parte significativa destes

    municpios surge a partir dos acampamentos da EFBM.61

    Em 1857, Tefilo Otoni, no Relatrio apresentado aos acionistas da Cia. do

    Mucuri, mantm o projeto descentralizador acima citado e adianta a possibilidade da

    ferrovia:

    58 No incio do sculo XX localizamos uma produo significativa de caf no municpio de Tefilo Otoni entre outros produtos. No Anurio Estatstico de Minas Gerais para os anos de 1922-1925 (APM) Tefilo Otoni e Araua aparecem entre os dez maiores produtores do Estado em produtos como: algodo, mamona, mandioca, caf, feijo, batata (doce e inglesa), arroz em casca, amendoim, milho, rebanho bovino e suno, charque, mostrando uma produo significativa no s de subsistncia, mas voltada para o mercado interno. Voltaremos a esses dados mais adiante. 59 RIBEIRO, op. cit. 60 CHAGAS, op. cit. p. 246.

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    No possvel que a alfndega do Rio de Janeiro continue a ser a de toda a Provncia de Minas.

    Apenas tomar algum incremento a populao das matas ao norte do vale do Paranaba as necessidades pblicas criar-lhes-o novos mercados no litoral adjacente.

    Mas daqui at os Abrolhos no oferece a nossa costa outros portos, onde se possam imaginar, levantados no futuro comrcio estrangeiro se no o porto de Vitria e o de Caravelas.

    Toda a populao da comarca do Serro e a mr parte das do municpio de Minas Novas demora ao sul de Caravelas.

    O vale de Caravelas e o do Perupe morrem na cordilheira do mar, e o vale vizinho que atravessa a cordilheira do lado sul e vai ao interior de Minas Novas, o Mucuri.

    A simples enunciao destes dados prova que a grande artria de comunicao que deve ligar Caravelas ao interior, tem de seguir o vale do Mucuri, ou por outra, tem de ser a nossa estrada da Sta. Clara a Filadlfia prolongada para o oeste at a Diamantina e para leste at Caravelas.

    Sou de parecer que a Companhia do Mucuri deve se apresentar ao Governo Imperial oferecendo-se para estender a sua estrada at Caravelas e mediante os favores que for possvel obter, tomar o compromisso de , dentro de um lapso de tempo, que deve ser longo, estender trilhos de ferro sobre a sua estrada, ou para serem tirados os carros por animais ou locomotivas.62

    Na mesma linha de raciocnio de Tefilo Otoni, e para alm, o engenheiro Miguel

    de Teive e Argolo, em sua Memria Descritiva da Estrada de Ferro Bahia e Minas, cita o

    professor C.F. Haitt que diz o seguinte sobre a regio do rio Mucuri ainda no sculo XIX:

    (...) em uma palavra posso dizer que todo o terreno, do Riacho das Pedras at as cabeceiras do Mucuri, forma uma das regies mais extensas e uniformemente frteis do Brasil, ao sul do Amazonas e no posso deixar de experimentar minha crena firme de que a natureza tendo to abundantemente abenoado o Mucuri, um dia no muito distante o ver coberto de habitantes e o caminho principal do comrcio com o interior de Minas.63

    61 Sobre formao dos municpios do vale do Mucuri - CHAGAS. op. cit. p. 249 - Ver tambm BRASIL, IBGE - Enciclopdia D