tese zé marcello trilhos arrancados
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tese sobre o desmonte das principais ferrovias no BrasilTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
TRILHOS ARRANCADOS : Histria
da Estrada de Ferro
Bahia e Minas (1878 1966)
JOS MARCELLO SALLES GIFFONI
Belo Horizonte Inverno
2006
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JOS MARCELLO SALLES GIFFONI
TRILHOS ARRANCADOS : Histria
da Estrada de Ferro
Bahia e Minas (1878 1966)
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor.
Orientador: Prof. Dr. Douglas Cole Libby
Belo Horizonte Inverno
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
Tese defendida e aprovada pela banca examinadora
constituda pelos professores:
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RESUMO
Este trabalho dedica-se ao entendimento da relao entre o Estado e a ferrovia no
perodo de 84 anos de existncia da EFBM. Estrada de Ferro que ligou o extremo sul da
Bahia e o nordeste de Minas Gerais entre 1882 e 1966.
A partir do estudo da ocupao do nordeste mineiro, da anlise das polticas de
desenvolvimento nacionais e locais que atravessaram o perodo acima, pretendemos refletir
sobre o processo de mudana do discurso estatal com relao ao transporte ferrovirio no
Brasil, culminando na poltica de erradicao dos trilhos e em grande impacto econmico e
social para a regio atendida pela ferrovia em questo.
RESUM
Ce travail a comme but lentendement du rapport entre lEtat et le chemin de fer
dans la priode de quatre-vingt quatre annes de lexistence de lEFBM, qui a li la partie
extrme sud de ltat de Bahia au nord-est de ltat de Minas Gerais, entre 1882 et 1966.
partir de cette etude, de lanalyse des politiques de dveloppement nationales et
locales qui ont travers la priode sus-cite, nous voulons rflchir sur le processus de
chengement du discours de ltat relativement au transport par chemin de fer au Brsil, en
aboutissant la politique dradication des voies frres sans quil ya ait eu un si grand
impact conomique et social pour la rgion desservie par cette ligne.
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AGRADECIMENTOS Das Utopias
Se as coisas so inatingveis... ora! No motivo para no quer-las...
Que tristes os caminhos, se no fora A mgica presena das estrelas!
Mrio Quintana
Trabalho pronto. Posso dizer que foi extremamente prazeroso realiz-lo. Misso
cumprida, ciclo fechado, compromisso realizado. Ao lado de todas as angstias, decepes,
terrorismos, excluses, medos, dificuldades materiais e individuais que este trabalho me
trouxe, tive tambm o privilgio de conviver com pessoas especiais que sempre me
avisaram da existncia da msica, da poesia, da solidariedade, sensibilidade, afetividade,
cuidado, humildade, a sinceridade de olhar no olho e enxergar a alma do outro.
Instrumentos e sentimentos que me deram fora para continuar firme e acreditar que
podemos fazer diferente. E, como o poeta, ainda pensar na utopia, por mais distante que
esteja.
Espero passar ao leitor o prazer que foi, para mim, fazer este trabalho. Um trabalho
de compromisso com a universidade pblica e tudo de positivo que ela pode gerar. Fruto de
uma relao de dezessete anos com o meio acadmico com o qual acredito colaborar na
abertura de uma fronteira pouco freqentada pela historiografia regional que o nordeste
mineiro.
Este trabalho conclui um importante ciclo na minha vida. Para acab-lo, com prazer
e consistncia, os desafios foram muitos e, no seu percurso, diversas pessoas e instituies
contriburam.
Agradeo e compartilho esta tese de Doutorado com:
Fernando Brant e Milton Nascimento pela autoria de Ponta de Areia, msica que despertou
o interesse pelo tema desta tese;
Neilton Lima pela divulgao da exposio Trilhos Arrancados, a semente deste trabalho,
no stio www.onhas.com.br desde 1998;
Aos alunos e a todos os meus colegas da Faculdade Cincias Humanas de Pedro Leopoldo
que, de alguma forma, colaboraram para a minha estada em Belo Horizonte, com dicas de
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leituras, receitas e prosas agradveis nas viagens de ida e volta: Rafael, Rogrio, Edna,
Ulisses, Jnia, Beth, Washington...;
Marivone Rausch pela indicao das informaes do livro Tortura Nunca Mais sobre
funcionrios da EFBM e a indicao de seu irmo Marcelo para uma boa prosa final a
respeito da velha Bahiminas;
A regio e a populao que provocou este trabalho desde 1996. Gente de corao aberto
para o mundo, pejado de alegria e sonho, prontos para dar um sorriso, lanar um verso e
enfrentar o destino material nem sempre agradvel;
Os amigos cariocas dos tempos do sonho da Instantes: Sandor Buys, Srgio Paulo
Aunheimer Filho, Marcos Jos Caldas (compadre e co-orientador), Fernando Csar, Raul
Motta, Mnica Torres (que me acompanhou nas primeiras empreitadas da Bahia e Minas),
Marcelo Oliveira (compadre e poeta retratista), Alexandre Feitosa, Carlos Arimatheia, Lis
Lancaster, Carlos Guerreiro;
Os poetas Paco Cac e Wlademir Dias Pino por tudo que me ensinaram sobre o fazer da
poesia e do sonho;
Dilma Andrade de Paula, pelo apoio intelectual, inspirao profissional e na f pela
universidade pblica, gratuita e de qualidade;
Os amigos Miguel Renato, Adriana e Beatriz (para lembrar a importncia de ser criana e
da amizade fraterna);
A famlia Casa Nova (Vera, Andrea, Tlio e Clarice) pela recepo em BH, cumplicidade
carioca, carinho, apoio acadmico e gosto pela poesia;
A famlia pirlimpimpim: Tnia Grace, Darkan, Clara, Darta, George, Dona Julieta e Izabel
Ribeiro (pelas prosas com boa comida, violadas, cantigas, danas e contradanas do Vale);
Mara Isabel Chanoca pela reviso dos textos finais;
Todos os funcionrios das bibliotecas e arquivos que freqentei em todos esses anos:
Ministrio da Fazenda, RFFSA (Rio de Janeiro e Belo Horizonte), IHGB, Biblioteca
Nacional, Arquivo Pblico Mineiro, UFMG (Fafich e Face), Hemeroteca do Estado de
Minas Gerais;
A natureza do Campus Pampulha (principalmente no outono azul e temperado de Minas);
Antonio Greco e todos os apaixonados por ferrovia que me ajudaram a estudar e entender
os caminhos dos documentos e, claro, pelas boas prosas;
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A arte do Tai Chi Chuan pelo equilbrio de mente, corpo e esprito;
Jos Moura e Clarice pelo carinho e reconhecimento do meu trabalho;
A irmandade marcial da Brazil Hung Fut (em especial Ivan Pinheiro e Marcone Abdo) e
todos os meus alunos de Tai Chi Chuan (Parque Municipal, Espao da Harmonia,
Funed/Escola de Sade), que me receberam de braos abertos em BH e alimentam o sonho;
Os Embaixadores da Lua Josino Medina e Paulinho Amorim e a Companhia Pra Sonhar;
Maria do Carmo do Centro de Estudos Mineiros por todo o apoio prestado e pela parceria
potica em, ch, verso, origami e imagem;
Todos os funcionrios do Departamento de Histria e da Ps que me acompanharam nesses
quatro anos;
Alessandro Magno da Silva do setor de matrcula da UFMG que acompanhou toda minha
trajetria acadmica com carinho, ateno e respeito;
Os hericos alunos do Estgio Docente (2 semestre/2004) que resolveram topar a
empreitada de estudar Gramsci;
Todos os entrevistados da famlia ferroviria da Bahia e Minas que abriram suas casas e
coraes para mergulhar em suas memrias de ferro: Adaltiva Teixeira da Silva; Alyrio
Gomes Eusbio; Arani Santana Campos; Ciro Flvio Bandeira de Melo; Epaminondas
Conceio Caj; Geralda Chaves Soares; Jos Alves dos Reis; Jos Penna Magalhes
Gomes; Josefa Alves dos Reis; Jlio Jos de Barros; Leondia Silva Brauer; Luis Henrique
Guimares Lisboa; Luiz Eloy de Almeida; Manoel Otoni Neiva; Maria da Conceio
Pereira; Nadege Aparecida da Silva Carvalho; Nilton Ferreira de Souza Curi; Olivier
Alves Ferreira; Orlando Machado Barreto; Therezinha Guimares; Valdete Tarone Tomich;
Zenith Frana Caj;
Rodney Ruas e famlia pela recepo em Carlos Chagas com indicaes preciosas de
entrevistados e prosas quase sem fim no seu quintal com direito a caf e biscoito de goma.
As Professoras Regina Horta, Helosa Starling, Eliana Dutra e Regina Helena. Mulheres
que contriburam de forma importante e desafiadora no processo de construo desta tese;
O Professor Bebeto da Cincia Poltica que me acolheu nas aulas e debates sobre
Gramsci;
O Professor e Orientador Douglas Cole Libby, pelo apoio importante nos meandros da
universidade, sempre pronto/disponvel para conversar e localizar minhas contradies e
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exageros/disparates acadmicos. Proporcionou total liberdade de elaborao sem deixar de
fazer suas crticas. Meu nico leitor no perodo entre qualificao e defesa;
Os professores que me formaram nos tempos de Niteri: Ilmar Mattos, Margarida de Souza
Neves, Ciro Flamarion Cardoso, Geraldo Beauclair, Leandro Konder, impossvel esquec-
los;
As professoras Virgnia Fontes e Mrcia Motta, pessoas tambm importantes na minha
formao de historiador e colaboradoras importantes no incio deste trabalho pelas cartas de
indicao para o Programa de Ps da UFMG;
A CAPES pela concesso de trs anos de bolsa;
Denise Sena, Moiss Pereira de Barros, Renato Paixo, Rubensmidt Riani, e Maria do
Carmo Daldegan por acreditarem no meu trabalho e me receberem com muito carinho na
Fundao Ezequiel Dias/Escola de Sade de Minas Gerais. Apoio importantssimo;
Minha Famlia mineira e carioca que deu o apoio de vrias formas do incio ao fim: Jos
Carlos de Meirelles Giffoni (pai), vora Salles Giffoni (me e corretora dos textos finais),
Carlos Guilherme S. Giffoni (irmo), Elizamar dos Santos Ramos (irm), Maria da
Conceio Laurita (pela ajuda fundamental no primeiros anos de Miguel), famlia
Albuquerque (em especial Vanda pela ateno de Tia participante e amiga), meu av
Manoel Ramalho da Silva (o exemplo que carrego pelos tempos) e finalmente, minha
esposa Iomara Albuquerque (fada azul que me trouxe a BH e despertou toda essa histria) e
nosso rebento Miguel que nos desperta desafio e encantamento.
Belo Horizonte,
Invernoquaseprimavera, 2006
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(...) a estrada de ferro avana sobre as ondas que so chinesas e sobre a mortalha e o mar do Oriente. Prossegue irregular at as nuvens do planalto e Pucalpas e perdidas alturas andinas muito alm dos limites do mundo, tambm perfura um buraco profundo na mente de um homem e transporta um bocado de cargas interessantes dentro e fora dos buracos, e tambm esconderijos e horrorosos pesadelos semelhantes eternidade, como voc ver.1
1 KEROUAC, Jack A terra das ferrovias In: Viajante Solitrio Porto Alegre, L&PM, 2005 p. 91-2.
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SUMRIO RESUMO/RESUM 4
AGRADECIMENTOS 5
ABREVIATURAS 11
INTRODUO 13
CAPTULO I O Grande Norte 28
CAPTULO II Guerra Justa 52
CAPTULO III Estado e Desenvolvimento 78
CAPTULO IV Expanso e Recolhimento 126
CAPTULO V Trilhos Arrancados 160
CONCLUSO 197
ANEXO I Dados Econmicos da EFBM 205
ANEXO II Produo Agropecuria Da rea De Influncia da EFBM 216
ANEXO III Memrias de Ferro 219
ANEXO IV Municpios e Estaes da EFBM 295
DOCUMENTOS 300
BIBLIOGRAFIA
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ABREVIATURAS
APBH - Arquivo Pblico de Belo Horizonte
APM Arquivo Pblico Mineiro
BMF Biblioteca do Ministrio da Fazenda
BRFFSA/BH Biblioteca da RFFSA/BH
BRFFSA/RJ Biblioteca da RFFSA/RJ
BN Biblioteca Nacional
DNEF Departamento Nacional de Estradas de Ferro
DNER Departamento Nacional de Estradas de Rodagem
EFBM Estrada de Ferro Bahia e Minas
HEMG Hemeroteca do Estado de Minas Gerais
IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
MT Ministrio dos Transportes
MVOP Ministrio de Viao e Obras Pblicas
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Dedico este trabalho a gente do Jequitinhonha e Mucuri que cultiva a vida com alegria, canto, dana e f.
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INTRODUO O conceito do equilbrio entre ordem social e ordem natural com fundamento no trabalho, na atividade terico-prtica do homem, cria os primeiros elementos de uma intuio do mundo, liberada de qualquer magia e bruxaria, e d o pretexto para o ulterior desenvolvimento de uma concepo (uma maneira de pensar) histrica, dialtica, do mundo, para compreender o movimento e o devir, para valorizar a soma dos esforos e dos sacrifcios que o presente custou ao passado e que o futuro custa ao presente, para conceber a atualidade como sntese do passado, de todas as geraes passadas, a qual se projeta no futuro.1
Tudo comeou no ano de 1996, nas salas de leitura da Biblioteca Nacional e do
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro em tardes azuis do Rio de Janeiro. Uma msica
na cabea (Ponta de Areia) e uma Histria por pesquisar nos levou a um projeto de viagem
a fim de desvendar/conhecer o que tinha sobrado daquele caminho de ferro que ligava
Minas ao mar. Viagem que se transformou em exposio fotogrfica e documental sobre a
Estrada de Ferro Bahia e Minas. Exposio que se materializou em alguns lugares do
nordeste mineiro, passando pelo mercado de Itinga, a Cmara de Nanuque e a Biblioteca de
Jordnia.2 Tudo isto gerou uma experincia de vida e encantamento com o que h de mais
precioso naquelas paragens: a boa gente que, mesmo diante das adversidades materiais,
cultiva a vida com alegria, canto, dana e f, sempre mantendo a casa e o corao abertos
para quem chega. Diante de todo este estmulo, saber do destino da EFBM passou a ser
compromisso e tema de Doutorado.
1 Antonio Gramsci Caderno 12, pargrafo 2 In: FERREIRA, Oliveiros S. Os 45 Cavaleiros Hngaros: uma leitura dos Cadernos de Gramsci Braslia, Hucitec/UnB, 1986 p. 56
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Para alm da motivao pessoal, podemos dizer que o tema ferrovirio possui
relevncia atual diante das demandas em que vivemos sobre transporte no Brasil, como a
do quase colapso da malha rodoviria nacional. A partir de fins da dcada de 80, at hoje,
temos acompanhado uma maior produo acadmica sobre histria da ferrovia no Brasil
com temas bem variados que passam pela anlise econmico-social, a questo indgena, a
escravido, a modernidade/modernizao e com uso freqente de entrevistas na produo
de documentos.3 Uma produo acadmica que ainda carece de projeo pois, so poucas
as iniciativas que buscam uma integrao entre pesquisadores e uma quase ausncia de
debate e encaminhamento sobre polticas de preservao e conservao da massa de
documentos deixada pela RFFSA.
***
O presente trabalho prope um estudo do caso da Estrada de Ferro Bahia e Minas,
buscando em sua histria o comportamento do Estado sobre a ferrovia no Brasil. Para isso
utilizamos documentos diversos como relatrios de Estado, peridicos, legislao,
memorialistas, dados estatsticos (produo e populao) e entrevistas com ferrovirios e
passageiros que de alguma forma se relacionaram com a EFBM.
uma ferrovia que tem sua origem intimamente ligada ao projeto liberal mineiro de
descentralizao do Imprio, principalmente, o projeto pensado por Tefilo Otoni e sua
Companhia de Navegao do Mucuri. Sua histria faz parte da constituio de uma
2 Esta exposio foi realizada por meios prprios e o apoio das organizaes dos Festivales de Itinga (1998), Jordnia (1999) e do mdico e ecologista Ivan Claret de Nanuque em 1999. 3 Como trabalhos significativos citamos HARDMAN, Francisco Foot Trem fantasma: a modernidade na selva SP: Cia das Letras, 1988; EL-KAREH, Almir Chaiban - Filha Branca de Me Preta: a Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II, 1855-1865 - Petrpolis, RJ: Vozes, 1982; MAIA, Andra Casa Nova Nos Trilhos do Tempo: memria da ferrovia em Pedro Leopoldo Belo Horizonte, Mazza Edies, 2003; QUEIROZ, Paulo Roberto Cim Uma Ferrovia Entre Dois Mundos: a EF Noroeste do Brasil na primeira metade do sculo 20 Bauru, SP: EDUSC, 2004. Mais sobre esta diversidade ver Bibliografia.
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identidade regional que conhecemos hoje como nordeste mineiro. Isto , a zona entre os
vales do Jequitinhonha e Mucuri e a fronteira do Sul da Bahia e Esprito Santo.
A questo central do trabalho o entendimento do processo de como esta ferrovia
se estabeleceu com o signo do progresso e redeno de uma regio e foi erradicada sob o
signo do atraso. Ambas aes financiadas pelo Estado.
importante ressaltar que quando tratamos de Estado significa a relao
permanente, intensa e orgnica entre sociedades civil e poltica elaborada por Antonio
Gramsci. O Estado a arena em que se decidem os embates polticos, especialmente e
sobretudo aqueles referentes difuso das concepes de mundo; o locus de unificao,
de realizao da hegemonia das classes dirigentes. Concepes de mundo que verificamos
nos embates entre as elites e suas orientaes morais e intelectuais para a sociedade,
localizadas nas diferentes polticas de transporte por que passa a relao da ferrovia com o
Estado no correr do tempo. 4
A documentao analisada nesta tese foi garimpada nas seguintes instituies:
Suplemento Anual Da Revista Ferroviria (1940 1966) Biblioteca da RFFSA/BH;
Relatrios de Provncia/Estado e do Ministrio de Viao e Obras Pblicas [MVOP]
(1879-1952) - Internet: http://brazil.crl.edu Center for Research Libraries/ Latin American
Microfilm Project / Brazilian Government Document Digitization Project / Funding
provided by the Andrew W. Mellon Foundation; Legislao Provincial/Estadual sobre
ferrovias Arquivo Pblico de Belo Horizonte; Legislao Imperial/Federal sobre
ferrovias Biblioteca do Ministrio da Fazenda RJ; Contrato entre a Companhia EFBM
e Provncia de Minas Gerais, 1886 IHGB/RJ; Relatrio da CMBEU (Comisso Mista
4 Sobre Estado em Antonio Gramsci ver FERREIRA, Oliveiros S. Os 45 Cavaleiros Hngaros: uma leitura dos Cadernos de Gramsci Braslia, Hucitec/UnB, 1986 p. 206.
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Brasil Estados Unidos) 1953 - BMF RJ; Relatrios da VFCO (Viao Frrea Centro
Oeste) 1965-1969 - BRFFSA/BH; Guia de Horrio de 1949/EFBM acervo do
pesquisador; Dossi descritivo da histria administrativa da EFBM do MVOP
BRFFSA/RJ; Resolues administrativas e legislao ferroviria do perodo das
erradicaes - BRFFSA/BH e BRFFSA /RJ; Planos Virios de Minas Gerais de 1896 e
1923 - APM; Jornal Folha de Nanuque (dcada de 60) HEMG.
Outro documento importante que utilizamos foram as entrevistas. Montamos um
roteiro que partia da mesma pergunta: Quais as lembranas da EFBM? A partir da resposta
de cada entrevistado seguiam-se assuntos diversos que normalmente envolviam a trajetria
de cada um: sentimentos; o uso do trem; qualidades/problemas; peculiaridades/causos; a
importncia da estrada; relaes de trabalho; presena comunista; relao com os ndios;
relao com os coronis; greve; corrupo; o fim da ferrovia e suas causas. Alm disto,
foi feita uma pequena biografia do entrevistado que identifica sua relao com a estrada e
sua origem social. Foram realizadas vinte e trs entrevistas, das quais catorze esto
presentes nesta tese.
O processo de abordagem variou de acordo com a forma como o depoente foi
apresentado. Normalmente se deu por um contato telefnico, no qual se faziam as devidas
apresentaes, explicava-se a inteno do trabalho e marcava-se um primeiro encontro. Na
maioria dos primeiros encontros a entrevista foi realizada na ntegra sem necessidade de
retorno. Apenas em uma entrevista tal no aconteceu. O encontro comeava sempre com
uma conversa descontrada, para quebrar a inibio causada pela presena do gravador.
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Para que os entrevistados se sentissem mais vontade, os encontros foram marcados em
local por eles escolhido.5
Vemos a histria oral como metodologia cujo uso sistemtico possibilita esclarecer
trajetrias individuais, eventos ou processos que, s vezes, no tm como ser entendidos ou
elucidados de outra forma. So histrias de movimentos sociais populares, de lutas
cotidianas encobertas ou esquecidas, de verses menosprezadas. claro que tomamos o
devido cuidado para no cair no erro de considerar seu uso como a verdadeira histria
dos excludos.6 Ao mesmo tempo pretendemos trat-la como documento to importante
quanto as outras formas de registro e evidncias e no como simples suporte para estes.
Nesse caminho, seguimos a orientao de Alessandro Portelli:7
Fontes orais contam-nos no apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez.8
A histria oral nos apresenta mais significados do que eventos. Isso no implica
que a histria oral no tenha validade factual. As entrevistas revelam situaes ou aspectos
desconhecidos de eventos conhecidos. Apresentam nova luz sobre as reas inexploradas da
vida diria das classes no-hegemnicas. No fornecem dados estatsticos, mas custos
psicolgicos dos eventos.9
A importncia do testemunho oral pode se situar no em sua aderncia ao fato, mas de preferncia em seu afastamento dele, como imaginao, simbolismo e desejo de emergir.10
5 Alm de Belo Horizonte, visitamos Betim; Carlos Chagas, Nanuque, Ponta de Areia, Araua e Tefilo Otoni. Sobre Roteiro ver Anexo V. 6 Sobre Histria Oral ver FERREIRA, Marieta de Moraes (org.) - Usos e Abusos da Histria Oral - RJ, FGV, 2000. 7 PORTELLI, Alessandro O que faz a histria oral diferente In: Projeto Histria, n. 14, SP, fev. 1997 pp. 25-39. 8 Idem p. 31 9 Idem 10 Idem p. 32
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Dentro dessa importncia do documento oral, frisamos que ... o controle do
discurso histrico permanece firmemente nas mos do historiador. o historiador que
seleciona as pessoas que sero entrevistadas, que contribui para a moldagem do testemunho
colocando as questes e reagindo s respostas; e que d ao testemunho sua forma e
contexto finais. 11
A opo por esse tipo de documento est carregada por um envolvimento profundo,
poltico e pessoal, que traz o historiador para dentro da histria, assumindo suas
responsabilidades e compromissos.12
Os depoimentos tm um papel importante para entender a relao do Estado com os
trabalhadores e a populao atendida pela EFBM e o enraizamento, ou no, do sentido
antieconmico da ferrovia na opinio das pessoas. Alm disto os depoimentos contribuem
como parceiros na confirmao de fatos ou conjunturas apresentadas em outros
documentos.
Buscamos nos documentos citados as nuanas, ambigidades e estratgias dos
discursos do Estado durante o tempo de existncia da EFBM (1878 1966). Pretendemos
assim, localizar na poltica de transportes (especificamente ferrovirio e o caso da EFBM)
os agentes sociais e os interesses que defendem no embate pela hegemonia do pas (direo
intelectual e moral), em seus diversos momentos/temporalidades que a existncia da
ferrovia atravessa.
O corte cronolgico extenso est ligado questo sobre a relao do Estado com a
ferrovia. Para isso precisei estudar toda a trajetria da EFBM. O tempo que tive na
11 Idem p. 37 12 Idem p. 38
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realizao deste trabalho no permitiu flego suficiente para aprofundar todo o perodo
proposto. De acordo com os documentos encontrados, privilegiei os cortes temporais
referentes Primeira Repblica e as conjunturas ps-1945 at a instalao da ditadura
militar, buscando entender e deixar claro o processo de mudana do olhar do Estado sobre a
EFBM. Por ser um trabalho pioneiro no tocante a esta ferrovia, pensamos que a opo por
um corte longo contribui tambm para evidenciar todo um leque de questes que ainda
esto por ser trabalhadas tanto sobre a ferrovia quanto no processo de formao do nordeste
mineiro. Temas ainda carentes de trabalhos acadmicos.
REGIO, FRONTEIRA, TERRITRIO, DES-TERRITRIO
A procura de uma mais-valia mxima conduz a uma especializao relativa dos centros industriais, sem preocupaes de equilbrio entre as cidades ou entre as regies. Nas mos das burguesias urbanas, a acumulao do capital efetua-se desigualmente consoante as pocas, as especulaes e os lugares. Mas, de maneira geral, as concentraes tendem a acentuar-se, aglomerando os meios de produo, a mo-de-obra e as atividades volta dos lugares mais polarizantes. O desenvolvimento desigual do espao aparece pois como uma regra e no como um acidente do crescimento. Os desequilbrios regionais so normais. A reordenao do territrio manifesta-se como um reboco tardio e nem sempre eficaz. 13
Pensando na multiplicidade de realidades que a regio de fronteira proporciona,
adotamos o conceito de regio fluida de Frmont. Segundo o autor francs a regio fluida
ocorre em pases onde o campesinato no possui razes profundas e os domnios da
civilizao industrial so reduzidos.14 Caractersticas que se aproximam do caso do
nordeste mineiro no perodo estudado. No primeiro momento, podemos considerar a regio
como espao de refgio e fuga permanente de povos indgenas do colonizador em diversas
13 FRMONT, Armand A Regio, Espao Vivido Coimbra, Livraria Almedina, 1980 p. 85. Grifo meu. 14 Idem p.168.
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temporalidades. Em segundo lugar, a presena ocidental/colonizadora foram incipientes at
a segunda metade do sculo XIX, sendo um espao pouco enraizado com movimento
migratrio intenso. Um lugar de muitas promessas de riqueza e prosperidade.
Nestas condies, a regio no pode de maneira nenhuma definir-se num espao bem delimitado, to ntido nos seus contornos como na sua durao. A regio existe de fato, mas numa certa fluidez. Fluidez em ligao direta com a prevalecente nas relaes que unem os homens e os lugares. Fluidez, quer dizer o carter daquilo que, como um lquido, facilmente deformvel, mvel e cambiante, e, deste modo, bastante difcil de captar.15
Verificamos esta fluidez na forma como a regio chamada pelo discurso estatal
at meados do sculo XX e, at hoje, pelo senso comum, como integrante do norte mineiro.
Apesar de alguns autores considerarem o conceito de regio um obstculo, que
estaria obsoleto e sendo sobrepujado pela lgica das redes, acompanhamos o argumento de
Rogrio Haesbaert de que o conceito possui vigor e incorporou a idia de rede.
o caso, por exemplo, da regio funcional (baseada nas redes urbanas de comrcio e servios) e da regio como produto da diviso territorial do trabalho (fundamentada nas redes de reproduo do capital), ambas admitindo amplamente a sobreposio de limites regionais.16
Neste ponto consideramos importante o exemplo de regio funcional e de produto
da diviso territorial do trabalho para entender a importncia e o papel da Estrada de Ferro
Bahia e Minas.
A partir do entendimento da ocupao deste trecho do nordeste mineiro que liga os
vales do Jequitinhonha e Mucuri ao extremo sul da Bahia, mapeamos o processo de
urbanizao e, por conseguinte, da lgica capitalista. Pensando esta regio podemos indicar
que a EFBM possui um papel importantssimo na introduo de um ritmo capitalista e na
15 Idem p. 169-70. 16 HAESBAERT, Rogrio Territrios Alternativos SP, Contexto, 2002 p. 134.
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formao da rede urbana que se estabelece entre os vales citados. Por conta deste papel
consideramos que a ferrovia tambm contribuiu de maneira efetiva na constituio de uma
identidade regional da qual localizamos sinais expressivos na dcada de 1960.17 Alm
disso, h tambm uma srie de impactos sociais, econmicos, polticos e ambientais no
correr de sua existncia e aps sua erradicao.
Consideramos o quanto importante, atualmente, a articulao entre regio,
territrio e rede para dar conta da multiplicidade de campos de ao e anlise que existem.
So conceitos que mostram ...a emergncia concomitante de situaes mais complexas e,
em parte, ambivalentes, em que o controle e os enraizamentos convivem numa mesma
unidade com a mobilidade, a fluidez e os des-enraizamentos 18
Nossa experincia com a regio em estudo nos aponta para este tipo de abordagem
do espao, com o intuito de nos levar para a questo principal desta tese que se encontra no
olhar do Estado sobre a EFBM em diversas temporalidades.
Antes de chegar neste ponto importante definir como vemos territrio e rede.
Para entender territrio nos remetemos ao espao social de Frmont. Este define
o territrio de um grupo ou de uma classe numa dada regio proporcionando ...uma malha
na trama das relaes hierarquizadas do espao e dos homens....19 Nesta malha/rede
localizamos movimentos e mutaes dos espaos sociais que, no nosso estudo, se
encontram no campo da fronteira. Espao de movimento, conflito, conquista, imposio,
convencimento. Vemos fronteira como agente histrico, sendo um espao privilegiado da
produo de antagonismos e laos de solidariedade, da afirmao e negao de identidades,
17 Analisamos este fato por meio de artigos de jornais da regio que se encontra no captulo V que trata do processo de erradicao dos trilhos. 18 HAESBAERT, op. cit. p. 137 19 FRMONT, op. cit. p. 145
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da (re)elaborao de representaes, da (re)inveno de lendas e tradies, do desencontro
dos homens, dos conflitos e das conquistas materiais.20 Conflitos entre concepes de
vida, vises de mundo e tempos histricos.
Francisco Antnio Zorzo, a partir das referncias de Deleuze, Guattari e Foucault,
prope o conceito de territrio como a expresso de uma fora social que singulariza o
espao e deve ser pensado como um fluxo, apresentando uma multiplicidade que se
sobrepe, se prolifera, se desdobra, se soma espacialmente. 21
Segundo Haesbaert, territrio sempre esteve mais prximo das idias de controle,
domnio e apropriao (polticos e/ou simblicos).22
Atravs das prticas sociais e da tcnica, o espao natural se transforma e dominado, tornando-se um espao quase sempre fechado, esterilizado, vazio, como o espao dos aeroportos e das auto-estradas. Esse conceito de espao dominado s adquire sentido quando contraposto ao conceito inseparvel de apropriao.23
A partir do conceito de apropriao de Lefebvre temos ...um processo efetivo de
territorializao, que rene uma dimenso concreta, de carter predominantemente
funcional, e uma dimenso simblica e afetiva. A dominao tende a originar territrios
puramente utilitrios e funcionais, sem que um verdadeiro sentido socialmente
compartilhado e/ou uma relao de identidade com o espao possa ter lugar. 24
Ainda, com Haesbaert, ... o territrio o produto de uma relao desigual de
foras, envolvendo o domnio ou controle poltico-econmico do espao e sua apropriao
20 MYSKIW, Antno Marcos - Verbete Fronteira In: MOTTA, Mrcia (org.) - Dicionrio da Terra RJ, Civilizao Brasileira, 2005 pp. 226 229 21 ZORZO, Francisco Antonio Ferrovia e Rede Urbana na Bahia (1870-1930) Feria de Santana, Universidade Estadual de Feira de Santana, 2001 p. 6 22 HAESBAERT, op. cit. p.119 23 Idem p. 120 24 Idem
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23
simblica, ora conjugados e mutuamente reforados, ora desconectados e
contraditoriamente articulados. 25
Nas leituras que adotamos recorrente a ligao entre territrio e rede, tornando
mais complexas as realidades sociais estudadas. A idia de rede surge no sculo XIX para
explicar as formas espaciais disseminadas pelo capitalismo: redes de transporte articuladas;
redes urbanas; redes tcnicas... Redes para destruir e reordenar territrios
Poderamos afirmar, ento, que as sociedades tradicionais eram mais territorializadas, enraizadas, e que a sociedade moderna foi se tornando cada vez mais resificada ou reticulada, quer dizer, transformada atravs de fluxos cada vez mais dinmicos, marcados pela velocidade crescente dos deslocamentos, passando de um mundo tradicional mais introvertido para um mundo moderno cada vez mais extrovertido e globalizado. Isso no significa, entretanto, (...) que a desterritorializao, atravs de redes (especialmente as redes do capital financeiro e da sociedade de consumo), torna-se cada vez mais dominante, como se um processo inexorvel rumo a um mundo sem territrios estivesse em vias de concretizao. 26
No caminho desta reflexo sobre espaos sociais, fluidez, fluxo, apropriao,
controle, domnio, relaes desiguais de fora, espao de fronteira, territorializaes, des-
territorializaes pensamos a ferrovia como elemento que carrega tudo isso ao se instalar
em determinada regio. Instaura um territrio frtil de representaes de diferentes grupos
sociais e cdigos de um movimento mundial de modernizao que fez parte da expanso
capitalista em diferentes regies do mundo. Ao mesmo tempo des-territorializou os
cdigos culturais baseados em ritmos locais tradicionais, remodelando o alinhamento das
instituies existentes.27
As prticas territoriais tornam-se, portanto, uma fonte privilegiada para o estudo de uma sociedade que pegou o trem da modernizao sem
25 Idem p. 121 26 Idem p. 122 27 ZORZO, op. cit. p. 2
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24
passar pela revoluo burguesa nem pelos outros acontecimentos da era industrial, tidos como os grandes relatos da modernidade. O estudo territorial, por meio de anlises aparentemente simples dos movimentos da populao, dos limites e fronteiras, da conectividade de redes de comunicao e transporte reintroduz o estudo das diferenas de desenvolvimento econmico no processo de expanso do capitalismo e pode tornar compreensvel a complexidade e a singularidade daquela realidade regional.28
O caso da EFBM possui o perfil acima citado, mostrando a importncia de
entendimento da construo do espao vivido do nordeste mineiro. Agregamos a esse olhar
das prticas territoriais a perspectiva gramsciniana de Estado ampliado e Hegemonia,
aprofundando os campos de disputa de poder, mostrando a existncia de uma autonomia
estatal diante dos interesses diretos dos grupos dominantes.
Ter hegemonia assegurar a direo intelectual e moral do processo poltico-social, impondo uma concepo de mundo que seja aceita por meio de convencimento ou de aes coercitivas ampliando o espao social em que atua ao longo de determinado perodo histrico. 29
Sobre esta perspectiva recorremos ao argumento do territrio ferrovirio e de seu
ritmo de mquina que impe determinadas formas de vida do mundo do trabalho e do
consumo. A ferrovia pode ser vista como uma manifestao cultural de determinada classe
social (a burguesia) que penetra os corpos e as almas dos outros tornando-se bem universal.
A ferrovia faz parte de um processo de orientao moral e intelectual, fruto das disputas
de poder e vises de mundo da elite brasileira, que se faz pelo uso de coero e
convencimento. Coero na perseguio eliminao/aculturao dos povos indgenas, na
ocupao das terras e imposio de regras e hbitos. Convencimento pelo argumento
modernizador, velocidade, surpresa, promessas de riqueza e prosperidade, aproximao do
28 ZORZO, op. cit. p. 3 29 Ver FERREIRA, Oliveiros op. cit. p. 221
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25
centro da civilizao.30 Elementos que contribuem e podem ser aprofundados se pensarmos
a reproduo ampliada do capital ocorrida pela moldagem do Estado e o estabelecimento e
imposio de uma ao econmica universalmente aceita pelo senso comum ao que
exclui de sua rbita de interesses e benefcios a grande maioria da sociedade.31
Desde o incio devemos deixar bem claro que no pretendemos defender o retorno
da EFBM ou encontrar os culpados de seu arrancamento. Por mais dramtico que sua
histria se mostre e emocione, nossa inteno tentar trazer um caminho de entendimento
do processo que levou a esse drama. Um processo que se encontra muito alm do perodo
autoritrio da ditadura militar ou do nacional-desenvolvimentismo de JK. Um processo que
tem sua essncia no comportamento e resultado dos embates das diferentes elites gestoras
das polticas pblicas do Brasil desde o Imprio. Representantes de um Estado que
interfere, muda vidas, concentra riquezas, exclui, divide, e conduz a mudana do seu jeito.
***
A partir dos referenciais tericos e dos documentos apresentados acima, dividimos
esta tese em cinco captulos. O primeiro faz um resumo da ocupao da regio onde foi
instalada a ferrovia e que hoje denominada nordeste mineiro. Alm disso, mostramos uma
leitura da formao da elite liberal do Serro e Diamantina cujos projetos so fundamentais
para entender a ocupao intensa do espao existente entre a margem direita do
Jequitinhonha, a bacia do Mucuri e o extremo sul da Bahia. Ocupao que explicita o
conflito com os povos indgenas da regio e o processo de des-territorializao desses
mesmos povos. O instrumento representativo deste processo foi o empreendimento da
Companhia de Navegao do Mucuri realizado pelo liberal do Serro, Tefilo Otoni.
30 ZORZO, op. cit. p. 122 31 FERREIRA, Oliveiros op. cit. p. 84 -5.
-
26
O segundo captulo continua a mostrar o processo de formao do nordeste mineiro,
sendo foco principal o momento posterior ao fim da Companhia de Navegao de Tefilo
Otoni. Tratamos ento da instalao do aldeamento capuchinho de Itambacuri e da EFBM.
Dois instrumentos importantes para entender o processo de des-territorializao do
elemento indgena e de formao de um outro territrio que comea a apresentar uma elite
proprietria com certa influncia poltica e econmica.
O captulo seguinte trata exclusivamente da EFBM e sua relao com o Estado
Republicano do final do sculo XIX e incio do sculo XX. Relao pautada por uma
poltica que caminhou no fio da navalha entre valores liberais que propunham uma
autonomia da ferrovia com a administrao pblica e valores intervencionistas que
possuam a preocupao estratgica de Minas Gerais em estimular intensamente o
desenvolvimento econmico das diversas regies do Estado.
O penltimo captulo analisa o processo de enraizamento do territrio ferrovirio
que ganha fora na dcada de 20 e se cristaliza com a chegada dos trilhos em Araua, no
ano de 1942. Ao mesmo tempo mostramos o processo de mudana da administrao
estadual para a federal e como ganha fora a mudana de olhar do Estado sobre a ferrovia.
Analisamos os problemas estruturais que se agravam com a conjuntura de Guerra Mundial
e crescimento da opo rodoviria que surge com fora a partir dos resultados apresentados
pela Comisso Mista Brasil Estados Unidos. Resultados que vo ter papel importante na
definio das polticas de desenvolvimento do pas principalmente durante e depois do
governo do presidente JK.
O quinto e ltimo captulo d continuidade anlise das polticas de
desenvolvimento do pas aps os estudos da CMBEU at a ditadura militar e a tendncia da
-
27
poltica de transportes em privilegiar a construo de rodovias e implementar um plano de
erradicao de ramais ferrovirios antieconmicos.
No plano da regio procuramos analisar o processo de erradicao da EFBM que
marcado por um embate entre os argumentos macroeconmicos do Estado
Administrativo/Tecnocrata e parte da elite/sociedade civil organizada da regio que
pretendia manter a ferrovia em funo de um projeto poltico emancipacionista do nordeste
mineiro e extremo sul da Bahia.
Alm disto oferecemos ao leitor a possibilidade de aprofundar as leituras que
propomos na presena de cinco anexos que tratam dos seguintes assuntos, respectivamente:
I - registro da trajetria de receita e despesa da EFBM em quase toda sua existncia;
estatsticas variadas (densidade de trfego, quantitativo de cargas e passageiros; despesas de
pessoal e equipamentos); quadro sobre o comportamento da quilometragem das ferrovias
no Brasil; II - trata das estatsticas de produo agropecuria do nordeste mineiro; III -
registro de 14 entrevistas na ntegra e do roteiro de entrevista elaborado para esta tese; IV
dados da Enciclopdia dos Municpios Brasileiros com que indicam a contribuio da
EFBM na formao da rede urbana montada no entorno de seus trilhos e a relao das
estaes da ferrovia.
Terminadas as devidas explicaes, convidamos o leitor a seguir pelos meandros
dos trilhos do Caminho de Ferro que ligou o extremo sul da Bahia e o nordeste mineiro
durante 84 anos.
Boa Viagem!
-
28
CAPTULO I
O GRANDE NORTE
Toda a regio, desde o rio das Pedras at as cabeceiras do Mucuri, forma uma das regies agrcolas mais extensas e uniformemente frteis do Brasil, que fica ao sul do Amazonas, e no posso deixar de exprimir a minha firme crena de que, tendo a natureza to abundantemente favorecido o Mucuri, em dias no muito distantes v-lo-ei regurgitando de gente e constituindo a principal via de comrcio com o interior de Minas.
(Charles F. Hart Geologia e Geografia Fsica do Brasil)1
Sabemos que Minas so muitas. As minas do centro com sua formao
colonial/barroca, sede da capitania, provncia e estado. As do sul e seu dilogo profundo
com So Paulo e seus bandeirantes tendo o Rio Grande como divisa. As do Oeste que se
juntam ao Tringulo no caminho para o planalto central. A Mata que divisa com Rio de
Janeiro e Esprito Santo. O Norte que segue os cursos do So Francisco e Jequitinhonha,
com seus diamantes e gado. O Vale do Rio Doce que caminha para o Esprito Santo e
compe o Leste mineiro. Por ltimo, deixamos o nordeste das Minas. Parte do nosso objeto
de estudo e regio que tem pouca influncia da civilizao ocidental at pelo menos o incio
do sculo XIX. Territrio quase exclusivo de vrios grupos indgenas genericamente
chamados de botocudos pelo colonizador. A Coroa portuguesa deixou praticamente
intocada a rea cujas fronteiras naturais podemos situar entre o vale do Jequitinhonha (sua
margem direita), o sul da Bahia entre Belmonte/Porto Seguro at a fronteira com o Esprito
Santo, fechando no territrio mineiro pelo vale do rio Mucuri. Como se forma essa regio?
Como se relaciona com o Estado?
1 CHAGAS, Paulo Pinheiro -Tefilo Otoni: ministro do povo Belo Horizonte, Itatiaia, 1978 p. 162
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29
Enquanto boa parte de Minas Gerais possui uma histria de colonizao que
remonta aos sculos XVII, XVIII e sua constituio de regio
administrativa/poltica/cultural, o nordeste mineiro (como tambm o rio Doce) se constitui
representativamente a partir da segunda metade do sculo XIX e primeira do XX.
Quanto ao debate sobre a nomeao norte mineiro no nossa inteno polemizar
tal assunto. O uso deste termo feito a partir das evidncias que mostram como os atores
histricos se nomeavam regionalmente. No correr deste e do prximo captulo temos vrios
exemplos dessa nomeao em mapas, passando por peridicos de Serro e Diamantina e em
documentos que tratam da questo indgena do Itambacuri. A nomenclatura norte mineiro,
vlida para toda rea acima da regio ferrfera de Minas, se estende nas evidncias at o
incio do sculo XX. Em 1901 comeamos a perceber uma diferenciao nesta
nomenclatura que passa a distinguir o norte do nordeste. Distino que pretendemos
acompanhar durante todo o trabalho.
Antes do sculo XIX, a regio foi visitada e em parte ocupada pelo colonizador
portugus da capitania de Porto Seguro na sua busca de pedras e metais preciosos.
Uma ocupao rarefeita de expedies exploradoras, sem enraizamento. Como
Francisco Bruza de Espinosa e o jesuta Azpicuelta Navarro que em 1554 seguiram o
Mucuri rumo ao norte acreditando na existncia do Eldorado (Lagoa Vupabuu, Serra
Resplandecente...) no Jequitinhonha. Na mesma trilha encontramos Martim Carvalho
(1567), Sebastio Fernandes Tourinho (1573), Antonio Dias Adorno (1580), Diogo Martins
Co e Marcos de Azeredo (1598).
A partir de 1674 tem-se notcias da formao de povoados na expedio de Ferno
Dias Pais: Ibituruna, Itacambira, Itamarandiba, Serro Frio, Rio Doce, sertes da Bahia e a
lagoa de gua Preta no Mucuri, onde encontra turmalinas.
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30
Em 1752, ainda em busca de pedra preciosas, o Mestre-de-Campo Joo da Silva
Guimares instalou uma fazenda no Mucuri durante trs anos, sendo rechaado pelos ndios
forando o retorno a Minas Novas, cidade polarizadora da regio. Na mesma poca
Teixeira Guedes encontra o Rio Todos os Santos (afluente do Mucuri, onde mais tarde ser
instalada a cidade de Filadlfia) 2
A ocupao mais efetiva da regio tem incio com a chamada guerra justa
incentivada por D. Joo VI em 1808. Uma Carta Rgia ordenava a formao de militares
para a guerra e liberava a escravizao de ndios enquanto durasse a sua ferocidade.
Alm disso incentivava o povoamento da mata, dispensando os colonos do pagamento de
impostos por dez anos e perdoando por seis anos aos devedores do governo que fossem
abrir posses no que hoje conhecemos como nordeste de Minas.3
Diante desses incentivos encontramos a parceria do Coronel Bento Loureno Vaz
de Abreu e Lima e o ministro da Coroa Conde da Barca na abertura de uma estrada pelo
vale do Mucuri, ligando Minas Novas foz do mesmo rio em S. Jos do Porto Alegre. O
ministro financiou a expedio do Coronel e instalou uma fazenda s margens do Mucuri
com a inteno de explorar as madeiras de lei ali abundantes. Chegaram a construir pontes,
mas tanto a fazenda como a estrada no resistiram presso dos ataques indgenas e foram
esquecidas aps a morte do Conde.4
2 CHAGAS, Paulo Pinheiro op. cit. p. 150 3 RIBEIRO, Eduardo Magalhes (org.) - Lembranas da Terra: histrias do Mucuri e Jequitinhonha Contagem, Cedefes, s/d p. 183. O incentivo da ocupao refora a vontade da Coroa Portuguesa de estar presente em todo territrio de seus domnios, no s ocupando, mas produzindo riquezas. No mesmo perodo temos registros de doaes de salinas na Lagoa de Araruama. Ver Giffoni, Jos Marcello - Sal: um outro tempero ao Imprio (1801-1850) Rio de Janeiro, APERJ, 2000. 4 CHAGAS, Paulo Pinheiro op. cit. p. 151 e MATTOS, Izabel Missagia - Civilizao e Revolta: os botocudos e a catequese na provncia de Minas Bauru, EDUSC, 2004 pp. 98-99 - de acordo com as memrias sobre o Mucuri escritas pelo Baro de Tschudi.
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31
Em 1834 o governo provincial buscou um lugar para instalar um presdio,
suscitando a navegabilidade do Mucuri. O local do presdio e a confirmao da
navegabilidade ficou a cargo do engenheiro francs Pierre Victor Renault em1836, por
ordem da Provncia de Minas. O engenheiro considerou que os bugres que habitavam o
Mucuri eram o nico obstculo que se oferecia a uma comunicao, por gua, entre a
comarca de Minas Novas e o litoral.5
Em 1845 a provncia da Bahia realizou uma expedio sob o comando do tenente
de navegao Hermenegildo Barbosa de Almeida que explorou os rios Mucuri e Perupe,
confirmando a navegabilidade do primeiro de sua foz at a cachoeira de Santa Clara.
Almeida descreveu os povos do Baixo Mucuri e indicou o excesso de hostilidades das
autoridades locais com os ndios.6
Em 1847, o presidente da provncia Quintiliano Jos da Silva retoma a questo do
povoamento do Mucuri:
Em todo o sistema fluvial de Minas, o rio Mucuri um daqueles que no presente, oferecem maiores vantagens, no s por sua fcil navegao como pela fertilidade de suas matas e pela salubridade de seu clima. (...) O meu plano , alm da complexa explorao do rio, torn-lo quanto antes navegvel, ao menos por canoas, desde a barra de Todos os Santos at sua foz no oceano, na Vila de So Jos do Porto Alegre [hoje Mucuri -BA].7
As promessas de riquezas, terras ubrrimas e prosperidade atravessaram os anos
que nos levam aventura do liberal histrico Tefilo Otoni. Segundo Paulo Pinheiro
Chagas, ainda em 1836 Otoni tinha olhares para o nordeste mineiro, especificamente a
regio do Suau Grande. Em 1841, como deputado, entrou no debate sobre a comunicao
de Minas com o mar, colocando vantagem no plano de ligar Minas-Novas a Caravelas:
5 CHAGAS, op. cit. p. 152 6 MATTOS, op. cit. p. 102-03
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32
O municpio de Minas Novas se aproveita j do Jequitinhonha e de sua nascente e insignificante navegao para obter alguns gneros de primeira necessidade da Bahia; muitos outros desses gneros, ou se vo buscar em costas de bestas cidade da Bahia ou ao Rio de Janeiro, caminhando-se por terra a distncia de cento e cinqenta para duzentas lguas. Toda esta interessante comarca est, entretanto, em muita vizinhana com Porto Seguro e Caravelas. A populao tem afludo para aquele lado e se facilitarem as comunicaes, o algodo, interessante ramo da produo agrcola de Minas Novas, e que hoje talvez no se produza em maior escala em razo das despesas extraordinrias de transporte, imediatamente ter um incremento considervel (...)8
a partir da experincia proporcionada por Tefilo Otoni que vislumbramos uma
ocupao mais sistemtica da regio que nos interessa. Precisamos fazer um desvio para
buscar algumas explicaes que vo nos dar alguns fios a serem puxados e tecidos sobre a
origem de Otoni e seus projetos.
Entender a formao do nordeste mineiro para alm da seqncia cronolgica
apresentada acima nos levou a um mergulho que passa pela biografia de Tefilo Benedito
Otoni e aprofunda para antes do sculo XIX remetendo-nos formao e participao
poltica das elites do chamado Norte Mineiro que possua como cidades plo Diamantina e
Serro.
Uma histria que comea na explorao do diamante pela coroa portuguesa com
seus rigores e vcios de poder. Uma relao de opresso baseada na explorao mercantil
que contribuiu na formao de uma elite questionadora da ordem monrquica e que vai se
impor e provocar debates e aes importantes no cenrio poltico do Imprio.
No Norte Mineiro o policial precedia o judicial, a justia se fazia pelas foras
aquarteladas no Tijuco demonstrando que o interesse da interiorizao da Coroa visava
7 CHAGAS, op. cit. p.153 8 CHAGAS op. cit. p. 154
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33
apenas ao exclusivo mercantil.9 O Estado o responsvel pela instalao da cidade e de
seus aparatos oficiais e a Igreja, sendo uma instncia de poder.10
A instalao da cidade por conta da explorao de diamantes e ouro provocou
tambm a construo de uma vocao agrcola e pecuria para a periferia (a regio do
Serro, mata do Peanha e Rio Vermelho) do distrito diamantino diante da carncia de bens
de primeira necessidade do mesmo.
Segundo Jos Moreira de Souza a vigilncia da ordem territorial instalada no
distrito diamantino desenvolveu uma conscincia anti-realeza, anticlerical e,
aparentemente, anti-absolutista, ao mesmo tempo que cuidar de manter clandestinos os
processos que conduzem a tal.11
Ainda o mesmo autor nos mostra que a elite do norte mineiro se constituiu por
uma estratificao tnica que passa dos valores econmicos e institui a dominao pela
ameaa e emulao de seus valores firmando sua hegemonia. Uma elite forjada no s pelo
estrato tnico dominante e civilizador branco representado principalmente pelas aes
das irmandades religiosas leigas mas tambm pela incorporao de valores de outros
estratos tnicos como o lundu, o quimbete, o candombe, o reinado, a dana de caboclo,
assim como valores brancos (a modinha, a marujada, doces e quitandas) que se
mulatizam:
a crioulizao do branco e do negro que enseja a estratificao tnica.
Diferenciando-a da estratificao por casta ou por estamentos, encobrindo-as quando tentam se afirmar como diretoras. Afinal, o processo determinante maior o que aponta para a explicitao do problema do Estado mercantil, da independncia poltica de uma elite que se criouliza, ou seja, constri valores
9 SOUZA, Jos Moreira de Cidade: momentos e processos Serro e Diamantina na formao do Norte Mineiro no sculo XIX So Paulo, Marco Zero, 1993 p. 29 10 SOUZA, op. cit. p. 33 11 SOUZA, op. cit. p. 33 e 42
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prprios perante situaes concretas de dominao, criando o espao apropriado.12
O espao construdo por esta elite crioula difere da oligarquia, prope a integrao
nacional, promove uma convergncia que fixa uma identidade regional e aponta para um
discurso nacionalista.13 Discurso construdo pela leitura de clssicos e da formao dos
filhos desta elite na Europa iluminista que busca o fim da dominao do territrio pelo
processo mercantil, passando a promover a construo de novo espao social que implique
viver e defender seus interesses no lugar da explorao querendo mudar sua condio de
subsidirio do processo mercantil.14
Como exemplo deste posicionamento poltico temos a Conjurao do Tijuco
(1798-1801) que tem incio na insatisfao do excesso de poder delegado ao intendente e os
fiscais do distrito diamantino que se desenrola por uma luta pela privatizao do direito s
lavras e num debate sobre a participao do Estado, cidadania e insero de Diamantina no
processo poltico regional.15 O esforo da elite do Tijuco na transio de Reino Unido para
a Independncia o de se aproximar e identificar com as Minas do Norte, as Minas do
espao clandestino dos caminhos da Bahia e construir, atravs da representao da
liberdade, o conceito de cidadania.
Busca-se um direito cidade que vai alm do acesso de morar num stio com ruas
e praas, igrejas e teatros, Cmaras. A elite diamantina se sentia aprisionada, limitada, sem
o direito do livre encontro manifestao e a condies de construir sua prpria linguagem.
A Conjurao do Tijuco terminou favorvel elite local que desenvolveu
comrcio e aumentou sua influncia, dando flego para a construo de um espao de
12 SOUZA, op. cit. p. 47 13 Segundo SOUZA este comportamento til gestao de uma burguesia crioula patriciado com pretenso de ser apenas preposto dos centros de consumo. op. cit. p. 49
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poder no Norte Mineiro que se concentrava entre a Vila do Prncipe (Serro) e Diamantina.
Ambas com elite letrada, a primeira era sede da Comarca e a segunda possua populao e a
fora do diamante.16
Espao de poder que gesta a organizao de um governo provisrio que se
deveria estabelecer em Vila do Prncipe, com o apoio de Rio Pardo e Minas Novas.17
O despertar do Distrito Diamantino para a cidadania o despertar de uma nova regio, o Norte Mineiro, que, durante o sculo XIX, se esforar, atravs de suas elites, por ter voz e espao prprios, representao e propostas especficas da urbanidade. (...) caber ao Tijuco concentrar populao, enquanto Vila do Prncipe continuar a promover o surgimento de povoados e estabelecer neles, atravs das aes do Senado e da Casa da Cmara, as formas de dominao discutidas que, sem transigir, civiliza os moradores, indicando-lhes a convivncia pacfica.18
Da unio de Serro e Diamantina surge um projeto de articular o Norte Mineiro
como espao regional, sendo suas fronteiras a Comarca do Serro Frio, o serto do So
Francisco e os limites desconhecidos com o Esprito Santo.19 Delimitao geogrfica que
confirmamos em mapas do sculo XIX mostrando um norte que transcende aos pontos
cardeais. 20
14 SOUZA, op. cit. p. 48 15 Sobre a Conjurao do Tijuco ver SOUZA, op. cit. p.51-58 16 Segundo SOUZA - A aliana entre as elites crioulas da Vila do Prncipe e os proprietrios do Distrito Diamantino, (...) permite que no se confunda a presena de prepostos da dominao mercantil com a aliana dos moradores. A escolha de vila do Prncipe como lugar apropriado para sediar o governo provisrio indica suficientemente que as elites da regio reconheciam os mritos dos moradores daquela localidade para se opor s pretenses de continusmo que se desenvolviam na capital. op. cit. p. 61 17 SOUZA, op. cit. p. 60. 18 SOUZA, op. cit. p. 63. 19 SOUZA, op. cit. p. 62. Grifo meu. 20 Mapa encontra-se em BLASENHEIM, Peter L. As Ferrovias de Minas Gerais no sculo XIX In: LOCUS: Revista de Histria, Juiz de Fora, vol 2, n.2 p. 81-110.
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Constitui-se uma elite que busca a cidadania como uma forma de afirmao
regional, mudando as relaes com a regio de que depende. Diamantina concentra
populao e mantm o poder de deciso na cidade, chamando as elites locais a se reunirem
l para negociar o processo de urbanidade. O Serro reconhece a importncia de Diamantina
e se especializa em atividades de abastecer o mercado florescente do Tijuco.
Em 1821 a regio apresentava elevada taxa de alforrias, um tero de pretos livres,
e nmeros expressivos de reproduo interna de escravos, metade da populao escrava era
formada por pardos. Para o mesmo ano, os brancos contam 14% da populao livre e pretos
forros so 25% entre os livres. 21
No correr do sculo XIX a denominao regional de Serro perde espao para a
denominao de Norte. Na verdade h uma ampliao das fronteiras regionais que passam a
abranger a Mata do Suau, Doce e Turvo chegando regio de pecuria de Montes Claros,
Salgado e Minas Novas. A imprensa desenvolvida entre Serro e Diamantina
21 SOUZA, op. cit. p. 64 65.
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(respectivamente 17 e 77 peridicos entre 1820 e 1910) mostra o esforo de disseminar a
representao do Norte em mbito regional e nacional.22
Um esforo de industrializao ganha fora com a chegada da Corte Portuguesa ao
Brasil. A poltica de D. Joo VI estimulou a introduo da indstria txtil e grfica no
Serro, gerando os primeiros jornais. Constituem-se tambm sociedades de capital dando
outro proveito ao que foi entesourado ou era consumido com produtos manufaturados na
Europa, sendo uma dessas sociedades a de industrializar o diamante, setor que mantinha a
dependncia da regio para a dominao mercantil.23
Ao mesmo tempo a instituio de privilgios privados de explorao das lavras e a
explorao direta do Estado monrquico fortaleceram os conflitos na ordem espacial que se
mostra na crioulizao da elite regional que aspirava a ser dirigente. No processo de
Independncia mostram seu projeto alinhado aos ideais da Revoluo Francesa:
federalismo, industrializao e desenvolvimento de mercado autnomo.24
Tal projeto esbarrava na conjuntura de formao do Estado Brasileiro que, para
manter a unidade territorial e poltica, exigia a continuidade do empreendimento de uma
oligarquia mercantil-escravista centralizadora. Aliado a esse quadro encontramos as regies
centrais num esforo de obter produtos de exportao e consolidao de seus mercados
regionais por meio de suas foras produtivas e redirecionamento do capital/dinheiro
acumulado no interior do empreendimento.25
Forma-se a percepo de articulao entre os lugares do interior da regio
mercantil-escravista gerando fora econmica e poltica que prepara a formao de uma
22 SOUZA, op. cit. p. 67. 23 SOUZA, op.cit p. 68. 24 SOUZA, op.cit p. 70. 25 Idem
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identidade norte mineira agregando os interesses das zonas dos currais com a minerao
(ouro e diamante).26
Os interesses regionais no se mostram apenas nos aspectos de
representao do espao e de suas especificidades; a idia bsica a de ampliao do direito do cidado, conduzida pela condio de participar da vida econmica, eliminados os entraves da dominao mercantil e, por conseqncia, na vida poltica, determinando o prprio destino. Resultar disso o desenvolvimento de propostas de formao de uma regio especfica, com polticas adequadas de colonizao, entendida em sentido estrito, de consolidao de mercado regional e de ruptura definitiva com o modelo oligrquico que cria constrangimentos ao desenvolvimento regional.27
Diante deste quadro desenvolvem-se duas correntes entre as elites locais: aqueles
que so a favor do regime monrquico representativo e mantm a dominao mercantil e os
que defendem as idias federalistas e liberais radicais apostando nas mudanas de relaes
de produo e na industrializao.
Dessas duas correntes seguimos o rumo dos radicais e seu projeto liberal para
entender os caminhos que levam formao do nordeste mineiro.28
Em Minas, a ideologia liberal vinha-se formando desde que o regime colonial entrou em crise. A formao do projeto liberal no Norte Mineiro, alm da figura do Padre Rolim, contar com a dos irmos Vieira Couto e, posteriormente, o outro ramo dessa famlia, os Vieira Otoni, a que se alinham os Queiroga e os Machado.29
Proprietrios ilustrados e abastados que consideravam ter acesso representao
legtima de nao e percepo da inconvenincia da ordem territorial que coage
inconscientemente os no-proprietrios e os pequenos proprietrios. Liberdade sentido
e resultado da luta contra a limitao de ser abastado sem poder sobre a ordem espacial que
26 SOUZA, op.cit p. 70-71. 27 SOUZA, op.cit p. 71. Grifo meu. 28 Sobre a chamada corrente conservadora tratamos dela no processo de formao da regio salineira de Cabo Frio (RJ) em GIFFONI, op. cit.
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se quer nacional. Pensa-se um Estado republicano que vem de uma ilustrao mais clssica
(Ccero, Tcito, Cornlio, Plutarco) do que francesa/iluminista. Um projeto que bate de
frente com o Estado monrquico e seu Poder Moderador que se impe aos povos e os faz
reconhec-lo. Os povos deviam instituir o Estado e no reconhec-lo simplesmente.
Politicamente, o projeto liberal do norte mineiro busca o poder constituinte dentro
do Estado Monrquico e, economicamente, prope uma outra ordem visando criao de
uma nao na qual s a propriedade estabeleceria uma ordem espacial fundamental. O
proprietrio cidado portador do esclarecimento que traduzido pelos ideais de
progresso.
Ideais presentes nos componentes bsicos do programa liberal: colonizao,
industrializao e desenvolvimento tcnico, mas que no se mostram questionadores da
ordem escravista, mantendo assim um dos pilares da hegemonia oligarca do Imprio.
A construo do projeto liberal norte mineiro pode ser dividido em trs perodos:
um que abrange a Inconfidncia e Independncia e tem como autor principal os irmos
Vieira Couto; outro que vai de 1831 a 1869 que incorpora os ideais representados por
Tefilo Otoni; e por ltimo a gerao que passa pela transio de Imprio/Repblica e tem
como expoentes Josefino Vieira Machado e os irmos Felcio dos Santos.30
Em Tefilo Otoni, filho da elite crioulizada e ilustrada do Serro, o foco terico
muda dos franceses para os norte-americanos, em especial T. Jefferson e B. Franklin.
(...)Em Otoni, os EUA aparecem como lugar perfeito, definitivo, acabado. Ali a histria cumpriu, completamente, seu caminho. (...) Otoni d os EUA como o tempo e o local da completude histrica: tudo j foi conquistado. O progresso passa a ser apenas cumulativo na autopreservao da utopia.31
29 SOUZA, op.cit p. 73. 30 SOUZA, op.cit p. 73-5. 31 DUARTE, Regina Horta Histria, Verdade e Identidade Nacional: quatro panfletos polticos do Segundo Reinado In: LOCUS: revista de Histria, Juiz de Fora, vol. 2, n 2.p. 121.
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Mantm a figura do cidado ativo/esclarecido que entra em defesa dos
oprimidos que so considerados irresponsveis e sem controle. O alvo principal o
absolutismo e a oligarquia, ao mesmo tempo que importante negociar diante de uma
possvel rebelio irresponsvel dos oprimidos a anarquia. 32 Seu projeto se mostra
mais poltico em suas aes como o 7 de abril de 1831; a republicanizao da
constituio que vem da Constituio de Pouso Alegre e o Ato Adicional de 1834; a
revolta de 1842. 33
Aps a derrota em Santa Luzia sua atuao poltica se reduz, voltando suas foras
para um projeto econmico que se prope no estar atrelado aos interesses agro-exportador-
escravista, buscando uma descentralizao econmica do porto do Rio de Janeiro. No
tocante escravido constri-se um discurso a favor da imigrao estrangeira com o intuito
de colonizar o territrio e reforar a construo de uma nao.34
O meio mais seguro de favorecer a emigrao para o nosso pas ser fazer crer, nos pases onde a populao pode emigrando dar vantagens ao Brasil, que a constituio e as leis so uma realidade do nosso pas. E os que vierem abrigar-se debaixo dessa salvaguarda, sero protegidos em suas pessoas e fortuna contra todos os atentados.
Tefilo Otoni35
32 SOUZA, op.cit p. 76. 33 SOUZA, op.cit p. 77. 34 Neste ponto recordamos os debates sobre o preconceito da elite letrada quanto a capacidade do trabalhador nacional e o plantel de escravos para se construir o conceito de nao que pretendiam. Ver COSTA, Emlia Viotti da Da Monarquia Repblica: momentos decisivos SP, Brasiliense, 1987 e COSTA, Emlia Viotti da Da Senzala Colnia SP, Brasiliense, 1989. 35 Segundo SOUZA (...) no um projeto revolucionrio, nem tem poder intrnseco de mudar o cotidiano, lugar privilegiado da reforma da cultura popular e das representaes. (...) Otoni pouco explcito quanto a um programa secularizante. Ataca apenas os aspectos decorrentes da imigrao, sem ir ao cerne do problema(...) In: SOUZA, op. cit. p. 79.
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Este projeto econmico possui o desenvolvimento tcnico e a imigrao como
eixos principais na luta contra a opresso do cidado pelo Estado. Um Estado que
desconhece a nao e quer apenas o domnio do territrio.
As colnias do Mucuri surgem como ponto convergente dos esforos do norte
mineiro de conquistar seus canais de comunicao e desenvolvimento e tambm uma
confrontao ao Estado Absolutista/Monrquico.36
Voltamos do nosso desvio linha principal com outros olhos sobre a construo
do espao social do nordeste mineiro.
Em maio de 1847 legaliza-se a Cia. de Navegao do Mucuri. Organizada por
Tefilo e Honrio Otoni, tendo como scios parentes e amigos como Irineu Evangelista de
Souza, o Baro de Mau. Com aprovao do Imprio, a Provncia de Minas entra como
acionista (1/4 das aes) e autoriza:
1. A construo de duas estradas do armazm superior da Companhia para a cidade de Minas Novas e outra para as de Serro e Diamantina, com faculdade de cobrar pedgio; 2. Iseno por oitenta anos dos impostos provinciais; 3. Obrigao por parte do governo de no permitir a abertura de outras estradas que vo ter s margens do Mucuri, da barra do Todos os Santos para cima; 4. Construo de um quartel nas matas do Mucuri.37
Descobrir os limites quase desconhecidos com a Bahia38, colonizar com mo-de-
obra livre europia germanizar o Mucuri, colonos como associados e no proletrios.
Construir uma democracia pela posse da terra baseada na experincia dos EUA de Jefferson
e Franklin. Valorizar as riquezas do norte cortando o nordeste mineiro de estradas.
Respeitar e convencer os povos indgenas dos valores da civilizao ocidental. Comunicar
36 SOUZA, op.cit p. 82-3. 37 CHAGAS, op.cit. p. 155. 38 Em mapa do Atlas Chorographico Municipal mostrado por MATTOS, op. cit. p. 323, ainda no ano de 1926 existem reas de floresta consideradas pouco conhecida no municpio de Tefilo Otoni.
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o Norte de Minas com o Rio de Janeiro, atravs do rio Mucuri e do oceano, criando, assim,
um porto de mar para a provncia central.
Em seus discursos podemos localizar uma vontade represada na experincia como
poltico e o potencial sonhador de realizar como empreendedor.39
Da Tribuna da Cmara dos Deputados, pedi ao governo que pusesse o norte de Minas em comunicao com o litoral do Mucuri. Estava longe de mim fazer monoplio desta idia generosa. Mas, depois de bradar em vo seis anos, procurei realizar, como industrial, o que no tinha podido conseguir como poltico.40
No embalo do sonho descentralizador surge Filadlfia margem do rio Todos os
Santos evocando a liberdade americana de Thomas Jefferson.41 Localizada em ponto
estratgico para a comunicao do litoral com o serto tendo Minas Novas e Peanha como
pontos de passagem para se chegar ao Serro e Diamantina42. Corria o ano de 1853 entre
antigas e novas promessas de riquezas e junto s divergncias no trato com os ndios43
dificultando o acesso s suas terras, a mata se fazendo presente nos civilizados com calor,
chuva, doenas (malria), animais, parasitas, muralhas de espinhos e cips. Desmatar era
necessrio para ter sade. Seguem-se tambm dificuldades polticas e econmicas com
questionamentos sobre a produo e a qualidade de vida dos colonos ali chegados. Entre
estes vieram indivduos arregimentados em prises alems que trouxeram outros valores
civilizados diferentes das idias de progresso, trabalho e modernidade. Eram poucos os que
aceitavam aventurar-se nas fronteiras do nordeste mineiro e Otoni forado a usar brao
escravo e contratar colonos que no desejava.
39 CHAGAS, op.cit. p. 156-7. 40 OTONI, Tefilo B. Breve Resposta In: CHAGAS, op.cit. p. 157. 41 CHAGAS, op.cit. p. 176. 42 CHAGAS, op.cit. p. 199. 43 Ver MATTOS, op.cit. que analisa as contradies da poltica indigenista do Imprio e Repblica Velha.
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A polcia de Potsdam aproveitou o ensejo para depurar a populao daquela cidade, descartando-se de uma centena de indivduos onerosos e suspeitos.44
Quanto navegao do Mucuri, Tefilo Otoni esbarrou nos dados equivocados de
quem os precedeu causando atrasos e prejuzos.45
Ainda sobre as dificuldades impostas pela natureza, frei Serafim de Gorizia ,
quarenta anos depois da experincia de Otoni, dizia o seguinte:
Os mosquitos eram insuportveis, representavam para ns um verdadeiro martrio, zombando at das fogueiras e da fumaa, e nos causando to grande fadiga que, em poucas horas, alm de nervosos, nos deixavam extenuados.46
Aproveitamos o depoimento de frei Gorizia, um dos responsveis pelo aldeamento
de Itambacuri no final do sculo XIX, para fazermos outro importante desvio na construo
do espao social do nordeste mineiro.
So os rumos da espinhosa relao com os povos indgenas da regio, os famosos
botocudos. Botocudos que na verdade eram diversos grupos com lngua e costumes
diferentes. Segundo Chagas, se dividiam em Giporoks, Macunis, Arans, Ta Monhecs,
Bakus, Porukuns, Pojichs, Nak-Nanuks estes divididos em Pots, Potones,
44 OTONI, Tefilo B. A Colonizao do Mucuri In: DUARTE, Regina Horta (org.) Notcias Sobre os Selvagens do Mucuri BH, Ed. UFMG, 2002. 45 A Companhia do Mucuri se baseou nos estudos feitos por Hermenegildo de Almeida (1846) e do engenheiro da Companhia em 1851 (Wisenski) que afirmavam a navegabilidade do Mucuri para definir o tipo de embarcao que circularia pelo rio. Os clculos foram feitos no perodo de cheia do rio, no tempo de seca apenas barcos de calado reduzido poderiam navegar. Isto provocou prejuzos a Cia. Ver OTTONI, Tefilo B. Consideraes Sobre Algumas Vias de Comunicao Frreas e Fluviaes a Entroncar na Estrada de Ferro de D. Pedro II e no rio de S. Francisco Acompanhadas de um Estudo Especial sobre o modo de ligar a mesma Estrada de Ferro de D. Pedro II com as Seces navegveis dos rios Verde e Sapucahy. Rio de Janeiro, Typ. Do Correio Mercantil, Rua da Quitanda n. 55 1865 p. 27 (Documento cedido atenciosamente pela professora Regina Horta Duarte) 46 Fr. Jacinto de Palazzolo, O. F. M. Cap. Nas Selvas dos vales do Mucuri e do Rio Doce. Apud. CHAGAS, op.cit. p. 180.
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Krakatans...47 Povos que, segundo Tefilo Otoni, tiveram participao decisiva no
estabelecimento da Cia do Mucuri.48
No sculo XIX localizamos dois olhares que se completam sobre a questo
indgena do Mucuri: de um lado, vemos a contradio do chamado indigenismo de gabinete
que previa o aldeamento dos povos indgenas e sua absoro pela sociedade majoritria
contra o comportamento hostil com relao aos ndios das autoridades e moradores/colonos
da regio. Alm disso, temos bem claro o esforo do governo imperial de se fazer presente
em todo territrio nacional por via da ocupao de reas pouco habitadas.
Pensando a questo indgena no Mucuri confirmamos o que indicam outros
pesquisadores no tocante do olhar sobre os ndios no sculo XIX. A explorao de seu
trabalho perde importncia para o interesse por suas terras.49
Autores como Izabel Missagia de Mattos e Eduardo Magalhes Ribeiro nos
mostram o quanto foi cruel e sofrido o processo de absoro das populaes indgenas
daquela regio. Um processo que envolve diversas questes passando pela presso da
sociedade majoritria que empurra diferentes grupos para reas de florestas cada vez mais
restritas. A obteno de alimentos se agrava provocando conflitos inter/intratribais que
expulsam grupos da mata, obrigando-os a conviver com a sociedade brasileira. A cultura
desses povos ficou fragilizada ainda mais com as estratgias tanto violentas quanto
pacficas de contato. Enfrentava-se o horror do seqestro de crianas50, a matana de
47 CHAGAS, op. cit. p. 183. 48 OTONI, Tefilo Benedito Noticia sobre os Selvagens do Mucuri em uma carta dirigida pelo Sr. Tefilo Benedito Otoni ao Sr. Dr. Joaquim Manuel de Macedo In: DUARTE, op. cit. 49 Autores que confirmam esta interpretao: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org.) Histria dos ndios no Brasil SP, Cia. das Letras, 1992 e SILVA, Francisco Carlos Teixeira da Camponeses e criadores na formao social da misria: Porto da Folha no Serto do So Francisco (1820-1920) Niteri, UFF, 1981. Dissertao de Mestrado em Histria. 50 Tefilo Otoni denuncia este trfico de crianas indgenas (kurucas) In: DUARTE, op. cit. p. 49. Tambm comum encontrar o registro na memria das famlias da regio o fato de que algum parente, principalmente
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aldeias por ou sem motivos, a criao de presdios indgenas onde era proibido falar outra
lngua que no fosse a lngua portuguesa entre outras estratgias. Junto com esta violncia
encontramos a imposio de valores como obrigao de trabalho, lucro, propriedade e
religiosidade.
Tefilo Otoni registra, em texto sobre as populaes indgenas do Mucuri, a
brutalidade exercida pelos colonizadores/civilizadores da regio que usavam de recursos
hediondos como oferecer carne indgena aos ces sob o argumento de ca-los com mais
eficincia. Tudo muito distante do modelo de civilizao.51
Diante do que viu da relao entre luso-brasileiros e ndios, o prncipe alemo
Maximiliano Wied considerou que no haveria memria dos tapuios, pois indiferente
para as futuras geraes, se um botocudo ou uma fera tenham vivido, outrora, nesse ou
naquele lugar.52
desse conflito que surge a cultura e a identidade que conhecemos hoje dos vales
do Jequitinhonha e Mucuri. Segundo Izabel Mattos, o processo de civilizao indgena
mostrou-se como uma via de mo dupla em que o colonizador tambm foi colonizado
ao ter que se submeter a valores indgenas no processo de negociao de aes para atingir
seus objetivos assimiladores. Isto estabeleceu novas conexes identitrias no previstas
provocando fundamentos para outras formaes culturais que se fazem presentes na
regio.53 Podemos tambm agregar a influncia do elemento indgena nas reflexes sobre a
crioulizao da elite norte mineira levantada por Souza.
mulheres, tenha sido pego no lao ou pego no perro (perro cachorro em espanhol). Memria que carrega o valor/argumento de que aquele parente era bugre, mas ficou manso. 51 DUARTE, op. cit. p. 31-2. 52 RIBEIRO, op.cit. p. 183. 53 MATTOS, op. cit. p. 442. Quanto s manifestaes desta influncia citamos o sem nmero de manifestaes culturais ligadas a festas catlicas, mas que esto recheados de signos/valores africanos e indgenas como os Caboclinhos, Catops, Marujadas, Bois de Janeiro, Folias de Reis.
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Hoje vemos o quanto essas culturas possuem razes como no exemplo dos Krenak,
dos Machacalis, dos Arans, Pancararus, Patachs que mesmo massacrados fazem-se
presentes com seus valores e estratgias de sobrevivncia diante da sociedade majoritria.54
EVIDNCIAS DO CAMINHO DE FERRO
A linha principal vem chegando para desenrolar mais fios de olhares carregados de
cores do passado que pintam um quadro recheado de adjetivos nem sempre de boas
lembranas.
Mesmo diante de problemas, a regio continua recebendo colonos, desmatando e
abrindo estradas. Estas ltimas tornam-se o principal investimento diante das dificuldades
de navegao do Mucuri, sendo a principal delas a que ligava a cachoeira de Sta. Clara a
Filadlfia, surgindo um plano de uma rede rodo-ferroviria entre Caravelas, Filadlfia,
Minas Novas e Diamantina.55
Aps dez anos de presena no Mucuri, surge a idia de constituir-se uma nova
provncia. Projeto que contava com o apoio do Marqus do Paran, mas no saiu do papel e
de debates legislativos.
A nova provncia compreenderia a comarca de So Mateus, no Esprito Santo; as
comarcas de Caravelas e Porto Seguro na Bahia; a comarca de Jequitinhonha e parte das do
Serro e S. Francisco em Minas. Seus limites seriam leste, o oceano; ao norte o rio Pardo,
que desgua no atlntico e o rio Verde, afluente do S. Francisco; oeste o rio S. Francisco;
e, ao sul o rio Doce e alguns de seus afluentes do noroeste. Com o nome de Santa Cruz,
Mucuri ou Porto Seguro, com uma populao de aproximadamente 200.000 habitantes.56
54 Verificamos isto na presena do ndio em vrias universidades e a existncia de projetos de educao indgena, com a formao de professores ndios como o que existe na aldeia Krenak de Resplendor (MG). 55 CHAGAS, op.cit. p. 202. 56 CHAGAS, op. cit. p. 203. S vamos ter notcias de uma certa autonomia do nordeste mineiro diante da influncia do norte no perodo da morte de Joo Pinheiro (1908).
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Em 1857, Tefilo Otoni faz algumas consideraes logsticas sobre a possibilidade
de uma nova provncia:
Esta situao foi criada pela Companhia do Mucuri. Todos os que reconhecem como palpitante esta necessidade pblica confessam que s as nossas estradas tornaro possvel a sua realizao, e que a estrada de Sta. Clara para Filadlfia ser a principal artria por onde se comuniquem as marinhas da nossa provncia, com seus 30 mil habitantes e o interior (...) Apenas tome algum incremento as populaes das matas ao norte do vale do Paraba, as necessidades pblicas criar-lhe-o novos mercados no litoral adjacente. Mas daqui at os Abrolhos no oferece a nossa costa outros portos onde se possa imaginar levantado no futuro o comrcio estrangeiro, seno o porto da de cidade de Vitria e o de Caravelas. O porto de Vitria ter de ser utilssimo s populaes a leste de Ouro Preto, Mariana, Itabira e uma parte do Serro (...) Do Serro para o norte, porto vizinho, com barra e ancoradouro capaz de sustentar uma alfndega e um vasto comrcio, o porto de Caravelas. (...) A simples enunciao destes dados prova que a grande artria de comunicao, que deve ligar Caravelas ao interior, tem de seguir o vale do Mucuri, ou, por outra, tem de ser a nossa estrada de Sta. Clara a Filadlfia, prolongada para o oeste at Diamantina e, para leste, at Caravelas.57
Tefilo Otoni nos apresenta um projeto descentralizador do porto do Rio de
Janeiro para toda a provncia de Minas Gerais a partir das necessidades logsticas de cada
regio, no caso o centro e o norte de Minas. Necessidades que no convencem elite
centralizadora do Imprio.
Apesar de todo esforo investido na regio, o caminho da Companhia a
encampao pelo Governo Imperial que se nega a ceder emprstimo para manter o
funcionamento das atividades. O dinheiro no vem e governo e Companhia entram num
acordo desfavorvel para Tefilo Otoni. Depois de encampada, a Companhia deixa de
existir.
Mesmo com o fim da Companhia, as notcias de fertilidade e promessas de futuro
promissor continuam a surgir dizendo que a terra ubrrima com sinais de fartura de
57 CHAGAS, op. cit. p. 203-4.
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gneros alimentcios. O caf introduzido por Otoni apresenta resultados.58 Fartura
confirmada por Eduardo Ribeiro que localiza em depoimentos de agricultores o registro de
um tempo de harmonia com a natureza e abundncia de alimentos.59
Muitos estrangeiros fixam moradia e a violncia contra e dos ndios recrudesce.
Aumenta a necessidade de terra e a fronteira empurra/massacra/absorve os povos
autctones.60
Todos os municpios da zona fisiogrfica do Mucuri pertenceram ao primitivo
municpio de Tefilo Otoni, sem exceo de um s. O municpio de Tefilo Otoni era
constitudo de toda a atual zona do Mucuri. guas Formosas, Carlos Chagas, Itambacuri,
Malacacheta, Pavo e Pot tiveram seus territrios desmembrados diretamente do de
Tefilo Otoni. Os demais, Atalia, Bertpolis, Campanrio, Frei Gaspar, Frei Inocncio,
Ladainha, Machacalis, Nanuque, Nova Mdica, Pamp, Pescador, S. Jos do Divino e
Umburatiba desmembram-se dos primeiros. Ampliando a regio para o que conhecemos
hoje como nordeste mineiro temos outro municpio plo que Araua, do qual
desmembram-se outros como Itinga e Novo Cruzeiro. E uma parte significativa destes
municpios surge a partir dos acampamentos da EFBM.61
Em 1857, Tefilo Otoni, no Relatrio apresentado aos acionistas da Cia. do
Mucuri, mantm o projeto descentralizador acima citado e adianta a possibilidade da
ferrovia:
58 No incio do sculo XX localizamos uma produo significativa de caf no municpio de Tefilo Otoni entre outros produtos. No Anurio Estatstico de Minas Gerais para os anos de 1922-1925 (APM) Tefilo Otoni e Araua aparecem entre os dez maiores produtores do Estado em produtos como: algodo, mamona, mandioca, caf, feijo, batata (doce e inglesa), arroz em casca, amendoim, milho, rebanho bovino e suno, charque, mostrando uma produo significativa no s de subsistncia, mas voltada para o mercado interno. Voltaremos a esses dados mais adiante. 59 RIBEIRO, op. cit. 60 CHAGAS, op. cit. p. 246.
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No possvel que a alfndega do Rio de Janeiro continue a ser a de toda a Provncia de Minas.
Apenas tomar algum incremento a populao das matas ao norte do vale do Paranaba as necessidades pblicas criar-lhes-o novos mercados no litoral adjacente.
Mas daqui at os Abrolhos no oferece a nossa costa outros portos, onde se possam imaginar, levantados no futuro comrcio estrangeiro se no o porto de Vitria e o de Caravelas.
Toda a populao da comarca do Serro e a mr parte das do municpio de Minas Novas demora ao sul de Caravelas.
O vale de Caravelas e o do Perupe morrem na cordilheira do mar, e o vale vizinho que atravessa a cordilheira do lado sul e vai ao interior de Minas Novas, o Mucuri.
A simples enunciao destes dados prova que a grande artria de comunicao que deve ligar Caravelas ao interior, tem de seguir o vale do Mucuri, ou por outra, tem de ser a nossa estrada da Sta. Clara a Filadlfia prolongada para o oeste at a Diamantina e para leste at Caravelas.
Sou de parecer que a Companhia do Mucuri deve se apresentar ao Governo Imperial oferecendo-se para estender a sua estrada at Caravelas e mediante os favores que for possvel obter, tomar o compromisso de , dentro de um lapso de tempo, que deve ser longo, estender trilhos de ferro sobre a sua estrada, ou para serem tirados os carros por animais ou locomotivas.62
Na mesma linha de raciocnio de Tefilo Otoni, e para alm, o engenheiro Miguel
de Teive e Argolo, em sua Memria Descritiva da Estrada de Ferro Bahia e Minas, cita o
professor C.F. Haitt que diz o seguinte sobre a regio do rio Mucuri ainda no sculo XIX:
(...) em uma palavra posso dizer que todo o terreno, do Riacho das Pedras at as cabeceiras do Mucuri, forma uma das regies mais extensas e uniformemente frteis do Brasil, ao sul do Amazonas e no posso deixar de experimentar minha crena firme de que a natureza tendo to abundantemente abenoado o Mucuri, um dia no muito distante o ver coberto de habitantes e o caminho principal do comrcio com o interior de Minas.63
61 Sobre formao dos municpios do vale do Mucuri - CHAGAS. op. cit. p. 249 - Ver tambm BRASIL, IBGE - Enciclopdia D