tese - moysés pinto neto - definitiva (com ficha)

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DOUTORADO EM FILOSOFIA A ESCRITURA DA NATUREZA: DERRIDA E O MATERIALISMO EXPERIMENTAL Moysés da Fontoura Pinto Neto Porto Alegre 2013

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    DOUTORADO EM FILOSOFIA

    A ESCRITURA DA NATUREZA: DERRIDA E O MATERIALISMO

    EXPERIMENTAL

    Moyss da Fontoura Pinto Neto

    Porto Alegre

    2013

  • MOYSS DA FONTOURA PINTO NETO

    A ESCRITURA DA NATUREZA: DERRIDA E O MATERIALISMO

    EXPERIMENTAL

    Tese defendida como requisito parcial para o ttulo de Doutor em Filosofia no Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Orientador: Prof. Dr. phil. Ricardo Timm de Souza com estgio-sanduche sob superviso da Prof. Catherine Malabou (CRMEP, Kingston University - UK).

    2013

  • Catalogao na Publicao

    P659e Pinto Neto, Moyss da Fontoura A escritura da natureza : Derrida e o materialismo

    experimental / Moyss da Fontoura Pinto Neto. Porto Alegre, 2014.

    299 f.

    Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza

    1. Derrida, Jacques Crtica e Interpretao. 2. Materialismo. 3. Filosofia. I. Souza, Ricardo Timm de. II. Ttulo.

    CDD 194

    Bibliotecria Responsvel: Salete Maria Sartori, CRB 10/1363

  • MOYSS DA FONTOURA PINTO NETO

    A ESCRITURA DA NATUREZA: DERRIDA E O MATERIALISMO EXPERIMENTAL

    Tese de Doutorado apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.

    Aprovado em 18 de dezembro de 2013.

    BANCA EXAMINADORA:

    __________________

    Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza (Orientador - PUCRS)

    ___________________

    Prof. Dr. Idelber Avelar (Tulane University - EUA)

    ___________________

    Prof. Dr. Rodrigo Guimares Nunes (PUC-RJ)

    ____________________

    Prof. Dr. Nythamar Fernandes de Oliveira (PUCRS)

    _____________________

    Prof. Dr. Norman Roland Madarazs (PUCRS)

  • AGRADECIMENTOS

    A lista de agradecimentos dessa tese no poderia deixar de ser imensa. Em primeiro lugar, minha querida companheira Maria Julia, que dividiu comigo momentos bons e ruins, as depresses e euforias, e foi durante todo tempo apoio incondicional para que essa tese acontecesse. Sem ela, nada disso seria possvel sob nenhum aspecto. No tenho palavras para descrever tua importncia. Te amo. Aos meus pais, Moyss e Ftima, pelo carinho, apoio e por aguentar meus debates permanentes, posio questionadora e decises polmicas de vida. minha v querida, Francisca, minha irm e meu cunhado, Andra e Felipe; minha cunhada e cunhado, Natlia e Chico; meus dindos, Bernadete, Paulo e Marco; sogro e sogra, Mrio e Jovita; meus primos e primas, tios e tias, enfim, toda famlia. Meus companheiros felinos de escrita: Lucrcio e Magnlia. Um grande obrigado ao meu orientador Ricardo Timm de Souza. Sem meias palavras, Ricardo mudou minha vida. Sem nunca induzir, apresentou-me um caminho filosfico que conduziu minhas decises de vida nos ltimos 6 anos, desde que nos conhecemos em 2007. Agora, com essa tese, Ricardo no apenas mostrou que preza o pensamento da diferena, mas tambm a diferena de pensamento. Meu amigo, colega e examinador Rodrigo Nunes foi muito importante. Como j disse tantas vezes a ele, o Materialismos foi o lugar onde finalmente me encontrei durante o Doutorado. Tua presena foi fundamental para essa tese. O Professor Eduardo Luft foi uma referncia permanente, tanto no referencial terico e na dialtica dos nossos debates, quanto na sua incrvel capacidade pedaggica, um raro professor que toma a srio as ideias que se lhe apresentam e est sempre aberto a ouvir outras posies e nos fazer rever as nossas. O professor Norman Madarazs, apesar de ter ingressado aps meu trmino dos crditos para disciplinas, foi uma influncia intelectual que ser notada na tese, alm de pessoa sempre gentil, aberta e cuidadosa. Agradeo tambm aos professores Ernildo Stein e Nythamar Fernandes pelas provocaes construtivas. Ao professor Agemir, por fim, pelo apoio enquanto coordenador, e aos funcionrios Andra e Paulo, pelo sempre atencioso atendimento. Os colegas e amigos: Gustavo Pereira, Luciano Mattuella, Grgori Laitano, Marco Scapini, Charles Borges, Adriano Krle,Vanessa Labrea, Jeronimo Milone, Evandro Pontel, Almerindo Boff, Eneida Cardoso, Christian Nienov, Estevan Ketzger, Augusto Jobim, Fbio Leite Caprio, Marcelo Leandro dos Santos, Oneide Perius, Frederico Testa, Luis Rosa e outros que imperdoavelmente esqueci. Um agradecimento especial a dois colegas que contriburam decisivamente pesquisa: Honathan Fajardo, a quem considero o verdadeiro conhecedor de Derrida entre ns dois e devo inmeros conceitos roubados no trabalho, e Victor Marques, meu parceiro no exterior no doutorado-sanduche e fonte de toda discusso em torno da biologia na tese. Meus queridos amigos Pan (Alexandre Pandolfo) e Manu (Manuela Mattos), colegas, amigos do fundo do peito e parceirssimos para todas, um obrigado especial tambm a vocs dois. Os amigos-referncia: Alexandre Nodari e Flvia Cera, dupla catarinense a quem tenho uma vertiginosa admirao, referenciais tericos dessa tese. O pensamento de Eduardo Viveiros de Castro, a quem tive o prazer de conhecer, abalroou a tese, e a admirao s aumenta. Dborah Danowski tambm deixou a marca ecolgica na tese. Outros amigos queridos internticos: Idelber Avelar, Camilla Magalhes, Pdua Fernandes, Felipe De Carli, Marcos "Tapecuim", Rondinelly, Eduardo Sterzi, Veronica Stigger, Carolina Ferreira, Renata Lins, Andr Vallias, Guilherme Heurich e outros que imperdoavelmente (de novo) me esqueci. Amigos do corao: Daniel Pires, Julia Sarkis, gor Dal B, Daniel Negro, Malvina Indrusiak, Moiss Lopes, Luciana Gomes, Ulisses Oliveira, Alliny Xavier, Fernando Maldonado, Mariano Lorenzon, Filipe Etges, Luciano Morales, Mrcio Paixo; outra galera, mesmo carinho: Marcelo Mayora, Mari Garcia, Gabriel Divan, Fernanda Tramontin, Z Linck, Carla Alimena, Daniel Achutti, Raffaella Pallamolla, Andra Beheregaray, Otvio Binato, Salo de Carvalho, Mariana Weigert, Guilherme Boes, Fernanda Osrio, Felipe Moreira. Meu amigo Maurcio Cruz, um grande obrigado, e a todos colegas e alunos do Direito-UFRGS e ULBRA. Agradeo CAPES pela oportunidade da bolsa-sanduche. Agradeo British Library pelos excelentes servios prestados durante a pesquisa. Aos Arquivos IMEC, em Caen-FRA, por terem permitido a consulta aos seminrios inditos de Derrida. Ao CRMEP, na Kingston University, pelo acolhimento. Ao Prof. Horacio Potel, por corajosamente manter o site Derrida en castellano (), fonte imprescindvel de consulta, e aos compartilhadores de todos os pases que fomentam a biblioteca universal que a Internet hoje , viabilizando o acesso ao conhecimento sem a mediao do dinheiro. I would like to say thank you to my foreign supervisor, Catherine Malabou. Like I've said many times, it was an honor to study with you during this period, thank's for the opportunity. Finally, thank you Fernanda Boeira and Joo Mascarin for being so nice with me during my stay in London, and Maria Dada, my dear friend and great philosopher, for all. Also for Mat, George, Kate, Maria and other colleagues. And I'm really grateful for all of them - Fernanda, Joo and Maria - for helping me during the difficult situation that I had in the end.

  • RESUMO

    A tese procura ler a obra de Jacques Derrida para, opondo-se interpretao correlacionista

    predominante, potencializar o aspecto especulativo desse pensamento. As principais chaves

    de leitura so a escritura e a dyferena. Para tanto, trao uma articulao poligonal entre

    Derrida, Quentin Meillassoux, Sigmund Freud e Catherine Malabou, buscando reconstruir as

    posies do filsofo de forma afirmativa enquanto um materialismo. O efeito desse poliedro

    funciona por contrastes, refletindo (como um espelho invertido) sobre outros pensadores com

    os quais Derrida debateu ao longo da sua vida (em especial Kant, Hegel, Levinas, Husserl e

    Heidegger). A figura construda em trs movimentos: comparativo, estrutural e

    experimental. A comparao emerge a partir de uma genealogia do pensamento de Derrida a

    partir do que nomeio materialismo francs do sculo XX, procurando demonstrar que esse

    pensamento nunca se orientou pelas cises kantianas entre coisa em si e fenmeno, natureza e

    humano, emprico e transcendental. Ele emerge em um especfico contexto filsofico,

    cientfico, poltico e cultural que apenas recentemente vem sendo reconstitudo. Tecido esse

    primeiro fio, passo ao argumento estrutural. A partir da crtica da ideia de totalidade (Livro), o

    pensamento da escritura aparece como grafemtica que no se detm no interior do espao no

    qual a escritura esteve confinada, pensando antes a escritura como forma sulcada do real,

    teoria no-hilemrfica - plstica - da forma. A essa grafemtica soma-se a espectrologia,

    cincia do virtual que pensa o real no modo da economia geral da dyferena. Dessa economia

    geral inconsistente emergem economias restritas: econommesis e economia da vida_morte.

    Os grafemas inscrevem-se em uma superfcie sem fundo, vazia e plstica, que Derrida

    nomeia, lembrando Plato, khora. Finalmente, o terceiro momento procura relacionar

    experimentalmente o pensamento de Derrida com as cincias contemporneas (neurocincias

    e biologia evolucionista), almejando borrar as fronteiras entre natureza, cultura e tecnologia,

    de um lado, e pensamento e real, de outro. A escritura e os espectros atravessam todas essas

    cises em um materialismo generalizado e hiper-histrico.

    Palavras-chave: Derrida - Escritura - Dyferena - Plasticidade - Grafemtica - Espectrologia.

  • ABSTRACT

    This thesis aims to read Derrida in a way to increase the speculative aspect of his thinking, in opposition with the dominant correlationist interpretation. The main keys for this reading are writing and diffrance. For this task, I trace a polygonal articulation between Derrida, Quentin Meillassoux, Sigmund Freud and Catherine Malabou, trying to reconstruct the philosopher's positions in an affirmative way as materialism. The effect of this polyhedron works by contrasts, reflecting (as an inverted mirror) on other philosophers with whom Derrida debated all his life (especially Kant, Hegel, Levinas, Husserl and Heidegger). The figure is constructed in three moments: comparative, structural and experimental. The comparison emerges with a genealogy of Derrida's thinking departing from the French materialism of XXth Century, aiming to demonstrate that his thinking has never been oriented by the Kantian gaps between thing-in-itself and phenomenon, nature and culture, empirical and transcendental. It emerges in a specific philosophical, scientific, political and cultural context that is only now being reconstituted. Next step is the structural argument: departing from the critique of totality (Book), the thinking of writing appears as a graphematics that exceeds the traditional space where writing was enclosed, considering it as the facilitation (frayage) of form in the real, a non-hylomorphic (plastic) theory of form. To this graphematics is added spectrology (hauntology), virtual science that thinks reality in the general economy of diffrance. From this general economy, restricted economies emerge: economimesis and economy of life_death. The graphems are inscribed in a surface without ground, empty and plastic, which Derrida nominates, remembering Plato, Khora. Finally, the third moment looks to relate experimentally Derrida's thinking with contemporary sciences (neuroscience and evolutionary biology), aiming to obliterate the boundaries between nature, culture and technology, on one side, and thinking and real, on the other. Writing and specters cross all these gaps in a generalized and hyper-historical materialism.

    Key-words: Derrida - writing - diffrance - plasticity - graphematics - spectrology.

  • SUMRIO

    1 MATERIALISMOS CONTEMPORNEOS 14 1.1 CORRELACIONISMO E NOVOS MATERIALISMOS 14

    1.1.1 O desafio de Meillassoux 14 1.1.2 A interpretao correlacional de Derrida 19 1.1.3 O materialismo especulativo de Hgglund 27

    1.2 DERRIDA, MARXISMO E O CONTEXTO POLTICO DOS ANOS 60 32 1.2.1 Materialismo e Marxismo 32 1.2.2 Os mal-entendidos 34 1.2.3 A aproximao tardia 38

    1.3 MATERIALISMOS CONTEMPORNEOS E A FILOSOFIA FRANCESA 43 1.3.1 Hiper(i)materialismo Histrico 43 1.3.2 O Materialismo Francs 47

    2 UMA GENEALOGIA DO PENSAMENTO DE DERRIDA 59 2.1 O Hegelianismo Francs 59

    2.1.1 Derrida e Alexandre Kojve: as razes do anti-humanismo 60 2.1.2 Derrida e Alexandre Koyr: o universo infinito 62 2.1.3 Derrida e Jean Hyppolite: da antropologia ciberntica 64 2.1.4 Derrida e Bataille: da circularidade da troca ao dispndio sem reserva 70

    2.2 Existencialismo e Fenomenologia Francesa 78 2.2.1 A tradio fenomenolgica e existencialista francesa 78 2.2.2 A "fenomenologia matemtica" 85 2.2.3 O "empirismo tico" de Levinas e a herana judaica 88

    2.3 A epistemologia francesa 96 2.3.1 Derrida e Bergson: uma natureza criadora 97 2.3.2 Derrida e Bachelard: o primado terico do erro 103 2.3.3 Derrida e Althusser: uma filosofia aleatria 109

  • 2.4 O ESTRUTURALISMO 114 2.4.1 O Estruturalismo 114 2.4.2 Derrida e Lvi-Strauss: para alm da natureza e cultura 115 2.4.3 O efeito de superfcie 121 2.4.4 Rosset: o motivo nietzscheano da fora 123 2.4.5 Ps-estruturalismo: Derrida e Foucault 125

    2.5 AS FONTES CIENTFICAS DA GRAMATOLOGIA 132 2.5.1 A textualizao geral 132 2.5.2 Madeleine V-David: a decifrao dos hierglifos e ideogramas 133 2.5.3 L'criture et la psychologie du peuples: o seminrio sobre a escritura 135 2.5.4 Leroi-Gourhan: a tcnica como suplemento do humano 138 2.5.5 Biologia e ciberntica 142 2.5.6 As prticas da informao 145 2.5.7 Lingustica e Etnologia 148 2.5.8 A exportao dos conceitos cientficos 148

    3 A ESCRITURA E A DYFERENA 152 3.1 A CLAUSURA DO LIVRO 152

    3.1.1 A tese forte em "Da Gramatologia" 154 3.1.2 A tradio platnico-teolgica do Livro 157 3.1.3 O Livro e a Mathesis Universalis 175

    3.2 O INCIO DA ESCRITURA 184 3.2.1 A escritura como mathesis universalis 185 3.2.2 Livro, programa e jogo 194 3.2.3 A constituio grafemtica do tempo 202 3.2.4 O futuro da grafemtica 206

    3.3 ECONOMIA GERAL: PARA ALM DO LIVRO E SUAS BORDAS 208 3.3.1 Espectrologia: a cincia do virtual 208 3.3.2 Economia geral como imanncia sem bordas 218

    3.4 ECONOMIAS RESTRITAS: ESTRITURA, VIDA MORTE, SURVIVRE 227

  • 3.4.1 ECONOMMESE 227 3.4.2 ECONOMIA DA VIDA MORTE 239

    3.5 A SUPERFCIE: KHORA 250 3.5.1 Khora: a superfcie plstica 250 3.5.2 Grfica e plasticidade 258

    3.6 A ESCRITURA DA NATUREZA 263 3.6.1 Pensamento e inscrio: o subjtil 263 3.6.2 A Escritura da Natureza 272

    CONSIDERAES FINAIS 280 BIBLIOGRAFIA 282

  • NOTAS PRVIAS

    Sobre o sistema de notao da tese, preferi, para evitar a poluio de referncias no

    corpo do texto, utilizar o sistema clssico de notas de rodap. A fim de no estender em

    demasia o rodap, a referncia completa encontra-se na bibliografia, constando apenas os

    ttulos. Foram usadas as seguintes abreviaturas para os volumes cujos textos no constam na

    bibliografia diretamente (a fim de evitar mencionar cada ttulo individualmente na

    bibliografia, gerando sobrecarga): ED (L'criture et la diffrence); MP (Marges de la

    philosophie); LD (La dissmination); CP (O Carto Postal); P (Psych); PS (Points de

    Suspension); RP (Rsistances de la psychanalyse); MAR (Moscou Aller-Retour); PM (Papel-

    Mquina), F1 e F2 (Figures da la pense philosophique volumes 1 e 2, de Jean Hyppolite).

    Nos demais, foi citado simplesmente o ttulo porque expressamente mencionado no final.

    Segui a regra de o texto citado no corpo da tese estar em portugus e o rodap em francs

    (idioma das obras originais), salvo quando s tive acesso obra em portugus ou outra lngua

    (espanhol ou ingls). Por questo de tempo, deixei de citar a verso traduzida em portugus

    na correspondncia com o original quando apenas se tratava de meno sem citao direta.

    Pretendo realizar essa tarefa na publicao final. As palavras em grego foram transliteradas

    sem acentos em itlico e de acordo com a grafia de Derrida utilizava. Finalmente, apesar de

    ainda no publicados, fiz uso de dois seminrios inditos ("La vie la mort" e "Manger l'autre")

    que tive oportunidade de consultar nos arquivos IMEC na Frana. Embora haja dificuldade de

    certificao, supus que era um prejuzo significativo no fazer uso das valiosas informaes

    que adquiri na leitura dos textos. No caso do primeiro, "La vie la mort", as pginas sequer

    estavam numeradas, de modo que ainda pior fica o sistema de notao. Urge a publicao

    desses textos, ainda que se reconhea o valoroso trabalho tanto dos arquivos que zelam pelos

    seminrios quanto da atual equipe que trabalha na editorao das obras ainda no publicadas.

  • 9

    INTRODUO

    Tornou-se um clich, diz Fernanda Bernardo1, comear textos narrando a dificuldade

    de adentrar na obra filosfica de Jacques Derrida. O clich, contudo, no fortuito nem

    casual: o "gosto pelo segredo" do filsofo franco-argelino acabou tornando sua obra, em

    ressonncia joyceana, um cdigo particular cuja chave de complicado e infinito

    deciframento. O paradoxo que na inversa proporo da dificuldade (assumida) dos textos,

    Derrida desperta uma obsesso interpretativa, provocando verdadeira avalanche de escritos de

    todos os gneros sobre seus trabalhos. Difcil resistir provocao de que, sopesada a relao

    entre esses dois fatores, existe verdadeira indstria cultural de escritos derridianos, ainda

    mais sob o fomento das polticas acadmicas que vm orientando diversos pases (inclusive o

    Brasil) em termos de produtividade e publicaes (o famoso "publish or die")2. A maioria dos

    trabalhos, apesar do esforo hercleo e sofisticao estilstica, no percebe os sedimentos que

    amparam o pensamento derridiano, saltando sobre etapas necessrias para mensurar sua

    provocao. Paradoxalmente, um dos clichs recorrentes da prpria indstria cultural

    apontar e corrigir seus prprios clichs.

    Para alm dos muitos gneros de comentrios e interpretao de filsofos, poderia

    afirmar que, em relao a Derrida, existem majoritariamente dois tipos: o mimtico, que

    procura reproduzir o estilo, destacando o carter performativo do escrito; e o criptogrfico,

    que procura decodificar as imensas articulaes poligonais que caracterizam as condensaes

    conceituais do pensamento derridiano, procurando estabelecer a decifragem de termos como

    1 BERNARDO, Fernanda. O dom do texto - a leitura como escrita (o Programa Gramatolgico de J. Derrida), pp. 155-158. 2 Uma simples pesquisa no sistema da British Library com as palavras "Jacques Derrida" - que no excluem outras possibilidades de busca (por exemplo, "deconstruction") - indicou 1454 documentos sobre o autor/tema. Recentemente, um software de medio desenvolvido pela Universidade de Indiana (EUA) colocou Derrida como o quarto scholar mais citado entre os papers acadmicos, perdendo apenas para Marx, Freud e E. Witten. Disponvel em . Acesso em 6.11.2013.). A deciso metodolgica da pesquisa, baseada na arbitrariedade estilstica do seu autor, foi de mesclar obras interpretativas e prprias do autor com outras obras filosficas e de outras disciplinas, abrindo mo de uma abordagem extensiva do campo "derridiano" (no ser difcil perceber tambm que essa motivao vem da prpria viso crtica ao campo). A deciso metodolgica tambm se justifica pelo ceticismo com o modelo do "especialista" pesquisador e aposta na tendncia transdisciplinar na contemporaneidade.

  • 10

    dyferena (diffrance), trao, rastro (trace), grafema, deiscncia, dobradia (brisure)3 e

    assim por diante. Nenhum dos dois tem garantias pr-dadas: os trabalhos mimticos podem

    naufragar por no conseguirem expressar a multiplicidade construtiva que perpassa os escritos

    derridianos, acabando por desabar em estilsticas barrocas pouco elegantes e sobretudo nada

    interessantes; os trabalhos criptogrficos, por outro lado, correm o risco da simplificao

    castradora e do redutivismo domesticador, no alcanando o intrprete a verdadeira matriz do

    pensamento derridiano. Algumas crticas ao autor combinam, na sua articulao retrica,

    esses dois fatores: uma compreenso tosca somada ao preconceito estilstico, agarrando-se ao

    pior dos mundos interpretativos para desqualificar um filsofo que colocou em xeque a

    tradio, desafiando um arcabouo institucional que transpe as fronteiras que a prpria

    palavra "instituio" carrega em seu sentido habitual. Este trabalho insere-se, assumindo os

    respectivos riscos, no segundo grupo, o criptogrfico4. Ele pretende ser fiel ao rigor que

    Derrida herda de Edmund Husserl, no por acaso o filsofo eleito como o primeiro a quem se

    dirigiu. No pretende ser o primeiro nem o ltimo, mas cobia ter se apropriado das leituras

    rigorosas e elevado-as a nova potncia, trazendo, como elemento ttico, uma leitura da

    escritura como teoria no-hilemrfica da forma que desgua em um materialismo

    experimental, cruzando as dimenses tradicionais separadas de physis, nomos e teckne

    (natureza, cultura, tecnologia) que, hoje em dia, mantm-se sobretudo no pensamento

    neokantiano a partir dos respectivos dualismos.

    Esse movimento realizado de forma tripla: primeiro, a partir de uma investigao

    genealgica que liga os fios da filosofia derridiana ao materialismo francs, buscando como 3 A histria da traduo de diffrance para o portugus longa (analisada e resumida por OTTONI, Paulo. A traduo da diffrance: dupla traduo e double bind, pp. 45-58). Apesar de todas as variaes possveis, adotei a traduo dyferena, utilizada por Rodrigo Oliveira, realizando uma operao antropofgica que "glauberiza" Derrida (OLIVEIRA, Rodrigo Lopes de Barros. Derrida com Makumba: o dom, o tabaco e a magia negra, p. 11 e 43-47 e FONSECA, Jair Tadeu. A crtica de Glauber Rocha: escrita artstica, pp. 119-120). As razes para essa incorporao antropofgica ficaro mais expostas no ltimo captulo, especialmente no item "3.5.2". Alm disso, veremos como ela pode se tornar operativa ao longo do tese (usamos o y glauberiano para ynexistente, dyferencial, anymal, entre outros). A traduo brasileira de Da Gramatologia converte brisure em brisura, mas, porque isso simplesmente no traduz o termo (criando uma palavra inexistente em portugus), preferi traduzir por dobradia ou charneira, termos que condizem com o sentido da expresso. Optei pelo primeiro por ser palavra de maior circulao. Entre as possveis tradues de criture por escrita, mais coloquial e normal, e escritura, traduo que preferencialmente prepondera, optei por escritura, uma vez que, como veremos, um dos objetivos da tese justamente demonstrar a amplitude do termo, no se confundindo com o fenmeno estrito da escrita apenas. Finalmente, uso os termos rastro, grafema, trao e gramma indistintamente. 4 O autor confessa, contudo, que no exatamente um particular admirador do estilo de Derrida, como boa parte dos seus comentadores. Isso pode-se perceber na prpria forma como articula o texto, procurando fugir da equivocidade proposital do texto derridiano. Assim, possivelmente minha opo esteja ligada tambm a uma deciso, com peso tico-esttico, na forma de apresentao das ideias que, por si s, no garante nenhum privilgio em relao quelas de verniz mais "potico" (no sentido de "escritores-filsofos, poetas" que Derrida afirma na sua ltima entrevista - DERRIDA, Jacques. Aprender por fin a viver: entrevista com Jean Birnbaum, p. 32).

  • 11

    ponto de encontro entre as diversas correntes a preocupao com o concreto, na contramo da

    tradio abstrata da filosofia; segundo, a partir de uma investigao 'sistemtica', sobretudo

    dos primeiros trabalhos de Derrida, procurando mostrar como se d o fio conceitual que

    articula esse pensamento; terceiro e por fim, a partir da aplicao das categorias construdas

    questo da forma, revelando, sob efeito aprs-coup do pensamento de Catherine Malabou, a

    plasticidade imanente que cruza os grafemas da natureza cultura, atravessando os domnios

    de modo a questionar as prprias cises que a tradio ocidental procurou estabelecer. A

    tenso experimental cruzar essas regies, impossibilitando o domnio de qualquer arkhe ou

    telos enquanto "preconceito logocntrico". A forma ser redefinido enquanto experimento

    imanente dentro da estrutura material do mundo inscrevendo-se na superfcie vazia que se

    nomeia Khora.

    Interpretao criptogrfica, mas sem a ingenuidade de desconhecer seu carter

    performativo, isto , sua atuao concreta em torno do texto, como post-scriptum, sobre o

    qual disserta. Apesar de invocar as diversas possveis fontes para legitimar do ponto de vista

    imanente obra sua interpretao, a tese no ingnua a ponto de no perceber que busca

    transformar o contedo que interpreta, enfatizando alguns aspectos em detrimento de outros,

    retroagindo conceitos e produzindo, com isso, uma metamorfose do filsofo. Essa assinatura

    , ao mesmo tempo e portanto, uma contrassinatura, medida que potencializa aspectos que

    Derrida talvez tenha deixado "dormindo como um animal", especialmente em face dos fatores

    concretos (sociais, polticos, institucionais) que o levaram a privilegiar certos pontos em

    detrimento de outros. Trata-se do efeito de "palntropo", um recomear5. A tese ignora,

    proposital e coerentemente, o "querer dizer" subjetivo, deixando que a escritura fale por si s.

    O Derrida privilegiado o "jovem" Derrida, a partir do qual mesmo as obras tardias sero

    lidas, numa tendncia inversa interpretao preponderante hoje em dia.

    A essncia da tese consiste em afirmar que as estruturas que Derrida investiga no so

    limites epistemolgicos que no podem ultrapassar a linguagem (ou o texto). Leitura rigorosa

    da proposio "il n'y a pas hors-texte": o real textual. O pensamento de Derrida, herdeiro de

    Hegel e do materialismo francs, cruza a fronteira da "coisa-em-si", jamais se reduzindo

    esfera estritamente epistemolgica6. A provocao de Quentin Meillassoux em Aprs la

    5 "Um palndromo comea e termina da mesma maneira. Um palntropo, porm, possui um floreio retrico levemente diferente: comea diferentemente - como um comeo, ele surpreende-se ao comear novamente" (GASTON, Sean. Derrida, pp. v-vii). Ver ainda DERRIDA, Jacques. Limited Inc, pp. 196-197. 6 Consequentemente, outros dos preconceitos implicados na leitura de Derrida desabam: que se trata de um autor "literrio", o que se mostrar verdadeiro apenas medida que o prprio conceito de literrio nos seus termos

  • 12

    finitude, nomeando a tradio ps-kantiana "correlacionismo" e a ela contrapondo um

    "materialismo especulativo", ajuda a clarear o debate. Apesar de no abdicar do falibilismo

    (contra o absoluto matemtico de Meillassoux), Derrida no um filsofo "correlacionista",

    ultrapassando, nesse sentido, a "virada lingustica" em direo ao real-material, "coisa em

    si", s "coisas mesmas". Seu pensamento, portanto, j um "novo materialismo" se lido sob o

    efeito aprs-coup do debate contemporneo. Esse o ponto fundamental que a tese almeja

    demonstrar, provocando um deslocamento ortogonal7 do conflito correlacional entre realismo

    e relativismo (com todos os seus intermedirios), para o conflito especulativo entre idealismo

    e materialismo.

    Se certo que a filosofia crtica mostra-se imprescindvel para evitarmos o

    dogmatismo (filosfico ou cientfico), como Kant j percebera na Crtica da Razo Pura

    acordado do seu "sono dogmtico" por Hume, tambm fundamental que o dilogo com as

    cincias ocorra e que a filosofia ocupe um espao nesse quadro geral. A relao de oposio

    que algumas escolas postulam entre cincia e filosofia hoje parece mais do que nunca

    problemtica, medida que a ltima no pode mais permanecer indiferente s questes que as

    cincias hoje pem na prpria autocompreenso dos seus conceitos. Pensemos nas questes

    colocadas pela biotecnologia, gentica e neurocincias, por exemplo, como uma

    desconstruo emprica (procuraremos mostrar, contudo, que toda desconstruo

    "emprica") do conceito filosfico tradicional de "humanidade" ou mesmo de "natureza". No

    nos parece salutar mais filosofia permanecer imune - um conceito-chave na filosofia de

    Derrida - diante das questes que a cincia levanta, especialmente numa suposta posio de

    "alicerce ltimo", "condio transcendental" ou "discurso pressuposto" sobre o qual as

    investigaes empricas esto erguidas. Derrida repetidamente criticou essa representao da

    filosofia como fundamento. A filosofia que se prope aqui , ao contrrio, auto-imune, isto ,

    aberta desde dentro para invaso do corpo estranho (destrutiva dos seus prprio anticorpos).

    Se a filosofia sem a cincia perde riqueza emprica e a prpria possibilidade de reconstituio

    do discurso transcendental, a cincia, quando eleva o nvel de generalidade discursivo (bem

    ou mal e apesar das denegaes) cai no discurso especulativo. Nenhum privilgio regional

    termos simplificados ultrapassado, tampouco que se trata de um autor "hostil" cincia, quando o verdadeiro exatamente o oposto: Derrida procura pensar na imanncia da cincia contempornea, desconstruindo as categorias filosficas exatamente porque a cincia, desde dentro, provoca essas rupturas a partir das suas descobertas empricas. 7 A expresso vem do uso de Viveiros de Castro da ideia de um "plano ortogonal" oposto na comparao entre perspectivismo, de um lado, e relativismo/universalismo, de outro (VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Mtaphysiques cannibales, p. 20). O deslocamento da tese, como poder ser observado, converge para uma leitura perspectivista (no sentido amerndio) de Jacques Derrida.

  • 13

    aqui: o discurso "filosfico" pode partir de qualquer ponto, emerge na prpria deriva da

    cincia, com o desenrolar do trabalho experimental. Como diz Alva No, "problemas

    filosficos surgem quando quando no sabemos mais como prosseguir, ou no sabemos o que

    estivemos fazendo o tempo todo, e eles surgem em qualquer domnio de qualquer natureza

    (neurocincia, biologia, religio, poltica, moralidade, e, claro, a fsica)"8. Para alm da

    ruptura crtica que a desconstruo representa em relao tradio filosfica, exploraremos

    portanto o potencial especulativo que os textos de Derrida carregam.

    Assim, sem abdicar do termo "desconstruo", a tese procura o retirar do centro do

    pensamento de Derrida, articulando-o de forma diferente na qual os fios condutores so a

    escritura e a dyferena. Com isso, busca atingir o privilgio da linguagem (phone, logos) e do

    humanismo (antropocentrismo) na filosofia do final do sculo XX. A desconstruo do

    humanismo (expressa por exemplo nos pensamentos da mquina e do animal em Derrida)

    parece ademais urgente em face dos graves problemas ecolgicos vivenciados, exigindo uma

    reconstruo das relaes entre humano e "natureza". Separados pela filosofia kantiana e a

    longa tradio da qual deriva, tiveram sua ligao devolvida no cenrio contemporneo por

    uma via inesperada: no o humano que agora quer se separar da natureza, criando uma

    esfera propriamente livre em contraponto ao mundo natural determinista, mas a natureza

    (noo que ser longamente problematizada pela tese) que precisa ser protegida da

    interveno soberana e destrutiva do animal humano. A repolitizao dessa relao, portanto,

    no ocorre pelo naturalismo redutivista ou determinista que assusta a filosofia neokantiana em

    relao aos perigos de erradicar a noo de "liberdade", mas sim pelo outro lado; esse outro

    lado, dado por indiferente para propsitos colonizadores tpicos do ethos eurocntrico, seus

    filsofos iluministas e mesmo boa parte dos outros que, sem corroborarem um iluminismo

    ingnuo, buscam uma "desnaturalizao" do humano, que demanda ateno diante da

    agresso incessante e potencialmente extintiva caso persista o ritmo atual de devastao9. Sem

    poder entrar incisivamente na questo ecolgica, contudo, a tese buscar abrir caminhos para

    a colocao do problema a partir do materialismo experimental que prope.

    8 NO, Alva. A Little Philosophy Is A Dangerous Thing. Disponvel em . Acesso em 3.10.2013 ("Philosophical problems arise when we are not sure how to go on, or not sure what we've been doing all along, and they arise in any domain whatsoever (neuroscience, biology, religion, politics, morality, and, of course, physics)." (Traduo livre). O mesmo vale para a relao da science com as humanities, conforme mostra KIRBY, Vicki. Tracing life: 'la vie la mort', pp. 107-126. 9 Sobre o tema, ver MORTON, Timothy. Ecology without nature, p. 64; COHEN, Tom. Polemos: 'I am at war with myself' or Deconstructiontm in the Anthropocene, pp. 239-257.

  • 14

    1 MATERIALISMOS CONTEMPORNEOS

    "Todos esses cretinos que no sabem decifrar, e acreditariam com

    prazer que eu levo uma vida muito protegida, sem exposio de corpo, sem obsesso e sem terremoto poltico, sem risco militante..."

    (DERRIDA, Jacques. O Carto-Postal).

    "Il est trange en effet qu'on puisse pas 'dchiffrer' la pense de Derrida comme un appel permanent la guerre; cette guerre que lui

    n'aura cess de mener, et de mener contre la guerre elle-mme, lorsqu'elle prend le visage terroriste de l'imprialisme, de la

    rpression, de la torture, de la domination d'une race sur une autre, d'une langue sur une autre, d'un sexe, ou d'un genre, sur un autre, et

    aussi d'une certaine manire de philosopher sur une autre."

    (MALABOU, Catherine. conomie de la violence, violence de l'conomie (Derrida et Marx))

    1.1 CORRELACIONISMO E NOVOS MATERIALISMOS

    "La rflexion transcendental redevient rflexion empirique, et descend jusqu' l'humanism anthropomorphique, elle devient une

    anthropologie suprieure. Kant lui-mme prte le flanc cette reprsentation mdiocre de sa pense".

    (HYPPOLITE, Jean. La critique hglienne de la rflexion kantienne).

    1.1.1 O desafio de Meillassoux

    Se a problematizao, nos seus questionamentos, pressupostos e concluses, est

    muito distante da unanimidade (na verdade, recebeu mais crticas que adeses), inegvel

    que Quentin Meillassoux, em Aprs la finitude, escreveu o primeiro livro do sculo XXI que

    perturba as representaes e posies do atual cenrio filosfico ao caracterizar as principais

  • 15

    correntes da filosofia do sculo XX como "correlacionismos" e propor a ideia de "necessidade

    da contingncia". O que Meillassoux desencadeou com seu trabalho foi o retorno do

    "pensamento especulativo", at ento deixado em segundo plano ou simplesmente

    abandonado em prol da teoria do conhecimento, de modo a muitos chamarem o fenmeno de

    "virada especulativa" ou "virada ontolgica". Para alm das questes interessantes que

    suscita, o retorno s "coisas mesmas" (em contraponto "virada lingustica"), vem

    possibilitando uma recuperao de vrios dos filsofos nem sempre mencionados (Giordano

    Bruno, Diderot, Schelling, Maimon, Whitehead, Sellars) e releitura de outros (Hegel,

    Heidegger, Levinas, Deleuze, Badiou), alm de uma ponte de corte muito mais interessante

    que o habitual entre o mundo anglo-saxnico da filosofia analtica e a chamada "filosofia

    continental", religando-os a partir de uma nova chave de leitura no estritamente

    epistemolgica a partir da recepo de "Aprs la finitude" por filsofos como Graham

    Harman e Ray Brassier.

    ...

    Segundo Meillassoux, o correlacionismo seria a ideia de que no processo de

    conhecimento somente temos acesso correlao, no aos objetos em si mesmos. O que

    caracteriza a filosofia transcendental no pensar a coisa em si, mas to somente a correlao

    que d acesso a ela. H, portanto, uma primazia da relao: o mundo s mundo medida

    que me aparece e eu no tenho sentido seno vis-a-vis com o mundo. A partcula "co" ("co-

    doao", "co-originaridade", "co-presena", etc.) seria a "frmula qumica" da modernidade.

    Correlacionista, portanto, seria toda corrente de pensamento que sustenta o carter no

    ultrapassvel da correlao, tornando impossvel separar ser e pensamento, criando como seu

    efeito (desejado ou colateral) um "Grande Fora"10.

    Inaugurado a partir da filosofia crtica de Immanuel Kant, o correlacionismo teria

    durante os ltimos sculos se transformado de diversas formas, em especial com a

    metamorfose da figura do sujeito solitrio por uma comunidade de interpretao, tornando o

    processo de adequao da representao coisa mesma uma atividade coletiva, dependendo

    10 MEILLASSOUX, Quentin. Aprs la finitude, pp. 18-19.

  • 16

    do consenso de uma comunidade cientfica11. Nada de ruptura aqui: trata-se de mero

    deslocamento do subjetivo para o intersubjetivo sem modificao da matriz correlacional.

    Mas, prossegue Meillassoux, a estrutura do correlacionismo sequer dependeria da primazia na

    relao sujeito e objeto: pode-se encontr-la inclusive na filosofia de Martin Heidegger,

    medida que o pensamento do ser emerge apenas a partir do humano (identificado com o

    Dasein). Mesmo na verso heideggeriana, o correlacionismo no permitiria, portanto, pensar

    o mundo sem ns, um mundo em que o humano simplesmente no exista12.

    A fim de confrontar esse pensamento, Meillassoux busca demonstrar, retomando

    Descartes, a diferena entre qualidades primrias e qualidades secundrias. Para ele, a cincia

    seria capaz de demonstrar a existncia de objetos anteriores existncia humana a partir de

    "dataes absolutas" que seriam possveis exatamente por se focarem nas "qualidades

    primrias" dos objetos. Essa situao nomeada "problema da ancestralidade", a partir do

    qual os cientistas, por meio da medio da radiotividade do urnio, alcanariam a data exata

    de um arqui-fssil, isto , de um fssil totalmente anterior existncia humana. Segundo

    Meillassoux, o correlacionista encontrar-se-ia em apuros para definir essa atividade: medida

    que sujeita a existncia correlao, tornando o ser humano parmetro de medida, somente

    conseguiria admitir, sem recurso metafsica dogmtica, essa datao acrescentando a

    expresso "para o homem" ao final. Assim, o fssil X tem 10.000 milhes de anos "para o

    homem". No entanto, o acrscimo no faria sentido para o cientista, medida que o que

    importa ao arquelogo to-somente o sentido literal do enunciado, isto , a medio do

    objeto em si, independentemente da condio humana. Se em relao s qualidades

    secundrias a cincia pode admitir ser kantiana, em relao s primrias ela francamente

    cartesiana. A medio do arqui-fssil, por isso, no pode ser seno absoluta; do contrrio, ao

    ser relativizada no ponto de vista humano, perderia seu sentido. O arqui-fssil exige que

    "saiamos de ns mesmos"13. Diante disso, Meillassoux extrai a concluso que se tornou alvo

    de muitas controvrsias: no problema da ancestralidade, o idealismo transcendental, ao

    revelar-se incapaz de pensar o mundo sem a presena humana, converge com o idealismo

    subjetivo, mostrando sua debilidade. O correlacionismo, por isso, na medida em que se revela

    incapaz de pensar o "Grande Fora", acaba abrindo espao inclusive ao "fidesmo", posio

    que no seu ceticismo em relao ao mundo externo poderia autorizar inclusive o retorno ao

    11 MEILLASSOUX, Quentin. Aprs la finitude, p. 18. 12 MEILLASSOUX, Quentin. Aprs la finitude, pp. 22-23. 13 MEILLASSOUX, Quentin. Aprs la finitude, pp. 24-38.

  • 17

    criacionismo e o fundamentalismo religioso14. A nica posio sustentvel em relao ao

    trabalho cientfico do arquelogo no problema da ancestralidade, baseada no objetivo a que

    cincia visa, o realismo. Se a datao no for absoluta, independente da correlao humana,

    ela simplesmente imprestvel.

    A fim de solucionar o dilema, Meillassoux prope um "retorno a Descartes",

    descartando a "revanche de Ptolomeu" de Kant (bvia ironia "virada copernicana"15) que

    elidiu a principal contribuio cartesiana: ter demonstrado a capacidade de a matemtica

    pensar a "coisa em si" a partir das suas qualidades primrias. Sem pretender esgotar as teses

    do autor, resumo a ideia central da sua soluo: Meillassoux prope que pensemos o pathos

    da finitude no como defeito do pensamento, mas como propriedade do real nele mesmo,

    saltando da filosofia transcendental para a filosofia especulativa16. Para justific-lo, prope o

    que chama de "princpio da faticidade", contrapondo-o ao "princpio da razo" de Leibniz. A

    partir dele, constataramos a irrazo inerente realidade. A irrazo, contraposta razo

    suficiente, seria uma propriedade ontolgica absoluta, no mais simples finitude do nosso

    saber17. A partir da teoria dos conjuntos de George Cantor e atento ideia de qualidades

    primrias, Meillassoux utiliza a matemtica para pensar a impossibilidade de totalizao

    numrica a partir do transfinito, autorizando-nos pensar a necessidade da contingncia.

    Assim, a nica necessidade derivada do princpio da faticidade a prpria contingncia (ou,

    vista invertida, a proibio da necessidade), possibilitando o acontecimento do totalmente-

    outro, da alteridade absoluta, da criao ex nihilo, do milagre, at mesmo na forma de um

    Deus a vir ou de uma justia messinica que atinja os mortos e vivos18.

    A maioria dos crticos pontuou, comentando "Aprs la finitude", que nenhum

    "correlacionista" subscreveria o "idealismo subjetivo" que Meillassoux lhe atribui. Para eles,

    apenas e talvez Berkeley possa se enquadrar na descrio do filsofo francs, jamais se

    podendo identificar filosofia transcendental e idealismo subjetivo. No sem uma pitada de

    ironia, Meillassoux, quando volta ao tema em conferncia posterior, responde aos crticos

    passando a nomear a hegemonia do correlacionismo no mais como poca de Kant, mas como

    "Era de Berkeley"19. Se o filsofo talvez no seja generoso nas suas anlises, exagerando

    14 MEILLASSOUX, Quentin. Aprs la finitude, pp. 51-68. 15 MEILLASSOUX, Quentin. Aprs la finitude, pp. 163-164. 16 MEILLASSOUX, Quentin. Aprs la finitude, pp. 69-74. 17 MEILLASSOUX, Quentin. Aprs la finitude, pp. 82-91. 18 MEILLASSOUX, Quentin. Aprs la finitude, pp. 95, 114, 139-147, etc.; Spectral Dilemma, pp. 261-275. 19 MEILLASSOUX, Quentin. Iteration, reiteration, repetition: a speculative analysis of the meaningless sign, pp. 3-7.

  • 18

    certos aspectos a fim de defender a ideia de correlacionismo, no se pode dizer que falte a ele

    o esprito do polemos filosfico.

    ...

    A tese subscreve com reservas a crtica ao correlacionismo, seguindo por isso

    intencionalmente uma leitura fraca de Quentin Meillassoux com finalidade comparativa. Ela

    admite a provocao a um cenrio estagnado nas suas premissas e restrito ao debate em torno

    da filosofia da linguagem, mas a questo correlacionismo/especulativo trabalhada sem a

    pretenso do absoluto que Meillassoux deposita na matemtica. Por isso, o pensamento "no-

    correlacional" (ou especulativo) no significar pensamento absoluto nem infinito, nem

    restaurao do universo cartesiano ou "galilesmo", nem privilgio das estruturas matemticas

    ou das qualidades primrias. Veremos como essa recusa est ligada a uma suspeio do

    realismo enquanto reificao das formas, subscrevendo mais o lado "materialista" que o

    "realista" da crtica. Nessa leitura fraca, portanto, o "correlacionismo" ser tomado apenas

    com o sentido de filosofia dos dois gaps kantianos: a ciso entre coisa-em-si e fenmeno,

    criando o "Grande Fora" (e por consequncia enclausurando a filosofia no mundo da

    linguagem), e a ciso humano-natureza, que cria a imagem do real como determinao

    newtoniana contrastando com a liberdade humana (chancelando o antropocentrismo). Para a

    maioria dos autores mais interessantes da "virada ontolgica" ou "virada especulativa"

    (Catherine Malabou, Steven Shaviro, Markus Gabriel, Eduardo Viveiros de Castro, Bruno

    Latour, Adrian Johnston etc.), essa chave de leitura alis a que vem preponderando.

    Provisoriamente, a deciso ser tomada como arbitrria. Ao longo do texto tentarei mostrar as

    razes necessrias para ela20.

    20 Para uma crtica do correlacionismo a partir desse referencial, NUNES, Rodrigo. O que so ontologias ps-crticas? Disponvel em . Acesso em 10.11.13; GABRIEL, Markus. Transcendental Ontologies, pp. vii-xxxii. Uma viso geral da "virada especulativa" pode ser encontrada em BRYANT, Levi et al. The Speculative Turn: continental materialism and realism. Melbourne: re.press, 2011; BRASSIER, HARMAN, MEILLASSOUX & GRANT, Speculative realism, pp. 307-449; HARMAN, Graham. The current state of speculative realism, pp. 22-28.

  • 19

    1.1.2 A interpretao correlacional de Derrida

    No h dvida que na dita "virada especulativa" os pensamentos de Deleuze,

    Whitehead, Badiou, Hegel e Schelling - apenas para dar alguns exemplos - so referncias

    constantes, medida que nunca se restringiram ao pensamento correlacional, fazendo uma

    filosofia da natureza (ou do real, da vida etc.). Derrida, ao contrrio, no apenas bem poucas

    vezes mencionado, como inclusive frequentemente referido ao contrrio (entendendo-se o

    "ps-estruturalismo", do qual o filsofo seria o principal representante, como o prprio

    "correlacionismo"). Seria ele ento o exemplo privilegiado de pensamento correlacional?

    Certamente no o caso. No entanto, no necessrio muito esforo para perceber que a

    maioria absoluta dos escritos em torno do autor realmente enquadra-se no "correlacionismo".

    H pelo menos duas vias em que esse movimento se executa.

    Pela primeira, Derrida seria um "anti-realista", no limite um "relativista", a partir do

    qual toda tentativa de estabelecer o "representacionalismo" falharia. Derrida, pensador da

    "disseminao", faria uma espcie de ultrafenomenologia que (at certo ponto

    paradoxalmente) abriria mo do sentido ao torn-lo indecidvel. Nenhum sentido poderia se

    fixar definitivamente e permaneceramos para sempre no interior de jogos textuais (free play)

    sem conexo com o real. Essa corrente, representada sobretudo pela "Escola de Yale" e seus

    descendentes, interpreta os conceitos de texto e de escritura literalmente21. Derrida

    aprofundaria a virada lingustica at o ponto em que o prprio ato de escrever no teria

    qualquer fora, nenhum referente possvel, todo texto seria um texto literrio em um certo

    sentido22.

    Espelhando essa posio, o perspicaz texto de Richard Rorty chamado "Derrida um

    filsofo transcendental?" tornou-se deveras conhecido e fruto de inmeras polmicas.

    Inegvel ter ele a capacidade de sintetizar o que, dentro da tradio correlacional, est

    realmente em jogo na interpretao de Derrida na querela ortodoxos/ps-modernos. Segundo

    Rorty, a interpretao de Derrida entre os seus "admiradores americanos" estaria dividida em

    duas correntes: de um lado, os que vem em Derrida algum que inventou um esplndido

    modo irnico de escrever sobre a tradio filosfica; de outro, aqueles que percebem nele 21 Ver, p.ex., BLOOM, Harold; DERRIDA, Jacques; DE MAN, Paul; MILLER, J. Hillis; HARTMAN, Geoffrey. Deconstruction and criticism, passim. 22 HODGES, Aaron. Martin Hgglund's Speculative Materialism, p. 87.

  • 20

    rigorosos argumentos para surpreendentes concluses filosficas. Admitindo-se no primeiro

    grupo, Rorty qualifica, por exemplo, Norris, Culler e Gasch no segundo23. Segundo ele, o

    local da polmica seria se Derrida um filsofo "como Kant, Hegel e Heidegger", ou seja,

    algum que busca as "condies transcendentais" do conhecimento, ou simplesmente um

    "nominalista" que contribui com suas "fantasias privadas" a fim de criar novos vocabulrios

    capazes de se oferecer como alternativo ao vocabulrio tradicional filosfico? Rorty prefere a

    segunda alternativa: pensar Derrida como algum capaz de inventar novas alternativas de

    vocabulrio, rejeitando inclusive a existncia de algo "grande" como o "logocentrismo"24.

    Segundo ele,

    Em tal situao, no pode haver nenhum espao lgico pr-existente, nenhum "critrio estrito" para escolher entre essas alternativas. Se houvesse, a questo acerca das "condies de possibilidade" se tornaria, automaticamente, uma questo meramente "positiva", e no propriamente transcendental ou reflexiva. Uma vez mais, eu gostaria de insistir que no se pode ter esses dois caminhos25.

    Apontando na crtica de Habermas a Derrida (em "O Discurso Filosfico da

    Modernidade") uma estratgia semelhante que Rudolf Carnap adotou em relao a Martin

    Heidegger, Rorty procura adotar uma posio "ecumnica": ambas estratgias (a

    "argumentativa", de Habermas e Carnap, e a que "resolve problemas", de Heidegger e

    Derrida) seriam vlidas na filosofia. Contudo, afirma em seguida que para nominalistas como

    ele, Tugendhat e Wittgenstein, no h como pensar um no-proposicional ao mesmo tempo

    argumentativo; logo, Derrida no seria um autor argumentativo. Mas esse lado "no-

    filosfico" no seria um demrito, pois o que se precisaria hoje em dia justamente mais

    "escritas" (fices, fantasias literrias, novas estrias etc.) e menos filosofia. Por isso, a

    ontologia (preocupao dos derridianos "rigorosos" e seus rivais analticos) poderia ser

    substituda, nesses tempos ps-filosficos, por uma pragmtica da linguagem, ainda que tal

    23 RORTY, Richard. Is Derrida a transcendental philosopher?, p. 235. Essa separao ir o levar a dividir o "intelectual pblico" e o "ironista privado", Filosofia como gnero de escrita: um ensaio sobre Derrida, pp. 151-172); A prioridade da democracia para a filosofia, pp. 251-254; Liberalismo burgus ps-moderno, pp. 263-270; e especialmente MOUFFE, Chantal (org.). Desconstruccin y pragmatismo, volume no qual, aps Chantal Mouffe, Simon Critchley e Ernesto Laclau, o prprio Derrida responde a Rorty (DERRIDA, Jacques. Notas sobre desconstruccin y pragmatismo, pp. 151-170). Rorty retoma as questes filosficas, reafirmando as teses, em p.ex. Desconstruo e Artimanha e Dois significados de 'logocentrismo': uma rplica a Norris). Finalmente, o mais completo trabalho a equacionar a relao Rorty/Derrida de FABBRI, Lorenzo. The domestication of Derrida: Rorty, pragmatism and deconstruction, passim. 24 RORTY, Richard. Is Derrida a transcendental philosopher?, pp. 236-237. 25 RORTY, Richard. Derrida um filsofo transcendental?; Is Derrida a transcendental philosopher?, p. 239.

  • 21

    pragmtica considere a linguagem simplesmente como uma "ferramenta" que utilizamos para

    propsitos especficos (por exemplo, cindir o tomo, convencer a populao, curar o cncer

    etc.). Colocada a questo nesses termos, o que Derrida faria com palavras como "diffrance"

    ou "iterabilidade" seria simplesmente repetir o gesto Peirceano-Wittgensteniano anti-

    cartesiano, ou seja, pensar o sentido como dependente do contexto26.

    Rorty, ao remeter a filosofia poltica de Derrida para o mbito "privado" e tomar suas

    questes filosficas como redutveis ao pragmatismo no contexto da filosofia da linguagem,

    buscando ao final substituir a "objetividade" pela "solidariedade", na realidade faz um gesto

    incuo nas suas boas intenes conciliatrias: repete o preconceito positivista de que a

    "objetividade" seria propriedade das concepes logicistas e cientificistas, desenhando uma

    imagem tradicional da realidade, e relega para o mbito "no-srio" (o "literrio", "privado",

    "edificante"), exatamente onde querem jogar os positivistas, o pensamento de Derrida. Quer

    dizer: diante de um contexto que j em si no neutro nem simtrico, mas mediado por

    violncia e resistncia transformao, Rorty procurava contentar todas as partes, deixando

    ao final as coisas nos seus mesmos lugares.

    De modo mais rigoroso (mas ainda no mesmo eixo), Lee Braver, ao qualificar Derrida

    como "anti-realista", reafirma a dicotomia, mantendo ainda a discusso em um nvel

    epistemolgico e tratando a metafsica como algo alrgico do qual a filosofia se deve ser

    descontaminada. A disputa entre as tradies analtica e "continental" seria redutvel disputa

    entre o realismo analtico e o anti-realismo continental. Segundo Braver, o realismo poderia

    ser explicitado a partir das seguintes premissas: (1) independncia (tese metafsica: um

    conjunto de objetos existe independente de ns); (2) correspondncia (tese epistemolgica:

    coincidncia entre ideias, linguagem, estados mentais etc. com coisas, realidade etc.) (3)

    unicidade (h apenas um modo correto de capturar a estrutura da realidade); (4) bivalncia

    (toda proposio falsa ou verdadeira); (5) conhecedor passivo (a mente percebe a realidade

    como ela , independente do sujeito)27. Assim, contrariando os postulados da tradio,

    Derrida advogaria uma concepo anti-realista de verdade. O modelo realista, ao identificar-

    se com a metafsica da presena, seria contrastado com o "jogo dos significantes" (play of the

    signifiers): "como Heidegger e Foucault", Derrida situaria o texto dentro de um sistema que

    estrutura suas ideias, colocando entre parnteses sua verdade que s pode ser julgada nos

    confins desse sistema. No poderamos, portanto, ir alm dos limites do textos: todo debate

    26 RORTY, Richard. Is Derrida a transcendental philosopher?, p. 240. 27 BRAVER, Lee. A Thing of this World: A History of Continental Anti-Realism, pp. 14-23.

  • 22

    acerca da realidade no poderia a acessar diretamente, mas somente pode tomar lugar em um

    contexto ou outro. Nenhum dos postulados realistas, de (1) a (5), seria confirmado nessa

    descrio28. Derrida no negaria a realidade, mas "pontuaria que nossa relao com qualquer

    tipo de realidade inevitavelmente mediada por todos os tipos de influncias interconectadas

    de modo que nunca poderamos compreender quem est completamente correto acerca

    dela"29. Em sntese: "no h nada fora do texto porque nossa experincia sempre

    linguisticamente mediada; isso faz de ambos, sujeito e objeto, efeitos da linguagem, ao invs

    de entidades que a precedem de um fora para domin-la ou ancor-la"30.

    O trabalho de Braver particularmente interessante por representar todo o cenrio

    precisamente a partir da "virada copernicana" de Kant31, delimitando com clareza o que

    Meillassoux qualifica como modelo "correlacional" e confirmando a imagem que o ltimo

    desenha do cenrio filosfico contemporneo. Embora certamente adequado e produtivo para

    questionar o realismo direto que domina o cenrio em que se posiciona, Braver acaba, no

    intuito de traduzir para a linguagem da filosofia analtica o pensamento derridiano, mutilando-

    o na forma correlacional. No questiono que as contribuies de Rorty e Braver podem ter

    sido teis para desbravar preconceitos e iniciar o trabalho de traduo dos idiomas filosficos,

    porm parece necessrio ir adiante na ousadia transcriadora. Conforme veremos, a insero da

    problemtica francesa e seu contexto histrico ajudar a clarear um pouco mais o que estava

    em jogo e fica nublado pelo excessivo etnocentrismo da filosofia norte-americana32.

    ... 28 BRAVER, Lee. A Thing of this World: A History of Continental Anti-Realism, pp. 443-444. 29 BRAVER, Lee. A Thing of this World: A History of Continental Anti-Realism, p. 446. Ainda, idem, p. 450, 452, 465. O livro de Braver, no entanto, logo em seguida enreda-se na segunda interpretao que logo abaixo abordamos, sustentando, a partir da relao com Levinas, a alteridade irredutvel ao conceito para contrabalanar o jogo dos significantes (idem, p. 475). 30 "There nothing outside the text because our experience is always linguistically mediated; this makes both subject and object effects of language, rather than entities that precede it from the ouside to master or anchor it" - BRAVER, Lee. A Thing of this World: A History of Continental Anti-Realism, p. 495. 31 BRAVER, Lee. A Thing of this World: A History of Continental Anti-Realism, pp. 3-7 e 497-514, ainda que divida, mais tarde, o "paradigma kantiano" e o "paradigma heideggeriano" (idem, p. 9). Uma interessante anlise do livro de Braver exatamente sob essa chave de leitura (correlacionismo/realismo) est em HARMAN, Graham. A festival of anti-realism: Braver's history of continental thought, especialmente 208-209. 32 Um exemplo desse problema de traduo pode ser exemplificado no texto de David Golumbia acerca de Derrida e Quine. Apesar de no ter objees comparao, Golumbia tensiona o uso determinado que Quine faz do termo demarcatrio "filosofia" em relao a um uso "histrico" que Derrida faz. Para tanto, cita, por exemplo, Timpanizar. Mas esse texto na realidade uma resposta no ao problema da "filosofia", e sim exatamente o inverso: trata-se de uma defesa da manuteno do espao imanente da "filosofia" contra os tericos, especialmente estruturalistas, da "no-filosofia" (das cincias humanas, p.ex.) no contexto francs dos anos 60 e 70. A transposio das questes que Derrida coloca para o mbito da filosofia analtica, portanto, deve ser cautelosa: GOLUMBIA, David. Quine, Derrida, and the question of philosophy, pp. 163-186.

  • 23

    No entanto, mesmo descartada essa interpretao correlacional, ainda resta outra via.

    Mais prxima de Levinas, prope que no se trata de uma imanncia nos textos (tambm

    vistos de modo literal), mas de um choque com a alteridade irredutvel que no se deixa

    reduzir ao pensamento. Simon Crichley chama essa de "terceira onda" da recepo do

    pensamento de Derrida, relacionando-a com a "virada tica" dos escritos da dcada de 90, a

    comear sobretudo por "Espectros de Marx" e "Fora de Lei"33. Nesse caso, Derrida estaria

    mais prximo tanto da tica da alteridade quanto da hermenutica filosfica, destacando os

    resduos que sobram de toda interpretao textual. Critchley chega a postular uma "homologia

    emergente" entre os pensamentos de Emmanuel Levinas e Jacques Derrida, contrapondo ao

    "nihilistic textual free play" de Paul De Man o papel tico que a desconstruo significa

    enquanto exigncia de justia infinita ao outro34. O prprio autor sintetiza sua hiptese: "meu

    argumento que um imperativo categrico incondicional ou momento de afirmao a fonte

    da injuno que produz a desconstruo e produzida ao longo da leitura desconstrutiva"35.

    Critchley relaciona clausura e totalizao, apresentando a desconstruo como abertura

    alteridade. Pode-se perceber aqui a influncia, portanto, no s de Levinas (e seu discpulo

    Jean-Luc Marion), mas tambm do "pensamento fraco" de Gianni Vattimo, com quem

    Derrida dividiu o protagonismo, por exemplo, no seminrio realizado na Ilha de Capri sobre a

    religio e acabou se tornando referncia (at chegar ao nvel bizarro de se falar em uma

    terceira virada: a "virada religiosa").

    Outro autor desse eixo interpretativo John Caputo, que prope a leitura da

    desconstruo como "hermenutica radical", tornando-se rival do realismo porque "jamais se

    cansaria de contar (...) aquela histria contada por Nietzsche, de como o mundo real tornou-se

    fbula"36. Lendo Husserl luz de Kant e pensando a coisa mesma de modo pr-hegeliano

    33 CRITCHLEY, Simon. The ethics of deconstruction, pp. 1-4. Critchley considera como "primeira onda" a recepo pela Escola de Yale (De Man, Bloom, Hartman, Hillis Miller) e como "segunda onda" a recepo filosfica de Gasch, Irene Harvey, John Llewelyn e Christopher Norris. 34 CRITCHLEY, Simon. The ethics of deconstruction, pp. 9-20 e 31- 44. 35 ("My argument is that an unconditional categorial imperative or moment of affirmation is the source of the injunction that produces deconstruction and is produced through deconstructive reading") - CRITCHLEY, Simon. The ethics of deconstruction, p. 41, traduo livre, grifos no original. 36 Na realidade, o problema parece j comear na leitura do pensamento de Nietzsche, porque a estria que o filsofo da Basileia conta no do fim do mundo real, mas sim do "mundo real", isto , de como o mundo real sobrepuja o mundo suprassensvel e inteligvel das formas platnicas, direcionando-nos para um pensamento em que esse "mundo real" desaparece e s resta o mundo real, ou seja, o nosso (NIETZSCHE, Friedrich. Crepsculo dos dolos, p. 48: "O Mundo-verdade acabou abolido, que mundo que nos ficou? O mundo das aparncias? Mas no; com o Mundo-verdade abolimos o mundo das aparncias!"). Em La vie la mort, Derrida ir pontuar exatamente esse aspecto na leitura de Heidegger em torno de Nietzsche: tudo depende do "pensamento do meio

  • 24

    (Caputo deplora o idealismo alemo), ele resume assim, j no incio do texto, sua leitura

    correlacional de Derrida:

    Novamente, se, por realismo, entende-se que o alcance do conhecimento se estende at a "coisa mesma", a desconstruo replicar que a coisa mesma, la chose mme, sempre escapa (drobe), sempre se furta ao jogo de significantes pelo qual a assim chamada coisa real significada em primeiro lugar37.

    E, mais adiante, resume lapidarmente a posio que aqui descrita:

    Neste contexto da objeo feita desconstruo - segundo a qual a desconstruo nos confinaria em alucinaes, iluses ou na priso da subjetividade -, o que a filosofia clssica chama de "realidade" e "coisa real" (como oposta alucinao) corresponderia ao tout autre; o amor e respeito por ele o que se trata na desconstruo. Amar o tout autre, que a fenomenologia chama de "transcendncia", amor e respeitar a sua inacessibilidade38.

    Em "Desmitificando Heidegger" podemos visualizar essa "compensao" no jogo

    "hermenutica radical/compromisso tico". Aps criticar o "mito do ser" no pensamento

    heideggeriano, Caputo prope em contraponto um pensamento da justia hiperblica em

    Derrida e Levinas. Para ele, a partir do ltimo perodo de Derrida seria possvel perceber que

    a desconstruo " concebida como o habitar o fosso entre a filosofia tico-poltica e a

    fragilidade da aco"39 e "toda noo que est por trs da justia consiste em no excluir

    ningum do reino, o que implica que o reino no se encontre num local especfico"40.

    dia", quando os conceitos hipostasiados da metafsica, inclusive o ser, no apenas caem sob suspeio, mas se reescrevem (DERRIDA, Jacques. La vie la mort, s/p (item 9).) 37 CAPUTO, John. Por amor s coisas mesmas: o hiper-realismo de Derrida, p. 29. Ver ainda, CAPUTO, John. Deconstruction in a Nutshell: a commentary, passim. 38 CAPUTO, John. Por amor s coisas mesmas: o hiper-realismo de Derrida, p. 38. Como se ver na tese, nada pode ser mais distante do pensamento derridiano que essa afirmao. Primeiro, porque ele no admite transcendncia como inacessvel; segundo, porque nada est a salvo, e o desejo de pureza, de "salvar" o outro (a indenidade da religio), exatamente o que Derrida identifica com o pior (DERRIDA, Jacques. Foi et savoir, pp. 9-10 e 38-49). O texto em que Caputo baseia-se com menes diretas, "Salvo o Nome", est entre os mais criptografados e indiretos de Derrida, devendo passar por toda uma decifrao a fim de decodific-lo. Por isso, a resposta violenta de Hgglund, qualificando como totalmente insustentvel a leitura de Caputo, compreensvel (HGGLUND, Martin. Radical Atheism: Derrida and the time of life, pp. 134-143, 146-163). A posio de Caputo corresponde exatamente ao que Meillassoux, de forma ligeiramente caricata, descreve como "fidesmo" (Aprs la finitude, p. 61-67). Nesse ponto, subscrevo as crticas de Hgglund e Meillassoux s teologias negativas, de Vattimo a Marion, em especial na assimilao ao pensamento de Derrida (ver como Horwitz, embora defendendo a teologia negativa contra a prpria desconstruo, demonstra como Derrida no a subscrevia: HORWITZ, Noah. Reality in the name of God, pp. 114-115). 39 CAPUTO, John. Desmitificando Heidegger, p. 264. 40 CAPUTO, John. Desmitificando Heidegger, p. 265.

  • 25

    Finalmente,

    As histrias de justia tm a ver com o radicalmente singular. claro que a singularidade radical no , estritamente falando, possvel; impossvel abordar o singular de uma forma absolutamente singular. A narrao de uma histria, como qualquer forma de discursividade, resvala inevitavelmente, estruturalmente, para o elemento do universal, do itervel e do repetvel. Mas sempre de modo a lembrar-nos de forma persistente o singular, a dirigir-nos de forma forada para o radicalmente singular. As histrias acerca da justia apelam incessantemente ao singular, mesmo que deslizem inevitavelmente para o universal41.

    Parece ntido que essa uma interpretao do pensamento de Derrida vista do ngulo

    de Levinas42. Suavizando a filosofia do "impossvel" deste, que se aproximaria de uma ideia

    inalcanvel de santidade, Caputo "contamina-a" com Derrida, criando uma espcie de ideia

    regulativa para amenizar sua exigncia terrvel43. Dupla operao de balanceamento, portanto:

    de um lado, Caputo equilibra o "free play" ou o "anything goes" do pensamento de Derrida

    com uma "indesconstrutibilidade da justia"44, lendo suas ltimas obras desde o ngulo da

    proximidade com Levinas; de outro, rejeita o ideal de santidade de Levinas a partir da

    "contaminao" derridiana, suavizando a exigncia tica impossvel numa relao de ideal

    regulativo a ser posto em prtica dentro do possvel, mas visando ao impossvel.

    Trata-se visivelmente do reflexo do pensamento de Gianni Vattimo projetado sobre

    ambos, Levinas e Derrida: depois de toda a geometria e balanceamento, eles terminam

    convergindo para a "religio fraca", pautada na tica, que o filsofo italiano prope como

    alternativa "ps-moderna" em relao ao racionalismo e idolatria verdade dos modernos. O

    prprio Caputo admite se tratar de um "ps-modernismo", mas diferencia as "filosofias ps- 41 CAPUTO, John. Desmitificando Heidegger, p. 267. 42 O curiossmo que John Caputo, apesar do que declara, parece estar sempre mais perto de Levinas que de Derrida, argumentando com o ltimo apenas para suavizar o purismo (em determinados momentos) do primeiro. Como veremos, a estrutura do pensamento de Derrida diferente daquela de Levinas, e isso no apenas pelas razes que Caputo utiliza. Desse modo, talvez de modo no-intencional Caputo, embora explicitamente esteja longe de Levinas, em termos estruturais esteja muito mais prximo dele que de Derrida (ver, por exemplo, CAPUTO, John. Por amor s coisas mesmas: o hiper-realismo de Derrida, p. 32; "No pensamento de Derrida, que tem algo de levinasianismo generalizado...", p. 36; "O realismo sem realismo de Derrida corresponderia sua tica sem tica, sua tica alm da tica, eticidade mesmo da tica...", p. 43 etc.; idem, Desmitificando Heidegger, p. 260, 292 etc.). Diga-se em favor de Caputo que o prprio Derrida, para alm de momentos ambguos, na especfica conferncia que concedeu na Villanova University, aproximou seu pensamento em demasia de Levinas com propsitos nitidamente pedaggicos (o prprio Caputo reconhece, no seu comentrio conferncia, que Derrida desejava demonstrar sobriedade) (DERRIDA, Jacques. The Villanova Roundtable. In: Deconstruction in a Nutshell, pp. 14-15). Esse tipo de expediente pedaggico reconhecido por ele em palestra no Canad, onde tambm aproximou seu pensamento muito de Levinas (falando da verticalidade), mas em seguida, respondendo a pergunta, coloca que "no seminrio eu complico um pouco as coisas" (DERRIDA, Jacques. Uma certa possibilidade impossvel de dizer o acontecimento, pp. 250-251). O mesmo se passa em Fora de Lei (DERRIDA, Fora de Lei, pp. 42-43). 43 CAPUTO, John. Desmitificando Heidegger, pp. 280-286. 44 CAPUTO, John. Desmitificando Heidegger, pp. 268-273.

  • 26

    modernas de obrigao (Levinas, Derrida e Lyotard) e as filosofias de desculpabilizao e

    extravazamento de Deleuze, Guattari e Baudrillard"45. Toda referncia, portanto, s teses de

    Vattimo e Rorty, filsofos do "pensamento fraco" por excelncia, embora implcita, ntida,

    fazendo-se ver inclusive pelo estilo de argumentao. A diferena em relao ao filsofo

    italiano parece estar apenas na nfase na alteridade, no tout autre, e um certo anti-

    heideggerianismo.

    O resultado dessas leituras que Derrida torna-se praticamente indiscernvel de

    Levinas. O deslizamento do indecidvel, mais comum aos primeiros trabalhos de Derrida,

    torna-se "julgvel" a partir dos indesconstruveis, afastando o autor de qualquer "relativismo".

    O Derrida do "jogo" (play) compensado pelo Derrida da "tica". Com isso, atribui-se ao

    autor ou uma mudana de posio (nunca assumida)46 ou uma posio autocontraditria,

    medida que exatamente esse ponto que ele criticado em Levinas no ensaio "Violncia e

    Metafsica" (ver adiante). Se existisse, a "virada tica" seria, no fim das contas, a assuno de

    que "a tica filosofia primeira", fazendo do indesconstruvel aquilo que escapa areia

    movedia que costuma caracterizar seus textos. E articularia os temas da totalidade e

    alteridade quase exatamente nos mesmos moldes que Levinas, apenas acrescentando a

    desconstruo, curiosamente, como espcie de mtodo, apesar de seguidamente os prprios

    filsofos dessa corrente negarem esse tipo de associao. Buscarei mostrar, diretamente

    contra essa corrente (reconhecendo-a, portanto, como bem mais convincente que a primeira),

    que em Derrida a tica no filosofia primeira simplesmente porque no existe filosofia

    primeira, e tampouco as relaes entre alteridade e totalidade so, em Derrida, contrapostas

    como imanncia e transcendncia ou tica e ontologia. Essas ideias so as primeiras a ser

    desconstrudas a partir da noo de escritura. Assim, o modo com que Derrida articula a

    questo, embora obviamente em relao com Levinas, completamente distinto.

    O objetivo fundamental desta tese, portanto, seguir uma outra via que no se

    confunde com nenhuma das duas anteriores. Ela parte do princpio que a filosofia de Derrida

    no um estrito correlacionismo, e que as questes epistemolgicas (includa a questo da

    linguagem) so questes derivadas de outras mais amplas, que seriam, na linguagem clssica,

    questes ontolgicas ou, adotando a terminologia de Meillassoux, "especulativas". Em outros

    termos: enquanto para ambas correntes dominantes (o free play e a "tica da deconstruo")

    45 CAPUTO, John. Desmitificando Heidegger, p. 260. 46 DERRIDA, Jacques. "Outrem secreto porque outro (PM), pp. 347-348.

  • 27

    Derrida seria um pensador da linguagem e seus limites47, a tese defender o ponto de vista

    que a linguagem no seno um caso dentro de uma filosofia do real como escritura.

    Certamente essa interpretao tem algum efeito de aprs coup em relao s teses de

    Meillassoux, mas procura se arvorar na posio de uma leitura fiel e "interna" aos textos do

    autor. O pensamento de Jacques Derrida, mesmo quando se debrua sobre temas como a

    literatura e a poesia, sempre uma filosofia do real-material, e no um "idealismo textual",

    "hermenutica radical" ou "filosofia da linguagem". Por isso, aproximarei Derrida do

    materialismo, posio especulativa que est em permanente vnculo com o real, sem poder

    recorrer a qualquer tipo de duplicao platnica para diz-lo. O eixo de debate na Frana dos

    anos 60 no era, tal como nos EUA, realismo e anti-realismo, mas sim idealismo e

    materialismo. Embora seja fundamental na filosofia derridiana, a linguagem simplesmente

    um material plstico no qual ele trabalha experimentalmente, demonstrando no prprio texto -

    a partir da sua performatividade - a polivocidade do real.

    1.1.3 O materialismo especulativo de Hgglund

    Apesar de a abundncia de escritos sobre Jacques Derrida praticamente inviabilizar

    hoje em dia um total conhecimento do campo de estudos em torno da sua obra, poderamos

    dizer com algum risco no apenas que Derrida apenas ocasionalmente tocou no tema, como

    que, salvo at bem pouco tempo atrs, a comparao entre Derrida e o materialismo era bem

    escassa e subestimada entre os intrpretes. Depois da primeira leva de trabalhos na prpria

    Frana ainda nos anos 60 e incio dos 70 - vinculados a Tel Quel e outros - e o "materialismo

    anmalo" de Paul De Man, so raros os textos nesse sentido, podendo-se destacar apenas,

    como reconhecido na biografia de Benot Peeters, a posio relativamente isolada de

    Catherine Malabou e Bernard Stiegler em torno da aproximao com Marx nos anos 80 e 47 Diz, ainda como outro exemplo, Lawlor: "At the very moment in which I undergo the aporia, I cannot ask what language is (the phenomenological question) or why language is (the ontological question), since these questions ask for an essence, all of which, according to Derrida, are themselves made possible by language" (LAWLOR, Leonard. Derrida and Husserl, p. 6). E, de modo ainda mais suave, Fernanda Bernardo: "Insistimos: da a impossibilidade de sair da linguagem, da idealidade ou do sentido. Desde que o signo apareceu, isto , desde sempre, no h qualquer hiptese de encontrar algures a pureza da 'realidade', da 'unicidade', etc; valores agora inscritos na estrutura do re-envio e da difer-ena" (BERNARDO, Fernanda. O dom do texto, p. 166).

  • 28

    sobretudo o brilhante livro, leitura com a qual a tese mais se identifica (e estranhamente

    pouco citado, apesar de ser verdadeira revoluo no campo ainda em 1993) de Christopher

    Johnson, Writting and System in the Philosophy of Jacques Derrida48. As relaes, contudo,

    foram reaquecidas aps Espectros de Marx e recentemente, a partir da virada

    especulativa, os escritos sobre o tema comearam a ganhar muito flego. Durante a pesquisa,

    surgiram diversos novos textos fazendo essas conexes, com o destaque para Timothy

    Morton, Tom Cohen, Aaron Hodges, Paul Livingston, Henry Staten e Vicky Kirby, alm dos

    prprios Catherine Malabou, Christopher Johnson e Bernard Stiegler, segundo suas

    respectivas reas de interesse.

    O principal candidato contemporneo a ocupar o espao de leitura materialista no-

    correlacional Martin Hgglund, no seu seminal "Radical Atheism: Derrida and the

    autoimmunity of life"49. Para alm de tantos mritos, o livro desenvolve at o limite o tema da

    finitude, mostrando a errncia finita como constituio imanente - ontolgica, poder-se-ia

    dizer - do pensamento de Derrida, e por isso o aproximando do materialismo, ainda que no

    48 Se os trabalhos de Stiegler e Malabou so preciosos e penetrantes, eles contudo j esto marcados, desde sempre, pelos traos do pensamento dos prprios filsofos, no se restringindo a uma hermenutica imanente da obra derridiana. Nesse sentido, a obra de Christopher Johnson, de todas as lidas na pesquisa, o mais preciso apanhado do pensamento de Derrida. Embora tenha lido muito tardiamente o livro (na etapa finalssima da pesquisa, em outubro de 2013), a identificao com a leitura de Johnson foi total, tendo este abordado, j em 1993, temas que apenas hoje esto em evidncia como "ontologia", "sistema" e "materialismo" em Derrida, contrariando com isso a doxa de parte dos intrpretes (os adeptos do free play e do "textualismo"), para quem seria proibido falar essas palavras "metafsicas", e as leituras mais tmidas, que apenas procuram adequar Derrida aos standards de outras tradies a fim de "domestic-lo". Uma das explicaes para isso deve ser no apenas a proximidade de Johnson com filsofos que espelham essa tradio, mas pouco conhecidos, como Michel Serres (que, apesar de Johnson no mencionar, foi colega de Derrida como estudante na ENS), revelando os links com o materialismo atomista que a filosofia francesa, a partir da introjeo da termodinmica e da ciberntica, recuperou, mas igualmente pela meno a um texto que foi fundamental para a tese, o trabalho de Franois Dagnognet sobre Hyppolite, figura que Johnson identifica, praticamente solitrio, como central nas transformaes do cenrio da poca (JOHNSON, Christopher. System and writting in the philosophy of Jacques Derrida, p. 202, nota de fim 12). 49 As reservas ao livro se do fundamentalmente em dois flancos: primeiro, a leitura que Hgglund realiza de Levinas, parecendo no compreender os elementos da tica da alteridade (que confundida com uma teologia do Um, justamente seu oposto) (esse o nico ponto da polmica em que subscrevo CAPUTO, John. The Return of Anti-Religion, pP. 32-124 (especialmente p. 56; para a resposta - no-convincente nesse ponto - de Hgglund: The radical evil of deconstruction: a reply to John Caputo, pp. 126-150). Segundo, sua ideia de que as teses de Derrida so puramente descritivas, motivo atacado por quase todos os autores da revista recentemente dedicada a Radical Atheism. Se Hgglund desafia a tradio filosfica em nvel ontolgico, postulando uma finitude que simplesmente elimina o desejo de imortalidade, mantm-se em nvel estritamente tradicional em nvel epistemolgico, sem atentar, por exemplo, para a prpria desconstruo que Derrida efetua em torno da oposio constativo e performativo, que j seria suficiente para duvidar dos seus enunciados em torno da pura descrio. Ademais, tentarei mostrar porque equivocado trabalhar o pensamento de Derrida como lgica, pois a escritura ultrapassa o gap emprico/transcendental. Por outro lado, apesar das crticas, possivelmente trata-se de um dos melhores livros escritos em torno da obra de Derrida, como tantos j comentaram. Ver as crticas, que subscrevo na maioria, de JOHNSTON, Adrian. Life terminable and interminable: the undead and the afterlife of the afterlife, pp. 147-189; NAAS, Michael. An Atheism that (Dieu merci!) still leaves something to be desired, pp. 45-68; HADDAD, Semir. Language remains, pp. 127-146.

  • 29

    livro o ltimo venha retratado como "atesmo"50. Hgglund ataca o "desejo de imortalidade"

    da tradio mostrando como a finitude radical a condio fundamental de qualquer das

    estruturas que Derrida investigou (por exemplo, hospitalidade, dom, justia). Esta tese no

    apenas radicaliza o motivo de Hgglund, como pretende encontrar estruturas ainda mais

    amplas e gerais que abrangem toda problemtica da auto-imunidade. Ela devora esse motivo

    como uma parte da sua escritura. Nesse sentido, como j dito na introduo, ela cobia o rigor

    com que Hgglund pretendeu apresentar a lgica interna dos escritos de Derrida.

    Comentando o trabalho de Hgglund, Aaron Hodges faz uma distino interessante

    entre dois tipos de materialismos: de um lado, o materialismo prtico ou polmico, tpico de

    um estilo de pensamento marxista, que comea por indagar as condies histricas de

    experincia de uma teoria em primeiro lugar, recusando-se a aderir aos protocolos

    sistemticos idealistas e intervindo, ao contrrio, no contexto da prtica da filosofia mesma

    (Hodges coloca Althusser e Jameson como modelos); de outro, o idealismo-materialista

    (Adorno, Zizek) aceitaria a impossibilidade de pensar a matria como tal (injuno idealista

    que viria de Kant), mas exatamente para abrir a filosofia para o momento no-conceitual.

    Hodges assinala que os "novos materialismos" emergentes no sculo XXI (Brassier,

    Meillassoux, o prprio Hgglund) surgem na crtica a ambos modelos: "se o absoluto - o que

    , em si mesmo, radicalmente separado e indiferente existncia humana - pode ser pensado

    no-metafisicamente, ento as pressuposies de uma filosofia que subjuga seus postulados

    de verdade ou objetividade ao ponto de vista transcendentalmente constitutivo do humano, e

    que por isso probe acesso ao mundo ou realidade sem mediao do pensamento ou da

    linguagem, so minadas"51. sob esse solo (sem subscrever o postulado do "absoluto") que

    pretendo, como Hgglund e Hodges, ler o materialismo derridiano. Assim, como afirma o

    ltimo, o "arquimaterialismo tenta mostrar que, pensando rigorosamente o espaamento do

    50 Ainda que Derrida tenha declarado mais de uma vez seu atesmo, parece que o motivo materialista pode ser mais "desconstrutivo" do que o prprio atesmo, em especial pela via estratgica que o autor jamais ignorou na construo dos seus argumentos. Em carta a Catherine Malabou, ele afirma por exemplo: "Dpart demain pour New York, aprs une rencontre sur Postmodernism and Religion (deux choses qui me sont trangres, vous les savez, mais ils me trouvent partout entre les deux, vous les savez aussi, il faut s'y faire, se dbattre, tout cela va trs vite. Mon athesme progresse dans les glises, toutes les glises, vous comprenez a, vous ?)" (DERRIDA, Jacques & MALABOU, Catherine. La contre-alle, p. 99). Ainda: DERRIDA, Jacques. Les temps des adieux: Heidegger (lu par) Hegel (lu par) Malabou, p. 30; DERRIDA, Jacques & ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanh..., p. 198). A argumentao de Hgglund, ao enfatizar que o desejo de imortalidade auto-contraditrio, como pontua Caputo, leva a uma subjetivizao do atesmo, efeito inverso ao postulado pelo filsofo nrdico. Ao me aproximar do materialismo, cobio uma objetividade maior que o atesmo de Hgglund (definido, na sua maior parte, pelo contraste com a chave da teologia negativa para o pensamento derridiano) (para uma crtica teolgica no-correlacional dessa chave, ver HORWITZ, Noah. Reality in the name of God, pp. 1-58). 51 HODGES, Aaron. Martin Hgglund's Speculative Materialism, pp. 95-96, traduo minha.

  • 30

    tempo, a filosofia no precisa abrir mo da articulao da abertura inorgnica do orgnico, a

    abertura no-viva da vida, a abertura sem sentido do sentido, e a abertura material do

    pensamento para a cincia sozinha"52.

    Por outro lado, os fatos nublam um pouco os tipos dessa diviso tripartite: o prprio

    Marx, principal representante do "materialismo prtico", inicia sua trajetria investigando o

    atomismo grego e Derrida, nesse caso contra Hgglund e Hodges, poderia ser visto como

    adepto com reservas de todos os "lados" do materialismo. Sem a simplificao habitual do

    materialismo poltico, sem a metafsica da presena que ainda alimentava o materialismo

    ontolgico, possvel ver, ao mesmo tempo, o olhar para as condies de poder que geram os

    discursos e a inscrio da filosofia no concreto sensvel, numa crtica constante

    "metafsica". Como procurarei mostrar, h razes necessrias para essa cumplicidade, e nesse

    ponto a tese ir pensar a questo do rastro (trace), muito bem articulada por Hgglund, fora

    do campo de uma lgica, ainda por porventura distinta da lgica clssica. nesse ponto que,

    apesar das diferenas, Hgglund encontra Meillassoux: para ambos, o transcendental

    intangvel, pensado como lgica e por isso no "ter" do pensamento. O pensamento da

    escritura literalmente derruba essa lgica, e essa questo justamente que parece faltar a

    Radical Atheism, ainda muito clssico na sua diviso entre emprico e transcendental (ou entre

    ontologia e epistemologia)53.

    Isso gerar uma economia entre correlacionismo e materialismo em plano assimtrico,

    no propriamente de oposio, mas de deslocamento. A tese redescrever a ideia de

    "correlacionismo" no como uma fuga do pensamento absoluto, mas como uma perda da

    riqueza do mundo material em nome de um suposto privilgio constitutivo do humano,

    confinando-se a filosofia ao mbito da linguagem. A aproximao se dar em forma de no de

    um realismo, mas de um materialismo experimental. Ataque simultneo epistemologia que

    se cinge linguagem e separao entre natureza e cultura, entendendo o materialismo como

    uma tese ontolgica que fratura ambos postulados no mesmo golpe. No fim das contas,

    quando Heidegger afirma que "os vegetais e animais, embora se achem numa tenso com o

    ambiente, nunca esto livremente na clareira do Ser - e s essa o 'mundo' -, por isso lhes

    52 HODGES, Aaron. Martin Hgglund's Speculative Materialism, p. 103. 53 Apesar de Radical Atheism comparar Kant e Derrida e afirmar que este contribuiu para dissolver a distino entre emprico e transcendental, o trabalho mantm, como veremos, o que nomeia ultranscendental, ponto que ser problematizado ao longo da tese (HGGLUND, Martin. Radical Atheism, p. 10, 19, 28 etc.). O prprio Hgglund, contudo, se contraps a Meillassoux em HGGLUND, Martin. Radical atheist materialism: a critique of Meillassoux, pp. 114-129.

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    falta a linguagem"54, o privilgio da linguagem e o privilgio do humano se identificam,

    constituindo a matriz antropocntrica que domina a filosofia moderna e, em tempos de

    Antropoceno, exige resposta. "Movimento dos sem mundo" contra a hegemonia filosfica do

    humanismo. Ela manter oposio, por isso, interpretao "correlacionista" - e por isso

    antropocntrica - de Derrida. Antes, porm, cumpre tomar todas as precaues e desvios nessa

    associao entre Derrida e o materialismo, tradio da qual ele sempre esteve prximo fsica e

    espiritualmente.

    54 HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo ou Carta sobre o humanismo, p. 44, 55, 68. Ver ainda DERRIDA, Jacques. L'animal que donc je suis, pp. 282-283.

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    1.2 DERRIDA, MARXISMO E O CONTEXTO POLTICO DOS ANOS 60

    1.2.1 Materialismo e Marxismo

    Certains philosophes sovitiques me disaient Moscou il y a quelques annes: la meilleure traduction pour perestroka, cest encore

    dconstruction.

    (DERRIDA, J. Spectres de Marx)

    Antes de desenvolver como possvel ler Derrida como um materialista, portanto,

    situar historicamente o que significava "materialismo" na poca dos seus primeiros escritos e

    quais as consequncias. Isso explicar tambm as raras menes de Derrida ao termo. Se as

    correntes contemporneas de materialismos tm outra base que no a do marxismo, certo

    que, nos idos dos anos 60, a associao era inevitvel. O "materialismo prtico" referido por

    Aaron Hodges era inquestionavelmente dominante. Ser materialista, portanto, era ser

    marxista. E Derrida nunca quis se associar integralmente ao marxismo, ao seus olhos uma

    perspectiva que parecia excessivamente dogmtica. O comeo dos seus escritos por um autor

    que autodenominava sua posio de idealismo transcendental no deixa de confirmar esse

    fato. Mas estaria ele totalmente alheio mesmo a esse materialismo de verniz marxista? A

    proximidade com Louis Althusser nos seus primeiros anos na universidade55 e suas conexes

    com a Tel Quel de Philipe Sollers fazem com que possamos perceber que, ao mesmo tempo

    em que buscava se separar no cenrio francs do marxismo dogmtico e enrijecido praticado

    em boa parte dos ambientes intelectuais