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A Lira Paulistana de Mrio de Andrade:
a insuficincia fatal do Outro
Jos Emlio Major Neto
Tese de Doutorado apresentada ao
Departamento de Teoria Literria e
Literatura Comparada da Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo, para a
obteno do grau de Doutor em Teoria
Literria e Literatura Comparada.
Orientao: Prof. Dr. Iumna Maria
Simon.
SO PAULO
2006
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Resumo
O objetivo deste trabalho analisar o ltimo livro de poesia de Mrio de
Andrade, Lira Paulistana, com especial ateno para o longo poema A meditao
sobre o Tiet, cujo aspecto mais importante a figurao do estado de derrelio
da voz potica, manifestado num permanente efeito de pungncia em todo o
poema.
A derrelio fruto da percepo de uma impossibilidade experimentada
como contradio insolvel de encontrar a alteridade autntica e, por meio dela,
o sentido da prpria identidade. A raiz desse conflito social.
Pela anlise do poema, procura-se demonstrar que a contradio insolvel
encontra sua formalizao literria no limiar da morte.
Palavras-chave: Mrio de Andrade, Lira Paulistana, A meditao sobre o Tiet, derrelio; smiles da morte.
Abstract
The objective of this paper is to analyze the last poetry book from Brazilian
author Mrio de Andrade, Lira Paulistana, giving special attention to the long poem
"A meditao sobre o Tiet". The most important aspect of this poem is the
portraying of the state of dereliction of the poetic voice. This state is manifested by
a permanent effect of poignancy throughout the poem.
The dereliction is born from the perception of an impossibility
experienced as an insoluble contradiction of finding genuine otherness and,
through it, the sense of the own identity. This conflict has a social source.
The analysis of the poem tries to demonstrate that the insoluble
contradiction finds its literary formalization in the threshold of death.
Key-words: Mrio de Andrade, Lira Paulistana, A meditao sobre o Tiet, dereliction, death similes.
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Agradecimentos
professora Iumna Maria Simon, que sabe conjugar com equilbrio a crtica
sempre sincera e a capacidade de dizer com afeto.
Aos professores Valentim Facioli e Tel Porto Ancona Lopez, pelas
importantes contribuies oferecidas no exame de qualificao.
Aos professores Joaquim Alves Aguiar, Jos Antnio Pasta Jnior e
Roberto Daud, pelo afetivo dilogo ao longo dos anos.
Aos amigos sempre presentes: Csar Mota, Clenir Bellezi de Oliveira,
Emlia Amaral, Mrio Cantoni Callari, Marlene Alves Tavares e Paula Arbex.
E ao amigo Antonio Carlos Moreira de Souza (Cac), pelo inestimvel auxlio na concluso do trabalho.
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ndice
Apresentao..........................................................................................................8 Introduo: Lira Paulistana: a insuficincia fatal do Outro....................................12
Captulo I
A questo da classe: o intelectual e as elites nacionais
O poeta e a rainha................................................................................................31
Experincia e criao: as figuraes do escritor
O poeta e a preceptora........................................................................................40
A caneta e o Arlequim..........................................................................................49
Captulo II
Livro Azul, A Costela do Gr Co e Lira Paulistana.............................................56
Sistema de oposies e o conflito social............................................................. 62
Captulo III
A ira de Tnatos, a dissoluo de Narciso e a solido de Orfeu.........................78
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Leitura de poemas
Os tortuosos caminhos da cidade e a insuficincia fatal do outro
1. Garoa do meu So Paulo,............................................................................82
2. A catedral de So Paulo.......................................................................85
3. Agora eu quero cantar..........................................................................94
4. Moa linda bem tratada....................................................................................104
5. Quando eu morrer quero ficar..........................................................................108
6. Num filme de B. de Mille...................................................................................117
A guerra em ns
1. O sabor de uma promessa falhada .................................................................120
Captulo IV
A meditao sobre o Tiet
1. Louvao da tarde: marco de virao............................................................136
2. O poema e suas imagens: o espelho negro e uma ronda de sombras............154
3. O arco admirvel da morte...............................................................................180
4. A ponte das Bandeiras: simbolismo e histria..................................................183
5. O poeta e seus rios: Eu sou aquele que veio do imenso rio..........................199
6. A ponte e o poeta melanclico..........................................................................214
7. So Paulo: entre Babel e Sio..........................................................................218
8. Os trs poemas finais: um trptico?..................................................................226
Anexo I
Agora eu quero cantar........................................................................................231
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Anexo II
A meditao sobre o Tiet..................................................................................234
Anexo III
Nota sobre a ortografia de Gr Co...................................................................244
Anexo IV
Carta LXXXVII.......................................................................................................246
Iconografia
Foto da catedral de So Paulo.............................................................................255
O Arlequim na Commedia dellArte....................................................................256
O Dottore na Commedia dellArte......................................................................257
O Doutor no Bumba-meu-boi.............................................................................258
Mapa de So Paulo e o rio Tiet..........................................................................259
Melancolia de Drer.............................................................................................260
Bibliografia..........................................................................................................261
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No importa, repito, que Mrio de Andrade no esteja
satisfeito consigo mesmo, nessa fase integralmente poltica da
humanidade que o seu pensamento mais recente denuncia. Ns
estamos satisfeitos com ele pelo que foi, pelo que , pelo que no
deixou de ser, na sua absoluta dignidade de homem consciente,
apaixonado, companheiro e estmulo de outros homens
desnorteados ou frgeis.1
Carlos Drummond de Andrade
1 Andrade, Carlos Drummond. Suas Cartas. In: Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, p.
1354.
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Apresentao
O presente trabalho tem como objetivo analisar o ltimo livro de poesia de
Mrio de Andrade Lira Paulistana , concentrando-se no estudo de A
meditao sobre o Tiet, poema concludo poucos dias antes da morte do autor.
Na introduo geral, discutida inicialmente uma parcela da fortuna crtica
existente sobre a produo potica do escritor paulista: a anlise se concentra em
dois crticos que estabeleceram um instrumental analtico visando a uma
compreenso global da obra potica de Mrio de Andrade: Antonio Candido e
Joo Luiz Lafet. Ao longo do trabalho, surgiro referncias leitura de Victor
Knoll, que buscou interpretar tambm na totalidade o sistema de imagens
que percorre a obra do modernista.
O primeiro captulo analisa em linhas gerais as mudanas sociais ocorridas
no Brasil entre o final da dcada de 1920 e o incio da dcada de 1930, que
produziram profundas alteraes da posio social do intelectual e do escritor no
Brasil. Em Mrio de Andrade, as duas funes de intelectual e de escritor
sempre se confundem. Essas mudanas obrigaram o poeta a estabelecer um
confronto cada vez mais duro com uma questo fundamental: a aguda conscincia
da forma particular que o conflito social assume na periferia do capitalismo.
O pice dessa conscincia se encontra justamente na poesia da dcada de
1940 e tem sua plena expresso no longo poema A meditao sobre o Tiet.
Pari passu com a crescente conscincia social do poeta, vai se presentificando
de forma cada vez mais intensa o seu sentimento de isolamento diante dos
donos da vida2: a crise das velhas oligarquias, que culmina na revoluo de
1930, abala profundamente as relaes, sempre conflitivas, do escritor com as
2 Andrade, Mrio de. A meditao sobre o Tiet. In: Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / So
Paulo: Edusp, 1987, p. 393.
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elites tradicionais do pas, por conseguinte a derrelio do poeta moderno adquire
dimenso irrefutvel3.
No segundo captulo, encontra-se uma anlise genrica de todos os
poemas da Lira Paulistana, procurando demonstrar que h neles um procedimento
formal e estilstico recorrente provisoriamente designado como sistema de
oposies ou sistema dualstico , que funciona como regulador formal do fluxo
imagtico. Esse procedimento percorre os poemas do livro e, por meio desse
recurso, inscreve-se na linguagem potica a conscincia cindida diante da qual as
contradies nacionais so representadas por uma espcie de dialtica truncada:
um movimento permanente de oscilao entre plos opostos sem que se enuncie
uma sntese autntica, pois neste universo imagtico se concentram figuras da
indeterminao ou da tenso insolvel. Em suma, esse fenmeno pode ser
considerado expresso de profundos conflitos que atravessam a ordem subjetiva
(a questo da identidade), projetam-se nas relaes sociais e se ramificam na
conscincia da precria formao nacional.
Quanto maior a preciso e a clareza com que o poeta estrutura e explicita
nas imagens o jogo das oposies, tanto melhor o efeito potico obtido, pois os
conflitos so registrados num movimento pendular permanente que pode ser
designado pelas expresses: eterno retorno do mesmo ou eterno retorno do mal,
em que o interior e o exterior se confundem de maneira inextricvel e do forma
potica a um processo caracterizado pela m-infinidade permanente.
Em Mrio de Andrade, os conflitos internos e os externos se imbricam
visceralmente: a crise de identidade do indivduo se alastra pela obra e encontra
ressonncia na (in)definio da prpria identidade nacional. Sob esse aspecto, a
comparao da alma do poeta com a catedral que nunca se conclui, no poema
A catedral de So Paulo, da Lira Paulistana, uma imagem poderosa desse
processo.
3 A palavra derrelio est sendo usada aqui no na acepo metafsica heideggeriana, mas
como expresso do profundo sentimento de abandono que marca a experincia dos pobres no
Brasil.
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O que est em jogo nessa conjuno a idia moderna de bildung
(formao), que tem sua melhor definio no famoso romance Os anos de
formao de Wilhelm Meister, de Goethe. Como se sabe, na obra do escritor
alemo, a formao se d em trs nveis: a do indivduo, a da obra e a da nao.
No Brasil devido precria constituio desses trs nveis , paira
sempre a sensao de incompletude e de fracasso que s pode ser simbolizada
num movimento circular infernal de eterno retorno, em que o eu e o outro se
mesclam incessantemente: identificao, desidentificao e indistino regem a
formao incompleta da prpria subjetividade em conexo com modos de
socializao particulares do pas que pode ser resumida na expresso o mesmo
que o outro.
No terceiro captulo, analisam-se detidamente sete poemas, selecionados
em funo da sua relevncia para a sedimentao da proposta central da tese.
So eles:
1. Garoa do meu So Paulo
2. A catedral de So Paulo
3. Agora eu quero cantar
4. Moa linda bem tratada
5. Quando eu morrer quero ficar
6. Num filme de B. de Mille
7. Entre o vidrilho das estrelas dbias
Finalmente, o quarto captulo integralmente dedicado anlise e
interpretao de A meditao sobre o Tiet: poema marcado por intenso efeito
de pungncia que est em conexo direta com a derrelio do poeta moderno, isto
, complexo existencial que, por sua vez, parece ser expresso do isolamento
social do poeta desamparado pela antiga e decadente aristocracia tradicional
que nos dava mo forte4. Trata-se da intensa solido da voz lrica que no
4 Essas expresses foram retiradas do famoso ensaio O Movimento Modernista, que se encontra
em Aspectos da literatura brasileira, de Mrio de Andrade (p. 238). Elas do, por si s, a dimenso
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encontra ecos na alteridade autntica, o que parece ser o ncleo do dilaceramento
encenado em A meditao sobre o Tiet.
O poema A meditao sobre o Tiet marcado, do princpio ao fim, pela
oscilao permanente entre o desejo de desvelamento crtico da experincia da
voz potica e o desejo de produzir um efeito de pungncia que solicita
integralmente a adeso do leitor obra: o discurso potico se mostra
simultaneamente iluminista e iluminado5. Dessa forma, ao mesmo tempo em
que o poema constitui o leitor como seu oposto dialtico e diferenciado, ele o
suprime.
O discurso potico oscila permanentemente entre o histrico e o mtico, que
impe ao leitor, ao mesmo tempo, o distanciamento e a fuso. A leitura oscila
entre o contrato e o pacto. O poema parece ser expresso de uma possesso
lcida e sua manifestao mais evidente o transe que lana o leitor no espao
do rito do rito de morte.
Destarte, a busca da alteridade autntica, que se fundamenta na
conscincia da luta de classes, vem sempre associada nos poemas da Lira
Paulistana a um sistema imagtico regido por smiles da morte. A grande questo
a ser compreendida na produo final da lrica de Mrio de Andrade justamente
esse cruzamento complexo e indissolvel entre a conscincia do conflito social e a
pulso de morte que perpassa todos os poemas do livro, de modo mais ou menos
explcito.
da proximidade existente entre os modernistas de 1922 e a elite paulistana do perodo. Paulo
Prado e D. Olvia Guedes Penteado so figuras mais visveis envolvidas no processo. 5 Pasta Jnior, Jos Antnio. Pompia: a metafsica ruinosa dO Ateneu. So Paulo: USP, 1991.
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Introduo
Lira Paulistana:
a insuficincia fatal do Outro6
A obra lrica de Mrio de Andrade abrange um perodo de vinte e oito anos7
e demonstra continuidade e permanncia relevante ao longo de toda a trajetria
criativa do escritor. Sua produo potica testemunho dos requisitos que o
prprio autor atribui ao movimento modernista na famosa conferncia de 1942:
O que caracteriza esta realidade que o movimento
modernista imps, , a meu ver, a fuso de trs princpios
fundamentais: o direito permanente pesquisa; a atualizao da
inteligncia artstica brasileira; e a estabilizao de uma
conscincia criadora nacional.8
A poesia do autor paulistano acompanha e registra boa parte das
transformaes e oscilaes sofridas na sensibilidade e nos modos de
representao potica da primeira metade do sculo XX9. Nela perceptvel o
6 A expresso a insuficincia fatal do Outro foi retirada de uma carta de Mrio de Andrade
destinada a Carlos Drummond de Andrade. Ver o anexo IV, que se encontra no final deste
trabalho. 7 H uma Gota de Sangue em Cada Poema, primeiro livro de poesia de Mrio de Andrade, de
1917. J o ltimo, Lira Paulistana, de 1945. Cabe observar que o livro de 1917 se encontra no
volume das obras do autor intitulado Obra Imatura; j o de 1945 se encontra no livro Poesias
Completas. 8 Andrade, Mrio de. O movimento modernista. In: Aspectos da Literatura Brasileira. So Paulo:
Martins, s/ d, p. 242. 9 Esta a tese central do livro Figuraes da Intimidade de Joo Luiz Lafet.
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dilogo com as enormes contradies impostas ao processo de criao e
expresso, num momento marcado pelo desejo de modernizao do pas.
A lrica de Mrio de Andrade parece sempre operar em duas chaves
distintas e complementares. De um lado, ela atende aos requisitos da
modernidade esttica constituda na tradio literria dos pases mais
desenvolvidos da ordem capitalista internacional. De outro, enfrenta as
particularidades culturais tpicas de um pas na periferia desse universo. Pas onde
o prprio carter nacional motivava apaixonada discusso nas primeiras dcadas
do sculo. Em sntese, sua obra marcada por um sopro de compromisso com as
grandes questes de seu tempo, tanto no mbito nacional quanto no universal.
Desde a euforia dos primeiros anos do Modernismo at a amargura que
acompanha o final de sua existncia, desenvolve-se a inquietao criativa e
humana que impede a acomodao aos padres j institudos e estabilizados pelo
prprio Modernismo. Essa inquietao confere a sua produo lrica o aspecto de
oscilao muitas vezes surpreendente, pois, de um livro a outro, o tom, a dico, a
temtica, as resolues formais, o registro lingstico etc., mudam completamente
e apontam para direes muitas vezes opostas e aparentemente contraditrias,
expressas no famoso verso Eu sou trezentos, sou trezentos e cincoenta10.
Outro aspecto marcante e sempre lembrado da sua obra o dilogo entre a
multiplicidade de gneros cultivados pelo autor paulistano: poesia, romance,
conto, pesquisa etnogrfica, ensaio, crtica literria, musical e de artes plsticas
etc. Essa multiplicidade de interesses aponta com clareza para o papel do
intelectual e do artista num contexto socialmente marcado por relaes produtivas
que no permitiam ainda a especializao plena dos agentes de cultura. A obra de
Mrio est sempre encenando a posio do artista e do intelectual na sociedade
brasileira de seu tempo.
Entretanto, cada vez mais, torna-se perceptvel que os desdobramentos
existentes na obra do autor paulistano ocultam um ncleo coerente de questes
prismadas e focalizadas de maneiras diversas, medida que o tempo vai impondo
reavaliaes fundamentais das perspectivas: sob a capa da aparente 10 Verso do poema Eu sou trezentos, que abre o livro Remate de Males.
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multiplicidade de interesses e reas de atuao, esconde-se uma unidade que
paulatinamente desvendada pela crtica.
Segundo Antonio Candido, a chave dessa unidade est no fato de que
Mrio de Andrade Tinha o culto da solidariedade humana, e quem no partir
deste ponto no lhe entender a obra nem a vida11. Desde os primeiros anos de
congregado mariano at a politizao crescente de sua fase final, o sentido de
adeso solidria s grandes questes do tempo percorre sua obra e d-lhe
colorao cada vez mais comprometida com tudo o que produziu ou simplesmente
esboou. A politizao crescente do seu discurso potico acompanhada pela
intensificao do tom amargurado e desencantado, cujo pice est em A
meditao sobre o Tiet poema paradoxalmente revelador tanto do grau de
comprometimento do autor com os conflitos sociais quanto da intensidade de sua
desiluso decorrente da ineficcia do discurso.
Esse movimento , por sua vez, marcado por um outro centrado na
interiorizao do discurso potico, pois no ncleo dos conflitos subjetivos
encenados pela voz lrica que todas as contradies sociais se materializam,
todavia s a aguda conscincia da forma potica moderna pode impedir que o
discurso desge no engajamento esquemtico. A sua forma lrica assume de
dentro para fora o que a constitui enquanto tal: a materialidade das relaes
sociais que so o seu verdadeiro e necessrio oposto dialtico. Essa conscincia
da interiorizao crescente da poesia de Mrio de Andrade claramente definida
por Antonio Candido:
Louvao da tarde, de Mrio de Andrade, foi escrito em
outubro de 1925 e publicado em 1930 como penltimo poema da
srie denominada Tempo de Maria, no livro Remate de Males.
Ele ocupa na sua obra uma posio chave, porque representa a
11 Candido, Antonio. Mrio de Andrade. In: Revista do Arquivo Municipal. So Paulo: DPH, 1990, p.
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passagem da poesia mais exterior dos primeiros tempos de luta
modernista para a poesia mais interior da ltima fase.12
Na mesma direo, segue Joo Luiz Lafet, que, a partir de outras
observaes de Antonio Candido, busca dividir a obra de Mrio de Andrade em
fases relativamente bem delimitadas. Apesar de longa, a citao que se segue
de fundamental importncia para que possamos localizar com clareza a posio
que a Lira Paulistana ocupa na obra do escritor:
Quero registrar agora a leitura de Antonio Candido,
tambm apresentada num ensaio curto de 1942, e que concorda
em pontos importantes com as afirmativas de lvaro Lins.
Examinando o volume de Poesias de 1941, o crtico v ali um
balano de toda a atividade do poeta, capaz de ressaltar a grande
coerncia que manifesta atravs da preciso cada vez maior de
sua maneira potica. E tenta creio que pela primeira vez
esquematizar os vrios aspectos, vrias maneiras, e vrios
temas dessa atividade.
Quanto aos vrios aspectos, Antonio Candido assinala os
seguintes: o poeta folclrico, no Cl do Jabuti; o poeta do
cotidiano, na Paulicia Desvairada, no Losango Cqui e em parte
do Remate de Males; o poeta de si mesmo, ao lado do qual, e
sempre agarrado a ele, est o poeta eu mais o mundo, no Remate
de Males, n A Costela do Gr Co e no Livro Azul; e, por fim, o
criador de Potica. Entre as vrias maneiras, o crtico nota
sobretudo trs: a maneira de guerra do perodo inicial do
Modernismo; a fase de encantamento rtmico, cheia de
virtuosismos saborosos; e a maneira despojada que baixa o tom,
esquece o brilho e busca o essencial. Quanto aos temas, a sua
variedade escaparia a qualquer enquadramento, e ele limita-se a
chamar a ateno para trs ou quatro; o tema do Brasil, o tema
do conhecimento amoroso (e do amor falhado), o tema do
autoconhecimento e da conduta em face do mundo.
12 Candido, Antonio. O Poeta Itinerante. In: O Discurso e a Cidade. So Paulo: Duas Cidades,
1998, p. 257.
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Essa esquematizao medrosamente aventurada
como ele diz cumpre o seu objetivo, que o de indicar a
riqueza da pesquisa potica de Mrio de Andrade. Tem a
vantagem, tambm, de tirar-nos das afirmativas vagas sobre a
diversidade da poesia, e mostrar com clareza os modos dessa
diversidade. Ainda hoje, olhando o conjunto das Poesias
Completas, s nos seria possvel acrescentar mais um aspecto,
uma maneira e um tema, que quela altura no se poderia mesmo
conhecer porque ainda no eram pblicos: o poeta poltico, a
maneira de combate engajada e o tema do choque social,
presentes em O Carro da Misria, Lira Paulistana e Caf.
Mas mesmo assim isso j est, de algum modo, insinuado
no pequeno ensaio crtico, quando Antonio Candido observa que
ao lado do poeta de si mesmo, e sempre agarrado a ele, est o
poeta eu mais o mundo.13
Partindo do esquema proposto por Antonio Candido e das anlises de
Anatol Rosenfeld14 sobre o tema da sinceridade e do cabotinismo em Mrio de
Andrade, Lafet prope a noo de mscara para sistematizar as fases da
poesia do autor na sua relao complexa e mediada pelos impasses histricos e
sociais vividos no perodo de sua produo. Segundo ele, seriam cinco as
mscaras:
preocupao cosmopolita, que sucede s grandes
transformaes urbanas do comeo do sculo, corresponde a face
vanguardista, a mscara do trovador arlequinal, do poeta
sentimental e zombeteiro que encarna o esprito da modernidade
e de suas contradies; s preocupaes com o conhecimento
exato do pas e de suas potencialidades, corresponde a imagem
do estudioso que compila os usos e os costumes (procurando
entend-los e organiz-los numa grande unidade), a mscara do
poeta aplicado; preocupao com as mudanas estruturais em
1930, que para a burguesia significavam o realinhamento e o
13 Lafet, Joo Luiz. A Figurao da Intimidade. So Paulo: Martins Fontes, 1986, pp.6-7. 14 Rosenfeld, Anatol. Mrio e o cabotinismo. In: Texto / Contexto. So Paulo: Perspectiva, 1969.
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reajuste de suas foras em um novo equilbrio, corresponde a
imagem do escritor dividido, do poeta mltiplo, a prpria mscara
da diversidade em busca da unidade; preocupao com as
crises sucessivas da hegemonia com que se defronta o Estado
nos anos imediatamente posteriores revoluo, corresponde a
imagem da crise (ou crise da imagem?), a mscara de uma
intimidade atormentada, feita de mutilaes e desencontros, uma
espcie de espelho sem reflexo; preocupao com a luta de
classes, que floresce nos anos 30 e que a burguesia soluciona
atravs da ditadura e da traio aos seus princpios igualitrios,
corresponde o ltimo rosto desenhado pelo poeta, a figura da
conscincia cindida que protesta, a mscara do poeta poltico.15
Observa-se que o conceito de mscara traz implcita uma viso dualista, a
pressuposio da existncia de uma face atrs do artifcio, de uma verdade
dissimulada. Roberto Schwarz, ao abordar o mesmo tema na obra de Machado de
Assis, afirma:
Eu acho problemtica a utilizao de mscara porque
naturalmente supe que atrs dela exista a cara propriamente dita.
E uma das grandes novidades de Machado de Assis a ausncia
de uma cara atrs da mscara. (...) Quando se pensa,
burguesamente, em mscara, tem-se em mente um disfarce til e
que encobre uma outra coisa, a qual realmente a vida. No limite,
a mscara poderia desaparecer, e apareceria a verdade. Em
Machado de Assis, no.16
Acreditamos tambm que o termo mscara, por ser uma categoria
interpretativa problemtica, insuficiente para explicar a complexidade da poesia
de Mrio de Andrade. As oscilaes poticas do modernista so mscaras? Trata-
se mesmo de mscaras ou de oscilaes expressivas? No seria melhor pensar
15 Lafet, Joo Luiz. Op. cit, pp. 15-16. 16 Bosi, Alfredo et alli. Mesa-redonda. In: Machado de Assis. So Paulo: tica, 1982, p. 334.
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que mscara na verdade a mediao da forma como expresso do trabalho
artstico?
Ao analisar o Livro Azul, parece que Lafet contraditoriamente caminha
nessa direo e define melhor o termo mscara como conscincia da expresso
e da forma, citando o prprio Mrio de Andrade:
Escrevo demais. Jogo sessenta por cento fora e o resto
inda d pra publicar uns trs livros por ano, fantstico. Isso
me desgosta bem. E j no so mais eu! S uns poucos
permanecem eu, pelo menos no meu eu permanente, o que
subsiste atravs de todas as minhas mudanas... O eu atual
dos "Poemas da Negra" e do "Crepsculo", deste eu no estou
gostando absolutamente nada. Foi como amostra apenas.
Estou atingindo, Manu, creio que o cume da minha
invisibilidade. E nisso que estamos atualmente no mximo de
separao: voc todo sensibilidade, todo impulsivo, eu cada vez
mais recatado, mais artfice, mais principalmente invisvel. E me
compreendo na minha invisibilidade. (...) eu quero palavras
lricas, refletindo em antpodas discretos e quase sempre bem
silenciosos os meus sentimentos e vida. Uma espcie de dupla
verdade, as palavras criando, absolutamente castigadas pelo
artista, um jogo vocabular com tudo o que um jogo vocabular
pode dar de sugesto e boniteza pros outros. Pode ser que esta
explicao no esteja clara pra voc mas tenha certeza que sei
muito conscientemente e bem o que quero.17
Ao comentar essas palavras do escritor paulista, Lafet marca o termo
invisibilidade empregado pelo poeta como modo de explicitar o seu trabalho
particular com a forma potica naquele exato momento de sua produo:
Sem dvida, trezentos-e-cinqenta eus. Mas o que me
interessa a a idia de "invisibilidade". Se entendi bem, ele
quer dizer que a poesia desta fase esconde, sob o
encantamento do jogo vocabular, a personalidade do "eu lrico,
17 Apud: Lafet, Joo Luiz. Op. cit., pp. 163-164.
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os arroubos de sensibilidade e os impulsos de inspirao que o
"Prefcio Interessantssimo" elevara tanto. Uma espcie de
objetividade lrica, confiada no poder potico da linguagem do
texto e desconfiada da expresso imediata do sujeito um
desaparecimento do sujeito por detrs do poema.18
A invisibilidade ou objetividade lrica no o que preside toda e qualquer
expresso potica, mesmo as que acreditam na total sinceridade expressiva
como, por exemplo, o romantismo oitocentista? Toda poesia objetividade lrica
porque toda subjetividade pessoal j mediao social. O indivduo carrega
consigo o prprio tempo, a linguagem o melhor exemplo, pois, enquanto, ela se
atualiza nos discursos individuais, tambm um sistema coletivo, uma conveno
social submetida aos ritmos da histria. Dizer eu j dizer mais que eu.
possvel que Lafet tenha tomado o rastro pela ona e encampado as
teorias estticas de Mrio de Andrade ao p da letra. J Roberto Schwarz, num
breve mas muito esclarecedor ensaio, demonstra como o escritor paulista possua
uma viso pouco dialtica do fenmeno potico em seus principais escritos sobre
o tema.
Segundo Schwarz, o poeta paulista oscilou durante a maior parte de seu
percurso crtico entre duas posies diametralmente antitticas e conflitantes.
Inicialmente Mrio de Andrade defende o subjetivismo profundo baseado na
manifestao livre e indomvel dos elementos subconscientes que regeriam o
fluxo do discurso potico, teoria desenvolvida no Prefcio Interessantssimo, de
Paulicia Desvairada:
Para resumir esta primeira posio de Mrio de Andrade,
subjetivista, podemos dizer que criou um universo conceitual para
explicar a poesia no qual ela no tem lugar; vista como igual
verdade psicolgica, perdeu sua especificidade. No quadro
maniquesta de oposies que Mrio aceita no existe superao,
a nica possibilidade mudar de lado: ser lrico ou tcnico,
obedecer ao subconsciente ou conscincia, ser individualista ou
18 Idem, ibidem, p. 164.
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poltico (...) A superao dessas antinomias, a dialtica do
particular e do universal, do individual e do significado, ncleo
justamente da experincia esttica, torna-se inconcebvel na
oposio absoluta em que so mantidos os pares conceituais.19
No segundo momento, a teoria recai no plo oposto, defende-se o controle
que os mveis conscientes devem desenvolver sobre as presses das foras
subconscientes, muitas vezes movidas por feias intenes. A poesia deveria ser
expresso de um projeto maior que vencesse o psicologismo da primeira
concepo. Nesse momento, est no horizonte das preocupaes do poeta, o
projeto nacionalista que deveria conduzir os esforos da criao. Essa posio
vem expressa na teoria das duas sinceridades e da sinceridade total presentes
no ensaio sobre o cabotinismo do livro O empalhador de passarinhos:
Estamos no avesso do primeiro esquema. Os valores
positivos esto vinculados conscincia e a conveno, na
medida justamente em que estas tomam s fontes originrias a
virulncia catica. O que fora fonte de todo o bem, passa agora a
ser visto como raiz da desordem. (...) A inverso de valores que
presenciamos pode ser sintetizada: a nfase abandona o que
(verdade psicolgica) para prender-se ao socialmente til e
tangvel. Os valores passaram para os propsitos, estes
impregnados todos pela idia do nacionalismo. A poesia passa a
ser tarefa que exige cultura e estudo, pois deve ser um passo
construtivo na tradio que se elabora20.
A oscilao entre essas duas concepes divergentes teria como efeito o
fato de que Sua reflexo habita como que um poo de paredes lisas, sem sada
natural, no qual circula e do qual somente por um salto poderia escapar21. Para
Roberto Schwarz, s na fase final de sua reflexo, o modernista paulista caminhou 19 Schwarz, Roberto. O psicologismo na potica de Mrio de Andrade. In: A sereia e o desconfiado.
So Paulo: Paz e Terra, 1981, p. 18. 20 Idem, ibidem, pp. 19-20. 21 Idem, ibidem, p. 19.
-
21
para uma concepo menos estanque e dualista sobre a poesia e que se
manifesta no conceito de tcnica pessoal:
pela expresso mais rigorosa de sua verdade pessoal,
diz Mrio, que o indivduo se universaliza; ao mergulhar em sua
prpria subjetividade encontrar ao fundo, o social. A tcnica deixa
de ser negao do lirismo, pelo contrrio torna-se a condio de
sua realizao. Nesta dialtica estar a moralidade do artista,
assim como a possibilidade de pensar filosoficamente a obra de
arte. O apoio de texto que encontramos para esta ltima
superao mnimo, mas pensamos que bastante convincente.22
No obstante o conceito utilizado (mscara ou face), o leitor se defronta
continuamente com a questo da pluralidade da obra de Mrio de Andrade: os
muitos rumos da obra de Mrio constituem sem dvida um dos motivos da
paralisia da nossa crtica, que tem esbarrado na sua espantosa complexidade, at
hoje no assimilada de forma completa23.
O famoso verso Eu sou trezentos, trezentos-e-cincoenta..., repetido
insistentemente por todos os estudiosos do poeta, ganha foro de verdadeira
recitao ritualstica, porquanto diante dele todos sucumbem siderados pelo seu
poder de re-velao da interioridade mais profunda da obra do escritor paulista.
Velar e revelar constituem o movimento paradoxal e pendular desse verso,
cmara ardente, que, simultaneamente, ilumina o morto e ofusca-o pelo excesso
de luz24.
Segundo Lafet, a questo da pluralidade da obra de Mrio de Andrade
est diretamente associada pesquisa da prpria identidade, fenmeno j
percebido por Anatol Rosenfeld, e salientado por lvaro Lins e Antonio Candido:
22 Idem, ibidem, p.21. 23 Lafet, Joo Luiz. Op. cit., p. 2. 24 Pasta Jnior, Jos Antnio. Pompia: a metafsica ruinosa dO Ateneu. So Paulo: USP, 1991.
-
22
E nesse ponto que sua crtica parece convergir com a de
lvaro Lins, destacando uma face importante que nos desvenda,
no mais a diversidade da poesia, mas a sua unidade. Ambos
vem com muita clareza que o melhor Mrio de Andrade aquele
que explora o seu sentimento ntimo de homem (lvaro Lins),
aquele que se retira em si mesmo (Antonio Candido). Ambos
compreendem, tambm, que esse movimento de explorao da
subjetividade acaba por revelar o mundo de forma mais clara de
que os poemas intencionais.25
Portanto o mergulho em direo interiorizao do discurso potico implica
adensamento da expresso lrica. O mergulho profundo na crise subjetiva produz
um sistema de imagens que capaz de revelar muito mais do que a simples crise
da identidade:
E aqui estamos no centro do problema. O fato que, se a
poesia de Mrio de Andrade constitui uma explorao do eu e
conta, como afirma lvaro Lins, a histria de um homem
multiplicado que procura encontrar-se a si mesmo (e isso
explicaria a sua pluralidade de temas e tcnicas), ela constitui
tambm uma tentativa de explorar a multiplicidade da cultura
brasileira e de contar a histria de um intelectual que procura
encontrar a identidade de seu pas (e isso explicaria melhor as
determinaes sociais da pluralidade). O movimento simultneo
e solidrio: a busca da identidade nacional (enredada como
veremos nos interesses da classe a que pertence o escritor) liga-
se ao problema mais ntimo da descoberta da prpria
identidade.26
Dessa forma, as figuraes da intimidade so na verdade figuraes da
exterioridade e vice-versa, portanto o ncleo que alimenta toda a lrica do poeta
paulistano provavelmente toda a sua obra est no fato de que ela tem de
atender a dois regimes diferentes e contraditrios, apesar de solidrios: a 25 Idem, ibidem, pp. 7-8. 26 Idem, ibidem, p. 8.
-
23
constante oscilao entre o eu o outro, entre a interioridade e a exterioridade,
entre o indivduo e a nacionalidade, entre o indivduo e a classe e entre a unidade
e a multiplicidade, desdobrando-se e alastrando-se em outras oscilaes: o
nacional e o universal, o popular e o erudito, a msica e a literatura, a criao e a
crtica.
O fenmeno descrito indicia uma fratura muito mais profunda e complexa
que transita diretamente pela funo do intelectual e do artista num pas perifrico,
como o Brasil, oscilando tambm entre dois regimes contraditrios formadores
de nossas estruturas sociais e subjetivas. Em suma, a nossa eterna conjuno de
traos e heranas arcaicas associadas a um processo irregular e heterogneo de
modernizao, que no nos permite atingir a modernidade. Num ensaio recente
sobre o Grande Serto: Veredas, Jos Antnio Pasta Jnior aponta para um
problema similar:
Neste ponto, embora precocemente e para desenvolver
adiante, tocamos em algo de essencial para o livro: essa juno
inextricvel, em um mesmo princpio, de movncia obrigatria e
fixidez inamovvel, de metamorfose contnua e pura repetio,
indica a frmula de base que aqui se trata de identificar, o estatuto
da contradio insolvel. Agitada internamente por uma movncia
interminvel ou movimento contnuo, ela se mexe
incessantemente sem , no entanto, sair jamais do lugar. Assume,
assim, a configurao de uma espcie de dialtica negativa, que a
contradio faz bascular sem parada, mas que no conhece
superao ou sntese propriamente ditas27.
E a explicao desse fenmeno estaria no processo histrico particular de
formao do pas, que estrutura todos os nveis de relaes, sociais ou subjetivas:
Nao colonial e ps-colonial, o Brasil j surge na rbita
do capital e como empresa dele, mas se estabelece e evolui com
27 Pasta Jnior, Jos Antnio. O romance de Rosa in: Novos estudos Cebrap. So Paulo: Cebrap,
1999, n. 55, p. 63.
-
24
base na utilizao macia, praticamente exclusiva e multissecular,
do trabalho escravo. Essa contradio de base forma uma espcie
de enigma histrico e sociolgico que as cincias humanas
permanecem a interrogar entre ns. Quem acompanha o debate
brasileiro sabe os trabalhos a que se do sociologia, histria,
filosofia, economia para identificar, enfim, o modo de produo
que diz respeito nossa formao histrica, numa querela que
segue aberta. Ao longo de sculos, e de um modo que nunca
superam completamente seja a Independncia, sejam as
sucessivas modernizaes conservadoras, o Brasil praticou a
juno contraditria de formas de relaes interpessoais e sociais
que supem a independncia ou a autonomia do indivduo e sua
dependncia pessoal direta28.
Essa contradio insolvel evidente na experincia do escritor brasileiro
e dela Mrio de Andrade demonstra ter conscincia. Percorre constantemente sua
obra figuraes mais ou menos veladas da posio conflituosa que o escritor
moderno ocupa em solo nacional e, sobretudo, na periferia do capitalismo.
Retomando a apresentao das linhas gerais de interpretao proposta por
Lafet, necessrio ressaltar que o autor de Figurao da Intimidade insiste na
necessidade de se estudar a poesia de Mrio de Andrade como uma totalidade
complexa, no entanto o crtico admite a enorme dificuldade de se executar tal
tarefa. Por isso ele se concentra numa das mscaras, designada espelho sem
face.
Embora empregue de forma provisria e distanciada a terminologia do
crtico, o presente trabalho se prope a analisar a ltima mscara do poeta
paulistano, buscando no plo da exterioridade a contrapartida do processo lrico
do autor. Lira Paulistana poderia ser enquadrada no ltimo aspecto (o poeta
poltico), na ltima maneira (a maneira de combate engajada) e no ltimo
tema (o tema do choque social) propostos por Lafet luz do ensaio de Antonio
Candido (o poeta eu mais o mundo). Alm disso, como ltimo livro de poesia
28 Idem, ibidem, p. 67.
-
25
lrica de Mrio de Andrade, condensa um horizonte mais amplo de articulao.
Trata-se, pois, de uma sntese da trajetria do poeta.
Ao lado do poeta poltico, da maneira de combate engajada e do tema
do choque social, afloram no livro quase todas as grandes preocupaes que se
disseminam na produo potica de Mrio de Andrade, agora lidas em nova
chave: a conscincia plena do conflito social.
Em suma, desejamos resenhar o longo percurso do escritor paulista em
direo a concepes cada vez mais precisas e agudas, como as que concluem
Caf:
Eu me sinto mais recompensado de ter feito esta pica.
Dei tudo o que pude a ela, pra torn-la eficaz no que pretende
dizer, lhe dei mesmo com pacincia os mil cuidados de tcnica,
pra convencer tambm pelo encantamento da beleza. Mas
duma beleza que nunca perde o senso, a inteno de que devia
ser bruta, cheia de imperfeies picas. Nada de bilros nem de
buril. Pelo contrrio, muitas vezes a perversidade impiedosa da
idia definidora por exagero, fiz acompanhar da perversidade
tosca da voluntria imperfeio esttica.
(...) Eu tenho desejo de uma arte que, social sempre,
tenha uma liberdade mais esttica em que o homem possa criar a
sua forma de beleza mais convertido aos seus sentimentos e
justias de tempo da paz. A arte filha da dor, filha sempre de
algum impedimento vital. Mas o bom, o grande, o livre, o
verdadeiro ser cantar, as dores fatais, as dores profundas,
nascidas exatamente desta grandeza de ser e de viver.29
Para a compreenso da complexidade da Lira Paulistana, faz-se necessrio
compreender que tipo de poeta poltico este, o seu modo de combate engajado,
a sua perspectiva do choque social consideraes que se impem aos modos
de representao empregados pelo poeta em conexo com a busca de novas
solues formais e expressionais e s redefinies particulares impostas s 29 Andrade, Mrio de. Caf. In: Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia / So Paulo: Edusp,
1987, pp. 421-422.
-
26
obsesses temticas, formais e estilsticas que percorrem toda a lrica do
modernista paulistano.
Uma dessas obsesses, entre muitas, est nos modos particulares de
representao do espao urbano paulistano, que um corte temtico iluminador
das contradies internas dessa poesia. So Paulo atravessa a poesia de Mrio
de Andrade e constitui-se na exteriorizao tanto dos dramas individuais quanto
dos coletivos internalizados na dinmica particular do sujeito lrico que os
dramatiza e lhes d sustentao.
O presente trabalho se prope, ento, a analisar a Lira Paulistana de Mrio
de Andrade, buscando demonstrar que esse livro apresenta uma sntese do
percurso potico do autor, pois nele se encontram as principais linhas de fora que
percorrem toda a sua lrica.
Partindo desse pressuposto de fundamental importncia transcrever uma
declarao do prprio escritor que elucida, em parte, a gnese do livro:
Assim mesmo, uma semana faz, deu a louca, fiz uma srie
de poesiazinhas, umas quinze, curtas, que no sei como chamo:
Poemas Paulistanos, Cuca Paulistana, Lira Paulistana, tem de ser
um nome assim, porque so poemas de So Paulo. Ou melhor:
poemas urbanos. (...) A histria da inveno desses poemas
engraada, embora seja mesmo um feito meu. Em 1936, lendo um
livro de Paul Radin, Primitive Man as Philosopher fiquei
impressionado com uns cantos maoris que achei nele. Dias depois
li na Revista Lusitana umas poesias do jogral Martim Codax,
galego, no me lembro mais se dos sc. XII ou XIII. Achei lindo,
veio a idia (sempre falsa mas acatvel em poesia) de fazer uns
poemas naquele esprito e renovando aquelas tcnicas. Peguei
uns caderninhos de fazer versos, tomei nota de tudo e datei.30
30 Apud: Dila Zanoto Manfio. In: Andrade, Mrio. Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia / So
Paulo: Edusp, 1987, p. 34.
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27
Em primeiro lugar, cumpre observar a hesitao na escolha do nome
(Poemas, Cuca, Lira) e a permanncia do adjetivo (Paulistano/a); este expressa
claramente a conscincia de que os poemas que compem o livro so urbanos e
paulistanos. Portanto a identidade da voz lrica se funda na relao particular com
um espao urbano determinado.
Outro aspecto importante so os substantivos que antecedem o adjetivo
Paulistana(o): Poema, Cuca e Lira. Os dois ltimos termos fazem referncia
a instrumentos musicais. A cuca, da tradio popular; a lira, da tradio erudita.
Esta associa poesia e msica relao com razes na cultura clssica (Hermes/
Apolo/ Orfeu). A simples indefinio cuca/lira expe oscilaes muito mais fortes
e relevantes no universo particular da obra de Mrio de Andrade: o popular e o
erudito, o nacional e o universal, o mtico e o histrico, o arcaico e o moderno.
Ao citar os cantos maoris, o poeta paulistano recua at as fontes primitivas
do lirismo (o livro de Paul Radin), explicitando as preocupaes antropolgicas de
que a obra de Mrio de Andrade est saturada; recua, ainda, tambm at as
fontes mais antigas do lirismo em lngua portuguesa, as cantigas medievais
(Martim Codax, o Trovadorismo).
No entanto a regresso esttico-literria perpassada pela conscincia
moderna de que preciso incorporar a tradio renovando-a (fazer uns
poemas naquele esprito e renovando aquelas tcnicas.), de que Macunama o
melhor exemplo: sobreposio de tempos e de espaos em que os elementos
modernos e os arcaicos se fundem de forma inextricvel.
Essa conscincia da relao contraditria na modernidade entre tradio e
renovao exemplarmente explicada por Antonio Candido no contexto particular
da obra de Mrio Andrade, em O poeta itinerante, que retomaremos em seguida.
Na Louvao da tarde, durante um passeio de carro por um cafezal, a voz
lrica medita sobre a prpria trajetria criativa. Ao longo dos versos, como
demonstra a anlise de Antonio Candido, o poeta vai assimilando, de maneira
quase pardica vale dizer moderna os elementos da tradio potica (os
versos decasslabos brancos, a poesia meditativa romntica, em especial a
inglesa etc.). Sua conscincia da tradio to avanada que ele capaz de
-
28
superar o prprio repertrio do Futurismo Italiano e, por conseqncia, o repertrio
de parte expressiva da retrica modernista.
Segundo Antonio Candido, Mrio de Andrade v com distanciamento
crtico um elemento fundamental da constituio do moderno: o elogio da mquina
representada pelo automvel:
Percebemos ento que o poema assenta sobre uma base
de paradoxos, porque a tarde devaneio gratuito, mas
reservatrio de trabalho; repouso e construo. O movimento
da fatura rene os dois plos e extrai deles a unidade pela fuso
dos contrrios, que so complementares. Este paradoxo afina com
o da forma e o do gnero: o poema de um modernista em
decasslabos brancos; a meditao romntica reinventada para
exprimir uma situao atual.31
A justaposio de termos, em princpio opostos e, por isso, paradoxais,
revela um sistema imagtico regido pela oposio, pela contradio insolvel,
que percorre a totalidade da obra de Mrio de Andrade e apresenta, segundo o
nosso ponto de vista, o seu momento mximo na Lira Paulistana. Esse aspecto
ser o centro da intuio geral que conduz o segundo captulo deste trabalho.
Retomando Antonio Candido:
Paradoxo talvez mais importante do ponto de vista de uma
esttica do Modernismo o que contrape o automvel,
instrumento de velocidade, quietude vesperal do devaneio. Mas
aqui, em vez de destru-la pela rapidez do percurso, ele ajuda a
constru-la. Neste poema, tudo o que o Futurismo queria revogar
(inclusive o chiaro di luna ) est no cerne do discurso, e em lugar
da velocidade domesticar o mundo o mundo que domestica a
velocidade, submetendo-a ao ritmo natural. O automvel perde
caractersticas de mquina e adquire um toque de vida, facilitando
a citao quase pardica dos traos romnticos. E os dois
31 Candido, Antonio. O Poeta Itinerante. In: O Discurso e a Cidade. So Paulo: Duas Cidades,
1998, pp. 277-278.
-
29
momentos histricos se enlaam, porque o tema de Louvao da
tarde parece transcender o tempo, na medida em que encarna
tambm o andamento da tradio literria, mostrando que Mrio
de Andrade era capaz de passar do modernismo propriamente dito
modernidade, que recupera a tradio ao super-la.32
A meditao sobre o Tiet pode ser lida, com certeza, nessa mesma
chave apresentada por Antonio Candido, pois possvel localizar na Lira
Paulistana recorrncias e constncias temticas que percorrem a lrica de Mrio
de Andrade: a potica da cidade; a relao entre poesia e msica; o cruzamento
entre tradio e renovao esttica; a questo do popular e do erudito; do nacional
e do universal; do arcaico e do moderno; do mtico e do histrico etc.
A primeira inteno rastrear essas constantes presentes no livro para, a
seguir, demonstrar como a representao delas se altera ao longo da atividade
criativa do autor em funo das novas circunstncias em que foram atualizadas:
sob a diversidade da produo marioandradina existe um eixo organizador que lhe
confere intensa unidade.
E, por ltimo, necessrio destacar que o ncleo da obra potica de Mrio
de Andrade contm um conflito central constantemente apontado pelos crticos: a
busca da prpria identidade que passa necessariamente pela busca da identidade
do outro. O outro reconhecido e materializado na mtica da modernidade
urbana (o trovador arlequinal); na mtica da identidade nacional (o poeta
aplicado); na sntese da prpria tradio potica (o poeta da Louvao da
tarde); na perda da prpria imagem (o espelho sem reflexo); finalmente, na
conscincia de classe (o poeta poltico).
H na poesia de Mrio de Andrade, portanto, um movimento travado entre
as figuraes da intimidade e as figuraes da exterioridade. Somente no
trnsito constante entre esses dois plos que os impasses de sua produo
revelam sua complexidade e sua capacidade de formalizar contradies de
alcance muito maior que esto na base da moderna cultura brasileira. A obra de
32 Idem, ibidem, p. 278.
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30
Mrio de Andrade se conforma em complexa tentativa de atender a dois regimes
diversos de exigncias: o da esfera da exterioridade e o da esfera da interioridade.
A oscilao entre arte de circunstncia, de participao nos conflitos do
tempo presente e a arte de permanncia, autnoma e vlida em si mesma,
apenas mais uma dessas oscilaes.
O conflito potico de Mrio de Andrade obviamente tem razes subjetivas
fundadas na experincia do escritor e, por isso, pode ser iluminado pela
psicanlise, est amplamente fundado nas relaes sociais e humanas
particulares do pas, fundadas no entrelaamento de elementos modernos e
arcaicos jamais superados ao longo da nossa prpria histria.
A busca pungente e constante pela identidade sintoma claro de sua
perda, de sua indeterminao ou de sua inexistncia: estamos diante do complexo
caminho que vai da euforia desvairada dos anos vinte amargura do final da
dcada de quarenta.
-
31
Captulo I
A questo da classe: o intelectual e as elites nacionais
O Poeta e a Rainha
A idia central deste captulo baseia-se na intuio de que a poesia final de
Mrio de Andrade est em conexo direta com a conscincia que o poeta paulista
possua da posio do escritor no quadro das novas relaes sociais e polticas
existentes no pas a partir da revoluo de 1930.
H uma declarao de Mrio de Andrade que de fundamental importncia
para a compreenso do ncleo de conflitos que permeiam os poemas de Lira
Paulistana:
S mais uma explicao. E um esclarecimento. Pra
confirmar a fase scio-estourante da minha vida, esse perodo
1929-1935, ainda tem a talvez mais trgica das arrebentaes, o
Gr Co de Outubro que de 1933, de quando me vieram as
preocupaes feias de ter feito quarenta anos. (Agora, nos 50, no
tive preocupao nenhuma.) De maneira que as datas do
desfazimento em mim dos prazeres e prerrogativas da minha
classe so essas: 1930, O Carro da Misria; 1932, 2 verso
definitiva do mesmo; 1933, Gr Co de Outubro e enfim, fins de
1934, o artigo me confessando coram populo comunista. Sem
s-lo e sem selo nenhum, hels!33
33 Apud: Lafet, Joo Luiz. A Figurao da Intimidade. So Paulo, Martins Fontes, 1986, p.118.
Torna-se necessrio acrescentar os comentrios do poeta sobre O carro da misria: E esse
assunto do poema, que agora vai esclarecer o sentido dele todo e de numerosos versos e mesmo
partes inteiras dele, a luta do burgus gostoso satisfeito das suas regalias, filho-da-putamente
encastoado nas prerrogativas da sua classe, a luta do burgus para abandonar todos os seus
preconceitos e prazeres em proveito de um ideal mais perfeito. Ideal a que a inteligncia dele j
tinha chegado por deduo, lgica e estudo, e que a noo moral aprovava e consentia, mas a que
tudo o mais nele no consentia, no queria saber. Simplesmente porque estava gostoso. Apud:
-
32
A dcada de 1930 marcou uma ruptura fundamental na composio social e
poltica da nao. A secular elite agrria nacional paulatinamente cede lugar s
novas foras sociais que representavam o desejo de modernizao capitalista do
pas.
Mrio de Andrade um escritor que desde cedo percebeu criticamente as
complexas relaes que mediavam as ligaes existentes entre os escritores
modernistas e essa mesma elite agrria decadente. Em torno de 1930, o lao que
os unia se dissolve e o poeta se v entregue a um novo mundo de relaes
sociais em que as alianas de classe mesmo que conflitivas no so mais
possveis (desfazimento em mim dos prazeres e prerrogativas da minha classe).
Resta ao poeta a conscincia de seu estado de derrelio.
Em princpio, procuraremos demonstrar como Mrio de Andrade elabora
ficcionalmente em diversos textos suas complexas relaes com a elite agrria
paulista, pois uma das mais importantes questes presentes na obra do
modernista diz respeito s condies objetivas de produo artstica e intelectual
no Brasil ao longo da primeira metade do sculo XX.
As relaes entre o intelectual e os representantes das elites nacionais
esto diretamente ligadas a esse problema, pois a autonomia do artista aspecto
central na constituio de um sistema literrio moderno. Nas sociedades
capitalistas, o mercado literrio assume papel preponderante na produo,
circulao e consumo da literatura, definindo o espao especfico do escritor e
suas relaes de maior ou menor autonomia em relao aos donos da vida34.
No Brasil, o mercado literrio ao longo da primeira metade do sculo XX era
de tal forma precrio que obrigava convivncia muitas vezes contraditria entre
o escritor e as classes dirigentes, estabelecendo relaes de dependncia focadas
no favor. A posio do artista brasileiro se assemelhava em muito do agregado,
permanentemente orbitando, ento, entre a dependncia e o favor, o que, por sua
Knoll, Victor. Paciente arlequinada. So Paul: Hucitec / Secretaria de Estado da Cultura, 1983, pp.
128-129. 34 Andrade, Mrio de. A Meditao sobre o Tiet. In: Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia /
So Paulo: Edusp, 1987, p. 393.
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33
vez, reduzia drasticamente a autonomia do criador e seu poder de discordncia no
que tange crtica radical.
Mrio de Andrade, artista consciente dessas contradies iniludveis, em
vrios momentos e, de maneira mais ou menos explicita, d expresso literria a
esse problema.
Nas suas relaes pessoais muito prximas, principalmente com Paulo
Prado e D. Olvia Guedes Penteado, fica patente o mal-estar que permeia o
trnsito entre eles. A constante contradio entre a proximidade afetiva e a
distncia crtica, entre a dependncia e a autonomia aparece nos seus
depoimentos e serve de base para a elaborao da prpria obra.
Na famosa conferncia intitulada O Movimento Modernista proferida em
1942, na Casa do Estudante do Brasil no Rio de Janeiro, a convite de Carlos
Drummond de Andrade , em meio ao seu contundente balano crtico da
Semana de Arte Moderna e seus desdobramentos, Mrio se refere aos sales
literrios que alimentaram o movimento modernista. perceptvel na descrio
desses sales justamente a convivncia bem prxima entre os artistas e as elites
nacionais.
Segundo ele, foram quatro os sales mais importantes: o da Rua Lopes
Chaves; o da Av. Higienpolis, de Paulo Prado; o da Rua Duque de Caxias, de D.
Olvia e, finalmente, o da Alameda Baro de Piracicaba, de Tarsila Amaral. Ao se
referir ao segundo, o poeta declara:
A aristocracia tradicional nos deu mo forte, pondo em
evidncia mais esta germinao do destino tambm ela j
ento autofagicamente destruidora, por no ter mais significao
legitimvel. Quanto aos arists do dinheiro, esses nos odiavam no
princpio e sempre nos olharam com desconfiana. Nenhum salo
de ricaos tivemos, nenhum milionrio estrangeiro nos acolheu.
Os italianos, os alemes, os israelitas se faziam mais guardadores
do bom-senso nacional que Prados e Penteados e Amarais35
35 Andrade, Mrio de. O Movimento Modernista. In: Aspectos da Literatura Brasileira. So Paulo:
Martins, s / d, p. 241.
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34
Noutro momento, Mrio de Andrade, ainda falando sobre os sales
modernistas, afirma:
Havia o salo da avenida Higienpolis que era o mais
selecionado. Tinha por pretexto o almoo dominical, maravilha de
comida lusobrasileira. Ainda a a conversa era estritamente
intelectual, mas variava e se alargava. Paulo Prado com o seu
pessimismo fecundo e seu realismo, convertia sempre o assunto
das livres elocubraes artsticas aos problemas da realidade
brasileira. Foi o salo que durou mais tempo e se dissolveu de
maneira bem malestarenta. O seu chefe, tornando-se, por
sucesso, o patriarca da famlia Prado, a casa foi invadida, mesmo
aos domingos, por um pblico da alta que no podia compartilhar
do rojo dos nossos assuntos. E a conversa se manchava de
pquer, casos da sociedade, corridas de cavalo, dinheiro. Os
intelectuais, vencidos, foram se arretirando.36
Observa-se nesse trecho, principalmente nas linhas finais cujo estilo
apresenta uma formulao extraordinria , o mal-estar dos intelectuais diante
da gente endinheirada que freqentava a casa de Paulo Prado. A expresso a
casa foi invadida e a conversa se manchava so exemplares do deslocamento
do intelectual, mesmo no seio da aristocracia que supostamente nos deu mo
forte.
Em outro momento, fica mais clara ainda a conscincia do escritor paulista
das relaes tensas que sempre evolveram o trnsito dos modernistas entre as
elites que os apoiaram:
Mas dos trs sales aristocrticos, Tarsila conseguiu dar
ao dela uma significao de maior independncia, de comodidade.
Nos outros dois, por maior que fosse o liberalismo dos que os
dirigiam, havia tal imponncia de riqueza e tradio no ambiente,
que no era possvel nunca evitar tal ou qual constrangimento. No
36 Idem, ibidem, p. 239.
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35
de Tarsila jamais sentamos isso. O mais gostoso dos nossos
sales aristocrticos.37
A conscincia da dissonncia, que passa objetivamente pela classe social,
no poderia ser mais clara. Por mais amplos que fossem os horizontes dessa
aristocracia decadente, a diferena de origem intransponvel e os interesses da
vanguarda esttica irreconciliveis com esse mundo de relaes pessoais e
sociais. A produo crtica exige distanciamento e autonomia por parte do escritor.
Sintomticas dessa posio contraditria do intelectual brasileiro, oscilando
sempre entre a dependncia objetiva e a autonomia relativa, so as relaes
estabelecidas entre Mrio de Andrade e D. Olvia Guedes Penteado. O mal-estar
permanente do autor da Paulicia facilmente detectvel no livro O Turista
Aprendiz, dirio da viagem empreendida pelo poeta, a grande dama e duas
jovens ao Amazonas no ano de 1927. Nas pginas iniciais do livro, j patente o
desconforto do escritor pelas circunstncias envolvidas na aventura:
no me despedi de ningum direito, nem percebi certo
quantos companheiros de viagem iam no bando. J de So
Paulo sabia que eram uma poro e gente de circo, disposta e
bem divertida. Pois quando dou tento mesmo definitivo no caso,
toda a gente roera a corda! Estamos apenas dona Olvia, e as
duas moas, Dolour e Mag. Dona Olvia com aquele sorrizinho
dela, me fala:
Voc deve estar bem descontente de ser o nico
homem da expedio
Se soubesse que era assim, no vinha, dona Olvia.
Meio spero, sincero. Ela no teve o que dizer. Nem eu.
Estava com raiva dela e das moas. Ela se lembra de contar que
Washington Lus telegrafou aos presidentes de estado e pro
Peru.38
37 Idem, ibidem, p. 240. 38 Andrade, Mrio de. O Turista Aprendiz. So Paulo: Duas Cidades, 1983, pp. 53-54.
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O poeta no esconde sua irritao com a posio delicada que ele ocupa
na expedio (nico homem), uma espcie de guardio. Nota-se a ironia
presente em aquele sorrizinho dela. Alm disso, o interesse de Washington Lus
est claramente ligado ao fato de dona Olvia ser quem : a Rainha do Caf. Ou
nas palavras de Oswald: Nossa Senhora do Brasil. Mais tarde ela ser tambm
designada, na fico que corre paralela ao dirio, como Juzo Final. Essas duas
ltimas designaes no podem ser compreendidas sem o pano de fundo do
catolicismo brasileiro, em conexo direta com a aristocracia paulista do caf.
A reverncia e a ironia contraditoriamente se do as mos nas designaes
dadas D. Olvia, o que por si s dimensiona a complexidade da questo:
dependncia objetiva e autonomia relativa. A oscilao existente entre a
proximidade afetiva e a distncia crtica que d o balano to sugestivo e
particular do estilo do fragmento.
Em outro momento, o real motivo da irritao de Mrio de Andrade fica
ainda mais explicito, porque revela a posio por ele ocupada na comitiva de
Dona Olvia:
Pelas oito horas chegou-se a Porto Velho, com o Sto.
Antnio do Mato Grosso, na mesma margem, no outro estado do
Brasil, a meia hora de olhar. Recepo oficial. Uma escola pblica,
com a professora num estado maravilhoso de elegncia
gorduchinha, coisa linda! acompanhando dona Olvia.
Apresentaes em penca. Visitas. Mercado sem carter. Jornal.
Almoo de bordo. Enfim posso sair mais livremente. Telegrafo.
Fotografias.
Dr. Mrio de Andrade, secretrio da Rainha do Caf.
Desta vez me arrebentei, porque arrebentei!
Mas eu no sou secretrio de dona Olvia
Mas! o sr. no veio na companhia dela, ento!
Sim somos muito amigos, viemos
Ento o sr. est fazendo a viagem por sua conta!!!
Nem era possvel zangar com o homem tal o pasmo dele,
vendo algum que no era uma rainha enfarada e decerto meio
maluca, andar por aquelas paragens. Ento expliquei com muita
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pacincia pra ele, espcie de expedio coletiva embora tardia,
dada a centenas de pessoas que j tinham privado comigo nesta
viagem, expliquei que no, que ramos um grupo de amigos
paulistas, curiosos de conhecer outros brasis, viajando cada qual
por conta prpria, pela vaidade ou ventura de conhecer coisas.39
evidente a necessidade de o poeta explicitar sua independncia de dona
Olvia, pois tudo passa pela questo do dinheiro, da classe, obviamente, da
dependncia (no sou secretrio). Mrio de Andrade faz questo de explicitar
sua relao de igualdade com dona Olvia (somos muito amigos) e, assim,
afirmar sua autonomia.
A presena da professora provinciana, no incio do fragmento, explicita a
sua condio de subservincia (num estado maravilhoso de elegncia
gorduchinha... acompanhando dona Olvia), ironizada pelo poeta (coisa linda!).
Outro momento marcante da permanente dissonncia se d num episdio,
em que, dessa vez, a ironia parte de dona Olvia em direo ao modernista:
Dona Olvia com as moas vo no baile. Me recuso com
tanta energia, que dona Olvia me olha como surpreendida. Depois
sorri. Depois ri francamente em cima de mim.
Mrio, voc no esquea de adquirir sua liberdade
quando quiser
Desaponto:
Eu sei, dona Olvia mas no isso no!
Ela sorri um est bom meio irnica e se transforma numa
gara real.
Bom, mas desta vez, francamente j era demais! Resolvo
gastar o tempo da noitinha no cinema ()40
Bentinho ou Jos Dias, ao se dirigirem dona Glria, no seriam mais
enviesados do que o escritor na resposta dona Olvia: Eu sei, dona Olvia
mas no isso no!.
39 Idem, ibidem, pp.149-150. 40 Idem, ibidem, p. 153.
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Num trecho da correspondncia de Mrio de Andrade, destinada a Manuel
Bandeira e selecionado por Drummond, encontra-se a seguinte explicao sobre a
viagem Amaznia em que a questo do dinheiro tambm tema central e est
associada figura de dona Olvia:
Dona Olvia faz tempo que vinha planejando uma viagem
pelo Amazonas adentro. E insistia sempre comigo pra que fosse
no grupo. Eu ia resistindo, resistindo e amolecendo tambm. Afinal
quando quase tudo pronto, resolvi ceder mandando merda esta
vida de merda. Vou tambm. Isto , inda no sei bem se vou, s
falta saber o preo da viagem. Se ficar a por uns quatro contos,
vou, se ficar pra cima de cinco no vou. Tenho que emprestar
dinheiro pra ir e isso vai me deixar a vida bem mais difcil depois e
os projetos no tinteiro. O Cl prontinho da silva, capaz de entrar
agora mesmo pr mquina, agora pra quando? Ora! Que bem
me importa41
No fragmento, fica visvel que a oscilao apresentada a viagem ou a
publicao da obra (Cl do Jabuti) determinada pelo dinheiro. No final da
expedio Amaznia, a questo do custo da aventura tambm aflora. Aps
contar a entrevista que ele concedeu a um jornalista, o poeta anota:
A segunda anedota, bem podia se chamar O preo da
Amaznia. Parto, apenas com quatorze mil-ris no bolso, o
dinheiro evaporou. Alm dos meus gastos, andei emprestando s
meninas, que j esto com vergonha de pedir mais dinheiro a
dona Olvia, e o resultado esse, gorjetas dadas, tudo pago, estou
com quatorze mil-ris apenas. ()
Mrio
At me assustei.
O que , Rainha!
Com as despedidas, no pude tirar dinheiro no banco.
Voc pode me emprestar algum pra viagem?
41 Andrade, Carlos Drummond. A Lio do Amigo. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1982, p. 254.
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39
Tomo com um soco na boca do estmago: fico
inteiramente desorientado. Ela inteirada da situao, apenas sorri,
viajadssima. Ter uns vinte ou trinta mil-ris consigo. Faremos
dvidas, pagveis no Rio de Janeiro. Mas no me conformo com o
vexame. Vou dormir sem graa nenhuma.42
O constrangimento do poeta visvel. E, mesmo sem dinheiro, dona Olvia
possui mais do que ele. Na verdade, a expresso faremos dvidas coloca-o na
posio de dependncia que to zelosamente ele procurou evitar. O Turista
Aprendiz frtil em exemplos do permanente mal-estar diante do favor. Em outro
momento, o escritor faz referncia a um episdio interessante, em que dona Olvia
se v na posio de custear a viagem de uma cabocla:
Me esqueci de contar. Aqui, vaticano bonde, embarcam
num seringal pra descer logo adiante noutro, e assim. Pouco
depois de partidos de Porto Velho, na volta, vieram perguntar a
dona Olvia se ela garantia mesmo pagar a passagem at
Manaus, da mulher da terceira classe. O que , o que no ?
Quando foram pedir a passagem da velha, passageira nova da
terceira, ela respondeu muito sossegada:
A Rainha do Caf paga.
Dona Olvia no sabia de nada, mas pagou, est claro.43
No fragmento, fica explcito que a mediao se d pelo favor, j introjetado
nas relaes sociais: para a cabocla nada mais natural ( A Rainha do Caf
paga.), ao que o escritor conclui: ... est claro.
A distncia entre o modernista e a cabocla imensa, o que no impede
haver semelhanas nos modos de dependncia, tanto da velha quanto do poeta,
pois certamente no era das experincias mais agradveis ser considerado,
durante a expedio, um mero secretrio na comitiva da Rainha: um camareiro
de luxo (culto e letrado).
42 Andrade, Mrio de. O Turista Aprendiz. So Paulo: Duas Cidades, 1983, pp. 184-185. 43 Idem, ibidem, p. 170.
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40
Queremos demonstrar que Mrio de Andrade tinha plena conscincia das
conflituosas relaes entre os artistas brasileiros e a aristocracia tradicional...
tambm ela autofagicamente destruidora, que nos deu mo forte. Em outro
momento, ele afirma com maior clareza ainda que aquela classe nos dava mo
forte e... nos dissolvia nos favores da vida. Com as profundas transformaes
acontecidas durante a dcada de 1930, essa contraditria aliana social se rompe
(... as datas do desfazimento em mim dos prazeres e prerrogativas da minha
classe...).
Nas duas citaes, o sentido dos verbos dissolver e desfazer
semanticamente quase o mesmo, apontando para um fenmeno lento, mas
irrefutvel. O poeta se v diante de um impasse intransponvel presentificado na
conscincia de seu crescente isolamento diante das novas elites que comandam o
pas e na incapacidade de formar uma nova aliana de classe capaz de envolver a
massa dos trabalhadores. O sentimento de derrelio do poeta moderno se agua
e desgua nos poemas da Lira Paulistana.
Experincia e criao: as figuraes do escritor
O poeta e a preceptora
A conscincia do isolamento e do estado de abandono do poeta no mundo
se manifesta tanto nos escritos pessoais de Mrio de Andrade quanto na sua
produo ficcional e potica. Como inicialmente abordamos a questo a partir dos
testemunhos do escritor, queremos, mesmo que sucintamente, resenhar as
formas que essa conscincia assume na elaborao ficcional.
A viagem de 1927 foi, sob muitos aspectos, frutfera para Mrio de Andrade.
Basta uma leitura, mesmo que superficial, do dirio O Turista Aprendiz para
perceber as ressonncias da experincia amaznica na obra do escritor. bvio
que os desdobramentos mais explcitos se encontram em Macunama, publicado
em 1928.
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41
Numa carta a Drummond ao se referir a seu processo particular de
criao , Mrio de Andrade comenta a gnese do conto Atrs da Catedral de
Ruo, do livro Contos Novos44. Segundo o escritor, a idia seminal do conto
brotou durante a viagem Amaznia e foi desenvolvida ao longo de anos. A lenta
gestao do conto revela a permanncia de certas questes no imaginrio do
poeta, cujas resolues formais nem sempre foram atingidas imediatamente.
Muitas vezes a matria ultrapassa a forma e exige solues que somente a longa
maturao pode produzir.
Nesse conto, um dos mais freudianos do livro, o escritor paulista analisa e
disseca as angstias sexuais de uma humilde professora de francs, verdadeiro
apndice de uma famlia burguesa de Higienpolis.
Mademoiselle trabalha para D. Lcia, ensinando francs para as duas filhas
adolescentes, que esto no alvorecer sexualidade. Me e filhas acabaram de
retornar de uma longa viagem pela Europa e pelo Oriente Mdio (No decidiram
nada, mas cinco anos de viagens, colgios, camelos, freiras, Dinamarcas e
Palestinas, quando voltaram no supunham mais um pai.45).
Durante a viagem, D. Lcia foi abandonada pelo pai das meninas e, ao
chegar a So Paulo, readmite Mademoiselle como uma espcie de dama de
companhia para as filhas. Como preceptora, sua posio contrasta com a das
meninas principalmente na questo da sexualidade, j que as jovens 44 Andrade, Carlos Drummond de. A Lio do Amigo. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1982, p. 232.
Veja-se o depoimento do prprio escritor: s vezes o mando vem com a idia e a coisa se cria
imediatamente, mais isto mais raro. E s vezes espero, espero, e a coisa dura anos pra chegar.
Como Caf ideado por 1933 e que s chegou em outubro de 42. Olhe: agora termino um conto,
cuja primeira idia veio dumas anedotas que me contaram na viagem do Amazonas, as duas
moas daqui que iam comigo. Isso foi em 1927! Numa nota a este trecho, o poeta mineiro
esclarece: Atrs da Catedral de Ruo, em Contos Novos (...) onde aparece esta nota: (Primeiros
esboos, Amazonas, julho e agosto de 1927; primeira verso escrita, 9.I.1943 a 17.I.1943;
segunda verso completa, 3.III.44 e 4.III.44; verso definitiva, junho a 15 de julho de 1944). 45 Andrade, Mrio de. Atrs da Catedral de Ruo. In: Contos Novos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983,
p. 49. No livro No Tempo dos Modernistas: D. Olvia Penteado, a Senhora das Artes, encontra-se
um bom nmero de fotografias das viagens da grande dama paulista. Nelas, pode-se ver desde o
interior do apartamento de Paris at as pirmides do Egito e, claro, camelos. (Ver bibliografia).
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42
experimentam o despertar do sexo com maior naturalidade que a professora
velhota e virgem. Alvorecer para uns, crepsculo para outros.
Nesse conto, muitas vezes os papis se invertem, pois so as adolescentes
que estimulam a libido recalcada da professora e encaminham-na pelas trilhas da
malcia e dos duplos sentidos, sempre expressos em francs.
A associao entre educao e erotismo na obra de Mrio de Andrade faz
pensar imediatamente no romance Amar, Verbo Intransitivo. Nele, os dois temas
esto indissoluvelmente associados como pressuposto de toda educao
sentimental moderna. Frulein professora de amor ao mesmo tempo em que
exerce o papel de educadora no sentido convencional do termo. Ela um agente
moderno e civilizador em meio sociedade patriarcal tradicional. possvel
interpretar Frulein como uma figurao oblqua e dissimulada do intelectual na
periferia do capital.46
A comparao entre o conto citado e vrios trechos de O Turista Aprendiz
pode ser reveladora das complexas relaes existentes, na obra de Mrio de
Andrade, entre experincia pessoal e criao ficcional.
Num determinado momento da viagem ao Amazonas, o poeta relata uma
cena envolvendo o desregramento das meninas (Dolour e Mag) que o coloca
numa situao delicada diante de dona Olvia: Mrio de Andrade parece ser
obrigado a se comportar como se fosse um(a) preceptor(a) das moas durante a
viagem. Alis, durante a viagem, essa parece ser mesmo a sua funo.
Se assim o for, questiona-se o quanto de amargura pessoal preside a
composio do conto citado? Com que grau de profunda auto-ironia a sexualidade
de Mademoiselle dissecada? Eis a cena:
Eram quase trs horas da manh e a Rainha do Caf fazia
muito se recolhera. Acordamos o homem do bar, na inteno de
tomar um alcoozinho forte, evitando algum resfriado. Tomei meu
gole, e fui na cabina trocar minha roupa encharcadssima,
deixando as moas com o moo fiscal. No demorei talvez quinze
46 Sobre a figurao do intelectual como preceptor fundamental consultar o livro Em busca do
inespecfico, de Priscila Figueiredo (Ver bibliografia).
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minutos, mas assim que cheguei no bar, percebi o estrago. No
sei o que o rapaz apostou com as moas, e elas, liberdosas de
educao, tinham bebido muito, clice de pinga sobre clice. No
demorou muito, mandei tudo para a cabina, principiou uma bulha
excusa na cabina delas que, se de um lado pegava com a minha,
do outro, vizinhava com a da criada de dona Olvia, esta logo em
seguida. Aos poucos a bulha aumentou. Eram lamentos doloridos
de Trombeta, ao passo que Balana me chamava pelo nome,
entre risadas de no poder mais. Eu incomodadssimo, se a
Rainha acordasse e fosse ver encontrava as duas totalmente
bbadas. E eu que estava desde o princpio da viagem engolindo
coisas para evitar desgostos a dona Olvia47
Para melhor compreenso, necessrio lembrar que, antes desse incidente, o poeta e as meninas haviam participado de um baile de casamento em
que danaram, cantaram e se divertiram livremente. Numa outra passagem do
dirio, encontra-se este depoimento:
E por ali ficamos ns danando, ao som dos dois
instrumentos e dum soldado que cantava de olhos baixos, creio
que no nos olhou uma vez, de vergonha. E era soldado! O
vaticano berrava l embaixo nos chamando. Fazia luar. Algum
tinha ido buscar nosso casquinho, que estava ali no porto. E fomos
de rodada rio abaixo, ao luar, cantando o Luar do Serto,
inchados de romantismo, com um sofrimento bom dentro do
peito.48
A posio do poeta como mediador entre as meninas e dona Olvia, ao
longo da viagem, fica explcita neste fragmento (E eu que estava desde o princpio
da viagem engolindo coisas para evitar desgostos a dona Olvia). Ao mesmo
tempo, ele amigo, companheiro e aquele que acoberta os desvarios da
educao liberdosa das moas, funo bastante similar de Mademoiselle no
conto referido. 47 Andrade, Mrio. O Turista Aprendiz. So Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 108. 48 Idem, ibidem, p. 108.
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44
Em outras passagens do dirio, o escritor registra a presena de figuras
femininas investidas da funo de professora, apresentando muitos traos
elaborados na construo de Mademoiselle:
Estvamos visitando o Colgio N. S. da Assuno, e a
professora, uma dona respeitvel, com sua idadezinha bem
mostra, fazendo de bedquer. Como trocssemos umas palavras
em ingls, ela se botou falando ingls, com mais perfeio que eu
inda faclimo, porm com a naturalidade e muito maior firmeza
que as meninas. Neste momento ela estava mostrando os andores
e mais coisas, flores, vus, capelas de virgens de uma procisso
que se realizara hoje de-manh, e como nos assustssemos do
ingls perfeito dela, contou meia melanclica que tinha sido virgem
em Londres e Paris, quanto herosmo.49
No fragmento, Mrio de Andrade revela o seu precrio domnio da lngua
inglesa, comparado com o da professora e com o das meninas. Mademoiselle,
como professora de francs, apresenta desempenho inferior ao das alunas, o que
nos leva a pensar numa possvel transposio da experincia para a fico:
Alm do ingls e do alemo em que Mademoiselle nem de
longe podia agora competir com elas, voltavam falando um francs
bem mais moderno e leal que o da professora, estagnada no
ensino e nas suas metforas.50
Mademoiselle tambm conhece o alemo, que sempre foi uma lngua
cultivada por Mrio de Andrade, o que remete diretamente a Amar , Verbo
Intransitivo.
Em outro momento do conto, o narrador delineia o perfil da me das
meninas. Dona Lcia estava sempre cercada pela poltica:
49 Idem, ibidem, p. 102. 50 Andrade, Mrio. Atrs da Catedral de Ruo. In: Contos Novos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989, p.
48.
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45
A cidade vinha se arrepiando de pretenses polticas
porque afinal tinham lanado mesmo o j muito proposto partido
de oposio, o Democrtico. Dona Lcia embarcara na onda que
lhe trazia um gosto novo de volpias. Tinha parente importante no
P. D. e nessa tarde, pela primeira vez depois de sete anos, os
sales dela se abriam para o cocktail aos chefes do Partido.
Dona Lcia decidiu que as filhas haviam de aparecer nem que
fosse um momento. Fazia questo de se apresentar ornada de
resultados, bem matrona, imponente em seus traos de infeliz.
Mademoiselle devia comparecer, como preceptora.51
Ao longo de toda a viagem ao Amazonas, so inmeras as descries de
cerimnias oficias a que Mrio de Andrade teve de comparecer acompanhando D.
Olvia e as meninas. Em muitas vezes, ele se viu na obrigao de fazer pequenos
discursos de agradecimento aos discursos feitos em homenagem Rainha do
Caf. Essa funo se tornou to previsvel, que, segundo o prprio escritor, ele
desenvolveu um modelo de resposta em que bastava mudar o nome das
localidades, pois o texto era o mesmo52. Interessante observar a conjuno do
oficialismo (discursos) com a ironia modernista (a blague do discurso em forma
fixa).
Na conferncia O Movimento Modernista, o poeta alude s permanentes
relaes de D. Olvia com a poltica. O Partido Democrtico tambm citado:
E conto entre as minhas maiores venturas admirar essa
mulher excepcional que foi dona Olvia Guedes Penteado. A sua
discrio, o tato e a autoridade prodigiosos com que ela soube
dirigir, manter, corrigir essa multido heterognea que se chegava
a ela, atrada pelo seu prestgio, artistas, polticos, ricaos,
cabotinos, foi incomparvel. O seu salo, que tambm durou 51 Idem, ibidem, p. 56. 52 Ao descrever a estadia em Iquitos, na Venezuela, Mrio de Andrade anota em O Turista
Aprendiz: Em palcio, recepo alinhada, tudo de branco. Tive que fazer de novo o improviso que
fizera pela primeira vez em Belm e repetira j vrias vezes, sempre que encontrava discurso pra
dona Olvia pela frente. S que desta vez, quando chegou o momento de dizer que no sentamos
limites estaduais, mudei pra limites nacionais e a coisa foi aceita da mesma maneira. (p. 113).
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46
vrios anos, teve como elemento principal de dissoluo a
efervescncia que estava preparando 1930. A fundao do Partido
Democrtico, o nimo poltico eruptivo que se apoderara de muitos
intelectuais, sacudindo-os para os extremismos de direita e
esquerda, baixara um malestar sobre as reunies. Os
democrticos foram se afastando. Por outro lado, o integralismo
encontrava algumas simpatias entre as pessoas da roda: e ainda
estava muito sem vcio, muito desinteressado, para aceitar
acomodaes. Sem nenhuma publicidade, mas com firmeza, Dona
Olvia Guedes Penteado soube terminar aos poucos o seu salo
modernista.53
No depoimento, Mrio da Andrade marca com clareza a data de 1930 como
momento de virada na vida nacional. Os intelectuais se vem obrigados a tomar
partido direita ou esquerda; as rupturas de velhas alianas so inevitveis e
a conscincia do conflito social vai ganhando densidade.
possvel, pois, perceber que existem vrios pontos de interseco entre
os relatos presentes em O Turista Aprendiz e o conto Atrs da Catedral de Ruo,
o que sugere que h trnsito permanente entre a experincia pessoal do escritor e
a sua produo literria. Assim, as relaes entre Mrio de Andrade e D. Olvia
Guedes Penteado esto espelhadas de alguma forma nas figuras de
Mademoiselle e D. Lcia.
Nesse processo de comparao, registramos uma ltima semelhana, ao
mesmo tempo reveladora e enigmti