tese jose emilio major neto

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A Lira Paulistana de Mário de Andrade: a insuficiência fatal do Outro José Emílio Major Neto Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do grau de Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada. Orientação: Profª. Drª. Iumna Maria Simon. SÃO PAULO 2006

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Carlos Drummond

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  • A Lira Paulistana de Mrio de Andrade:

    a insuficincia fatal do Outro

    Jos Emlio Major Neto

    Tese de Doutorado apresentada ao

    Departamento de Teoria Literria e

    Literatura Comparada da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo, para a

    obteno do grau de Doutor em Teoria

    Literria e Literatura Comparada.

    Orientao: Prof. Dr. Iumna Maria

    Simon.

    SO PAULO

    2006

  • 2

    Resumo

    O objetivo deste trabalho analisar o ltimo livro de poesia de Mrio de

    Andrade, Lira Paulistana, com especial ateno para o longo poema A meditao

    sobre o Tiet, cujo aspecto mais importante a figurao do estado de derrelio

    da voz potica, manifestado num permanente efeito de pungncia em todo o

    poema.

    A derrelio fruto da percepo de uma impossibilidade experimentada

    como contradio insolvel de encontrar a alteridade autntica e, por meio dela,

    o sentido da prpria identidade. A raiz desse conflito social.

    Pela anlise do poema, procura-se demonstrar que a contradio insolvel

    encontra sua formalizao literria no limiar da morte.

    Palavras-chave: Mrio de Andrade, Lira Paulistana, A meditao sobre o Tiet, derrelio; smiles da morte.

    Abstract

    The objective of this paper is to analyze the last poetry book from Brazilian

    author Mrio de Andrade, Lira Paulistana, giving special attention to the long poem

    "A meditao sobre o Tiet". The most important aspect of this poem is the

    portraying of the state of dereliction of the poetic voice. This state is manifested by

    a permanent effect of poignancy throughout the poem.

    The dereliction is born from the perception of an impossibility

    experienced as an insoluble contradiction of finding genuine otherness and,

    through it, the sense of the own identity. This conflict has a social source.

    The analysis of the poem tries to demonstrate that the insoluble

    contradiction finds its literary formalization in the threshold of death.

    Key-words: Mrio de Andrade, Lira Paulistana, A meditao sobre o Tiet, dereliction, death similes.

  • 3

    Agradecimentos

    professora Iumna Maria Simon, que sabe conjugar com equilbrio a crtica

    sempre sincera e a capacidade de dizer com afeto.

    Aos professores Valentim Facioli e Tel Porto Ancona Lopez, pelas

    importantes contribuies oferecidas no exame de qualificao.

    Aos professores Joaquim Alves Aguiar, Jos Antnio Pasta Jnior e

    Roberto Daud, pelo afetivo dilogo ao longo dos anos.

    Aos amigos sempre presentes: Csar Mota, Clenir Bellezi de Oliveira,

    Emlia Amaral, Mrio Cantoni Callari, Marlene Alves Tavares e Paula Arbex.

    E ao amigo Antonio Carlos Moreira de Souza (Cac), pelo inestimvel auxlio na concluso do trabalho.

  • 4

    ndice

    Apresentao..........................................................................................................8 Introduo: Lira Paulistana: a insuficincia fatal do Outro....................................12

    Captulo I

    A questo da classe: o intelectual e as elites nacionais

    O poeta e a rainha................................................................................................31

    Experincia e criao: as figuraes do escritor

    O poeta e a preceptora........................................................................................40

    A caneta e o Arlequim..........................................................................................49

    Captulo II

    Livro Azul, A Costela do Gr Co e Lira Paulistana.............................................56

    Sistema de oposies e o conflito social............................................................. 62

    Captulo III

    A ira de Tnatos, a dissoluo de Narciso e a solido de Orfeu.........................78

  • 5

    Leitura de poemas

    Os tortuosos caminhos da cidade e a insuficincia fatal do outro

    1. Garoa do meu So Paulo,............................................................................82

    2. A catedral de So Paulo.......................................................................85

    3. Agora eu quero cantar..........................................................................94

    4. Moa linda bem tratada....................................................................................104

    5. Quando eu morrer quero ficar..........................................................................108

    6. Num filme de B. de Mille...................................................................................117

    A guerra em ns

    1. O sabor de uma promessa falhada .................................................................120

    Captulo IV

    A meditao sobre o Tiet

    1. Louvao da tarde: marco de virao............................................................136

    2. O poema e suas imagens: o espelho negro e uma ronda de sombras............154

    3. O arco admirvel da morte...............................................................................180

    4. A ponte das Bandeiras: simbolismo e histria..................................................183

    5. O poeta e seus rios: Eu sou aquele que veio do imenso rio..........................199

    6. A ponte e o poeta melanclico..........................................................................214

    7. So Paulo: entre Babel e Sio..........................................................................218

    8. Os trs poemas finais: um trptico?..................................................................226

    Anexo I

    Agora eu quero cantar........................................................................................231

  • 6

    Anexo II

    A meditao sobre o Tiet..................................................................................234

    Anexo III

    Nota sobre a ortografia de Gr Co...................................................................244

    Anexo IV

    Carta LXXXVII.......................................................................................................246

    Iconografia

    Foto da catedral de So Paulo.............................................................................255

    O Arlequim na Commedia dellArte....................................................................256

    O Dottore na Commedia dellArte......................................................................257

    O Doutor no Bumba-meu-boi.............................................................................258

    Mapa de So Paulo e o rio Tiet..........................................................................259

    Melancolia de Drer.............................................................................................260

    Bibliografia..........................................................................................................261

  • 7

    No importa, repito, que Mrio de Andrade no esteja

    satisfeito consigo mesmo, nessa fase integralmente poltica da

    humanidade que o seu pensamento mais recente denuncia. Ns

    estamos satisfeitos com ele pelo que foi, pelo que , pelo que no

    deixou de ser, na sua absoluta dignidade de homem consciente,

    apaixonado, companheiro e estmulo de outros homens

    desnorteados ou frgeis.1

    Carlos Drummond de Andrade

    1 Andrade, Carlos Drummond. Suas Cartas. In: Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, p.

    1354.

  • 8

    Apresentao

    O presente trabalho tem como objetivo analisar o ltimo livro de poesia de

    Mrio de Andrade Lira Paulistana , concentrando-se no estudo de A

    meditao sobre o Tiet, poema concludo poucos dias antes da morte do autor.

    Na introduo geral, discutida inicialmente uma parcela da fortuna crtica

    existente sobre a produo potica do escritor paulista: a anlise se concentra em

    dois crticos que estabeleceram um instrumental analtico visando a uma

    compreenso global da obra potica de Mrio de Andrade: Antonio Candido e

    Joo Luiz Lafet. Ao longo do trabalho, surgiro referncias leitura de Victor

    Knoll, que buscou interpretar tambm na totalidade o sistema de imagens

    que percorre a obra do modernista.

    O primeiro captulo analisa em linhas gerais as mudanas sociais ocorridas

    no Brasil entre o final da dcada de 1920 e o incio da dcada de 1930, que

    produziram profundas alteraes da posio social do intelectual e do escritor no

    Brasil. Em Mrio de Andrade, as duas funes de intelectual e de escritor

    sempre se confundem. Essas mudanas obrigaram o poeta a estabelecer um

    confronto cada vez mais duro com uma questo fundamental: a aguda conscincia

    da forma particular que o conflito social assume na periferia do capitalismo.

    O pice dessa conscincia se encontra justamente na poesia da dcada de

    1940 e tem sua plena expresso no longo poema A meditao sobre o Tiet.

    Pari passu com a crescente conscincia social do poeta, vai se presentificando

    de forma cada vez mais intensa o seu sentimento de isolamento diante dos

    donos da vida2: a crise das velhas oligarquias, que culmina na revoluo de

    1930, abala profundamente as relaes, sempre conflitivas, do escritor com as

    2 Andrade, Mrio de. A meditao sobre o Tiet. In: Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / So

    Paulo: Edusp, 1987, p. 393.

  • 9

    elites tradicionais do pas, por conseguinte a derrelio do poeta moderno adquire

    dimenso irrefutvel3.

    No segundo captulo, encontra-se uma anlise genrica de todos os

    poemas da Lira Paulistana, procurando demonstrar que h neles um procedimento

    formal e estilstico recorrente provisoriamente designado como sistema de

    oposies ou sistema dualstico , que funciona como regulador formal do fluxo

    imagtico. Esse procedimento percorre os poemas do livro e, por meio desse

    recurso, inscreve-se na linguagem potica a conscincia cindida diante da qual as

    contradies nacionais so representadas por uma espcie de dialtica truncada:

    um movimento permanente de oscilao entre plos opostos sem que se enuncie

    uma sntese autntica, pois neste universo imagtico se concentram figuras da

    indeterminao ou da tenso insolvel. Em suma, esse fenmeno pode ser

    considerado expresso de profundos conflitos que atravessam a ordem subjetiva

    (a questo da identidade), projetam-se nas relaes sociais e se ramificam na

    conscincia da precria formao nacional.

    Quanto maior a preciso e a clareza com que o poeta estrutura e explicita

    nas imagens o jogo das oposies, tanto melhor o efeito potico obtido, pois os

    conflitos so registrados num movimento pendular permanente que pode ser

    designado pelas expresses: eterno retorno do mesmo ou eterno retorno do mal,

    em que o interior e o exterior se confundem de maneira inextricvel e do forma

    potica a um processo caracterizado pela m-infinidade permanente.

    Em Mrio de Andrade, os conflitos internos e os externos se imbricam

    visceralmente: a crise de identidade do indivduo se alastra pela obra e encontra

    ressonncia na (in)definio da prpria identidade nacional. Sob esse aspecto, a

    comparao da alma do poeta com a catedral que nunca se conclui, no poema

    A catedral de So Paulo, da Lira Paulistana, uma imagem poderosa desse

    processo.

    3 A palavra derrelio est sendo usada aqui no na acepo metafsica heideggeriana, mas

    como expresso do profundo sentimento de abandono que marca a experincia dos pobres no

    Brasil.

  • 10

    O que est em jogo nessa conjuno a idia moderna de bildung

    (formao), que tem sua melhor definio no famoso romance Os anos de

    formao de Wilhelm Meister, de Goethe. Como se sabe, na obra do escritor

    alemo, a formao se d em trs nveis: a do indivduo, a da obra e a da nao.

    No Brasil devido precria constituio desses trs nveis , paira

    sempre a sensao de incompletude e de fracasso que s pode ser simbolizada

    num movimento circular infernal de eterno retorno, em que o eu e o outro se

    mesclam incessantemente: identificao, desidentificao e indistino regem a

    formao incompleta da prpria subjetividade em conexo com modos de

    socializao particulares do pas que pode ser resumida na expresso o mesmo

    que o outro.

    No terceiro captulo, analisam-se detidamente sete poemas, selecionados

    em funo da sua relevncia para a sedimentao da proposta central da tese.

    So eles:

    1. Garoa do meu So Paulo

    2. A catedral de So Paulo

    3. Agora eu quero cantar

    4. Moa linda bem tratada

    5. Quando eu morrer quero ficar

    6. Num filme de B. de Mille

    7. Entre o vidrilho das estrelas dbias

    Finalmente, o quarto captulo integralmente dedicado anlise e

    interpretao de A meditao sobre o Tiet: poema marcado por intenso efeito

    de pungncia que est em conexo direta com a derrelio do poeta moderno, isto

    , complexo existencial que, por sua vez, parece ser expresso do isolamento

    social do poeta desamparado pela antiga e decadente aristocracia tradicional

    que nos dava mo forte4. Trata-se da intensa solido da voz lrica que no

    4 Essas expresses foram retiradas do famoso ensaio O Movimento Modernista, que se encontra

    em Aspectos da literatura brasileira, de Mrio de Andrade (p. 238). Elas do, por si s, a dimenso

  • 11

    encontra ecos na alteridade autntica, o que parece ser o ncleo do dilaceramento

    encenado em A meditao sobre o Tiet.

    O poema A meditao sobre o Tiet marcado, do princpio ao fim, pela

    oscilao permanente entre o desejo de desvelamento crtico da experincia da

    voz potica e o desejo de produzir um efeito de pungncia que solicita

    integralmente a adeso do leitor obra: o discurso potico se mostra

    simultaneamente iluminista e iluminado5. Dessa forma, ao mesmo tempo em

    que o poema constitui o leitor como seu oposto dialtico e diferenciado, ele o

    suprime.

    O discurso potico oscila permanentemente entre o histrico e o mtico, que

    impe ao leitor, ao mesmo tempo, o distanciamento e a fuso. A leitura oscila

    entre o contrato e o pacto. O poema parece ser expresso de uma possesso

    lcida e sua manifestao mais evidente o transe que lana o leitor no espao

    do rito do rito de morte.

    Destarte, a busca da alteridade autntica, que se fundamenta na

    conscincia da luta de classes, vem sempre associada nos poemas da Lira

    Paulistana a um sistema imagtico regido por smiles da morte. A grande questo

    a ser compreendida na produo final da lrica de Mrio de Andrade justamente

    esse cruzamento complexo e indissolvel entre a conscincia do conflito social e a

    pulso de morte que perpassa todos os poemas do livro, de modo mais ou menos

    explcito.

    da proximidade existente entre os modernistas de 1922 e a elite paulistana do perodo. Paulo

    Prado e D. Olvia Guedes Penteado so figuras mais visveis envolvidas no processo. 5 Pasta Jnior, Jos Antnio. Pompia: a metafsica ruinosa dO Ateneu. So Paulo: USP, 1991.

  • 12

    Introduo

    Lira Paulistana:

    a insuficincia fatal do Outro6

    A obra lrica de Mrio de Andrade abrange um perodo de vinte e oito anos7

    e demonstra continuidade e permanncia relevante ao longo de toda a trajetria

    criativa do escritor. Sua produo potica testemunho dos requisitos que o

    prprio autor atribui ao movimento modernista na famosa conferncia de 1942:

    O que caracteriza esta realidade que o movimento

    modernista imps, , a meu ver, a fuso de trs princpios

    fundamentais: o direito permanente pesquisa; a atualizao da

    inteligncia artstica brasileira; e a estabilizao de uma

    conscincia criadora nacional.8

    A poesia do autor paulistano acompanha e registra boa parte das

    transformaes e oscilaes sofridas na sensibilidade e nos modos de

    representao potica da primeira metade do sculo XX9. Nela perceptvel o

    6 A expresso a insuficincia fatal do Outro foi retirada de uma carta de Mrio de Andrade

    destinada a Carlos Drummond de Andrade. Ver o anexo IV, que se encontra no final deste

    trabalho. 7 H uma Gota de Sangue em Cada Poema, primeiro livro de poesia de Mrio de Andrade, de

    1917. J o ltimo, Lira Paulistana, de 1945. Cabe observar que o livro de 1917 se encontra no

    volume das obras do autor intitulado Obra Imatura; j o de 1945 se encontra no livro Poesias

    Completas. 8 Andrade, Mrio de. O movimento modernista. In: Aspectos da Literatura Brasileira. So Paulo:

    Martins, s/ d, p. 242. 9 Esta a tese central do livro Figuraes da Intimidade de Joo Luiz Lafet.

  • 13

    dilogo com as enormes contradies impostas ao processo de criao e

    expresso, num momento marcado pelo desejo de modernizao do pas.

    A lrica de Mrio de Andrade parece sempre operar em duas chaves

    distintas e complementares. De um lado, ela atende aos requisitos da

    modernidade esttica constituda na tradio literria dos pases mais

    desenvolvidos da ordem capitalista internacional. De outro, enfrenta as

    particularidades culturais tpicas de um pas na periferia desse universo. Pas onde

    o prprio carter nacional motivava apaixonada discusso nas primeiras dcadas

    do sculo. Em sntese, sua obra marcada por um sopro de compromisso com as

    grandes questes de seu tempo, tanto no mbito nacional quanto no universal.

    Desde a euforia dos primeiros anos do Modernismo at a amargura que

    acompanha o final de sua existncia, desenvolve-se a inquietao criativa e

    humana que impede a acomodao aos padres j institudos e estabilizados pelo

    prprio Modernismo. Essa inquietao confere a sua produo lrica o aspecto de

    oscilao muitas vezes surpreendente, pois, de um livro a outro, o tom, a dico, a

    temtica, as resolues formais, o registro lingstico etc., mudam completamente

    e apontam para direes muitas vezes opostas e aparentemente contraditrias,

    expressas no famoso verso Eu sou trezentos, sou trezentos e cincoenta10.

    Outro aspecto marcante e sempre lembrado da sua obra o dilogo entre a

    multiplicidade de gneros cultivados pelo autor paulistano: poesia, romance,

    conto, pesquisa etnogrfica, ensaio, crtica literria, musical e de artes plsticas

    etc. Essa multiplicidade de interesses aponta com clareza para o papel do

    intelectual e do artista num contexto socialmente marcado por relaes produtivas

    que no permitiam ainda a especializao plena dos agentes de cultura. A obra de

    Mrio est sempre encenando a posio do artista e do intelectual na sociedade

    brasileira de seu tempo.

    Entretanto, cada vez mais, torna-se perceptvel que os desdobramentos

    existentes na obra do autor paulistano ocultam um ncleo coerente de questes

    prismadas e focalizadas de maneiras diversas, medida que o tempo vai impondo

    reavaliaes fundamentais das perspectivas: sob a capa da aparente 10 Verso do poema Eu sou trezentos, que abre o livro Remate de Males.

  • 14

    multiplicidade de interesses e reas de atuao, esconde-se uma unidade que

    paulatinamente desvendada pela crtica.

    Segundo Antonio Candido, a chave dessa unidade est no fato de que

    Mrio de Andrade Tinha o culto da solidariedade humana, e quem no partir

    deste ponto no lhe entender a obra nem a vida11. Desde os primeiros anos de

    congregado mariano at a politizao crescente de sua fase final, o sentido de

    adeso solidria s grandes questes do tempo percorre sua obra e d-lhe

    colorao cada vez mais comprometida com tudo o que produziu ou simplesmente

    esboou. A politizao crescente do seu discurso potico acompanhada pela

    intensificao do tom amargurado e desencantado, cujo pice est em A

    meditao sobre o Tiet poema paradoxalmente revelador tanto do grau de

    comprometimento do autor com os conflitos sociais quanto da intensidade de sua

    desiluso decorrente da ineficcia do discurso.

    Esse movimento , por sua vez, marcado por um outro centrado na

    interiorizao do discurso potico, pois no ncleo dos conflitos subjetivos

    encenados pela voz lrica que todas as contradies sociais se materializam,

    todavia s a aguda conscincia da forma potica moderna pode impedir que o

    discurso desge no engajamento esquemtico. A sua forma lrica assume de

    dentro para fora o que a constitui enquanto tal: a materialidade das relaes

    sociais que so o seu verdadeiro e necessrio oposto dialtico. Essa conscincia

    da interiorizao crescente da poesia de Mrio de Andrade claramente definida

    por Antonio Candido:

    Louvao da tarde, de Mrio de Andrade, foi escrito em

    outubro de 1925 e publicado em 1930 como penltimo poema da

    srie denominada Tempo de Maria, no livro Remate de Males.

    Ele ocupa na sua obra uma posio chave, porque representa a

    11 Candido, Antonio. Mrio de Andrade. In: Revista do Arquivo Municipal. So Paulo: DPH, 1990, p.

    70.

  • 15

    passagem da poesia mais exterior dos primeiros tempos de luta

    modernista para a poesia mais interior da ltima fase.12

    Na mesma direo, segue Joo Luiz Lafet, que, a partir de outras

    observaes de Antonio Candido, busca dividir a obra de Mrio de Andrade em

    fases relativamente bem delimitadas. Apesar de longa, a citao que se segue

    de fundamental importncia para que possamos localizar com clareza a posio

    que a Lira Paulistana ocupa na obra do escritor:

    Quero registrar agora a leitura de Antonio Candido,

    tambm apresentada num ensaio curto de 1942, e que concorda

    em pontos importantes com as afirmativas de lvaro Lins.

    Examinando o volume de Poesias de 1941, o crtico v ali um

    balano de toda a atividade do poeta, capaz de ressaltar a grande

    coerncia que manifesta atravs da preciso cada vez maior de

    sua maneira potica. E tenta creio que pela primeira vez

    esquematizar os vrios aspectos, vrias maneiras, e vrios

    temas dessa atividade.

    Quanto aos vrios aspectos, Antonio Candido assinala os

    seguintes: o poeta folclrico, no Cl do Jabuti; o poeta do

    cotidiano, na Paulicia Desvairada, no Losango Cqui e em parte

    do Remate de Males; o poeta de si mesmo, ao lado do qual, e

    sempre agarrado a ele, est o poeta eu mais o mundo, no Remate

    de Males, n A Costela do Gr Co e no Livro Azul; e, por fim, o

    criador de Potica. Entre as vrias maneiras, o crtico nota

    sobretudo trs: a maneira de guerra do perodo inicial do

    Modernismo; a fase de encantamento rtmico, cheia de

    virtuosismos saborosos; e a maneira despojada que baixa o tom,

    esquece o brilho e busca o essencial. Quanto aos temas, a sua

    variedade escaparia a qualquer enquadramento, e ele limita-se a

    chamar a ateno para trs ou quatro; o tema do Brasil, o tema

    do conhecimento amoroso (e do amor falhado), o tema do

    autoconhecimento e da conduta em face do mundo.

    12 Candido, Antonio. O Poeta Itinerante. In: O Discurso e a Cidade. So Paulo: Duas Cidades,

    1998, p. 257.

  • 16

    Essa esquematizao medrosamente aventurada

    como ele diz cumpre o seu objetivo, que o de indicar a

    riqueza da pesquisa potica de Mrio de Andrade. Tem a

    vantagem, tambm, de tirar-nos das afirmativas vagas sobre a

    diversidade da poesia, e mostrar com clareza os modos dessa

    diversidade. Ainda hoje, olhando o conjunto das Poesias

    Completas, s nos seria possvel acrescentar mais um aspecto,

    uma maneira e um tema, que quela altura no se poderia mesmo

    conhecer porque ainda no eram pblicos: o poeta poltico, a

    maneira de combate engajada e o tema do choque social,

    presentes em O Carro da Misria, Lira Paulistana e Caf.

    Mas mesmo assim isso j est, de algum modo, insinuado

    no pequeno ensaio crtico, quando Antonio Candido observa que

    ao lado do poeta de si mesmo, e sempre agarrado a ele, est o

    poeta eu mais o mundo.13

    Partindo do esquema proposto por Antonio Candido e das anlises de

    Anatol Rosenfeld14 sobre o tema da sinceridade e do cabotinismo em Mrio de

    Andrade, Lafet prope a noo de mscara para sistematizar as fases da

    poesia do autor na sua relao complexa e mediada pelos impasses histricos e

    sociais vividos no perodo de sua produo. Segundo ele, seriam cinco as

    mscaras:

    preocupao cosmopolita, que sucede s grandes

    transformaes urbanas do comeo do sculo, corresponde a face

    vanguardista, a mscara do trovador arlequinal, do poeta

    sentimental e zombeteiro que encarna o esprito da modernidade

    e de suas contradies; s preocupaes com o conhecimento

    exato do pas e de suas potencialidades, corresponde a imagem

    do estudioso que compila os usos e os costumes (procurando

    entend-los e organiz-los numa grande unidade), a mscara do

    poeta aplicado; preocupao com as mudanas estruturais em

    1930, que para a burguesia significavam o realinhamento e o

    13 Lafet, Joo Luiz. A Figurao da Intimidade. So Paulo: Martins Fontes, 1986, pp.6-7. 14 Rosenfeld, Anatol. Mrio e o cabotinismo. In: Texto / Contexto. So Paulo: Perspectiva, 1969.

  • 17

    reajuste de suas foras em um novo equilbrio, corresponde a

    imagem do escritor dividido, do poeta mltiplo, a prpria mscara

    da diversidade em busca da unidade; preocupao com as

    crises sucessivas da hegemonia com que se defronta o Estado

    nos anos imediatamente posteriores revoluo, corresponde a

    imagem da crise (ou crise da imagem?), a mscara de uma

    intimidade atormentada, feita de mutilaes e desencontros, uma

    espcie de espelho sem reflexo; preocupao com a luta de

    classes, que floresce nos anos 30 e que a burguesia soluciona

    atravs da ditadura e da traio aos seus princpios igualitrios,

    corresponde o ltimo rosto desenhado pelo poeta, a figura da

    conscincia cindida que protesta, a mscara do poeta poltico.15

    Observa-se que o conceito de mscara traz implcita uma viso dualista, a

    pressuposio da existncia de uma face atrs do artifcio, de uma verdade

    dissimulada. Roberto Schwarz, ao abordar o mesmo tema na obra de Machado de

    Assis, afirma:

    Eu acho problemtica a utilizao de mscara porque

    naturalmente supe que atrs dela exista a cara propriamente dita.

    E uma das grandes novidades de Machado de Assis a ausncia

    de uma cara atrs da mscara. (...) Quando se pensa,

    burguesamente, em mscara, tem-se em mente um disfarce til e

    que encobre uma outra coisa, a qual realmente a vida. No limite,

    a mscara poderia desaparecer, e apareceria a verdade. Em

    Machado de Assis, no.16

    Acreditamos tambm que o termo mscara, por ser uma categoria

    interpretativa problemtica, insuficiente para explicar a complexidade da poesia

    de Mrio de Andrade. As oscilaes poticas do modernista so mscaras? Trata-

    se mesmo de mscaras ou de oscilaes expressivas? No seria melhor pensar

    15 Lafet, Joo Luiz. Op. cit, pp. 15-16. 16 Bosi, Alfredo et alli. Mesa-redonda. In: Machado de Assis. So Paulo: tica, 1982, p. 334.

  • 18

    que mscara na verdade a mediao da forma como expresso do trabalho

    artstico?

    Ao analisar o Livro Azul, parece que Lafet contraditoriamente caminha

    nessa direo e define melhor o termo mscara como conscincia da expresso

    e da forma, citando o prprio Mrio de Andrade:

    Escrevo demais. Jogo sessenta por cento fora e o resto

    inda d pra publicar uns trs livros por ano, fantstico. Isso

    me desgosta bem. E j no so mais eu! S uns poucos

    permanecem eu, pelo menos no meu eu permanente, o que

    subsiste atravs de todas as minhas mudanas... O eu atual

    dos "Poemas da Negra" e do "Crepsculo", deste eu no estou

    gostando absolutamente nada. Foi como amostra apenas.

    Estou atingindo, Manu, creio que o cume da minha

    invisibilidade. E nisso que estamos atualmente no mximo de

    separao: voc todo sensibilidade, todo impulsivo, eu cada vez

    mais recatado, mais artfice, mais principalmente invisvel. E me

    compreendo na minha invisibilidade. (...) eu quero palavras

    lricas, refletindo em antpodas discretos e quase sempre bem

    silenciosos os meus sentimentos e vida. Uma espcie de dupla

    verdade, as palavras criando, absolutamente castigadas pelo

    artista, um jogo vocabular com tudo o que um jogo vocabular

    pode dar de sugesto e boniteza pros outros. Pode ser que esta

    explicao no esteja clara pra voc mas tenha certeza que sei

    muito conscientemente e bem o que quero.17

    Ao comentar essas palavras do escritor paulista, Lafet marca o termo

    invisibilidade empregado pelo poeta como modo de explicitar o seu trabalho

    particular com a forma potica naquele exato momento de sua produo:

    Sem dvida, trezentos-e-cinqenta eus. Mas o que me

    interessa a a idia de "invisibilidade". Se entendi bem, ele

    quer dizer que a poesia desta fase esconde, sob o

    encantamento do jogo vocabular, a personalidade do "eu lrico,

    17 Apud: Lafet, Joo Luiz. Op. cit., pp. 163-164.

  • 19

    os arroubos de sensibilidade e os impulsos de inspirao que o

    "Prefcio Interessantssimo" elevara tanto. Uma espcie de

    objetividade lrica, confiada no poder potico da linguagem do

    texto e desconfiada da expresso imediata do sujeito um

    desaparecimento do sujeito por detrs do poema.18

    A invisibilidade ou objetividade lrica no o que preside toda e qualquer

    expresso potica, mesmo as que acreditam na total sinceridade expressiva

    como, por exemplo, o romantismo oitocentista? Toda poesia objetividade lrica

    porque toda subjetividade pessoal j mediao social. O indivduo carrega

    consigo o prprio tempo, a linguagem o melhor exemplo, pois, enquanto, ela se

    atualiza nos discursos individuais, tambm um sistema coletivo, uma conveno

    social submetida aos ritmos da histria. Dizer eu j dizer mais que eu.

    possvel que Lafet tenha tomado o rastro pela ona e encampado as

    teorias estticas de Mrio de Andrade ao p da letra. J Roberto Schwarz, num

    breve mas muito esclarecedor ensaio, demonstra como o escritor paulista possua

    uma viso pouco dialtica do fenmeno potico em seus principais escritos sobre

    o tema.

    Segundo Schwarz, o poeta paulista oscilou durante a maior parte de seu

    percurso crtico entre duas posies diametralmente antitticas e conflitantes.

    Inicialmente Mrio de Andrade defende o subjetivismo profundo baseado na

    manifestao livre e indomvel dos elementos subconscientes que regeriam o

    fluxo do discurso potico, teoria desenvolvida no Prefcio Interessantssimo, de

    Paulicia Desvairada:

    Para resumir esta primeira posio de Mrio de Andrade,

    subjetivista, podemos dizer que criou um universo conceitual para

    explicar a poesia no qual ela no tem lugar; vista como igual

    verdade psicolgica, perdeu sua especificidade. No quadro

    maniquesta de oposies que Mrio aceita no existe superao,

    a nica possibilidade mudar de lado: ser lrico ou tcnico,

    obedecer ao subconsciente ou conscincia, ser individualista ou

    18 Idem, ibidem, p. 164.

  • 20

    poltico (...) A superao dessas antinomias, a dialtica do

    particular e do universal, do individual e do significado, ncleo

    justamente da experincia esttica, torna-se inconcebvel na

    oposio absoluta em que so mantidos os pares conceituais.19

    No segundo momento, a teoria recai no plo oposto, defende-se o controle

    que os mveis conscientes devem desenvolver sobre as presses das foras

    subconscientes, muitas vezes movidas por feias intenes. A poesia deveria ser

    expresso de um projeto maior que vencesse o psicologismo da primeira

    concepo. Nesse momento, est no horizonte das preocupaes do poeta, o

    projeto nacionalista que deveria conduzir os esforos da criao. Essa posio

    vem expressa na teoria das duas sinceridades e da sinceridade total presentes

    no ensaio sobre o cabotinismo do livro O empalhador de passarinhos:

    Estamos no avesso do primeiro esquema. Os valores

    positivos esto vinculados conscincia e a conveno, na

    medida justamente em que estas tomam s fontes originrias a

    virulncia catica. O que fora fonte de todo o bem, passa agora a

    ser visto como raiz da desordem. (...) A inverso de valores que

    presenciamos pode ser sintetizada: a nfase abandona o que

    (verdade psicolgica) para prender-se ao socialmente til e

    tangvel. Os valores passaram para os propsitos, estes

    impregnados todos pela idia do nacionalismo. A poesia passa a

    ser tarefa que exige cultura e estudo, pois deve ser um passo

    construtivo na tradio que se elabora20.

    A oscilao entre essas duas concepes divergentes teria como efeito o

    fato de que Sua reflexo habita como que um poo de paredes lisas, sem sada

    natural, no qual circula e do qual somente por um salto poderia escapar21. Para

    Roberto Schwarz, s na fase final de sua reflexo, o modernista paulista caminhou 19 Schwarz, Roberto. O psicologismo na potica de Mrio de Andrade. In: A sereia e o desconfiado.

    So Paulo: Paz e Terra, 1981, p. 18. 20 Idem, ibidem, pp. 19-20. 21 Idem, ibidem, p. 19.

  • 21

    para uma concepo menos estanque e dualista sobre a poesia e que se

    manifesta no conceito de tcnica pessoal:

    pela expresso mais rigorosa de sua verdade pessoal,

    diz Mrio, que o indivduo se universaliza; ao mergulhar em sua

    prpria subjetividade encontrar ao fundo, o social. A tcnica deixa

    de ser negao do lirismo, pelo contrrio torna-se a condio de

    sua realizao. Nesta dialtica estar a moralidade do artista,

    assim como a possibilidade de pensar filosoficamente a obra de

    arte. O apoio de texto que encontramos para esta ltima

    superao mnimo, mas pensamos que bastante convincente.22

    No obstante o conceito utilizado (mscara ou face), o leitor se defronta

    continuamente com a questo da pluralidade da obra de Mrio de Andrade: os

    muitos rumos da obra de Mrio constituem sem dvida um dos motivos da

    paralisia da nossa crtica, que tem esbarrado na sua espantosa complexidade, at

    hoje no assimilada de forma completa23.

    O famoso verso Eu sou trezentos, trezentos-e-cincoenta..., repetido

    insistentemente por todos os estudiosos do poeta, ganha foro de verdadeira

    recitao ritualstica, porquanto diante dele todos sucumbem siderados pelo seu

    poder de re-velao da interioridade mais profunda da obra do escritor paulista.

    Velar e revelar constituem o movimento paradoxal e pendular desse verso,

    cmara ardente, que, simultaneamente, ilumina o morto e ofusca-o pelo excesso

    de luz24.

    Segundo Lafet, a questo da pluralidade da obra de Mrio de Andrade

    est diretamente associada pesquisa da prpria identidade, fenmeno j

    percebido por Anatol Rosenfeld, e salientado por lvaro Lins e Antonio Candido:

    22 Idem, ibidem, p.21. 23 Lafet, Joo Luiz. Op. cit., p. 2. 24 Pasta Jnior, Jos Antnio. Pompia: a metafsica ruinosa dO Ateneu. So Paulo: USP, 1991.

  • 22

    E nesse ponto que sua crtica parece convergir com a de

    lvaro Lins, destacando uma face importante que nos desvenda,

    no mais a diversidade da poesia, mas a sua unidade. Ambos

    vem com muita clareza que o melhor Mrio de Andrade aquele

    que explora o seu sentimento ntimo de homem (lvaro Lins),

    aquele que se retira em si mesmo (Antonio Candido). Ambos

    compreendem, tambm, que esse movimento de explorao da

    subjetividade acaba por revelar o mundo de forma mais clara de

    que os poemas intencionais.25

    Portanto o mergulho em direo interiorizao do discurso potico implica

    adensamento da expresso lrica. O mergulho profundo na crise subjetiva produz

    um sistema de imagens que capaz de revelar muito mais do que a simples crise

    da identidade:

    E aqui estamos no centro do problema. O fato que, se a

    poesia de Mrio de Andrade constitui uma explorao do eu e

    conta, como afirma lvaro Lins, a histria de um homem

    multiplicado que procura encontrar-se a si mesmo (e isso

    explicaria a sua pluralidade de temas e tcnicas), ela constitui

    tambm uma tentativa de explorar a multiplicidade da cultura

    brasileira e de contar a histria de um intelectual que procura

    encontrar a identidade de seu pas (e isso explicaria melhor as

    determinaes sociais da pluralidade). O movimento simultneo

    e solidrio: a busca da identidade nacional (enredada como

    veremos nos interesses da classe a que pertence o escritor) liga-

    se ao problema mais ntimo da descoberta da prpria

    identidade.26

    Dessa forma, as figuraes da intimidade so na verdade figuraes da

    exterioridade e vice-versa, portanto o ncleo que alimenta toda a lrica do poeta

    paulistano provavelmente toda a sua obra est no fato de que ela tem de

    atender a dois regimes diferentes e contraditrios, apesar de solidrios: a 25 Idem, ibidem, pp. 7-8. 26 Idem, ibidem, p. 8.

  • 23

    constante oscilao entre o eu o outro, entre a interioridade e a exterioridade,

    entre o indivduo e a nacionalidade, entre o indivduo e a classe e entre a unidade

    e a multiplicidade, desdobrando-se e alastrando-se em outras oscilaes: o

    nacional e o universal, o popular e o erudito, a msica e a literatura, a criao e a

    crtica.

    O fenmeno descrito indicia uma fratura muito mais profunda e complexa

    que transita diretamente pela funo do intelectual e do artista num pas perifrico,

    como o Brasil, oscilando tambm entre dois regimes contraditrios formadores

    de nossas estruturas sociais e subjetivas. Em suma, a nossa eterna conjuno de

    traos e heranas arcaicas associadas a um processo irregular e heterogneo de

    modernizao, que no nos permite atingir a modernidade. Num ensaio recente

    sobre o Grande Serto: Veredas, Jos Antnio Pasta Jnior aponta para um

    problema similar:

    Neste ponto, embora precocemente e para desenvolver

    adiante, tocamos em algo de essencial para o livro: essa juno

    inextricvel, em um mesmo princpio, de movncia obrigatria e

    fixidez inamovvel, de metamorfose contnua e pura repetio,

    indica a frmula de base que aqui se trata de identificar, o estatuto

    da contradio insolvel. Agitada internamente por uma movncia

    interminvel ou movimento contnuo, ela se mexe

    incessantemente sem , no entanto, sair jamais do lugar. Assume,

    assim, a configurao de uma espcie de dialtica negativa, que a

    contradio faz bascular sem parada, mas que no conhece

    superao ou sntese propriamente ditas27.

    E a explicao desse fenmeno estaria no processo histrico particular de

    formao do pas, que estrutura todos os nveis de relaes, sociais ou subjetivas:

    Nao colonial e ps-colonial, o Brasil j surge na rbita

    do capital e como empresa dele, mas se estabelece e evolui com

    27 Pasta Jnior, Jos Antnio. O romance de Rosa in: Novos estudos Cebrap. So Paulo: Cebrap,

    1999, n. 55, p. 63.

  • 24

    base na utilizao macia, praticamente exclusiva e multissecular,

    do trabalho escravo. Essa contradio de base forma uma espcie

    de enigma histrico e sociolgico que as cincias humanas

    permanecem a interrogar entre ns. Quem acompanha o debate

    brasileiro sabe os trabalhos a que se do sociologia, histria,

    filosofia, economia para identificar, enfim, o modo de produo

    que diz respeito nossa formao histrica, numa querela que

    segue aberta. Ao longo de sculos, e de um modo que nunca

    superam completamente seja a Independncia, sejam as

    sucessivas modernizaes conservadoras, o Brasil praticou a

    juno contraditria de formas de relaes interpessoais e sociais

    que supem a independncia ou a autonomia do indivduo e sua

    dependncia pessoal direta28.

    Essa contradio insolvel evidente na experincia do escritor brasileiro

    e dela Mrio de Andrade demonstra ter conscincia. Percorre constantemente sua

    obra figuraes mais ou menos veladas da posio conflituosa que o escritor

    moderno ocupa em solo nacional e, sobretudo, na periferia do capitalismo.

    Retomando a apresentao das linhas gerais de interpretao proposta por

    Lafet, necessrio ressaltar que o autor de Figurao da Intimidade insiste na

    necessidade de se estudar a poesia de Mrio de Andrade como uma totalidade

    complexa, no entanto o crtico admite a enorme dificuldade de se executar tal

    tarefa. Por isso ele se concentra numa das mscaras, designada espelho sem

    face.

    Embora empregue de forma provisria e distanciada a terminologia do

    crtico, o presente trabalho se prope a analisar a ltima mscara do poeta

    paulistano, buscando no plo da exterioridade a contrapartida do processo lrico

    do autor. Lira Paulistana poderia ser enquadrada no ltimo aspecto (o poeta

    poltico), na ltima maneira (a maneira de combate engajada) e no ltimo

    tema (o tema do choque social) propostos por Lafet luz do ensaio de Antonio

    Candido (o poeta eu mais o mundo). Alm disso, como ltimo livro de poesia

    28 Idem, ibidem, p. 67.

  • 25

    lrica de Mrio de Andrade, condensa um horizonte mais amplo de articulao.

    Trata-se, pois, de uma sntese da trajetria do poeta.

    Ao lado do poeta poltico, da maneira de combate engajada e do tema

    do choque social, afloram no livro quase todas as grandes preocupaes que se

    disseminam na produo potica de Mrio de Andrade, agora lidas em nova

    chave: a conscincia plena do conflito social.

    Em suma, desejamos resenhar o longo percurso do escritor paulista em

    direo a concepes cada vez mais precisas e agudas, como as que concluem

    Caf:

    Eu me sinto mais recompensado de ter feito esta pica.

    Dei tudo o que pude a ela, pra torn-la eficaz no que pretende

    dizer, lhe dei mesmo com pacincia os mil cuidados de tcnica,

    pra convencer tambm pelo encantamento da beleza. Mas

    duma beleza que nunca perde o senso, a inteno de que devia

    ser bruta, cheia de imperfeies picas. Nada de bilros nem de

    buril. Pelo contrrio, muitas vezes a perversidade impiedosa da

    idia definidora por exagero, fiz acompanhar da perversidade

    tosca da voluntria imperfeio esttica.

    (...) Eu tenho desejo de uma arte que, social sempre,

    tenha uma liberdade mais esttica em que o homem possa criar a

    sua forma de beleza mais convertido aos seus sentimentos e

    justias de tempo da paz. A arte filha da dor, filha sempre de

    algum impedimento vital. Mas o bom, o grande, o livre, o

    verdadeiro ser cantar, as dores fatais, as dores profundas,

    nascidas exatamente desta grandeza de ser e de viver.29

    Para a compreenso da complexidade da Lira Paulistana, faz-se necessrio

    compreender que tipo de poeta poltico este, o seu modo de combate engajado,

    a sua perspectiva do choque social consideraes que se impem aos modos

    de representao empregados pelo poeta em conexo com a busca de novas

    solues formais e expressionais e s redefinies particulares impostas s 29 Andrade, Mrio de. Caf. In: Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia / So Paulo: Edusp,

    1987, pp. 421-422.

  • 26

    obsesses temticas, formais e estilsticas que percorrem toda a lrica do

    modernista paulistano.

    Uma dessas obsesses, entre muitas, est nos modos particulares de

    representao do espao urbano paulistano, que um corte temtico iluminador

    das contradies internas dessa poesia. So Paulo atravessa a poesia de Mrio

    de Andrade e constitui-se na exteriorizao tanto dos dramas individuais quanto

    dos coletivos internalizados na dinmica particular do sujeito lrico que os

    dramatiza e lhes d sustentao.

    O presente trabalho se prope, ento, a analisar a Lira Paulistana de Mrio

    de Andrade, buscando demonstrar que esse livro apresenta uma sntese do

    percurso potico do autor, pois nele se encontram as principais linhas de fora que

    percorrem toda a sua lrica.

    Partindo desse pressuposto de fundamental importncia transcrever uma

    declarao do prprio escritor que elucida, em parte, a gnese do livro:

    Assim mesmo, uma semana faz, deu a louca, fiz uma srie

    de poesiazinhas, umas quinze, curtas, que no sei como chamo:

    Poemas Paulistanos, Cuca Paulistana, Lira Paulistana, tem de ser

    um nome assim, porque so poemas de So Paulo. Ou melhor:

    poemas urbanos. (...) A histria da inveno desses poemas

    engraada, embora seja mesmo um feito meu. Em 1936, lendo um

    livro de Paul Radin, Primitive Man as Philosopher fiquei

    impressionado com uns cantos maoris que achei nele. Dias depois

    li na Revista Lusitana umas poesias do jogral Martim Codax,

    galego, no me lembro mais se dos sc. XII ou XIII. Achei lindo,

    veio a idia (sempre falsa mas acatvel em poesia) de fazer uns

    poemas naquele esprito e renovando aquelas tcnicas. Peguei

    uns caderninhos de fazer versos, tomei nota de tudo e datei.30

    30 Apud: Dila Zanoto Manfio. In: Andrade, Mrio. Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia / So

    Paulo: Edusp, 1987, p. 34.

  • 27

    Em primeiro lugar, cumpre observar a hesitao na escolha do nome

    (Poemas, Cuca, Lira) e a permanncia do adjetivo (Paulistano/a); este expressa

    claramente a conscincia de que os poemas que compem o livro so urbanos e

    paulistanos. Portanto a identidade da voz lrica se funda na relao particular com

    um espao urbano determinado.

    Outro aspecto importante so os substantivos que antecedem o adjetivo

    Paulistana(o): Poema, Cuca e Lira. Os dois ltimos termos fazem referncia

    a instrumentos musicais. A cuca, da tradio popular; a lira, da tradio erudita.

    Esta associa poesia e msica relao com razes na cultura clssica (Hermes/

    Apolo/ Orfeu). A simples indefinio cuca/lira expe oscilaes muito mais fortes

    e relevantes no universo particular da obra de Mrio de Andrade: o popular e o

    erudito, o nacional e o universal, o mtico e o histrico, o arcaico e o moderno.

    Ao citar os cantos maoris, o poeta paulistano recua at as fontes primitivas

    do lirismo (o livro de Paul Radin), explicitando as preocupaes antropolgicas de

    que a obra de Mrio de Andrade est saturada; recua, ainda, tambm at as

    fontes mais antigas do lirismo em lngua portuguesa, as cantigas medievais

    (Martim Codax, o Trovadorismo).

    No entanto a regresso esttico-literria perpassada pela conscincia

    moderna de que preciso incorporar a tradio renovando-a (fazer uns

    poemas naquele esprito e renovando aquelas tcnicas.), de que Macunama o

    melhor exemplo: sobreposio de tempos e de espaos em que os elementos

    modernos e os arcaicos se fundem de forma inextricvel.

    Essa conscincia da relao contraditria na modernidade entre tradio e

    renovao exemplarmente explicada por Antonio Candido no contexto particular

    da obra de Mrio Andrade, em O poeta itinerante, que retomaremos em seguida.

    Na Louvao da tarde, durante um passeio de carro por um cafezal, a voz

    lrica medita sobre a prpria trajetria criativa. Ao longo dos versos, como

    demonstra a anlise de Antonio Candido, o poeta vai assimilando, de maneira

    quase pardica vale dizer moderna os elementos da tradio potica (os

    versos decasslabos brancos, a poesia meditativa romntica, em especial a

    inglesa etc.). Sua conscincia da tradio to avanada que ele capaz de

  • 28

    superar o prprio repertrio do Futurismo Italiano e, por conseqncia, o repertrio

    de parte expressiva da retrica modernista.

    Segundo Antonio Candido, Mrio de Andrade v com distanciamento

    crtico um elemento fundamental da constituio do moderno: o elogio da mquina

    representada pelo automvel:

    Percebemos ento que o poema assenta sobre uma base

    de paradoxos, porque a tarde devaneio gratuito, mas

    reservatrio de trabalho; repouso e construo. O movimento

    da fatura rene os dois plos e extrai deles a unidade pela fuso

    dos contrrios, que so complementares. Este paradoxo afina com

    o da forma e o do gnero: o poema de um modernista em

    decasslabos brancos; a meditao romntica reinventada para

    exprimir uma situao atual.31

    A justaposio de termos, em princpio opostos e, por isso, paradoxais,

    revela um sistema imagtico regido pela oposio, pela contradio insolvel,

    que percorre a totalidade da obra de Mrio de Andrade e apresenta, segundo o

    nosso ponto de vista, o seu momento mximo na Lira Paulistana. Esse aspecto

    ser o centro da intuio geral que conduz o segundo captulo deste trabalho.

    Retomando Antonio Candido:

    Paradoxo talvez mais importante do ponto de vista de uma

    esttica do Modernismo o que contrape o automvel,

    instrumento de velocidade, quietude vesperal do devaneio. Mas

    aqui, em vez de destru-la pela rapidez do percurso, ele ajuda a

    constru-la. Neste poema, tudo o que o Futurismo queria revogar

    (inclusive o chiaro di luna ) est no cerne do discurso, e em lugar

    da velocidade domesticar o mundo o mundo que domestica a

    velocidade, submetendo-a ao ritmo natural. O automvel perde

    caractersticas de mquina e adquire um toque de vida, facilitando

    a citao quase pardica dos traos romnticos. E os dois

    31 Candido, Antonio. O Poeta Itinerante. In: O Discurso e a Cidade. So Paulo: Duas Cidades,

    1998, pp. 277-278.

  • 29

    momentos histricos se enlaam, porque o tema de Louvao da

    tarde parece transcender o tempo, na medida em que encarna

    tambm o andamento da tradio literria, mostrando que Mrio

    de Andrade era capaz de passar do modernismo propriamente dito

    modernidade, que recupera a tradio ao super-la.32

    A meditao sobre o Tiet pode ser lida, com certeza, nessa mesma

    chave apresentada por Antonio Candido, pois possvel localizar na Lira

    Paulistana recorrncias e constncias temticas que percorrem a lrica de Mrio

    de Andrade: a potica da cidade; a relao entre poesia e msica; o cruzamento

    entre tradio e renovao esttica; a questo do popular e do erudito; do nacional

    e do universal; do arcaico e do moderno; do mtico e do histrico etc.

    A primeira inteno rastrear essas constantes presentes no livro para, a

    seguir, demonstrar como a representao delas se altera ao longo da atividade

    criativa do autor em funo das novas circunstncias em que foram atualizadas:

    sob a diversidade da produo marioandradina existe um eixo organizador que lhe

    confere intensa unidade.

    E, por ltimo, necessrio destacar que o ncleo da obra potica de Mrio

    de Andrade contm um conflito central constantemente apontado pelos crticos: a

    busca da prpria identidade que passa necessariamente pela busca da identidade

    do outro. O outro reconhecido e materializado na mtica da modernidade

    urbana (o trovador arlequinal); na mtica da identidade nacional (o poeta

    aplicado); na sntese da prpria tradio potica (o poeta da Louvao da

    tarde); na perda da prpria imagem (o espelho sem reflexo); finalmente, na

    conscincia de classe (o poeta poltico).

    H na poesia de Mrio de Andrade, portanto, um movimento travado entre

    as figuraes da intimidade e as figuraes da exterioridade. Somente no

    trnsito constante entre esses dois plos que os impasses de sua produo

    revelam sua complexidade e sua capacidade de formalizar contradies de

    alcance muito maior que esto na base da moderna cultura brasileira. A obra de

    32 Idem, ibidem, p. 278.

  • 30

    Mrio de Andrade se conforma em complexa tentativa de atender a dois regimes

    diversos de exigncias: o da esfera da exterioridade e o da esfera da interioridade.

    A oscilao entre arte de circunstncia, de participao nos conflitos do

    tempo presente e a arte de permanncia, autnoma e vlida em si mesma,

    apenas mais uma dessas oscilaes.

    O conflito potico de Mrio de Andrade obviamente tem razes subjetivas

    fundadas na experincia do escritor e, por isso, pode ser iluminado pela

    psicanlise, est amplamente fundado nas relaes sociais e humanas

    particulares do pas, fundadas no entrelaamento de elementos modernos e

    arcaicos jamais superados ao longo da nossa prpria histria.

    A busca pungente e constante pela identidade sintoma claro de sua

    perda, de sua indeterminao ou de sua inexistncia: estamos diante do complexo

    caminho que vai da euforia desvairada dos anos vinte amargura do final da

    dcada de quarenta.

  • 31

    Captulo I

    A questo da classe: o intelectual e as elites nacionais

    O Poeta e a Rainha

    A idia central deste captulo baseia-se na intuio de que a poesia final de

    Mrio de Andrade est em conexo direta com a conscincia que o poeta paulista

    possua da posio do escritor no quadro das novas relaes sociais e polticas

    existentes no pas a partir da revoluo de 1930.

    H uma declarao de Mrio de Andrade que de fundamental importncia

    para a compreenso do ncleo de conflitos que permeiam os poemas de Lira

    Paulistana:

    S mais uma explicao. E um esclarecimento. Pra

    confirmar a fase scio-estourante da minha vida, esse perodo

    1929-1935, ainda tem a talvez mais trgica das arrebentaes, o

    Gr Co de Outubro que de 1933, de quando me vieram as

    preocupaes feias de ter feito quarenta anos. (Agora, nos 50, no

    tive preocupao nenhuma.) De maneira que as datas do

    desfazimento em mim dos prazeres e prerrogativas da minha

    classe so essas: 1930, O Carro da Misria; 1932, 2 verso

    definitiva do mesmo; 1933, Gr Co de Outubro e enfim, fins de

    1934, o artigo me confessando coram populo comunista. Sem

    s-lo e sem selo nenhum, hels!33

    33 Apud: Lafet, Joo Luiz. A Figurao da Intimidade. So Paulo, Martins Fontes, 1986, p.118.

    Torna-se necessrio acrescentar os comentrios do poeta sobre O carro da misria: E esse

    assunto do poema, que agora vai esclarecer o sentido dele todo e de numerosos versos e mesmo

    partes inteiras dele, a luta do burgus gostoso satisfeito das suas regalias, filho-da-putamente

    encastoado nas prerrogativas da sua classe, a luta do burgus para abandonar todos os seus

    preconceitos e prazeres em proveito de um ideal mais perfeito. Ideal a que a inteligncia dele j

    tinha chegado por deduo, lgica e estudo, e que a noo moral aprovava e consentia, mas a que

    tudo o mais nele no consentia, no queria saber. Simplesmente porque estava gostoso. Apud:

  • 32

    A dcada de 1930 marcou uma ruptura fundamental na composio social e

    poltica da nao. A secular elite agrria nacional paulatinamente cede lugar s

    novas foras sociais que representavam o desejo de modernizao capitalista do

    pas.

    Mrio de Andrade um escritor que desde cedo percebeu criticamente as

    complexas relaes que mediavam as ligaes existentes entre os escritores

    modernistas e essa mesma elite agrria decadente. Em torno de 1930, o lao que

    os unia se dissolve e o poeta se v entregue a um novo mundo de relaes

    sociais em que as alianas de classe mesmo que conflitivas no so mais

    possveis (desfazimento em mim dos prazeres e prerrogativas da minha classe).

    Resta ao poeta a conscincia de seu estado de derrelio.

    Em princpio, procuraremos demonstrar como Mrio de Andrade elabora

    ficcionalmente em diversos textos suas complexas relaes com a elite agrria

    paulista, pois uma das mais importantes questes presentes na obra do

    modernista diz respeito s condies objetivas de produo artstica e intelectual

    no Brasil ao longo da primeira metade do sculo XX.

    As relaes entre o intelectual e os representantes das elites nacionais

    esto diretamente ligadas a esse problema, pois a autonomia do artista aspecto

    central na constituio de um sistema literrio moderno. Nas sociedades

    capitalistas, o mercado literrio assume papel preponderante na produo,

    circulao e consumo da literatura, definindo o espao especfico do escritor e

    suas relaes de maior ou menor autonomia em relao aos donos da vida34.

    No Brasil, o mercado literrio ao longo da primeira metade do sculo XX era

    de tal forma precrio que obrigava convivncia muitas vezes contraditria entre

    o escritor e as classes dirigentes, estabelecendo relaes de dependncia focadas

    no favor. A posio do artista brasileiro se assemelhava em muito do agregado,

    permanentemente orbitando, ento, entre a dependncia e o favor, o que, por sua

    Knoll, Victor. Paciente arlequinada. So Paul: Hucitec / Secretaria de Estado da Cultura, 1983, pp.

    128-129. 34 Andrade, Mrio de. A Meditao sobre o Tiet. In: Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia /

    So Paulo: Edusp, 1987, p. 393.

  • 33

    vez, reduzia drasticamente a autonomia do criador e seu poder de discordncia no

    que tange crtica radical.

    Mrio de Andrade, artista consciente dessas contradies iniludveis, em

    vrios momentos e, de maneira mais ou menos explicita, d expresso literria a

    esse problema.

    Nas suas relaes pessoais muito prximas, principalmente com Paulo

    Prado e D. Olvia Guedes Penteado, fica patente o mal-estar que permeia o

    trnsito entre eles. A constante contradio entre a proximidade afetiva e a

    distncia crtica, entre a dependncia e a autonomia aparece nos seus

    depoimentos e serve de base para a elaborao da prpria obra.

    Na famosa conferncia intitulada O Movimento Modernista proferida em

    1942, na Casa do Estudante do Brasil no Rio de Janeiro, a convite de Carlos

    Drummond de Andrade , em meio ao seu contundente balano crtico da

    Semana de Arte Moderna e seus desdobramentos, Mrio se refere aos sales

    literrios que alimentaram o movimento modernista. perceptvel na descrio

    desses sales justamente a convivncia bem prxima entre os artistas e as elites

    nacionais.

    Segundo ele, foram quatro os sales mais importantes: o da Rua Lopes

    Chaves; o da Av. Higienpolis, de Paulo Prado; o da Rua Duque de Caxias, de D.

    Olvia e, finalmente, o da Alameda Baro de Piracicaba, de Tarsila Amaral. Ao se

    referir ao segundo, o poeta declara:

    A aristocracia tradicional nos deu mo forte, pondo em

    evidncia mais esta germinao do destino tambm ela j

    ento autofagicamente destruidora, por no ter mais significao

    legitimvel. Quanto aos arists do dinheiro, esses nos odiavam no

    princpio e sempre nos olharam com desconfiana. Nenhum salo

    de ricaos tivemos, nenhum milionrio estrangeiro nos acolheu.

    Os italianos, os alemes, os israelitas se faziam mais guardadores

    do bom-senso nacional que Prados e Penteados e Amarais35

    35 Andrade, Mrio de. O Movimento Modernista. In: Aspectos da Literatura Brasileira. So Paulo:

    Martins, s / d, p. 241.

  • 34

    Noutro momento, Mrio de Andrade, ainda falando sobre os sales

    modernistas, afirma:

    Havia o salo da avenida Higienpolis que era o mais

    selecionado. Tinha por pretexto o almoo dominical, maravilha de

    comida lusobrasileira. Ainda a a conversa era estritamente

    intelectual, mas variava e se alargava. Paulo Prado com o seu

    pessimismo fecundo e seu realismo, convertia sempre o assunto

    das livres elocubraes artsticas aos problemas da realidade

    brasileira. Foi o salo que durou mais tempo e se dissolveu de

    maneira bem malestarenta. O seu chefe, tornando-se, por

    sucesso, o patriarca da famlia Prado, a casa foi invadida, mesmo

    aos domingos, por um pblico da alta que no podia compartilhar

    do rojo dos nossos assuntos. E a conversa se manchava de

    pquer, casos da sociedade, corridas de cavalo, dinheiro. Os

    intelectuais, vencidos, foram se arretirando.36

    Observa-se nesse trecho, principalmente nas linhas finais cujo estilo

    apresenta uma formulao extraordinria , o mal-estar dos intelectuais diante

    da gente endinheirada que freqentava a casa de Paulo Prado. A expresso a

    casa foi invadida e a conversa se manchava so exemplares do deslocamento

    do intelectual, mesmo no seio da aristocracia que supostamente nos deu mo

    forte.

    Em outro momento, fica mais clara ainda a conscincia do escritor paulista

    das relaes tensas que sempre evolveram o trnsito dos modernistas entre as

    elites que os apoiaram:

    Mas dos trs sales aristocrticos, Tarsila conseguiu dar

    ao dela uma significao de maior independncia, de comodidade.

    Nos outros dois, por maior que fosse o liberalismo dos que os

    dirigiam, havia tal imponncia de riqueza e tradio no ambiente,

    que no era possvel nunca evitar tal ou qual constrangimento. No

    36 Idem, ibidem, p. 239.

  • 35

    de Tarsila jamais sentamos isso. O mais gostoso dos nossos

    sales aristocrticos.37

    A conscincia da dissonncia, que passa objetivamente pela classe social,

    no poderia ser mais clara. Por mais amplos que fossem os horizontes dessa

    aristocracia decadente, a diferena de origem intransponvel e os interesses da

    vanguarda esttica irreconciliveis com esse mundo de relaes pessoais e

    sociais. A produo crtica exige distanciamento e autonomia por parte do escritor.

    Sintomticas dessa posio contraditria do intelectual brasileiro, oscilando

    sempre entre a dependncia objetiva e a autonomia relativa, so as relaes

    estabelecidas entre Mrio de Andrade e D. Olvia Guedes Penteado. O mal-estar

    permanente do autor da Paulicia facilmente detectvel no livro O Turista

    Aprendiz, dirio da viagem empreendida pelo poeta, a grande dama e duas

    jovens ao Amazonas no ano de 1927. Nas pginas iniciais do livro, j patente o

    desconforto do escritor pelas circunstncias envolvidas na aventura:

    no me despedi de ningum direito, nem percebi certo

    quantos companheiros de viagem iam no bando. J de So

    Paulo sabia que eram uma poro e gente de circo, disposta e

    bem divertida. Pois quando dou tento mesmo definitivo no caso,

    toda a gente roera a corda! Estamos apenas dona Olvia, e as

    duas moas, Dolour e Mag. Dona Olvia com aquele sorrizinho

    dela, me fala:

    Voc deve estar bem descontente de ser o nico

    homem da expedio

    Se soubesse que era assim, no vinha, dona Olvia.

    Meio spero, sincero. Ela no teve o que dizer. Nem eu.

    Estava com raiva dela e das moas. Ela se lembra de contar que

    Washington Lus telegrafou aos presidentes de estado e pro

    Peru.38

    37 Idem, ibidem, p. 240. 38 Andrade, Mrio de. O Turista Aprendiz. So Paulo: Duas Cidades, 1983, pp. 53-54.

  • 36

    O poeta no esconde sua irritao com a posio delicada que ele ocupa

    na expedio (nico homem), uma espcie de guardio. Nota-se a ironia

    presente em aquele sorrizinho dela. Alm disso, o interesse de Washington Lus

    est claramente ligado ao fato de dona Olvia ser quem : a Rainha do Caf. Ou

    nas palavras de Oswald: Nossa Senhora do Brasil. Mais tarde ela ser tambm

    designada, na fico que corre paralela ao dirio, como Juzo Final. Essas duas

    ltimas designaes no podem ser compreendidas sem o pano de fundo do

    catolicismo brasileiro, em conexo direta com a aristocracia paulista do caf.

    A reverncia e a ironia contraditoriamente se do as mos nas designaes

    dadas D. Olvia, o que por si s dimensiona a complexidade da questo:

    dependncia objetiva e autonomia relativa. A oscilao existente entre a

    proximidade afetiva e a distncia crtica que d o balano to sugestivo e

    particular do estilo do fragmento.

    Em outro momento, o real motivo da irritao de Mrio de Andrade fica

    ainda mais explicito, porque revela a posio por ele ocupada na comitiva de

    Dona Olvia:

    Pelas oito horas chegou-se a Porto Velho, com o Sto.

    Antnio do Mato Grosso, na mesma margem, no outro estado do

    Brasil, a meia hora de olhar. Recepo oficial. Uma escola pblica,

    com a professora num estado maravilhoso de elegncia

    gorduchinha, coisa linda! acompanhando dona Olvia.

    Apresentaes em penca. Visitas. Mercado sem carter. Jornal.

    Almoo de bordo. Enfim posso sair mais livremente. Telegrafo.

    Fotografias.

    Dr. Mrio de Andrade, secretrio da Rainha do Caf.

    Desta vez me arrebentei, porque arrebentei!

    Mas eu no sou secretrio de dona Olvia

    Mas! o sr. no veio na companhia dela, ento!

    Sim somos muito amigos, viemos

    Ento o sr. est fazendo a viagem por sua conta!!!

    Nem era possvel zangar com o homem tal o pasmo dele,

    vendo algum que no era uma rainha enfarada e decerto meio

    maluca, andar por aquelas paragens. Ento expliquei com muita

  • 37

    pacincia pra ele, espcie de expedio coletiva embora tardia,

    dada a centenas de pessoas que j tinham privado comigo nesta

    viagem, expliquei que no, que ramos um grupo de amigos

    paulistas, curiosos de conhecer outros brasis, viajando cada qual

    por conta prpria, pela vaidade ou ventura de conhecer coisas.39

    evidente a necessidade de o poeta explicitar sua independncia de dona

    Olvia, pois tudo passa pela questo do dinheiro, da classe, obviamente, da

    dependncia (no sou secretrio). Mrio de Andrade faz questo de explicitar

    sua relao de igualdade com dona Olvia (somos muito amigos) e, assim,

    afirmar sua autonomia.

    A presena da professora provinciana, no incio do fragmento, explicita a

    sua condio de subservincia (num estado maravilhoso de elegncia

    gorduchinha... acompanhando dona Olvia), ironizada pelo poeta (coisa linda!).

    Outro momento marcante da permanente dissonncia se d num episdio,

    em que, dessa vez, a ironia parte de dona Olvia em direo ao modernista:

    Dona Olvia com as moas vo no baile. Me recuso com

    tanta energia, que dona Olvia me olha como surpreendida. Depois

    sorri. Depois ri francamente em cima de mim.

    Mrio, voc no esquea de adquirir sua liberdade

    quando quiser

    Desaponto:

    Eu sei, dona Olvia mas no isso no!

    Ela sorri um est bom meio irnica e se transforma numa

    gara real.

    Bom, mas desta vez, francamente j era demais! Resolvo

    gastar o tempo da noitinha no cinema ()40

    Bentinho ou Jos Dias, ao se dirigirem dona Glria, no seriam mais

    enviesados do que o escritor na resposta dona Olvia: Eu sei, dona Olvia

    mas no isso no!.

    39 Idem, ibidem, pp.149-150. 40 Idem, ibidem, p. 153.

  • 38

    Num trecho da correspondncia de Mrio de Andrade, destinada a Manuel

    Bandeira e selecionado por Drummond, encontra-se a seguinte explicao sobre a

    viagem Amaznia em que a questo do dinheiro tambm tema central e est

    associada figura de dona Olvia:

    Dona Olvia faz tempo que vinha planejando uma viagem

    pelo Amazonas adentro. E insistia sempre comigo pra que fosse

    no grupo. Eu ia resistindo, resistindo e amolecendo tambm. Afinal

    quando quase tudo pronto, resolvi ceder mandando merda esta

    vida de merda. Vou tambm. Isto , inda no sei bem se vou, s

    falta saber o preo da viagem. Se ficar a por uns quatro contos,

    vou, se ficar pra cima de cinco no vou. Tenho que emprestar

    dinheiro pra ir e isso vai me deixar a vida bem mais difcil depois e

    os projetos no tinteiro. O Cl prontinho da silva, capaz de entrar

    agora mesmo pr mquina, agora pra quando? Ora! Que bem

    me importa41

    No fragmento, fica visvel que a oscilao apresentada a viagem ou a

    publicao da obra (Cl do Jabuti) determinada pelo dinheiro. No final da

    expedio Amaznia, a questo do custo da aventura tambm aflora. Aps

    contar a entrevista que ele concedeu a um jornalista, o poeta anota:

    A segunda anedota, bem podia se chamar O preo da

    Amaznia. Parto, apenas com quatorze mil-ris no bolso, o

    dinheiro evaporou. Alm dos meus gastos, andei emprestando s

    meninas, que j esto com vergonha de pedir mais dinheiro a

    dona Olvia, e o resultado esse, gorjetas dadas, tudo pago, estou

    com quatorze mil-ris apenas. ()

    Mrio

    At me assustei.

    O que , Rainha!

    Com as despedidas, no pude tirar dinheiro no banco.

    Voc pode me emprestar algum pra viagem?

    41 Andrade, Carlos Drummond. A Lio do Amigo. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1982, p. 254.

  • 39

    Tomo com um soco na boca do estmago: fico

    inteiramente desorientado. Ela inteirada da situao, apenas sorri,

    viajadssima. Ter uns vinte ou trinta mil-ris consigo. Faremos

    dvidas, pagveis no Rio de Janeiro. Mas no me conformo com o

    vexame. Vou dormir sem graa nenhuma.42

    O constrangimento do poeta visvel. E, mesmo sem dinheiro, dona Olvia

    possui mais do que ele. Na verdade, a expresso faremos dvidas coloca-o na

    posio de dependncia que to zelosamente ele procurou evitar. O Turista

    Aprendiz frtil em exemplos do permanente mal-estar diante do favor. Em outro

    momento, o escritor faz referncia a um episdio interessante, em que dona Olvia

    se v na posio de custear a viagem de uma cabocla:

    Me esqueci de contar. Aqui, vaticano bonde, embarcam

    num seringal pra descer logo adiante noutro, e assim. Pouco

    depois de partidos de Porto Velho, na volta, vieram perguntar a

    dona Olvia se ela garantia mesmo pagar a passagem at

    Manaus, da mulher da terceira classe. O que , o que no ?

    Quando foram pedir a passagem da velha, passageira nova da

    terceira, ela respondeu muito sossegada:

    A Rainha do Caf paga.

    Dona Olvia no sabia de nada, mas pagou, est claro.43

    No fragmento, fica explcito que a mediao se d pelo favor, j introjetado

    nas relaes sociais: para a cabocla nada mais natural ( A Rainha do Caf

    paga.), ao que o escritor conclui: ... est claro.

    A distncia entre o modernista e a cabocla imensa, o que no impede

    haver semelhanas nos modos de dependncia, tanto da velha quanto do poeta,

    pois certamente no era das experincias mais agradveis ser considerado,

    durante a expedio, um mero secretrio na comitiva da Rainha: um camareiro

    de luxo (culto e letrado).

    42 Andrade, Mrio de. O Turista Aprendiz. So Paulo: Duas Cidades, 1983, pp. 184-185. 43 Idem, ibidem, p. 170.

  • 40

    Queremos demonstrar que Mrio de Andrade tinha plena conscincia das

    conflituosas relaes entre os artistas brasileiros e a aristocracia tradicional...

    tambm ela autofagicamente destruidora, que nos deu mo forte. Em outro

    momento, ele afirma com maior clareza ainda que aquela classe nos dava mo

    forte e... nos dissolvia nos favores da vida. Com as profundas transformaes

    acontecidas durante a dcada de 1930, essa contraditria aliana social se rompe

    (... as datas do desfazimento em mim dos prazeres e prerrogativas da minha

    classe...).

    Nas duas citaes, o sentido dos verbos dissolver e desfazer

    semanticamente quase o mesmo, apontando para um fenmeno lento, mas

    irrefutvel. O poeta se v diante de um impasse intransponvel presentificado na

    conscincia de seu crescente isolamento diante das novas elites que comandam o

    pas e na incapacidade de formar uma nova aliana de classe capaz de envolver a

    massa dos trabalhadores. O sentimento de derrelio do poeta moderno se agua

    e desgua nos poemas da Lira Paulistana.

    Experincia e criao: as figuraes do escritor

    O poeta e a preceptora

    A conscincia do isolamento e do estado de abandono do poeta no mundo

    se manifesta tanto nos escritos pessoais de Mrio de Andrade quanto na sua

    produo ficcional e potica. Como inicialmente abordamos a questo a partir dos

    testemunhos do escritor, queremos, mesmo que sucintamente, resenhar as

    formas que essa conscincia assume na elaborao ficcional.

    A viagem de 1927 foi, sob muitos aspectos, frutfera para Mrio de Andrade.

    Basta uma leitura, mesmo que superficial, do dirio O Turista Aprendiz para

    perceber as ressonncias da experincia amaznica na obra do escritor. bvio

    que os desdobramentos mais explcitos se encontram em Macunama, publicado

    em 1928.

  • 41

    Numa carta a Drummond ao se referir a seu processo particular de

    criao , Mrio de Andrade comenta a gnese do conto Atrs da Catedral de

    Ruo, do livro Contos Novos44. Segundo o escritor, a idia seminal do conto

    brotou durante a viagem Amaznia e foi desenvolvida ao longo de anos. A lenta

    gestao do conto revela a permanncia de certas questes no imaginrio do

    poeta, cujas resolues formais nem sempre foram atingidas imediatamente.

    Muitas vezes a matria ultrapassa a forma e exige solues que somente a longa

    maturao pode produzir.

    Nesse conto, um dos mais freudianos do livro, o escritor paulista analisa e

    disseca as angstias sexuais de uma humilde professora de francs, verdadeiro

    apndice de uma famlia burguesa de Higienpolis.

    Mademoiselle trabalha para D. Lcia, ensinando francs para as duas filhas

    adolescentes, que esto no alvorecer sexualidade. Me e filhas acabaram de

    retornar de uma longa viagem pela Europa e pelo Oriente Mdio (No decidiram

    nada, mas cinco anos de viagens, colgios, camelos, freiras, Dinamarcas e

    Palestinas, quando voltaram no supunham mais um pai.45).

    Durante a viagem, D. Lcia foi abandonada pelo pai das meninas e, ao

    chegar a So Paulo, readmite Mademoiselle como uma espcie de dama de

    companhia para as filhas. Como preceptora, sua posio contrasta com a das

    meninas principalmente na questo da sexualidade, j que as jovens 44 Andrade, Carlos Drummond de. A Lio do Amigo. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1982, p. 232.

    Veja-se o depoimento do prprio escritor: s vezes o mando vem com a idia e a coisa se cria

    imediatamente, mais isto mais raro. E s vezes espero, espero, e a coisa dura anos pra chegar.

    Como Caf ideado por 1933 e que s chegou em outubro de 42. Olhe: agora termino um conto,

    cuja primeira idia veio dumas anedotas que me contaram na viagem do Amazonas, as duas

    moas daqui que iam comigo. Isso foi em 1927! Numa nota a este trecho, o poeta mineiro

    esclarece: Atrs da Catedral de Ruo, em Contos Novos (...) onde aparece esta nota: (Primeiros

    esboos, Amazonas, julho e agosto de 1927; primeira verso escrita, 9.I.1943 a 17.I.1943;

    segunda verso completa, 3.III.44 e 4.III.44; verso definitiva, junho a 15 de julho de 1944). 45 Andrade, Mrio de. Atrs da Catedral de Ruo. In: Contos Novos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983,

    p. 49. No livro No Tempo dos Modernistas: D. Olvia Penteado, a Senhora das Artes, encontra-se

    um bom nmero de fotografias das viagens da grande dama paulista. Nelas, pode-se ver desde o

    interior do apartamento de Paris at as pirmides do Egito e, claro, camelos. (Ver bibliografia).

  • 42

    experimentam o despertar do sexo com maior naturalidade que a professora

    velhota e virgem. Alvorecer para uns, crepsculo para outros.

    Nesse conto, muitas vezes os papis se invertem, pois so as adolescentes

    que estimulam a libido recalcada da professora e encaminham-na pelas trilhas da

    malcia e dos duplos sentidos, sempre expressos em francs.

    A associao entre educao e erotismo na obra de Mrio de Andrade faz

    pensar imediatamente no romance Amar, Verbo Intransitivo. Nele, os dois temas

    esto indissoluvelmente associados como pressuposto de toda educao

    sentimental moderna. Frulein professora de amor ao mesmo tempo em que

    exerce o papel de educadora no sentido convencional do termo. Ela um agente

    moderno e civilizador em meio sociedade patriarcal tradicional. possvel

    interpretar Frulein como uma figurao oblqua e dissimulada do intelectual na

    periferia do capital.46

    A comparao entre o conto citado e vrios trechos de O Turista Aprendiz

    pode ser reveladora das complexas relaes existentes, na obra de Mrio de

    Andrade, entre experincia pessoal e criao ficcional.

    Num determinado momento da viagem ao Amazonas, o poeta relata uma

    cena envolvendo o desregramento das meninas (Dolour e Mag) que o coloca

    numa situao delicada diante de dona Olvia: Mrio de Andrade parece ser

    obrigado a se comportar como se fosse um(a) preceptor(a) das moas durante a

    viagem. Alis, durante a viagem, essa parece ser mesmo a sua funo.

    Se assim o for, questiona-se o quanto de amargura pessoal preside a

    composio do conto citado? Com que grau de profunda auto-ironia a sexualidade

    de Mademoiselle dissecada? Eis a cena:

    Eram quase trs horas da manh e a Rainha do Caf fazia

    muito se recolhera. Acordamos o homem do bar, na inteno de

    tomar um alcoozinho forte, evitando algum resfriado. Tomei meu

    gole, e fui na cabina trocar minha roupa encharcadssima,

    deixando as moas com o moo fiscal. No demorei talvez quinze

    46 Sobre a figurao do intelectual como preceptor fundamental consultar o livro Em busca do

    inespecfico, de Priscila Figueiredo (Ver bibliografia).

  • 43

    minutos, mas assim que cheguei no bar, percebi o estrago. No

    sei o que o rapaz apostou com as moas, e elas, liberdosas de

    educao, tinham bebido muito, clice de pinga sobre clice. No

    demorou muito, mandei tudo para a cabina, principiou uma bulha

    excusa na cabina delas que, se de um lado pegava com a minha,

    do outro, vizinhava com a da criada de dona Olvia, esta logo em

    seguida. Aos poucos a bulha aumentou. Eram lamentos doloridos

    de Trombeta, ao passo que Balana me chamava pelo nome,

    entre risadas de no poder mais. Eu incomodadssimo, se a

    Rainha acordasse e fosse ver encontrava as duas totalmente

    bbadas. E eu que estava desde o princpio da viagem engolindo

    coisas para evitar desgostos a dona Olvia47

    Para melhor compreenso, necessrio lembrar que, antes desse incidente, o poeta e as meninas haviam participado de um baile de casamento em

    que danaram, cantaram e se divertiram livremente. Numa outra passagem do

    dirio, encontra-se este depoimento:

    E por ali ficamos ns danando, ao som dos dois

    instrumentos e dum soldado que cantava de olhos baixos, creio

    que no nos olhou uma vez, de vergonha. E era soldado! O

    vaticano berrava l embaixo nos chamando. Fazia luar. Algum

    tinha ido buscar nosso casquinho, que estava ali no porto. E fomos

    de rodada rio abaixo, ao luar, cantando o Luar do Serto,

    inchados de romantismo, com um sofrimento bom dentro do

    peito.48

    A posio do poeta como mediador entre as meninas e dona Olvia, ao

    longo da viagem, fica explcita neste fragmento (E eu que estava desde o princpio

    da viagem engolindo coisas para evitar desgostos a dona Olvia). Ao mesmo

    tempo, ele amigo, companheiro e aquele que acoberta os desvarios da

    educao liberdosa das moas, funo bastante similar de Mademoiselle no

    conto referido. 47 Andrade, Mrio. O Turista Aprendiz. So Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 108. 48 Idem, ibidem, p. 108.

  • 44

    Em outras passagens do dirio, o escritor registra a presena de figuras

    femininas investidas da funo de professora, apresentando muitos traos

    elaborados na construo de Mademoiselle:

    Estvamos visitando o Colgio N. S. da Assuno, e a

    professora, uma dona respeitvel, com sua idadezinha bem

    mostra, fazendo de bedquer. Como trocssemos umas palavras

    em ingls, ela se botou falando ingls, com mais perfeio que eu

    inda faclimo, porm com a naturalidade e muito maior firmeza

    que as meninas. Neste momento ela estava mostrando os andores

    e mais coisas, flores, vus, capelas de virgens de uma procisso

    que se realizara hoje de-manh, e como nos assustssemos do

    ingls perfeito dela, contou meia melanclica que tinha sido virgem

    em Londres e Paris, quanto herosmo.49

    No fragmento, Mrio de Andrade revela o seu precrio domnio da lngua

    inglesa, comparado com o da professora e com o das meninas. Mademoiselle,

    como professora de francs, apresenta desempenho inferior ao das alunas, o que

    nos leva a pensar numa possvel transposio da experincia para a fico:

    Alm do ingls e do alemo em que Mademoiselle nem de

    longe podia agora competir com elas, voltavam falando um francs

    bem mais moderno e leal que o da professora, estagnada no

    ensino e nas suas metforas.50

    Mademoiselle tambm conhece o alemo, que sempre foi uma lngua

    cultivada por Mrio de Andrade, o que remete diretamente a Amar , Verbo

    Intransitivo.

    Em outro momento do conto, o narrador delineia o perfil da me das

    meninas. Dona Lcia estava sempre cercada pela poltica:

    49 Idem, ibidem, p. 102. 50 Andrade, Mrio. Atrs da Catedral de Ruo. In: Contos Novos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989, p.

    48.

  • 45

    A cidade vinha se arrepiando de pretenses polticas

    porque afinal tinham lanado mesmo o j muito proposto partido

    de oposio, o Democrtico. Dona Lcia embarcara na onda que

    lhe trazia um gosto novo de volpias. Tinha parente importante no

    P. D. e nessa tarde, pela primeira vez depois de sete anos, os

    sales dela se abriam para o cocktail aos chefes do Partido.

    Dona Lcia decidiu que as filhas haviam de aparecer nem que

    fosse um momento. Fazia questo de se apresentar ornada de

    resultados, bem matrona, imponente em seus traos de infeliz.

    Mademoiselle devia comparecer, como preceptora.51

    Ao longo de toda a viagem ao Amazonas, so inmeras as descries de

    cerimnias oficias a que Mrio de Andrade teve de comparecer acompanhando D.

    Olvia e as meninas. Em muitas vezes, ele se viu na obrigao de fazer pequenos

    discursos de agradecimento aos discursos feitos em homenagem Rainha do

    Caf. Essa funo se tornou to previsvel, que, segundo o prprio escritor, ele

    desenvolveu um modelo de resposta em que bastava mudar o nome das

    localidades, pois o texto era o mesmo52. Interessante observar a conjuno do

    oficialismo (discursos) com a ironia modernista (a blague do discurso em forma

    fixa).

    Na conferncia O Movimento Modernista, o poeta alude s permanentes

    relaes de D. Olvia com a poltica. O Partido Democrtico tambm citado:

    E conto entre as minhas maiores venturas admirar essa

    mulher excepcional que foi dona Olvia Guedes Penteado. A sua

    discrio, o tato e a autoridade prodigiosos com que ela soube

    dirigir, manter, corrigir essa multido heterognea que se chegava

    a ela, atrada pelo seu prestgio, artistas, polticos, ricaos,

    cabotinos, foi incomparvel. O seu salo, que tambm durou 51 Idem, ibidem, p. 56. 52 Ao descrever a estadia em Iquitos, na Venezuela, Mrio de Andrade anota em O Turista

    Aprendiz: Em palcio, recepo alinhada, tudo de branco. Tive que fazer de novo o improviso que

    fizera pela primeira vez em Belm e repetira j vrias vezes, sempre que encontrava discurso pra

    dona Olvia pela frente. S que desta vez, quando chegou o momento de dizer que no sentamos

    limites estaduais, mudei pra limites nacionais e a coisa foi aceita da mesma maneira. (p. 113).

  • 46

    vrios anos, teve como elemento principal de dissoluo a

    efervescncia que estava preparando 1930. A fundao do Partido

    Democrtico, o nimo poltico eruptivo que se apoderara de muitos

    intelectuais, sacudindo-os para os extremismos de direita e

    esquerda, baixara um malestar sobre as reunies. Os

    democrticos foram se afastando. Por outro lado, o integralismo

    encontrava algumas simpatias entre as pessoas da roda: e ainda

    estava muito sem vcio, muito desinteressado, para aceitar

    acomodaes. Sem nenhuma publicidade, mas com firmeza, Dona

    Olvia Guedes Penteado soube terminar aos poucos o seu salo

    modernista.53

    No depoimento, Mrio da Andrade marca com clareza a data de 1930 como

    momento de virada na vida nacional. Os intelectuais se vem obrigados a tomar

    partido direita ou esquerda; as rupturas de velhas alianas so inevitveis e

    a conscincia do conflito social vai ganhando densidade.

    possvel, pois, perceber que existem vrios pontos de interseco entre

    os relatos presentes em O Turista Aprendiz e o conto Atrs da Catedral de Ruo,

    o que sugere que h trnsito permanente entre a experincia pessoal do escritor e

    a sua produo literria. Assim, as relaes entre Mrio de Andrade e D. Olvia

    Guedes Penteado esto espelhadas de alguma forma nas figuras de

    Mademoiselle e D. Lcia.

    Nesse processo de comparao, registramos uma ltima semelhana, ao

    mesmo tempo reveladora e enigmti