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UNIVERSIDADE DE BRASLIA FACULDADE DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

A ATIVIDADE MUSICAL E A CONSCINCIA DA PARTICULARIDADE

Patrcia Lima Martins Pederiva

Braslia, 2009

UNIVERSIDADE DE BRASLIA FACULDADE DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

A ATIVIDADE MUSICAL E A CONSCINCIA DA PARTICULARIDADE

Patrcia Lima Martins Pederiva

Tese apresentada ao programa de PsGraduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade de Braslia/UnB como parte dos requisitos para obteno do ttulo de doutor.

Braslia, maro de 2009

UNIVERSIDADE DE BRASLIA FACULDADE DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

TESE DE DOUTORADO

A ATIVIDADE MUSICAL E A CONSCINCIA DA PARTICULARIDADE

Patrcia Lima Martins Pederiva

Orientadora: Elizabeth Tunes

Comisso Examinadora: Dra. Elizabeth Tunes, UnB (Orientadora); Dra. Maria Helena da Silva Carneiro, UnB Dra. Cristina M. Madeira Coelho UnB (suplente); Dr. Ricardo D. Freire, UnB; Dr. Afonso C. T. Galvo, UCB; Dr. Roberto Bartholo, UFRJ.

II

Para meu esposo Joo Henrique e para minhas filhas Marta, Alice e Luiza.

III

AGRADECIMENTOS

A Deus e aos amigos espirituais; Aos meus pais av e familiares, sempre presentes; Ao apoio fundamental do Maestro Carlos Galvo, diretor da Escola de Msica de Braslia; Ao generoso acolhimento de Bob, Larissa e Ravi.; s importantes consideraes de Gabriela Tunes; Aos valiosos momentos de estudo com Roberto Bartholo; A Ndia Maria Queiroz, por todas as carinhosas revises; A sempre dedicada amiga, estudiosa e pesquisadora, Simone Lacorte Recova; Aos profissionais amigos que me fornecem suporte fsico, emocional e espiritual e que me auxiliaram, cada um ao seu modo, a estar inteira, de corpo e alma, para dedicar-me a esse trabalho: Bianca Nazrio, Alessandra Vinhais e Wilson Oliveira Miranda; Aos membros da comisso examinadora.

IV

RESUMO

Esta pesquisa buscou analisar a musicalidade em perspectiva histrico-cultural, o que significou compreender sua gnese, estrutura e funo em momentos histricos diferenciados, a saber, na histria natural, na histria cultural, bem como em momentos de ruptura que implicam transformaes nos modos de experienciar e vivenciar a musicalidade, seja em sua forma natural de expresso, seja na atividade musical propiciada pela msica. O instrumento metodolgico utilizado foi a anlise gentico-psicolgica de Vigotski, que possui por base a filosofia de Spinoza e o materialismo dialtico marxista. Procedendo dessa forma, foi possvel compreender que a musicalidade, em sua base biolgica, atrelada fala, um dom natural de carter universal. Na cultura, distanciando-se da fala, ela se transforma, trilhando a novos caminhos, uma nova sntese, assumindo novas dimenses psicolgicas e novos significados perante a cultura. Em relao obra de arte, na experincia musical, criam-se condies de possibilidade para o surgimento de um novo tipo de conscincia na atividade psicolgica do homem, a conscincia da particularidade, que auxilia na organizao e no controle das prprias emoes. No desenvolvimento histrico da atividade musical, inicia-se a institucionalizao escolarizada da musicalidade, processo este ancorado em valores ideolgicos e mercantilistas que limitam a expresso musical, domesticando e solapando as possibilidades musicais expressivas e criativas do homem. Cr-se que tais condies poderiam ser transformadas mediante a vivificao de condies ontolgicas que tambm so emancipadoras, a igualdade, a liberdade, a vontade, a tica, a imaginao e a criao, experienciadas em meio a relaes autnticas e convivenciais. Palavras-chave: atividade musical, conscincia da particularidade, musicalidade, perspectiva histrico-cultural.

V

ABSTRACT.

The intent of this study was to analyze the musicality in a historical cultural perspective, which resulted in the understanding of its genesis, structure and function in different historical moments. Particularly, in the natural cultural history as well as in rupture moments that involved changes in the ways of experiencing the musicality, whether it be in its natural way of expression or in the musical activity provided by music. The methodology tool was the Vigostskis genetic psychological analyzes which is based on the Spinozas philosophy and the Marxist dialectic materialism. The obtained results revealed that the musicality in its biological basis linked to the speech is a natural universal gift. Culturally, aside from the speech, the musicality changes and starts following new pathways, a new synthesis assuming new psychological dimensions and new meanings in view of the culture. Regarding the art masterpiece in the musical experience there are conditions and possibilities for a new type of consciousness in mans psychological activity, the conscioussness of particularity, which helps with the organization and control of the emotions themselves. In the historical development of the musicality activity, the institutionalization of musicality at schools begins. This so-called process consists of ideological and mercantilistic values that restrict the musical expression confining and harming the musical and creative expressions of man. It is believed that such conditions could be changed through the vivification of anthological conditions that also emancipate the equality, liberty, will, ethics, imagination as well as creation experienced through authentic relations and sociability. Key words: musical activity, consciousness of particularity, musicality, historical cultural perspective.

VI

RSUMOn a cherch analyser la musicalit sous une perspective historique et culturelle, cela veut dire, comprendre sa gense, son structure et sa fonction en des moments historiques diffrents, comme dans lhistoire naturelle, dans lhistoire culturelle, aussi bien que dans des moments de rupture qui entranent des transformations aux manires de vivre la musicalit, soit sa forme naturelle dexpression ou lactivit sociale propicie par la musique. Lanalyse gntique psychologique de Vygotski a t employe comme loutil mtodologique, car elle a comme base la philosophie de Spinosa et le matrialisme dialectique de Marx. Les rsultats de notre recherche montrent que la musicalit de base biologique, lie la parole, est un don naturel et universel.. Dans la culture, en s'loignant de la parole, elle se transforme la poursuite de nouveaux chemins, d'une nouvelle synthse, cela lui exige de nouvelles dimensions psychologiques et de nouveaux significats devant la culture. En ce qui concerne l'oeuvre d'art dans l'exprience musicale, on se fabrique des conditions de possibilit pour l'apparition d'un nouveau type de conscience dans l'activit psychologique de l'homme: la conscience de la particularit, ce qui aide dans l'organisation et contrle des motions chez l'homme. Dans le dveloppement historique de l'activit musicale, on commence l'institutionnalisation scolarise de la musicalit, ce processus est ancr des valeurs idologiques et mercantilistes qui bornent l'expression musicale, matrisant et corchant les possibilits expressives et cratives de l'homme. On croit que telles conditions pourraient se transformer vis--vis l'action de vivre des expriences de conditions ontologiques qui sont aussi mancipantes, comme l'galite, la libert, la vonlont, l'thique, l'imagination et la cration, vcues au milieu de rapports authentiques et de convivialit. mots-cl: activit musicale, cosncience de la particularit, musicalit, perspective historique et culturelle

VII

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Bicudo .......................................................................................................... 29 FIGURA 2 Gibo comum ............................................................................................. 30 FIGURA 3 Chimpanzs ................................................................................................ 31 FIGURA 4 Nveis de funcionamento da msica e da linguagem .......................... 46 FIGURA 5 Suspense e expectativa.......................................................................... 105

VIII

SUMRIO

AGRADECIMENTOS ........................................................................................................ III RESUMO ......................................................................................................................... IV ABSTRACT ........................................................................................................................V RSUM.......................................................................................................................... VI LISTA DE FIGURAS ........................................................................................................VII SUMRIO ...................................................................................................................VIII ADULTOS ......................................................................................................................X PRIMEIRAS PALAVRAS ................................................................................................... 11 APRESENTAO: O CONTEXTO DA INVESTIGAO .............................................. 13 TESE E PROPOSIES ................................................................................................... 17 1 PRIMEIROS MODOS DE MANIFESTAO DA MUSICALIDADE .............. 19 1.1 1.2 1.3 1.4 2 Introduo .......................................................................................................... 19 Sobre o mtodo: anlise do processo........................................................... 23 A musicalidade nos animais............................................................................ 26 A comunicao sonora do homem biolgico................................................ 35

A MUSICALIDADE E AS LEIS HISTRICO-CULTURAIS ........................... 39 2.1 Leis histrico-culturais: novas eras no desenvolvimento humano............ 39 2.2 A Musilinguagem .............................................................................................. 44 2.3 O homem cultural.............................................................................................. 49 2.4 Momentos de ruptura ....................................................................................... 54 2.5 O surgimento de novas categorias na tradio clssica como indcios da apropriao da expresso musical. ........................................................................... 66 2.6 A inveno da amusicalidade ......................................................................... 69

3

ASPECTOS PSICOLGICOS DA MSICA ................................................... 72 3.1 A msica como arte.......................................................................................... 72

IX

3.1 3.2 3.3 3.4 4

Esttica e Psicologia ........................................................................................ 78 O estudo das emoes .................................................................................... 93 O papel da atividade musical no desenvolvimento psicolgico .............. 103 A conscincia da particularidade.................................................................. 110

A INSTITUCIONALIZAO ESCOLARIZADA DA ATIVIDADE MUSICAL117 4.1 4.2 4.3 4.4 4.5 O significado da escolarizao na sociedade atual .................................. 117 A escolarizao da atividade musical.......................................................... 122 O destino da diversificao. .......................................................................... 139 Convite emancipao ................................................................................. 144 Palavras finais ................................................................................................. 157

REFERNCIAS .............................................................................................................. 159 TRABALHOS PUBLICADOS COM BASE NA TESE .......................................................... 164 ANEXO A A MSICA SEM DOM OU A MSICA COMO DOM PARA TODOS QUE SEQUEREM MSICOS

(. , ex

)......................................................................................... 165 ANEXO B MUSICALIDADE, FALA EXPRESSO DAS EMOES ............................. 178 ANEXO C A GERAO E CRIAO DE PESQUISA SOBRE MUSICALIDADE: CONFUSESCONCEITUAIS ................................................................................................................ 187

ANEXO D CRTICA ESCOLARIZAO DA ATIVIDADE MUSICAL ......... 196

X

ADULTOS 1

(MAIAKOVSKI) Os adultos fazem negcios. Tm rublos nos bolsos. Quer amor? Pois no! Ei-lo por cem rublos! E eu, sem casa e sem teto, com as mos metidas nos bolsos rasgados, vagava assombrado. noite vestis os melhores trajes e ides descansar sobre vivas ou casadas. A mim Moscou me sufocava de abraos com seus infinitos anis de praas. Nos coraes, nos relgios bate o pndulo dos amantes. Como se exaltam as duplas no leito do amor! Eu, que sou a Praa da Paixo, surpreendo o pulsar selvagem do corao das capitais. Desabotoado, o corao quase de fora, abria-me ao sol e aos jatos d'gua. Entrai com vossas paixes! Galgai-me com vossos amores! Doravante no sou mais dono de meu corao! Nos demais - eu sei, qualquer um o sabe O corao tem domiclio no peito. Comigo a anatomia ficou louca. Sou todo corao em todas as partes palpita. Oh! Quantas so as primaveras em vinte anos acesas nesta fornalha! Uma tal carga acumulada torna-se simplesmente insuportvel. Insuportvel no para o verso deveras.1

Maiakviski, Vida e Poesia. So Paulo: Martin Claret, 2006 Traduo de Emlio Guerra e Manuel Fresnot.

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PRIMEIRAS PALAVRAS

Por que Vigotski? Foi na psicologia histrico-cultural, mais especificamente em Vigotski que, por sua vez, construiu suas bases no monismo de Spinoza, que encontrei e continuo descobrindo um dos mais ricos mananciais de entendimento do homem, da atividade humana e da vida a que tive acesso at o momento. Juntamente a isso, encontrei no departamento de Educao da UnB, na pessoa da Profa. Dra. Maria Helena Carneiro e, principalmente, de minha orientadora, Prof. Dra. Elizabeth Tunes, o acolhimento necessrio para o desenvolvimento desse trabalho. Por meio de Elizabeth Tunes, pude ouvir o ressoar da voz autntica de Vigotski e estou tambm aprendendo a deixar que ele fale por si.

Vigotski foi recm descoberto pelo ocidente, praticamente nas ltimas dcadas do sculo XX. Na prpria Rssia, h to pouco tempo Unio das Repblicas Socialistas Soviticas, ele foi proibido durante muito tempo. Ainda hoje, uma fonte que jorra abundante para a compreenso de vrias atividades da vida humana. Os avanos neurocientficos apenas tm corroborado as bases tericas desse autor. Muito h ainda a saber sobre esse homem e essa perspectiva de mundo que, apesar da dificuldade de sua lngua materna para ns ocidentais e dos problemas nas tradues, resiste ao nosso ocidentalismo impregnado de verdades cientficas, ideologias mercantilistas, hierarquias, normatizaes, padres, normas, testes avaliadores de inteligncia e de aprendizagem humana, entre outras coisas mais.

Tudo isso eu tambm tenho aprendido com voc, Profa. Dra. Elizabeth Tunes, minha orientadora, amiga e mestra, a quem muito agradeo pela convivncia e amizade. Agradeo tambm equipe companheira, amiga, dedicada, competente, trabalhadora e incansvel que compartilha verdadeiramente comigo este percurso, Carla Terci, Carolina Freire, Elisngela Peraci, Elzamir Gonzaga, Ingrid Lilian Raad, Penlope Ximenes, Tereza Mudado, Yara Assis, Zoia Prestes e, mais recentemente, Jackelyne Cintra.

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Vivenciar este doutorado tem sido um grande prazer em minha vida. Cada segundo marcado pelo estudo srio, dedicado, competente e aprofundado, em ambiente convivencial, pela liberdade de escolhas e pelo dilogo, presente em cada pessoa dessa confraria acadmica e, principalmente, em minha orientadora, quem admiro profundamente. Elizabeth Tunes traduo de respeito, humildade, autenticidade, criao, liberdade, dilogo e sabedoria. Ela o exemplo de tudo o que tenho estudado. Fortalece-me enquanto pessoa e me faz acreditar ainda mais no caminho que penso pode ser vivenciado quando se trata de Educao. ela tambm que tem me ensinado com seu exemplo que, para entender Vigotski, no basta um projeto ou tese de doutorado. Para entender Vigotski preciso um projeto de vida.

Lev Semionovich Vigotski (17/11/1896_11/06/1934) Um sentimento de afeto muito especial me ligou durante dcadas a esse autor, a quem me sinto to agradecido como aos meus melhores mestres ainda vivos (Ivan Illich no livro En el vinedo del texto, referindo-se Hugo de San Victor)

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APRESENTAO: O CONTEXTO DA INVESTIGAO

[...] S privilegiados tm ouvido igual ao seu, eu possuo apenas o que Deus me deu [...] Voc com sua msica esqueceu o principal, que no peito dos desafinados tambm bate um corao. (JOBIM, Desafinado)

Este trabalho visa examinar as conseqncias da escolarizao da musicalidade para a aprendizagem e para a criao musical. Justifica-se pelo fato de que, ainda que pesquisadores e educadores musicais muito se esforcem em busca de compreender modos eficientes para o ensino-aprendizagem nesse campo, o mito do dom inato, de corpos prontos para a atividade musical permanece, gerando, para os que no os possuem, um aprendizado psicologicamente fadado ao fracasso (PEDERIVA, 2005).

A expresso musical por meio de instrumentos considerada como domnio de raros seres - viso que se faz presente na sociedade de um modo geral e, principalmente, no contexto das escolas de msica especializadas e nos conservatrios - e o msico, um ser mtico. Por sua vez, aqueles que no se adaptam ao padro de aprendizagem estabelecido pela escola de msica formal, ou seja, o padro de corpos previamente aptos para a atividade - tnus muscular apropriado, audio capaz de reconhecer e identificar freqncias, resposta fsica rpida para a execuo de ritmos, reconhecimento e reproduo de tempos e dinmicas, entre outros - so excludos. So entendidos como uma espcie de seres amusicais, ou seja, pessoas que no possuem, de acordo com essa viso, capacidade e habilidades inatas para serem msicos. A crena no mito do dom musical, no dom de poucos e para poucos, implica, dessa forma, um distanciamento entre seres humanos e a msica. Gera descrena nas possibilidades humanas e, assim, a excluso. E, de fato, no mbito do ensino formal da msica, a excluso um

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acontecimento, ainda que veladamente praticado e discursivamente negado entre professores (PEDERIVA, 2005).

De um modo geral, o processo formal de ensino-aprendizagem da msica ocorre com base no modelo tutorial. Ao professor cabe tecer a pauta de aprendizagem do aluno, marcada pela nfase na repetio e pela busca de um padro consensual de virtuosismo. Ao aluno cabe aderir pauta do professor, ainda que no lhe confira qualquer sentido pessoal, abandonando seus desejos e intenes musicais, distanciando-se e alienandose de seu ambiente social musical imediato. assim que o ensino formal de msica transmite, em seu currculo oculto, para usar uma expresso adotada por Illich (1979), a ideologia segundo a qual h um tipo de msica, a verdadeira msica, de qualidade, que ensinada na escola e outro vulgar, de qualidade duvidosa, que faz parte do cotidiano da vida. Criam-se, ento, dois universos musicais distintos, no poucas vezes at tomados como antagnicos, com pouca comunicao entre si, se alguma existir.

Alm disso, as fitas mtricas inseridas no campo da educao para medir capacidades e habilidades humanas so instrumentos de enquadramentos a normas monopolizadas que induzem a idia de dificuldades de aprendizagem e geram a construo de teorias e mtodos baseados em pressupostos equivocados. Essas pseudo-dificuldades so criadas socialmente quando se busca racionalizar a instituio de normas como metas para atividades sociais. Elas so a manifestao concreta da realidade instaurada pela ideologia do dom.

O etnomusiclogo John Blacking, em meados do sculo XX, j alertava para o fato de que a educao musical est atrelada s concepes deterministas de musicalidade e que mudanas conceituais, tendo por base um entendimento da universalidade da msica, poderiam trazer implicaes diretas para a prtica pedaggica. Blacking afirma:

Se minha hiptese sobre a origem biolgica e social da msica est correta, ou parcialmente correta, isso poderia afetar as avaliaes da musicalidade e os padres da

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educao musical [...] Eu comeo a entender como a msica pode tornar-se uma intricada parte do desenvolvimento da mente, do corpo e de relaes sociais harmoniosas [...] (BLACKING, 2000, pp. xi-xii) 2.

De acordo com Blacking (2000), testes e estudos em psicologia da msica ainda no compreenderam a natureza da musicalidade, principalmente devido ao seu vis etnocntrico que ocasionou diferentes escolas de pensamento. As teorias geradas com base na Gestalt, por exemplo, no levam muito em considerao a importncia da experincia cultural no desenvolvimento e seleo da capacidade dos sentidos. Para o autor, testes de musicalidade so uma espcie de distoro da verdade porque a percepo estaria relacionada a um meio familiar prprio, o que testes etnocntricos costumam desconsiderar. A discriminao de intervalos, por exemplo, desenvolvida na e pela cultura, podendo haver falhas na percepo e decodificao de intervalos meldicos que no possuam significado em um determinado contexto musical. O mesmo acontece com testes que se referem ao timbre e intensidade. Na educao musical ocidental, crianas costumam ser julgadas como musicais ou no musicais por sua performance, ou, ainda, pela habilidade de decodificao de smbolos musicais. Mas existem sociedades onde a criao e a participao na atividade musical do grupo cultural mais importante que a escrita e a decodificao de smbolos (BLACKING, 2000). Assim, no faz sentido pensar que os signos sejam anteriores musicalidade. Ele considera que para entender a musicalidade humana necessrio compreender as peculiaridades de cada msica em cada contexto. No mundo, existem tantas manifestaes musicais quantas lnguas e religies. De acordo com o autor:

Minha sociedade clama que um limitado nmero de pessoas so musicais e ainda assim comporta-se como se todas as pessoas possussem a capacidade bsica, sem a qual uma tradio musical no pode existir - de ouvir e distinguir seus padres sonoros [...] Na cultura europia, ensina-se que nem todas as pessoas so musicais, e que umas so mais2

Todas as tradues doravante efetuadas so da prpria autora deste trabalho.

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musicais que outras [...] Sou levado a discordar dessa teoria. O dogma capitalista fala que poucas pessoas so musicais, mas a experincia capitalista relembra grandes sucessos como o filme The sound of music [...] (BLACKING, 2000, pp.8-9).

Como a indstria musical conseguiria gerar tanto dinheiro se, de algum modo, no reconhecesse uma musicalidade comum a todos? Talvez, nesse paradoxo apontado por Blacking, possam encontrar-se as bases da excluso de muitos que ocorre no campo da educao musical.

Pergunta-se, ento: em que condio emergiu o modo excludente de conceber a atividade musical humana? Como compreender msica e musicalidade em meio a esse paradoxo? Como o processo pedaggico pode ser enriquecido por meio dessa reflexo? So essas as preocupaes que norteiam este trabalho.

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TESE E PROPOSIES

Neste trabalho, buscou-se de demonstrar que a institucionalizao da msica, fundamentada em bases equivocadas, resulta na desvalorizao das diferentes formas de expresso da musicalidade humana e a sua afirmao como dom natural, mas de carter no universal, limita a expresso musical das pessoas.

Para tanto, procedeu-se do modo que segue. Construiu-se uma argumentao buscando demonstrar que:

1. A musicalidade humana um dom natural de carter universal;

2. No processo de desenvolvimento histrico do homem, a expresso musical de carter natural transforma-se em atividade cultural, transformando, assim, a prpria musicalidade e seus modos de manifestao;

3. A msica possui um significado psicolgico e cria condies para o desenvolvimento de um tipo especfico de conscincia no homem; a conscincia da particularidade;

4. A institucionalizao escolarizada da atividade musical, processo este ancorado em valores ideolgicos mercantilistas, limita a expresso musical, domesticando e solapando as possibilidades musicais expressivas e criativas do homem.

Afirma-se, por fim, que a expresso musical deve, em sua diversidade de modos de manifestaes, estar presente na formao do ser humano, ser respeitada e revelar-se em sua plenitude nos modos em que este desejar exprimir-se, sem distines de valor.

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Formulada a tese e suas proposies, estruturou-se o trabalho em quatro captulos:

1. Primeiros modos de manifestao da musicalidade: captulo em que se examina a filognese da musicalidade, seu surgimento como sistema de comunicao em estreita relao com a fala e seu carter biolgico universal;

2.

A musicalidade e as leis histrico-culturais: texto em que se apresenta uma discusso dos modos de transformao da musicalidade de base biolgica em atividade cultural;

3. Aspectos psicolgicos da msica: com base na perspectiva histricocultural, nesse captulo, analisada a obra de arte musical, suas implicaes para o desenvolvimento do homem e sua relao com as emoes. Tambm, so analisadas as condies para a emergncia de um tipo especfico de conscincia propiciada pela msica.

4.

A institucionalizao escolarizada da atividade musical: nesse ltimo captulo, examina-se espao-temporalmente os modos de funcionamento da instituio musical escolarizada e as profundas relaes que ela estabelece com a mercantilizao do humano, bem como o tratamento dessa expresso enquanto produto, suas implicaes e conseqncias, buscando-se sugerir, por fim, novas bases para a vivncia da musicalidade na atividade musical.

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1

PRIMEIROS MODOS DE MANIFESTAO DA MUSICALIDADE

Se o mistrio da pobreza no for causado pelas leis da natureza, mas pelas nossas instituies, grande o nosso delito. (DARWIN) Devemos, no entanto, reconhecer, como me parece, que o homem, com todas as suas nobres qualidades, ainda sofre em sua priso corprea a indelvel marca de sua humilde origem. (DARWIN)

1.1

Introduo

Neste captulo investiga-se como a musicalidade surge no homem. Para tanto, buscou-se examinar sua gnese, funo e estrutura e fazer uma anlise sinttica de sua histria natural. No exame da gnese, identificou-se o seu componente biolgico e universal, elemento fundante do fazer musical. No da funo, seus modos de emprego e, no da estrutura, sua organizao interna. Trata-se aqui da expresso musical nos animais, no homem primitivo e no Homo sapiens. Mas, antes de passar a essa anlise, seria interessante examinar o que tem sido entendido, por diversos autores, como msica e musicalidade.

As definies de msica e de musicalidade tm estado intimamente ligadas uma outra. Para cada tipo de msica e de cdigo musical existe um modo determinado de execuo que envolve uma ao relacionada sua expresso e que possui padres especficos. Costuma-se, assim, delimitar a musicalidade no terreno da habilidade da interpretao e execuo de uma determinada msica em um determinado contexto.

Contudo, ao demarcar a musicalidade somente no campo de sua decodificao e expresso, restringem-se algumas possibilidades importantes. Ao faz-lo, a musicalidade fica circunscrita ao contexto musical a que se refere, sendo a pessoa musical apenas aquela que domina o repertrio de signos e a expresso pertinente conjuntura delimitadora da musicalidade. Ou seja, confunde-se msica e musicalidade, tornando-se

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a pessoa meramente uma ferramenta de sua criao. Seria o mesmo que definir fala (musicalidade) apenas pelo que falado (msica), no importando a pessoa que fala e nem aquela a quem se fala. Talvez seja uma forma de manuteno do paradoxo a que Blacking (2000) se refere, ou seja, as pessoas so tratadas como amusicais e muitas vezes excludas da atividade musical, em uma sociedade que avalia a musicalidade, que diz quem ou no musical, quem pode ou no participar dessa atividade, mas cuja indstria alimentada pelo reconhecimento tcito de uma musicalidade universal que supe que todos possam distinguir, de alguma forma, os apelos e as mensagens de um cdigo musical. O que esse paradoxo poderia revelar? E isso acontece nas prprias formulaes tericas, quando os autores empregam os termos como sinnimos e utilizam-nos de uma forma confusa como se ver a seguir.

Questes como o que msica, quais so suas origens evolucionrias, para que serve, por que todas as culturas possuem manifestaes musicais, quais so os fatores universais e os comportamentos musicais nas diversas culturas, foram preocupao da musicologia comparativa, na primeira metade do sculo XX, principalmente na escola de Berlim. Aps a segunda grande guerra, entretanto, a abordagem evolucionria ficou obscurecida, pois havia um racialismo muito forte na Europa, em especial na Alemanha, o que levava a uma rejeio tendncia nascente de uma concepo universalista existente na antropologia da msica e na musicologia. A corrente universalista reaparece no final da dcada de 80 do sculo XX, encontrando suporte em pesquisas na rea de biomusicologia, termo cunhado por Wallin, em 1991. A biomusicologia engloba a musicologia evolucionria - origens da msica, a cano animal, seleo natural pela evoluo musical, evoluo musical e evoluo humana - a neuromusicologia processamento musical cerebral, mecanismos neurais e cognitivos do processamento musical, habilidades musicais e ontognese da msica - e a musicologia comparativa funes e usos da msica, vantagens e custos do fazer musical, fatores universais do sistema musical e comportamento musical (BROWN, MERKER e WALLIN, 2001).

Brown et al (2001) afirmam que ainda no h um acordo sobre uma definio de msica. Segundo eles, cada um define msica com base em seu prprio parmetro e isso dificultaria ainda mais uma demarcao clara do termo. Mais que uma funo cultural especializada, a capacidade musical, para eles, implicaria uma competncia biolgica especfica. Tal competncia envolveria seleo sexual, coordenao, coeso e

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cooperao em um grupo e, ainda, comunicao, pressupondo que msica e linguagem desenvolvem-se conservando alguma relao entre si. Na perspectiva evolutiva existe tambm a tentativa de compreender msica por meio do entendimento da fala. Entre os primeiros tericos que estudaram o assunto, de acordo com o autor, esto Spencer, que entendia a cano como uma fala emocionalmente intensificada; Darwin, para quem a msica seria remanescente dos ancestrais animais do homem e a fala, posterior msica; e Richard Wagner, que considerava a linguagem e a msica como possuidoras de razes comuns.

De acordo com Rvesz (2001), um dos conceitos mais controversos no campo da msica o de musicalidade. No senso comum, para o autor, essa no uma palavra que possua um significado concreto. utilizada, em geral, como sinnimo do ser musical, ou seja, aqueles que tm habilidade para msica, em oposio ao amusical, aqueles que no possuem habilidades musicais, o que demanda, segundo Rvesz (2001), uma classificao tipolgica do ser musical em oposio ao no ser musical. Para ele, contudo, uma demarcao entre as duas supostas categorias (musical e amusical) no pode ser prontamente feita, pois haveria que se compreender o que estrutura tanto uma quanto outra classe. Assim, o autor entende como pessoa musical aquela que criativa, ou, ainda, que possui competncias de interpretao, de discriminao, capacidades emocionais, entre outras. Argumenta tambm que algumas pessoas poderiam possuir alguns desses atributos da musicalidade em detrimento de outros. Dessa forma, haveria apenas sintomas da musicalidade, que tm sido utilizados para diagnosticar a musicalidade humana. Nota-se que o prprio termo empregado, ou seja, sintomas, indica o quanto o vocabulrio das cincias da sade, que possuem uma tradio de diagnstico, penetrou com todo seu significado no campo da avaliao em msica.

A concepo de Merian (citado por CROSS, 2003) assegura que a msica um comportamento universal. Mas, apresenta-se como um fenmeno singular pelo fato de que o que poderia ser compreendido como msica por uma cultura seria concebido apenas como barulho ou rudos sem nexo para outras,. De acordo com essa acepo, a msica poderia ser entendida como tal somente em determinado contexto. Ainda sob esse ponto de vista, o sentido para o fenmeno musical seria construdo com base em valores, convenes, instituies e tecnologias (CROSS, 2003).

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Cross (2006 a) define musicalidade como uma capacidade humana compartilhada com seus ancestrais, principalmente os primatas. Msica, para o autor, algo mais do que sons padronizados. Sua acepo de msica envolve as atividades humanas, tanto individuais quanto sociais, que obedecem a padres temporais e englobam a produo e a percepo de som que no tm utilidade imediata evidente, ou referncia consensual fixa. Segundo sua viso, que conforma com a de Blacking (2000), em cada cultura, a expresso sonora articular-se-ia a determinadas formas de expresso corporal. Para compreender a msica e encontrar nela elementos universais, portanto, seria necessrio reconhecer a inseparabilidade entre som e movimento (ao, que uma produo corporal). Para o autor, o fruto das foras da evoluo deveria ser identificado conjuntamente predisposio humana para ser musical.

J Aarom (2001) busca definir msica com base em alguns critrios, que seriam: intencionalidade, periodicidade, simetria, presena de escala musical, ordenao, interao simultnea e repertrio. Esses itens tambm estariam presentes nos sons dos animais que, desse modo, poderiam ser considerados como msica. Tambm para Hauser (2001), os animais partilham do mundo da msica e da musicalidade. Para o autor, msica a voz do corao e para compreender a musicalidade humana, nosso senso e capacidade musicais, seria necessrio incluir a musicalidade dos animais, os quais tambm possuiriam suas manifestaes sonoras.

Blacking (2000), por sua vez, define msica como sons que so organizados pelos homens como resultado de padres relacionais. Estudos do etnomusiclogo demonstraram que em outros grupos a musicalidade encarada diferentemente do padro europeu, que comum na sociedade ocidental. Na cultura Venda na frica, por exemplo, todos so considerados como pessoas musicais, capazes de ouvir e interpretar sua prpria msica. O autor se props a demonstrar o quo musical o homem, ttulo de um de seus livros (How musical is man?) e assim o fez, demarcando um novo modo de pensar o trato para com a musicalidade humana. Para o autor, o processo de produo musical uma extenso de princpios gerais que expressam a organizao humana.

Ao analisar essas formas de compreender msica e musicalidade, nota-se que, alm de no existir consenso sobre os termos, os dois conceitos so apresentados de forma

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confusa pelos diversos autores. Em Aaron, Brown e Merian, por exemplo, msica definida como comportamento, capacidade e competncia, que no so elementos caractersticos da msica e sim da musicalidade. Assim, msica e musicalidade so tratadas como sendo uma e a mesma coisa. H ainda o problema de definir musicalidade, como em Revzs, por meio de atributos tais como criatividade, emoo, competncia de discriminao, entre outros, que no so exclusivos do homem em atividade musical, mas podem estar presentes em outras atividades humanas.

Essa confuso conceitual pode estar ocultando fatos importantes do fazer musical e de suas formas. Talvez, a esteja uma das chaves para a compreenso do paradoxo enunciado por Blacking. O paradoxo alimenta o produto e o produto no esclarece o processo. Ou seja, mantm-se as condies de incompreenso do que seja a musicalidade, difundindo-se esse conceito, de certo modo, pelo prprio no esclarecimento e pela confuso gerada no seio de tais explicaes. Para que a confuso cesse preciso investigar o processo, analisar a gnese, a funo e a estrutura do fenmeno por uma via dinmico-causal. No basta falar de um ou de outro separadamente. O que carece a anlise das origens e das relaes que podem dar conta de explicar as diversidades existentes. preciso, pois separar msica de musicalidade para compreender ambos os fenmenos em sua gnese e, com base nisso, entender suas dinmicas. Para realizar essa anlise, optou-se por um enfoque psicoantropolgico da atividade musical, conforme ser esclarecido nos captulos posteriores.

1.2

Sobre o mtodo: anlise do processo

Uma das tarefas mais importantes em uma investigao, para Vygotski (1982), a busca pelo mtodo que se revela no conjunto da obra, sendo ao mesmo tempo premissa e produto, ferramenta e resultado. Mtodo e problema devem ser correspondentes. Assim, para cada objeto deve haver um mtodo adequado. O papel da cincia, para o autor, o de fornecer meios distintos de anlise para identificar por trs das semelhanas exteriores as diferenas internas, seu contedo, sua natureza e sua origem. A dificuldade da anlise cientfica decorre do fato de que a essncia dos objetos, sua autntica e verdadeira correlao no se ajustam diretamente s suas formas de manifestao externa. Importa conhecer o nexo real e as relaes entre o externo e o interno que

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constituem a base da forma superior de conduta, descobrindo as relaes dinmicocausais existentes na realidade.

Trs pressupostos ancoram as reflexes de Vigotski quanto ao mtodo e anlise psicolgica (VYGOTSKI, 1995). Primeiramente, deve-se diferenciar a anlise do objeto do julgamento do processo. As anlises costumam recair sobre os objetos, o que faz com que um processo passe a ser entendido de forma estanque, decompondo-se-o em partes isoladas, o que o autor denomina de lgica dos corpos slidos (VYGOTSKI, 1995, p. 100). A anlise de um processo revela, por outro lado, a dinmica dos momentos importantes que estabelecem sua tendncia histrica. Tal concepo, de acordo com o autor, dada pela psicologia gentica. O objetivo dessa anlise estabelecer os momentos de desenvolvimento de um processo, voltando-se aos seus momentos iniciais, ou seja, convertendo o objeto em processo. A, as formas psicolgicas fsseis3, que so condutas fossilizadas, comportamentos automatizados e no mais facilmente visveis, transformados de alguma forma, podem ser estudados em movimento. Trata-se de ir do processo aos momentos isolados e no do objeto suas partes. O segundo pressuposto consiste em contrapor as tarefas descritivas e explicativas da anlise. Na cincia, a tarefa da anlise evidenciar as relaes e nexos dinmico-causais que constituem a base de um fenmeno. Desse modo, a anlise se converte na explicao cientfica do que se estuda e no s na sua descrio. Devem-se evidenciar as relaes efetivas ocultadas pela aparncia externa de um processo, o que o autor denomina de anlise genticocondicional, que possibilita o exame do surgimento e do desaparecimento das causas e das condies, bem como dos verdadeiros vnculos que esto na base de um fenmeno. O terceiro pressuposto advoga que a fossilizao da conduta se manifesta, primordialmente, nos denominados processos psquicos fossilizados ou mecanizados. Eles so processos que, pelo seu amplo funcionamento, foram repetidos milhes de vezes e se automatizaram, perdendo seu aspecto primitivo. Sua aparncia no revela a sua natureza interior e perdem todos os vestgios de sua origem. Desse modo, um comportamento, aparentemente surgido na cultura e que em nada parece articulado com outras formas mais primitivas4, no seria mais do que algo transformado pela cultura e

Formas psicolgicas fsseis so entendidas por Vigotski (1995) como comportamentos que foram experienciados pelo homem em seu processo evolutivo por diversas vezes, at tornarem-se automatizados.4

3

A denominao primitiva aqui utilizada no sentido de primeiras, ou primevas, sem qualquer cunho etnocntrico ou hierrquico. Vygotsky (1996, p.96) afirma que certos povos do chamado mundo nocivilizado [...] so comumente chamados de povos primitivos ou selvagens, naturalmente no sentido relativo

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em seu prprio seio, no percurso filogentico, possuindo, assim, razes naturais. Ao se compreender tais razes, poder-se-ia entender melhor o processo. Ou seja, preciso ir alm de como a forma estagnada e automatizada do fenmeno se apresenta para tentar entend-lo em movimento. isso que estrutura o mtodo na psicologia histrico-cultural.

Para Leontiev (1983, p. 2), somente a psicologia histrico-cultural conseguiu superar os problemas metodolgicos existentes nas muitas faces da psicologia e efetivar a [...] luta contra as concepes psicolgicas idealistas, mecanicistas e biologizantes [...]. Ela representou o comeo de uma verdadeira psicologia materialista cientfica, superou a hiptese paralelista que conduz compreenso da psique como um epifenmeno, o determinismo fisiolgico que reduz a psicologia fisiologia e as hipteses dualistas de interao psicofisiolgica, que afirmam que seria possvel a ao da psique imaterial sobre os processos materiais que ocorrem no crebro. Segundo a perspectiva histricocultural, a prtica social se transforma e se cristaliza em forma de atividade. nela que se deve buscar compreender a condio de possibilidade de formao e de desenvolvimento da conscincia, que se engendra nos mais diversos modos em cada atividade.

No caso da atividade musical e da musicalidade, com base na perspectiva de Vygotski (1995), no somente por meio da descrio de suas formas de manifestaes que se pode elucidar o fenmeno. Ou seja, no apenas caracterizando modos de comportamentos, diferenas entre formas de expresso musical em cada cultura, que se pode compreender a musicalidade. Sua explicao no se resume a isso. Os caminhos que percorre para que possa ser expressa como comportamentos no nascem no momento de sua manifestao. Nessa perspectiva, qualquer explicao da musicalidade que tenha por base suas formas exteriores explica a coisa pela prpria coisa e redundante, pois j se trata de uma forma fossilizada do fenmeno.

Cr-se que o comportamento manifesto seja uma sntese dialtica de processos que precisam ser compreendidos em movimento e como atividade psicolgica. O comportamento aparente apenas uma parte do processo, uma das etapas posteriores.

da palavra. De pleno direito, esses povos no podem ser chamados de primitivos, porque todos eles parecem possuir um maior ou menor grau de civilizao.

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Dever-se-ia buscar pelas estruturas internas que a caracterizam e entender sua essncia, bem como compreender a relao entre o interno e o externo. por isso que, nesse processo, faz-se necessrio avaliar a histria natural, a histria cultural e os seus modos de relao ulteriores. A produo sonora dos animais revela a musicalidade destes. A musicalidade existe no reino animal. Ela transformada pelo homem na cultura, em cada atividade musical. Msica o que os homens fazem e ela age como ferramenta de organizao do trabalho humano (o que ser analisado posteriormente).

1.3

A musicalidade nos animais

De acordo com Vygotsky (1996), o comportamento percorre trs estgios principais de desenvolvimento. Os modos inatos de comportamento, entre eles, os instintos e os reflexos incondicionais representam o primeiro estgio e possuem a funo de satisfazer as necessidades primordiais de um organismo. Autopreservao e reproduo so suas funes biolgicas principais. Fundamentando-se e erguendo-se diretamente sobre o primeiro estgio do desenvolvimento do comportamento tem-se o segundo estgio que o de treinamento, ou de reflexos condicionais. No um comportamento inato e provem das experincias individuais do animal. resultante de aprendizagens especficas, treinamento e experincia acumulados individualmente. Origina novas conexes que so condicionais a estmulos ambientais que surgem sobre reaes inatas. Os reflexos condicionais representam um mecanismo de adaptao mais flexvel, sutil e refinado, permitindo que as reaes instintivas possam se adaptar s condies individuais de existncia de cada animal. O segundo estgio possui uma influncia inversa sobre o primeiro estgio, j que os reflexos condicionais se sobrepem aos incondicionais, alterando-os (VYGOTSKY, 1996). Nesse segundo estgio, pode-se situar tambm o comportamento operante tal como proposto por Skinner, que Vigotski no teve oportunidade de examinar, dada a poca de seu falecimento. Nele, h um tipo de aprendizagem que possibilita a emergncia de novas respostas do organismo com base na relao que ele estabelece com o meio.

Erguendo-se sobre o segundo estgio do comportamento e do desenvolvimento, surge, de acordo com Vygotsky (1996), o terceiro e ltimo estgio para o reino animal, que no o ltimo para o homem (que caminhar para o estgio intelectual propriamente dito).

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constatado apenas no comportamento de macacos antropides superiores. O terceiro estgio representa uma nova e complexa forma de combinaes de reflexos condicionais. Resulta no surgimento de uma qualidade e forma de comportamento e de uma nova funo biolgica. o estgio das aes intelectuais, que se desenvolve com base em uma complexa combinao de reflexos condicionais e poderamos acrescentar, de comportamentos operantes, fazendo surgir uma nova forma de comportamento. Como um estgio novo e singular, o intelecto a base sobre a qual se edificaro as formas superiores de comportamento humano (VYGOTSKY, 1996). Isso posto, pode-se passar mais especificamente ao exame da musicalidade nos animais.

A musicalidade pode ser encontrada anteriormente ao homem, ainda nos animais, como por exemplo, nos pssaros. De acordo com Cross (2006), a capacidade dos pssaros de cantar tem sido entendida como algo prximo da musicalidade humana. Pssaros so considerados como animais que possuem maior ritmo, tonalidade e variedade na produo de sons. Muitos desses sons so classificados como canes5. Uma das funes da expresso sonora nesses animais a comunicao.

Slater (2001) afirma que, em diversas espcies, o som tem funo sexual, pois os machos cantam para atrair as fmeas. Pssaros tambm possuem um vasto repertrio e, em algumas espcies, em constante mudana. Duetos tambm so executados por estes, o que poderia, de acordo com o autor, prover indcios das origens e funes do fenmeno do canto grupal humano. No canto em duetos, os pssaros participantes dessa atividade contribuem para a cano, possuindo, por vezes, uma alta preciso de tempo. As duplas podem ser formadas por machos e fmeas, que usam notas diferentes, podendo alternar-se nas melodias. Para o autor, o fenmeno do canto dos pssaros indica claramente que os humanos possuem um ancestral musical.

Whaling (2001) relata que o aprendizado do canto dos pssaros abarca diferentes processos. H uma primeira etapa de memorizao e uma segunda, de repetio. Envolve a escolha da cano que servir como modelo, bem como a recuperao do modelo adulto. Para aprender a cantar, muitos pssaros ouvem a cano de sua espcie

Aqui, cano no deve ser entendida como forma musical, mas tal como denominada pelos estudiosos de sons de pssaros, ou seja, seqncias de sons por eles emitidos.

5

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durante certo perodo sensitivo no desenvolvimento. Se privados de escutar e memorizar canes, podem aprend-las posteriormente em uma fase adulta, se monitorados, mas apresentaro alguma dificuldade para isso. A escolha da cano guiada pelo instinto e os pssaros reconhecem o canto de sua espcie. As primeiras performances de suas canes apresentam irregularidade no tempo, hesitao na altura, problemas de afinao e na ordem de reproduo das notas e da melodia. Quando a repetio no bem sucedida, eles repetem a cano por muitos meses, at aprender. A expresso sonora vital para os pssaros. Elas permitem identificar indivduos da espcie, bem como estabelecer e defender territrio. Papagaios e seus parentes tambm podem ser includos em uma lista de nove mil espcies de aves em que h aprendizagem do canto. No tocante a isso, os pssaros se aproximariam mais dos homens, das baleias e dos golfinhos (WHALING, 2001). Os bicudos so exemplos de pssaros que se distinguem pela variedade em seu canto:

Muito provavelmente, sejam os bicudos os pssaros silvestres criados em cativeiro, com o maior nmero de notas em um mesmo canto e com a maior diversidade de cantos catalogados. No obstante os inmeros dialetos regionais identificados, prprios de coletividades significativas, h ainda, a interpretao individual de um mesmo dialeto por espcimes diferentes. Cada bicudo impe sua prpria personalidade, no andamento, na voz e na melodia e acrescenta ou omite notas na execuo do seu canto. Dificilmente encontraremos dois bicudos com cantos idnticos. Por mais semelhantes que sejam, mesmo executando as mesmas notas, cada um ir estabelecer suas prprias caractersticas ao executar seu canto (FEBRAPS, 2007).

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Fonte: Guidotti (2007). FIGURA 1 Bicudo

Diversos mamferos tambm apresentam comportamentos prximos s canes ou msica dos seres humanos. Diferentes tipos de conduta que denotam expresso de estados afetivos, similares s formas de expresso da musicalidade humana, so tambm encontrados entre esse tipo de animais, indicando que h musicalidade em outras espcies. Isso sugere que o comportamento musical humano e o condicionamento de seus sistemas neurais seriam uma extenso dos atributos filogenticos gerais (CROSS, 2006). Tambm em gibes pode-se encontrar exemplo de comportamento musical. Os Gibes, de acordo com Geissmann (2001), so primatas originrios das florestas tropicais do sudeste da sia. Suas canes so sries de notas reconhecveis pelas seqncias e padres temporais. Podem durar de dez a trinta minutos, dependendo da espcie e do contexto em que se encontrem. Produzem oitavas musicais, subindo e descendo na escala por semitons. Cantam principalmente nas primeiras horas das manhs. Vinte e seis espcies de primatas possuem diferentes tipos de canes. Cada espcie pode ser reconhecida por elas. Nos cantos em duetos h uma espcie de combinao entre parceiros em relao ao repertrio e interao vocal. O nvel de complexidade das canes pode tambm variar. Essa complexidade se refere ao nmero de notas musicais, frases, freqncias e canes, principalmente entre os machos. H tambm, em algumas espcies, variaes rtmicas. As fmeas de algumas espcies costumam terminar suas canes com uma grande seqncia repetida vrias vezes. Os duetos ocorrem em espcies monogmicas. Nos gibes, os sons so produzidos com a funo de alarme. Suas canes podem ser provocadas em resposta ao canto de outros da espcie. O canto em duetos pode servir como demarcador de territrio. O treinamento em pares de machos e fmeas, se estes treinam juntos desde o incio, requer parceria e

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copulao como pr-condio para tal. Parentes mais prximos dos gibes, macacos comuns, gorilas, orangotangos e chimpanzs tambm possuem manifestaes musicais que realizam funo comunicativa, de defesa de territrio e sexual.

Fonte: Parque Zoolgico de Lagos FIGURA 2 Gibo comum

Os chimpanzs possuem uma linguagem mais ou menos desenvolvida, especialmente, no sentido fontico e, de certa forma, similar do homem. Mas, citando Khler, Vigotski (2001) afirma que as manifestaes fonticas desses animais expressam somente estados subjetivos caractersticos da expresso emocional. Existe uma grande quantidade de elementos sonoros na fontica dos chimpanzs, mas esses no expressam a funo de signo, pois no descrevem nem designam um contedo objetivo da realidade. Os sons dos chimpanzs so somente expressivos, referindo-se a estados emocionais. Esses tipos de sons funcionam como gestos indicadores (WUNDT, citado por VIGOTSKI, 2001) que, na linguagem humana, seria um degrau mais primitivo, funcionando como um momento importante da passagem da linguagem emocional para a linguagem objetiva, ou seja, entendida por Vigotski (2001) como aquela que se refere a fenmenos do mundo exterior e que cria representaes mentais.

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Fonte: http://www.assis.unesp.br/egalhard/humanev1.htm FIGURA 3 Chimpanzs

Vigotski (2001) relata que Learned, colaboradora de Yerkes, conseguiu selecionar 32 vocbulos de chimpanzs que so semelhantes a elementos da fala humana e que seriam derivados de situaes relacionadas ao prazer e ao desprazer, ou que inspiram estados emotivos como medo, ressentimento ou desejo, indicando claramente a existncia de uma linguagem emocional. Para Vigotski (2001), as reaes vocais expressivas seriam a base do surgimento da fala humana.

Primatas costumam utilizar diversos tipos de sons que funcionam como chamadas de alarme entre seus pares. Mithen (2006) afirma que eles possuem uma natureza musical e ritmos caractersticos. Costumam entoar algumas canes em pares. As vocalizaes, os gestos e as posturas corporais dos primatas no humanos de hoje seriam anlogos aos dos primeiros homindeos.

Para alguns autores, a comunicao animal, entretanto, possui um contedo significacional. Para Marler (2001), por exemplo, a compreenso atual sobre a

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comunicao ou linguagem animal seria ainda bastante limitada, podendo levar a uma simplificao da situao. De acordo com o autor, haveria um significado na vocalizao dos animais. Tratar-se-ia de um sistema simblico em que existiriam sinais decodificados por receptores ricos de informaes e que possuiriam funes diversas, representando tambm estados mentais do emissor. Do mesmo modo, Hauser (2001) afirma que as vocalizaes dos primatas utilizam diferentes parmetros acsticos que possuem informaes relativas a objetos e eventos do ambiente. Tais sonorizaes aconteceriam a partir de um sistema de convenes relacionados vida grupal e s relaes sociais e lembrariam, de modo rudimentar, o sistema de referncia humano. De acordo com Hauser (2001), em suas respectivas pocas, Aristteles, Descartes e Darwin j falavam sobre a vocalizao animal, afirmando que elas refletiam estados afetivos diversos, bem como motivaes e emoes. Posteriormente, pesquisas com golfinhos e primatas treinados, na dcada de 70 do sculo XX, sugeriram que estes animais possuem, para alm de estados afetivos, ferramentas conceituais que seriam utilizadas para produzir um sistema referencial de comunicao expresso por meio de uma linguagem artificial a partir de sons. Na dcada de 80, outras pesquisas observaram que macacos utilizariam tipos de sons diferenciados em resposta a sons de predadores, tais como leopardos, guias e cobras. Os sons desses macacos, para o autor, possuiriam informaes que provocariam respostas adaptativas imediatas e diferenciadas em outros macacos, dependendo do tipo de predador. Na dcada de 90, segundo Hauser (2001), pesquisas mais elaboradas j teriam sido capazes de indicar a funo e o significado da vocalizao de macacos, concluindo que as sonorizaes serviriam para salientar objetos e eventos ambientais. Ainda assim, o autor admite que, apesar de as pesquisas atuais ainda no serem to precisas em relao ao significado do contedo sonoro dos animais, existiriam dados suficientes para argumentar a favor de uma morfologia acstica nos mesmos, indicando que eles possuiriam um repertrio que consiste em chamadas de estados afetivos e outro para mapear objetos e eventos externos do ambiente. A principal idia do autor que, embora as vocalizaes animais no possuam o mesmo teor das palavras humanas para especificar objetos e eventos, elas poderiam se referir a estados mentais, ou seja, objetos imaginados, estados futuros, bem como crenas e intenes que poderiam ser precursoras do sistema humano de classificao, fazendo parte da construo da faculdade da linguagem humana construda por nossos antecedentes. Ele prprio realizou estudos com macacos rhesus e outras espcies que sugerem que a musicalidade humana seria produto de foras evolucionrias, cujas similaridades e caractersticas seriam compartilhadas com os ancestrais humanos. As vocalizaes

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possuiriam, para o autor, informaes sobre estados afetivos e sobre referncias externas. Os ouvintes dessas informaes, que serviriam para classificar objetos e eventos, seriam sensveis a elas. Para algumas vocalizaes, existiriam certas convenes que poderiam incluir significados para membros de um grupo.

Todavia, Leontiev (2004) afirma que o que levou a se falar de linguagem animal foi a utilizao de sons em sua comunicao. As particularidades de sua linguagem so determinadas pelas caractersticas de suas relaes. Os sinais dirigidos pelas aves que vo frente do bando so exemplos disso. Entretanto, na comunicao vocal dos animais no h um contedo objetivo como nos homens. O comportamento animal expressivo no se relaciona aos objetos. H para eles somente um sentido biolgico no sinal vocal que se manifesta em sua atividade especfica. Seu comportamento vocal instintivo, o que no inviabilizaria a possibilidade de isso estar ligado a um reflexo psquico da realidade exterior objetiva (LEONTIEV, 2004). A idia de Vygotski (1982), referendada por Leontiev, revela que o que se verifica no som dos animais apenas uma forma de contgio de estados emocionais, um tipo de comunicao mais primitivo e inserido em limites mais reduzidos. O autor utiliza como exemplo os gritos de um ganso, que, em uma situao de susto por algum perigo, contagiaria outros gansos com seu medo, fazendo com que eles voem. Os gansos que ouvem os gritos so apenas contagiados pelo medo do grito do primeiro ganso. Eles no so capazes de compreender nisso informaes racionais plenas de sentido. No h, desse modo, uma comunicao que possa conter significados, mas somente estados afetivos por meio de contgio e, nesse caso, o contgio do medo.

A comunicao, propriamente dita, sem signos e sem significado impossvel, de acordo com Vygotski (1982). A transmisso de qualquer sensao ou contedo da conscincia requer a catalogao do contedo transmitido em uma classe determinada e em um grupo de fenmenos especficos, o que exige uma generalizao. Assim, ela pressupe o desenvolvimento do significado verbal. Para o autor, a comunicao que tem por base a compreenso racional e uma transmisso intencional de pensamentos e de sensaes, requer o que ele denomina de sistemas de meios, que podem ser verificados na linguagem humana e que surgiu da necessidade de comunicao no trabalho. As formas superiores de comunicao psquica so prprias do homem e so possveis porque, com a ajuda do pensamento, o homem reflete a realidade de forma generalizada. Para o

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autor, o som perde tudo que o faz ser som lingstico ao se separar do significado, passando a fazer parte das sries restantes de som. Quando um som deixa de ser um som com significado, quando est fora do aspecto semntico da linguagem, ele perde todas as propriedades que so inerentes linguagem humana.

Por esta via de anlise, as pesquisas que apontam que os sons dos animais possuem um contedo significacional e que haveria uma comunicao nessas bases no fariam sentido. A funo primitiva do som no estgio evolutivo dos demais animais seria somente, dessa forma, de expresso das emoes e estaria ligado no a generalizaes, mas sim a estados emocionais.

Ao analisar a expresso das emoes nos homens e nos animais, Darwin (2000) discorre sobre a emisso de sons vocais, identificando sua gnese, estrutura e funo. Indica que essa pode ter sido desenvolvida por contraes involuntrias e sem finalidade dos msculos do trax e da glote. Os animais sociais utilizam habitualmente seus rgos vocais, que podem ter sido freqentemente teis em algumas situaes, induzindo, por exemplo, prazer, dor e fria. So empregados quando tais sensaes e emoes, em maior ou menor grau e em condies diferentes, so despertadas. O ancestral do ser humano, de acordo com ele, deve ter emitido sons musicais antes de adquirir a capacidade de articular a fala.

Darwin (2000) faz referncia ao ensaio sobre a msica elaborado por Spencer, que demonstrou que as falas emotivas esto relacionadas msica vocal e instrumental e que estas possuem uma base fisiolgica. Spencer, de acordo com Darwin (2000) postulou a lei geral de que um sentimento uma incitao ao muscular, admitindo que a voz modificada de acordo com essa lei. As diversas qualidades de voz podem ter surgido da fala de emoes fortes e estas podem ter sido transferidas para a msica vocal. Desse modo, a vocalizao animal, ainda que primitiva, era uma e a mesma expresso. Sua funo, portanto, era a expresso das emoes.

Em diversos animais, a vocalizao utilizada para chamar incessantemente pelo sexo oposto no perodo de acasalamento, o que Darwin (2000) aponta tambm como possibilidade de ter sido este um dos meios de seu desenvolvimento. Nos animais, o uso

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dos rgos vocais parece ter sido associado antecipao do mais intenso prazer que estes podem sentir. A voz, segundo o autor, assume um carter musical quando empregada sob qualquer emoo forte. Machos de animais inferiores empregam sua voz para agradar suas fmeas, parecendo ter prazer em seus exerccios vocais. Tonalidades de voz e emoes relacionam-se, explicitamente, como no exemplo queixoso do sibilo agudo pelo focinho produzido por ces. Ao repetirem hu hu, em um misto de sibilo e rosnada, macacos exprimem surpresa e, com guinchos ruidosos, medo ou dor, como igualmente os humanos, que exprimem agonia com gemidos profundos e gritos lancinantes. A fria tambm leva contrao violenta dos msculos da voz. Um exemplo o rosnar de um co, o rugir de um leo,ou a provocao de disputas mortais em machos rivais, que, tentando sobressarem-se, desafiam-se com suas vozes. A emoo de raiva e todo o tipo de sofrimento tambm esto relacionados ao uso da voz. O hbito de produzir sons como meio de fazer a corte entre amigos, nos ancestrais dos humanos, segundo Darwin (2000), associado a intensas emoes, tais como amor, rivalidade e triunfo. A passagem de um estado de vibrao da laringe humana para outro, produzido por diversas seqncias de sons, e a maior ou menor facilidade mecnica para tal produo pode ter sido causa primria do uso humano da voz e dos sons.

Informaes obtidas por meio de fsseis de primatas fornecem dados sobre sua fisiologia e neurologia. Segundo Cross (2006), com essas informaes foi possvel identificar que os primatas possuam nas reas cerebrais respectivas habilidade musical e ao controle da fala a possibilidade de produo e de processamento de sons. Assim, segundo ele, haveria a probabilidade de que, na vocalizao dos primatas, seria possvel encontrar indcios dos precursores da musicalidade humana.

1.4

A comunicao sonora do homem biolgico

Pelo que se disse at agora, pode-se notar que uma das formas mais antigas e universais de comunicao de carter musical e parece que o mais remoto dos instrumentos foi a voz, ainda no tipo biolgico de homem.6 Os sons dos primeiros homindeos parecem ter sido anlogos aos dos macacos atuais. Sons barulhentos para

6 Entende-se por homem biolgico aquele que sofria transformaes morfolgicas significativas no percurso filogentico e ainda no passava por transformaes culturais.

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longas distncias, caractersticas tonais nas notas, um sobe e desce nas frases, principalmente nos finais dessas, notas bifsicas e acelerando rtmico. A expresso das emoes exerce influncia diretamente no corpo do receptor do som, levando-o por vezes ao movimento a partir da audio. Isso faz com que, freqentemente, a msica esteja associada dana (GEISSMAN, 2001).

Assim, a expresso musical dos modernos humanos e a vocalizao barulhenta dos primatas possuem o mesmo ancestral, de acordo com Geissman (2001). Alm de possuir funes tais como demarcao de territrio, intimidao espacial intergrupal, localizao de indivduos, servindo como aviso de perigo e de deteco de alimento entre os primeiros homindeos, a coeso grupal, o reforo de uma ordem e unidade social parecem ter sido funes muito importantes.

Para expressar emoes, os Australopithecines7 , possuam um vasto repertrio de chamados que eram utilizados em contextos sociais. As linhagens homindeas posteriores, a julgar pelas propores cerebrais, indicam o desenvolvimento de interaes sociais cada vez mais complexas, o que exigiu respostas mais sofisticadas para os desafios do meio ambiente. Os sons organizados podem ter sido os primeiros meios de expresso dos homindeos, cujas propriedades acsticas estariam mais prximas das formas e estruturas da msica do que da fala semntica (BANNAN, 2006).

Segundo Mithen (2006), como sistema comunicativo e expressivo, a msica tem muita similaridade com a fala, bem como com a expresso sonora relativa emoo nos animais. Ele apresenta dados de fsseis arqueolgicos que provm substanciais evidncias de que, no incio, msica e fala desenvolviam-se em unidade. Como sistema de comunicao, linguagem falada e a expresso musical teriam uma origem comum e possuam em sua raiz caractersticas holsticas, manipulativas, multimodais, musicais e mimticas, o sistema hmmmmm. Holo-frases que possuam um largo e nico significado e que no eram quebradas em suas partes constituintes faziam parte da conversao primitiva. Tais frases faziam uso de variao de alturas, ritmo e melodia, que7 Os Australopithecines datam 4.000.000 a.C. 3.000.000 a. C. Um exemplo caracterstico o de Lucy, fragmentos de esqueleto de criana encontrados na Etipia. Possuam traos de primatas combinados com os de homindeos. Eram adultos pequenos e bpedes (BANNAN, 2006).

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expressavam e induziam o falante e o ouvinte emoo (MITHEN, 2006). Ainda conforme esse autor, diversos fsseis arqueolgicos sugerem que a capacidade de comunicao vocal de nossos ancestrais era similar dos modernos humanos. Tanto o Homem sapiens neanderthalis8, quanto o Homo sapiens sapiens9

utilizaram o sistema

hmmmmm, como indicam dados originrios da frica, revelando inclusive outros tipos do sistema hmmmmm, como uma espcie de proto-hmmmmm, nos ancestrais do Homo sapiens sapiens.

Ao definir fala, Bannan (2006) descreve-a como um modo de comunicao serial em que os indivduos se revezam na troca de representaes com propriedades recursivas. O ato de cantar permitiria, igualmente, o compartilhamento de uma atividade simultnea entre seres humanos e que, como canto grupal, pode ter desempenhado importante papel na natureza pr-lingustica da comunicao humana. Na evoluo da comunicao vocal humana, estariam presentes os seguintes elementos: desenvolvimento de um sistema auditivo; postura ereta, que implica a natureza da laringe humana e as capacidades de ressonncia do aparelho vocal; desenvolvimento da respirao voluntria, neotenia do crnio adulto, mandbula inferior e queixo ortogntos; dimenses da nasofaringe, processamento cerebral para percepo e produo musical; desenvolvimento de centros especficos para a fala e funes relacionadas ao canto; lateralidade e integrao dos sentidos; dentio onvora; desenvolvimento dos tubos de Eustquio e sinus (BANNAN, 2006).

Para Bannan (2006), o processamento musical possui um papel fundante em relao fala. O autor destaca a altura, a possibilidade de controle do volume, a durao e a capacidade de variar timbres como parmetros de uma comunicao potencialmente significativa presentes na fala e no canto, o que no considera como uma simples coincidncia, j que constituem a anatomia complexa do instrumento vocal humano. Tais funes seriam frutos da evoluo, presentes hoje na produtividade vocal moderna, na fala e na cano.

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Os Homo sapiens neanderthalis datam de 220.000-30.000 a. C. (BANNAN, 2006). Possuam largos peitos, mos fortes, largas cavidades nasais, evidncias de base cranial flexionada. Estavam bem adaptados a climas frios e eram extremamente fortes. possvel que tivessem capacidade limitada de linguagem. Atribui-se autoria a eles de supostas ferramentas e artefatos. O Homo sapiens sapiens data de 100.000 a. C. at o presente (BANNAN, 2006).

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Assim, se na comunicao animal e primitiva, expresso musical e linguagem falada (podendo ser aqui entendida como vocalizaes ou, ainda, como sonorizaes) so um s e o mesmo processo e se o papel da comunicao sonora nesse contexto o de expresso de estados afetivos, ento, tudo indica que a expresso musical, em seu estgio primevo, elementar, igualmente o veculo comunicativo de expresso das emoes. Isso est presente e se afirma no percurso filogentico.

Essa base biolgica da atividade de carter musical permite afirmar a universalidade da musicalidade. Isto , se depender das nossas possibilidades como animais humanos, todos somos capazes de nos expressar musicalmente, de expressar nossas emoes por meio de sons, do mesmo modo como, de modo geral, se depender da anatomia e da fisiologia humana, todos somos capazes de nos expressar por meio da linguagem falada. Isso dado ao ser humano, independentemente das formas que possa assumir. A musicalidade possui, assim, carter universal. No se trata de um dom para alguns. um dom para todos.

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A MUSICALIDADE E AS LEIS HISTRICO-CULTURAIS

A histria da cultura a histria do esprito humano (VIGOTSKI) 2.1 Leis histrico-culturais: novas eras no desenvolvimento humano

No presente captulo sero discutidas as transformaes que a expresso da musicalidade assume na cultura. Deve-se enfatizar, entretanto, que o foco deste trabalho a msica de tradio clssica, por sua estreita vinculao com a escola de msica especializada, formadora de msicos profissionais, que o ponto para o qual esse estudo pretende caminhar em termos de anlise conjuntural.

Existem muitas narrativas acerca da atividade musical. Elas representam a diversidade de formas e concepes que essa atividade assumiu no decorrer do tempo histricocultural. Sem a pretenso de reescrever uma histria da msica e, ainda, sem o intuito de desenvolver termos tcnico-musicais, j que o que se busca realizar uma psicologia da msica, sero delimitados alguns momentos-chave, ou seja, com base na psicologia histrico-cultural, momentos de ruptura, nas palavras de Vigotski (1982), da vivncia espontnea da musicalidade, como sinal de transio para outros modos de vivncia dessa mesma musicalidade. Assim, tem-se o intuito de delimitar de que forma o trabalho, o uso de ferramentas e a organizao do signo, que inauguraram o homem como tal, contriburam para novas formas de vivncia da musicalidade, cujas bases foram estabelecidas na histria da espcie, como analisado no captulo anterior. Em meio tradio europia de msica, tambm denominada de tradio clssica, contexto desse trabalho, j que foi a que se instaurou como parmetro para o ensino formal nas escolas de msica especializadas em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, por meio do modelo conservatorial, como afirmado anteriormente, procurar-se- identificar como ela foi inaugurada e difundida como forma normatizadora e padronizadora de pensar e agir para com a vivncia da musicalidade. Entende-se ento que, dentre outros elementos, a criao dos primeiros instrumentos musicais, a organizao do signo musical, a figura do intrprete e, com isso, a tcnica normatizadora em meio apropriao desses elementos

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por parte de uma ideologia dominante foram os momentos-chave para a instaurao de novos tipos de vivncia da musicalidade. A musicalidade e os modos de sua manifestao por meio da msica no surgiram instantaneamente na cultura humana. Houve todo um percurso iniciado em uma histria natural, como visto no captulo anterior, antes que ela se tornasse propriamente uma atividade cultural. Ambos os planos, biolgico e cultural, influenciam-se e modificam-se constante e mutuamente, o que significa que, na cultura, o homem continua tambm se desenvolvendo (VYGOTSKY, 1996). Entretanto, um novo tipo de desenvolvimento que acontece no homem cultural, o que requer uma compreenso das leis histrico-culturais.

Foi a psicologia histrico-cultural, que teve suas premissas inicialmente formuladas por Vigotski, Luria e Leontiev, que procurou compreender o desenvolvimento humano nessa perspectiva. Com base na dialtica marxista, Vygotsky (1996) defendia que o trabalho, o uso de instrumentos e o uso de signos pelo homem so momentos decisivos, ou seja, etapas cruciais, indcios de novas eras no desenvolvimento do comportamento. Representam uma ruptura, no sentido dialtico, da linha de desenvolvimento psicolgiconatural que se transforma em psicolgico-cultural. Cada uma dessas etapas algo original introduzido no processo de desenvolvimento, um ponto de partida para um novo processo.

Nessas bases, Leontiev (2004) explicou o processo de passagem dos animais ao homem por meio de estgios. A preparao biolgica seria o primeiro, que comeou no fim do tercirio, prosseguindo no incio do quaternrio. Os Australopitecos, seus representantes, eram animais que levavam uma vida gregria, posicionavam-se verticalmente, utilizavam utenslios elementares e possuam meios primitivos de comunicao. A passagem ao homem se d no segundo estgio, que comporta desde o aparecimento do Pitecantropo10 at o homem de Neanderthal. Nesse perodo teve incio a fabricao de instrumentos e as formas embrionrias de trabalho e de sociedade. As leis biolgicas regiam completamente a formao do homem nesse estgio. Entretanto, novos elementos apareciam, decorrentes do desenvolvimento do trabalho e da fala comunicativa. Eram modificaes na constituio anatmica do homem, em seu crebro, em seus rgos de sentido, em suas mos e em seus rgos de fala. Assim, o desenvolvimento biolgicoPitecantropo- antropide homindeo fssil da famlia dos pitecantropdeos (ou dos Homindeos) que viveu no pliostocnio (WIKITIONARY, 2008).10

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comeava a condicionar-se ao desenvolvimento de sua produo, que um processo histrico-cultural possuidor de leis prprias. O surgimento do homem atual o terceiro estgio proposto por Leontiev (2004). Nele, houve uma mudana no papel exercido pelo plano biolgico e o cultural sobre a natureza do homem. No Homo Sapiens, a evoluo se liberta da dependncia inicial exclusiva das mudanas biolgicas e passa a ser regida, fundamentalmente, pelas leis histrico-culturais. Nessa fase, o homem possui as propriedades biolgicas que lhe so necessrias ao desenvolvimento histrico-cultural. Na histria desse novo homem, suas modificaes biolgicas se restringiram a variaes insignificantes e sem implicaes diretas nas condies de vida na cultura. Isso se deve ao fato de as mudanas desencadeadas pela cultura acontecerem de forma extremamente acelerada em relao s mudanas biolgicas. Ou seja, o tempo da histria cultural muito diferente do da histria natural.

Luria (1991) destaca em seu estudo sobre a atividade consciente do homem e suas razes histrico-culturais, em concordncia com Vygotsky (1996), que o trabalho social, o emprego de instrumentos de trabalho e o surgimento da fala foram marcos que serviram de transio da histria natural dos animais histria cultural do homem. O autor examinou cada um desses fatores, destacando o papel que eles desempenharam na [...] mudana radical do comportamento, que o que representa uma nova estrutura de atividade consciente do homem. (LURIA, 1991, p. 77, itlico do autor). Diferentemente do animal, o homem emprega e prepara os instrumentos de trabalho. Isso, por si s, mudou de modo radical a atividade do homem, distinguindo-a do comportamento do animal. J no era o motivo biolgico imediato que determinava o preparo da fabricao de instrumentos. Por si s, ela no possui sentido biolgico. Seu sentido surge na utilizao posterior do instrumento confeccionado na caa e com o conhecimento da operao a ser executada, ou seja, o conhecimento do emprego futuro do instrumento. Essa condio denominada por Luria (1991) como [...] primeiro surgimento da conscincia, noutros termos, primeira forma de atividade consciente (LURIA, 1991, p. 76). A atividade de preparao de instrumentos de trabalho implica uma mudana radical na estrutura de comportamento que, no animalse volta para a satisfao imediata de uma necessidade. No homem, o comportamento possui carter de estrutura complexa. uma ao especial com sentido posterior. No momento em que as formas de produo e as sociedades se tornam mais complexas, grande parte das aes do homem no so movidas por motivos estritamente biolgicos e passam a ocupar lugar de destaque em sua atividade consciente. As operaes auxiliares na preparao de instrumentos de

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trabalho, tal como desbastar uma pedra com outra, constitui uma progressiva complexidade da estrutura da atividade e passa a ser dirigida por um objetivo consciente. Isso leva, conseqentemente, ao nascimento de novas formas de comportamento que, alm de no serem dirigidas diretamente por motivos biolgicos, podem algumas das vezes se opor a eles. Assim, [...] a atividade consciente do homem no produto de desenvolvimento natural de propriedades jacentes no organismo, mas o resultado de novas formas histrico-sociais de atividade-trabalho (LURIA, 1991, p. 77, itlicos do autor). A segunda condio que leva formao da atividade consciente de estrutura complexa do homem o surgimento da linguagem. Luria (1991) define-a como um sistema de cdigos por meio dos quais so designados objetos do mundo exterior, suas aes, qualidade, relaes entre eles, etc. (LURIA, 1991, p. 78, itlicos do autor). A palavra cadeira designa, por exemplo, um tipo de mvel que serve para assento. Dormir e correr designam aes. Sobre e juntamente designam relaes diferentes entre objetos. Unidas em frases, as palavras conservam informaes, permitindo a transmisso da experincia acumulada por geraes a outras pessoas. Os animais possuem apenas meios de expresso de seus estados, que so percebidos por outros animais, podendo ou no exercerem influncia neles. somente no homem que surge essa linguagem que designa coisas do mundo exterior, que permite generalizaes e que distingue aes e qualidades. Assim, as condies de surgimento da linguagem devem ser buscadas e compreendidas nas condies sociais do trabalho, cujo surgimento remonta ao perodo de passagem da histria natural histria da cultura humana.

na forma grupal de atividade prtica do homem, de acordo com Luria (1991), que surge nele a necessidade de transmisso de informaes a outras pessoas e que no pode restringir-se expresso de estados subjetivos. Deve, de outra forma, referir-se a objetos da atividade conjunta. [...] os primeiros sons que designam objetos surgiram no processo do trabalho conjunto (LURIA, 1991, p. 79). Os sons comeavam a indicar alguns objetos, mas no existiam autonomamente. Estavam embrenhados na atividade prtica. Gestos e entonaes expressivas os acompanhavam. Seu significado s podia ser interpretado conhecendo-se a situao em que eles surgiam. Poder-se-ia cham-los de protovocbulos. Os atos e gestos eram mais determinantes na atividade, constituindo os elementos de uma linguagem ativa. S mais tarde os sons iriam possuir papel igualmente determinante que propiciariam a base da linguagem de sons. A separao entre ao prtica e sons s aconteceu depois de muitos milnios, quando apareceram as primeiras palavras autnomas que designavam objetos e, posteriormente, aes e qualidades de

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objetos. Surge, ento, a lngua, como sistema de cdigos independentes. Sobre isso, Luria afirma:

Enquanto sistema de cdigos que designam os objetos, suas aes, qualidades ou relaes e serve de meio de transmisso de informao, a linguagem teve importncia decisiva para a posterior reorganizao da atividade consciente do homem. Por isso tm razo os cientistas que afirmam que, a par com o trabalho, a linguagem o fator fundamental de formao da conscincia (LURIA, 1991, p.80, itlicos do autor)

Trs mudanas essenciais na atividade consciente do homem acontecem com a linguagem. Ela permite a discriminao de objetos, a direo da ateno para eles e a sua conservao na memria. Isso possibilita lidar com as coisas do mundo exterior, mesmo que elas estejam ausentes. A linguagem permite a conservao da informao recebida do mundo externo, duplicando o universo perceptvel e criando um campo de imagens interiores. O surgimento desse mundo interior de imagens pode ser utilizado pelo homem em sua atividade. A abstrao e generalizao das coisas tambm outra significante contribuio da linguagem formao da conscincia. As palavras de uma lngua indicam e abstraem as propriedades delas, relacionando as coisas perceptveis em dadas categorias. Com as relaes e abstraes possibilitadas pela linguagem, ela se torna, para alm de um meio de comunicao, o veculo mais importante do pensamento, assegurando a transio do sensorial para o racional no que diz respeito representao do mundo. Ela tambm o meio de transmisso de informaes que cria uma fonte de evoluo dos processos psquicos e permite ao homem a assimilao da experincia. Com o surgimento da linguagem surge no homem um tipo inteiramente novo de desenvolvimento psquico desconhecido dos animais, e que a linguagem realmente o meio mais importante de desenvolvimento da conscincia (LURIA, 1991, p. 81, itlico do autor).

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Novas leis de percepo so criadas e reorganizadas pela linguagem. A percepo aprofunda-se, relacionando-se com a discriminao dos indcios essenciais do objeto. A linguagem modifica os processos de ateno do homem e cria condies para ele dirigir arbitrariamente a sua ateno. Ela modifica tambm os processos de memria, possibilitando uma atividade mnemnica consciente. O desligar-se que possibilita tambm cria condies para o surgimento da imaginao, que, por sua vez base para o ato criativo como forma complexa de abstrao e de generalizao. O surgimento da linguagem eleva os processos psquicos a um novo nvel e reorganiza tambm a vivncia emocional. Forma vivncias e longos estados de esprito que, no se limitando s reaes afetivas imediatas, no se separam do pensamento. Formas de atividade consciente podem tambm surgir por meio de regras estabelecidas com o auxlio da linguagem. Em sntese, os processos de atividade consciente do homem so imensamente plsticos e dirigveis. Como bem afirmou Leontiev (2004), cada indivduo aprende a ser um homem pela apropriao da cultura.

At aqui, analisou-se o surgimento do comportamento cultural e consciente do homem. Buscou-se compreender o caminho percorrido pela linguagem em seu desenvolvimento. Ele , em sua base, o caminho percorrido pelo som, que era originariamente o lugar de expresso das emoes na histria natural e que, na histria cultural, como fala humana, passa a servir como meio de categorizar coisas do mundo exterior, criando novas possibilidades de desenvolvimento. Resta agora esclarecer como que esse mesmo som se organizou tambm como msica. De que modo ele se bifurcou em ambas as funes de msica e de linguagem? Se a linguagem ocupa uma dimenso to importante no desenvolvimento do psiquismo e na conscincia humana, que novas funes a atividade musical inauguraria? Que transformaes sofreria a musicalidade humana nesse percurso? o que se buscar esclarecer nos pargrafos seguintes.

2.2

A Musilinguagem

Aps uma longa etapa evolutiva, em que no havia uma separao entre som musical e som falado, tendo ambos sido uma s coisa, uma musilinguagem, como denomina Brown (2001), inicia-se na cultura uma nova etapa do desenvolvimento do comportamento humano, ou seja, a separao entre expresso da musicalidade e fala. Essa separao

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demanda caractersticas estruturais prprias bem como o aparecimento de novas funes para esses processos. Brown (2001) afirma que existem dois nveis de funcionamento, tanto na msica, quanto na fala, que seriam o nvel fonolgico (unidades sonoras, por exemplo, P, T. etc.) e o nvel significacional (sentido). Ambos derivam do processo de formao de frases, que envolve uma discreta unidade que combina sintaxe (processo combinatrio das frases) e frase expressiva (que utilizaria graves e agudos e enfatizaria determinadas partes da palavra com a inteno de chamar a ateno para ela). O nvel fonolgico seria o nvel acstico (modos de propagao do som), que governado por um tipo de sintaxe fonolgica na unidade entre alturas sonoras (grave e agudo) e fonemas (unidades sonoras). Em uma unidade funcional, combinam-se os morfemas (unidades gramaticais, por exemplo, in), que nutrem o nvel significacional de cada um dos sistemas.

Na fala e na msica, os nveis significacionais so governados por diferentes tipos de sintaxes de sistemas, ou seja, diferentes combinaes frasais, podendo ser diferenciadas mais por sua nfase do que por sua espcie, que so representadas por meio de sua localizao em um espectro. As diferentes interpretaes dos padres sonoros de comunicao so representadas pelos plos desse espectro. Cada sistema permite a criao de novas formas significacionais. Enquanto a linguagem falada enfatiza o referencial significacional do som, a msica enfatiza o seu significado emotivo. Um grande nmero de funes ocupa uma posio intermediria nesse espectro, incorporando o referencial da linguagem falada e a funo do som emocional presente na msica. Uma cano verbal possuiria uma funo intermediria, motivo pelo qual, segundo o autor, ela tem ocupado uma posio central na expresso humana ao longo do tempo (BROWN, 2001). A seguir, apresentar-se- o modelo de espectro proposto por Brown (2001) em que se pode observar em um plo o modelo acstico musical, enfatizando o significado emotivo do som e, no outro, a linguagem, destacando o seu significado referencial. O centro do espectro ocupado pela cano verbal, que o ponto de encontro entre msica e linguagem.

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Fonte: Brown (2001, p. 275) FIGURA 4 Nveis de funcionamento da msica e da linguagem

No processo de separao entre msica e linguagem, de acordo com Brown (2001), ambas enfatizariam tipos singulares de interpretao e comunicao de padres sonoros. A linguagem falada contm um sistema semntico de significados (sentido e aplicao das palavras). Inserida em uma gramtica, ela desenvolve uma espcie de sintaxe (processo combinatrio das frases) capaz de especificar as relaes entre sujeito e objeto em uma frase. Isso envolve organizao hierrquica e recursiva. A msica, por sua vez, leva formao de modos acsticos. A dimenso acstica e o repertrio de alturas (grave e agudo) se expandiram e, em sua gramtica prpria, complexidade e hierarquia

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semntica, transformaram-se em um sistema que tem por base a combinao de padres de alturas. Isso possibilitou a criao de diversos tipos e formas polifnicas (vrias vozes e melodias), bem como a combinao de timbres complexos (qualidades das fontes sonoras, por exemplo, som/timbre do metal ou som/timbre da madeira). A propriedade de combinao de alturas possibilitou a emergncia de diversas frmulas categricas para a expresso de estados emocionais. Tambm levou s vrias formas de emoo sonora, que foram e so utilizadas na criao musical coerente e em um significado emotivo nas frases musicais. No aspecto rtmico, a msica assumiu a caracterstica de organizar o tempo em pulsos regulares (durao do som), o que identificaria a cultura ocidental na busca por sua sincronicidade. A capacidade humana de manuteno de uma pulsao rtmica e de externar batidas est na base da funo mtrica do pulso (batida regular), o que permitiu, na estrutura musical, a hierarquizao rtmica em dimenses horizontais e verticais, incluindo tambm a polirritmia.

A diferenciao evolucionria tambm levou msica e linguagem a interagirem em outro plano, criando novas funes que envolvem ambos os sistemas. Exemplo disso o metro na poesia e a cano verbal que refletem a evoluo dos dois sistemas de modo interativo (BROWN, 2001). A msica envolve uma delicada capacidade lingstica assim como a linguagem, a capacidade musical. Esse sistema musilingustico tornou-se o referencial emotivo da vocalizao humana. Seus nveis diferenciados levaram maturao do sistema lingstico e do modelo acstico musical. Apesar disso, transformadas na cultura, ambas continuaram mantendo um vnculo musilingustico. O aspecto emocional delas constitudo pelo uso de nveis tonais e contornos de altura na comunicao referencial. Tambm se constituem musilinguisticamente pelo desenvolvimento de frases significacionais que foram geradas por regras combinatrias e elementos frasais que possuem nveis de modulao e que contm regras contextualizadas para modulaes expressivas, bem como intensidade de expresso. No nvel semntico, o sistema musilingustico um instrumento referencial sofisticado de comunicao emotiva que gera dois nveis de significado. O primeiro, na relao de elementos justapostos, um nvel local, e o segundo, em um nvel global, um contorno total de significados associados. A diferenciao entre ambas, msica e fala, ocorre devido elaborao dos sons, ou como um significado referencial ou como significado emocional. Diferem em sua nfase mais que em sua espcie. A linguagem tem por base e prope o estabelecimento da relao entre o ator e sua ao, enquanto a sintaxe musical tem por base a combinao de alturas e a relao de sons emocionais (BROWN, 2001).

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A atividade musical caracterstica da convivncia humana em grupos e cria condies de possibilidade de promover identidade, coordenao, ao, cognio e expresso emocional, alm da cooperao, coordenao e coeso. Envolveu, nas primeiras tribos humanas, de acordo com Brown (2001), a participao do grupo social, bem como de indivduos de ambos os sexos e de todas as idades. O fazer grupal caracterstica principal da atividade musical e reflete as regras desse grupo e seus modos de organizao. Por isso, musicalidade e atividade musical tambm tiveram um importante papel na evoluo e na sobrevivncia humana. Como estrutura musical, a combinao de alturas e a organizao rtmica fazem parte dessa histria