tese cidade e agua jximenes
DESCRIPTION
Dr. IPPUR-UFRJ, 2010TRANSCRIPT
CIDADE E ÁGUA NO ESTUÁRIO GUAJARINO
2
Juliano Pamplona Ximenes Ponte
CIDADE E ÁGUA NO ESTUÁRIO GUAJARINO
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação
em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
grau de doutor em Planejamento Urbano e Regional.
Orientador: Prof. Dr. Adauto Lucio Cardoso.
Rio de Janeiro
2010
3
Juliano Pamplona Ximenes Ponte
Cidade e água no estuário guajarino
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação
em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
grau de doutor em Planejamento Urbano e Regional.
Aprovado por:
________________________________________
Prof. Adauto Lucio Cardoso - Orientador
Doutor em Estruturas Ambientais Urbanas (Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, USP). IPPUR-UFRJ.
________________________________________
Prof. Frederico Guilherme Bandeira de Araujo
Doutor em Engenharia de Produção (COPPE-UFRJ). IPPUR-
UFRJ.
________________________________________
Prof. Henri Acselrad
Doutor em Planejamento, Economia Pública e Organização do
Território (Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne).
IPPUR-UFRJ.
________________________________________
Prof.ª Ana Lúcia Nogueira de Paiva Britto
Doutora em Urbanismo (Institut D'Urbanisme de Paris -
Universidade de Paris XII, Paris-Val-de-Marne). PROURB-
UFRJ.
________________________________________
Prof. José Júlio Ferreira Lima
Doutor em Arquitetura (Oxford Brookes University, Oxford,
Inglaterra). FAU-UFPA.
Rio de Janeiro
2010
4
ÍNDICE GERAL
ÍNDICE GERAL .......................................................................................................................................................... 4
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES ......................................................................................................................................... 5
ÍNDICE DE GRÁFICOS ............................................................................................................................................... 8
ÍNDICE DE TABELAS ................................................................................................................................................. 8
ÍNDICE DE MAPAS .................................................................................................................................................... 9
AGRADECIMENTOS................................................................................................................................................. 10
RESUMO ................................................................................................................................................................. 11
ABSTRACT .............................................................................................................................................................. 12
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................ 13
1.1. A ÁREA DE ESTUDO ....................................................................................................................................... 16
1.2. UMA “QUESTÃO” DA ÁGUA .............................................................................................................................. 19
1.3. ESTRUTURA DO TRABALHO.............................................................................................................................. 21
1.4. ASPECTOS METODOLÓGICOS ........................................................................................................................... 24
2. ÁGUA E TERRITÓRIO ..................................................................................................................................... 35
2.1. ASPECTOS DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE A ÁGUA ................................................................................................ 38
2.2. “CIDADE” E ÁGUA NA REGIÃO NORTE ................................................................................................................ 59
3. BELÉM-PA E O ESTUÁRIO GUAJARINO: CIDADE E ÁGUA .............................................................................. 84
3.1. O PIRI ........................................................................................................................................................ 85
3.2. ASPECTOS DA FORMAÇÃO DO PORTO DE BELÉM .................................................................................................. 93
3.3. OUTROS PORTOS DA CIDADE ........................................................................................................................... 99
3.4. O RIBEIRINHO ............................................................................................................................................. 107
3.5. ALGUNS TIPOS DE INTERVENÇÕES NA INTERFACE CIDADE-ÁGUA ............................................................................. 133
3.6. O CASO DE BELÉM: INTERVENÇÕES TERRITORIAIS............................................................................................... 140
3.7. PORTAL DA AMAZÔNIA ................................................................................................................................. 146
3.8. MANGAL DAS GARÇAS ................................................................................................................................. 184
3.9. ECONOMIA DA CULTURA E “ORLA” .................................................................................................................. 194
3.10. SANGRIA DESATADA .................................................................................................................................... 202
3.11. PORTO DE BELÉM ....................................................................................................................................... 205
3.12. BACIAS HIDROGRÁFICAS: ORDENAMENTO TERRITORIAL E GESTÃO .......................................................................... 216
4. INTERVENÇÕES TERRITORIAIS E POLÍTICA DA ÁGUA ................................................................................. 226
4.1. “ÁGUAS URBANAS” ..................................................................................................................................... 228
4.2. CIDADE E ÁGUA: INTERVENÇÕES, CONFLITOS ..................................................................................................... 232
4.3. WATERFRONT E PARQUES URBANOS ................................................................................................................ 245
5
4.4. MODERNIZAÇÃO PORTUÁRIA .......................................................................................................................... 251
4.5. URBANISMO ECOLÓGICO E ENGENHARIA AMBIENTAL ............................................................................................ 257
4.6. GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS ................................................................................................................... 270
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................................ 288
6. REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................. 312
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 A Fonte dos Quatro Rios (1651), obra do artista Gian Lorenzo Bernini, na Piazza Navona, em Roma, Itália.
Schama (1996) a cita como uma referência para o imaginário moderno acerca da água, e da expansão do mundo no
Ocidente. Fonte: Best Price Art (2009). .................................................................................................................... 40 Ilustração 2 Brasil: áreas mais densamente urbanizadas (segundo o Censo Demográfico 2000 do IBGE). Fonte:
Gonçalves; Brandão; Galvão (2003). ........................................................................................................................ 46 Ilustração 3 Conjunto de atividades em cidade de pequeno porte de beira de rio da região amazônica: feira, porto,
mercado. Município de Baião, região do Baixo Tocantins, Estado do Pará. Foto do autor (abr. 2007). ........................ 61 Ilustração 4 A frente das cidades de beira de rio, hoje, se constituem em locais ao mesmo tempo dinâmicos
economicamente e atravessados por conflitos sociais e econômicos; município de Igarapé-Miri, região do Baixo
Tocantins, Estado do Pará. Foto do autor (jan. 2007). .............................................................................................. 62 Ilustração 5 Trapiche em zona rural da região, Estado do Pará (município de Baião, na região do Baixo Rio Tocantins);
estrutura urbana tradicional de conexão com a água e de extensão da terra. Foto do autor (abr. 2007). ..................... 64 Ilustração 6 Uma "montaria", pequena embarcação tradicional da Região Amazônica. Foto do autor, abr. 2007 ......... 67 Ilustração 7 Habitação ribeirinha, região do Baixo Tocantins, município de Cametá-PA. Ambiente idealizado e retórica
da "identidade" regional, com engenhosidade da tradição. Foto do autor, abr. 2007. .................................................. 70 Ilustração 8 Fac-símile de planta (Planta da Cidade do Pará, que atualmente é a cidade de Belém) do Major Gaspar
João Geraldo Gronsfeld (1771). Notar a delimitação do Pântano do Piri a leste da cidade; na figura, acima da ocupação
de suas quadras. Fonte: Gronsfeld (1771). ............................................................................................................... 91 Ilustração 9 Fac-símile da planta do Major Gaspar João Geraldo Gronsfeld (1780). O Alagadiço do Piri, divisor inicial do
parcelamento da cidade, definia um canal de drenagem às proximidades da atual Doca do Ver-O-Peso (próxima,
portanto, do local de fundação do aglomerado urbano pioneiro) e outra na vizinhança do antigo Convento de São
Boaventura, atual Canal da Avenida Almirante Tamandaré, nos limites de seu Centro Histórico (BELÉM, 1994) instituído
por lei municipal na década de 1990. Fonte: Gronsfeld (1780). ................................................................................. 92 Ilustração 10 A Doca do Reduto; em imagem famosa localmente, um dos pontos de entreposto de pescado, frutas e
outros artigos, situado em área central da cidade. Fonte: COSANPA (2009). ............................................................. 95 Ilustração 11 Uma "vila" situada na Bacia da Estrada Nova, bairro do Jurunas, periferia próxima de Belém-PA;
assentamento sobre palafitas, adensamento significativo, pobreza e estratégias de sobrevivência diversas. Foto:
Cláudia Ribeiro (nov. 2008). .................................................................................................................................. 102 Ilustração 12 Série de casas sobre o canal da Avenida Bernardo Sayão, na Bacia da Estrada Nova, em área de periferia
próxima da cidade de Belém-PA; moradia precária em local próximo ao rio. Foto do autor (jan. 2008). .................... 103 Ilustração 13 Mapa de zonas das margens fluviais da porção continental de Belém-PA, a propósito de um plano de
estruturação elaborado em 2000, mostra perfis diferenciados da “orla” da cidade. Em amarelo, área de bacia
hidrográfica densa e pobre, ocupada por atividades econômicas de entrepostos e comércio (a da “Estrada Nova”); em
verde, a zona portuária oficial. Fonte: Belém (2000). ............................................................................................... 105 Ilustração 14 Luiz Braga, Janela Rio Guamá (fotografia; exposição Anos-Luz, 1988). O rio como estética diferencial e
como discurso da paisagem. Fonte: <http://www.luizbraga.fot.br/portfolio5/portfolio5.html>................................. 112 Ilustração 15 Luiz Braga, Casa de madeira e lata (fotografia; exposição No olho da rua¸1984). Os grafismos como
ícones de uma geometria imprecisa e regional, porém, ainda assim, identificável por outros olhares, mais habituados a
6
uma estética baseada em modelos ocidentais de composição e harmonia. Fonte:
<http://www.luizbraga.fot.br/portfolio3/portfolio3.html>. ...................................................................................... 113 Ilustração 16 Jorge Eiró, Feliz Lusitânea [Série "Labirinto Líquido"]. 2004. Técnica: gravura digital. A técnica da
cartografia, referência desde Kandinsky, mapeia a hidrografia regional. Fonte:<
http://www.culturapara.art.br/artesplasticas/jorgeeiro/img04_felizlusitania.jpg>. .................................................... 113 Ilustração 17 Versões da logo do Movimento Orla Livre; o caranguejo seria um símbolo da possibilidade de interação
entre ambiente e sociedade local, segundo lideranças do movimento. Os membros do movimento, do mesmo modo,
seriam também crustáceos, digamos. Fonte: <http://www.orlalivre.org/teengaja-botons>. .................................... 117 Ilustração 18 Publicidade de empreendimento situado nas proximidades da zona portuária, um dos primeiros a utilizar
como mote o diferencial locacional da "orla" fluvial de Belém. O nome “esotérico” e a promessa do empreendimento se
articulam com o caráter excepcional do padrão vendido, com unidades de 421 m², cinco suítes, quatro vagas de
garagem e “de frente para a baía, com uma vista sem igual” (CHÃO E TETO, 2007). .................................................. 128 Ilustração 19 A sacada do empreendimento Aquarius Tower Residence, em forma de quilha de embarcação, sugere
analogia com uma idéia simpática ao ribeirinho, conforme depoimento do próprio projetista, dado ao autor em
dezembro de 2003. Fonte: Chão e Teto (2007). ...................................................................................................... 129 Ilustração 20 Empreendimento de 37 pavimentos no bairro do Umarizal, área nobre da cidade em franca expansão do
mercado imobiliário local, com unidades de 270 m² e divulgação de “[...] várias opções de planta e uma bela vista
para a Baía do Guajará” (CHÃO E TETO, 2007). ......................................................................................................... 129 Ilustração 21 Empreendimento já construído e habitado em Belém, também situado nas proximidades da zona
portuária, no bairro do Umarizal, atesta o bom desempenho dos produtos imobiliários de localização associada à "orla"
da cidade. A “vista maravilhosa para a Baía do Guajará” é um dentre vários motes do mercado imobiliário para
ressaltar os diferenciais da ocupação nas margens fluviais da cidade — e para marcar o caráter diferenciado da
compra. ................................................................................................................................................................ 130 Ilustração 22 Publicidade recente de lançamento imobiliário em Belém-PA atesta o apelo econômico dos diferenciais
de localização de seus cursos d´água; anúncio cita a "vista majestosa para a baía" como slogan para vender a nobreza
do empreendimento. Fonte: <http://i245.photobucket.com/albums/gg55/Drico-bel/Noblesse.jpg>. Acesso em: 10 jun.
2009. .................................................................................................................................................................... 131 Ilustração 23 Publicidade de edifício residencial em Belém, na fronteira entre os bairros de Batista Campos (no
chamado centro expandido, área nobre da cidade) e Jurunas (na periferia próxima, vetor de expansão do mercado
imobiliário local) divulga como diferencial a proximidade do “[...] belíssimo Mangal das Garças, esse empreendimento
foi feito para você”. Nota em jornal local cita que a empresa construtora e incorporadora ressalta “[...] um amplo
espaço gourmet na cobertura, com vista de 180º para a capital e para a baia do Guajará, será um dos diferenciais do
Carpe Diem, novo empreendimento [...]” (SOARES, 10 jun. 2009). Notícia de jornal informa que o empreendimento tem
tido alta procura (DIÁRIO DO PARÁ, 19 mai. 2008). Fonte: <http://www.gafisa.com.br/imoveis/pa/belem/carpe-diem-
belem>. Acesso em: 10 jun. 2009. ....................................................................................................................... 132 Ilustração 24 Território continental de Belém-PA e parte de seu território insular. Fonte: CODEM (2000)................... 141 Ilustração 25 Vista de um dos antigos rios urbanos de Belém, atualmente denominados "canais" (no caso, o da
Travessa dos Caripunas, no bairro do Jurunas, na Bacia da Estrada Nova); espaços qualificados como degradados e
prontos para receber intervenções de requalificação do ambiente. Foto do autor, jan. 2007. .................................... 144 Ilustração 26 Bacia hidrográfica da Estrada Nova e contorno de bacias vizinhas, da área central (Reduto, Magalhães
Barata, Tamandaré) e da periferia próxima (Tucunduba), Belém-PA. Área de intervenção do proieto Portal da Amazônia.
Fonte: GPHS; COSANPA (2008); CODEM (2000). ................................................................................................... 149 Ilustração 27 Imagem de rio urbano/canal da cidade de Belém é apresentada como parte da problemática sanitária
local, ressaltando que trata-se de “canais abertos em áreas de baixadas”, o que aumenta a suscetibilidade do local a
inundações (BELÉM, 2006b, p. 17). ........................................................................................................................ 151 Ilustração 28 Esquema produzido por ocasião de audiência pública do projeto Portal da Amazônia ilustra o tratamento
urbanístico com cinco módulos vicinais, que dividem a margem do Rio Guamá ao longo da Avenida Bernardo Sayão.
No início do módulo vicinal 1, o parque ambiental Mangal das Garças. No final do módulo vicinal 5, o campus
universitário da UFPA. Fonte: Belém (2006b). ......................................................................................................... 153 Ilustração 29 Simulação computacional, em perspectiva isométrica, de um dos módulos vicinais (tipos 1, 3 e 5) do
projeto Portal da Amazônia. Usos sugeridos e padrões de ocupação não chegam a ser detalhados, mas entende-se
que haja uma aplicação da idéia de parque linear urbano, com configuração convencional de praça. A obra se
assemelha em muito a uma extensa intervenção viária, sobretudo. Fonte: Belém (2006b). ...................................... 154 Ilustração 30 Simulação computacional do módulo vicinal (tipos 2 e 4), componente do esquema urbanístico do
projeto Portal da Amazônia, da Prefeitura Municipal de Belém-PA. Fonte: Belém (2006b, p. 38). ............................. 154
7
Ilustração 31 Traçado de corredores viários (em amarelo) e eixo da proposta de via para o Portal da Amazônia (em
vermelho). Delimitação de bacia hidrográfica da Estrada Nova (em magenta); área adensada e pobre deve sofrer
intervenção. Fonte: Belém (2006b)......................................................................................................................... 155 Ilustração 32 Ortofoto com o traçado viário do primeiro trecho do projeto Portal da Amazônia lançado; sobreposição de
formas de urbanização, padrões de ocupação e representações da "orla" fluvial. Fonte: PMB (2006c). .................... 157 Ilustração 33 Segundo trecho do projeto viário e de urbanização do Portal da Amazônia, entre os bairros da Condor e
do Jurunas, demonstra elementos da lógica do traçado da "plataforma urbanizada". Fonte: Belém (2006c). ............. 158 Ilustração 34 O terceiro trecho do projeto está situado no bairro do Guamá, em trecho onde estão presentes alguns
exemplos dos entrepostos chamados localmente de estâncias, nas margens do Rio Guamá e na vizinhança do campus
universitário da UFPA. Fonte: Belém (2006c). ......................................................................................................... 159 Ilustração 35 Imagem que exibe a estrutura concebida de canais, áreas de acumulação e comportas; o projeto Portal
da Amazônia se pretende ambientalmente mais compreensivo do que as intervenções tradicionais do saneamento
básico da década de 1980. Fonte: Belém (2006b, p. 25). ....................................................................................... 160 Ilustração 36 Esquema de remanejamento da época de audiência pública sobre o projeto Portal da Amazônia na
Universidade Federal do Pará. Planejamento não cumprido das remoções, e andamento da obra fora do cronograma
divulgado, porém já em situação de conflito social. Fonte: Belém (2006b, p. 48). ................................................... 165 Ilustração 37 Esquema de remanejamento do Portal da Amazônia, da SEHAB, em blocos verticais de apartamentos.
Foto: Cláudia Ribeiro (nov. 2008). .......................................................................................................................... 166 Ilustração 38 Proposta de condomínio horizontal na área de "orla" fluvial de Belém/PA. Contradição evidente entre a
"justiça social" dos discursos e o projeto físico hegemônico. Fonte: Movimento Orla Livre (2005). .......................... 167 Ilustração 39 Proposta livre para imediações do Centro Histórico de Belém e “orla” da cidade. Nota-se uma marina,
píeres, estaleiros e espaços públicos onde hoje, provavelmente, estão as estâncias, os portos informais e o comércio
de bairro. Fonte: Movimento Orla Livre (2005). ....................................................................................................... 168 Ilustração 40 Modelagem computacional exibe museu aquático algo semelhante à famosa Ópera de Sydney, além do
passeio com motivos regionais estilizados. Fonte: Movimento Orla Livre (2005). .................................................... 169 Ilustração 41 "Plataforma urbanizada" do Portal da Amazônia; alteração radical de usos e padrões do território. Fonte:
Belém (2006c). ..................................................................................................................................................... 172 Ilustração 42 Avenida Visconde de Souza Franco, circa 1975. A via possui um canal/rio urbano e divide os bairros de
classe média do Reduto e do Umarizal, em Belém-PA, terminando na zona portuária da cidade (ao fundo, na imagem,
com os guindastes do porto à beira da Baía do Guajará). Padrão de intervenção em canais de drenagem do tipo
tradicional, atualmente em processo de discussão. Fonte: Skyscraper city (2008). ................................................. 180 Ilustração 43 Proposta esquemática de tanque de acumulação (conhecido como “piscinão”), do projeto Portal da
Amazônia, técnica que representa inovação em projetos de drenagem urbana, evitando a acentuação do pico de cheia
a jusante, e considerando a retenção temporária das águas (BUENO, 2005) em áreas de baixa declividade e ocupação
relativa no entorno. Fonte: Belém (2006b). ............................................................................................................. 181 Ilustração 44 Esquemas de seções-tipo de canais (ou "rios") urbanos da proposta inicial do projeto Portal da Amazônia
mostram a variedade de tecnologias e formas de tratamento destes cursos d´água proposta no início dos trabalhos de
divulgação do projeto. Hoje pode ser dito que a maior parte destas tecnologias foi revista em função de padrões mais
convencionais. Fonte: Belém (2006b, p. 28). ......................................................................................................... 182 Ilustração 45 O parque ambiental Mangal das Garças. Vista do mirante, da cobertura de um de seus restaurantes, com
a Igreja da Sé ao fundo. Fonte: Pará (2005a). ......................................................................................................... 184 Ilustração 46 O prédio do restaurante, onde também estão o trapiche e o Memorial Amazônico da Navegação, no
parque Mangal das Garças; usos da revitalização urbana, mas associados a conteúdo regional e com pretensões
ecológicas. Foto do autor (set. 2009). .................................................................................................................... 186 Ilustração 47 Vista do Mangal das Garças, a partir da torre do mirante. Foto do autor (jan. 2007). ........................... 187 Ilustração 48 Vista do Mangal das Garças, com ocupações vizinhas e as obras vizinhas do Portal da Amazônia;
sobreposição de usos e conflito. Foto do autor (jan. 2007). .................................................................................... 187 Ilustração 49 O Farol de Belém: inscrito nas cartas náuticas brasileiras, é ao mesmo tempo mirante do parque Mangal
das Garças e ícone nostálgico, remetendo a antigas estruturas da cidade. Foto do autor (set. 2009). ...................... 189 Ilustração 50 O galpão do Armazém do Tempo funciona como café e loja no parque Mangal das Garças. Foto do autor
(set. 2009). ........................................................................................................................................................... 190 Ilustração 51 Imagem da torre do mirante do Mangal das Garças; proximidade com a intervenção viária do Portal da
Amazônia e vista do aningal. Foto do autor (set. 2009). .......................................................................................... 191 Ilustração 52 Exemplo de desenho de caminhamentos e traçados do partido urbanístico e paisagístico do parque
Mangal das Garças (viveiro de pássaros à direita, na base da foto); o orgânico dialoga com a vegetação regional, e
remete tanto à familiaridade do espectador com o local quanto ao discurso ambiental nas intervenções urbanas. Foto
do autor (set. 2009). ............................................................................................................................................. 193
8
Ilustração 53 A Estação das Docas, nas margens da Baía do Guajará, em Belém-PA: waterfront e apelo da "orla" na
cidade. Foto do autor, dez. 2003. ........................................................................................................................... 197 Ilustração 54 Muro de contenção do projeto Ver-O-Rio, quiosques e passeio ao fundo; "orla" mais democrática através
do projeto, segundo os autores da intervenção. Foto do autor, dez. 2003. ............................................................... 199 Ilustração 55 Imagem digital simulando o projeto Ver-O-Rio, nas imediações da zona portuária de Belém (com edifício-
memorial não construído, à direita): intervenção com discurso regionalista e Fonte: Belém (2003). ......................... 201 Ilustração 56 Imagem da intervenção urbana Sangria Desatada (2009); outros significados dos espaços culturais
recentes da cidade. Fonte: rede aparelho (2009). ................................................................................................... 203 Ilustração 57 Fachada do antigo Hospital Militar da cidade, a Casa das Onze Janelas, com intervenção Sangria
Desatada. Fonte: rede aparelho (2009). .................................................................................................................. 203 Ilustração 58 No complexo Feliz Lusitânia, o Pìer das Onze Janelas, espaço cultural, e a corveta, objeto das
manifestações artísticas do grupo rede aparelho. Foto do autor (set. 2009). ........................................................... 204 Ilustração 59 O Porto de Belém, em operação de carga. Fonte: CDP (2005). ........................................................... 206 Ilustração 60 Porto de Belém; vista do cais acostável, galpão 4. Foto do autor, jan. 2007. ....................................... 208 Ilustração 61 O porto de Belém, visto a partir da Baía do Guajará. Fonte: CDP (2005). ............................................. 209 Ilustração 62 Divisão regional das bacias hidrográficas brasileiras. A área de estudo aparece em amarelo (Amazônica)
e em marrom (Tocantins-Araguaia). Fonte: MMA (2004, p. 16). ............................................................................. 219 Ilustração 63 Mapa da região hidrográfica Tocantins-Araguaia. A ANA (2009): potencial para agricultura irrigada,
urbanização alta, carência de esgotamento sanitário e necessidade de adequação de usos. Fonte: ANA (2009). ...... 220 Ilustração 64 Mapa da região hidrográfica do Amazonas, a "maior do mundo em disponibilidade de água" (ANA, 2009.
Grande extensão territorial, concentração do recurso hídrico, baixas densidades demográficas, grande biodiversidade e
necessidade de estudo da sub-bacia do Rio Xingu, por ocasião da hidrelétrica de Belo Monte (PA), são apontadas.
Fonte: ANA (2009). ............................................................................................................................................... 221 Ilustração 65 O diagrama clássico de Geddes sobre a seção de vale (relacionando atividades ao ambiente e à bacia
hidrográfica) oferece um curioso exemplo de ecletismo entre determinismo e possibilismo geográfico. Fonte: Geddes
(1994). ................................................................................................................................................................. 237 Ilustração 66 A célebre imagem da NASA, agência espacial norte-americana, atesta a concentração territorial nas
proximidades do mar, nas costas litorâneas dos continentes, através do mapeamento das luzes das cidades. Fonte:
NASA (2000). ........................................................................................................................................................ 253 Ilustração 67 Imagem da Praça Cheonggye, em Seul, Coréia do Sul. Ponto inicial do córrego Cheonggyecheon,
restaurado, notório projeto de desenvolvimento urbano com descanalização e re-exposição da superfície da lâmina
d´água. Fonte: Seul (2009). .................................................................................................................................. 263 Ilustração 68 Imagem de queda d´água no córrego Cheonggyecheon, Seul, Coréia do Sul. O espetáculo urbano das
revitalizações é relacionado à recuperação ambiental. Fonte: Seul (2009). .............................................................. 264 Ilustração 69 Uma das pontes do córrego Cheonggyecheon, em Seul, Coréia do Sul. Fonte: Seul (2009). ................ 264 Ilustração 70 Duas pontes em construção, sobre o córrego Cheonggyecheon, em Seul, em 2004, à época das obras.
Notar o leito ainda ensecado. Fonte: Seul (2009). ................................................................................................... 265
ÍNDICE DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1 MOVIMENTAÇÃO DO PORTO DE BELÉM, POR NÚMERO DE EMBARCAÇÕES (1840-1880), ATESTA A
ACENTUAÇÃO DO FLUXO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO COM A BORRACHA, COM CRESCIMENTO DE 274,4%.
FONTE: PENTEADO (1973). .................................................................................................................................... 98
GRÁFICO 2 TONELAGEM DO PORTO DE BELÉM (1840-1880) APONTA INCREMENTO DE 2.193,9% NA
MOVIMENTAÇÃO. FONTE: PENTEADO (1973). ........................................................................................................ 98
ÍNDICE DE TABELAS
9
TABELA 1 RENDA MÉDIA DOMICILIAR DOS DISTRITOS ADMINISTRATIVOS DO MUNICÍPIO DE BELÉM COMPROVA
A SITUAÇÃO DE RELATIVA POBREZA DO DISTRITO ADMINISTRATIVO DO GUAMÁ (DAGUA), ÁREA POPULOSA E
ENTRECORTADA POR CANAIS URBANOS, COM NUMEROSOS PORTOS PRIVADOS E INFORMAIS E UMA MICRO-
ECONOMIA BASTANTE DINÂMICA EM SEUS BAIRROS. FONTE: BELÉM (2006D). ................................................. 150
TABELA 2 RENDA MÉDIA DOMICILIAR DE BAIRROS COMPONENTES DA BACIA DA ESTRADA NOVA, ONDE ESTÁ
SITUADO O PORTAL DA AMAZÔNIA, MOSTRA OS BAIRROS DO JURUNAS, DO GUAMÁ E DA CONDOR COM RENDA
MAIS BAIXA DO QUE OS DEMAIS. ESTES BAIRROS, ENTRETANTO, SÃO MAIS POPULOSOS NA BACIA, EM MÉDIA.
FONTE: BELÉM (2006D). ...................................................................................................................................... 150
ÍNDICE DE MAPAS
Mapa 1 Área urbana do município de Cametá-PA. Estruturação a partir do rio. Fonte: IBGE (2000). ........................... 56 Mapa 2 Área urbana do município de Baião-PA. Porto, trapiche e feira instalados nas margens do rio. Fonte: IBGE
(2000). ................................................................................................................................................................... 58 Mapa 3 Localização de municípios do Estado do Pará em relação a cursos d´água das imediações da Região
Metropolitana de Belém, da região do Baixo Tocantins, do Marajó e do entorno da Baía do Guajará. Fontes: IBGE
(2010); SIGIEP (2007). ............................................................................................................................................ 60
10
AGRADECIMENTOS
O professor Robert Moses Pechman certa vez me advertiu, sábia e ironicamente, que
agradecimentos extensos eram, na etiqueta acadêmica, pouco elegantes. Tendo a concordar com
ele; por outro lado, a aparência de ingratidão e o silêncio da não-confissão da dívida me pareceram
tão indelicados quanto. Peco, portanto, por excesso.
Agradeço a Adauto Lucio Cardoso, orientador de longa data, pelo acompanhamento,
pelos ensinamentos, pela cumplicidade e amizade. Em um último momento sua participação foi tão
decisiva quanto o fora no acúmulo dos oito anos anteriores, desde o Mestrado no IPPUR-UFRJ.
Obrigado. Agradeço também aos professores-membros da banca de avaliação: professor José
Júlio Ferreira Lima, “co-orientador” informal e onipresente, estável e companheiro, a quem devo
vários tipos de gratidão; Frederico Guilherme Bandeira de Araujo, pelo ensinamento e enorme
ilustração, e pela amizade; Henri Acselrad, a quem tive a oportunidade de acompanhar mais
detidamente no doutorado e com quem aprendi muito, em diversos e vastos campos; à professora
Ana Lúcia Nogueira de Paiva Britto, pelo aceite da participação na banca e pela possibilidade de
colaboração em pesquisa. Agradeço a todo o corpo docente e funcional do IPPUR-UFRJ, pela
formação, pela dedicação e pelo enorme apoio, nesta unidade acadêmica onde cumpri parte
transformadora de minha formação. Agradeço a José Augusto Pádua, cuja disciplina História e
Natureza no PPGHIS-IFCS me permitiu entrar em um campo de estudos até então inédito para mim.
Em especial agradeço, por fim, a Robert Pechman, pelo acompanhamento, como citado acima.
Aos amigos de curso, todos imprescindíveis, que devo citar para contrariar ainda mais o
mestre: Walcler, Javier, Regina Petrus, Alex, Fernando, Regina Guelman, Vera, Flaviane, Luciane,
Viviani, Glauco, Daniella, Anita.
A Romero, Zuleide, Janaina e Mariana, cujo amor e apoio sempre dão condições para
seguir adiante, a quem devo uma vida inteira.
À Luciana que, então recém-chegada à convivência e à elaboração da tese, literalmente a
salvou, salvando o autor do desespero; a ela dedico todo amor e gratidão.
11
RESUMO
O trabalho, objeto de tese de doutorado, é uma investigação sobre a territorialização às
proximidades e na relação condicionante da interface com a água, entendida como fator locacional
e influente na estruturação de relações entre o território e o ambiente. A investigação utiliza o
município brasileiro de Belém-PA, situado no Norte do país, e áreas de seu entorno, para
caracterização de um padrão tradicional de assentamento às margens dos cursos d´água, os
ribeirinhos, e para pesquisa em territórios urbanizados. Em ambos, a presença da água e a
estruturação territorial estão relacionadas, criando padrões diferenciados de reprodução das
desigualdades no acesso ao ambiente, às benesses territoriais da proximidade da água e, portanto,
a fatores locacionais historicamente formados a partir desta situação idiossincrática. Pretende-se
articular quatro fenômenos contemporâneos — a engenharia ambiental, o waterfront, a
modernização portuária e a gestão de recursos hídricos — para discutir as formas
contemporâneas de monitoramento, controle e planejamento do território à água e de seus atuais
padrões de desigualdade. Conclui-se que, a partir da abordagem diversificada da água no território
urbano, enquanto substância, paisagem, veículo e recurso, haja a formação atual de uma política
de controle aberto e difuso, também variado, da água.
Palavras-chave: água; ambiente urbano; planejamento urbano; urbanismo.
12
ABSTRACT
This work, actually a PhD thesis, is a research about territories in relation and proximity
conditions to interface with water courses, which are understood as locational factors and general
influences in urban and environmental formation. The research works with the municipality of
Belém, in the Brazilian Northern state of Pará, and its regional surroundings, to study traditional
patterns of human settlements next to water courses, locally called riverine, and to study and
analyze urban settlements aspects as well. In both cases, riverine settlements and cities, water
courses proximity and urban growth are related, creating differentiation in access to environmental
items and inequality reproduction processes. Territorial benefits, assessed as outcomes from
proximity and factual appropriation of water courses´ possibilities, are also unequally available in
contemporary urban space. This work connects four urban and regional phenomena —
environmental engineering, waterfronts, port modernization, water management — in order to
create a discussion on territorial planning, monitoring and control applied to urban environment
today; specifically, to urban water and actual tendencies of uneven development. In conclusion,
urban water is multiple in meanings and practices; it is substance, landscape, vehicle and
resource, and its multiplicity reinforces open, diffuse forms of control in urban environmental
issues: the formation of water politics.
Keywords: water; urban environment; urban planning; urbanism.
13
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho é sobre a relação entre a cidade, como forma territorial de assentamento
humano, e o ambiente natural em que está inserida. Especificamente, refere-se à dimensão da
água como fator condicionante de processos de formação do espaço habitado, produzido
historicamente. Deste modo, o trabalho estuda aspectos da relação entre cidade e água.
De certo modo, falar destes dois fenômenos (ou, se permitirmos algum grau de
generalização, destes dois fatos, ou elementos) induz a uma discussão provável entre cidade e
ambiente, ou entre cidade e natureza. Desde o século XIX, portanto, esta é tida como uma
discussão pertinente; a própria expansão da cidade industrial, em termos demográficos e físico-
territoriais, levara a um enfrentamento do problema da drenagem, do paisagismo, do ruído (SPIRN,
1984), da própria dinâmica de uso do espaço urbano. Neste aspecto, portanto, falar de cidade e
água remete a uma discussão já antiga, digamos.
O tema possui alguns pontos conceituais, espaciais ou temporais, como é de praxe
em trabalhos de pesquisa na área do planejamento urbano e regional. Não sendo a intenção
estabelecer um esforço de mapeamento de todas as formas desta relação entre a cidade e as
águas que a cortam ou circundam, há uma tentativa de cercar um objeto a partir de fatos sociais
de certa concretude, associados ao debate teórico sobre a questão ambiental urbana. Esta
“relação” entre cidade e água, por outro lado, precisa ser construída; não existe um dado objetivo
que relacione as duas noções, obrigatoriamente. Deste modo, estuda-se uma problemática afeita
aos estudos urbanos e regionais cujo conteúdo tem relação com o debate ambiental aplicado ao
planejamento urbano. Como citado, o objeto de estudo é limitado por alguns fatos e por parte da
discussão teórica que pode informar sua análise.
A avaliação e a casuística do trabalho são feitas a partir da empiria do caso do
município de Belém-PA, Norte do Brasil. A partir desta empiria, e da estruturação histórica da
cidade em relação ao aproveitamento de seus cursos d´água, alguns fenômenos são tomados
como referência, para efeito de definição de uma problemática territorial da água na cidade. Como
dito, estes fenômenos não pretendem esgotar o problema, e tampouco mapear a totalidade das
formas de uso e apropriação dos territórios às proximidades da água. A amostra de elementos
incorpora variedade razoável de fenômenos, com abordagens diversas da água na cidade, o que,
indiretamente, favorece uma análise mais abrangente e com maiores possibilidades de
14
generalização e, portanto, de aplicação enquanto formulação conceitual. Os fenômenos em
estudo, especificamente, pressupõem usos (atividades, racionalidades) e formas de apropriação
(lógicas econômicas, tipos de formação territorial) da água que cobrem desde atividades de
caráter eminentemente técnico, como as zonas portuárias e o saneamento urbano, até figuras mais
ligadas aos novos usos culturais dos centros urbanos, como os parques da indústria
contemporânea do turismo, em áreas portuárias ou margens de cursos d´água. Os elementos que
ajudam a limitar o objeto de estudo e suas possibilidades de análise são:
A constituição de áreas públicas, em escala urbana e freqüentemente em áreas
portuárias, para a instalação da chamada economia da cultura (JAMESON, 2001), novo
padrão e uso de destinação destas estruturas em áreas centrais das cidades;
O processo recente de modernização portuária, que constitui modificações tecnológicas,
espaciais e administrativas (PORTO, 1999) de impacto nas regiões sob alguma influência
dos fluxos econômicos de navegações;
A incorporação crescente de tecnologias ambientais nas “engenharias urbanas”, de modo
a consolidar gradativamente um padrão de intervenção que se pretende ecologicamente
compreensivo, perceptível, sobretudo, em obras de infra-estrutura associadas ou não a
intervenções urbanísticas e paisagísticas;
A consolidação, embora com variações regionais e nacionais, de aspectos técnicos e
institucionais de políticas de gestão de águas, ou de gestão de recursos hídricos, em
realidades diferenciadas, o que é aplicação da teoria econômica e das engenharias —
sobretudo sanitária e “de águas”, uma especialidade francesa (BARRAQUE, 1992) — ao
ordenamento territorial na questão de um possível “gerenciamento” do ambiente.
Estes fatos configuram, respectivamente, intervenções territoriais e/ou medidas
institucionais, em geral de ordenamento do território. Deste modo, é possível perceber
continuidade em efeitos e em aspectos da forma como a água é abordada na cidade, enquanto
elemento da paisagem. Estes fenômenos, como se pode notar, são diferentes entre si. Por outro
lado, sustenta-se a tese de que eles, em conjunto, tragam alguns elementos de integração a partir
da proximidade com a água e da configuração de ações em torno de suas formas de
aproveitamento na cidade. Embora haja lógicas diferentes em cada um dos quatro fenômenos
listados, há reafirmação neles da dimensão substantiva da água no território urbano, como fator
locacional.
O caso específico de estudo e análise, portanto, é o do município de Belém, no Estado
15
do Pará. Belém-PA é uma cidade de fundação secular, situada em região estuarina e tem, em
sua estruturação urbanística e em seus usos do solo, diversos exemplos de aproveitamento, uso e
apropriação dos cursos d´água em um espaço urbano. O caso específico colabora com a
construção deste objeto de estudo, de modo que os quatro elementos citados (parques urbanos da
economia da cultura; portos modernizados; engenharia ambiental; gestão de recursos hídricos)
têm representantes concretos na empiria da pesquisa. Os fenômenos de Belém-PA, em termos da
cobertura espacial da área de estudo, sofrem ligeira ampliação quanto à amostragem de casos
concretos, incorporando exemplos externos ao município, mas situados no estuário da Baía do
Guajará, nas proximidades de Belém-PA; contudo, é preservada a influência predominante da
capital na questão.
Os quatro fenômenos citados da relação entre cidade e água não esgotam a questão,
como dito; na verdade eles podem representar uma possibilidade de avaliação, feita parcialmente a
partir do caso do município de Belém-PA e de seu entorno regional. Estes fenômenos, entretanto,
podem ser ilustrativos na construção de uma problemática atual da urbanização no que diz respeito
aos chamados “recursos hídricos”, e mesmo para pensar eventuais questões subseqüentes. Os
elementos da relação entre cidade e água podem ser concretamente ilustrados a partir de
intervenções urbanísticas ou medidas institucionais atualmente em curso em Belém-PA e região. A
cada forma de intervenção territorial1
ou política de ordenamento territorial citada, portanto,
corresponde uma forma de tratamento, de abordagem, da água na cidade. Estes elementos seriam,
em linhas gerais, os seguintes:
Quanto aos parques urbanos de características predominantemente histórico-culturais, os
exemplos estudados são situados em Belém-PA: o waterfront da Estação das Docas, na
zona portuária da cidade, o conjunto de espaços culturais do Complexo Feliz Lusitânia (no
centro histórico tombado da cidade) e a intervenção urbanística do Complexo Ver-O-Rio,
nas imediações do porto da cidade. Estas intervenções exibem alguns traços
1
Como poderá ser visto no decorrer do trabalho, trata-se como formas territoriais da relação cidade-água o conjunto
de estruturas físicas e lógicas sócio-econômicas e territoriais de aproveitamento da água no espaço urbano, onde a
presença do elemento hídrico teria participação substantiva, relevante. Por outro lado, fala-se em intervenções
territoriais, a propósito desta mesma relação, quando há referência a projetos de urbanização e políticas ambientais e
de ordenamento territorial contemporâneos, que preservam diferenciais essenciais já presentes nas formas, em geral
tradicionais, de uso e apropriação da água na cidade, mas com novas configurações espaciais e ditames econômicos
de geração de diferenciais no território.
16
característicos do que se convencionou chamar de intervenções contemporâneas de
caráter revitalizante, por exemplo (HARVEY, 2000).
Quanto ao processo de modernização de zonas portuárias, o Porto de Belém se apresenta
como estrutura de alcance regional que, atravessada pela qualificação de dupla
obsolescência (funcional e administrativa), suscita debates e ensaios de projetos técnicos
para sua adequação ou remoção, em outras bases, para outros locais do Estado, em graus
variados de aproximação do padrão hubport.
Quanto ao uso das engenharias urbanas aplicadas à discussão e a técnicas de
recuperação ambiental, podem ser citadas a criação do parque naturalístico Mangal das
Garças2
, nas imediações do centro histórico de Belém-PA, e as tecnologias para o
saneamento ambiental constantes de material de discussão técnica da macrodrenagem da
bacia da Estrada Nova, parte do Projeto Portal da Amazônia, em extensão da periferia
próxima da cidade.
Quanto à aplicação da gestão de recursos hídricos no Estado do Pará é estudado o caso
da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA). A Secretaria é abordada
particularmente na sua atuação direta e em propostas da sua diretoria especializada no
tema, que afirma ser o propósito da política estadual “promover a gestão integrada e
participativa dos recursos hídricos e seus usos múltiplos de forma racional e sustentável”
(SEMA, 2009). Isto se mostra totalmente calcado em princípios do atual Plano Nacional de
Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente (MMA, 2006) e, portanto, de acordo
com diretrizes de influências diversas na constituição da política.
1.1. A ÁREA DE ESTUDO
O estuário guajarino (região estuarina da Baía do Guajará) é uma região do complexo
hidrográfico da foz do Amazonas onde há variedade de padrões e atividades no território. Esta
variedade compreende territórios diversos, entre comunidades de pescadores, núcleos urbanos
seculares, setores relativamente industrializados, serviços diversos e estruturas tecnológicas de
conexão com a água, de articulação e logística. A área urbanizada que corresponde ao núcleo
urbano do município de Belém-PA é, sem dúvida, a de ocupação mais densa, e é em torno dela a
2
Embora este parque urbano seja um exemplo que caiba, ao mesmo tempo, na categoria daqueles espaços da economia da
cultura e nos exemplos com propósitos ambientais.
17
maior concentração de atividades econômicas e impactos sócio-ambientais de transformação e
processamento da paisagem na micro-região (IDESP, 1990). A ampliação da região da pesquisa,
extrapolando o limite territorial, administrativo, do município de Belém-PA, faz-se necessária devido
à investigação das formas ribeirinhas descritas e, ainda, pela necessidade de ligação com
dinâmicas contemporâneas de mudança nos territórios às proximidades da água: as zonas
portuárias e cidades de outros portes, além das articulações regionais de Belém-PA. A
necessidade de configuração de uma problemática contemporânea da territorialização junto aos
cursos d´água direciona a pesquisa para locais onde as práticas representam temporalidades mais
articuladas às dinâmicas atuais do capitalismo. Desta forma, espaços mais urbanizados são
incluídos no trabalho, sobretudo no município de Belém-PA e entorno imediato.
Para o desenvolvimento da pesquisa é necessário, portanto, comentar e analisar
fenômenos espacialmente presentes nas margens fluviais do município de Belém-PA, em sua
região de ilhas fluviais, distritos e seu entorno, especificamente no município próximo de Curuçá-
PA. O município de Curuçá-PA, situado na região do Salgado paraense, fora do estuário guajarino,
é um dos locais onde se pensa a implantação de um porto modernizado, do tipo hub-port, em uma
proposta que, apesar da pouca viabilidade orçamentária atual, deve ser considerada pelo exercício
técnico e político e pela sua ligação com o momento histórico atual. De certo modo, esta inclusão
representa uma extensão da cobertura espacial da pesquisa, ainda que com limitações. A
cobertura espacial mais representativa do trabalho, entretanto, é aquela correspondente ao núcleo
urbano mais adensado de Belém-PA e região imediata. Nesta área está situada a maioria dos
fenômenos apontados como referência para elaboração e discussão de uma problemática da
relação entre cidade e água, dentro do formato proposto para a pesquisa.
O caso de Belém-PA revela-se representativo devido ao acúmulo de iniciativas de
impacto coletivo atualmente em curso, no território que qualificamos aqui como de interface entre
cidade e água. Conforme relatado anteriormente, estas iniciativas (parques urbanos; modernização
portuária; engenharia ambiental; gestão de recursos hídricos) formam um contexto atual de
convergência em torno da relevância locacional da água como fator de estruturação do território.
Além da obviedade do fato de ser Belém a maior centralidade da região, o município e de seu
entorno exibem estas formas territoriais, contemporaneamente identificáveis. A convergência
destas iniciativas permite, portanto, a formação de um campo de pesquisa, com referências
empíricas, capaz de fornecer elementos para análise da territorialização às proximidades de cursos
d´água. Desta feita, entretanto, esta análise deve ser executada em bases empíricas diferenciadas
18
daquelas relatadas anteriormente. No caso, desloca-se a importância das formas ditas
“ribeirinhas”, tradicionais, do território próximo à água para migrar em direção a referências de
caráter mais contemporâneo, isto é, de maior complexidade na divisão social do trabalho, de
emprego mais intensivo de tecnologias de intervenção territorial.
O caso em estudo, entretanto, não é apenas sobre intervenções territoriais em espaços
situados nas proximidades de cursos d´água. Estas modificações nos territórios próximos e sob
algum grau de influência dos cursos d´água apontam para disputas por diferenciais de localização,
de potenciais de aproveitamento econômico e produção de relações de poder. O caso consiste,
portanto, na criação de uma das várias frentes atuais de produção de desigualdade no acesso ao
ambiente urbano, a suas possibilidades de obtenção de estratégias de reprodução social e
apropriação das benesses territoriais da aglomeração de atividades econômicas, do acúmulo de
capitais fixos no território (HARVEY, 1990) ou da disponibilidade de recursos ambientais. A água é,
dentro dos espaços urbanos atuais, um elemento da paisagem com diversos atributos, e que sofre
diversas abordagens, portanto.
Na cidade a água é apropriada não apenas por suas propriedades físicas, químicas ou
físico-químicas de solvência, sulfactação em associação com outras substâncias, empuxo,
eletrólise, catálise, arrefecimento ou densidade. A água na cidade é um dado apropriado de modo
variado; pode ser abordada em termos sócio-culturais, como item evidente em processos de
produção, como possibilidade de deslocamento espacial, como base de obtenção de alimentos,
dentre outros usos. A água, portanto, entendida como condicionante das formações territoriais, é
ao mesmo tempo natureza e cultura, porque é entendida como elemento não-humano, portanto
natural (DESCOLA, 1997) e porque, sendo parte do ambiente, constitui o repertório necessário para
parte das constituições das visões de mundo, da materialidade das cosmologias formadas pelas
diversas sociedades (DESCOLA, 1998). Contemporaneamente, a água na cidade é tratada, também,
de forma a transitar entre estas duas condições; ora culturalizada, recebe intenção própria e
elimina impurezas sociais; naturalizada, a cidade que com elas faz margem entra em processo
simbiótico com seu rio e sua baía, formando um curioso ethos citadino, como poderá ser visto.
Não sendo natureza e cultura pares opostos conceitualmente (DESCOLA, 1997; 1998), e não
existindo nenhum dos dois em absoluto, podemos pensar também nas formas de apropriação da
água como estratégias políticas na cidade; é construído um amplo ideário das chamadas “águas
urbanas”, ou as águas da cidade são acionadas para a remoção de populações pobres ou usos
qualificados como indesejáveis historicamente. Em síntese, se há diferenciais locacionais
19
referentes à proximidade de cursos d´água no espaço urbano, trata-se de conflitos sócio-
ambientais, onde há uma situação de assimetria na apropriação dos itens do ambiente e tensão em
torno do acesso a estes itens (SABATINI, 1997). Em uma economia capitalista, concebendo uma
estrutura de acesso a terra através do mercado, entende-se, portanto, a tendência praticamente
generalizada de disputa pelas localizações e por seus ativos decorrentes em função da capacidade
de cada agente se apropriar da terra (HARVEY, 1980). Deste modo, ao menos em parte da análise, o
conflito sócio-ambiental de uso e apropriação da água na cidade é uma questão filtrada pelo
acesso à terra. Este seria um requisito inicial para o uso e a apropriação do ambiente, embora não
represente uma condição indispensável, colocando a propriedade privada da terra como única
situação em que se faz possível o acesso a determinados itens do ambiente.
1.2. UMA “QUESTÃO” DA ÁGUA
Há, portanto, importância dos territórios próximos à água, no sentido sócio-econômico e
territorial. Existe, também, um caráter político da água no território da cidade. Como item do
ambiente que representa condicionante para tantas relações diferentes, a água se mostra como um
elemento de disputa, mas também como um potencial de desenvolvimento de atividades
econômicas e de estruturação de aglomerações urbanas, de certo modo. Neste sentido pode ser
entendida a articulação ampla feita nos dias de hoje para a implantação de grandes sistemas de
infra-estrutura urbana e regional, como sistemas urbanos de abastecimento de água, de drenagem,
de esgotamento sanitário, mas também de irrigação e, ainda, para a construção de zonas
portuárias modernizadas. Há diversos setores da economia cuja atuação se reporta diretamente à
aplicação da água como fator relevante do ambiente, e como possibilidade de transformação
territorial, portanto. A circulação e a urbanização da água tornaram-se pois profundamente
envolvidas na ecologia política do Estado local e nacional, das divisões internacionais do trabalho e
do poder, dos ciclos hidrológicos e climatológicos locais, regionais e globais (SWYNGEDOUW, 2001,
p. 102).
Uma possível “questão da água” (ou um mais amplo conjunto de prováveis questões da
água) nos dias de hoje lida, necessariamente, com os discursos hegemônicos sobre a sua
escassez e sobre sua distribuição desigual. Por outro lado, teria de lidar com a questão da
assimetria no acesso aos diferenciais de sua localização. O processo de formação territorial
próxima, ou sob a influência, dos cursos d´água, no caso das cidades, é representativo para a
20
análise da reprodução de desigualdades econômicas, sociais e territoriais no capitalismo
moderno. E as formulações acadêmicas e técnicas sobre uma possível “questão da água”,
freqüentemente, fazem parte deste processo de reprodução da desigualdade. A aplicação do
conhecimento científico, o desenvolvimento de técnicas de gestão do ambiente e as eventuais
normatividades decorrentes desta aplicação resultam em formas contemporâneas de abordagem e
tratamento destes territórios de caráter específico.
Parte significativa dos aglomerados urbanos do mundo está, historicamente, situada às
proximidades dos oceanos e cursos d´água em geral, bem como a maioria das plantas industriais
atualmente ativas (MORAES, 1999). Calcula-se, atualmente, mais de um bilhão de pessoas
residentes em centros urbanos costeiros, por exemplo (GPA, 2007a). A recorrência da localização
urbana nas bacias de drenagem litorâneas, neste sentido, ajuda a reafirmar a importância dos
territórios próximos à água enquanto sinais de estratégia locacional e, sobretudo, como dado
relevante da estruturação territorial das cidades em geral. As alterações territoriais significativas no
litoral (a partir dos portos modernizados e atividades correlatas) têm acarretado transformações na
maneira como as cidades produzem seu ambiente e, por conseguinte, na forma pela qual as
populações urbanas se assentam. O caráter radical das alterações territoriais decorrentes da
modernização portuária, e da modificação das estruturas físicas litorâneas como um todo, é um
importante fator de transformação do espaço urbano, hoje. As ações de planejamento na área têm
sido voltadas inclusive para o entendimento de seus impactos (GPA, 2007b) — embora a lógica
de sua estruturação permaneça, em linhas gerais, como concentradora dos diferenciais
locacionais dos territórios próximos aos cursos d´água.
Economicamente, segundo dados da UNESCO, cerca de 38% do PIB mundial seria
relativo a atividades desempenhadas em “ecossistemas costeiros” (GPA, 2007a)3
. A relevância
das formas territoriais nas proximidades da água, materializadas nos assentamentos urbanos ou
nas atividades econômicas, está ligada a outra dimensão problemática do capitalismo: a
desigualdade de acesso ao ambiente. Neste ponto, a água se revela um fator importante, tanto pela
representatividade da urbanização nas suas proximidades quanto pela forma de desigualdade de
acesso ao ambiente que representa. O caráter idiossincrático (MORAES, 1999) e particular dos
territórios próximos à água, com atividades praticamente exclusivas (MORAES, op. cit.), por
3
Os demais ecossistemas avaliados seriam os “terrestres” e os de “mar aberto” (GPA, 2007a). Embora o cálculo seja
assumidamente estimativo e relativamente impreciso, em linhas gerais explica a relevância econômica da apropriação do mar,
inclusive em termos simbólicos — como no caso da economia do turismo de massa.
21
conseguinte, estrutura uma versão do que Leff (2003) chama de economização do mundo. Isto
ocorre porque, na medida da relevância dos territórios próximos à água para as atividades
urbanizadas do capitalismo atual, existe uma correspondente dinâmica de disputa, de produção de
desigualdades e de concentração de riquezas e diferenciais territoriais/locacionais. Há, portanto, a
reprodução de uma lógica de apropriação desigual do ambiente.
A aplicação das técnicas, materializada no que contemporaneamente é chamado de
gestão de recursos hídricos, de certa forma sintetiza o que podemos chamar de uma possível
questão da água no território. A gestão (ou a administração racional do ponto de vista da economia
e da lógica empresarial) das águas é convertida em uma política, com repercussões territoriais e
sócio-ambientais; deste modo, condiciona, restringe e modela, ainda que parcialmente, formas de
uso e ocupação, de aproveitamento econômico e de territorialização destes espaços às
proximidades dos cursos d´água. Esta aplicação, representada pela gestão das águas, assinala a
consolidação de uma forma de política, ocupada da esfera ambiental, que opera com a abstração
da ação do Estado no capitalismo e com suas possibilidades de intervenção transcendente (HARDT;
NEGRI, 2004) sobre os processos sociais.
1.3. ESTRUTURA DO TRABALHO
Para o desenvolvimento do tema, o trabalho é proposto em três capítulos. A estrutura
tenta recuperar aspectos da caracterização da relevância dos cursos d´água para a estruturação
territorial de cidades. Em seguida, fenômenos em curso, ou projetados, referentes a intervenções
territoriais na cidade de Belém-PA e entorno são descritos e comentados, de modo a representar
os contornos de uma possível relação entre os cursos d´água e seus condicionantes e a
urbanização de Belém-PA. Na seção seguinte do trabalho são apresentados desdobramentos
conceituais decorrentes da caracterização prévia, histórica e conceitual, da questão, associados ao
caso da cidade de Belém-PA.
No primeiro capítulo, portanto, o teor do trabalho é predominantemente histórico e, em
parte, teórico. São apresentados aspectos dos condicionantes da proximidade de cursos d´água
em relação à urbanização. Deste modo, exemplos representativos da história das cidades são
acionados para exibir tópicos das aplicações e formas de aproveitamento da água no território. A
água é aplicada em soluções de saneamento, ainda que rudimentares, em formas diretas de
captação, além de estruturar diversas construções culturais acerca de seu sentido. A água (e suas
22
diversas representações) faz parte de narrativas das origens de grupos sociais, de sentidos de
suas práticas sobre o ambiente e cria parâmetros de territorialização. A própria recorrência e
variedade de citações e referências ao elemento no território urbanizado tem relação com a
importância da água na estruturação da cidade. No capítulo são sugeridas, por fim, formas e
lógicas territoriais de estruturas urbanas em proximidade com a água, de modo a apontar atributos
e usos específicos da água em tais espaços. Este ponto tem relevância para o estudo porque abre
a possibilidade de se identificar particularidades na constituição do território urbano na Amazônia a
partir do condicionante da presença da água, sobretudo das águas superficiais. Além deste ponto,
o capítulo procura identificar preliminarmente as lógicas básicas de aproveitamento da água no
território urbano, a partir da operação e abordagem da água na cidade feita a partir daquelas quatro
formas territoriais já citadas. Estas lógicas são estudadas com base em soluções tradicionais de
aproveitamento da água em assentamentos urbanos, e em consideração destas com outras
formas suas, modernizadas.
No segundo capítulo são apresentados exemplos de intervenções urbanísticas, políticas
ambientais e de ordenamento territorial e projetos de intervenção territorial para o município de
Belém, Pará, e região de entorno. O caso de Belém, no Estado do Pará, é estudado
especificamente, acerca de aspectos de sua urbanização na relação com os cursos d´água. O
município de Belém-PA tem, em toda a sua formação urbanística, exemplos de estruturação
territorial relacionados à proximidade da água no território. A partir de projetos de desenvolvimento
econômico recentes, a cidade e seu entorno têm sido objeto de implantação, ou concepção, de
formas de aproveitamento de suas margens fluviais, estuarinas ou mesmo marítimas. O
surgimento destas intervenções, ou de propostas de intervenção, assinala uma inflexão histórica
na região, no sentido de reafirmar a importância locacional da proximidade das águas, mas em
outras bases. A proximidade em relação aos cursos d´água passa a ser tomada por seus atributos
paisagísticos, na relação com o turismo de massa, além de suas formas técnicas anteriores,
modificadas. Além destes dois grupos de usos da água no território, há o surgimento relativamente
recente de uma política de natureza ambiental com pretensões de regulação e planejamento
espacial dos usos da água, a gestão de recursos hídricos. A descrição e as análises sobre as
intervenções territoriais em geral, em Belém-PA e entorno regional, caracterizam uma cidade onde
alguns novos atributos da água no espaço urbano são materializados, e onde modos subseqüentes
de desigualdade sócio-ambiental são reproduzidos. Neste sentido, nota-se que a água na cidade, a
partir do caso de estudo de Belém-PA, apresenta modificações em seus usos técnicos e
23
tradicionais, como o porto, mas também registra exemplos de “novas” aplicações. Dentre estas
novas aplicações está a incorporação de diferenciais paisagísticos, simbólicos, de valorização
fundiária e de concentração de benesses locacionais da proximidade com a água. Este fator, diante
de formas econômicas urbanas recentes, pontua a entrada de novas dimensões do ambiente na
cidade e nas formas atuais de desenvolvimento econômico capitalista, o que é aplicável a outras
localizações.
No terceiro capítulo do trabalho são desenvolvidas possibilidades de análise das formas e
intervenções territoriais comentadas nos capítulos anteriores. Entende-se, a partir do levantamento
histórico e conceitual, e da avaliação dos exemplos concretos estudados, que esteja sendo
progressivamente formada uma convergência de iniciativas de intervenção sobre a água no
território, atualmente. As lógicas territoriais, e as intervenções a elas correspondentes, situadas na
interface entre cidade e água, são diferentes entre si. Não teriam, portanto, elementos a relacioná-
las, senão pela coincidência da proximidade da água, em todos estes exemplos e lógicas. Os
aspectos que articulam estes fenômenos seriam, neste caso, referentes a formas atuais de criação
e reprodução de desigualdade ambiental em espaço urbano e, mais amplamente, relativos à
formação de uma política da água no território. São estudadas aplicações e usos da água na
cidade, como os parques urbanos de caráter cultural e paisagístico; a modernização de portos; a
engenharia ambiental e a gestão de águas. Neste terceiro capítulo são apresentadas diferentes
abordagens das chamadas “águas urbanas” (termo de uso corrente na discussão acadêmica atual
sobre o tema), de modo a evidenciar seus pontos de convergência, e assim permitir um
entendimento condensado de seus aspectos unificadores. Entende-se que a água na cidade, ou no
espaço ocupado e humanamente produzido atual, apresente tendências à concentração de
benefícios e de diferenciais locacionais e sócio-econômicos na interação entre apropriação de
recursos ambientais e formação do território. Esta concentração seria passível de leitura a partir
das diferentes formas de abordagem da água na cidade. Atualmente há, sobretudo na política
ambiental, um discurso generalizado de democratização do acesso ao ambiente. Entretanto, nota-
se que através de diferentes formas de abordagem, tratamento e apropriação da água na cidade,
há na verdade a instalação progressiva de padrões e formas seletivas de acesso (e de veto) a esta
parcela do ambiente urbano e, portanto, diversas formas possíveis de desenvolvimento econômico
e de acesso a recursos. Embora haja intenção declarada de se promover acesso amplo às
benesses da proximidade da água no território, esta convergência que forma um padrão
contemporâneo de instalação e acesso cria, progressivamente, formas novas de veto e de
24
seletividade.
A concatenação pretendida por esta estrutura de capítulos é pensada para contextualizar a
relação entre estruturação territorial urbana e cursos d´água para, a partir de casos concretos
relativos ao exemplo de Belém-PA, conceber formas de análise de uma possível questão da água
na cidade. Os fenômenos do caso de Belém-PA, analisados entre as considerações históricas e
conceituais e os desmembramentos conceituais do próprio trabalho, teriam função de articulação
entre a discussão geral, relativa à água no território, e a específica, tomada a partir de um conjunto
de exemplos, mas com algum nível de abstração. Isto é feito de modo que seja possível generalizar
esta conceituação para outros casos.
1.4. ASPECTOS METODOLÓGICOS
A estrutura proposta teria, portanto, aplicabilidade para a avaliação de formas de uso e
apropriação da água na cidade, entendida como fenômeno social e territorial contemporâneo. Os
exemplos abordados no trabalho, ou as suas lógicas territoriais, ou sua materialização específica
em intervenções territoriais4
, não pretendem encerrar a discussão, ou resumir o problema da água
na cidade. São utilizados neste trabalho, para efeito de análise, os exemplos de parques culturais e
paisagísticos urbanos; da modernização portuária; da engenharia ambiental; da gestão de águas.
Em torno destes quatro grupos de fenômenos que relacionam água e cidade estariam as formas
materiais de uso e apropriação da água no espaço urbano que, de certo modo, cobrem quantidade
razoável da problemática. Estes quatro fenômenos, como dito, não esgotam de modo algum a
discussão, mas permitem a relação entre suas características internas, para vincular os fenômenos
e para produzir avaliações referentes aos casos concretos, analisados na empiria deste trabalho ou
similares àqueles relatados na literatura científica. Haveria, portanto, a abertura para algumas
frentes de possível generalização e para a construção de formulações conceituais acerca do tema.
Um exemplo desta possibilidade de aplicação poderia ser dado a partir do caso da
engenharia informada por parâmetros físico-ambientais e ecológicos atuais. Esta engenharia, que
tratava e abordava a água na cidade como item de natureza técnica, instrumental, passa a
4
Que, como dito, seriam contemporâneas, mais expressivas da manifestação atual da formação do território que
articula cidade e água, e anteriormente passíveis de leitura pelas formas territoriais da cidade ribeirinha tradicional, sem
qualquer intenção de estabelecer marcos puristas ou “originalistas”, enquanto fenômeno portador de anterioridade
temporal.
25
favorecer a incorporação da paisagem de consumo visual (ZUKIN, 2000), de novas formas da
economia urbana e do marketing de cidades, no planejamento urbano. Deste modo, a água na
cidade, tomada como elemento natural com funções mecânicas e físico-químicas (drenar, escoar,
lavar, permitir deslocamento), passa a constituir a possibilidade de formação de diferenciais no
território, inclusive no sentido dos ganhos econômicos com a propriedade privada da terra, isto é,
das rendas fundiárias. Neste sentido, surgiria uma dimensão qualitativa do elemento paisagem na
acepção da água no território, inclusive em sua aplicação nas tecnologias de drenagem, o que
extrapola a abordagem técnica da água na cidade dada pelas Engenharias.
Como foi brevemente descrito na estrutura do trabalho, o texto começa com algumas
referências a metáforas, imagens míticas e representações sociais da água. A opção pelo caráter
histórico e conceitual se deve à necessidade de se construir, e caracterizar, a representatividade da
água no território. Diversas soluções e formas de aproveitamento da água existiram na história da
cidade; todas denotam, de um ou outro modo, a utilidade e a pertinência deste elemento no
território urbanizado. Os mitos, as narrativas, inclusive as de caráter originário, e as
caracterizações das coletividades sob algum tipo de presença da água dizem respeito, também, ao
modo como estas sociedades se posicionam diante de seu ambiente. Na construção mítica e nas
referências (fragmentadas, mas ricas em sentido) de Schama (1996) sobre a água como elemento
da natureza, há estratégias simbólicas de dignificação e exaltação da respectiva sociedade
formada sob os auspícios, digamos, de seus cursos d´água. Há, também, produção de vínculos
afetivos e políticos através da comunhão do mesmo rio por mais de um país, do compartilhamento
territorial de cursos d´água, e da idéia de imersão em conjunto em suas águas; o rio teria uma
espécie de capacidade de favorecer esta união (SCHAMA, 1996). As águas, por outro lado, são
tomadas como metáforas da circulação sangüínea, tanto do corpo do indivíduo, para seu estudo,
quanto para um hipotético corpo “coletivo” da nação (SCHAMA, op. cit.)
Por outro lado, as águas são, também, na História, malditas. Sujas, escuras,
escondidas, se situam em posição subordinada no ambiente, e se prestam à recepção dos
rejeitos, dos dejetos e ao uso como meios de concretização de atividades eminentemente técnicas,
como a navegação ou a drenagem. Tanto o litoral quanto os rios, embora tenham suas águas
carregadas de sentido poético e intimamente ligadas aos traços culturais locais (BACHELARD, 1997),
representaram também os espaços da pobreza e o lugar do interdito. Na beira da água, portanto,
houve um tempo em que não se desejava viver ou produzir, muito menos ter lazer.
O recurso às representações (ou a narrativas que atribuem sentido ao ambiente)
26
acerca de itens do ambiente permite a identificação das cargas simbólicas e das possibilidades,
devidamente justificadas, de uso e apropriação destes itens. De certo modo, o ambiente não
apresenta apropriação econômica sem algum tipo de racionalidade, ainda que esta seja
estritamente tradicional, empírica e permeada de mitologias e valores de uso (LEFF, 2006). Estas
racionalidades tradicionais, por outro lado, representam formas de entendimento do ambiente que
são transformadas e também testadas ao longo do tempo (LEFF, op. cit.) Elas também dizem
respeito às visões de mundo, às possibilidades e constrangimentos diante da natureza e, por outro
lado, diante das próprias possibilidades de desenvolvimento material das sociedades. É relevante
abordar aspectos das visões sobre a água no espaço ocupado pelo homem e na cidade,
especificamente, para entender suas aplicações, suas formas de uso e também seus mecanismos
de produção de sentidos — tanto de possibilidades quanto de constrangimentos, características
inerentes ao território (LIPIETZ, 1992).
Sob outro ponto de vista, os fenômenos empíricos e suas relações com a conjuntura
histórica são possibilidades de entendimento do processo de reconfiguração das margens dos
cursos d´água. Assim, intervenções territoriais pensadas ou executadas no caso específico de
Belém-PA e entorno permitem ao mesmo tempo conferir a extensão e a viabilidade da aplicação
daquelas representações sobre a água na cidade e entender o contexto de sua atual mudança de
sentido. As intervenções territoriais atualmente em curso em Belém-PA e região denotam um
exemplo pontual de um movimento, efetivamente mundial, de alteração das paisagens litorâneas, e
das paisagens situadas nas proximidades de cursos d´água em geral. Embora a cidade de Belém-
PA esteja entre as maiores do país, não se situa propriamente em papel de destaque em sua rede
urbana; por outro lado, sua relação histórica com o estuário da Baía do Guajará, um de seus limites
territoriais, confere ao caso um material de interesse para o estudo desta relação entre cidade e
água, na Amazônia e, talvez, em aspecto mais amplo. Tais intervenções seriam exemplos desta
transformação atual de espaços nas margens de cursos d´água. Os fenômenos concretos, se não
falam por si, podem ser entendidos sempre a partir de alguns pressupostos, orientados por
posturas metodológicas (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2004). As intervenções territoriais
recentes, ao criar espaços liminares (ZUKIN, 2000) na cidade, com separação entre padrões, níveis
econômicos, configurações espaciais e formas de uso e ocupação do solo, sugerem a criação de
diferentes tipos de acesso aos diferenciais das proximidades da água na cidade. Deste modo,
nota-se a formação de espaços separados por padrões de uso. Podemos identificar alguns como
mais legítimos do que outros; mais leves; mais apropriados; de menor impacto, segundo a
27
terminologia da burocracia estatal ou dos setores técnicos.
A partir das intervenções territoriais em margens fluviais da cidade de Belém-PA,
informadas por elementos conceituais e históricos da relação entre cidade e água, é possível
construir a análise destes territórios. Assim, foram definidas lógicas territoriais de estruturas
urbanas tradicionais, existentes sobretudo em casos regionais. Estas lógicas orientam a avaliação
de atributos destas estruturas urbanas, permitindo a identificação de processos constitutivos das
formas de uso e apropriação da água na cidade. Usos fundamentais destas estruturas, ou formas
de relacionamento do território urbanizado com os cursos d´água, são identificados em exemplos
históricos regionais e, posteriormente, em espaços urbanos contemporâneos. As lógicas
territoriais previamente identificadas tendem a permanecer nas cidades, mesmo naquelas que
passaram por acentuados processos de modernização — seja na estruturação urbanística, no
aproveitamento do território ou na aplicação das técnicas. Estas lógicas, entretanto, passam a ter
impacto em fenômenos concretos alterados por um contexto histórico de reprodução de
desigualdades no acesso ao ambiente urbano. Para o caso específico deste trabalho, o item do
ambiente urbano que se mostra como de maior interesse à pesquisa é a água. Deste modo, as
lógicas de determinados usos implantados no território urbano próximo à água são expostas a
novos condicionantes. Surgem, assim, atributos, abordagens, sentidos e práticas diferenciados
sobre o ambiente urbano. Esta construção é orientada a partir da idéia de práticas materiais
presente em Harvey (1996b), sobre a associação entre o sentido, as narrativas culturais
estabelecidas a respeito dos itens do ambiente e a sua dimensão material. A modificação
contemporânea operada nos territórios próximos à água, entendida a partir dos quatro casos de
intervenção territorial, demonstraria aspectos da desigualdade ambiental no acesso à água na
cidade.
O propósito da estruturação do texto, no seu trecho inicial, seria o de tentar articular
aspectos da dimensão cultural, e da relevância, dos sentidos do ambiente, à materialidade e a
exemplos concretos da empiria em estudo. Na Região Norte do Brasil há estratégias diversas de
produção de espaço (e, em sua inscrição sócio-política e econômica, de instauração de territórios,
portanto) com clara relação entre a rede hidrográfica e os assentamentos urbanos em diversas
escalas. As narrativas, sentidos e práticas associados a esta relação dizem respeito tanto ao
sentido do item do ambiente quanto às formas de utilização e aproveitamento que se faz dele.
As formas territoriais e os tipos de intervenções territoriais da relação entre cidade e água
são recuperados, recorrentemente, ao longo do trabalho, de modo a construir diferenças de
28
abordagem e, principalmente, contextualizações oportunas a cada aspecto do estudo. Este
recurso não pretende cansar o leitor; trata-se apenas de uma forma de sedimentar o argumento. É
assim que, em um primeiro momento, são tratadas lógicas de territorialização; num segundo
momento, exemplos e fenômenos de formas de intervenção e aproveitamento e em um terceiro
momento, desdobramentos destes em intervenções territoriais da relação entre cidade e água.
Lógicas seriam figuras conceituais para tentar apreender elementos fundamentais da
territorialização urbana próxima aos cursos d´água; estruturas espaciais e soluções técnicas
específicas para aquelas lógicas, como o porto; intervenções, manifestações contemporâneas da
aplicação das lógicas e de suas formas diversas, mas atuais, em uma problemática
contemporânea de acesso urbano aos usos diversos da água no território (e na paisagem) da
cidade.
A tentativa de elaborar construções conceituais, da aplicação através das técnicas e
da definição das políticas ambientais seria um recurso para construir possível questão da água na
cidade. Nota-se que intervenções territoriais e narrativas acerca do ambiente se articulam, de modo
que há sentidos atribuídos às ações materiais de intervenção espacial, e que são fundamentadas
em noções socialmente tidas como legítimas. As construções de caráter cultural sobre a água nas
cidades, e nos assentamentos humanos em geral, mostram narrativas também consideradas
legítimas sobre os códigos e práticas acerca do ambiente. Estes conceitos, técnicas e políticas,
disputando legitimidade no espaço social, configuram discursos e práticas de ação (BOURDIEU,
1998) sobre a materialidade da cidade, sobre as políticas ambientais, e sobre os agentes sociais. É
assim que determinados padrões de intervenção territorial nos casos em estudo, por exemplo,
apesar de exibirem lógicas semelhantes àquelas tradicionalmente aplicadas às cidades litorâneas
ou ribeirinhas, passam a ter prerrogativa modelar diante dos discursos generalizados de
decadência, degradação e “caos” sócio-ambiental nas cidades atuais. Estes modelos claramente
são convertidos em normatividades.
Em termos do propósito geral do trabalho é que se justificaria a estrutura de capítulos.
A sugestão de análise das particularidades de uma possível relação entre cidade e água, neste
estudo, foi motivada pela empiria do caso concreto abordado. Por outro lado, a associação entre
aspectos sócio-econômicos deste caso com a problemática relativamente semelhante em curso, e
tecnicamente em análise noutros contextos, permite que se induza a generalizações. Deste modo,
os fenômenos sociais e territoriais específicos em estudo passariam pela avaliação do debate
teórico sobre a questão entre cidade e ambiente, ou entre projetos de intervenção urbana e a
29
dimensão sócio-ambiental e cultural do processo contemporâneo da urbanização capitalista. As
possíveis elaborações conceituais dadas a partir deste ponto, então, não poderiam ser afirmadas
como totalmente calcadas no empírico; são aplicações parciais da discussão teórica atual ao caso
concreto e, em parte, sugestões de particularização e adaptação da discussão geral.
Pode ser tentada uma explicação entre e dimensão concreta dos fenômenos (suas
manifestações mais claras do ponto de vista quantitativo, ou a cobertura espacial de seus
impactos, ou em termos econômicos e demográficos) e suas abstrações (as narrativas e
construções conceituais em circulação, com afinidade temática em relação aos fenômenos). Em
um possível movimento entre ambos, um raciocínio central do trabalho seria o de, identificando
aspectos de uma problemática da água na cidade, e tentando buscar elementos de discussão nas
elaborações conceituais alheias, tentar trazer o caso para a dimensão generalizada da discussão
teórica e, em paralelo, dar a ele alguma especificidade para fora do pontilhismo obsessivo
(BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2004). Em suma, para tentar fazer algum caminho entre o
concreto e o abstrato, parte-se do concreto, em suas manifestações apreensíveis, mas os
movimentos de retorno (e de conferência) podem ser mais indefinidos e, sobretudo, necessários.
Isto pode representar tanto o refinamento de um raciocínio (que se torna tanto mais abstrato
quanto mais depurado e generalizável, ou seja, teórico) quanto o teste relativo de suas premissas
(quanto à adequação da narrativa elaborada diante dos aspectos do fenômeno). Este movimento
(MARX, 1983) seria, assim, recomendável. Com a franqueza que é possível ter diante das ameaças
do controle do fenômeno científico social, construído e obrigatoriamente provado, e diante do
constrangimento do risco implicado, pode ser dito que neste caso não fazia sentido abstrair os
dados coletados em campo, e nem tentar aplicar as teorias em circulação ao caso observado,
senão tentar articular os dois procedimentos e suas variantes a serviço da pesquisa.
Sobre a estrutura, portanto, especificamente, a seqüência do raciocínio seria a de
trabalhar primeiro a dimensão cultural do ambiente, no sentido das construções do mundo, das
cosmologias do ambiente urbano, para delas extrair quais naturezas estariam impregnadas na
cidade, e quais delas recebem determinados atributos. O ambiente, como se sabe, não é isento de
juízos; construído, ele é também interpretação, embora tenha “natureza” parcialmente dada,
herdada, mas também sendo potencial e fato em transformação. Possíveis idéias (elogiosas,
danosas, fétidas ou pobres) sobre a água no território da cidade (ou noutros territórios)
permitiriam, assim, pensar inicialmente em um recorte espacial e sócio-cultural sobre o qual
trabalhar conceitualmente. A cosmologia do ambiente urbano próximo à água, maldita ou idílica,
30
confere possibilidades interessantes de análise ou, pelo menos, de articulação. Por exemplo: os
parques culturais contemporâneos de antigas cascas urbanas “deterioradas” (zonas portuárias
ociosas, estações de passageiros desativadas, mercados em áreas decaídas, etc.) podem ser
vistos como espaços urbanos que acionam, simultaneamente, a imagem de antigos usos técnicos,
funcionais, da água na cidade (transporte, escoamento, despejo dos rejeitos) a avaliações
positivas ou negativas, socialmente; em paralelo, acionam também polarizações ou diferenciações
entre os usos “degradantes” recentes, a imagem idílica dos usos tradicionais (ainda que
sanitariamente “sujos”) e o aspecto modelar dos novos usos propostos do consumo e das
amenidades urbanas. O porto urbano central “revitalizado” é, ao mesmo tempo, local da
navegação “em tese” (ou em imagem) e espaço do novo uso recomendável - ou legítimo, no
sentido de Bourdieu (1998). Falar, neste ponto, nas formas territoriais desta relação entre cidade e
água seria uma tentativa de fazer a ligação entre os usos e as estruturas materiais convencionais e
consagradas com as racionalidades (ou as lógicas) de implantação urbana nas proximidades deste
elemento da paisagem.
A pesquisa surgiu, portanto, a partir de aspectos presentes na literatura científica, em
relação a fenômenos sociais, políticos, territoriais, com afinidade temática em relação a esta
literatura. Não é possível falar em algum tipo de anterioridade ou de causa e efeito, é óbvio. A
maneira como se observa determinado fenômeno, transformado em referência de pesquisa, é
inevitavelmente informada pela alteração já produzida pela teoria. Do mesmo modo, materializa-se
a teoria a partir de algum tipo de identificação entre seu raciocínio e os fenômenos percebidos. A
empiria desta pesquisa, presente na cidade de Belém-PA e seu entorno, representam parte
significativa de uma explicação para a escolha do tema: a cidade é permeada de cursos d´água e
de usos variados da água, o que ocorre em qualquer cidade contemporânea que possua algum
elemento hídrico em seu território. A identificação de quatro formas, como se fossem figuras com
efeito de demonstração, para sugerir a tentativa de elaborações teóricas sobre cidade e água, tem
finalidade esquemática e de recorte da pesquisa, já que não seria possível estendê-la
exaustivamente para as manifestações de uma possível relação cidade/água em geral. Os
fenômenos sociais foram, então, sistematizados em dados oficiais e a caracterizações baseadas
em fontes diversas (imprensa, iconografia, cartografia, material produzido por órgãos públicos,
projetos técnicos), para que pudessem comportar descrições. Estas descrições eram, então,
confrontadas com aspectos teóricos da literatura já em estudo.
Raramente é possível falar em uma única metodologia para um trabalho de ciências
31
humanas. Há sempre o uso de várias, e provavelmente nenhuma trará o conforto ou o senso de
autojustificação que as metodologias, supostamente, conferem ao autor do trabalho, que busca
legitimidade por aderir aos procedimentos, à forma ou ao tom do discurso e dos raciocínios que
constrói de acordo com a tendência hegemônica de sua comunidade acadêmica. De qualquer
modo, neste trabalho a inclinação teórica predominante seria marxista, a deduzir pela literatura
usada. Neste sentido, a dimensão material da produção dos fenômenos estudados é um ponto
inicial de análise, mas sempre associado à sua dimensão política e às suas construções culturais
correspondentes. Há quatro fenômenos em estudo: a modernização da zona portuária de Belém; a
criação de parques culturais de beira-rio; a implantação da engenharia ambiental em Belém; a
formação progressiva de uma política de gestão de águas no Estado do Pará. Em todos eles, a
dimensão econômica e as tendências do sistema econômico capitalista estão presentes: na
alteração de infra-estruturas regionais logísticas; na criação de novas atividades comerciais e
novos usos para antigas estruturas urbanas; na revisão de antigos padrões de infra-estrutura para
produção de diferenciais ambientais tornados rentáveis; no gerenciamento do ambiente para
redução de externalidades do processo produtivo. Nesta dimensão produtiva, demarcada
historicamente, é que podem ser entendidas as dinâmicas em estudo. Isto não significa que os
processos em análise estejam submetidos a lógicas estrita e vulgarmente econômicas, mas a uma
visão material da produção, contudo. Por outro lado, estes quatro fenômenos são objeto de criação
de sentidos sobre a cidade, sobre sua porção de ambiente e sobre os usos socialmente
legitimados acerca do tratamento da água no território. A dimensão econômica destes fenômenos
não lhes retira as acepções culturais, ou as alterações jurídicas e institucionais, apenas acrescenta
a estes fatos novos aspectos. A formação da desigualdade social, neste sistema econômico, como
um fundamento reproduzido de sua lógica, pode ser entendida como comum a estes fenômenos,
bem como a sua tendência de reprodução e expansão, de continuidade temporal e de replicação
espacial.
A empiria orientou, por assim dizer, as perguntas da pesquisa. Como procedimento
que tenta generalizar o conhecimento e retornar à sua dimensão concreta, nesta pesquisa a relação
entre a empiria (em Belém e entorno, através das fontes já citadas) e as teorias, se não foi feita
com nenhum sentido de anterioridade, deve ter obedecido em alguma medida a uma seqüência de
“retornos” entre a dimensão abstrata das explicações e a necessidade de materializá-las na
heurística de outros ou, pretensamente, em alguma possível formulação que este trabalho
eventualmente possa trazer.
32
A dimensão cultural, simbólica, imagética ou a dimensão econômica mais vulgar de
qualquer destes quatro fenômenos, deste modo, não pareceu apresentar maiores conflitos de
análise. Sem qualquer pretensão “sistêmica” de avaliação, o que levaria necessariamente a uma
ideia fechada de coerência interna do tal sistema e, portanto, de disfunção, no caso de um evento
inesperado, na verdade a empiria pareceu confirmar aspectos importantes das teorias abordadas
sobre os quatro fenômenos em estudo. No caso concreto em estudo, a conversão de três galpões
da antiga estrutura do Porto de Belém em um waterfront nos moldes internacionais, guardadas as
modestas proporções econômicas locais, confirmou a tendência a um novo tipo de gestão urbana
e regional mais privatista e adepta da chamada parceria público-privado. O processo de revisão
administrativa pública e de reconfiguração espacial das estruturas físicas de zonas portuárias
representa a substituição de procedimentos e da implantação territorial da atividade logística para
garantir maior rentabilidade, em prejuízo dos agentes previamente instalados no porto. Pode ser
colocado que a relativa obsolescência da zona portuária a ser “revitalizada” se coloca como a
possibilidade de “modernização” em duas frentes, em direção aos parques da economia da cultura
(JAMESON, 1996) ou aos hub ports (PORTO, 1999), concentrando investimento em infra-estrutura
logística. Efeitos da alteração de padrão nas infra-estruturas urbanas, em direção a projetos de
cunho ambientalmente compreensivos, eventualmente resultaram em urbanizações segregadoras
em função da acepção suja ou pesada de alguns usos anteriores. O monitoramento do espaço,
mapeado e calculado (DELEUZE; GUATTARI, 1997b), evidencia a demanda por ações estatais de
controle, ainda que difuso, das formas de incorporação do ambiente no processo de produção, ou
de apropriação do ambiente nos usos do solo e atividades econômicas.
Em seguida, a terceira parte do estudo pretendia conferir as referências empíricas,
relativas àqueles quatro fenômenos em estudo, e a possibilidade de elaboração e aplicação
conceitual. A idéia era de passar em primeiro lugar por elaborações teóricas e históricas revisadas
na literatura, com afinidade temática quanto à pesquisa. Em seguida, abordar elementos da
pesquisa de campo, do levantamento de dados e da entrevista com agentes a que se teve acesso,
considerados relevantes para o estudo da temática, de modo a articular estas referências empíricas
ao levantamento conceitual realizado, tentando estabelecer paralelos e avaliações. Na seção
seguinte, o estudo procura recuperar a relação entre estas dimensões, teórica e empírica, além de
buscar formulação conceitual própria, tanto a partir dos casos abordados em face da teoria
utilizada quanto das possibilidades de análise crítica do nível de associação possível entre as
formulações teóricas de outros locais e realidades e o caso concreto do estuário guajarino, objeto
33
específico da pesquisa.
A realidade de Belém-PA não se constitui em caso exclusivo ou exemplo excepcional
de cidade cuja estruturação territorial se relacione com os elementos hídricos da paisagem. Não
sendo a única cidade do mundo com formação territorial e sócio-econômica vinculada à rede
hidrográfica e ao litoral, a cidade de Belém possui variedade significativa de modos de
aproveitamento e usos da água. O processo histórico de constituição da cidade de Belém e de seu
entorno regional contém elementos de diversas modalidades atuais desta relação, nas acepções
técnicas, nas suas porções históricas, no conjunto de suas diversas soluções de aproveitamento
da água no território. O fato de Belém poder ser abordada como um caso concreto para uma
pesquisa sobre cidade e água na atualidade representa a existência de fenômenos, a respeito da
cidade, ilustrativos para delinear esta questão de investigação e para proceder à análise, com
respaldo em termos concretos, empíricos.
Como fontes e referências de pesquisa houve vários materiais analisados. Alguns
projetos de intervenção urbanística, arquitetônica ou infra-estrutural foram usados como exemplos
das chamadas formas territoriais citadas no trabalho. Projetos técnicos foram usados como
material de análise, pois as decisões de alteração espacial deles decorrente também podem ser
interpretadas como discursos, como medidas de deslocamento de populações, como intenção de
alteração de usos e padrões de ocupação do território, o que tem impacto sócio-econômico.
Materiais textuais relacionados a estes projetos, com seus respectivos dados financeiros,
demográficos e estatísticos em geral permitiram a avaliação do porte e das características de cada
intervenção. Órgãos públicos relacionados a estas intervenções publicaram relatórios sobre seus
projetos e programas, o que permite a identificação do nível de seus estágios de execução, bem
como de seus propósitos declarados e de suas orientações conceituais. Este tipo de material, lido
a partir do referencial teórico da pesquisa, é importante fonte de identificação de impactos
potenciais e concretos dos projetos e programas, inclusive pelas semelhanças existentes entre
projetos de desenvolvimento urbano atuais. Nos termos de David Harvey (1996a), as intervenções
urbanas de maior porte, contemporaneamente, tendem a se assemelhar em contextos geográficos
muito diferentes, bem como sob gestões públicas de diversas orientações político-ideológicas.
Neste sentido, é possível que fatores estruturais do sistema econômico atual, e da forma como as
administrações urbanas e regionais lidam com as crises do capitalismo, induzam a práticas
generalizadamente conservadoras de planejamento territorial.
A legislação incidente sobre os territórios em estudo, neste trabalho, demonstra
34
conflitos com a situação de uso e ocupação do território. Há conflito, ainda, entre usos
instalados no território e os propósitos de projetos analisados neste trabalho, sobretudo em casos
de atividades com alto nível de informalidade jurídica, tanto em espaços urbanos quanto na zona
rural. Neste sentido, a formação de um ambiente de regulação estatal sobre o ambiente denota
tanto os aspectos próprios do processo de modernização capitalista quanto a implantação
progressiva de um tipo de racionalidade instrumental, capitalista.
Material veiculado na imprensa e textos de divulgação, como itens de propaganda e
como síntese de propósitos dos projetos em estudo, são referências importantes para a análise e
para a identificação das matrizes conceituais e políticas a que estão vinculados. A falta de precisão
técnica, longe de representar deficiência, é representativa do tipo de apelo a que tais projetos
(expansão de zonas portuárias, “revitalização”, implantação de obras de infra-estrutura,
zoneamento e controle ambiental) se dirigem. O caráter publicitário, orientado pelo mercado de
consumo, ou pelo discurso ideológico da gestão, possui sentidos muito ricos e elucidativos sobre
os impactos dos projetos. Todos os elementos estudados neste trabalho possuem diferentes tipos
de fontes de pesquisa e de acesso a seus conteúdos, o que permite sua análise sob pontos de
vista técnicos, das definições territoriais, mas também discursivos e mesmo sócio-políticos.
35
2.ÁGUA E TERRITÓRIO
A água é, em geral, um elemento natural, presente na paisagem. Suas formas de uso
são variadas, podendo oscilar entre algumas de caráter eminentemente técnico e outras com
propósitos lúdicos; na cidade, este elemento da paisagem pode ser notado em canais de drenagem
e, eventualmente, em áreas de balneário.
A água, entretanto, tem também uma série de acepções que extrapolam sua dimensão
enquanto elemento estritamente natural. Em uma possível relação com a formação do espaço
humano, os cursos d´água em geral remontam a um dos mais fortes condicionantes dos
primeiros assentamentos urbanos de que se tem registro na historiografia (MUMFORD, 1998).
Embora em uma visão relativamente evolucionista sobre o desenvolvimento urbano, Mumford
(1998) coloca os recipientes como traços da sedentarização das sociedades humanas, e como
dado que ressalta a predominância do gênero feminino neste processo. Neste sentido, as técnicas
de controle das águas, em pequena ou maior escala, teriam sido imprescindíveis, fosse através de
vasos ou de canais de irrigação, ou mesmo através de tanques:
Lembremo-nos também de que a vala de irrigação, ou o canal, o reservatório, o
fosso, o aqueduto, o dreno, o esgoto, também constituem recipientes destinados
ao transporte automático ou à armazenagem. O primeiro deles foi inventado
muito antes da cidade; e sem esta ordem de invenções, a cidade antiga não
poderia ter tomado forma, como afinal ocorreu; pois não era ela nada menos que
um recipiente de recipientes (MUMFORD, 1998, p. 23-24).
As planícies, de fato, eram também vantajosas para a fixação humana, e para a
sedentarização da forma territorial ancestral da aldeia, em direção ao que convencionalmente
poderíamos chamar de cidade (MUMFORD, 1998). Os núcleos urbanos e aldeamentos pioneiros,
analisados a partir de um corte que separa aqueles mais representativos, com certa diversidade de
atividades e escala em termos populacionais, são todos situados em vales de rios, como os
exemplos clássicos do Oriente Médio, da China e do Norte da África em geral (MUMFORD, op. cit.)
Os vales de rios, referência histórica do primeiro desenvolvimento urbano, seriam terrenos férteis
também para o desenvolvimento das técnicas, em concomitância com aspectos sócio-culturais de
suas respectivas sociedades (BENEVOLO, 2003), como sua formação religiosa e seu repertório de
signos. O aspecto produtivo é apontado por esta mesma historiografia como algo relevante; as
colheitas agrícolas e a possibilidade de fixação dos animais e suas culturas nas terras férteis e
36
periodicamente alagáveis das planícies teriam resultado em excedente econômico e aumento de
produtividade (MUMFORD, op. cit.) Sobre estes aspectos há, como se sabe, discussão conceitual;
há correntes que criticam a prevalência do econômico no desenvolvimento urbano, sem negar sua
dimensão material e, sobretudo, apontando a inexistência de uma anterioridade do assentamento
primário, “agrícola”, sobre a cidade ou a aldeia (JACOBS, 1970). Outra discussão a respeito poderia
ser travada argumentando que não haveria anterioridade do excedente econômico quando da
sedentarização das populações, uma vez que a própria noção de escassez é relativa (SAHLINS,
1978).
Aproveitando a disponibilidade da água no território cultivado e do assentamento
humano, estas sociedades teriam tido, como um dos primeiros esforços coletivos, o
desenvolvimento de técnicas rudimentares de direcionamento de fluxos, de barramento da água,
através de valas, pequenos canais e represas (MUMFORD, 1998). Segundo Mumford (1998) esta
teria sido uma condição para a ocupação extensiva daquelas terras. Por outro lado, este mesmo
fator acaba sendo comprovado na instalação de núcleos urbanos antigos; algumas cidades-
Estado, por exemplo, estavam situadas não no litoral, mas em distância suficiente para acessarem
seus portos, tentando evitar eventuais ataques por via marítima (BENEVOLO, 1998).
A adequação de alguns cursos d´água e a modificação ligeira dos locais de inundação
permitia, àquela época, certa modalidade incipiente de controle de cheias e retenção de volume de
águas, quando necessário (MUMFORD, op. cit.) Os cursos d´água, deste modo, também eram as
principais vias de circulação dos agrupamentos humanos antigos, o que inclusive permitia a
ampliação das trocas econômicas e a constituição de uma escala “regional” para os padrões de
então (Idem, op. cit.) O espaçamento entre núcleos urbanos vizinhos da Mesopotâmia, por
exemplo, sugeria proximidade relativa entre pequenas cidades, a distâncias capazes de se cobrir
por embarcações, e com escala suficiente para manter a regularidade das trocas. As vias
representadas pelos cursos d´água eram, assim, pontos de escoamento do excedente econômico
e se constituíam, com o tempo, em centralidades urbanas, especificamente nas áreas de
articulação entre a terra firme ocupada e as áreas de atracação, desembarque e operação da
navegação.
Lewis Mumford (op. cit.) aponta ainda o papel das antigas estruturas romanas do
saneamento urbano como formas de uso da água, e de seus princípios (no caso, do escoamento
inerente a qualquer líquido). A construção de cloacas, de uma enorme fossa urbana (a Cloaca
Máxima, no século VI), por exemplo, leva o autor a ironizar a elite e a engenharia local em Roma,
37
dizendo que haveria duas alternativas para justificar a obra: uma postura visionária de que Roma
chegaria a milhões de habitantes no futuro, ou uma decisão técnica que nos obrigaria então a
constatar que "[...] a principal atividade e finalidade última da vida é o processo fisiológico da
evacuação" (MUMFORD, 1998, p. 236). Em todo caso, as estruturas de distribuição da água
tornaram-se, na Roma Antiga, muito relevantes para a formação da cidade e para seu
desenvolvimento tecnológico. Além dos aquedutos romanos, notórios, uma série de outras
estruturas do que hoje chamamos de saneamento tiveram lugar nos artefatos técnicos de cidades
da época, e permitem a avaliação destes fluxos para pesquisar o efeito das aglomerações de
pessoas e de atividades.
Na Antigüidade, a filosofia fazia uma série de correlações entre a idéia que hoje temos de
“corpos d´água” (isto é, de elementos que fazem parte de uma rede hidrográfica ou marítima, com
rios, lagos, estuários, lagoas, praias, mares, etc.) e a circulação no corpo humano, com sua
correspondente importância para a vitalidade e saúde dos sistemas (SCHAMA, 1996).
Curiosamente, esta idéia vai alimentar, fundamentalmente, a própria concepção de ciclo
hidrológico e de regulação das quantidades de matéria daí decorrentes, inclusive no âmbito da
biologia (SCHAMA, op. cit.) Estas teorias dos fluidos vão permear saberes durante muito tempo, e
de certo modo se estendem aos dias atuais.
Quanto à Europa, certa historiografia atribui ao intercâmbio entre as civilizações do
Oriente Médio e as sociedades mais a Oeste a constituição do que hoje é referido como a cultura
ocidental. E isto se deve não só ao aspecto da troca via migrações por terra, mas também à
tecnologia de navegação, o que possibilitou um notável comércio mundial, em que Portugal teve
importância considerável (RUSSELL-WOOD, 1998). Isto condicionou significativa transformação na
paisagem natural européia, inclusive com a inserção de novas espécies vegetais (e animais),
trazidas do Oriente (RUSSELL-WOOD, 1998) e que, com o passar nos anos, seriam tidas
popularmente como “nativas”, de tão incorporadas. Este ponto teve impacto nas economias
regionais e fenômenos semelhantes ocorreram na borda litorânea de outros países europeus. Aliás,
no domínio das águas se instaura um ponto definitivo de ruptura e intervenção técnica sobre a
natureza, no momento em que grandes esforços de drenagem são feitos e que ocorre a
possibilidade de instalação de planícies irrigadas para a sedentarização de populações e
assentamentos humanos, além de ganhos de produtividade na agricultura (BRAUDEL, 1983),
principalmente no Mediterrâneo. Este fenômeno extrapola a dimensão geográfica da Mesopotâmia
e a dimensão estritamente cronológica da Antigüidade.
38
2.1. ASPECTOS DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE A ÁGUA
A água, como elemento da paisagem, é incorporada nos discursos em circulação, nas
cosmologias formadas pelas sociedades (modernas, inclusive) e nas práticas materiais (HARVEY,
1996b) que, de uma forma ou de outra, são a elas associadas. Neste sentido, é importante refletir
sobre a relação que se estabelece entre estes elementos da “natureza” disponíveis no ambiente
das sociedades, sobre suas formas de reprodução social e sentidos atribuídos às ações que
envolvem grupos sociais e o ambiente. A partir de elementos desta relação é que se estruturam,
por exemplo, algumas das visões de mundo das sociedades; é a partir delas que se definem as
ações, as práticas, as formas de abordagem e intervenção sobre o ambiente, como a
domesticação de animais e plantas, a caça, os níveis de destruição e transformação que podem
ser considerados toleráveis. Nestas cosmologias, em certos grupos sociais, a própria idéia de
preservação é relacionada positivamente aos sentidos das práticas diante do ambiente; em outras
sociedades, por exemplo, trata-se de formas consideradas legítimas de apropriação da natureza
(DESCOLA, 1998). Há uma dimensão possível de interpretação através de um sentido atribuído às
ações, expresso através de justificativas da tradição ou de efeitos ambientais do uso concreto,
material, de seus elementos.
Simon Schama (1996), ao falar da relação da cultura ocidental com elementos naturais
fundamentais (a mata, a rocha, a água), coloca que a água tem, desde o Egito antigo, sido
associada a idéias variadas em torno da fertilidade, da abundância, da possibilidade de reprodução
da espécie e da provisão alimentar, do suporte aos ciclos agrícolas e, também, da beleza estética.
Neste ponto, é interessante como se dá a construção, em milhares de anos, de um padrão estético
que “bebe” nas mais variadas percepções sobre este elemento natural que, então, se converte
num dado essencialmente cultural. A água, em diversas culturas, aparece na religião, nos mitos,
nos discursos científicos e filosóficos como elemento revestido de certa mítica. A água é, também,
parte das cosmologias das sociedades que dela dispõem, isto é, de todas as sociedades. Por outro
lado, estas cosmologias se estruturam a partir de dados disponíveis na paisagem (DESCOLA, 1998)
e em suas apropriações, o que colabora, no sentido inverso, na produção destas representações.
Simon Schama (1996), em seu estudo sobre elementos importantes para a constituição
do imaginário moderno (e em grande parte, Ocidental) sobre a natureza, pontua a água, a mata, a
rocha e a síntese destes elementos, produzida na Arcádia, como fontes de leitura, de análise. No
Antigo Egito, por exemplo, o semideus Osíris, quando de sua morte, teria sido esquartejado em
39
vários pedaços. Seu corpo, entretanto, teria sido atirado ao rio Nilo, o que explicaria sua notável
fertilidade, pois sua genitália teria ido junto — e os rituais do banho da virgem, vestida
adequadamente, na celebração da fertilidade da cheia e da irrigação das planícies são ligados a
isto (SCHAMA, 1996). Diversos artefatos foram construídos à época, inclusive mesas de pedra
adornadas com motivos animais e vegetais, celebrando a diversidade e a abundância da fauna e da
flora das margens do rio, considerado o rio da memória, pela lentidão de seu regime de marés e
pela gradual inundação que promovia junto às margens (SCHAMA, op. cit.) Isto se assemelha aos
primórdios do cristianismo, em que os rituais da água representavam purificação, e em que havia
sempre uma divindade associada ao rio local. Ou à antiga tradição e à formulação da Árvore da
Vida hebraica, que redundaria no obelisco, símbolo fálico do poder e da fertilidade que tem relação
direta tanto com o cristianismo quanto com mitos pagãos e com a idéia de Fonte da Sabedoria
(SCHAMA, op. cit.)
Schama (1996) relata que, no Renascimento italiano, a recuperação dos mitos greco-
romanos apresentou referências abundantes aos mitos fluviais e oceânicos, desde Netuno e Tritão
até uma “Fonte dos Quatro Rios” (Nilo, Danúbio, o Rio da Prata e o Gânges, cada um simbolizando
um continente e a conquista do Império católico romano, no século XVII), com um obelisco ao
centro (SCHAMA, op. cit.) Havia, sem dúvida, um caráter espetacular nestas obras e uma
teatralidade também; algumas delas tinham trajeto inusitado dos jatos d´água, outras produziam
sons considerados “calmantes”, certa sensualidade e um efeito dramático da experiência estética.
Além destes aspectos, eram obras em que residia um ímpeto moderno de “retorno” ao contato
com a natureza perdida (idem, op. cit.), isto é, com uma idéia de natureza intocada, preservada —
que Schama (1996) nomeia “Arcádia”, isto é, o ambiente bucólico, pastoril, do contato com a terra
e a natureza idealizada, sem o Homem como sujeito e agente de transformação material (ou visual,
na verdade, superficialmente perceptível). Isto é particularmente contraditório quando constatamos
que nada mais há de “natureza” dissociada de nossa intervenção culturalizante sobre ela (THOMAS,
1988). A “natureza”, portanto, nos apresenta como tal a partir de um corolário de percepções, de
nomeações e juízos de valor, em situações de escassez ou abundância, de identificação de
potenciais perigos ou oportunidades interessantes a partir da idéia da sua apropriação. Esta noção
de “resgate” do contato com a natureza parece fazer parte de considerável número de discursos
contemporâneos das intervenções paisagísticas e urbanísticas que conformam o atual quadro de
soluções do espaço construído na interface cidade/água.
40
Ilustração 1 A Fonte dos Quatro Rios (1651), obra do artista Gian Lorenzo Bernini, na Piazza Navona, em Roma, Itália.
Schama (1996) a cita como uma referência para o imaginário moderno acerca da água, e da expansão do mundo no
Ocidente. Fonte: Best Price Art (2009).
A água, por outro lado, teve acepções diversas junto às populações urbanas no aspecto
social. Um ponto válido nesta discussão é a forma de uso do litoral e, particularmente, a sua
invenção, através do caráter lúdico da praia. O estudo de Alain Corbin (1989) sobre a invenção da
praia, sobretudo na Europa, é uma referência de interesse para o caso. Em sua formulação, Corbin
(1989) estabelece uma mudança cultural que é acompanhada, mas não necessariamente
precedida ou sucedida, de alterações de compreensão e no próprio conhecimento científico.
Em tempos mais remotos a praia era um lugar maldito e recôndito, local do
desconhecido, do obscuro e do sujo. As atividades dispensadas ao litoral, e à praia
especificamente, reforçavam esta imagem; vilas de pescadores pobres ocupavam o local, em
vizinhança com o depósito dos rejeitos de toda ordem, e também em proximidade com o rigor do
trabalho marítimo, diuturno (CORBIN, op. cit.) A imagem do litoral, por exemplo, ainda no século
XVIII se assemelhava à de um quintal onde eram despejados os dejetos, um ponto menos nobre do
território ocupado, com função predominantemente sanitária, ou melhor, sem tratamento sanitário
41
(Idem, op. cit.) Esta função periférica das águas na paisagem, inclusive, alimenta muitos dos
argumentos contemporâneos da conversão destas áreas nos atuais locais de visitação, de
consumo, de amenidades e de veto no acesso. Discursos atuais “lamentam” a experiência
histórica e imputam a certa “ignorância” dos processos ambientais e potenciais paisagísticos (e,
em última instância, econômicos) a pretensa falta de aproveitamento do litoral, até a época
moderna recente.
O mar, abordado como cloaca, era também o local da marginalidade e da pobreza. A
paisagem de trabalho e das vilas de pescadores, no caso europeu (o que de certo modo não difere
o Brasil tanto assim de outras terras, no pós-colonização), estigmatizava a borda litorânea da água
sobre a terra, de modo que as imagens produzidas sobre o local, por escrito ou na pintura,
sofreram transformações com o tempo (CORBIN, 1989). Curiosamente, havia uma espécie de
“silêncio”, uma falta de produção destas imagens nos mesmos padrões em períodos históricos
anteriores à virada dos séculos XVIII e XIX (CORBIN, 1989). O ocaso do litoral na produção das
paisagens, no âmbito da cultura, por outro lado, é elucidativo, se pensarmos nos mecanismos de
escolha e nas definições também de natureza política da própria formação dos quadros da
paisagem (CAUQUELIN, 2007).
Mas o mar, já no século XIX, despertava interesse, portanto. No momento em que a
Medicina ocidental, em resgate de certo determinismo ambiental, orienta-se por diagnósticos
hipocráticos “revisitados”, concebe-se uma mudança de postura em relação ao mar e, claro, às
sociedades que o usam (CORBIN, op. cit.) A alta incidência de bócio na Europa de então e as
propriedades terapêuticas do iodo no ar do ambiente marinho, além das temperaturas e da
umidade favoráveis ao tratamento na praia, colaboram na formação de uma idéia mais amistosa
sobre o litoral (CORBIN, op. cit.) Deste modo, recomenda-se a praia à burguesia européia; banhos
gelados na água salgada, tida como caldo múltiplo, nutritivo para a pele e saudável para os olhos.
O banho frio (trata-se do mar do Hemisfério Norte) do litoral teria importantes funções, apontada
pelos médicos: na circulação sangüínea, no que entram as analogias de influências platônicas
entre circulação corpórea e hídrica5
, pequena e grande escalas associadas; nos efeitos
terapêuticos do choque de temperatura externa e interna ao corpo; na distração e afastamento da
5
Em Schama (1996), como dito, esta analogia é citada como uma referência à eventual semelhança entre a circulação do
sangue no corpo humano e o fluxo das águas nos sistemas hidrográficos da Terra, entre rios, lagos e mar. Esta seria uma
tentativa de explicação científica praticada ainda no século XVIII, a propósito das várias teorias da Terra que posteriormente
redundaram na ciência geológica. Sobre este último assunto, também há referências em Corbin (1989), Thomas (1988) e
Rossi (2001).
42
poluição em geral da cidade que se industrializa (Idem, op. cit.) Para as moças adolescentes,
com hormônios furiosos e lascivos, recomenda-se o banho frio em pudicas carruagens, com
imersão do carro na água, e trajes pesados em veludo, de modo a recobrir todo o corpo; o
refrigério da água marinha tenderia a equilibrar a histeria própria daquela idade e do sexo feminino,
e assim estabilizar os ânimos (CORBIN, 1989).
Por outro lado, surge uma crônica da praia, e são registrados novos folguedos do litoral.
Nesta crônica de época, a aproximação entre jovens pode acontecer pela praia, e pelo seu novo
uso lúdico, que não passa necessariamente pelas brincadeiras rústicas da infância pobre dos filhos
de pescadores (CORBIN, op. cit.) O novo lazer litorâneo pode incorporar, por exemplo, rituais de
aproximação do corpo através de abordagens feitas a propósito do banho de mar terapêutico, bem
como pela simples observação em trajes de banho, que vão mudando de concepção e desenho
(Idem, op. cit.) Muda, portanto, a visão que se constrói da própria paisagem litorânea, e Corbin
(1989) aponta a “pintura de vilegiatura” como dado interessante do processo; telas sem pessoas
(ou quase sem pessoas) exibem o vigor do mar contra as pedras, e um bucolismo difícil de ser
concebido em um espaço ainda rústico, tomado por artífices e pescadores. No caso da praia
ocupada e desejada pela burguesia européia, é construída outra imagem do litoral, como o lugar do
tratamento, da terapia, não mais recôndito e maldito, mas saudável, ensolarado e, posteriormente,
exclusivo. Na construção da paisagem artística (CAUQUELIN, 2007), portanto, é que se pode
compreender as opções e os critérios de seletividade da imagem e, portanto, que tipo de mundo se
pretende enquadrar. Esta seria uma concepção moderna da imagem do litoral.
Mas os elementos destas representações têm lastros muito evidentes na dimensão
material destes territórios situados em proximidade com a água. Estas representações, inclusive,
podem ser identificadas mesmo nas estruturas mais técnicas associadas à ocupação humana e
aos seus aproveitamentos da água. A própria dinâmica portuária ajuda a entender este ponto. Um
porto, por exemplo, é um local de fluxos, de trânsito; de chegada de itens potencialmente
desconhecidos, exóticos, de novas referências (produtivas, estéticas, políticas, técnicas). O porto,
assim, é ao mesmo tempo uma estrutura econômica e funcional e uma porta de entrada e saída de
um território, de modo a estabelecer filtros nestes fluxos nos dois sentidos, e que possibilita refletir
as dinâmicas de uso e apropriação do ambiente. O porto, assim, como outras estruturas urbanas
situadas nas proximidades da água, faz parte da produção de representações na composição de
um ambiente geral, amplo, e de uma cosmologia. O porto é, também, uma estrutura de
desenvolvimento econômico, e se articula o seu território a outros, também agrega,
43
historicamente, outros usos do solo e atividades em seu entorno. Neste sentido, encontram-se
potenciais de desenvolvimento econômico e territorial no acúmulo de funções urbanas e há
produção de imagens e formas sobre a água na cidade. As numerosas narrativas sobre aspectos
culturais e sobre referências topológicas e mesmo antropológicas acerca de zonas portuárias
urbanas reforçam esta idéia. Uma estrutura como o porto, então, motiva ao mesmo tempo a
produção de sentidos das práticas materiais (1996b) no território, a produção de imagens (ou as
especulações sobre as formas da paisagem) e cria dinâmicas de aglomeração e ampliação de
escala das atividades produtivas.
Neste campo, o estudo econômico de Jane Jacobs (1970) sobre a cidade em geral narra
uma passagem a respeito do tema cidade e água. Este estudo, eventualmente criticado por alguns
especialistas por uma suposta falta de rigor formal e de relação com aspectos clássicos da história
econômica, tem uma forma inovadora e polêmica de abordar a cidade como artefato social. O
caso da cidade norte-americana de Detroit é citado como um uma referência de desenvolvimento
urbano, em período muito posterior à Antigüidade remota narrada por Mumford (1998). Detroit teria
tido um período de expansão econômica particularmente significativa entre as décadas de 1820 e
1830, momento em que seu porte demográfico e a diversificação de suas atividades produtivas
aumentaram (JACOBS, 1970). A partir desta época, a cidade se constituía como ponto exportador
de trigo e derivados, farináceos em geral. Sua pauta de exportação, portanto, era essencialmente
baseada em tais artigos, e a cidade era uma concentração de moinhos, armazéns, gruas, ruas
sujas, tavernas, docas portuárias, pequenas oficinas e um forte localizado nas margens do Lago
Eire, junto ao rio que também denomina a cidade. A manufatura local produzia artigos de uso
cotidiano, como velas, sapatos, artefatos em couro em geral, alimentos e outros. Além desta
manufatura, havia outra na cidade; a de produção de pequenas máquinas, ligada à tecnologia dos
moinhos a vapor. Esta atividade dava suporte na manutenção destes moinhos e na construção de
novos. Na zona portuária da cidade havia, então, uma série de pontos de embarque e desembarque
de passageiros e de carga, e oficinas de manutenção e construção de embarcações (JACOBS,
1970). Estas embarcações passaram a ser demandadas por núcleos da região e de localidades
mais distantes em pouco tempo, a partir da década de 1840. A produção tinha como diferencial os
barcos a vapor para passageiros e carga (JACOBS, 1970), em vez de veleiros. A indústria local de
embarcações se estruturou a partir da tecnologia de máquinas dos moinhos, e passou a exportar,
e a diversificar a produção com outros itens relacionados à navegação (Idem, op. cit.) A partir da
produção de embarcações houve a intensificação do comércio a ela relacionado, com forte
44
participação das refinarias de cobre da cidade (Idem, ibidem).
O declínio do minério, contudo, tinha sido acompanhado historicamente de um processo
de industrialização generalizado, e da consolidação da cidade como entreposto (JACOBS, 1970). A
cidade passou a produzir e a exportar tintas, vernizes, geradores, bombas, lubrificantes,
ferramentas e utensílios, fornos, medicamentos, mobiliário, artefatos em couro (o que
historicamente demanda água), artigos esportivos (JACOBS, op. cit.) A relação do comércio local
com a escala regional, e a atividade de fluxo portuário, teve ampla participação na ampliação da
economia da região de Detroit, o que inclusive criou condições para as economias de
reciprocidade entre mercados, fornecedores e consumidores que resultou na indústria
automobilística a partir da década de 1910 (JACOBS, 1970).
Em parte, uma das teses de Jane Jacobs (1970) sobre a economia das cidades se baseia
nos efeitos advindos da localização, e das atividades de transportes a ela relacionadas; deste
modo, a presença de cursos d´água navegáveis no sítio físico urbanizado é definidora de alguns
potenciais relevantes (JACOBS, 1970) para casos de desenvolvimento urbano. A situação dos
entrepostos comerciais, associados à manufatura ou à indústria posterior, é apontada pela autora
como um dos principais processos de crescimento econômico urbano (JACOBS, 1970). A formação
destes nós do circuito comercial e das trocas entre regiões tem, na cidade, sua principal base, e a
localização vinculada aos cursos d´água, e especificamente à navegação, teria propriedades
particulares neste aspecto.
Esta capacidade ou potencial, digamos, dos territórios próximos à água, no sentido de
aglomerar funções, de receber camadas de imobilização de capital e de consolidar pontos de
entrada e saída da rede urbana é importante para o entendimento da relevância do tipo de espaço
que está sendo estudado. As ocupações históricas dos territórios urbanos, analisadas a partir da
estruturação territorial de cidades e a partir do volume de estruturas físicas e atividades instaladas
no litoral (ou nas proximidades de cursos d´água em geral) atestam o fenômeno. O
desenvolvimento urbano, em vários tempos históricos, e a proximidade com a água, são fatores
recorrentes (BENEVOLO, 2003) nas formações territoriais orientais e ocidentais. O volume de
atividades, sua diversidade, e o acúmulo de investimentos coletivos situados nos núcleos urbanos
em localizações próximas à água tornam evidente a relevância da proximidade entre cidade e água.
Neste sentido, a consideração sobre a densidade de capital instalada no litoral, ou sobre a
polarização de fluxos em cidades ribeirinhas ou, ainda, na pequena escala da zona portuária
central, são demonstrações razoáveis.
45
No caso brasileiro ocorre fenômeno semelhante. A ocupação costeira do país, e boa
parte de suas primeiras cidades (SANTOS, 2001), fundamentam esta colocação. Pelo processo de
colonização do território e de definição dos núcleos povoados brasileiros, que são urbanos, pode
ser lida a sobreposição de investimentos coletivos na formação de um território idiossincrático
(MORAES, 1999) nas margens dos cursos d´água. A densidade da ocupação, a diversidade de
usos ali dispostos, instalados e em operação e a dinâmica de apropriação do ambiente são
evidentes.
Quanto ao litoral, o que seria válido inclusive para o caso brasileiro, Antonio Carlos Robert
Moraes (1999) define uma série de prerrogativas que seriam potenciais efetivos de
desenvolvimento econômico quase que exclusivo destes locais. O litoral seria, segundo o autor,
um espaço nada ordinário; suas possibilidades são expressivas e, com freqüência, têm
exclusividade deste tipo de território (MORAES, 1999). Se a “beira do mar” não é um lugar comum,
na verdade seria tanto pelas possibilidades que este território, quando formado, abre, quanto pelo
acúmulo de camadas de tempo e de trabalho nele depositadas. A própria colonização do território
brasileiro ocorreu de forma espacialmente concentrada nas bacias de drenagem do litoral (SANTOS,
1993; SANTOS, 2001; MORAES, 1999; ver Ilustração 2) ou, alternativamente, ao longo das redes
hidrográficas regionais, onde os rios tiveram papel importante.
46
Ilustração 2 Brasil: áreas mais densamente urbanizadas (segundo o Censo Demográfico 2000 do IBGE). Fonte:
Gonçalves; Brandão; Galvão (2003).
Moraes (1999) fala da ocupação do litoral como possibilidade, e como um fato
diferenciado, portanto. A diversidade de atividades, de escalas e padrões de espacialização no
litoral (bem como as características de acesso aos seus diferenciais locacionais) criou um
complexo territorial. Historicamente, portanto, pode ser vista maior densidade de formas territoriais
junto aos cursos d´água, e ao litoral, cujos modos de aproveitamento diante do ambiente, e dos
diferenciais da proximidade com a água, sejam evidências. Há alguns exemplos possíveis. Moraes
(1999) aponta que a maioria das plantas industriais do mundo está situada nas bacias de
drenagem litorâneas de seus países. Isto teria relação, direta ou indireta, com a conexão logística,
com as zonas portuárias regionais. Além deste aspecto, nota-se uma espécie de reforço
contemporâneo do fluxo portuário como economicamente representativo; mesmo com os avanços
nas tecnologias de comunicações e dos modais de transportes, os portos ainda são os principais
meios de operar os fluxos das exportações de todo o mundo (SASSEN, 1998). Há, de fato, uma
economia litorânea, e esta se desdobra em outras conexões, como aliás ocorre em outros setores
e territórios, de qualquer modo. A especificidade, na verdade, corre por conta do caráter
idiossincrático deste espaço situado nas proximidades e/ou sob a influência e condicionamento do
mar ou de cursos d´água em geral: atividades como a navegação e a pesca são exclusivas
47
daquelas localizações (MORAES, op. cit.) e representam tanto produção econômica quanto etapas
do processo de desenvolvimento da economia regionalizada.
A formulação de Antonio Carlos Robert Moraes (op. cit.) sustenta, portanto, que o litoral é
um espaço de natureza idiossincrática. Este seria um recorte possível dentre os vários territórios
que se pode identificar, e a presença do mar, neste caso, é relevante. Esta presença se mostra
influente pela criação de condicionantes das atividades humanas, pela clara tendência de
aglomeração dos assentamentos que exibe, pela experiência histórica e densidade de trabalho nele
imobilizado.
Resgatando a dimensão conceitual desta diferenciação entre valores (inclusive fundiários)
e usos do litoral, podemos afirmar que a costa se configura como espaço diferenciado. Esta
diferenciação ocorre em função da mesma diversidade de usos, de formas de apropriação das
especificidades e idiossincrasias da beira do mar como local condicionante de relações e práticas.
Dentre as formas de uso e apropriação do litoral que se desenvolvem a partir do Século
XIX, ressalte-se um momento de inflexão muito importante; a chegada e o início da consolidação
de um mercado de terras em disputa entre agentes individuais e de notável assimetria de poder
econômico, nas terras emersas, porém próximas da faixa litorânea (CORBIN, 1989). Dentro da
ideologia novecentista e tipicamente burguesa do fugere urbem, o litoral, como os campos, as
pradarias ou mesmo as montanhas, revela-se refúgio em potencial, e alternativa de acesso à
natureza (THOMAS, 1988). A burguesia européia passa a adquirir as terras e induzir à migração e à
concentração das vilas de pescadores e coletores das proximidades do mar (CORBIN, op. cit.)
Processos de grande semelhança, com apropriação desigual e formação de uma classe de
proprietários destas terras diferenciadas, ocorreram historicamente em praticamente todas as
nações do mundo capitalista, notadamente naquelas onde a economia do turismo de massa se
implantou. Este processo de modificação de uso e ocupação do solo, influenciado pela mudança
nas formas de acesso à terra e pela mudança dos usos do litoral, assinala uma transformação
importante na questão dos territórios próximos à água.
A ocupação e o uso do território litorâneo, portanto, apresentam conflitos. Pela
diversidade de atividades e de padrões e porque as terras litorâneas logo se configuram como mais
valiosas do que as do entorno quando de seu aproveitamento econômico intensivo (MORAES,
1999), há disputa em torno das localizações próximas ao mar. Neste caso, como nos exemplos
anteriores, não é tão relevante a delimitação técnica estrita da localização, em termos fisiográficos;
a situação litorânea pode (e de fato o é) ser equivalente à estuarina, lacustre ou ribeirinha, sob a
48
ótica deste estudo. A questão é de acesso espacial, de possibilidades econômicas de
aproveitamento e de assentamento.
A disputa em torno dos diferenciais locacionais do litoral é particularmente acentuada
quando da consolidação de alguns processos de modernização. Fenômenos próprios da
formalização e das relações sociais secularizadas, impessoais, pontuam este aspecto. Como
mencionado, um dos pontos mais expressivos desta mudança seria a chegada do mercado de
terras, institucionalmente amparado, às margens dos cursos d´água — bem como, de resto, ao
território em geral. Neste aspecto, o Estado costuma ter papel fundamental. Em segundo lugar, e
em momento no geral historicamente posterior, por definir ações de ordenamento territorial. Esta
vigência do poder no território é, portanto, instituída como ordem a partir da delegação dos papéis
políticos e técnicos a órgãos da burocracia, e é operada como “ordem” na execução de uma “[...]
‘decisão majoritária’ à qual se submete a minoria” (WEBER, 1991, p. 31). A partir disto, o poder
político e as relações de dominação (nas quais há implicação de alguma dialética entre dominantes
e dominados) adquirem certa autonomia, produto também do processo de delegação e de decisão
segundo uma determinada racionalidade legal (WEBER, 1991) dos destinos coletivos.
Dentro do quadro de uma “[...] dominação legal com quadro administrativo burocrático”
(WEBER, 1991, p. 142), para ser mais preciso quanto ao conceito, podemos ler os processos de
modernização e de reconfiguração (em potencial e já em curso) do tipo de espaço que é objeto
deste trabalho. Essencialmente, a referência é feita a determinado tipo de dominação6
impessoal,
formalizada a partir de um aparato burocrático que sustenta e regula a aplicação impessoal dos
“direitos” decorrentes da dominação racional/legal. Este processo existe, em nosso caso, no
âmbito do território, em especial no controle funcional e ecológico (em sentido amplo)7
da
legislação urbanística, no monopólio da força pelo Estado e através das instituições jurídico-
políticas que garantem uma das dimensões fundamentais da política urbana (LOJKINE, 1981) e da
manutenção do status quo da propriedade privada da terra. E é justamente a conotação da
racionalização do mundo (e, portanto, dos processos e relações sociais inscritos na cidade e no
território) que permite a associação da idéia de formalização dos direitos administrativamente
6
Onde “dominação” corresponde, obviamente, à aplicação weberiana do conceito. Em outras, palavras, “[...] a probabilidade
de encontrar obediência para ordens específicas [...] dentro de determinado grupo de pessoas” (WEBER, 1991, p. 139). Nota-
se, fundamentalmente, uma diferenciação em relação à idéia de poder,unilateral e verticalmente aplicado, mas sobretudo uma
relação potencialmente dialética; a da dependência da observância da ordem.
7
Isto é, do controle das densidades em geral, através da legislação, numa compreensão mais quantitativa e funcional do
espaço urbano, impactando no mercado de terras.
49
consolidados com a questão territorial.
Neste sentido, há conflito entre atividades e padrões no litoral. Como citado a partir do
estudo de Corbin (1988), o caráter litorâneo antigo da vila de pescadores carregava uma
conotação pejorativa, ou no mínimo menos nobre. Havia, do mesmo modo, tecnologias
proporcionalmente mais rudimentares e outro sentido das atividades produtivas, ligadas também
aos valores de uso de uma economia de subsistência, por exemplo. Este caráter pejorativo da
pobreza no litoral tende, em diversos casos em locais diferentes do mundo, a produzir um
argumento recorrente no sentido da modernização dos espaços litorâneos, reforçando um tipo de
produção de legitimidade relacionada às elites econômicas locais, desejosas dos novos
diferenciais possíveis de se apropriar no litoral. A produção de legitimidade, portanto, se dá em
uma crescente probabilidade de reconhecimento (WEBER, 1991) da pertinência da modernização,
seja ela dada pela consolidação do mercado de terras ou pela produção intensiva da pesca
industrial, dentre outros padrões e usos.
Como as representações não apenas constroem narrativas, mas também conferem
sentido ao mundo, constroem visões de mundo e como seus resultados são também enunciados
performativos (BOURDIEU, 1998), com notável efeito prático, a imagem arcaica das populações
litorâneas também será apropriada de forma mais simpática na modernidade. Há tensão, fundiária
inclusive, entre ocupantes antigos e pobres e entre os novos usos, que valorizam a terra e a
submetem, crescentemente, a um mercado formalizado e objetivo. Por outro lado, os novos usos
do litoral constroem e reconstroem sua paisagem de acordo com algumas sínteses de sua
imagem; são então produzidas novas paisagens, na pintura e também nos serviços associados ao
novo modo de vida do litoral. Os usos progressivamente migram da zona litorânea, quando esta se
converte no balneário de classe média, povoado de casas de veraneio, ou quando ocorre o
processamento da paisagem da urbanização da praia, com estruturas de contenção, com a
construção de equipamentos e mobiliário urbano, com a disciplina e o padrão do lazer litorâneo
instalados nas bordas. Surge então uma imagem do litoral socialmente construída, como algo que
concilia elementos sintéticos da paisagem anterior, delas suprimindo a pobreza, a escassez, as
privações, a exploração do trabalho e restando, apenas, o componente idílico das embarcações, o
notável e plasticamente interessante repertório formal dos peixes, dos mariscos, dos artefatos
diversos de navegação pendurados nas paredes de casas, restaurantes, cafés. É consumida a
síntese imagética do litoral, e não suas práticas, propriamente. A imagem mais palatável do litoral,
portanto, é aquela em que suas práticas tradicionais, e estigmatizadas, não estão mais ali, exceto
50
por elementos que lhe fazem apenas referências distantes e estilizadas.
No uso dos espaços litorâneos, portanto, o que podemos estender a outros locais
situados nas margens de cursos d´água, as modificações advindas da chegada do mercado de
terras formalizado acarretam transformações também no uso do solo e nos padrões de
assentamento. Este fenômeno costuma ter impacto mais significativo em áreas onde economias
de perfil mais tradicional estão situadas. A formalização jurídica e institucional do mercado de
terras, acompanhada do aparato burocrático para seu cumprimento, altera as relações das
populações com o diferencial da proximidade com os cursos d´água. Deste modo, há processos
de modernização que se revelam determinantes para a ocupação nestas áreas. Em síntese, não
apenas a chegada do mercado de terras formal e consolidado, mas um conjunto de procedimentos
(muitos de natureza institucional, estatal, pública) de racionalização compõe um quadro de
transformações relevantes. O acesso a este tipo de ambiente é, portanto, objeto de conflito, posto
que se trata também de um complexo de atividades humanas associadas a um substrato físico,
que é transformado e condiciona relações (HARVEY, 1980). O processo é atravessado por relações
de classe, entre proprietários e posseiros; pela capacidade de mobilização dos agentes sociais em
torno de suas respectivas formas de assentamento territorial e de apropriação dos diferenciais
locacionais; pelas motivações de natureza sócio-cultural em torno das quais se organiza não
apenas um recorrente imaginário das águas (DIEGUES, 1998), mas também os próprios sentidos da
organização social, em certa medida.
Este é um aspecto interessante do estudo dos espaços litorâneos e, de resto, de
territórios formados por populações, atividades econômicas e formas espaciais influenciadas pela
presença dos cursos d´água. Embora vários estudos se ocupem dos sentidos da água, na
paisagem, nos sonhos, nos discursos, e em seus sentidos para as sociedades que a usam (ou
seja, todas, obviamente), a dimensão da transformação social, em seus espaços, é também
representativa. Menos idílica, talvez, para alguns segmentos de estudo, esta transformação permite
formular, inclusive, algumas hipóteses sobre a formação destes sentidos acerca dos itens do
ambiente.
A dimensão de conflito, concreto ou em potencial, ocorre na disputa pelas possibilidades
do território situado nas proximidades dos corpos d´água; por seus potenciais de valorização
fundiária, mas também pelos usos ali instalados, e subseqüentemente pelo acesso a recursos
ambientais que representa. Este seria um típico caso de conflito sócio-ambiental, na acepção de
Francisco Sabatini (1997); de uma terra relacionada a potenciais de acesso e disponibilidade de
51
algum recurso natural. Na dimensão do conflito, processos de modernização teriam o papel de
desarticular formas anteriores de reprodução social e vínculo com os itens do ambiente, de modo
a estabelecer nos territórios modernizados outros regimes de acesso (ACSELRAD, 2004a) à
natureza. De forma análoga, os territórios modernizados passam a ser regulados, em termos das
formas de acesso às benesses do ambiente, por lógicas progressivamente privatizadas,
controladas por mecanismos de gestão ambiental que, não raro, concentram tais benefícios. O
papel da gestão do ambiente, e do planejamento territorial, seria o de fazer valer a normatividade
dos usos e padrões “desejáveis” de ocupação do solo, considerados adequados a cada realidade.
Este seria, teoricamente, um problema de conflito sócio-ambiental pautado na dificuldade de
“compatibilização de interesses”, segundo vertentes mais conservadoras do mainstream da
política ambiental (ACSELRAD, 2004a). Este tema é particularmente evidente para análise no caso
das aglomerações urbanas e, especificamente, daquelas com atividade portuária ou de navegação
em geral. Nas cidades atuais, por exemplo, as várias formas de uso (para determinadas atividades)
e apropriação (incorporando em tais atividades processos históricos e sociais) dos territórios
próximos aos cursos d´água denotam fenômenos de aproveitamento desigual de suas
potencialidades para o desenvolvimento econômico.
Um dos casos de interesse para o estudo deste tipo de conflito é o da regulação jurídica
do mar territorial, usado como um dos exemplos ilustrativos do problema desenvolvido. Objeto de
acordos internacionais e de normas de uso, acompanhadas de cartografia e codificações diversas,
o mar se configura como terreno de apropriação econômica (MARINHA DO BRASIL, 1971) clara e, ao
mesmo tempo, de conflitos em potencial. Assim, as peças de natureza jurídica e política que
pretendem regular as atividades no mar estabelecem poligonais da extensão da soberania das
nações sobre determinada faixa litorânea e sobre a plataforma continental a que cada nação teria
direito (MARINHA DO BRASIL, op. cit.) Por outro lado, o mar e seu uso são permanentemente
reconhecidos em termos de seu potencial econômico, além da função de garantia de acesso e,
entre outros fatores, defesa do território (Idem, op. cit.) Discussões e avanços na definição dos
limites territoriais de soberania das nações signatárias destes acordos, por exemplo, concebiam
como critério genérico, nos anos 1970, a extensão da profundidade da plataforma continental para
200 metros (Idem, ibidem). Alternativamente, outra profundidade de águas poderia ser
considerada, de modo que ainda se revelasse economicamente válida para a exploração de algum
recurso. A flexibilidade deste critério técnico, que tem justificativa econômica, também faz pensar
sobre os objetivos finais da definição jurídica, formal.
52
Além destes aspectos, as definições acerca do mar territorial (MARINHA DO BRASIL, op.
cit.) exibem a característica de esquadrinhamento do mar, própria da conversão dos espaços lisos
em estriados (DELEUZE; GUATTARI, 1997b). Esta conversão, por analogia, nos lembraria de espaços
onde os agentes não podiam ser rigidamente localizados e onde os processos e fenômenos
podiam fluir, relativamente, e se deslocar, não sendo monitorados; por outro lado, tais espaços
seriam convertidos, modernamente, em territórios mapeados, codificados, regulados e rastreados,
com formas diversas de monitoramento e do poder político em geral. A racionalização do mar, e
sua regulação, parecem denotar uma operação tipicamente moderna que se estende das
plataformas continentais para os terrenos densamente ocupados, continente adentro.
Levando em consideração a estrutura portuária como fato histórico e modelo tecnológico,
pode ser considerada a segunda metade do século XIX como período de generalização e expansão
da solução técnica do porto moderno. Na virada do século XIX para o século XX a construção de
infra-estruturas portuárias racionalizadas segundo o novo padrão entra em conflito com formas
anteriores de aproveitamento das águas em relação ao território ocupado. Este embate de formas
territoriais ocorre também pela diferença entre padrões de assentamento e propósitos; enquanto
um é racionalizado, orientado por parâmetros técnicos e de ocupação relativamente extensiva do
terreno (aspecto que se acentuou com o tempo), o outro tipo, mais tradicional, é caracterizado pela
fragmentação das unidades, por sua operação individualizada e pelo aproveitamento de terreno
mais intensivo, localizado em unidades de operação relativamente autônomas. Além destes
aspectos, o porto moderno passou a necessitar de uma estrutura burocrática de apoio, bem como
de uma infra-estrutura de conexão mais robusta e regular; daí a implantação de linhas férreas em
suas proximidades, por exemplo, e mesmo de edificações de apoio, com armazéns e comércio em
geral. A diferença entre os padrões de fixação no território, e entre formas de aproveitamento de
seus potenciais (o que inclui a questão das diferenças de escala) exprime, portanto, a
impossibilidade histórica de coexistência destas duas formas de modo não-conflituoso. O
processo de transformação das áreas portuárias, ou das áreas de beira de água navegáveis,
expressa de modo bastante evidente o antagonismo entre as formas de uso e apropriação das
águas em relação ao território quando da acentuação de certas dinâmicas de modernização.
Antigos e tradicionais núcleos de ocupação, com acesso às águas e produção do ambiente
construído baseados em condições de prevalência de valores de uso da terra (HARVEY, 1980), ou
de modos tradicionais de produção, são os que sofrem maiores impactos nestes casos. Em geral
a atividade portuária é comum tanto aos usos tradicionais quanto, obviamente, ao novo padrão de
53
porto, de transportes, que se instalava; a questão de conflito é de porte, e de lógica territorial. O
processo de transformação territorial nestes casos cria situações de mobilidade espacial
praticamente compulsória de grupos economicamente menos favorecidos, e cria também zonas de
apropriação mais intensiva (inclusive pela instalação de novas infra-estruturas) das benesses do
território situado nas proximidades da água. Neste sentido, a característica estigmatizada destes
assentamentos litorâneos tradicionais (como as vilas de pescadores e numerosos outros
exemplos) tende a se reproduzir. Esta reprodução pode ocorrer de modo semelhante em outros
locais sujeitos a processos de modernização e instalação de modernas estruturas portuárias, por
exemplo, alterando a dinâmica produtiva, o acesso à terra e ao ambiente.
A possibilidade de se falar em relevância social e territorial de espaços situados nas
proximidades de cursos d´água passa por diversos fatores. Estes fatores estão, também, na
dimensão sócio-cultural das populações que efetivamente usam e se apropriam destes cursos
d´água. Há influência deste elemento da paisagem, a água, na formação de cosmologias, de
visões de mundo, e de estruturas representacionais que definem práticas internamente legítimas
de intervenção sobre o ambiente (DESCOLA, 1998). Embora Philippe Descola (1998) conceba esta
modalidade de formação de cosmologias para a relação entre humanos e animais, a estrutura de
sentimento que se define ali pode ser transposta para outros domínios do ambiente, ontológica e
genericamente definido como a dimensão do não-humano (DESCOLA, 1997). As recorrências dos
mitos, dos sentidos das narrativas sobre o ambiente, também formam um quadro de justificativas
e de consolidação destas práticas, e mesmo dos eventuais vetos à intervenção.
Nas formas modernas de intervenção sobre o ambiente é importante considerar as
justificativas de transformação, de alteração, e de impacto social. A dimensão normativa dos
discursos (FOUCAULT, 2009) é muito clara neste campo, sobretudo quando se constata sua
abrangência e capilaridade entre os vários segmentos sociais envolvidos nos territórios próximos à
água. A normatividade dos discursos sobre o litoral, ou sobre os usos das margens dos cursos
d´água em geral, está presente nas técnicas do planejamento ambiental, contemporaneamente.
Esteve historicamente presente nas classificações já notórias sobre as atividades consideradas
menos nobres, de usos “sujos” ou “pesados” a desempenhar na beira da água; local visado desde
finais do século XVIII na Europa para a reconfiguração de atividades e para sediar o novo gosto das
elites econômicas (CORBIN, 1989). São definidos, portanto, antagonismos entre o padrão
tradicional anterior, precário e baseado em valores de uso do litoral, e o padrão atual, modernizado,
sob o predomínio do processamento técnico da paisagem e dos valores de troca sobre a terra.
54
Usos e padrões anteriores, tradicionais, são definidos como anacrônicos e atrasados, e
tenderiam à substituição progressiva. Neste caso, há efeitos evidentes da normatividade dos
discursos (FOUCAULT, 2009) que enunciam, por exemplo, o caráter inapropriado da atividade
portuária “pesada” nas margens dos cursos d´água já devidamente convertidas em balneário
moderno ou, mais recentemente, em áreas revitalizadas. Assim são criados e difundidos alguns
tipos de veto ao ambiente, nos territórios às proximidades de cursos d´água. Estes vetos, ou as
qualificações de apreciação negativa, refletidas em fatos como as avaliações de perda da
“qualidade ambiental”, colaboram na formação de uma espécie de consenso em torno do que é
considerado apropriado para tais espaços. Assim, para as áreas urbanizadas nas proximidades de
cursos d´água forma-se um senso comum generalizado que habita inclusive os meios técnicos,
estabelecendo normatividades e reproduzindo as estruturas de poder através dos discursos
(FOUCAULT, 2009), mas também das práticas que lhe são inerentes. Os efeitos destas ações são,
usualmente, tentativas de reprodução do quadro de desigualdade no acesso a possibilidades do
território e dos itens de seu ambiente. Na formulação de Neil Smith (1988), o desenvolvimento
urbano e regional capitalista pode ocorrer através de expansão, mas também com a intensificação
do consumo de espaços existentes para o capital, em parcelas reproduzidas, produzidas ou
reestruturadas para atender a novas necessidades.
Dentre as várias formas de uso da água na cidade, e dentre várias formas territoriais que
expressam e materializam este aproveitamento, é necessário o entendimento de alguns aspectos
das lógicas de espacialização. A água na cidade, além de condicionar a reflexão e o pensamento
das sociedades na História em torno de seus sentidos e de suas propriedades, também apresenta
formas de uso e apropriação, com dimensão material específica. A água na cidade, em qualquer
escala de assentamento urbano, apresenta não apenas “funções” variadas e aplicações diversas,
mas também formas de uso e apropriação que se prolongam no tempo, apesar das modificações
técnicas e sociais. Há, do mesmo modo, outras formas que sofrem rupturas, descontinuidades ou
simplesmente desaparecem.
Núcleos urbanos, historicamente, apresentam grande recorrência na localização em sítios
físicos próximos de cursos d´água em geral (BENEVOLO, 2003). No caso em questão, a cidade da
Região Norte, e especificamente a região de Belém-PA e entorno, esta relação entre cidade e
cursos d´água se revela particularmente evidente pela permanência de atividades e da própria
estruturação territorial urbana com elementos indissociáveis dos usos ligados à água. Na região,
as soluções de assentamentos urbanos mostram acúmulo de tecnologias “vernaculares” ainda não
55
totalmente codificadas, embora registradas amplamente na literatura científica. O apêndice
“ribeirinho”, a partir da segunda metade do século XX, tornara-se inclusive um curioso termo que
desperta apreciações simpáticas e, em outras acepções, pejorativas; é idealizado como
“originário” e com forte caráter “identitário” regional e ao mesmo tempo é identificado com a
precariedade, a estagnação econômica e a decadência regional pós-economia gomífera, de
inserção subordinada no capitalismo brasileiro.
As cidades e regiões de formação secular da Amazônia brasileira exibem algumas
estruturas que são permitem o entendimento das formas de uso e apropriação da água. Estas
formas não guardam especificidade tal que sejam, em todos os aspectos, absolutamente
diferentes daquelas registradas pela historiografia urbana. Se assim fosse, não seria possível
pensar qualquer possibilidade de generalização conceitual ou de avaliação em paralelo a outros
casos já registrados. O caso regional guarda diversas semelhanças com aspectos estruturais das
formas de uso e apropriação da água na cidade. Por outro lado, o caso regional tem, obviamente,
particularidades.
Uma maneira inicial, mas concreta, de se pensar a água na cidade seria a partir da sua
apropriação material e direta. A água, nesta situação, representaria as possibilidades de consumo
humano em geral, de dessedentação de animais, de irrigação agrícola; são usos que exigem a
formação de alguma tecnologia, de algum tipo de saber, e também de formas de acesso material
direto. Assim, as margens de cursos d´água, seu acesso espacial, a permanência nestes locais e
a qualidade da substância devem ser condições razoavelmente disponíveis. Isto pediria acesso
franqueado às margens, e formas de apropriação da água no território que fossem passíveis de
coexistência espacial próxima. Daí, por exemplo, a lógica da territorialização, presente tanto nas
descrições regionais das vilas ribeirinhas e de seu modo de vida (BENCHIMOL, 1995) quanto nas
várias narrativas, míticas inclusive, sobre a presença da água na vida local. Sua disponibilidade,
acesso e aproveitamento são freqüentes. De certo modo isto favorece a presença na formulação
de cosmologias das sociedades locais; permite também que se pense em como usar a água, e em
quais usos serão praticados, e como.
A água na cidade também é técnica, há muito tempo. Do mesmo modo, nos
assentamentos urbanos regionais de beira de rio, por exemplo, há soluções de drenagem, razões
técnicas para localizar usos e “desenhar” espaços urbanos, pela tradição. Há também
racionalidades quanto à definição de pontos de captação e locais de embarque e desembarque.
Esta racionalidade, como dissemos nem sempre codificada (embora registrada, em termos
56
descritivos), colabora na formação tanto de um “desenho urbano” tradicional e característico
quanto na constituição de formatos de redes de cidades, articuladas pelos fluxos de mercadorias,
por exemplo. Ademais, a conformação destes núcleos urbanos nas margens de cursos d´água,
com características próprias, colabora na própria concepção de cidade que suas populações
experimentam, e portanto no tipo de apreensão de ambiente, em escala ampliada. Aquela cidade
orientada por estas racionalidades específicas passa a se constituir não como modelo, mas como
referência espacial, e territorial.
Mapa 1 Área urbana do município de Cametá-PA. Estruturação a partir do rio. Fonte: IBGE (2000).
57
Por fim, há formas tradicionais de contemplação, e “funções” paisagísticas das
margens de cursos d´água nas cidades. No caso regional, a horizontalidade das paisagens amplas
e vastas, de relevos freqüentemente (embora não obrigatoriamente) planos, e o caráter
relativamente extensivo do aproveitamento espacial do sítio físico, criam metáforas e formas de
uso e apropriação da continuidade, análogas às formas de acesso à terra livre do barranco de rios
na Região Norte antiga. O movimento de mercadorias e passageiros se faz em redes de cidades, e
em rotas que podem se entrecruzar, associando núcleos habitados e entre eles estabelecendo um
horizonte da extensão regional perceptível. As populações se dizem, neste caso, “filhas” dos rios, e
creditam parte de suas trajetórias, aprendizados e técnicas a esta experiência (BENCHIMOL, 1995). O
rio, na Região Norte e a respeito de seus núcleos mais densamente ocupados (que equivalem à
sua forma particular de “espaço urbano”), define não apenas parte da paisagem, mas também
influencia modos de vida. É desta forma que podemos pensar a construção de visões de mundo e
de práticas sobre ele influenciadas e informadas. Como extensão deste raciocínio, a própria
paisagem, quando observada, denota carga afetiva, cognitiva, referencial. Para que haja apreensão
e transmissão, a paisagem precisa de um conteúdo para ser observada e para existir enquanto tal
(SIMMEL, 1996); há necessidade de itens a observar, e de uma consciência, uma estrutura
cognitiva de apreensão e de reflexão para construir a paisagem. Este conteúdo parece retornar, e
então ser processado em narrativas da oralidade, da literatura, nos saberes tradicionais e nas
técnicas consagradas da região, no que representam a relação entre os elementos de uso,
apropriação e observação cotidiana e a criação de uma estrutura espacial própria, e de uma
estética.
O processo de modernização, ou a entrada de determinadas dinâmicas da relação
capitalista com a terra, com as relações de produção e com o ambiente, reconfigura estas
maneiras de se usar os territórios próximos à água na Região Norte, sobretudo em áreas de
ocupação mais densa e urbanizada. Em paralelo a este fato, os usos mais racionalizados e
formalizados destes territórios costumam ampliar sua participação, em conflito com as formas
tradicionais. Um ponto crucial de definição deste conflito ocorre na disputa pelas terras, e pela
maior valorização destas terras em faixas de proximidade com os cursos d´água (MORAES, 1999),
o que é um processo já reconhecido inclusive em termos conceituais. Por outro lado, o conflito
entre as formas tradicionais de uso técnico da água e as formas modernizadas e mais
racionalizadas consistiria em uma questão de acesso; tende a existir certo grau de exclusão das
formas mais baseadas nos valores de uso da terra, bem como tende a existir predominância das
58
atividades formalizadas juridicamente, com aproveitamento econômico e acesso a terra pela via
do mercado. O acesso à água, neste sentido, não seria configurado da forma como surge no
debate já tradicional da política ambiental; a questão de “acesso” se dá de forma simbólica, ou
através do acesso a terra, pela disputa política em torno de práticas e justificativas histórica e
socialmente tidas como legítimas. Neste sentido, o acesso ocorre com os mesmos mecanismos
do mercado.
Mapa 2 Área urbana do município de Baião-PA. Porto, trapiche e feira instalados nas margens do rio. Fonte: IBGE
(2000).
59
É possível considerar, a partir da ilustração de formas territoriais que relacionam cidade
e água e a partir de eventuais especificidades locais, as condições pelas quais se pode conceber
não apenas os contornos de uma possível “questão da água” na cidade da Região Norte, mas
também algumas possibilidades de avaliação da relação entre cidade e ambiente, no contexto em
estudo. As características da região em análise apontam para a existência de formas territoriais
desta natureza. Deste modo, o caso da região, como se pretende demonstrar inicialmente, teria
aplicabilidade para a discussão do tema com grau razoável de generalização possível.
2.2. “CIDADE” E ÁGUA NA REGIÃO NORTE
As especificidades dos territórios situados na vizinhança, e sob influência, dos cursos
d´água são diversas. Para o caso deste trabalho, diretamente, interessa abordar um aspecto
destas especificidades: aquele relativo à urbanização no Norte do Brasil e, mais objetivamente
falando, o caso do estuário da Baía do Guajará, no entorno do município de Belém, Estado do Pará.
A Região Norte do país, especificamente, representaria em grande parte a maior
contribuição da maior bacia hidrográfica do país (ANA, 2009), a Amazônica. Seus assentamentos
urbanos seculares são, quase na totalidade, cidades ribeirinhas (TRINDADE JR.; SANTOS; RAVENA,
2005). A extensa e complexa rede hidrográfica da região compõe uma bacia hidrográfica de cerca
de 6 milhões de km² (ANA, 2009), onde o aproveitamento das águas para consumo é considerado
pouco significativo em face do potencial existente nas suas sub-bacias hidrográficas (ANA, op.
cit.)
60
Mapa 3 Localização de municípios do Estado do Pará em relação a cursos d´água das imediações da Região Metropolitana de Belém, da região do Baixo Tocantins, do Marajó e do
entorno da Baía do Guajará. Fontes: IBGE (2010); SIGIEP (2007).
61
Ilustração 3 Conjunto de atividades em cidade de pequeno porte de beira de rio da região amazônica: feira, porto,
mercado. Município de Baião, região do Baixo Tocantins, Estado do Pará. Foto do autor (abr. 2007).
Os assentamentos urbanos da região são estudados também por sua densidade
populacional mais alta e intensidade de uso. Há, obviamente, diversas formas de aproveitamento
nas zonas rurais da região, mas o foco deste estudo, para a identificação de alguns processos da
relação entre território e as águas, é a cidade. A ocupação territorial da região, a partir da
colonização européia, reforçou este caráter “ribeirinho”, uma vez que os assentamentos urbanos
consolidados tinham, na localização nas proximidades dos cursos d´água, um fator preponderante
e atividades econômicas estruturais para a sobrevivência destes núcleos urbanos. Nas cidades
amazônicas de beira de rio, tradicionalmente, desenvolveram-se tecnologias de instalação no
espaço a partir da produção do ambiente construído, bem como estratégias de aproveitamento
econômico e funcional da localização nas proximidades dos cursos d´água (ver Ilustração 3). De
certo modo, a cidade de beira de rio (que até a literatura científica regional qualifica como “cidade
ribeirinha”) configura uma espécie de tipo na urbanização regional (CARDOSO; LIMA, 2006).
Outro aspecto interessante é o da formação de autênticas micro-redes urbanas no
conjunto destes núcleos. Mesmo em municípios de menor porte, entre áreas urbanas ou distritos,
62
o fluxo de produtos é intenso. As cidades de beira de rio da região sintetizam, em maior ou
menor escala, entrepostos e nós em redes de circulação diversificadas (BENCHIMOL, 1995), que
incluem mercadorias, bens, serviços e informações. Há produção agrícola e extrativismo em áreas
rurais ou em áreas próximas aos núcleos urbanizados; há diferenciação de itens e circulação de
produtos pela via fluvial, predominantemente, com uma base de troca econômica sediada nos
mercados urbanos, em geral (CARDOSO; LIMA; GUIMARÃES, 2008). Nestes mecanismos de troca é
estabelecido um fluxo portuário informal, em geral não padronizado tecnicamente conforme o
modelo da estrutura portuária formalizada e codificada, mesmo se considerada com base no
padrão tecnológico do princípio do século XX. O “porto”, nestas cidades, é estrutura construída
relativamente rudimentar; pressupõe uma rampa, um dique, um píer, um trapiche ou,
eventualmente, alguma combinação de alguns destes itens. Em localização próxima à do “porto”
ficam a feira e/ou o mercado, com suas estruturas físicas espacialmente variáveis, mas estratégias
de assentamento, expansão e “comunicação visual” tradicionais.
Ilustração 4 A frente das cidades de beira de rio, hoje, se constituem em locais ao mesmo tempo dinâmicos
economicamente e atravessados por conflitos sociais e econômicos; município de Igarapé-Miri, região do Baixo
Tocantins, Estado do Pará. Foto do autor (jan. 2007).
63
Até a década de 1960, na região, podemos afirmar que os núcleos urbanos eram
representativos, neste sentido, sobretudo como pontos de troca, e de convergência dos produtores
e fornecedores; pouco da atividade produtiva agrícola e pesqueira, por exemplo, era devida à
cidade, propriamente (CARDOSO; LIMA, 2006). A feira urbana, assim, é um dos elementos de mais
notável centralidade na urbanização regional, e representa grande potencial de atração de
populações, assim como os serviços públicos sediados também na cidade, como saúde e
educação (CARDOSO; LIMA, op. cit.) Na definição de uma tipologia, ressaltando aspectos formais e a
característica geral da expansão atual, tais autores qualificam estes núcleos urbanos como
estruturas urbanas monocêntricas, organizadas ao longo de curso d´água com penetração
limitada no território (CARDOSO; LIMA, 2006). Processos de alteração na relação com a terra nestas
cidades, com a prevalência do valor de troca sobre os valores de uso tradicionalmente associados,
por exemplo, ao acesso às margens de rios, denotam aspectos importantes de desigualdade social
(CARDOSO; LIMA, op. cit.) As formas atuais de uso e ocupação do território urbano refletem este
conflito, inclusive nas formas de apropriação da água, com a ocupação adensada das cabeceiras,
o despejo de efluentes e esgoto primário nos rios e o parcelamento urbano desarticulado dos
relevos e das condições do sítio (Idem, ibidem).
64
Ilustração 5 Trapiche em zona rural da região, Estado do Pará (município de Baião, na região do Baixo Rio Tocantins);
estrutura urbana tradicional de conexão com a água e de extensão da terra. Foto do autor (abr. 2007).
Embora estes casos, de cidades de menor porte e com expressiva influência da zona
rural em suas economias, não constituam propriamente exemplos totalmente semelhantes e
associados ao caso em estudo neste trabalho, seus aspectos históricos e seus contornos de
formação territorial são, por outro lado, similares. A cidade de Belém-PA e sua região, locais
específicos de estudo, apresentam aspectos históricos e de formação territorial em vários sentidos
passíveis de paralelos com os tópicos expostos anteriormente, o que valida a análise.
Em assentamentos ribeirinhos — forma rural comum no estuário do Amazonas e
afluentes — estão presentes diversas estratégias de territorialização e lógicas de uso e apropriação
próprias dos territórios próximos aos cursos d´água, com seus potenciais e idiossincrasias.
Nestes locais é possível identificar, de maneira razoavelmente depurada e clara, alguns dos fatores
mais estruturais do processo de territorialização às proximidades de cursos d´água, na forma pela
qual tais processos ocorrem na região. Estes fatores podem ser mapeados e estudados, portanto,
longe da idéia de um tipo de ocupação do espaço “pura”, “original” ou pioneira, posto que são
históricos.
65
No caso do caboclo amazônico a questão apresenta vários destes elementos. Não
se deve caracterizar um “tipo” relativamente ideal ou homogêneo para tratar desta realidade sócio-
cultural e econômica, mas é razoável, em termos metodológicos, estabelecer alguns parâmetros
de definição prévios. Especificamente, para efeito do interesse deste trabalho, falar em “caboclo” é
abordar uma população rural (não exatamente camponesa) que vive às proximidades dos cursos
d´água da Amazônia brasileira, em um esquema produtivo que articula uma dimensão de
subsistência à troca comercial do excedente (LOUREIRO, 2004). Em diferentes pontos da Região
Amazônica há áreas cuja ocupação mais antiga é, invariavelmente, feita às margens dos rios,
furos, igarapés e paranás, onde uma tecnologia simples de adaptação ao território e às condições
naturais veio sendo reproduzida (STERNBERG, 1998). Há alguns séculos esta população vive às
margens de rios e igarapés, em agrupamentos de dimensões e complexidade variadas (idem, op.
cit.)
Não há, no caso, um tipo territorial abstrato e idealizado que, pelo caráter pouco
elaborado de suas técnicas, seja mais puro e fácil de analisar ou seja mais “autêntico”. Há,
entretanto, formas territoriais de certa maneira mais “descarnadas”, muito simplificadas pelas
ferramentas analíticas da ciência localmente baseada e, sobretudo, por soluções historicamente
materializadas. Nestes territórios, por exemplo, persiste algo (em maior ou menor presença) da
representatividade do valor de uso (e não de troca) da terra, em usos da beira d´água em geral
compartilhados, divididos. Embora não se trate propriamente do ager publicus de que fala Marx
(1986) quando cita a terra livre como fator existente nas formações econômicas pré-capitalistas, o
caráter incipiente do capitalismo (ou de um pré-capitalismo) destas economias, comparado aos
fluxos de núcleos urbanos maiores, evidencia formas cuja lógica não se identifica com o terciário
mais dinâmico (e com a estrita propriedade privada da terra e suas restrições) de grandes cidades
do entorno. Desta forma, as soluções territoriais materializadas, eventualmente, ainda refletem esta
situação; haveria ainda estratos do processo de modernização se implantando nas décadas
recentes, na região.
Por outro lado, as várias formas do mercado de terras se consolidam inclusive nos
espaços rurais/ribeirinhos do Norte do Brasil. Almeida e Sprangel (2002) demonstram o processo
no arquipélago do Marajó, também situado no Estado do Pará, e relatam a mudança nas formas de
uso e apropriação da terra decorrentes da chegada de uma lógica propriamente capitalista (e
rentista, portanto) na relação com o solo. As restrições e assimetrias no acesso, decorrentes desta
mudança, pontuam um aspecto fundamental do processo de modernização na Amazônia. Segundo
66
Loureiro (2004), processo semelhante já se estruturara na Região Norte desde os anos 1950.
Nestes territórios ribeirinhos, sem qualquer idealização — “original” e “modelar”,
conforme o “desejo de litoral” (CORBIN, 1989) urbano, atualmente existente em Belém, por exemplo
—, a produção, a articulação com as possibilidades de transporte e consumo da água e a
produção do ambiente construído são relevantes. Nestes territórios, por outro lado, há sistemas de
rotatividade no uso da terra e criação de solos artificiais, articulação com núcleos urbanos e
técnicas historicamente consagradas (na construção de barcos, casas, estruturas de conexão com
a água) que se encontram atravessados diante da transformação social e econômica por que
passa a região. É desta forma que um sistema como o complexo rio-mata-roça-quintal (LOUREIRO,
2004) se revela como estratégia de apropriação do ambiente e de criação de possibilidades de
reprodução social. A estratégia de aterramento de quintais, associada à pequena roça, à criação de
animais, à expansão da casa e à cobertura de um território mais amplo para a caça, a pesca e a
coleta constituem uma presença do caboclo no ambiente como um agente capaz de reconhecer
algo da sazonalidade do local e mover-se nele (LOUREIRO, op. cit.)
No discurso acadêmico local, a idéia de um “modo de vida ribeirinho” angaria diversas
simpatias. Em certa medida, este se constitui num dos modelos explicativos definidores da região,
de aspectos de sua espacialidade urbana mais ancestral e da relação desta espacialidade com
heranças culturais anteriores, até certo ponto. É necessária, portanto, uma crítica à “idealização”
do território “ribeirinho” (o que, em si, já constitui um reducionismo). Para que se discuta o
território (sobretudo o urbano) às proximidades dos cursos d´água, neste caso, deve-se trabalhar
na direção da desnaturalização das noções, e no desmonte de certas pré-noções (BOURDIEU;
CHAMBOREDON; PASSERON, 2004).
Em primeiro lugar, deve-se pensar na negação de qualquer identificação entre um
caráter supostamente “natural” do “homem regional” em seu estado puro, original, mais
“integrado” ao ambiente. Formulações deste tipo, com freqüência, se convertem em esquemas
delicados de dominação política, conceitual e territorial, uma vez que constroem sentidos acerca
do ambiente, naturalizando-o e colocando-o como estático e não-modificável. Com frequência,
também, tais noções têm aplicação conservadora; constroem indivíduos e agentes dotados de
pureza e legitimidade autêntica associada, exclusivamente, a modos de vida e escalas econômicas
rudimentares. Em caso de “transgressão” deste código esperado para o bom selvagem, é rompida
a solidariedade da proteção incompleta do Estado, colocando-se tais comunidades diretamente
sujeitas à lógica de mercado – de terras, inclusive.
67
Em segundo lugar, é justamente nesta construção social do “ribeirinho” enquanto
estado “natural” das sociedades na região que operam alguns dos discursos conservadores atuais.
Fala-se de uma pretensa identidade regional ligada à água e, também, de um perfil cultural pronto
para ser consumido entre territórios “competitivos”, onde as cidades seculares, em sua
territorialidade sempre relacionada com os rios, devem lançar mão de seus diferenciais
paisagísticos para detonar novos processos de crescimento econômico. Na prática, a idéia de
“ribeirinho” é acionada em termos simbólicos, mas não é incorporada, ou reconhecida, nas ações
contemporâneas de intervenção territorial.
Ilustração 6 Uma "montaria", pequena embarcação tradicional da Região Amazônica. Foto do autor, abr. 2007
68
No caso amazônico, Loureiro (2004) fala do “complexo rio-mata-roça-quintal”
(idem, op. cit., p. 23, grifo da autora) como uma espécie de célula das formas produtivas, de
organização territorial e de vínculos sociais do caboclo ribeirinho. Este complexo é assim
considerado por representar, num espaço relativamente extenso, atividades de subsistência, de
produção e de alternância no uso de recursos.
O rio e os cursos d´água em geral são notórios elementos de conexão em tais
espaços, servindo como fontes de alimento e meio de transporte. A pesca, portanto, incorpora
uma série de práticas derivadas e de técnicas desenvolvidas e reproduzidas através de gerações e
da interação do caboclo com a ancestral cultura indígena. A aplicação das madeiras, das talas e de
técnicas de amarração garante a confecção de artefatos que dão o suporte à pesca e à navegação:
a lança, os remos8
, os currais9
, os puçás (usados para a pesca de siri) e os matapis10
. O
excedente do consumo doméstico ou familiar é destinado ao mercado, em que costumam ser
disponibilizados o pirarucu (Arapaima gigas) salgado e conservado, a gurijuba (Arius luniscutis,
peixe cujo grude, extraído da bexiga natatória, é atualmente usado na indústria de cosméticos,
comum na região do Salgado do Estado do Pará, no estuário Guajarino) a tainha, o filhote e outros
peixes11
, além dos mariscos, crustáceos e quelônios: camarões, mexilhões, sernambi, caranguejo
e tartarugas (LOUREIRO, 2004). A pesca, curiosamente, definia uma atividade de subsistência e,
secundariamente, uma possibilidade de obtenção de ganhos monetários, numa economia
essencialmente pré-capitalista e não-monetarizada (LOUREIRO, op. cit.) A modalidade da pesca
artesanal não se sobrepõe às demais. Predominava no litoral, da região da foz do Amazonas e nas
proximidades das cidades de médio porte. Obviamente, na coexistência de vários pescadores num
mesmo local, ocorre certa “divisão” relativamente tácita, entre territórios de exploração do
pescado, cujos códigos são definidos na convivência e cuja localização é sempre identificada
através dos ancestrais sistemas de triangulação, compostos por um ponto em terra, outro na
margem oposta e outro pelo próprio navegante, em geral (FURTADO, 1992).
8
Segundo Furtado (1992), construídos a partir da necessidade do uso: remos elipsoidais são usados para navegação em zonas
costeiras, mais agitadas; há aqueles em forma de calota semi-esférica, circulares, para águas mais tranqüilas, como igarapés.
Há diferenciação entre as embarcações, da mesma forma.
9
Espécie de armadilhas para os peixes, os currais são montados à semelhança de labirintos, e são usados entre a preamar e a
baixa-mar (LOUREIRO, 2004).
10
Usados na pesca de camarão, são parecidos com gaiolas cilíndricas, com dois cones em sua parte interna, afunilando a
passagem.
11
A disponibilidade e o preço variam em termos da incidência da espécie nas localidades. Em geral peixes de maior
incidência são mais baratos, caracterizados como “comida de pobre”, ainda que tidos como nobres por outros pela carne
tenra, baixo teor de gordura ou sabor característico.
69
As embarcações de pesca e de transporte de pessoas e carga também representam
certo grau de apuro técnico, moldando os barcos ao longo das gerações. Nas principais
embarcações — a montaria, a canoa de casco, a lancha (FURTADO, 1992) — é possível identificar
a influência de técnicas rudimentares indígenas, da aplicação das madeiras e ferramentas locais
pelo caboclo e até mesmo alguma técnica naval portuguesa (XIMENES, 1992). O aproveitamento de
recursos naturais espacialmente mais acessíveis, disponíveis naquele ambiente, comprova a
correspondência entre técnica, materiais utilizados e forma dos artefatos. Para as embarcações
mais comuns são utilizadas madeiras de boa qualidade da região, tais como a Sapucaia, o Piquiá,
o Acapú (este em extinção crescente, de madeira escura e fibrosa, muito resistente à água e muito
rígida), a Itaúba, o Pau-d´Arco (também chamado Ipê), a Sucupira, o Pau-Mulato, a Maçaranduba
e as variações do Angelim (rajado, vermelho, etc.) (XIMENES, op. cit.) A aplicação varia conforme o
componente da embarcação, e várias espécies são substituídas por outras, mais baratas, à medida
que espécies nobres vão se tornando raras pela exploração crescente e tornam-se caras também
pela valorização no mercado internacional. Assim, uma madeira como o Pau d´Arco presta-se à
execução de partes que exijam dobradura, flexão, tais como o tabuado dos cascos, calafetados
com resinas sintéticas ou à base de petróleo12
. A Maçaranduba, pelo seu notável desempenho
mecânico no contato permanente com a água, tem função estrutural. O porte e a forma da
embarcação variam também, como dissemos, conforme o canal de circulação e o uso; montarias,
menores, mais delgadas e leves, têm maior mobilidade para trafegar em igarapés e rios tributários,
levando pequenas cargas e pessoas (FURTADO, 1992), enquanto no transporte costeiro, nas
jornadas com carregamentos maiores ou nas baías caudalosas dos estuários os chamados
“navios” ou barcos (gaiola, regatão, lancha) são mais usados. A propulsão a motor já entrou na
composição deste modal de transporte, há algum tempo.
Sobre o quintal das habitações do caboclo ribeirinho, existe a destinação às hortas
domésticas e à criação de pequenos animais. Assim, são cultivadas as plantas medicinais, usadas
em chás, extratos, ungüentos, e as destinadas aos temperos da alimentação, como o urucum, o
jambu13
, as pimentas, os limões (LOUREIRO, 2004). Frutas diversas (manga, cupuaçu, açaí, bacuri,
biribá, bacaba, jambo, etc.) são cultivadas, além de algumas ervas, temperos e animais, como
12
Furtado (1992) coloca que outrora a vedação (“calafetagem”) era feita com breu natural, azeite de andiroba (uma
oleaginosa) e misturas com fibras naturais.
13
Espécie de erva, em geral cozida com a sua flor em botão, de sabor marcante e efeito ligeiramente anestésico, de uso
alimentar.
70
patos, marrecos, galinhas, porcos. Os animais destinam-se ao consumo doméstico ou às
comidas típicas das festas de santo (LOUREIRO, 2004). Como acontece com a pesca, algum
excedente era vendido nos mercados, o que permite a incorporação do dinheiro nesta economia
(idem, op. cit.)
Ilustração 7 Habitação ribeirinha, região do Baixo Tocantins, município de Cametá-PA. Ambiente idealizado e retórica
da "identidade" regional, com engenhosidade da tradição. Foto do autor, abr. 2007.
Na roça a destinação ficava para as culturas alimentares (LOUREIRO, 2004). A
mandioca é tida como alimento básico da dieta, com seus subprodutos e várias formas de
consumo: farinhas d´água (de granulação maior, mais torrada, de sabor marcante e cor escura),
seca e de tapioca, amido e caldo de tucupi, preparados na casa de farinha (LOUREIRO, op. cit.) Além
da mandioca, havia outras culturas, como o milho, a macaxeira, o cará, a batata-doce, etc. A
comercialização era, novamente, subsidiária, em geral a partir do cultivo de tabaco, algodão ou
cacau (idem, op. cit.)
Quanto à mata, havia uma clara predominância extrativista. A partir de técnicas
simples são ainda hoje extraídos um conjunto de substâncias, óleos e essências das espécies
vegetais. Em primeiro lugar, pela relevância histórica e pelo volume da exploração, colocaríamos a
castanha e a seringa (LOUREIRO, 2004). Além destas, são aproveitados os óleos medicinais da
71
copaíba, da andiroba (usado inclusive como repelente), anti-infecciosos e cicatrizantes, o
cumaru, o perfumado pau-rosa, etc. Ainda segundo Loureiro (op. cit.), havia a extração de cocos
diversos (bacaba, buriti, patauá, açaí) para a produção de sumos, extratos, sucos ou “vinhos”, que
eram consumidos como alimento, bebida, usados para fazer velas, remédios ou lubrificantes.
Também havia a caça, mais abundante em algumas regiões e noutros tempos, onde se procurava
os jacarés, as onças, a paca, a capivara, a cutia, os tatus, cobras, lontras e ariranhas, etc.
Um ponto fundamental a ser ressaltado, nesta realidade, é a presença muito forte da
rede hidrográfica da região Amazônica, condicionante fundamental para o entendimento dos
processos ecológicos e sócio-econômicos, materiais e culturais, ao longo da História, naquela
região. Sem qualquer intenção de estabelecer um corte determinista, em que o rio estrutura, em
última instância, os processos sócio-ecológicos, na verdade a idéia é entender que a presença da
rede hidrográfica como canal de trânsito e como fator que permite uma série de outros recursos
acaba tendo um impacto na vida, numa escala micro-regional. Loureiro (2004) esclarece pontos
importantes desta questão, relacionando o aspecto histórico com características geográficas da
ocupação:
O homem natural da Amazônia vivia, secularmente, à beira dos rios e igarapés,
seja nas cidades, vilas ou povoados — todos eles situados à margem dos
cursos d´água. Às vezes vivia em agrupamentos de duas ou três casas, ou
ainda, isolado numa ‘cabeça de ponte’ (trapiche de madeira que se projeta rio
adentro, onde aportam as canoas dos pequenos compradores; no início do
trapiche, à margem do rio, se localizam a casa e um pequeno comércio). A vida
na beira do rio exige uma profunda articulação com a natureza, sendo a água o
elemento definidor da cultura dessas populações ribeirinhas. (LOUREIRO, 2004, p.
22.)
Outros grupos, de outras procedências, têm ocupado as zonas rurais e urbanas da
Amazônia, entretanto. Havia uma curiosa diferença na assimilação dos migrantes nordestinos, que
chegaram em maior número a partir da década de 1950. No Nordeste, por razões históricas,
aquela população rural era mais habituada às culturas regulares, muito mais do que a este tipo de
extrativismo a partir das espécies locais e da hidrografia regional. Assim, os migrantes nordestinos
estabeleceram naquele território uma economia, uma dinâmica produtiva, uma sociabilidade e até
mesmo uma organização espacial diferenciada (LOUREIRO, 2004).
A década de 1950, estabelecida por Loureiro (2004) como um marco na alteração dos
padrões demográficos e sócio-econômicos da região, aponta para uma primeira e sutil inflexão no
uso da terra e na proporção rural-urbano. Além disso, havia certa coerência nas formas de
apropriação dos recursos no chamado complexo rio-mata-roça-quintal. Longe de caracterizar
72
qualquer idéia de “paraíso perdido” ou uma visão idílica de uma porção de natureza em convívio
harmônico com o Homem, uma espécie de Arcádia (SCHAMA, 1996) idealizada, redesenhada na
imaginação e que nunca existiu, a intenção é de descrever a mudança. Na verdade, “[...] à
existência de um saber social para o trabalho na pesca somava-se a existência de terras livres e
aproveitáveis” (LOUREIRO, 2004, p. 35). À rusticidade técnica dos meios associava-se a
disponibilidade dos recursos (alimento, fibras, óleos, madeira) manejados alternadamente, de
acordo com a estação do ano (seca ou alagada, as duas únicas possíveis de distinguir na região).
Abriam-se frentes de pesca ou de cultivo de grãos e tubérculos, pequenas culturas de temperos e
ervas ou de animais criados nas proximidades da casa. O baixo consumo, oriundo de óbvias
limitações, resultava em relativa abundância, de certa forma nos termos definidos por Sahlins
(1978); desejando pouco, produzindo o necessário, obtendo do tempo de trabalho esta
quantidade, resultando em relativa abundância. Noutras condições históricas e materiais,
obviamente.
Obviamente, a construção histórica das formas produtivas e dos modos de
apropriação sócio-ecológica dos recursos é sempre marcada pelo caráter narrativo, pela síntese e
formulação parcial. Por outro lado, algo deste subsídio permite o estudo e a análise das
transformações da apropriação do território na região, especialmente nas áreas de estuário e em
proximidades com cursos d´água.
A idéia da disponibilidade de certo número de recursos, mediados pela técnica, está
ligada à presença dos cursos d´água como elementos da paisagem com múltiplos sentidos e,
ainda, à forma histórica da terra livre. Juridicamente (e localmente) considerada terra devoluta, isto
é, de propriedade da União, cuja situação permitia o uso por tempo indeterminado, a terra livre era
a base territorial, por assim dizer, da reprodução social daqueles grupos de caboclos ribeirinhos
(LOUREIRO, 2004). Apropriada através de acordos seculares, tornados tácitos após gerações, a
terra era local de alternância dos usos e de certa coexistência de atividades, como a pecuária e a
pesca. Esta apropriação ocorria na medida em que terras poderiam ser usadas nas margens para
atracação de embarcações e, ao mesmo tempo, para dar de beber aos rebanhos, como no caso
do Marajó, arquipélago paraense (ALMEIDA; SPRANDEL, 2002).
A situação da terra comum é bastante importante neste ponto. Loureiro (2004) tinha
ressaltado a importância do acesso a terra como fator determinante para que a reprodução das
populações ribeirinhas acontecesse nas bases descritas, principalmente até a década de 1950. A
existência da terra comum é, portanto, um elemento que permite a disponibilidade de recursos
73
naturais, de uma base territorial e o acesso aos ditos “recursos hídricos” (ALMEIDA; SPRANDEL,
2002)14
, o que teve desdobramentos econômicos, funcionais e sócio-culturais na região. Através
das formas tradicionais de apropriação dos recursos e da terra é que era possível haver
sobrevivência e continuidade daquelas práticas materiais.
A questão da apropriação do solo fora do mercado de terras permite, ainda, imprimir uma
perspectiva histórica à situação. Embora convivessem a grande, a média e a pequena propriedades
com as “vilas” de pescadores e suas casas, coexistiam também as formas de uso da terra e de
apropriação dos recursos de formas variadas (ALMEIDA; SPRANDEL, op. cit.) Da mesma maneira,
existiam concomitantemente a posse ancestral da terra e a propriedade juridicamente
regulamentada e amparada pelos títulos legais. Se esta coexistência não era idealmente
“harmônica”, denotava, por outro lado, um código prévio à excepcional valorização e cercamento
de terras que se sucedeu ao processo de integração da Amazônia ao resto do país e,
principalmente, à implantação da pecuária extensiva, à sua correspondente prática de controle do
latifúndio e à integração aos mercados consumidores. A situação eminentemente pré-capitalista da
existência da terra comum sugere, portanto, uma sociedade ainda em processo de modernização,
de racionalização dos processos sociais, ainda convertendo suas formas, suas representações e
práticas segundo a racionalidade instrumental moderna (WEBER, 2002), capitalista.
Fundamentalmente, ainda operando a conversão da natureza em instrumento (THOMAS, 1988) e,
modernamente, reproduzindo e naturalizando de volta esta operação. “Naturalizar” a propriedade
privada da terra e o controle racional do trabalho, aliás, faz parte do processo histórico de
formação do próprio sistema, e torna-se importante, a partir desta constatação, “desnaturalizar”15
esta figura, a partir, por exemplo, do recurso à própria História.
Não há exatamente uma relação de oposição entre as formas tradicionais e as formas
modernizadas, contemporâneas, de uso e apropriação destes territórios próximos à água. Há, na
verdade, conflitos. A questão destes conflitos torna-se complexa porque, fundamentalmente, as
formas territoriais contemporâneas16
da relação cidade-água reafirmam alguns aspectos da
relevância do território e da localização às proximidades dos cursos d´água. Por outro lado, as
14
Esta discussão, que será retomada adiante, aponta uma das principais contradições do ordenamento territorial e da política
ambiental diante das formas tradicionais de apropriação do ambiente e da economia; a articulação do acesso democrático (na
gestão de recursos hídricos fala-se em “usos múltiplos” da água) às diretrizes de racionalização (técnica) de uso.
15
Principalmente em MARX (1986). A instituição da propriedade privada da terra, com seus mecanismos de garantia, de fato
reconfigura as relações sociais, as justificativas de ação e as práticas materiais de produção e apropriação da natureza (HARVEY,
1996b).
16
Engenharia ambiental, waterfront, modernização portuária, gestão de recursos hídricos.
74
formas atualizadas de uso e apropriação destes espaços instauram condições novas de
utilização, de formalização e institucionalização das atividades, de esquadrinhamento e controle
(DELEUZE; GUATTARI, 1997b), e de modernização, portanto. Na verdade, o conflito e o ponto central
da problemática do território urbano às proximidades da água residem nestes dois aspectos; na
reafirmação dos diferenciais desta localização frente a novas dinâmicas sócio-territoriais e em seu
conflito com as realidades pré-existentes, tanto urbanas quanto rurais.
Ao estudar a questão da água na cidade, a partir de um ponto de vista específico, há
um conjunto limitado de fenômenos por abordar. Embora seja válido, e pertinente, resgatar e
produzir um abrangente contexto das representações da água, nos territórios em geral e na cidade
em particular, não é este o propósito central deste trabalho. Tentando uma aproximação com uma
possível “questão da água” na cidade, quando há tantas e diversas “questões da água” em
circulação, são abordados quatro fenômenos ora em curso no contexto do município de Belém,
capital do Estado do Pará, no Norte do Brasil. Estes quatro fenômenos representam formas
territoriais, isto é, expressões de estruturas materiais, fronteiras instituídas formal ou
informalmente, cultural e/ou politicamente, em torno de motivações de uso e apropriação da água
na cidade. Estas formas dizem respeito a tipos de conflito sócio-ambiental, em um sentido aberto,
no contexto da cidade em estudo, onde se crê existir potencial de alguma generalização.
Obviamente, estas quatro formas territoriais da cidade nas proximidades da água não encerram
totalmente o assunto, não sintetizam todas as possibilidades de uso e de aproveitamento dos
espaços urbanizados nas proximidades de cursos d´água. Por outro lado, estas formas
representam aspectos “funcionais” do aproveitamento destes espaços, e expressam suas lógicas
a partir de atividades sintéticas, depuradas, mais simples. Quando ocorre modificação em função
de processos de modernização, por exemplo, estas lógicas tendem a ser preservadas, isto é, as
propriedades de uma estrutura portuária tendem a ser as mesmas, mas ocorrem processos de
alteração de padrões, de escala e, eventualmente, de localização.
Para cada forma de abordar a água na cidade, seja através de seus canais de
drenagem ou dos cursos d´água navegáveis de uma zona portuária, por exemplo, corresponde
uma forma física de intervenção territorial. No caso em estudo, embora as relações entre cidade e
água não se esgotem nos exemplos da cidade de Belém-PA, há certa relevância em seus
fenômenos, pela estruturação antiga, secular, da cidade, e por sua quase permanente relação com
a hidrografia do território. Em termos espaciais, a cada uma das quatro formas territoriais de
abordagem da água na cidade pode se falar, também, em modos diferenciados de usar e apropriar
75
no espaço urbano este elemento da paisagem.
Nos parques culturais e ambientais, de apelo nitidamente estético, a água na cidade
teria uma lógica de objeto destinado à observação e à contemplação. Neste sentido, o uso da
água, por assim dizer, teria desdobramentos sócio-culturais e econômicos pelos diferenciais
paisagísticos da localização. Conforme apontado, há um uso diferenciado do litoral a partir da
invenção da praia no Ocidente, como local benéfico para o corpo e para o espírito (CORBIN, 1989).
As margens das águas, no caso, são abordadas como locais de refúgio do ambiente considerado
hostil das cidades em processo de industrialização na Europa do século XIX, por exemplo. Em
outros casos, o litoral é também avaliado como local de descanso, de revigoramento, de
tonificação muscular, de terapias variadas e de surgimento de uma espécie de novo modo de vida
(CORBIN, op. cit.), sobretudo urbano. O lazer litorâneo e as atividades de consumo que lhe são
correlatas passam a se desenvolver em paralelo.
Curiosamente, a abordagem da água nestes locais associa a prevalência da
contemplação e da observação com as imagens-síntese de populações locais, justamente aquelas
estigmatizadas com seus modos de vida “arcaicos” e rudes. A vila de pescadores, imagem
recorrente do passado rústico do litoral não processado pela chegada da estância turística e do
balneário, é consumida então pelo que nela pode existir de apelo estético palatável à nossa classe
consumidora. Assim, parte das elites urbanas que vai consumir sazonal e ludicamente o litoral se
dispõe a praticar modalidades adaptadas das atividades típicas do local; a pesca, por exemplo, ou
a navegação, os esportes do mar. Thomas (1988) inclusive havia assinalado fenômeno
semelhante ao apontar, entre os ingleses do século XVIII, o surgimento do hábito de se dirigir ao
campo para fabricar cerveja, cortar e empilhar lenha, e plantar. Aquela modalidade de “trabalho”,
recheada de valores de uso e de higiene mental e não tão impregnada de mais-valias ou de
racionalização do tempo de serviço e de sua produtividade, é sem dúvida um dado curioso da
mudança de sentido do ambiente. Do mesmo modo, o litoral (e as margens de rios, de lagos)
convertido em balneário é reinventado não apenas em sua paisagem, mas em suas formas de uso
e apropriação, quando o abordamos pelo viés da contemplação. Observar o litoral passa portanto a
ser diferencial paisagístico, o que redunda em rendas diferenciais e, eventualmente, de monopólio,
junto a certas atividades recentes e “praianas”. Do mesmo modo, a já secular reconhecida
propriedade terapêutica do mar e de seus ares, embora tenha mudado de concepção na Medicina,
se desdobra em diversas atividades econômicas, indo desde uma sempre renovada indústria de
cosméticos até produtos da indústria cultural, à produção de artefatos diversos e mesmo à
76
produção do ambiente construído, com os parcelamentos urbanísticos de beira de praia e a
relação com o lazer litorâneo. Como Sharon Zukin (2000) observaria contemporaneamente, nas
cidades e territórios reconfigurados pelo processo da chamada globalização as visualidades não
são apenas itens de fruição estética; sendo esteticamente consumíveis, o são também no sentido
visual, isto é, fazem parte da formação de uma demanda pelo consumo visual (ZUKIN, 2000) em
que se agregam setores da economia aos atributos associados à paisagem. Georg Simmel (1996),
ao tratar de sua filosofia da paisagem, não tinha em mente a alteração de significados do litoral.
Apesar disto, em sua formulação é possível observar o moderno conflito entre o indivíduo em
processo brutal de homogeneização e sua pulsão por individuação. Neste sentido, a “paisagem”
do autor ainda permite uma análise — a respeito de conteúdos individuais e de sua influência
sobre a observação, na relação entre parte e todo:
Enquanto daí (N. do autor; do conflito entre homogeneização e individuação)
resultam conflitos e rupturas sem número de ordem social e técnica, espiritual e
moral, este mesmo modelo, diante da natureza, produz a riqueza conciliante da
paisagem, entidade individual, homogênea, apaziguada em si, que não obstante
permanece tributária, sem contradição, do todo da natureza e da sua unidade.
Mas para que nasça a paisagem, é preciso inegavelmente que a pulsação da
vida, na percepção e no sentimento, seja arrancada à homogeneidade da
natureza e que o produto especial assim criado, depois de transferido para uma
camada inteiramente nova, se abra ainda, por assim dizer, à vida universal e
acolha o ilimitado nos seus limites sem falhas (SIMMEL, 1996, p. 17).
As paisagens, portanto, dependem da observação, que se apresenta como uma das
possíveis abordagens atuais da água na cidade, e que se revela com enormes desdobramentos
materiais. A água na cidade, entretanto, é abordada, ainda, de outras formas, criando reflexões
inclusive a respeito de usos tidos como mais “racionais” e “duros”, impregnados do caráter
moderno de eficiência e formalização. No porto, por exemplo, em sua forma de tratamento das
águas “técnicas”, a racionalidade de uso seria de produção de ligações entre o território (fronteiras
convencionadas, recortes espaciais tornados concretos pelo reconhecimento mútuo de um grupo,
sobre um substrato material específico, com historicidade) e os cursos d´água. Produz-se
conexão, isto é, relação entre estes terminais, nos dois sentidos. Além deste aspecto, o porto
produz, ainda, extensão, no avanço da terra sobre as águas, através dos aterros e das estruturas
suspensas, mas também através da própria lógica de mobilidade espacial colocada sobre suas
estruturas físicas. A forma específica de abordagem da água, no porto, é pois a da água como
fator de deslocamento, de produção de movimento. Isto difere, portanto, a lógica territorial do porto
das demais formas de uso da água na cidade — embora alguns de seus elementos, como a
77
extensão, possam ser identificados em atividades e estruturas físicas urbanas de outra natureza.
Na regulação técnica, política e mesmo jurídica da água na cidade, e em uma escala
territorial mais ampliada, a possibilidade de mapeamento, monitoramento e intervenção, ainda que
indiretamente, seria produzida por uma forma espacial de abordagem que visa ordenar os
fenômenos de forma abrangente e difusa. Pretende-se regular a apropriação das regiões de
influência dos cursos d´água, das margens destes e/ou das águas, propriamente.
Com a consolidação de processos racionalizados, abstratos e formalizados de
influência sobre as formas de uso e apropriação do território no contexto estudado, pode ser dito
que houve transformação e conflito sócio-ambiental. Nos territórios de interface entre a cidade e os
cursos d´água, por exemplo, tais conflitos decorrem, em grande parte, de efeitos deste processo
de racionalização e consolidação de um padrão moderno, efetivamente capitalista, e atualizado
institucionalmente, de política de ordenamento territorial. Deste modo, as formas territoriais da
observação, da conexão, da extensão, do deslocamento e da apropriação regulada seriam
identificáveis, de formas diferentes em termos históricos e concretos, em períodos distintos. Estas
formas estariam presentes, por exemplo, naquele espaço público de reuniões coletivas na cidade
tradicional ribeirinha amazônica (como em terreiros e praças), no complexo das estruturas
institucionais, religiosas, comerciais e de transportes. Do mesmo modo, estariam presentes no
parque cultural à beira da água, porém com outros propósitos, modificados.
Estas formas de uso e abordagem da água na cidade estariam, também,
representadas pelas estruturas de transporte e entreposto comercial das cidades de beira de rio da
região. Com o processo de modernização e a urbanização de maior escala, estas formas são
convertidas em artefatos de grande porte, objetos das ações de racionalização e formalização.
Entrepostos regionais materializados em praças comerciais, mercados e feiras, em suas funções e
atividades estruturais, têm prolongamento em portos modernos. Modificam-se, entretanto,
conteúdos relativos principalmente à escala, às seletividades e formas de veto ao território próximo
à água.
Prosseguindo, às soluções de tratamento ambiental da água na cidade, com funções
técnicas diversas e ligadas ao saneamento, sucede um fenômeno curioso de revisitação de
soluções tradicionais nas técnicas contemporâneas. Embora haja um conjunto de soluções
tradicionais de drenagem, por exemplo, qualificadas como obsoletas pela engenharia atual,
algumas medidas “vernaculares” são reconsideradas por este mesmo novo padrão, o que ao
mesmo tempo coloca a técnica anterior como item anacrônico, e a atual, como um diferencial
78
impregnado pelo paradigma ecológico do baixo impacto — embora ambos tenham, em certos
pontos, a mesma matriz.
Modos e formas diferentes de usar um elemento do ambiente na cidade como a água
produziriam, portanto, diversas soluções e estratégias espaciais. Avaliando a transformação de
margens de cursos d´água no caso deste trabalho, a cidade de Belém-PA e parte de seu entorno
micro-regional, pode-se notar estas diferenças, e seus conflitos em face de processos de
modernização e racionalização. Estes processos podem, como afirma Weber (1991), incorporar
tipos de poder generalizados e abrangentes, oriundos do Estado, mas também dizem respeito a
transformações recentes na economia e no espaço.
Transformações na estrutura produtiva regional, por exemplo, acompanhadas e
influenciadas por processos de mudanças nas políticas econômicas e de ordenamento territorial
teriam efeitos diferentes daqueles advindos da força estatal aplicada aos processos em curso no
espaço. De fato, a partir da mudança nas relações regionais no Brasil pós-ditadura militar de 1964,
a integração regional brasileira alterou as posições relativas da hierarquia entre regiões e da própria
rede urbana do país. Neste sentido, o processo de integração econômica e espacial sofrido pela
Região Norte foi acompanhado de uma reorientação nas políticas de Estado e de um novo contexto
econômico nos países do capitalismo avançado. A chamada reestruturação produtiva acarretou a
expansão de algumas atividades de infra-estrutura e dos capitais em geral (HARVEY, 2000), por
exemplo, e o esvaziamento das políticas de redução de desigualdades regionais através de
agências estatais de desenvolvimento. Neste contexto, várias políticas de desenvolvimento urbano
e regional se tornaram progressivamente mais conservadoras (HARVEY, 1996a), com retração de
investimentos em políticas sociais e de reversão de desigualdades em geral, independente de sua
orientação programática ou ideológica.
Por fim, a regulação pública e coletiva dos usos das águas, se não era praticada, nem
institucional e nem coletivamente, dizia respeito a determinado universo de códigos acerca do
ambiente ou, especificamente, das águas naquela região habitada. Assim é que os regimes de
marés, os locais de despejo de resíduos, de atracação de embarcações e rotas foram,
tradicionalmente, codificados e transmitidos pelos grupos que compartilhavam o recurso.
Atualmente, ficaria a cargo do Estado, ao menos em parte, a regulação de aspectos das atividades
de uso e apropriação das águas; a gestão das águas, assim, assumiria que uma racionalidade
transcendente, e de Estado (HARDT; NEGRI, 2004), tomaria o lugar dos processos compartilhados
regionalmente, e que, em menor escala, desempenhavam papel semelhante.
79
É possível, portanto, assinalar que os usos e as formas de apropriação (simbólica,
material) da água na cidade tenham sofrido modificações, em geral, a partir da consolidação de
certos fenômenos no âmbito das economias capitalistas. Para o caso em estudo, em suas
particularidades, a crescente formalização de um mercado de terras parece ser um fator
aglutinador desta modificação, e fator de reprodução histórica dos conflitos sociais dela
decorrentes. A partir de alguns tipos de abordagem da água na cidade podemos identificar
aspectos das lógicas de formação territorial destes espaços idiossincráticos (MORAES, 1999) e,
assim, raciocinar sobre sua problemática. A transformação das formas concretas pelas quais a
água tem sido abordada no território (em termos funcionais e materiais, sobretudo, mas não
exclusivamente) não elimina a permanência de suas lógicas internas, em grande parte.
Assim, a lógica da contemplação e da observação, presente no complexo de
atividades de caráter de espaço público, de reunião coletiva e de sociabilidades diversas, era
existente na cidade tradicional, inclusive amazônica, e persiste. Esta forma de abordar a água na
cidade, contudo, muda em sua expressão material, física e urbanística, e adquire novos sentidos,
até certo ponto. Na cidade tradicional, como em assentamentos de origem colonial brasileira, o
complexo formado pela praça, pela Casa de Câmara e Cadeia, pela Prefeitura, pelo Mercado, pelo
porto e pela feira configuraria ao mesmo tempo uma centralidade urbana (e regional) (REIS FILHO,
2004) e um espaço onde esta lógica de contemplação estaria presente. Ali estaria um conjunto de
atividades e funções que usaria a visualidade dos cursos d´água na cidade, além de denotar o
poder político no espaço urbano; haveria formas de se apropriar a água na cidade a partir da
observação, não só paisagística e da fruição estética, mas também das atividades de trabalho ali
desenvolvidas. Havia ali, nas proximidades da água, maior densidade de capital instalado, maior
volume de investimento imobilizado e camadas de trabalho investido. Para a época colonial, por
exemplo, é razoável deduzir que esta localização tivesse valor econômico de certo modo superior,
ao menos para alguns usos do solo. Em processo de modernização, contudo, a acepção mudaria.
Os usos de contemplação e observação da água na cidade, nos termos tratados neste
estudo, seriam ligados a uma economia de traços relativamente recentes, de aproveitamento das
visualidades, dos diferenciais paisagísticos, das margens das águas para a associação com estes
setores da economia. Em espaços remodelados e freqüentemente referentes aos usos antigos,
tradicionais, ocorre a apreciação passadista e o consumo imagético do que se divulga como o
modo de vida de época, ou as atividades próprias do local, sejam elas portuárias ou comerciais. A
paisagem renovada da água na cidade, enquanto local de consumo visual (Zukin, 2000), passa a
80
exibir uma divisão sutil, porém com efeitos claros, na cidade; uma cisão entre camadas de
maior e de menor poder econômico, e entre agentes capazes de mobilização social e
transformação territorial de acordo com usos e atividades. Persiste o propósito da contemplação,
mas mudam a sua acepção e suas formas territoriais específicas.
Quanto ao porto, nota-se que há tendência a produzir articulação entre o território
ocupado e os cursos d´água. Esta articulação pode ocorrer através de estruturas (em geral
construídas) de apoio à navegação e ao comércio; são utilizadas propriedades de viabilização dos
fluxos pela água e edificações ou infra-estruturas para a utilização de sua interface com as terras.
Esta conexão entre a cidade e o curso d´água, em geral, ocorria tradicionalmente nas áreas
centrais, pioneiras da ocupação urbana. Além da abordagem de conexão entre a cidade e as
águas, o porto também costuma produzir eventuais acréscimos, ganhos de terra sobre elas; são
exemplos disto os chamados terrenos acrescidos, figuras notórias no Brasil, por exemplo.
Processos de aterramento, ou de modificação no desenho das margens de cursos d´água, por
vias naturais ou artificiais, com aproveitamento, são freqüentes em áreas de atividade portuária,
mesmo antes da codificação técnica do porto moderno, que podemos datar de, pelo menos,
meados do século XIX, embora a carga em contêineres seja adotada já na década de 1960,
hegemonicamente (DOUMENGE, 1967). Haveria, portanto, uma tendência eventual à extensão de
terras sobre as águas, o que representa intenção de ampliar o terreno aproveitável para operação,
mas também de reconfigurar o substrato material das atividades, visando a constituição de novos
arranjos espaciais. Como no exemplo anterior, persiste o uso; modificam-se, contudo, as
estruturas físicas e, freqüentemente, suas localizações e populações diretamente envolvidas. O
porto contemporâneo, por exemplo, difere do porto urbano central, e já secular, por ter caráter
relativamente desconectado da dinâmica intra-urbana, e por ser um nó de uma rede logística,
claramente definido, racionalizado e projetado de modo a compor um complexo econômico de
alcance regional. Os efeitos de aglomeração dele resultantes ocorrem, nos núcleos urbanos, por
outros mecanismos que não aqueles de “proximidade” que podiam ser notados no complexo
feira/porto/mercado, por exemplo. Há uma relação entre as “funções” e atributos da relação cidade
e água do porto com outras atividades desta relação, para finalizar o tema: há, obviamente,
aproveitamento da água na cidade para fins de transportes nas atividades portuárias. A
possibilidade de escoamento, de deslocamento, por propriedades físicas (e físico-químicas) da
água, seria assim compartilhada entre portos e estruturas de saneamento na cidade.
Neste aspecto, pode ser considerado que houve, historicamente, formas e tecnologias
81
tradicionais e mesmo soluções empíricas para drenar as águas da cidade, fazer escoar os
dejetos, deslocar populações e artefatos. Estas formas, principalmente nos dois primeiros casos
citados, abordam a água na cidade em termos de suas propriedades de deslocamento, de
movimento. A água, então, era um elemento tomado como substância, com propriedades físicas e
físico-químicas, e mesmo estritamente químicas, e oscilava entre o caráter sujo, portanto interdito,
e o potencial de limpeza dos corpos (SWYNGEDOUW, 2001), das edificações, dos artefatos em geral.
Corbin (1989) cita, inclusive, o caráter interdito da água em sociedades ocidentais modernas
quanto relembra o litoral enquanto receptáculo de dejetos, como local sombrio do desconhecido,
da escuridão, do rejeito e das atividades menos nobres. Nas profundezas do mar, argumenta o
autor (CORBIN, 1989), estariam elementos e criaturas de que não se sabia propriamente e também
uma espécie de ambiente esquecido, relegado. Por outro lado, a água “já” limpava, era
reconhecido. É no controle da água na cidade, ou na sociedade capitalista moderna (SWYNGEDOUW,
op. cit.), que reside o cerne desta transformação. Na implantação de soluções de maior porte,
coletivizadas, tributárias das antigas soluções de engenharia de origem romana e genericamente
“árabe” foram racionalizados fluxos da água na cidade (Idem, op. cit.) Esta racionalização leva a
certo grau de controle de acesso e, economicamente, na cidade contemporânea, condiciona
fortemente a capacidade de se fazer valer a aplicação da água como fator de produção, ou de
operacionalizar estruturas urbanas enquanto unidades produtivas. Castells (2001), por exemplo,
argumenta a este respeito que as atividades urbanas, há tempos, são produtivas e ao mesmo
tempo, consumidoras, em sua transposição da crítica da economia política; assim, o potencial
produtivo das estruturas urbanas estaria condicionado ao acesso a estas tecnologias, inclusive por
razões de escala e redução de fricções no deslocamento (CASTELLS, op. cit.)
Outra abordagem de interesse deste mesmo ponto seria a da revisão de parâmetros
tradicionais das soluções de saneamento e contenção das águas no território. A partir do estudo de
Ian McHarg (1971) são identificadas lógicas, princípios elementares, o que parece ter norteado a
criação de procedimentos antigos para se construir diques, comportas, proteções de costas
marítimas e fluviais, edificações em áreas de duna, aproveitamento de margens de rios. Um
elemento básico seria o de evitar ao máximo o conflito entre dinâmicas ecológicas ou físico-
ambientais verificadas e soluções espaciais produzidas (MCHARG, op. cit.) O autor reconhece que
este processo nem sempre é possível, mas, à moda dos paisagistas japoneses e das
“engenharias” de águas portuárias holandesas, investiga e compila soluções técnicas de trabalho
junto à interface entre a terra ocupada e as águas. Deste modo, por exemplo, são pensadas formas
82
de debelar a energia cinética e o impacto físico de correntes de água sobre margens fluviais;
com a construção de diques parciais e escalonados, afastados convenientemente, são criadas
zonas de relativa dissipação de energia, com hierarquias de estruturas de contenção (Idem, op.
cit.) Embora trate-se de “muros”, nenhuma delas pretende conter totalmente as águas, e sim
direcionar correntes, reduzir o impacto, reduzir erosões, dissipar e aproveitar a própria dinâmica
natural instalada (Idem, ibidem). Este é apenas um exemplo. Nas soluções tradicionais, em parte
pelo uso de tecnologias rudimentares, ainda pouco invasivas, e em parte pela aplicação de
técnicas baseadas na observação de longa duração, este princípio costuma ser visto. Assim, a
abordagem contemporânea do deslocamento das águas relembra princípios de técnicas antigas e
lhes confere outras aplicações. No caso, há associação entre contemplação e deslocamento; ao
caráter saneador das águas reurbanizadas é associada certa propriedade paisagística. Por outro
lado, estas novas soluções são praticadas de modo ainda parcial, não extensivo. Curiosamente, a
inteligência técnica e tradicional das soluções da água como deslocamento, valorizadas do ponto
de vista do saneamento ambiental, são oriundas dos mesmos grupos aos quais se associava o
caráter periférico, arcaico, sujo e interdito do litoral: pescadores, artífices, operários.
Há nas abordagens verificadas da água na cidade tipos de atividades praticadas pela
apropriação das águas. Neste campo estão situadas, basicamente, atividades que dependem de
captação, de consumo direto, de incorporação em processos produtivos (resfriamento, irrigação,
lavagem, fluidificação, equilíbrio mecânico, etc.) Estas atividades, embora pareçam ter caráter
eminentemente técnico, têm também notáveis desdobramentos econômicos, o que lhes confere
excepcional capacidade de acentuar aqueles conflitos de natureza sócio-ambiental dos territórios
próximos aos cursos d´água. A lógica de apropriação da água é, como sabemos, milenar, e existe
em qualquer assentamento humano, com grandes diferenças, obviamente. A questão é de
estratégia, e de efeitos sociais. Na forma tradicional da terra livre, de acesso relativamente informal
(LOUREIRO, 2004), como no caso amazônico pré-década de 1950, o acesso a terras (que são
diferenciadas; terras com acesso a água) para fins de apropriação da água era feito de uma forma
particular. Este momento histórico assinala uma etapa ainda pré-capitalista de produção, em que
um dos potenciais de conflito se dá justamente no controle da terra enquanto meio de produção
(MARX, 1986), dotado de valores de uso e de troca. É mantida a lógica de apropriação direta e
aplicação em processos, mas estes mudam. Com a aplicação de procedimentos de modernização,
dentre os quais a chegada do mercado de terras mais consolidado e da administração pública com
políticas de ordenamento territorial, o caráter de controle de acesso tende a se acentuar. Do
83
mesmo modo, tendem à acentuação as dinâmicas de veto. A apropriação, que continua válida
enquanto lógica interna da relação entre cidade e água, passa a ser regulada por instituições ou por
acordos; o mercado do solo urbano, suas garantias, ou as políticas de ordenamento territorial e
meio ambiente contemporâneas.
Efeitos destes processos de modificação sobre os quatro fenômenos apresentados,
vistos como formas territoriais de relações entre urbanização, cidade e água, representam,
portanto, inflexões. A partir das modificações nas formas de abordar a água na cidade, por
observação, conexão, extensão, deslocamento ou apropriação, são criados tipos relativamente
recentes de conflito. Estes atributos, que não são estritamente funcionais, das formas territoriais de
uso e apropriação da água na cidade, podem ser trabalhados em sua especificidade regional, de
modo a entender sua manifestação no caso em estudo e para o entendimento da natureza do
conflito sócio-ambiental e político que podem, eventualmente, representar.
Para entender o conteúdo das formas territoriais citadas, neste ponto, é necessário
abordar os fenômenos concretos de produção do território nos tópicos de interesse a este estudo.
No caso em análise, a cidade de Belém-PA e sua região de entorno, há uma série de iniciativas, de
intervenções e políticas de rebatimento territorial e ambiental que evidencia a relação e os
potenciais e situações efetivas de conflito por uso e apropriação da água na cidade. Estas formas
de conflito decorrem, como pode ser visto, daquelas formas, dos atributos das estruturas de
acesso à água na cidade. Por outro lado, as formas exibem lógicas e, ao mesmo tempo,
abordagens da água no território urbanizado. Seus potenciais de conflito, e suas assimetrias de
apropriação de diferenciais locacionais, podem ser pensados à luz dos casos concretos da cidade
de Belém-PA, onde convergem intervenções em vários campos da relação entre cidade e água.
84
3. BELÉM-PA E O ESTUÁRIO GUAJARINO: CIDADE E ÁGUA
Belém-PA é um município do Norte do Brasil cuja fundação do núcleo urbano povoado
data de 1616 (CRUZ, 1973). A lógica de fundação da cidade, no que diz respeito ao seu sítio físico,
estaria relacionada ao projeto colonial de defesa da Coroa Portuguesa. A historiografia da
urbanização brasileira costuma associar núcleos urbanos como o de Belém à categoria de
“cidades de afirmação de posse e defesa da costa e cidades do litoral em geral” (SANTOS, 2001,
p. 81, grifo do autor). Criadas com base em ações de defesa militar, funções administrativas e
atividade comercial restrita, cidades deste tipo apresentariam, na definição de suas localizações, o
princípio essencial de sua implantação. Elas não seriam, necessariamente, destinadas à
urbanização mais extensiva, ou ao desenvolvimento de um porte significativo, em seus anos
iniciais (SANTOS, op. cit.); a posição estratégica que ocupam são fatores predominantes. O caso de
Belém-PA se insere nesta categoria, portanto. A cidade apresentava, em seu sítio físico original,
uma rede hidrográfica que permaneceria como item relevante da paisagem, como condicionante de
intervenções e como direcionador dos vetores de expansão (e das áreas de retração) de seu
processo de ocupação territorial (Idem, op. cit.)
De fato, os motivos da fundação da cidade de Belém-PA podem ser considerados
historicamente relevantes para a ocupação do território na bacia amazônica (MOREIRA, 1989). A
estruturação urbanística da cidade, desde o seu princípio, teve nos elementos hídricos de sua
paisagem condicionantes significativos, tanto de sua morfologia quanto das atividades econômicas
e funcionais desempenhadas no território que se formava (MOREIRA, op. cit.)
Belém-PA também se consolidou, durante seus primeiros dois séculos, como entreposto
comercial. A posição geográfica do núcleo urbano era, de certo modo, favorável; ao mesmo tempo
protegida da movimentação do mar aberto e posicionada em zona de características estuarinas17
,
de correntes mais estáveis e, portanto, de navegabilidade razoável (PENTEADO, 1973). Belém-PA
tornara-se ponto importante de rotas comerciais da região amazônica, ligada a uma complexa e
extensa rede de trocas, de deslocamentos pela água feitos por tipos variados de embarcações e
com transporte de itens também diversificados (MOREIRA, op. cit.) Os itens transportados e
17
O autor discute o enquadramento da cidade; questiona sua classificação em região de estuário, segundo critérios adotados à
época. Este ponto, no entanto, nos serve apenas para reforçar a característica da possibilidade de acesso por via fluvial à
cidade e seus desdobramentos.
85
comercializados, inclusive, acompanharam a cesta dos produtos regionais que compuseram os
ciclos econômicos regionais; as chamadas drogas do sertão, a castanha, a pimenta, a madeira, a
borracha, entre outros (Idem, op. cit.)
A presença da água na paisagem da cidade de Belém-PA apontou também uma espécie
de geografia urbana marcada por paróquias religiosas, edifícios de função administrativa e militar,
portos, feiras e mercados, e fortificações. Todas estas estruturas urbanas estiveram situadas em
pontos da cidade hoje pertencentes a seu Centro Histórico ou a suas imediações, numa extensão
de aproximadamente 4,2 quilômetros, entre seus atuais bairros da Cidade Velha, Campina e
Reduto. Além do Forte do Presépio, que marca a ocupação territorial da fundação da cidade (CRUZ,
1973), outras fortificações de menor porte chegaram a ser instaladas em suas parcelas antigas
(MOREIRA, 1989). Havia, portanto, certa presença política e de aproveitamento econômico nas
margens fluviais do território.
Outros pontos de aproveitamento de diferenciais locacionais e usos potenciais da água
no território podem ser encontrados na história da cidade. Há, portanto, relação entre a presença
de cursos d´água no território da cidade de Belém-PA e sua urbanização, bem como entre os
cursos d´água e as formas de uso e apropriação do território na escala regional. Nos termos de
Moraes (1999), a beira do mar, não sendo um “lugar comum”, revela-se como expressivo
condicionante de relações, de formas de ocupação territorial, de usos e da economia. O espaço
em questão, não sendo propriamente litorâneo, é incluído pelo planejamento ambiental brasileiro e
pela classificação geográfica como zona costeira (MORAES, op. cit.), pelas práticas que contém e
pelas formas que incorporou ao longo do tempo.
3.1. O PIRI
Uma referência inicial desta relação entre cidade e água em Belém é dada pelo caso do
chamado Alagadiço (ou pântano) do Piri18
. Sua área alagada representava, segundo relatos, uma
espécie de divisor do parcelamento da cidade (CRUZ, 1973; PENTEADO, 1968). Este elemento hídrico
definiria bairros, relativamente separados pelo pântano, chamados da Cidade e da Campina, o que
diria respeito à primeira configuração da mancha de ocupação da cidade (PENTEADO, 1968). Alguns
dos seus próprios vetores de expansão urbana, em direção à futura área comercial (a “Campina”),
foram desenhados em função do traçado do pântano e de seus cursos d´água; lidava-se com a
18
Penteado (1968) cita a denominação antiga do alagado; o nome Piry de Juçara significaria, em Tupi, “perto da juçara”, isto
é, da palmeira do açaí, comum nas áreas de várzea da região e, portanto, no alagado.
86
água na paisagem como elemento a transpor ou a aproveitar em seus possíveis benefícios. O
curso d´água era, portanto, um condicionante objetivo, a ser incorporado ao desenho da cidade,
nos termos da época.
O Piri, inclusive, fora objeto de proposta de intervenção saneadora e de arruamento e
parcelamento do solo; trata-se da localmente célebre proposta de “veneziamento” de canais do
Major Gaspar Gronsfeld19
, um engenheiro militar que fazia parte da comissão demarcadora de
limites do período pombalino, e que teve a incumbência de mapear o território da Amazônia
portuguesa (em um momento histórico em que a região não possuía este nome, inclusive). A partir
das plantas de Gronsfeld são notadas as diferenças entre a proposta de intervenção (com redução
das áreas ensecadas e aterradas, e consolidação dos cursos d´água existentes) e a realização
física na cidade (com ensecamento, de fato, de cursos d´água e sua canalização) (PENTEADO,
1968; 1973). Belém-PA, em sua primeira grande obra de “infra-estrutura”, foi saneada por
métodos que hoje seriam chamados de convencionais.
Isto, aliás, suscita debates atuais em torno de como Belém-PA “deveria” ou “poderia”
ser, à luz de padrões atuais de tecnologias ambientais, embelezamento urbano e atratividade de
capitais. O recente “desejo de litoral” (CORBIN, 1989) das elites locais se reflete nestas aspirações,
referentes a uma cidade reconfigurada para os novos usos da economia da cultura e para reverter
seu padrão já histórico de estagnação econômica. Um Pântano do Piri redivivo é então discutido,
inclusive em meios intelectuais, como “possibilidade” retroativa da reconfiguração urbanística e
paisagística de Belém-PA.
O processo de ensecamento do Alagadiço do Piri, para o estudo da formação urbanística
da cidade de Belém-PA, é considerado uma espécie de marco. Aterrar e drenar a área pantanosa
seria um tipo de intervenção capaz de garantir condições para a ampliação do núcleo urbano
ocupado, e seria uma medida de integração entre paróquias urbanas (estruturas de poder, do
mesmo modo que as militares, de certa forma), além de representar a articulação espacial entre
parcelas da cidade.
Nos termos de Antônio Ladislau Monteiro Baena (2004), a questão do tratamento do Piri
também é representativa, o que o revela como um elemento hídrico muito presente na
historiografia e na paisagem histórica da cidade de Belém no século dezoito:
[...] em 1771 o Major Engenheiro Gaspar João Gerardo Gronfelts deu ao
19
O nome do alemão, engenheiro militar membro da Comissão Demarcadora de Limites à época, é grafado como “Gronsfeld”
ou “Gronfelts”, dependendo da fonte consultada.
87
Governador Fernando da Costa Ataíde Teive um plano bem inferido da sua
localidade : ele ajuizou que em vez de empregar trabalhos hidráulicos para obter
a exsicação desta lezira20
era melhor ir com a indicação da natureza, e
aperfeiçoar a sua obra, fazendo um lagamar, que as águas da fundação do rio e
as ascendentes no fluxo do mar naturalmente ocupassem. Para este lagamar ele
dava três entradas [...] O perímetro do lagamar, e as entradas para ele deviam
ser um cais de pedra todo cingido de uma ala de árvores fecundas intermeadas
de árvores de ornato. Para se fazer efetiva a possibilidade deste plano ele
lembrou que a despesa se fizesse pelo público obrigando os moradores a
pagarem (sic) tanto por cada reino das suas canoas [...] Este tributo deveria
durar até cerrar o pagamento da despesa total; acrescentando o dito engenheiro
alemão que esta obra se executar ele assegura que a cidade de Belém do Pará
ficará sendo mais bela que a adriática Veneza tão celebrada (BAENA, 2004, p.
201).
Há duas imagens importantes nesta narrativa. A primeira é uma concepção
“compreensiva” diante do ambiente da cidade. Nota-se que a intervenção sugerida pelo engenheiro
militar pretendia preservar em parte, digamos, a dinâmica hidrológica existente, segundo o relato
de Baena (op. cit.) A manutenção da navegabilidade dos cursos d´água ligados ao Alagadiço do
Piri, e a própria citação do “lagamar” — que, em comparação grosseira, seria uma espécie de
ancestral de atuais tanques de acumulação das redes de macrodrenagem, associado à navegação
— evidenciam esta postura. Obviamente não se trata de concepções onde caiba comparação
direta com obras de engenharia atuais. Não podemos comparar as mentalidades, as concepções e
tampouco os conflitos e disputas de poder envolvidos nas formações territoriais de então com
aquelas da atualidade. Não é este o objetivo. Por outro lado, a presença desta polarização, à época,
evidencia a dualidade antiga entre intervenções de maior impacto sobre as condições pré-
existentes e aquelas que pretendem criar outro regime, com alterações mais radicais e,
freqüentemente, modernizadoras.
Em termos urbanísticos, de certo modo, poderíamos identificar as primeiras formas como
culturalistas e as segundas como progressistas, na classificação proposta por Françoise Choay
(1997). Embora o caso em questão não seja propriamente o de uma oposição entre concepções
européias de planejamento e projeto urbano, podemos associar as formas de intervenção que se
pretendem “contextualizadas”, historicamente, e aquelas que pretendem instaurar novos regimes,
20
Isto é, para obter a drenagem daquela planície de inundação. Curiosamente, esta transcrição aparece repleta de
possibilidades de análise presente: a idéia do lagamar, área de cota mais baixa tornada facilmente navegável ou com função de
acumulação das águas, remete a soluções técnicas atuais dos tanques de acumulação e contenção. Por outro lado, a própria
concepção “compreensiva” diante da dinâmica hidrológica do sítio é, sem dúvida, diferente da concepção modernizadora, de
intervenção e racionalização dos fluxos da água no território, marca de projetos de saneamento efetivamente implantados na
cidade.
88
ao fato. Haveria intervenções sobre o território (inclusive na escala da cidade) que se pretendem
alterações mais radicais nas configurações urbanas e, por conseguinte, nas relações com elas
estabelecidas; há, no outro extremo, formas de intervenção que se pretendem de menor impacto,
mais respeitosas e observadoras da herança material e cultural prévia, isto é, das condições e do
contexto em que se inserem. A aparente proposta de um tipo de intervenção de ensecamento
(como se dizia à época) do Alagadiço do Piri, concretizada na cidade, em paralelo a outra, de
manutenção do regime de marés em sua área, não executada, assinala a coexistência destes tipos
diferentes de concepção. Acerca do caso de Belém, esta coexistência entre concepções mais
“compreensivas” e outras mais modernizadoras nos leva a um outro aspecto.
Uma segunda imagem, portanto, diria respeito às formas como a questão do Alagadiço
do Piri fora apropriada, contemporaneamente, e qual a sua relação com textos de relevante caráter
histórico como o de Baena (2004). Lê-se na transcrição uma espécie de comparação, bastante
curiosa; a associação entre a beleza da paisagem urbana advinda da intervenção “compreensiva”
sobre o Piri e os atributos visuais de Veneza. Arquétipo de paisagem urbana de notável apelo
visual, próxima do que os urbanistas do século dezenove, como Camillo Sitte, chamavam de
“pinturesca”21
(SITTE, 1992), Veneza é acionada como referência de beleza, plasticidade, no
território da cidade para relacionar a referência ao ambiente (à água, a seu tratamento, à formação
de canais urbanos) com o incremento estético decorrente da reforma do espaço urbano. A
visualidade da cidade, o desempenho perceptivo, cinestésico e o juízo estético decorrentes da
experiência urbana, seriam prerrogativas da intervenção. Daí, portanto, a idéia, subsumida como
vantajosa para o desenvolvimento urbano de Belém-PA, de reconfigurar suas águas de modo a
“veneziar” seu centro. A cidade, feita também de referências visuais e associações afetivas com
tais referências (ARGAN, 1998), teria portanto em sua estética uma forma de qualificação de sua
materialidade, de suas estruturas físicas. A questão, antiga, do tratamento das áreas alagadas do
Piri, em Belém-PA, portanto, suscita apreciações contemporâneas:
Em 1777 [...] a familiaridade com a cidade permitiria a Gronsfeld realizar a sua
grande obra: a elaboração de um ousado plano urbanístico destinado a
solucionar o grave problema dos terrenos alagados, os quais [...] atormentavam
os belemenses desde a fundação da cidade [...]
Durante séculos a História das Construções de Belém seria afetada pelo alagado
— chamado de Piry — pois a presença dele na área central forçaria a expansão
da cidade na direção dos terrenos de cotas mais elevadas, considerados nobres
21
Isto é, esteticamente agradável, mas com particularidades formais, idiossincráticas; o tradutor criou o termo para designar a
associação entre o plano pictórico das artes plásticas e a idéia de peculiaridade de sítios urbanos antigos (SITTE, 1992).
89
e, por isto, caros. A imensa faixa de população de baixa renda, sem
possibilidade de acesso a estes terrenos, haveria de permanecer por longo
tempo confinada em áreas de constantes inundações, maus cheiros e
proliferação de doenças (COIMBRA, 2003, p. 89-90).
Hoje este raciocínio seria aplicável a fenômenos semelhantes, de forma curiosa. A idéia
de uma “revitalização” do centro histórico e da orla fluvial de Belém-PA freqüentemente aciona
imagens como a proposta de “veneziamento” de Gronsfeld para conjecturar acerca de formas
possíveis de transformação da paisagem urbana da cidade. Em uma espécie de passadismo que
transpõe a lógica competitiva da cidade estratégica atual para o século dezoito, atualmente
circulam versões diversas22
da especulação sobre as vantagens de se ter enfim adotado a
concepção de Gronsfeld para o Piri e, conseqüentemente, para a cidade como um todo:
Belém, a Veneza do esgoto a céu aberto
No começo eram rios e igarapés. Depois vieram os aterros e o concreto
interrompendo ou desviando seus percursos. E então surgiram os canais. São
68 que cortam Belém de ponta a ponta. Agrupados em sete bacias hidrográficas,
os canais ocupam hoje o local onde antes era possível nadar e pescar. Ainda é
possível, porém não aconselhável, dar um mergulho nos canais da cidade. E de
lá, o máximo que se pesca são bicicletas velhas, pneus e todo tipo de objeto que
se possa imaginar. [...] foram retirados 196 milhões de quilos de lixo dos canais
da cidade. [...]
'Não dá para dizer que ainda tenha rio ou igarapé que corte Belém. Infelizmente,
tudo virou canal. Mesmo os que tiveram o traçado natural, agora recebem
resíduos de esgotos e fossas domésticas. O entorno dos igarapés também já
não é característico. Casas, prédios e indústrias ocuparam desordenadamente o
local e acabaram poluindo as águas e as margens dos igarapés' [...] (O LIBERAL,
06 jul. 2009, p. 1. Grifo dos autores).
[...] engenheiro Gaspar João Gronsfeld também contribuiu com sugestões sobre
o melhoramento do espaço urbano, o que é uma exceção, pois a regra geral
ainda é nesse período as construções prediais [...] Gronsfeld propôs um plano
urbanístico que solucionaria tecnicamente os problemas das baixadas de Belém,
pois ainda no século XVIII permaneciam os problemas do alago do Piri, o que
forçava a expansão da cidade na direção dos terrenos mais elevados e mais
caros. A maioria da população de baixa renda residia nas áreas de “constantes
inundações, maus cheiros e proliferação de doenças” (MORAIS, s/d, p. 2).
(N. do autor: texto jornalístico que se refere à fase de produção artística do
arquiteto bolonhês Antonio Giuseppe Landi, que viveu em Belém no século
dezoito) [...] criou desde o traçado de ruas, praças, à arquitetura de residências,
22
No geral as fontes citadas neste comentário são minoritariamente “científicas”, como se pode notar. Metodologicamente
este recurso se justifica; há referências que, por carregarem as pré-noções e principalmente as intenções dos autores sobre os
fatos, lhes acrescentam elementos que, longe de “distorcê-los”, permitem sua análise (LE GOFF, 1994). Os documentos,
portanto, são produzidos em condições históricas e políticas específicas. Neste sentido, fontes de pesquisa que emitem
opiniões e juízos, como a imprensa, são particularmente úteis.
90
quartéis, armazéns etc - o projeto de Gerardo (sic) de Gronsfeld para as áreas
alagadas de Belém que transformariam a cidade numa “Nova Veneza” [...] (O
LIBERAL, 2003).
Sobre o próprio Gronsfeld, Coimbra (2003) cita que a não execução do projeto de
“veneziamento” pode ter sido devida ao alto custo da intervenção. Executou-se, portanto, a
drenagem, o aterramento e a cobertura da área alagável, o que talvez nos dias de hoje fosse
apontado como uma espécie de “solução convencional”. Por outro lado, a possibilidade de existir
em “Belém, a ‘Nova Veneza’” (COIMBRA, op. cit., p. 92), através da concepção do “[...] engenheiro-
militar que queria transformar Belém [...]” (Idem, op. cit., p. 93), evidentemente, como visto nos
exemplos transcritos, suscita imagens interessantes sobre uma espécie de construção alternativa
da cidade. Esta construção pensa a cidade de Belém-PA “recuada” no tempo histórico e a imagina
construída com uma paisagem que não é apenas avaliada como esteticamente mais interessante,
mas como apropriada aos tempos atuais, em termos sanitários e, inclusive, paisagísticos. A
questão do Piri, além da relevância histórica para entender a relação entre urbanização e presença
da água na paisagem de Belém-PA, seria uma referência primária desta relação. É, portanto,
acionada como um dado emblemático, como se fosse um momento em que a cidade poderia ter
sido definida já com a incorporação da água em sua paisagem23
.
23
“Paisagem” que é, conforme Cauquelin (2007), uma construção, onde há mecanismos de seleção sobre o que deve surgir
no plano pictórico, e sobre qual tipo de “natureza” consta, “de fato”, na “realidade” da paisagem; quais águas, qual vegetação,
atividade, pessoas.
91
Ilustração 8 Fac-símile de planta (Planta da Cidade do Pará, que atualmente é a cidade de Belém) do Major Gaspar João Geraldo Gronsfeld (1771). Notar a delimitação do Pântano do
Piri a leste da cidade; na figura, acima da ocupação de suas quadras. Fonte: Gronsfeld (1771).
92
Ilustração 9 Fac-símile da planta do Major Gaspar João Geraldo Gronsfeld (1780). O Alagadiço do Piri, divisor inicial do parcelamento da cidade, definia um canal de drenagem às
proximidades da atual Doca do Ver-O-Peso (próxima, portanto, do local de fundação do aglomerado urbano pioneiro) e outra na vizinhança do antigo Convento de São Boaventura,
atual Canal da Avenida Almirante Tamandaré, nos limites de seu Centro Histórico (BELÉM, 1994) instituído por lei municipal na década de 1990. Fonte: Gronsfeld (1780).
93
3.2. ASPECTOS DA FORMAÇÃO DO PORTO DE BELÉM
Outro elemento relevante do território de Belém-PA em relação às “águas” é o espaço de
atividades portuárias. A cidade de Belém-PA tem relação histórica, secular, com a navegação, com
as trocas comerciais e com as estratégias de defesa pelo litoral ou pelo estuário. Deste modo,
locais que podemos denominar genericamente por “portos” são relevantes para o entendimento da
formação da cidade e de uma questão da água no território urbano, a partir do caso amazônico.
Estes “portos”, todavia, nem sempre tiveram a estrutura física ou o controle administrativo
característicos dos portos contemporâneos, ou das estruturas portuárias que são conhecidas
desde a segunda metade do século XIX. Há, entretanto, atividade portuária secular em Belém-PA,
com articulações importantes com outros núcleos urbanos, povoamentos, aldeamentos e bases
militares da região, em complexas e variadas relações entre cidades (CORRÊA, 1987).
A respeito da formação de uma zona portuária na cidade, Penteado (1973) aponta que,
historicamente, a primeira estrutura (ou localização, já que não havia propriamente uma estrutura
física de porte) de uso portuário mais sistemático na cidade, após a colonização do território pelos
portugueses e a fundação da cidade de Belém, situava-se nas proximidades do atual Forte do
Presépio (ou Forte do Castelo), no seu primeiro bairro, o da Cidade (atual bairro da Cidade Velha).
Esta localização, na região mais central da cidade, fora, durante todos os séculos de sua
existência, ponto relevante para o mapeamento de seus fluxos econômicos. Pela situação do
assentamento inicial da cidade de Belém é possível deduzir as várias atribuições da cidade: base
militar, ponto de comando da colonização e identificação dos itens do território a ocupar, posto
administrativo, praça de comércio.
O porto, entretanto, não figurava historicamente entre os mais dinâmicos do país. Sobre a
movimentação portuária, Baena (2004) aponta que no século dezoito (um século depois da
instalação e uso portuários iniciais, portanto) havia poucos navios fazendo a rota Lisboa-Pará.
Seriam três embarcações ao todo nas primeiras décadas do século, e em 1733 houve
movimentação maior, de sete embarcações, enquanto algumas dezenas faziam rota semelhante,
ainda no final do século dezessete, entre a Bahia e Portugal (Idem, op. cit.) A disputa entre
militares e o clero pela região e sua estagnação econômica, relativamente a outros locais da
Colônia, assinalavam elementos curiosos da ocupação territorial na Amazônia e acerca do
aproveitamento econômico de seu ambiente, digamos.
A precariedade da estrutura física das áreas de tráfego de embarcações da cidade (de seu
94
porto, à época), entretanto, era contemporânea da intensa dinâmica de troca estabelecida entre
Belém, seu entorno e outras localidades, inclusive de fora do país, de acordo com dados de finais
do século XIX (PENTEADO, 1973). Não havia, entre os séculos dezessete e dezenove, porto
tecnicamente qualificado; houve uma série de estruturas físicas e uma faixa de terra de cerca de 4
Km que atendia a estas funções, entretanto. O tráfego mais reduzido de embarcações de maior
porte, portanto, era devido a esta carência infra-estrutural. Por outro lado, a movimentação
comercial do “porto” de Belém, ou de seus portos variados, era notória, e se fazia em diversos
pontos do território. Belém, seria, portanto, entre os séculos XVIII e XIX, uma cidade de claros
traços comerciais em suas margens fluviais, e representava a troca de produtos como o cacau, o
café, o algodão, o cravo, a copaíba, a goma e a tapioca, o urucu, o melaço, a castanha e as
madeiras (PENTEADO, op. cit.)
Nesta cidade comercial e portuária (embora “informalmente”, como convinha ao período
e ao contexto) a figura do “Regatão” era notável; espécie de mascate fluvial, que vendia a retalho,
no varejo, ou no atacado, produtos diversos, em um fluxo que abrigava os itens do extrativismo e
da caça e pesca na entrada do hinterland e, no retorno ao porto urbano, recebia itens
manufaturados ou industrializados, dependendo da época histórica. Como outras figuras
emblemáticas da movimentação portuária, o Regatão (nome dado tanto aos barcos quanto aos
próprios grupos de comerciantes, de certo modo) oscilava entre o maldito e o bem-visto, entre um
tom de marginalidade e a apreciação simpática do comerciante que traz a novidade ou os itens da
roça, da mata e do artesanato (PENTEADO, op. cit.) Lugar semelhante seria ocupado, muitos anos
mais tarde, pela curiosa, variada e inespecífica síntese do “ribeirinho”...
Penteado (1973) cita a embocadura do Piri, às margens da Baía do Guajará, praticamente
no limite com o Rio Guamá e com a atual Doca do Ver-O-Peso, como um primeiro porto comercial
e entreposto emblemático e pujante da cidade, em termos relativos. Aquela localização, pelo
menos desde a década de 40 do século dezoito, era entreposto de pescado e frutas, de produtos
manufaturados (PENTEADO, op. cit.), vendidos nas margens do rio e articulados a uma extensa e
capilarizada rede de produtores, comerciantes, transportadores. Outras docas existiam, embora
historicamente menos dinâmicas. Citada como ponto comercialmente relevante no século XIX, a
Doca do Reduto era uma delas. A Doca do Reduto era situada em ponto atualmente pertencente à
95
zona portuária de Belém, fora reformada em meados daquele mesmo século24
, para depois ser
fechada quando da construção do Porto de Belém já no começo dos anos 1900 (Idem, op. cit.)
Ilustração 10 A Doca do Reduto; em imagem famosa localmente, um dos pontos de entreposto de pescado, frutas e
outros artigos, situado em área central da cidade. Fonte: COSANPA (2009).
Em diversos aspectos é possível identificar relações entre o perfil da economia regional,
ou as atribuições funcionais de seus núcleos urbanos, e a sua localização espacial. A água,
materializada no caso do Rio Guamá, da Baía do Guajará e do complexo estuarino no qual Belém-
PA se encontra inserida, é um elemento definidor da paisagem e dos usos do território no local.
Deste modo, conforme a elaboração sobre o território litorâneo de Moraes (1999), haveria usos
condicionados e explicáveis pela presença da hidrografia (e do mar) na paisagem.
A formação da cidade reforça estes elementos. A estruturação do núcleo pioneiro de
povoamento do agente colonizador na área foi um terraço de 300 por 600 braças, cerca de 72
hectares25
, cercado por áreas alagadas, de cota relativamente mais alta do que o entorno, entre 5 e
10 metros acima do nível da água (PENTEADO, op. cit.) Dali a movimentação de trocas já começaria,
na década de 20 do século dezessete, embora de maneira ainda incipiente; Belém seria, no século
seguinte, uma praça de troca de especiarias (as chamadas “drogas do sertão”) e um entreposto de
24
Pontuando um aspecto da citada “precariedade” infra-estrutural do porto de Belém à época, Penteado (1973) cita
providências de reforma da Doca do Reduto em 1848, quando se deveria substituir seu revestimento em madeira por outro, em
pedra.
25
Para conversão de medidas do período colonial brasileiro usamos as referências de Costa (1994).
96
produtos diversos, como outros povoamentos do Brasil (SANTOS, 2001). Baena (2004),
pontuando aspectos descritivos da instalação do Estado português na região, comenta que a
articulação espacial da então Província do Pará não careceria de melhorias em estradas, canais e
rios navegáveis, segundo os padrões do século dezoito. Os rios da região seriam canais
adequados para o trânsito de mercadorias: “é [...] pelos rios que se exercita todo o trato mercantil
interior; canoas e barcos são os veículos que andam no meio das mercadorias” (BAENA, 2004, p.
169). Em sua avaliação, à época, a região teria condições fisiográficas adequadas ao trânsito de
mercadorias, por via fluvial, o que poderia “[...] constituir e entreter um comércio de magna
importância” (BAENA, op. cit., p. 169).
Este mesmo trânsito de mercadorias teria sido responsável pela formação de um
pequeno aglomerado de estabelecimentos comerciais, trapiches vizinhos e pela movimentação de
embarcações na faixa central da atual zona portuária de Belém, em seu centro urbano. Tomado
como relativamente desproporcional ao porte da cidade entre as décadas de 1810 e 1820, este
pequeno sub-centro especializado, entreposto portuário urbano, sugeria haver na cidade uma
dinâmica de passagem e troca que lhe imputava uma espécie de atendimento externo à pequena
população de Belém à época; parecia haver, a julgar por esta economia portuária, uma “população
transitória” (PENTEADO, 1973, p. 56) na cidade, trazida pelo porto e por seu entreposto.
Ainda no final do século XIX a cidade de Belém apresentava uma série de trapiches que
operavam o fluxo portuário de forma quase independente, individualizada, aproveitando a demanda
que a região apresentava (PENTEADO, 1973). O número significativo destas estruturas, e os
freqüentes pedidos de aforamento da terra para fins portuários no centro da cidade (bairros da
Campina e da Cidade, no núcleo pioneiro de Belém) apareciam em documentos históricos da
época como pontos de preocupação da Província, inclusive. Relatórios da década de 1860
pontuavam o receio acerca da “desordem no tráfego e economia do porto” (PENTEADO, op. cit., p.
58), decorrente da operação simultânea, individualizada e sem infra-estrutura técnica dos agentes
portuários e comerciantes de então. Os pedidos de aforamento, necessários inclusive para a
autorização de uso de Terrenos de Marinha26
, eram citados à época como indício de iminentes
dificuldades de regulação da atividade portuária na cidade (PENTEADO, op. cit.) Curiosamente, a
ocupação de pequenas frações de terra nas margens fluviais da cidade, por formas juridicamente
regulares ou não, em extensão significativa, tornou-se um problema mapeado, narrado e
26
A isto deve ser acrescida a natureza enfitêutica da terra na cidade, com estrutura fundiária original baseada em terras doadas
pelo instituto da sesmaria.
97
diagnosticado de forma semelhante um século depois, com outras intenções...
Na virada dos séculos XIX e XX a formação da estrutura portuária formal (e tecnicamente
moderna) do Porto de Belém assinala a definitiva formalização da atividade na cidade. Persistem,
na margem, entretanto, as informalidades diversas; nos numerosos portos privados, nas pequenas
e médias estruturas de atracação, carga e descarga destes portos, na definição de um autêntico
“zoneamento espontâneo” do fluxo de mercadorias pela via fluvial nas margens da cidade. O
pescado e as frutas desembarcam em determinados locais, as mercadorias manufaturadas e
ligeiramente beneficiadas destinadas à construção civil noutros, os animais, artefatos e uma série
de itens em outros locais ainda, compondo uma variada quantidade de produtos segmentados
espacialmente em pontos de troca e movimentação da cidade. A construção, formalizada e
racionalizada, do Porto de Belém, cujo funcionamento oficial e operacional data do ano de 1909
(PENTEADO, 1973), guarda relação forte com a economia do látex, e o então alto preço da borracha
amazônica no mercado internacional, o que impulsionou a construção do Porto, financiando-o.
Quando Penteado (op. cit.) cita que “continuava a existir o litoral irregular, junto à baía [...] onde
muitos eram os trapiches de madeira, servindo às companhias de navegação, que operavam em
Belém [...]” (PENTEADO, 1973, p. 57), é possível fazer a conexão com o fato de que “[...] as
exportações de borracha alcançaram um volume antes nunca visto [...]” (Idem, op. cit., p. 57).
Falava-se, à época, na necessidade de adaptação das precárias rampas de pedra do cais da
cidade, e da deficiência de seus armazéns; daí a contratação do localmente famoso estudo e do
projeto do engenheiro Sabóia e Silva para o Porto de Belém, ainda em 1897 (Idem, op. cit.). A
necessidade da nova economia de exportação induzia à instalação da estrutura técnica moderna e
à mudança do regime de apropriação territorial das águas da cidade.
98
Gráfico 1 Movimentação do Porto de Belém, por número de embarcações (1840-1880), atesta a acentuação do fluxo
na segunda metade do século com a borracha, com crescimento de 274,4%. Fonte: Penteado (1973).
Gráfico 2 Tonelagem do Porto de Belém (1840-1880) aponta incremento de 2.193,9% na movimentação. Fonte:
Penteado (1973).
Em análise, sob outro ponto de vista, feita a partir dos mesmos dados da movimentação
portuária, Castro e Santos (2006) apontam a relação entre a expressiva importação de carvão
mineral da Inglaterra e as motivações de operação e modernização (no começo do século vinte) do
Porto de Belém. Além da economia gomífera, portanto, haveria esta motivação, também de ordem
econômica, pois o insumo importado representaria expressiva quantidade de movimentação de
carga no Porto de Belém (CASTRO; SANTOS, op. cit.) A situação periférica da região, deste modo,
associada ao típico padrão de implantação de infra-estruturas em regime de atuação dos capitais
privados estrangeiros no país, se reflete no caso.
Movimento do Porto de Belém (1840-1880): nº de embarcações
0
50
100
150
200
250
300
350
1840 1850 1860 1870 1880
Anos
Nº de embarcações
Movimento do Porto de Belém (1840-1880): tonelagem
-
50.000,00
100.000,00
150.000,00
200.000,00
250.000,00
300.000,00
1840 1850 1860 1870 1880
Anos
Ton.
Tonelagem
99
3.3. OUTROS PORTOS DA CIDADE
Por outro lado, a troca econômica é presente na estruturação territorial da cidade e em
sua relação com a rede hidrográfica desde as origens de Belém-PA. É estabelecida, inclusive, uma
sazonalidade (BENCHIMOL, 1995) entre o regime de marés, a possibilidade de fluxos e os tempos da
vida na região, da ocupação e formação do território, do aproveitamento econômico. Há um tempo
regional, dado sobretudo por populações rurais e ribeirinhas, e que pode ser visto nas transações
comerciais, na circulação de mercadorias e pessoas (BENCHIMOL, op. cit.) e na localização de
pontos de troca (feiras, mercados, entrepostos em geral) em relação a núcleos urbanos ou
vilarejos. Esta sazonalidade e este tempo, específicos e regionais, ajudam no entendimento das
dinâmicas existentes nas margens fluviais da cidade de Belém-PA.
O uso portuário na cidade esteve presente, portanto, desde a sua formação. A dinâmica
de troca estabelecida pela possibilidade de navegação, pelo condicionante da implantação de
núcleo de defesa e pela formação de uma rede urbana de alcance regional atesta o fato. Isto
também ajuda no entendimento da formação de diversos pontos de circulação de mercadorias e
pessoas no território de Belém-PA. A cidade é permeada por estes locais, genericamente
chamados de “portos”, em que as escalas, os padrões, os tipos e, sobretudo, as estruturas
técnicas e perfis de operação diferem significativamente. Da mesma forma, na escala regional
ocorrem diversos fenômenos de troca e circulação a partir dos portos urbanos:
Trata-se de um continuum de aglomerações urbanas — cidades ribeirinhas —,
na maior parte de pequeno porte, mas que são importantes pelas intensas redes
de trocas econômicas, culturais e sociais que se reproduzem no tempo e se
espalham [...] através do emaranhado de cursos de água que conformam essas
bacias hidrográficas organizadas a partir da referência principal que é o Rio
Amazonas (NAEA/UFPA, 2005, p. 37. Grifo dos autores.)
A dinâmica portuária existente na cidade a caracteriza como praça comercial, sobretudo
em sua interface com os cursos d´água que cercam parte de seu território. A cidade comercial,
pontuada por diversos estabelecimentos e entrepostos, é uma forma da cidade de Belém que
atravessa vários períodos, e persiste, em paralelo a mudanças estruturais em outros setores da
economia e outras formas de ocupação territorial. A cidade de Belém-PA, em sua atividade
econômica comercial, de troca, situada às margens dos rios de seu território, teve diversas formas
de aproveitamento neste sentido.
Em Belém, em registros históricos, já havia uma densidade razoável de itens
comercializados nas margens fluviais. A possível geografia destes itens, a partir de suas
100
procedências, seria uma referência interessante de como reconstruir a espacialidade e o
alcance destas redes de troca. Na extensão da planície de inundação de bairros periféricos de
Belém havia, nos anos 1940, o transporte em quantidade de bovinos vivos, em um fluxo
relacionado ao arquipélago do Marajó, por exemplo (PENTEADO, 1973). Havia, ainda, uma economia
com desdobramentos e serviços associados em seu entorno; abatedouros, trapiches, rampas
adaptadas, construídos a partir de tecnologia regional e das necessidades desta peculiar logística
da movimentação a jusante e a montante do rio.
Os entrepostos de pescado e frutas, por outro lado, situados nas proximidades de
embocaduras de rios da cidade, constituem feiras urbanas, e criaram centralidades de bairro e um
desenho espacial de articulação entre regiões do Estado do Pará e pontos do território da cidade de
Belém-PA, bem como de ligação entre a cidade e os migrantes das respectivas regiões de
procedência dos produtos. No bairro do Jurunas, situado na Bacia Hidrográfica da Estrada Nova,
numa região ao sul da cidade, os diversos pontos comerciais à beira do rio consolidaram, há
décadas, uma economia de portos de passageiros, carga e formação de entrepostos. Tais portos,
adaptados às condições locais e à sua situação de relativa informalidade, constituem uma
territorialidade variada na cidade, transportando migrantes interioranos rumo a seus locais de
origem e trazendo novos contingentes de pessoas. As localizações dos portos de passageiros
estabelecem uma espécie de zoneamento também informal, estruturado em função de
oportunidades de ocupação de terras, de formação de “colônias” regionais em bairros da cidade
(PENTEADO, 1968), e que também exibe a estratificação por renda da população, a partir dos
diferenciais locacionais dos seus pontos.
Do mesmo modo, há uma relação entre itens comercializados, localização espacial e
procedência regional no Estado. A segmentação, neste sentido, apresenta-se como um processo
curioso de especialização, onde o comércio de alimentos ou artigos manufaturados é feito de
forma, digamos, étnica. Há, portanto, a relação entre a origem de certos produtos comercializados
nas margens fluviais da cidade e uma geografia estabelecida ao longo do tempo nesta troca, o que
estrutura divisões específicas de ocupação territorial, no interior dos entrepostos e na escala
urbana mais ampliada. É criada uma setorização informal, ligando produtos às diversas “colônias”
de migrantes do interior do Estado, e também levando-os e trazendo-os pela via fluvial através de
portos privados. Este mapeamento de usos e serviços é reconhecido pelos locais, inclusive, o que
reproduz esta espécie de setorização comercial ribeirinha, e se coloca como chave do
entendimento dos vários universos de itens componentes das dietas, dos hábitos, dos saberes,
101
das técnicas e das habilidades praticadas nestas regiões. As suas especificidades, no caso,
parecem evidenciar a variedade interna das regiões do Estado, e permitem, por fim, identificar
justamente a extensão da rede de trocas, e da produção do território expandido dos fluxos na
hidrografia regional.
Certa diversidade de estruturas portuárias em locais do centro de Belém e imediações
atestam variedade de padrões, tipos e atividades de uso da água na cidade. No caso de Belém,
estas estruturas se concentram na Bacia da Estrada Nova, por exemplo, na extensão territorial ao
sul da cidade de Belém-PA, e no centro da cidade, nas Bacias do canal da Avenida Almirante
Tamandaré e Magalhães Barata (bairros da Cidade Velha e Campina), além da Bacia do Reduto.
Nesta porção urbanizada convivem a estrutura portuária formal (o Porto de Belém, instalado na
zona central da cidade e atualmente administrado pela Companhia Docas do Pará, CDP, ligada ao
Ministério dos Transportes) e numerosos empreendimentos portuários de passageiros, carga e
comércio a eles relacionado.
No caso da Bacia da Estrada Nova27
, a variedade de portos (informais, o que é relevante
para este trabalho) ilustra as formas de uso do rio na cidade. Muitos destes estabelecimentos
portuários operam com sua própria estrutura de atracação, carga e descarga; são trapiches,
rampas, diques e píeres quase individualizados, usados por cada unidade em operação. Este fator
é uma espécie de chave para o entendimento da ocupação fundiária desta porção da cidade e, ao
mesmo tempo, para entender os argumentos contemporâneos de sua remoção. A ocupação dos
terrenos, nos bairros do Jurunas, da Condor e do Guamá (que compõem parcialmente a bacia), foi
estruturada sobre a posse, e sobre pedidos de aforamento sucessivos, feitos há tempos junto à
municipalidade, conforme atesta o estudo de Antonio Rocha Penteado (1973). A estrutura fundiária
resultante, como pode ser visto na cartografia recente da área, tem configuração tipicamente
recortada, e parcelada em lotes de dimensões mais largas para o aproveitamento de portos locais,
e com morfologia mais delgada no caso de ocupação residencial ou estritamente comercial. Em
certo sentido, esta morfologia atesta um processo contínuo de parcelamento e re-parcelamento
dos terrenos do local, onde antigos equipamentos e usos industriais, manufatureiros e até mesmo
rurais são sucedidos por usos residenciais e pelas novas formas de aproveitamento da economia
27
Nome popular da Avenida Bernardo Sayão, Estrada Nova designa a estrutura de engenharia de contenção de águas e
instalação de comportas articuladas ao regime de marés e à contribuição de drenagem da bacia. Esta estrutura, datada da
década de 1940, destinava-se ao combate à malária na cidade, particularmente acentuada no período da Segunda Guerra
Mundial — ver, para tal, Rodrigues (2008) e Ponte, M. X. (2003).
102
urbana no local. Antigas vacarias, locais da distribuição e produção leiteira na cidade,
instaladas no local, implantadas em terrenos de dimensões maiores do que as dos lotes urbanos
atuais, conviviam com outras atividades produtivas como curtumes e pequenas fábricas, por
exemplo. Empreendimentos comerciais e atividades de transporte de passageiros e carga ficam
situadas, atualmente, nas margens do Rio Guamá ou em suas proximidades; demais atividades
comerciais e a destinação residencial dada aos lotes urbanos, em geral, ocupam parcelas
interiores. A exceção a esta divisão é dada justamente pelas palafitas e pelas vilas no local;
instaladas na vizinhança de estâncias ou dos portos locais, estes espaços de moradia precária,
sob os parâmetros técnicos vigentes, subsistem como soluções baseadas na construção
tradicional de populações rurais-ribeirinhas, associadas a estratégias de intensificação na
ocupação do solo e nas relações de proximidade e parentesco. A movimentação em torno da
apropriação de terras (inclusive pela via do mercado do solo urbano na cidade) já aparece
documentada em anúncios de jornal, oferecendo terrenos no bairro do Jurunas, componente da
bacia, no século dezenove, conforme o estudo de Carmen Izabel Rodrigues (2008). A precariedade
do local, sobretudo em termos sanitários, já preocupava autoridades municipais na viradas dos
séculos dezenove e vinte, e já caracterizava a área como periférica então (RODRIGUES, 2008).
Ilustração 11 Uma "vila" situada na Bacia da Estrada Nova, bairro do Jurunas, periferia próxima de Belém-PA;
assentamento sobre palafitas, adensamento significativo, pobreza e estratégias de sobrevivência diversas. Foto:
Cláudia Ribeiro (nov. 2008).
103
Ilustração 12 Série de casas sobre o canal da Avenida Bernardo Sayão, na Bacia da Estrada Nova, em área de periferia
próxima da cidade de Belém-PA; moradia precária em local próximo ao rio. Foto do autor (jan. 2008).
Sobre as relações que se podem produzir na interface entre o território urbano e os
cursos d´água, a antropóloga pontua questões importantes:
[...] Belém possui uma estrutura formidável de portos28
, empresas e empresas-
portos, estatais e privados, que tiveram uma importância crucial na dinâmica
econômico-espacial da cidade e na vida de muitos moradores, especialmente na
vida dos migrantes que foram se fixando próximo a essas áreas durante o
processo de urbanização da cidade, no século XX, quando a cidade cresceu
expressivamente pela migração.
Quem chega a Belém pela via rodoviária não vê a cidade ribeirinha e quem mora
em Belém e nunca visitou a orla, não faz idéia do mundo que aí pulsa em
movimento constante, dorme e acorda, num vaivém ininterrupto de canoas e
barcos, nos diversos portos em atividade (RODRIGUES, 2008, p. 78. Grifos da
autora).
Neste aspecto, a ocupação sucessiva de lotes vizinhos nas margens do Rio Guamá,
principalmente, instalou toda uma economia portuária, fixada e operante naquele local há décadas.
Este processo criou uma forma de ocupação onde empreendimentos diversos e edificações de uso
28
Segundo a mesma autora, seriam mais de quarenta os portos situados nas margens do Rio Guamá em Belém. Destes,
metade estaria concentrada no bairro do Jurunas (RODRIGUES, 2008).
104
residencial coexistem espacialmente, e onde a informalidade, a improvisação, as estratégias de
sobrevivência e a ocupação privada dos espaços tidos como públicos pela legislação são a tônica.
Deste modo, pequenos portos de passageiros são vizinhos das antigas vilas locais; espécie de
aglomerado de palafitas assente sobre estacas de madeira, em terrenos alagáveis sobre as
margens do rio, com casas freqüentemente construídas em lotes de 5 m x 5 m (ver Ilustração 11).
Nestes mesmos locais, pequenas lojas de material de construção têm relação comercial
com as chamadas estâncias. As estâncias são, no linguajar local, entrepostos de materiais de
construção oriundos das ilhas do município de Belém e arredores (como pólos oleiro-cerâmicos
próximos ao município ou sítios de extração de madeira-de-lei), que comercializam principalmente
madeira aparelhada e ligeiramente beneficiada, tijolos e telhas cerâmicos. Nas estâncias, a
descarga de material oriundo de ilhas de Belém e interior do Estado do Pará possibilita a existência
de uma economia de densidade razoável para os padrões locais, e que estabelece uma rede de
circulação de mercadorias (sobretudo da madeira) que extrapola a fronteira estadual. A dinâmica
econômica regional, estabelecida a partir destes empreendimentos e destas formas de uso e
ocupação do território, revela-se importante para a formação de uma atividade à beira da água na
cidade de Belém, o que nos faz pensar acerca de sua multiplicidade.
A economia dos portos de Belém é, portanto, extensa, pelo menos em termos relativos.
Silva, Barbosa e Trindade Júnior (2005), em exaustivo levantamento de campo, apuram 473
unidades de uso do solo ou aglomerados de usos nas margens fluviais da porção continental do
município de Belém. Estas unidades, mapeadas individualmente e não pela extensão que ocupam
territorialmente, representariam um universo com predominância do setor terciário da economia.
Cerca de 35% das unidades situadas nas margens fluviais da cidade de Belém-PA seriam de uso
comercial, e cerca de 21% corresponderiam ao uso de serviços em geral (SILVA; BARBOSA; TRINDADE
JÚNIOR, 2005). O perfil terciário das margens de rio em Belém-PA, de sua chamada “orla”, seria
caracterizado, em maioria, pelos prestadores de serviço e comerciantes cuja atividade está
relacionada à navegação, ao fluxo de mercadorias e passageiros pelo rio e pela baía e à
apropriação privada de parcelas deste espaço (SILVA; BARBOSA; TRINDADE JÚNIOR, op. cit.)
Por outro lado, as margens fluviais da porção continental, mais urbanizada, do município,
também apresentam exemplos de empreendimentos econômicos em estado de falência, além de
terrenos e imóveis em geral fechados e sub-utilizados (Idem, op. cit.) Este aspecto atesta, ao
mesmo tempo, a existência de processos de transformação de usos e padrões econômicos de
apropriação dos diferenciais locacionais das margens urbanas de rio de Belém-PA e também
105
comprova, de certo modo, seu caráter de ativo econômico, e de certa reserva, aguardando
valorização.
Ilustração 13 Mapa de zonas das margens fluviais da porção continental de Belém-PA, a propósito de um plano de
estruturação elaborado em 2000, mostra perfis diferenciados da “orla” da cidade. Em amarelo, área de bacia
hidrográfica densa e pobre, ocupada por atividades econômicas de entrepostos e comércio (a da “Estrada Nova”); em
verde, a zona portuária oficial. Fonte: Belém (2000).
Este elemento pode parecer paradoxal, mas não o é. Se pensarmos nas variadas escalas
dos empreendimentos existentes nestes espaços, muitos deles de pequeno porte, com
informalidade jurídica e posse precária da terra, é possível conceber que haja nas margens fluviais
urbanas de Belém-PA uma substituição de atividades predominantes, inclusive pela mudança nas
rentabilidades dos usos do solo. Por outro lado, a recente valorização da periferia próxima da
cidade, sobretudo de partes do território da Bacia Hidrográfica da Estrada Nova, recoloca a questão
dos valores imobiliários e sua dinâmica como ponto importante para explicar a localização das
106
atividades recentes no território da cidade. Isto comporia uma demonstração parcial do
interesse em certa retenção especulativa do parque imobiliário desta porção da cidade, em vista
dos novos investimentos vinculados às variadas idéias de intervenção na “orla” de Belém-PA.
Quanto a uma macro-setorização e sua relação com usos do solo predominantemente
praticados nas margens fluviais urbanas de Belém-PA, os autores apontam certa heterogeneidade
de uso e padrões. Esta setorização é composta pelas zonas central, oeste, norte e sul (Idem,
ibidem), a que corresponderiam usos predominantes e padrões sócio-econômicos diferenciados,
segundo a classificação proposta por Silva; Barbosa e Trindade Júnior (2005).
Qualificada pelos autores como “degradada” (idem, ibidem, p. 69) a porção urbanizada
das margens fluviais de Belém-PA por eles chamada de zona central seria composta por estruturas
urbanas de interesse histórico-cultural, combinadas a estabelecimentos comerciais e a usos de
porte (SILVA; BARBOSA; TRINDADE JÚNIOR, 2005). Esta zona apresentaria “forte apropriação privada”
(SILVA; BARBOSA; TRINDADE JÚNIOR, op. cit., p. 70), através da presença de empresas do setor de
navegação, ou ligadas à exportação de matérias-primas e bens ligeiramente beneficiados. Nesta
classificação, a zona norte representaria o movimento de desconcentração funcional de algumas
atividades empresariais do centro da cidade, situadas nas proximidades do rio e da baía. A zona
norte, neste sentido, representaria uma região da cidade com perfil de uso do solo mais
relacionado a “[...] alta proporção de agentes proprietários dos meios de produção e serviços [...]”
(SILVA; BARBOSA; TRINDADE JÚNIOR, op. cit., p. 71). A região de margens da Baía do Guajará é
caracterizada pelos autores como zona oeste, com perfil semelhante, no geral; a diferenciação está
na maior concentração de empreendimentos industriais, e no sítio físico baseado sobre as
chamadas terras firmes locais, área de cotas altimétricas maiores do que as áreas baixas
alagáveis, de planícies de inundação. Na área chamada de zona sul, entretanto, o perfil é mais
próximo dos pequenos prestadores de serviço, com grau mais alto de informalidade econômica e
com presença relativamente maior dos chamados estratos do circuito inferior da economia, na
acepção de Milton Santos (Idem, op. cit.) Esta área é formada por terras de cotas mais baixas,
oriundas de planícies de inundação locais, e apresenta numerosos assentamentos de baixa renda.
Os “portos”, entretanto, têm apreciações múltiplas na cidade. Situados no centro antigo
(como no bairro da Cidade Velha, o primeiro da cidade), na periferia próxima (no caso daqueles,
numerosos, nos bairros do Jurunas, Condor e Guamá, na Bacia da Estrada Nova) ou em distritos
municipais (como Icoaraci) de Belém (e, obviamente, em localidades vizinhas), suas funções são
diversas, bem como as populações usuárias. Variam, também, os tipos de “operadores”
107
portuários, oscilando entre pequenos e médios empresários locais, oriundos do interior do
Estado, a grupos econômicos mais influentes. Os diversos estabelecimentos de uso portuário das
margens fluviais de Belém-PA e entorno são, entretanto, empreendimentos econômicos e
expressões do que genericamente se chama na cidade de “atividades ribeirinhas”. Sendo
economias e, ao mesmo tempo, formas de uso e apropriação do território, estes portos têm
recebido qualificações variadas na imprensa, nos discursos de dirigentes públicos e nas falas de
técnicos do planejamento local. Estas qualificações variam, principalmente, em torno do direito e
do acesso ao rio e, em paralelo, em torno de algumas versões da própria idéia de “ribeirinho”.
3.4. O RIBEIRINHO
Um começo possível desta análise seria a apreciação do texto do Plano Diretor Urbano do
município de Belém de 1993. Anterior à lei municipal atualmente vigente, o PDU de 1993 continha
artigos e incisos em número razoável versando sobre as diretrizes de reapropriação dos espaços
urbanos de “orla” fluvial da cidade. Tais pontos destinam, em geral, o espaço das margens fluviais
da cidade para fins de instalação de usos considerados socialmente mais interessantes, pela
administração à época e dentro do debate então em voga no setor de planejamento local:
Da Produção e da Organização do Espaço Urbano
Seção I
Dos Objetivos e Diretrizes
[...]
VI - resgatar e valorizar a fisionomia e a visualização dos elementos peculiares à
cidade de Belém, como o rio, a baía, os igarapés, as mangueiras e a paisagem
construída, especialmente os elementos representativos do patrimônio histórico-
cultural;
VII - especial ênfase será dada à recuperação da capacidade de ver e utilizar a
orla do rio Guamá e da baía do Guajará pelo cidadão, resgatando,
simbolicamente, as origens ribeirinhas de Belém (BELÉM, 1993, Art. 143, p. 25.
Grifos do autor).
[...]
III - resgatar áreas da orla fluvial de Belém para uso coletivo, com a criação e
ampliação de “janelas” para o rio Guamá e para baía do Guajará [...] (BELÉM,
1993, Art. 144, p. 25).
[...]
O uso industrial existente ao longo da orla da baía de Guajará e do rio Guamá,
nos limites da 1º légua patrimonial, deverá ser desestimulado e, através de
operações urbanas, transferidas (sic) para locais mais adequados (BELÉM, 1993,
Art. 150, § 2º, p. 27).
[...]
Item V
Dos Espaços Territoriais Especialmente Protegidos [...]
O Poder Público tem o prazo máximo de 2 (dois) anos para resgatar o espaço
108
das ruas na orla que estão ocupadas indevidamente visando a abertura de
“janelas” para as águas (BELÉM, 1993, Art. 262, p. 50).
Deve o Poder Público solicitar à União (Serviço de Patrimônio da União — SPU e
Ministério da Marinha) o gerenciamento de suas terras localizadas na orla da
baía do Guajará, rio Guamá, canais, manguezais e igarapés, visando evitar a
ocupação indevida de uso que prejudiquem a qualidade ambiental do território
municipal (BELÉM, 1993, Art. 263, p. 50).
Como pode ser visto, o tema já tinha ressonância na esfera administrativa na década de
1990. O Plano Diretor Urbano do Município de Belém, entretanto, teve sua revisão finalizada e
promulgada em lei no ano de 2008. Em um processo atravessado por críticas de falta de
participação social efetiva, e com certa influência de setores empresariais locais e mesmo de
outros estados do Brasil (no caso de empresas do ramo imobiliário), o texto do novo Plano Diretor
flexibiliza alguns índices e modelos de ocupação, sintetiza figuras do zoneamento anterior e
estabelece outro regime para as margens fluviais do município, embora fundamentalmente
baseado nos mesmos pontos. O termo e a idéia genérica da “orla” de Belém perpassam diversos
artigos, parágrafos e incisos do Plano Diretor atualmente vigente no município, com conteúdo
nitidamente mais influenciado pelo debate ambiental (ou por uma abordagem mais convencional
deste debate) e, ao mesmo tempo, pela urgência de adoção do modelo de operações urbanas em
geral:
São diretrizes da Política de Desenvolvimento Econômico do Município:
[...]
requalificar as áreas de orlas do Município de Belém, estabelecendo as
atividades sócioeconômicas (sic) e os usos compatíveis com o desenvolvimento
humano e a preservação do meio ambiente [...] (BELÉM, 2008, Art. 8, inc. XVIII,
p. 7).
[...]
Subseção III
Da Rede Hídrica e dos Corredores de Integração Ecológica
[...]
Art. 65. Ao longo da rede hídrica que compõe o Município ficam instituídos
Corredores de Integração Ecológica, que têm como objetivos:
[...]
I - propiciar e estimular transformações urbanas estruturais visando um
processo de desenvolvimento sustentável;
[...]
III - melhorar a qualidade ambiental do Município de Belém, por meio da criação
e implantação dos Corredores de Integração Ecológica, como Parques Lineares,
integrados ao Sistema Municipal de Áreas Verdes;
IV - estimular a preservação das áreas de preservação permanente, das matas
ciliares do Município de Belém e a recuperação de áreas ambientalmente
degradadas junto aos cursos d’água;
[...]
VI - ampliar os espaços de lazer ativo e contemplativo, criando progressivamente
109
Parques Lineares ao longo dos cursos d’água não urbanizados, de modo a
atrair empreendimentos de baixo impacto ambiental para a vizinhança de entorno
(BELÉM, 2008, Art. 65, p. 37-38. Grifos do autor).
[...]
Art. 66 Para a efetiva implementação dos programas de Corredores de
Integração Ecológica, deve ser prevista uma faixa de domínio ao longo dos
cursos d’água, determinando larguras mínimas e máximas, conforme as
situações abaixo:
I - cursos d’água com presença de vegetação ainda preservada:
[...]
b) após a faixa delimitada na alínea “a”, considera-se uma faixa non aedificandi
de setenta metros permitindo-se apenas o uso de áreas verdes provenientes de
empreendimentos urbanísticos, públicos ou privados, objeto de parcelamento do
solo para a implantação de Parques Lineares.
II - orla continental, orla urbanizada das ilhas e cursos d’água com presença de
vegetação já modificada por ação antrópica, ou em processo de degradação:
[...]
b) após a faixa delimitada na alínea “a”, considera-se área destinada à
implementação de empreendimentos residenciais e não-residenciais de baixo
impacto ambiental, a serem executados pela iniciativa privada ou pelo Poder
Público (BELÉM, 2008, Art. 66, p.38-39).
[...]
Art. 75 São diretrizes do ordenamento territorial do Município de Belém:
[...]
VIII - ordenar a ocupação verticalizada nas orlas fluviais e nas áreas de baixadas
(BELÉM, 2008, Art. 75, p. 42).
[...]
São diretrizes da Macrozona do Ambiente Urbano (MZAU):
[...]
II - resgatar áreas da orla fluvial, das praias e margens dos cursos d’água,
objetivando a proteção e preservação do meio ambiente (BELÉM, 2008, Art. 81,
p. 45).
[...]
São diretrizes da ZAU 3 - Setor I29
:
[...]
V - requalificar a orla degradada (BELÉM, 2008, Art. 90, p. 50).
[...]
§2°. São diretrizes da ZAU 4:
[...]
VII - investir na manutenção e dotação de espaços públicos de uso coletivo,
especialmente o Parque Guajará, a área da Marinha, e a orla do rio Maguari e da
baía do Guajará (BELÉM, 2008, Art.91, § 2º, p. 51-52).
[...]
§ 7º. A ZAU 7 – Setor III, é uma zona de orla fluvial, caracteriza-se pela presença
de ocupação desordenada, habitações e infra-estrutura precárias, presença de
atividades portuárias privadas tradicionais, degradação ambiental, risco social e
presença de edificações históricas.
29
No zoneamento do atual Plano Diretor, de 2008, a macrozona do ambiente urbano (MZAU) corresponde a parte da área mais
central da cidade, e o vetor de expansão a Norte, incluindo o distrito de Icoaraci, que por sua vez corresponde, em linhas
gerais, a esta Zona 3, citada neste trecho do Plano.
110
[...]
V - eliminar a situação de risco das áreas de ocupação precária (BELÉM, 2008,
Art. 94, p. 58).
[...]
§1º. As orlas urbanizadas do Município ficam definidas como zonas de interesse
para fins de recuperação urbanística, paisagística e do patrimônio arquitetônico,
identificadas no ANEXO VI como Setor A (BELÉM, 2008, Art. 111, p. 71).
[...]
Art. 119. A Zona Especial de Promoção Econômica 1 (ZEPE 1) são áreas
qualificadas tradicionalmente como atividades industriais [...]
Art. 120. A ZEPE 1 - Setor I caracteriza-se por atividades industriais de pequeno
e médio porte, com potencial de impacto ambiental significativo e por
empreendimentos de impacto urbano, correspondendo à área entre a baía do
Guajará e a Rodovia Arthur Bernardes.
[...]
V - estimular, progressivamente, usos que viabilizem a recuperação urbanística e
paisagística da orla (BELÉM, 2008, Art. 120, p. 75).
[...]
I - requalificar as áreas de orla (BELÉM, 2008, Art. 131, p. 80).
Nota-se, nos trechos transcritos, a diferenciação entre áreas da cidade. Obviamente,
sendo a cidade heterogênea, qualquer legislação da política urbana (sendo, essencialmente,
espacial) há de criar as referências capazes de qualificar seus diferentes espaços. A questão, aqui,
é de hierarquia e de atribuição de valor. Nota-se, no conteúdo do macrozoneamento proposto, a
correspondência entre áreas históricas e o modelo da revitalização (ou da reabilitação, ou
requalificação, enfim, dependendo da matriz). Em áreas qualificadas como degradadas, é
freqüente a sugestão de tratamento das áreas de risco30
e, em paralelo, as diretrizes de
recuperação ambiental articuladas a remoções e reurbanizações em geral. Levando em
consideração a realidade sócio-econômica e a dinâmica físico-territorial de Belém-PA, podemos
falar em pelo menos dois grandes marcos de intervenção na cidade pensados a partir da lei do
Plano.
Por um lado, de certo modo, tais diretrizes equivalem à adoção do amplo modelo de
renovação urbana contemporânea, baseado nos cânones do planejamento estratégico para áreas
consolidadas e de interesse histórico. Na outra frente, parece ser concebida uma forma de
intervenção onde a associação entre degradação físico-ambiental (ou, especificamente, sanitária e
hidrológica) e pobreza urbana legitima e justifica intervenções de recolocação de prioridades no
30
O tema do risco ambiental urbano é abordado de forma incipiente pela administração municipal à época de elaboração deste
trabalho. No escopo do projeto Portal da Amazônia o assunto chega a ser mencionado, mas não há tantas referências ao debate
técnico, já vasto, da área. Em avaliação preliminar, nota-se que a questão é tratada de modo estritamente técnico,
“engenheiresco”, onde as concepções seriam tidas como dadas e, até certo modo, decorrentes de critérios fisiográficos (isto
é, onde há cota altimétrica baixa há terra alagável e, portanto, “de risco.”) Sobre o tema; Valencio et alli (2006).
111
investimento em infra-estrutura urbana, com a criação de corolários do parque linear e com
incentivo a diversos empreendimentos imobiliários privados de médio e alto padrão. No momento
atual, a administração municipal encontra-se envolvida em debate em torno da associação com
empresas do ramo de incorporação e empreendimentos imobiliários no município, em ações
praticamente contemporâneas à própria revisão e atualização de índices urbanísticos do Plano
Diretor de Belém. Este momento inclui, ainda, alguns processos contra a administração municipal
movidos por órgãos públicos como o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual.
Pode ser notada alguma mudança no conteúdo do Plano Diretor Urbano de Belém, entre
as versões de 1993 e 2008, portanto. Nos temas que interessam mais diretamente a este estudo, é
possível falar em frentes da política urbana em que esta mudança se percebe de forma mais clara:
urbanizações de beira de rio; saneamento ambiental; economia e recursos hídricos.
A idéia pioneira das chamadas “janelas para rio” é ligeiramente modificada em sua
relevância para a legitimação e a justificativa conceitual para as intervenções nas margens fluviais
urbanizadas (ou na “orla”) da cidade. “Janelas para o rio” foi, segundo uma fonte desta pesquisa,
uma expressão cunhada no final da década de 1970, e que circulou amplamente no princípio dos
anos 1980, entre a intelectualidade e a classe artística local. Os autores da idéia teriam sido um
artista gráfico, um artista plástico e um arquiteto, todos locais, envolvidos no processo de
redemocratização e na administração pública municipal de meados dos anos 1980. Um dos
autores, digamos, era inclusive envolvido com a produção de conteúdo publicitário, daí talvez o
notável apelo do termo entre a classe política e os bem-pensantes da cidade de então. As
“janelas”, obviamente, seriam as formas através das quais se poderia observar, contemplar e,
efetivamente, usar o rio (ou a baía). A idéia de criação de “janelas para o rio”, de caráter público,
era então discutida a partir da constatação de certa ocupação periférica, precária e da beleza
paisagística das margens fluviais da cidade, que estaria sendo vedada a seus demais habitantes. A
expressão “janelas para o rio”, portanto, tornou-se algo entre o mote publicitário, o nome de um
provável programa de reurbanização de beira-rio ou, alternativamente, a síntese de um poderoso
senso comum que viria a, anos depois, redundar numa série de intervenções territoriais de
significativas modificações na cidade.
Este aspecto cultural é interessante também por ter sido engendrado dentro de grupos da
elite intelectual local. A apreciação visual destes artistas (pintores e fotógrafos, basicamente) a
respeito do universo pictórico e das referências plásticas do ambiente “ribeirinho” denotam
curiosidade e simpatia, afinidade estética, com os grafismos e geometrismos de suas casas (ver
112
Ilustração 14; Ilustração 15), dos motivos quase canônicos das pinturas de seus barcos, dos
painéis treliçados em madeira dos muxarabis e adufas, dos planos e pisos suspensos criados
sobre as águas, das janelas retráteis, “sanefas”, típicas das embarcações regionais. Além da
classe artística, que apropria este repertório visual e o trabalha em suas obras, também há uso da
temática dos rios da região na literatura, por exemplo, e na música. Esta produção, de certo modo,
compõe uma visão geral de como a referência desta especificidade da cultura regional é apropriada
pelos agentes locais, e aponta para a composição de uma espécie de quadro de apreciação do que
seria uma síntese da idéia de “ribeirinho” para estes grupos.
Ilustração 14 Luiz Braga, Janela Rio Guamá (fotografia; exposição Anos-Luz, 1988). O rio como estética diferencial e
como discurso da paisagem. Fonte: <http://www.luizbraga.fot.br/portfolio5/portfolio5.html>.
Por outro lado, o “ribeirinho”, categoria múltipla, recebe uma outra acepção, idealizada e
relativamente naturalizante. Em comparação livre, numa analogia, seria uma espécie de reprodução
local da visão idílica do índio dada pelo romantismo brasileiro do século XIX. Espécie de
personagem-síntese, embora quase sempre imprecisamente definido, o “ribeirinho” e sua
paisagem são acionados com propósitos diversos na discussão sobre as intervenções
urbanísticas na cidade de Belém-PA e em seu entorno.
113
Ilustração 15 Luiz Braga, Casa de madeira e lata (fotografia; exposição No olho da rua¸1984). Os grafismos como
ícones de uma geometria imprecisa e regional, porém, ainda assim, identificável por outros olhares, mais habituados a
uma estética baseada em modelos ocidentais de composição e harmonia. Fonte:
<http://www.luizbraga.fot.br/portfolio3/portfolio3.html>.
Ilustração 16 Jorge Eiró, Feliz Lusitânea [Série "Labirinto Líquido"]. 2004. Técnica: gravura digital. A técnica da
cartografia, referência desde Kandinsky, mapeia a hidrografia regional. Fonte:<
http://www.culturapara.art.br/artesplasticas/jorgeeiro/img04_felizlusitania.jpg>.
De certo modo, a idéia de ribeirinho remete a uma figura que, em tese, representaria uma
espécie de tipo “emblemático”, sintético e particularmente representativo de uma construção
acerca de traços de uma suposta identidade regional e local. Os ribeirinhos, neste caso, são
114
concebidos como populações de localização às proximidades dos cursos d´água regionais, e
em geral habitantes da zona rural. Simplificações e aspectos gerais do modo de vida e do ambiente
construído dessas populações são acionados para construir a idéia de um habitat idealizado e
particular, próprio, do território regional. Este espaço ocupado, objeto de criação humana, de
definição de limites, fronteiras e convenções, e de formação de relações sócio-econômicas e
processos produtivos, é então citado como elemento idiossincrático e fortemente ligado a uma
construção identitária regional. Deste modo, representaria um território e uma população a ele
associada que deveria ser preservada, mantida.
Extensões deste discurso local, por exemplo, relacionam a genericamente denominada
“cultura ribeirinha” com eventuais potenciais de aproveitamento na indústria do turismo. Isto faria
parte, portanto, das aplicações já recorrentes da indústria da herança (HARVEY, 2000) e do uso
estratégico, do ponto de visto econômico e cultural, de elementos étnicos, sobretudo em projetos
de desenvolvimento e intervenção urbana (ZUKIN, 1991). Outras concepções usam o ribeirinho
como elemento de crítica às intervenções territoriais de Belém-PA e entorno, lidas como
indiferentes às espacialidades e temporalidades regionais, em claro discurso geográfico. Neste
caso, é como se o padrão de intervenção fosse antropologicamente inapropriado, por
desconhecer, por não incorporar, as referências culturais locais e associar as estratégias de
desenvolvimento a padrões e concepções hegemônicas. Os regionalismos, assim, seriam uma
chave de credenciamento de projetos contemporâneos de desenvolvimento; contextualizados, são
legitimados e, por fim, têm maiores chances de se adequar à realidade local. Este discurso,
generalizado no campo da crítica cultural, teve repercussões, por exemplo, no terreno do
Urbanismo e das intervenções arquitetônicas de grande escala e também no debate político de
administrações públicas. Regionalismos, portanto, podem representar códigos de familiaridade
que, produzindo identidade (são próximos do código a quem se destinam), produzem hegemonia;
falar em dialeto é, portanto, mais eficiente em termos políticos, pela vinculação quase orgânica
com que se cria a proximidade (BOURDIEU, 1996a). Esta estratégia também tem relação com o
posicionamento de atores no espaço social. A construção de uma idéia de cidade outrora
“ribeirinha” a partir da crítica ao fato de seu estado atual não mais o ser, apesar de parecer
paradoxal, mobiliza agentes em torno de um suposto espaço comum. Neste sentido, processos
analógicos e simétricos entre natureza e cultura são estabelecidos, e postos em operação como
engrenagens políticas. Atribuir à cidade uma “vocação”, um destino “ribeirinho” como retorno às
origens supostas pode ser um destes recursos. Alternativamente, podem ocorrer processos de
115
atribuição de características naturalizantes, não-humanas portanto, aos indivíduos e grupos
sociais.
A população “ribeirinha” e “anfíbia” de Belém-PA e região desejaria suas margens de rios
convertidas no arquétipo genérico e inespecífico da “orla” fluvial, espécie de corolário do parque
linear urbano associado à radical transformação de usos. Philippe Descola (1997), a respeito da
cosmologia de grupos indígenas, nota que estes mecanismos de fluidez, atribuição de sentidos e
deslocamentos internos ao par natureza/cultura têm múltiplas funções; podem ir da justificativa
para atos específicos à construção de novos sentidos para ritos cerimoniais. Aqui temos
operações semânticas e agenciamentos políticos que, em resumo, mobilizam, produzindo sentido
e atribuindo conteúdos ao território e à ação política aplicada a ele. Os agentes, por fim,
posicionam-se de acordo com sua localização neste espaço social, e de acordo com as leituras
possíveis dos posicionamentos dos demais agentes (BOURDIEU, 1996b). Deste modo, construir
naturezas — via deslocamentos no par natureza/cultura (DESCOLA, 1997) — e sentidos da
paisagem — pela construção do quadro, com inserção e remoção de itens (CAUQUELIN, 2001) —
revela-se uma operação totalmente política. Como o é a definição de qualquer sentido ou escala da
idéia de território, inclusive, independente de seu potencial (ou falta de) enquanto conceito.
Sobre as atribuições de espírito à paisagem e ao domínio do não-humano (DESCOLA,
1997) e sobre as operações de, digamos, “bestialização” da sociedade, um movimento organizado
local exprime uma síntese:
MANIFESTO
Belém do Pará nasceu do amor geográfico entre o rio Guamá e a bela baía do
Guajará. É água por baixo dos igarapés e rios, é água por cima da chuva nossa
de cada dia. Cidade fluvial e pluvial que cedo lhe roubaram as margens e a
paisagem. Um muro a cerca e imobiliza. Belém é um veleiro encalhado.
E esta angústia que cada belenense sente na alma ao olhar a ocupação irregular
da orla por madeireiras, velhos portos, tristes palafitas e enormes galpões de
ferro provém do fato de que somos seres aquáticos, ribeirinhos de nascimento.
O ritmo das marés, influência marítima distante, é o nosso relógio, mas querem
nos impor um tempo diferente. Cerceiam o direito de ir, vir, nadar e navegar.
Sejas tu um peixe fora-d'água, muçum de vala ou caranguejo do mangue poluído
te convido pra somar conosco nesta luta: Libertar a orla de Belém para o bem
estar de seu povo. As janelas abertas nos alegram, mas são frestas diante da
grande extensão. Queremos toda a orla livre! (MOVIMENTO ORLA LIVRE, 2005. Grifo
do autor).
A relação social e a atribuição de sentidos que este mecanismo sintático promove, a da
associação entre a característica não-humana ao humano (DESCOLA, 1996), ao social, é um dado
importante nesta análise. Ela converte o citadino em espécie nativa, “bestializando-o” (ou
116
estendendo a ele o domínio do natural) e simultaneamente integrando-o à “espécie”. Isto, em
termos “cognitivos”, e políticos, teria a intenção de produzir ”identidade”, em um sentido mais
literal, e é uma ferramenta de adesão política, sob outro ponto de vista. No entanto, esta operação
(discursiva e, ao mesmo tempo, política, portanto) não pretende estigmatizar os agentes, mas
produzir ligações, consenso, convencimento e legitimidade.
Esta postura totêmica, de incorporação de domínios da “natureza” (em nosso sentido, do
não-humano) a dinâmicas até então propriamente sociais é de uso corrente nos discursos das
sociedades em geral (DESCOLA, 1998), inclusive em certas ocasiões no Ocidente. Há interfaces
entre os supostos pólos cultura/natureza, e chaves de passagem de um estado para o outro,
digamos, em termos culturais e na orientação das práticas sociais. Estas passagens entre estados
ou domínios, chamados de modos de identificação (DESCOLA, 1996), ajudam a construir
cosmologias e, numa escala menor, sentidos de construção e sobretudo relação entre coisas no
ambiente. O mesmo movimento já citado, em outro material, fornece elementos para construção
desta forma de paisagem cultural e, claro, ambiental:
Movimento Orla Livre
O acesso à orla da cidade é um direito de todos
Buscamos alternativas para liberar a orla da cidade de Belém que hoje encontra-
se (sic) quase totalmente bloqueada.
Os que vivem na cidade das mangueiras31
até esqueceram de que aqui do lado
corre o rio Guamá e a baía do Guajará. Não lembram de nossas origens de
cidade ribeirinha, de passear na orla ou simplesmente passar o dia
contemplando a enchente ou a vazante da maré.
Os benefícios de uma orla livre são inúmeros:
- Desenvolvimento do turismo, com o apoio ao turismo de eventos, dada a
construção do centro de convenções em Belém32
;
- Criação de novos negócios ligados a orla, como cafés, pubs, restaurantes e
espaços culturais;
- Aumento da qualidade de vida, com a prática de esportes ou simplesmente
contemplação;
- Incremento da indústria e esportes náuticos com a construção de marinas
públicas, rampas de acesso às bordas d´água, o que indiretamente gera novos
empregos;
Somos um movimento social onde todos que fazem parte são voluntários,
pessoas físicas e jurídicas. Desvinculados de qualquer partido político ou
representantes eleitos. O carinho por Belém é que nos une.
[...]
31
“Apelido” dado à cidade, devido à implantação destas espécies arbóreas, vindas do Oriente, na renovação urbana do
começo do século XX, em algumas de suas principais avenidas. O regionalismo e os modos de identificação com a paisagem
natural, portanto, permeiam todo o debate público em torno da intervenção nas margens fluviais (ou na “orla”) da cidade.
32
À época deste texto transcrito o Hangar Centro de Convenções do Estado do Pará, em Belém, não havia sido concluído, mas
havia a expectativa da conclusão da obra e de sua articulação com os demais equipamentos do plano estratégico de turismo
do Estado, de modo a garantir-lhe maior atratividade e competitividade neste setor da economia (PARÁ, 2001).
117
Sonhe este sonho. Espalhe esta idéia.
(MOVIMENTO ORLA LIVRE, 2006a, p. 1. Grifos do autor).
Ilustração 17 Versões da logo do Movimento Orla Livre; o caranguejo seria um símbolo da possibilidade de interação
entre ambiente e sociedade local, segundo lideranças do movimento. Os membros do movimento, do mesmo modo,
seriam também crustáceos, digamos. Fonte: <http://www.orlalivre.org/teengaja-botons>.
Em reunião de caráter público, com presença de acadêmicos, representantes de
associação de bairro, moradores, técnicos da administração pública e participantes do movimento,
tais discursos eram proferidos em tom de manifesto e, ao mesmo tempo, de busca por soluções.
A idéia de que era possível uma espécie de panacéia para a intervenção naquele espaço amorfo e
coletivamente adotado da “orla” parecia vigente na oportunidade. Este sentimento não era de se
presumir apenas pela presença de “leigos”, tecnicamente falando, na audiência; havia ali de certo
modo uma propensão a conceber que a intervenção nas margens fluviais da cidade era, por si,
algo que incrementaria a frágil base econômica local e dinamizaria sua estrutura produtiva,
necessariamente. A “orla”, portanto, ganhara adeptos em diversas frentes do debate e da atuação
pública, incluindo a máquina do Estado.
A idéia das possíveis construções entre cultura, natureza (e suas diversas
permeabilidades ou combinações) e justificativas para intervenção e construção de sentidos sobre
a ação no território assinala o poder da construção da “cidade ribeirinha”, de habitantes “anfíbios”
sobre a população local. Esta síntese, articulando elementos da paisagem “natural” —
ocidentalmente falando, não-humana (DESCOLA, 1998) — a pontos da sócio-economia local,
produz uma operação ao mesmo tempo de inclusão dos locais e de produção de identidades feitas
(como quase todas as demais, aliás) às custas de exterioridades produzidas. Esta pequena
cosmologia, menor, produz ao mesmo tempo uma conexão entre ambiente e sociedade e um
fenômeno de adesão política, portanto.
Na audiência citada condensavam-se praticamente todos os sensos-comuns mais
“ilustrados” sobre a questão da ocupação das margens fluviais da cidade. Não estavam ali, como
118
era de se esperar, a expectativa pela construção de grandes torres residenciais de luxo na
“orla” da cidade33
. Do mesmo modo, não foram citadas as expectativas em torno da absoluta
reconfiguração do perfil das populações residentes nas margens fluviais da cidade, em sua “orla”.
Estes seriam temas mais afeitos ao noticiário, aos slogans de alguns dirigentes públicos e dos
empreendimentos imobiliários recentes. De certo modo, todos pareciam concordar que a
gentrification era algo a evitar e, a julgar pelo relativo silêncio e receio de aprofundamento na
questão, também seria um tabu.
Na audiência estavam presentes, portanto, receios como o da gentrification, da elitização
das áreas de margens de rios na cidade, a preocupação com as “ocupações desordenadas” (onde
os sensos-comuns sobre a urbanização se encontram com as opiniões de especialistas,
curiosamente) e ainda preocupações com o caráter excessivamente “técnico”, de traços
“unidirecionais” e “monodisciplinares”34
das intervenções urbanísticas. Ao enquadrar as
intervenções como fenômenos passíveis de interpretação através de outras disciplinas, o
movimento pretende criar um debate em torno do perfil da reconfiguração dos lugares na cidade.
Este debate, no caso, era permeado por certo apego a ícones diversos do que se entendia, na
ocasião, por “identidade regional” e por “cultura ribeirinha”, cada qual observando sua respectiva
pequena cosmologia e, alternativamente, seu esquema de agentes, com predominância de uns
sobre os outros.
Em falas pretensamente mais “democráticas” da audiência surgiram, por exemplo,
críticas aos recentes projetos de intervenção urbanística da “orla” da cidade, que teriam o hábito
de “desconsiderar refúgios da cultura ribeirinha”. Outras intervenções nas falas advogavam a
necessidade de se imprimir caráter mais “amazônico”, isto é, influenciado plasticamente e em
suas referências e repertório visual, às urbanizações da “orla”. Figura proeminente no citado
movimento, inclusive, argumenta que a intervenção urbanística e sanitária do Projeto Portal da
Amazônia (intervenção comentada neste trabalho, projetada em área de residência de pobreza
urbana da cidade) não deve se converter em uma reprodução de padrões existentes em outros
locais. Segundo este representante, ainda há “problemas” na discussão destes projetos; a nova
33
Ouvida na fala de uma refinada senhora em uma véspera de Natal na Casa das Onze Janelas e bastante presente em falas de
membros de elites locais e de empreendedores imobiliários em atuação na cidade (ver Ilustração 38).
34
O jargão do movimento atinge a crítica à ciência e à técnica como disciplinadoras das práticas cotidianas, como se vê. Não
atinge, entretanto, alguns dos fundamentos do problema da reconfiguração territorial destes espaços às margens da água.
119
“orla” não pode ser “uma Almirante Barroso”35
, muito menos uma “cópia de Copacabana”,
porque em geral os projetos vigentes “não têm característica regional”, mas um perfil “tecnocrata”.
No debate arquitetônico e urbanístico este ponto tem algum destaque. Otília Arantes
(2000), por exemplo, situa na crítica ao regionalismo crítico (termo usado por Kenneth Frampton
para designar projetos contemporâneos “contextualizados”) uma reavaliação do potencial de
“enraizamento” e coerência sócio-cultural das novas intervenções físicas no espaço urbano.
Embora nas intervenções arquiteturais e urbanísticas contemporâneas a referência ao signo local
ou a determinadas práticas regionais rendesse simpatias e adesões estéticas, isto era lido pela
autora como gesto vinculado às novas estratégias de desenvolvimento das economias urbanas (e
de reprodução das desigualdades sociais na cidade, durante a crise da reestruturação produtiva e
seus efeitos). A partir deste raciocínio, se a vinculação ao repertório visual e a determinadas
práticas locais, consagradas, for um item de credenciamento dos novos projetos de intervenção,
podemos argumentar que se trata apenas de novas formas de adesão ao amplo modelo,
atualmente hegemônico, do planejamento estratégico de cidades; os locais são reconfigurados, os
usos modificados e, embora a economia cresça, algumas assimetrias persistem. Ainda, a questão
da necessidade de uma adequação regionalizada de projetos, nas reivindicações dos movimentos
locais, parece ainda incipiente e pouco sistematizada; critica a partir de pontos residuais e não
aborda questões de fundo, como a reprodução da desigualdade presente mesmo nos mais
contextualizados projetos de arquitetura e urbanismo postos em prática na cidade contemporânea.
O problema não seria, pois, uma questão de forma.
Sob outro ponto de vista, a discussão sobre o grau de contextualização das intervenções
nas margens fluviais da cidade de Belém-PA reflete o teor de preocupação dos agentes locais no
enfrentamento do problema. Ademais, reflete também a própria construção do problema; de certo
modo, é como se fosse uma questão de adequação “cultural” e de ajuste imagético, pois haveria
certo consenso sobre a necessidade de intervir na “orla”, coibindo nela as práticas da “ocupação
desordenada” ou da “obstrução”, nos termos do citado movimento social. Se há consenso
razoável acerca da necessidade de “desobstrução”, termo aplicado por quase todos os envolvidos
no debate, então a questão a restar seria apenas de procedimento e forma. Eis, também, uma das
35
A Avenida Almirante Barroso é um importante corredor de tráfego da Região Metropolitana de Belém e está inteiramente
situada no município de Belém. Com aproximadamente 6 km de extensão, apresenta os maiores volumes de tráfego de toda a
Região Metropolitana, em média, considerando-se uma via isoladamente. Tem caixa de via maior do que boa parte do sistema
viário local (COHAB; SEDURB; JICA, 2001).
120
razões pelas quais se associa tão freqüentemente o estigma de dissidente a questionamentos
acerca da idéia da revitalização da “orla” de Belém. Conforme a análise do planejamento
estratégico de cidades proposta por Vainer (2000), posturas críticas, antagônicas em algum
aspecto, ao projeto estratégico (isto é, às novas formas de redefinir o território e as prioridades de
investimento na cidade) são invariavelmente qualificadas como não-cívicas, derrotistas e
anacrônicas.
Ainda na relação entre cultura e natureza, o movimento citado apresentava uma agenda
extensa, feita a partir de discussões com múltiplos atores envolvidos na discussão e mesmo nas
intervenções do processo de “desobstrução” ou “revitalização” da “orla” de Belém-PA. Em
depoimento de fevereiro de 2006, representante do Movimento Orla Livre apresentava pontos desta
pauta, uma espécie de lista de procedimentos considerados interessantes na atuação do grupo.
Dentre estes procedimentos, a ressalva de que o movimento, em suas discussões, não queria a
“limpeza da orla”; identificava-se com questões sociais envolvidas no processo. Por outro lado,
argumentava o movimento que a cidade de Belém-PA “tem a necessidade da orla ser a membrana,
a epiderme da cidade”. Esta metáfora se estendia a um raciocínio de liberação da orla fluvial da
cidade, vista como necessária porque “a cidade precisa respirar”. Dentro desta agenda podemos
citar, por exemplo:
Reforçar, refletir e celebrar a identidade amazônica.
Intensificar as relações culturais e emocionais que as pessoas têm
com o rio.
Cuidar dos portos redutos da identidade ribeirinha.
Urbanização baseada em valores locais.
Evidenciar a paisagem das ilhas.
Paisagismo com espécies amazônicas.
Estruturar as atividades de construção naval tradicional existentes
na orla (MOVIMENTO ORLA LIVRE, 19 out. 2006b).
A associação entre traços do par cultura-natureza, portanto é acionada amplamente na
discussão sobre a “identidade ribeirinha” e suas várias acepções, no estágio da intervenção nas
margens fluviais de Belém-PA. Lembrando Descola (1997; 1998), o estudo das cosmologias não
deve ser tomado como absoluto e, tampouco, como relativo; sua aplicação nos lembra do fato de
que a natureza tem fortes componentes de construção social e de que os fundamentos de sua
percepção e construção dependem de condições ecológicas objetivas, do mesmo modo. Por outro
lado, não podemos reduzir o estudo das cosmologias dos grupos sociais à sua realidade interna;
se assim o fosse, boa parte da teoria antropológica não representaria mais do que uma série de
121
descrições de “empirismo pontilhista” (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2004). Assim,
nenhum extremo do relativismo permitiria análise; o estudo das concepções de cultura e natureza
(e chaves de passagem de um estado para o outro) pode ser uma ferramenta de análise das
formas pelas quais são produzidos alguns sentidos do ambiente. No presente caso, tais sentidos
parecem ser associados, eventualmente, a estratégias de produção de legitimidade e hegemonia
política, pela produção de relações que se fazem identitárias com os demais agentes. À respectiva
visão da relação da cidade com seus cursos d´água (ou dos habitantes das cidades com estas
águas) é associada uma estratégia de convencimento, de produção de hegemonias, portanto. É
como se esta fosse a construção de uma pequena “cosmologia” da cidade, relacionada a seu sítio
físico.
Frederico Araujo (2007), por exemplo, trabalha a relação contemporânea entre noções
identitárias e processos de territorialização para investigar fenômenos semelhantes, no campo
epistemológico. Em sua concepção as noções de território, associadas a discursos de natureza
identitária, são também passíveis de ser lidas como estratégias de vinculação sócio-política (em
sentido aberto, da definição de grupos, de sua mobilização, de seus sentidos da ação). A questão
é colocada nos seguintes termos:
Territórios são constituídos como parte indissociável de processo identitário
quando a identidade propugnada [...] importa na necessidade estratégica de [...]
ser afirmada como modalidade que remeta a um acontecimento originário,
fundador, instituído como mito. Trata-se, então, de uma estratégia de
remetimento a uma imaginada fundação mítica, por intermédio de um imaginado
território sacro associado a esse momento primórdio (ARAUJO, 2007, p. 31-32).
Deste modo, em nossa aplicação, “territórios” seriam definições acerca do espaço,
abstrato, tornado “concreto” e diferenciado, específico, nomeado e recortado, também pela via da
linguagem, da nomeação e da relação com o grupo social individualizado e auto-identificado como
vinculado a determinado conjunto de signos. Isto ocorre no caso em estudo, especificamente. A
narrativa, já citada, que constrói o contexto em que “Belém do Pará nasceu do amor geográfico
entre o rio Guamá e a bela baía do Guajará” (MOVIMENTO ORLA LIVRE, 2005) tem relação com esta
espécie de mito de origem, que dignifica a gênese do fenômeno e sobretudo o constrói intocável e
despolitizado (Araujo, op. cit.)
A idéia de uma “identidade” ribeirinha atribuída aos habitantes de Belém-PA, ou a
algumas de suas atividades e grupos sociais, tem repercussões em outros domínios. Além de
apresentar-se como traço identitário, nesta construção social que remete a um contexto idealizado
122
e mítico, e a uma característica definidora que aglutina e que deveria arregimentar adesões à
causa, a figura do “ribeirinho” é apropriada e acionada em pelo menos duas frentes diversas. A
primeira relaciona-se com este perfil supostamente identitário, uno e consensual. A segunda tem
aspectos de estigma; o ribeirinho — ou a noção de “ribeirinho”, amorfa e inespecífica como são
os sensos-comuns — pode representar uma cidade deteriorada, desperdiçando os potenciais que
o território lhe permitiria caso houvesse adesão aos modelos hegemônicos de planejamento e
desenho urbanos. O atraso, portanto, pode ser e é, de fato, associado a algumas variações da
noção de “ribeirinho” no debate sobre a intervenção territorial nas margens fluviais de Belém-PA.
Esta associação é feita, sobretudo, a respeito da ocupação irregular das periferias urbanas nas
terras alagáveis da cidade.
A uma narrativa dos sentidos do “ribeirinho” na cidade de Belém-PA pode também ser
associada a construção social e a ocupação concreta das áreas de baixadas. A baixada, em
Belém-PA, é outra figura emblemática, entre o mítico e o maldito, circulando entre o noticiário
jornalístico, as descrições de natureza sociológica e o métier do planejamento local. Por baixada
entende-se as áreas de ocupação urbanística e juridicamente irregular, locais de moradia da
pobreza urbana local e de migrantes, formadas nas planícies de inundação e terras alagáveis em
geral, sobretudo situadas nas proximidades de bairros consolidados de Belém-PA. Tecnicamente,
ao falarmos de sítio físico, podemos acrescentar um aspecto essencial; as baixadas costumam ser
qualificadas de modo prático pelo setor de saneamento local como as ocupações irregulares e
pobres situadas abaixo da cota altimétrica 4,00 metros (SUDAM; DNOS; PARÁ, 1976). Este ponto
de corte é de uma clareza e uma capacidade definidora significativa para o estudo da realidade
desta favela local. A partir da separação entre terras altas e baixas, e em sua relação com o regime
de marés, a urbanização local apresentou traços de segmentação social; terras de cotas
relativamente mais altas, e não sujeitas diretamente ao regime de marés, foram progressivamente
ocupadas por grupos de maior renda, e as terras baixas e alagáveis, ainda à margem do mercado,
eram predominantemente ocupadas pelos pobres (PENTEADO, 1968). A situação de terras devolutas
e de glebas doadas à municipalidade através do instituto das sesmarias colaborava na formação
deste quadro fundiário (OBSERVATÓRIO, 2005). Através do padrão contemporâneo de ocupação
irregular do solo urbano no Brasil entendemos que esta situação acompanha, portanto, uma
tendência nacional; os pobres urbanos, sobretudo na segunda metade do século vinte, ocupam
preferencialmente terras públicas ou de fragilidade/proteção ambiental (MARICATO, 2000). Este
padrão criou, simultaneamente, um quadro de problemas sócio-ambientais, sócio-econômicos e
123
físico-territoriais intrincado, que atesta a tensão e a concentração das formas de uso e
ocupação do solo urbano no país.
As baixadas¸ como as áreas periféricas em geral, têm o seu estigma. Suas populações,
do mesmo modo, foram descritas pelo setor de planejamento local com uma espécie curiosa de
aplicação da sociologia durkheimiana aos estereótipos diversos acerca do morador da periferia no
Brasil:
Devido à origem interiorana, as populações das baixadas geralmente apresentam
hábitos e costumes manifestados pelos tabus e crendices, curandeirismo,
fatalismo, conformismo e mentalidade reivindicatória imediatista. Marginaliza-se
às novas formas de vida na cidade, gerando acomodação, passividade, alto grau
de anomia; o individualismo e a ausência de participação são uma constante,
sendo as relações sociais restritas à família e à vizinhança... (SUDAM; DNOS;
PARÁ, 1976. p. 51).
Deste modo, populações moradoras de baixadas, freqüentemente de origem rural,
recebem este tipo de avaliação. As baixadas, que guardam forte relação com as estratégias de
implantação em terras alagáveis, recebem esta apreciação por analogia, digamos; afinal, trata-se
praticamente do mesmo fenômeno. Assim, a associação entre a idéia de ribeirinho e de baixada,
em Belém-PA, tem certa proximidade, e se revela como uma possibilidade de entendimento da
questão da ocupação urbana e das águas na cidade.
As baixadas são espaços marginalizados, e habitam o terreno do que se chamava
genericamente no Brasil de vazios urbanos, áreas ocupadas por populações pobres, sem infra-
estrutura, que não constavam dos cadastros físico-territoriais oficiais (MARICATO, 2000). O
cadastro urbanístico que formava a sistematização da ocupação da cidade em finais dos anos
1970, feito pela Companhia de Desenvolvimento da Área Metropolitana de Belém (CODEM) reflete
este aspecto. Em seu traçado, áreas situadas em parcelas nobres do município surgiam com
configuração esparsa, imprecisa ou mesmo inexistente. Estes elementos sugerem as formas pelas
quais as idéias de baixada e versões particulares da idéia de ribeirinho podem ser vistas como
elementos carregados de estigma e de conotações ameaçadoras ao ideal de cidade concebido e
praticado pelas elites locais.
Por estas razões, o ribeirinho, espécie de figura-síntese criada para denominar e adjetivar
um aspecto eleito como fundamental da urbanização local, traz certa conotação marginal. Além de
ser acionado como uma espécie de “marca” da urbanização local, o ribeirinho é, também, a
síntese da população outrora interiorana, sem modos e brutalizada das baixadas e das áreas
periféricas alagadas em geral. O ribeirinho, nas acepções comumente trabalhadas em discursos da
124
imprensa, das administrações públicas e de técnicos do planejamento urbano local, aparece ao
mesmo tempo como figura idealizada e maldita; como expressão do desejo de litoral “recuperado”
da cidade e como temor de sua sujeira e violência a escorrer pelos leitos de seus rios/canais.
O ribeirinho, portanto, revela-se uma idéia versátil e de grande plasticidade. Esta idéia é
trabalhada tanto em projetos de intervenção urbanística e sanitária, em empreendimentos
imobiliários de classe média e alta, no texto da legislação municipal, quanto nas argumentações
técnicas acerca da remoção urbanística e da reconfiguração territorial das margens fluviais da
cidade. Algumas descrições do território de Belém e de suas intervenções reforçam esta
duplicidade de sentido:
Num dos mais nobres pontos em que Belém abre suas janelas para o rio, um
belo cais nos convida a embarcar no rumo da arte e do lazer. Na orla entre a
modernidade e a cultura ribeirinha, a Estação das Docas prova que a inovação
arquitetônica e a recuperação do patrimônio histórico podem viajar juntas e em
perfeita harmonia (PARÁ 2000, 2008, p. 1).
A beleza natural da Amazônia pousou na orla de Belém. As cores, as fragrâncias
e os encantos da paisagem nortista se transformaram em asa ao olhar. O ninho
onde se guardam essas impressões é um lugar chamado Mangal das Garças.
Criado às margens do rio Guamá, em pleno centro histórico da capital paraense,
o parque ecológico é resultado da revitalização de uma área [...] no entorno do
Arsenal da Marinha (MANGAL DAS GARÇAS, 2006, p. 1).
O Portal da Amazônia pretende recuperar a área ambiental e área social
degradada. Nossa maior aspiração é colocar Belém de frente para o rio. São
6,250 km de orla, de área de lazer, onde as pessoas utilizarão a área em torno da
cidade. Poderemos ter marinas, portos, dando uma levantada no turismo e
dando mais opção para o turista que visita a capital (O LIBERAL, 29 dez. 2006, p.
2).
Seurb vai remanejar 380 famílias ribeirinhas
As obras do 'Portal da Amazônia' viram alvos de reclamações dos moradores e
comerciantes dos bairros afetados. Uma das queixas é o remanejamento dos
pontos comerciais situados às margens do rio Guamá para rodovias como a
Arthur Bernardes. Outro problema é o remanejamento das famílias que moram
próximas às obras da orla da capital paraense. Os moradores criticam ainda a
futura desativação do 'Porto do Açaí', de acordo com informações divulgadas
pela Secretaria Municipal de Urbanismo (SEURB). Ontem, o secretário municipal
de Urbanismo [...] reforçou que 380 famílias que vivem às margens do rio vão
ser remanejadas porque vivem em áreas consideras de risco. Além disso, o
projeto vai garantir a urbanização de regiões degradadas e acesso a portos que
deixarão de ser privados para se tornarem públicos (AMAZÔNIA JORNAL, 28 mar.
2009, p. 2).
O 'Projeto Orla' do governo federal já está sendo realizado em vários Estados
brasileiros. Dentre os quais, Rio de Janeiro, São Paulo, Piauí, Rio Grande do
Norte, Paraná, Bahia e Amapá. O objetivo é preservar e recuperar a orla
brasileira, disciplinando a ocupação de sua orla, levando-se em consideração
aspectos sócio-ambientais.
[...] explica que sabe que a tarefa de remanejamento dos moradores da avenida
Bernardo Sayão será uma das mais difíceis para a execução da obra.
125
[...]
Moradores querem ficar perto
Na avenida Bernardo Sayão, alguns moradores se dizem favoráveis ao
remanejamento, desde que para um local próximo de seus endereços atuais e
mediante uma indenização financeira equivalente ao valor de seus imóveis.
A moradora Regina Sales, de 35 anos, mora bem na beira do canal há cerca de
5 anos. Ela conta que o prefeito [...] esteve lá, em outubro do ano passado,
conversando com os moradores. 'Ele (o prefeito) disse que ia negociar com o
governo do Estado para que nós fôssemos remanejados para o terreno que fica
na avenida', disse a moradora (AMAZÔNIA JORNAL, 06 fev. 2006, p. 2).
BECO DO CARMO
Urbanismo
No dia 18 a polícia desfez um reduto do tráfico de drogas que se formara no
Beco do Carmo, na Cidade Velha, prendendo 18 pessoas no local. A prefeitura
devia vir imediatamente atrás para limpar a área. Não só complementando a
ofensiva contra os traficantes, mas abrindo um novo horizonte para a cidade na
orla. Todas as construções voltadas para a baía são ilegais. Até a década de 40
descia-se do Largo do Carmo para o beco vendo a água. Aos poucos, as
construções, todas precárias, foram ocupando o espaço.
Acabaram por se tornar antros do crime, sujando a paisagem e desvalorizando a
área. Está na hora de atacar essa chaga e fazer a assepsia urbana, qualificando
melhor esse belo perímetro da cidade (JORNAL PESSOAL, 15 jul. 2008. Grifos do
autor).
O último texto das transcrições acima é de autoria de jornalista de grande notoriedade
local, membro da elite intelectual da cidade e com grande atividade na discussão de questões
coletivas. O ativismo do jornalista, considerado uma figura libertária e de inclinação política à
esquerda na região, o impede entretanto de ser crítico à própria ideologia da desobstrução do rio
que vigora no debate público local. Note-se que o jornalista o faz usando os jargões funcionalistas
e pejorativos de forma muito semelhante àquela feita na Monografia das Baixadas (SUDAM; DNOS;
PARÁ, 1976), espécie de clássico local do planejamento urbano, citada neste trabalho. É, deste
modo, um fenômeno curioso da disseminação e da ampla aceitação do discurso da devolução da
orla da cidade, de que nos ocupamos em momento anterior (PONTE, 2004), e uma aplicação da
idéia do ribeirinho como algo a limpar e remover, incluindo as metáforas médicas e biológicas do
poder difuso a que se refere a ação de reurbanização neste caso. De certo modo, é como se o
ribeirinho pudesse sofrer assepsia, o que nos lembra as formulações da aplicação do poder, no
discurso e nas ações políticas, de Foucault (2004). A partir da construção de uma espécie de
mentalidade que recomenda o que se deve fazer com aquele espaço, concebe-se uma forma de
intervenção e também uma normativa, um princípio regente (FOUCAULT, 2004). As formas de
conceber o mundo, neste caso, se coadunam com as estratégias de intervenção sobre ele, e com
o posicionamento dos agentes no campo social (BOURDIEU, 1996b).
126
Deste modo, a idéia-síntese do ribeirinho se mostra como elemento útil para produzir
determinados tipos de legitimidade social, de vínculo e de propriedade cultural e sócio-política no
interior de grupos sociais na cidade de Belém-PA. O recurso ao regionalismo, como citado, tem
esta função, ou esta estratégia (BOURDIEU, 1996a). Por outro lado, a idéia de ribeirinho remete à
dimensão pejorativa do grupo social e do indivíduo interiorano, produtor de um espaço precário,
rude, anti-sanitário, numa espécie de representação do rufião, do caipira (WILLIAMS, 1989), e do
caráter primário e rude, da ignorância intelectual atribuída aos caboclos da região.
A idéia do ribeirinho e seus usos, portanto, têm notável plasticidade por operarem como
trunfos no jogo social da reconfiguração territorial das margens da cidade. Ora traço identitário,
definidor, síntese e característica da qual se deve orgulhar e resgatar; ora a representação de
precariedade, arcaísmo, atraso, sujeira e desordenamento espacial, a idéia e as formas territoriais
do ribeirinho (ou as idéias projetadas, apenas concebidas, desta forma territorial) são acionadas
conforme a intenção do agente social em questão. Empreendedores imobiliários acionam o
ribeirinho para a venda de apartamentos de classe média e alta; a Prefeitura Municipal, de forma
dual, para justificar remanejamentos em áreas de intervenção urbanística e, ao mesmo tempo, para
fundamentar as suas próprias intervenções, dando-lhes o caráter do suposto “resgate” da
“identidade ribeirinha” outrora presente até mesmo no texto da legislação urbanística local.
A leitura que os agentes do mercado imobiliário da cidade fazem nos permite, por outro
lado, ver uma forma clara de apropriação do debate e da imagem criada em torno do ribeirinho em
Belém-PA. Isto também denota a construção de uma paisagem da cidade. O ribeirinho compõe,
com as margens fluviais de Belém, o quadro do que atualmente se chama orla na cidade. A idéia
de que Belém-PA deva, contemporaneamente, receber intervenções urbanísticas capazes de
dinamizar a economia local e incrementar a qualidade ambiental da cidade é a tônica deste projeto
amplo, aberto e inespecífico da orla. De qualquer modo, a associação entre o ribeirinho e a orla é
que nos permite fazer uma leitura desta duplicidade de sentidos.
Em um momento o ribeirinho pode ser o elemento aglutinador de uma construção social
em que a relação entre vínculo sócio-cultural e a decisão de recorte espacial (ARAUJO, 2007) — ou
seja, uma definição particular de território — ocorre na prática. É deste modo que se pode
conceber, portanto, uma espécie amorfa e inespecífica, aberta, de “cidade ribeirinha”. Nela não
estão presentes, entretanto, os elementos da pobreza, das estratégias de assentamento e de
sobrevivência presentes nas baixadas e na arquitetura tradicional de assentamentos periféricos
urbanos, sobretudo aqueles situados em bairros ainda próximos do centro. O traço ribeirinho existe
127
como adorno, como diferencial e como marca, referência imagética na construção estética e
política da cidade a se renovar e se redimir do quadro de estagnação econômica recente. O
ribeirinho, aqui, é parte da justificativa do retorno da “cidade”, outrora ribeirinha, a suas origens.
Como a baixada estava ausente do discurso elogioso do ribeirinho, passa a surgir nas
justificativas da remoção urbanística, na qualificação temerária dos riscos ambientais urbanos, da
situação crítica da iminência das enchentes e de doenças de veiculação hídrica. Estes aspectos
são ressaltados em paralelo à irregularidade urbanística e fundiária da ocupação. Mais
recentemente, a baixada obteve outros elementos de referência negativa acerca da idéia de
ribeirinho no espaço da cidade: a relação com o tráfico de drogas e com o fluxo irregular e informal
de mercadorias e pessoas pela via fluvial. Assim, além do recente discurso do risco ambiental, a
baixada de beira de rio em Belém-PA apresenta-se como local potencial da criminalidade, da
ilegalidade. Deve ser, portanto, removida. Neste aspecto a “identidade ribeirinha” é rejeitada, ou
melhor, reconstruída; teme-se a precariedade, o risco e a improvisação das estratégias de
construção da baixada.
O rio, portanto, tem pelo menos dois usos diferentes postos em movimento na atribuição
de sentidos sobre a paisagem e em ações concretas de intervenção territorial.
128
Ilustração 18 Publicidade de empreendimento situado nas proximidades da zona portuária, um dos primeiros a utilizar
como mote o diferencial locacional da "orla" fluvial de Belém. O nome “esotérico” e a promessa do empreendimento se
articulam com o caráter excepcional do padrão vendido, com unidades de 421 m², cinco suítes, quatro vagas de
garagem e “de frente para a baía, com uma vista sem igual” (CHÃO E TETO, 2007).
129
Ilustração 19 A sacada do empreendimento Aquarius Tower Residence, em forma de quilha de embarcação, sugere
analogia com uma idéia simpática ao ribeirinho, conforme depoimento do próprio projetista, dado ao autor em
dezembro de 2003. Fonte: Chão e Teto (2007).
Ilustração 20 Empreendimento de 37 pavimentos no bairro do Umarizal, área nobre da cidade em franca expansão do
mercado imobiliário local, com unidades de 270 m² e divulgação de “[...] várias opções de planta e uma bela vista
para a Baía do Guajará” (CHÃO E TETO, 2007).
130
Ilustração 21 Empreendimento já construído e habitado em Belém, também situado nas proximidades da zona
portuária, no bairro do Umarizal, atesta o bom desempenho dos produtos imobiliários de localização associada à "orla"
da cidade. A “vista maravilhosa para a Baía do Guajará” é um dentre vários motes do mercado imobiliário para
ressaltar os diferenciais da ocupação nas margens fluviais da cidade — e para marcar o caráter diferenciado da
compra.
131
Ilustração 22 Publicidade recente de lançamento imobiliário em Belém-PA atesta o apelo econômico dos diferenciais
de localização de seus cursos d´água; anúncio cita a "vista majestosa para a baía" como slogan para vender a nobreza
do empreendimento. Fonte: <http://i245.photobucket.com/albums/gg55/Drico-bel/Noblesse.jpg>. Acesso em: 10 jun.
2009.
132
Ilustração 23 Publicidade de edifício residencial em Belém, na fronteira entre os bairros de Batista Campos (no
chamado centro expandido, área nobre da cidade) e Jurunas (na periferia próxima, vetor de expansão do mercado
imobiliário local) divulga como diferencial a proximidade do “[...] belíssimo Mangal das Garças, esse empreendimento
foi feito para você”. Nota em jornal local cita que a empresa construtora e incorporadora ressalta “[...] um amplo
espaço gourmet na cobertura, com vista de 180º para a capital e para a baia do Guajará, será um dos diferenciais do
Carpe Diem, novo empreendimento [...]” (SOARES, 10 jun. 2009). Notícia de jornal informa que o empreendimento tem
tido alta procura (DIÁRIO DO PARÁ, 19 mai. 2008). Fonte: <http://www.gafisa.com.br/imoveis/pa/belem/carpe-diem-
belem>. Acesso em: 10 jun. 2009.
133
3.5. ALGUNS TIPOS DE INTERVENÇÕES NA INTERFACE CIDADE-ÁGUA
Neste trabalho a questão da formação territorial urbana, em termos contemporâneos, e
em sua relação com um dado elemento ambiental, a água, é o ponto central. Deste modo, a
construção de uma problemática da água na cidade passa, necessariamente, pela exemplificação e
pela ilustração de fenômenos concretos que, no escopo de seus fatos e condicionantes, expõem
os contornos de uma possível questão da água na cidade atual. Para efeito de elaboração deste
trabalho, o caso da cidade de Belém, no Estado do Pará, Norte do Brasil, é tomado como
referência. A urbanização de Belém-PA, por razões históricas e pela sua implantação físico-
territorial, tem conexão variada e permanente com diversos elementos tidos pela teoria geográfica
como condicionantes da produção do espaço no litoral, ou sob algum tipo de influência dos cursos
d´água em geral (DOUMENGE, 1967; MORAES, 1999). Dentre estes elementos, a constituição de um
porto tecnicamente qualificado no princípio do século XX; a implantação de entrepostos diversos; a
ocupação urbana de alguns quilômetros da faixa de margens fluviais do terreno da cidade; a
formação de preços nestas terras urbanizadas, criando padrões de diferenciação, elitização e
segregação a partir de formas diversas de uso e ocupação do solo, bem como de apropriação do
território conseqüentemente produzido.
Belém-PA, atualmente, passa por transformações de caráter urbanístico significativas.
Este processo, que data do final da década de 1990, teve lugar na cidade a partir de políticas de
desenvolvimento econômico ligadas à produção de lugares e a partir da implantação de novas
estruturas técnicas no território. Historicamente, este contexto pode ser localizado a partir de
algumas intervenções territoriais específicas, sobretudo aquelas levadas a cabo pelo Partido da
Social Democracia Brasileira (PSDB), em doze anos de gestão estadual, e pelo Partido dos
Trabalhadores (PT) em oito anos de administração municipal. Estas intervenções marcam o ponto
inicial de transformação do espaço urbano em Belém-PA, na questão específica da urbanização às
margens da água, mas há fenômenos posteriores.
Além das intervenções urbanísticas, estritamente falando, ações de caráter institucional e
técnico tomaram lugar na cidade. Agrupamos, neste trabalho, estas ações em conjunto com as
intervenções urbanísticas, chamando-as genericamente de intervenções territoriais. Estas ações
técnicas e institucionais são representadas, basicamente, pela aplicação de tecnologias ambientais
urbanas em Belém-PA e região, e pela relação destas tecnologias e outras ações urbanísticas com
a implantação de uma política de gestão de recursos hídricos em escala regional. Em síntese,
134
portanto, as intervenções territoriais seriam indicativos de que há uma questão da água na
cidade, ou de que pelo menos está se construindo uma problemática que relaciona elementos
históricos da estruturação urbana com dinâmicas de modernização, em diversas atividades. As
intervenções territoriais, portanto, dizem respeito às tecnologias ambientais urbanas ou à
engenharia ambiental; à requalificação/revitalização de áreas históricas portuárias e à adoção da
água como paisagem cultural (ZUKIN, 2000); à modernização portuária e à aplicação, mais ampla,
difusa e institucionalmente poderosa, da política de gestão de recursos hídricos. Tais intervenções
variam, basicamente, em torno de algumas características:
No caso de equipamentos públicos ligados à chamada economia da cultura (JAMESON,
1996; 2001) haveria relação com a chamada indústria da herança (HARVEY, 2000), o que
converteu aspectos histórico-culturais das cidades em mercadorias, itens de marketing
na competição interurbana pelos novos ativos da economia das cidades. Nestes locais a
água na cidade tem seus atributos paisagísticos ressaltados, sobretudo. Em abordagem
correlata, trata-se da produção de lugares, isto é, de espaços urbanizados com a
pretensão de produzir ou reatar vínculos de sociabilidade supostamente estabelecidos
historicamente na relação funcional e na fruição estética da paisagem do rio e da baía.
Por fim, surgiram, posteriormente, intervenções em diversas escalas, com
características e propósitos técnicos diferentes, que lidam com variantes da dimensão
ambiental da cidade, seja pela via da adoção de tecnologias de drenagem e vegetação
mais compreensivas diante das dinâmicas físico-ambientais locais ou pela criação de
parques urbanos de características paisagísticas mais evidentes.
Estes fenômenos são aqui tratados sob dois pontos de vista, portanto. Pretende-se
esboçar aspectos históricos e conceituais destas intervenções e, em seguida, discutir a extensão e
a viabilidade de uma questão da água na cidade. Estes temas apontam para direções diferentes.
No primeiro há uma preocupação de caráter histórico; a intenção de fazer uma reflexão acerca das
particularidades e possíveis generalizações do processo de constituição de um espaço construído
urbano, da transformação da paisagem, do ambiente e da atribuição de sentidos ao ambiente, na
proximidade da água. No segundo ponto, tenta-se um conjunto de perguntas e de tendências da
cidade, relacionando-a com aspectos do debate contemporâneo sobre formas de apropriação
material e simbólica da natureza.
Uma possível questão da água na cidade, a partir do caso de Belém-PA, por exemplo,
poderia sugerir alguns processos cuja constituição, enquanto fenômeno com alguma unidade
135
interna, seria recente. Obviamente, dadas as diferenças de escala, de porte e de economia,
Belém-PA e sua região não configuram aquele aglomerado urbano de padrão metropolitano de
grande alcance, de influência nacional na rede urbana brasileira36
. Por outro lado, a formação
histórica e territorial da cidade é um caso concreto de interesse para estudar a tensão entre as
formas de uso e apropriação deste elemento que podemos enquadrar como parte do ambiente e as
dinâmicas de ocupação territorial propriamente ditas. A relação da estruturação urbana de Belém-
PA com os cursos d´água é antiga, original, e passou por processos de transformação ao longo
de seus quase quatro séculos de existência. Assim, a cidade pode ser tomada como caso de
interesse para uma reflexão sobre o processo de urbanização e uma questão aberta da água,
atualmente.
A idéia de relacionar intervenções territoriais e a elaboração de uma possível questão
urbana da água é devida à possibilidade de enfeixamento de fenômenos diversos em torno da
concentração de acesso ao ambiente na cidade. A água, especificamente, vem sendo objeto de
construção de uma problemática, do mesmo modo, em frentes diversas; recurso ambiental
escasso, diferencial locacional, fator de produção, item relevante paisagisticamente. Estas
possibilidades de uso da água tomam, na cidade, uma dimensão capaz de aglutinar eventos
diferentes em uma questão. A junção destes diversos fenômenos, lidos em seu viés urbano, passa
pela política ambiental, de forma ampla. A transformação do quadro territorial, através da
intervenção normalizadora e de suas aplicações aos elementos da natureza na paisagem, deixa
como legado uma paisagem que, alterada, reflete uma natureza ecônoma e administrada
(CAUQUELIN, 2007). Deste modo, preceitos declarados das diversas abordagens da política
ambiental, como a democratização do acesso aos recursos — o que, em termos conceituais,
representaria certa dimensão de contra-senso diante da lógica da economia capitalista (HARVEY,
1996b) —, revelam, em seus efeitos, dinâmicas de concentração, de padronização, de exclusão e
de veto ao ambiente. Esta clivagem parece existir justamente nas variadas formas da água na
cidade, seja esta paisagem cultural, elemento e substância, veículo ou recurso. Deste modo,
parece haver, hoje, certa convergência entre os propósitos e os efeitos destas diferentes
36
A Região Metropolitana de Belém (RMB), segundo estudo do IPEA, é uma metrópole de menor alcance, caracterizada como
Metrópole Regional na hierarquia de cidades da rede urbana brasileira — uma classificação que coloca a aglomeração numa
espécie de “terceira categoria”, atrás dos níveis global e nacional (GONÇALVES; BRANDÃO; GALVÃO, 2003). A RMB, em estudos
recentes, é caracterizada como aglomerado urbano de alta integração, mas de condição social entre média e baixa, e com alto
grau de concentração de riqueza e atividades econômicas (OBSERVATÓRIO; FASE, 2005).
136
intervenções territoriais, manifesta na questão do ambiente urbano, entre outros contextos.
Em relação a este aspecto de convergência, parece haver hoje a construção de uma
política de controle da água. Esta política não se estrutura de modo formal, mas ocorre de forma
difusa, mas não menos eficiente do ponto de vista social. Haveria ações variadas que representam
uma forma particular de apropriação material e simbólica e de atribuição de sentido à natureza e a
formas de produção do território na cidade. Esta política não equivale, propriamente, a ações
institucionalizadas que visam as já consagradas políticas de gestão de recursos hídricos, por
exemplo. Tais ações, na verdade, fazem parte desta ampla “política”. De fato, são ações de
instauração, materialização, homogeneização e difusão de poder, identificáveis nestes espaços até
aqui ligeiramente qualificados como zonas de interface37
. Um conjunto destas ações de algum tipo
de planejamento, ordenamento, concepção de desempenho institucional e político, e de
comportamento de agentes sociais é o que parece formar esta política aberta de controle da água.
Na questão da interação entre os agentes sociais e na formação de um quadro político-institucional
este fator é mais evidente; forma-se, hoje, um padrão e uma expectativa em torno do desempenho
de certas políticas com algum rebatimento ambiental, bem como em relação à atuação de certos
agentes, hoje demandados como necessariamente “sustentáveis”, por exemplo (BRENNER;
THEODORE, 2002). A conjunção entre a vigência das normas e das políticas de Estado, associada às
expectativas e atuação dos agentes sociais produz, em escala ampliada, algo muito próximo das
formas do poder difuso e nem sempre centrado no Estado que Foucault (2004) descrevia para os
casos de estudo de sua micropolítica. Assim, efeitos e o contexto histórico atual, incidentes sobre
a relação entre território urbano e água, indicam a concentração de padrões de configuração
territorial, usos e formas espaciais nestas áreas. Embora haja diretrizes de democratização do
acesso aos recursos ambientais disponíveis nas formações territoriais (como em relação à
37
Vale alguma consideração sobre o termo. A idéia proposta de interface pretende qualificar a especificidade das terras às
margens da água em relação às demais terras emersas. A partir das considerações de Moraes (1999) sobre a zona costeira
brasileira, por exemplo, é possível atribuir uma série de elementos próprios deste ambiente. Nele são desempenhadas
atividades virtualmente exclusivas (MORAES, op. cit.) de transportes e também algumas outras atividades da economia, como a
pesca. Estas zonas de interface costumam ter preços da terra em geral mais altos do que aqueles dos terrenos vizinhos (idem,
op. cit.), e apresentam, com freqüência, patrimônio construído e diversidade de atividades mais expressivos e vultosos do que
outras áreas do território. O caráter “idiossincrático” da interface entre o território e a água também pode ser lido no imaginário
das numerosas narrativas, mitos e modos de vida associados ao mar, aos lagos, aos rios. Pode ser visto, portanto, na
alimentação e na enumeração das dádivas da vida; nas construções sociais das criaturas habitantes das águas (CORBIN, 1989);
no expressivo conjunto de artefatos e técnicas de obtenção de alimentos, navegação e obtenção de materiais diversos para
construção; na instauração de um “modo de vida”, de uma dinâmica social particular (DIEGUES, 1998), vinculada tanto a
aspectos econômicos da atividade à beira-mar (ou beira-rio, lago, estuário, etc.) quanto às construções sobre o sentido e a
importância do ambiente, e às formas de transformação da paisagem praticadas pelas populações.
137
questão água e cidade), os efeitos destes novos padrões têm sido justamente os da criação de
divisões, de formas de veto e de impedimento.
Como na formulação do “estriamento” do espaço do mar de Deleuze e Guattari (1997b),
há hoje a estruturação de uma rede de mecanismos de coerção, de controle e de formas
renovadas da abordagem das territorialidades frente ao ambiente. A questão direta, para os
autores, era o mar e seu estriamento; o surgimento da cartografia, das projeções geométricas, da
técnica de triangulação como meio de localizar e mapear pontos num espaço abstrato
cartografado. Neste trabalho podemos pensar uma analogia com este raciocínio, a partir desta que
é uma operação tipicamente moderna; racionalizar, quantificar, geometrizar, esquadrinhar e zonear,
de modo a produzir formas “desejáveis” de territorialização e normatividades específicas quanto às
formas desviantes.
O espaço do mar, tido como o espaço dos fluxos não monitorados por excelência,
tornou-se objeto de um esquadrinhamento das posições e deslocamentos. Além disso, com o
desenvolvimento da navegação, houve certa expansão dos horizontes do capitalismo comercial e
da própria idéia de “mundo”, a partir das Grandes Navegações dos séculos XV e XVI. Apesar da
diferença aparente de “objeto”, trata-se de coisas semelhantes; do desenvolvimento de formas de
mapeamento e de poderes diversos agindo sobre o espaço e suas dimensões.
O território de parte da cidade de Belém-PA e de seu entorno, no que tange às relações
entre a cidade, a ocupação do espaço e a presença da água, é portanto apropriado a esta
discussão. Ainda no esforço de detalhamento do objeto deste estudo, interessa discutir a
convergência entre iniciativas diversas atuantes sobre o território urbano nas proximidades da
água, e seus efeitos de concentração de benefícios e criação de um quadro de ordenamento
territorial específico e segregador. Alguns destes elementos, citados anteriormente, caracterizam
fenômenos específicos; são materializações concretas dos quatro tipos de intervenção territorial
na relação entre cidade e água. Sugerimos, por um lado, uma descrição de características gerais
que mostram diferentes abordagens da água na cidade, correspondentes a cada tipo de
intervenção territorial. Sucintamente, tais intervenções são as seguintes:
O parque ambiental (chamado “naturalístico”) Mangal das Garças; o complexo Feliz
Lusitânia, de edifícios históricos no sítio de fundação da cidade; a Estação das Docas,
espaço da zona portuária convertido em típico waterfront, parque urbano destinado ao
consumo, às amenidades e ao cultivo do gosto diferenciado do gourmet (ZUKIN, 1991) e
138
da chamada “economia da cultura” (JAMESON, 2000); a previsão do projeto Portal da
Amazônia, concepção de mais de 6 Km de via às margens do Rio Guamá com
“renovação” urbana prevista nos moldes do Planejamento Estratégico de Cidades,
incluindo expressiva remoção de populações e de usos. Além destes, é citado outro
conjunto de intervenções, executadas por outros agentes políticos, pretensamente mais
“democráticas” e socialmente “inclusivas”, tais como o complexo Ver-O-Rio, área de
lazer e convivência próxima aos galpões do porto. Outras iniciativas, sobretudo no âmbito
privado, têm tido repercussão recente. Para o escopo do trabalho, tais fenômenos
reforçam a centralidade do tema da territorialidade nas proximidades da água, e
particularmente no caso em estudo.
A discussão e algumas ações para a modernização da Zona Portuária de Belém,
segundo a lei brasileira de modernização portuária (BRASIL, 1993), que incluem a
construção de novos terminais portuários, o debate em torno da remoção de carga e
reordenamento do fluxo de passageiros no secular Porto de Belém. Esta discussão, aliás,
é feita nos mesmos termos e com conteúdo muito semelhante àquele da modernização
portuária em vários outros locais do país e do mundo, e é sintomática da transformação
do setor. Assim como no caso do esquadrinhamento do mar (DELEUZE; GUATTARI, 1997b),
a técnica é materializada em uma política, um conjunto de agenciamentos de
monitoramento e comando. A técnica, também, passa a ser instrumento de recodificação
do ambiente, em direção a um tipo de apropriação mais instrumental, pautada pela
racionalidade moderna e por critérios de eficiência funcional.
Aplicação de técnicas e conhecimentos da ecologia e das ciências ambientais em geral,
materializadas, neste estudo, na implantação do previamente citado parque ambiental
Mangal das Garças e no projeto de macrodrenagem da Bacia Hidrográfica da Estrada
Nova, parte do projeto de saneamento da intervenção urbanística do Portal da Amazônia.
Discussão pública, formulação e execução de políticas para a chamada gestão dos
recursos hídricos e seus correspondentes ordenamento territorial e arcabouço
institucional. Para este trabalho é tomado como referência o caso específico da política
de gestão de recursos hídricos da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) do
Governo do Estado do Pará. Este item incorpora a expressiva importância que a rede
hidrográfica tem na economia e na sociedade amazônicas, embora tratadas sob outro
aspecto. Isto também se mostra relevante porque evidencia a concepção atual de
139
tratamento para as áreas onde ainda existe a figura da terra-livre (MARX, 1986) (isto é,
da não-vigência total da posse e propriedade da terra, do compartilhamento informal de
“recursos” naturais38
), de características ainda parcialmente pré-capitalistas, e seu
conflito com tópicos do processo de modernização. Atualmente, há organizações do
setor público, na região, delineando uma política de ordenamento territorial ligada ao
mapeamento e a formas ainda incipientes de gestão do uso da água (PARÁ, 2005b).
O conjunto de tais elementos é o que permite o delineamento mais claro do estudo.
Haveria, a partir destes elementos, a construção de uma dimensão representativa da água diante
do processo de territorialização das populações atuais, no estuário da Baía do Guajará, nas
proximidades do município de Belém-PA. Obviamente é impossível cobrir o assunto
completamente, daí o recorte territorial e temporal. O caso de Belém-PA é representativo porque,
de alguma forma, condensa elementos que compõem parte relevante da discussão atual do
planejamento urbano sobre as ditas “águas urbanas”. Estes elementos incluem a conversão da
idéia (múltipla, necessariamente) de “natureza” em “paisagem” de consumo estético, visual,
através de um novo urbanismo e um novo planejamento urbano que se pretendem ambientalmente
“responsáveis”, ecológicos. Por outro lado, apontam para a conversão dos antigos ditos “bens
econômicos imperfeitos” (isto é, o ar, etc. e, no nosso caso, a água) em formas mais adequadas à
circulação no mercado, à incorporação a circuitos da troca econômica (LEFF, 2003) e, sobretudo,
aos seus mecanismos de valoração e valorização econômica (LEFF, op. cit.; MORAES, 1999). Esta
incorporação à esfera da circulação implica numa abordagem cultural, simbólica e numa forma
nova de apropriação econômica da natureza (LEFF, 2006). A racionalização do mundo, portanto,
estende-se aos domínios da natureza, entendida como materialidade (com diferentes sentidos
atribuídos a cada tempo histórico) com rebatimentos nas formas de produzir, de organizar o
território, na reprodução social (LEFF, op. cit.) e na formação de um ideário prospectivo e de uma
estrutura representacional e simbólica, enfim.
Como na formulação das possibilidades de fluxos entre o humano e o não-humano (isto
é, algo que o Ocidente chama de “natureza”), os domínios externos ao humano, aí incluídas
dimensões físico-ambientais e bióticas, são tratados de formas múltiplas. Deste modo, elementos
38
Para maiores detalhes a respeito, ver Almeida; Sprangel, 2002. Este seria um lado mais “rural”, digamos, da problemática.
Na verdade, há uma dimensão territorial que não é nada reverente à diferenciação rural/urbano e muito menos a variações de
padrão econômico ou escala. Assim, a presença de formas ainda pré-capitalistas de apropriação da terra sugere um conflito
social (e de temporalidades) em pleno curso na região. Isto faz sentido diante de toda a discussão sobre um virtual projeto de
“orla fluvial” para Belém, de modernização de seu porto, de controle das margens e de suas águas em geral.
140
“físicos” da paisagem regional, como seu litoral, sua divisão em bacias ou sua rede
hidrográfica, são acionados em formulações e imagens de interessante apelo político, articuladas
às narrativas contemporâneas sobre a escassez da água e, obviamente, atravessadas pelas várias
imprecisões e especulações atuais do debate ambiental. Por outro lado, a imagem significativa da
fauna regional é eventualmente citada como elemento análogo e, por vezes, constitutivo de
relações sociais específicas, em uma espécie de passagem de dimensões ocidentalmente
atribuídas como naturais em direção àquelas convencionalmente entendidas como parte do
domínio da cultura. Estes mecanismos, além de representarem narrativas sobre a realidade sócio-
ambiental regional, dizem respeito também às interpretações formuladas por agentes diversos em
torno de questões de interesse da área. Estas questões mobilizam agentes sociais, criam
justificativas e legitimidades políticas diversas para a intervenção institucional, territorial e sócio-
econômica. Denotam, ainda, a inserção da região, de forma particular, em concepções
contemporâneas de tratamento do ambiente (do qual ressaltaríamos, apenas por razões
explicativas, a sua dimensão dita “natural” e seus sentidos e práticas em relação aos humanos) e
do território (em que ressaltaríamos, pelas mesmas razões, os arranjos, as formas, as escalas, os
padrões e as relações sócio-políticas de instauração de fronteiras e limites, e as assimetrias entre
estes). A estas concepções correspondem, no presente estudo, algumas formas de intervenção
territorial.
3.6. O CASO DE BELÉM: INTERVENÇÕES TERRITORIAIS
A respeito de novas abordagens sobre o chamado ambiente urbano, devemos fazer
algumas considerações. A entrada da dimensão ambiental nas discussões sobre desenvolvimento
e território guarda, de certa forma, o dado histórico das mudanças nas formas de produção,
circulação e consumo advindas da etapa contemporânea do capitalismo, expandido a uma escala
e um volume de fluxos mais amplos. Discutir, “ambientalmente”, o desenvolvimento (e quais
acepções este termo vai merecer, dependendo do interlocutor) seria uma forma de colocar em
novos termos quais as maneiras contemporâneas de produzir a riqueza, de empregar o trabalho e
quais as representações sociais e estratégias políticas associadas. Na discussão, que tem óbvia
repercussão material, concreta, surgem narrativas que constroem o problema ambiental conforme
a abordagem do ambiente que corresponde à visão de determinado grupo (CAMPBELL, 1996;
SABATINI, 1997) — e de suas formas de apropriação e uso da natureza (CAMPBELL, 1996). Isto
141
implica em embates entre projetos políticos e técnicas aplicadas ao território e,
conseqüentemente, em certo grau de predominância de algumas concepções em detrimento de
outras.
Ilustração 24 Território continental de Belém-PA e parte de seu território insular. Fonte: CODEM (2000).
142
No caso deste trabalho a discussão é sobre aspectos da relação entre cidade e água.
A estruturação urbanística do caso analisado, Belém-PA, é avaliada em certos aspectos históricos
e espaciais, de modo a identificar fenômenos que atestem os condicionantes e processos
específicos de uma eventual problemática da urbanização em relação a este recurso ambiental,
visto também como substância, como veículo, como fator de produção e como elemento da
paisagem, dentre outras acepções correntes. Tenta-se, portanto, neste trabalho, estabelecer uma
discussão sobre processos recentes da relação entre cidade e cursos d´água, e sobre as formas
de uso e apropriação deste recurso, por falta de termo mais apropriado para o momento, no
escopo do processo de urbanização regional. Esta relação entre cidade e água é abordada, nesta
seção, a partir de fenômenos concretos e específicos, as intervenções territoriais que têm tido
lugar no município de Belém-PA e seu entorno.
De forma resumida é possível ensaiar uma descrição geral de formas de aproveitamento
direto da água na cidade de Belém-PA, pontuadas historicamente. No século XVII, por exemplo,
houve a instalação de fortificações militares para apoiar o projeto de defesa da costa (SANTOS,
2001); a partir da segunda metade do século XVIII, Belém se consolidaria como entreposto
regional, à época a partir das chamadas “drogas do sertão” (SANTOS, 1980); no século XIX os
fluxos comerciais persistiam, com a inclusão de outros produtos de relevância e a estruturação, no
final do século, do ciclo da exploração da borracha, que duraria até o início do século XX. Com a
construção do porto da cidade de Belém, no começo do século XX, surge uma infra-estrutura
adequada ao padrão técnico, e às exigências da época, para o fluxo de mercadorias e passageiros
(PENTEADO, 1973). Aspectos de modernização se instalam no território da cidade, embora
houvesse, há tempos, significativa presença de portos privados menores e de estruturas simples
para embarque e desembarque, ao longo das margens dos cursos d´água da cidade (PENTEADO,
1973).
A relação histórica da urbanização em Belém/PA com sua rede hidrográfica tem
contornos atuais diferentes, entretanto. Objeto de um debate em torno da modernização de sua
“frente ribeirinha”, a cidade de Belém tem abrigado basicamente dois eixos nas políticas públicas
voltadas para estes espaços. Estes eixos consistem na discussão sobre as políticas de
modernização portuária e a “revitalização”/”requalificação” do centro histórico e da sua porção às
margens do Rio Guamá e da Baía do Guajará, acompanhado de outros pontos à beira dos rios no
município. A modernização portuária e a “revitalização” são elementos de um processo de
reconfiguração dos espaços da chamada “orla fluvial” da cidade. Esta transformação dos espaços
143
do que se convencionou chamar de “orla fluvial”39
parece atender, no entanto, muito mais às
novas exigências de acumulação do capital na cidade contemporânea do que, propriamente, a um
projeto de democratização do território. Entretanto, o discurso veiculado acerca da modernização
portuária e, sobretudo, da revitalização das margens urbanas do rio e da baía, são invariavelmente
falas da desobstrução, da liberação e da garantia do acesso da população “ao rio” 40
. Neste
processo, as formas anteriores de ocupação têm no caráter de irregularidade jurídica do acesso à
terra a sua característica mais ressaltada:
A Gerência Regional do Patrimônio da União (GRPU) vai desobstruir 15 vias
ocupadas por empresas e residências na orla de Belém. A GRPU já começou a
notificar os responsáveis pelas ocupações. Segundo Neuton Miranda, titular da
gerência, é o tipo de ocupação que vai definir como a desobstrução será
realizada. “Ainda não chegamos até Icoaraci 41
, onde existem outros casos. Mas
identificadas as obstruções, verificamos que a maior parte das ocupações é feita
por empresas comerciais. Depois disso, começamos o trabalho de notificação.
Estamos estudando caso a caso. No caso das aglomerações residenciais, serão
apresentadas propostas para a relocação das pessoas dessas áreas para outros
locais. Já vamos chegar com um projeto pronto, apresentando qual a
possibilidade”, disse ontem. Quanto às empresas, que são a maioria das
ocupações, o órgão vai seguir o rito legal [...]
Segundo Neuton Miranda, a ocupação de vias públicas é irregular. “Depois que
essas pessoas ocuparam a área, foram ampliando essa ocupação, de forma
totalmente ilegal e trazendo prejuízos para a cidade”, avaliou o gerente,
ressaltando que mesmo não estando urbanizadas, as vias existem e devem ser
mantidas (O LIBERAL, 12 abr. 2006).
39
Lembrando a história feita por Corbin (1989), acerca da idéia de praia, de litoral e das sociabilidades estruturadas a partir
desta que é uma construção do final do século dezoito e, sobretudo, do século dezenove. A “praia” é inventada como local da
cura de males físicos e psíquicos e como refúgio da burguesia, confessamente “cansada” da tensão da grande cidade
industrial.
40
Ainda referente a Corbin (1989), podemos lembrar da transformação das características do litoral. As elites européias
revelaram-se desejosas de um modo de vida e de opções de consumo que encontram eco numa ideologia e num senso
comum de contato com a natureza — e de transformação da antiga rusticidade dos litorais das vilas de pescadores.
41
Nota do autor: distrito de Belém, local de visitação turística onde existe um porto de passageiros.
144
Ilustração 25 Vista de um dos antigos rios urbanos de Belém, atualmente denominados "canais" (no caso, o da
Travessa dos Caripunas, no bairro do Jurunas, na Bacia da Estrada Nova); espaços qualificados como degradados e
prontos para receber intervenções de requalificação do ambiente. Foto do autor, jan. 2007.
Por outro lado, há justificativas do processo de modernização da “orla” fluvial que
seguem por outros raciocínios. Isto também se deve ao fato de haver certa heterogeneidade na
ocupação das margens no município de Belém. Tem sido comum a caracterização da
irregularidade das ocupações na orla em termos da associação entre degradação ambiental,
pobreza e criminalidade:
É na Cidade Velha que está instalado o Mangal das Garças, feliz tentativa
governamental de se abrir vistas para o rio Guamá. Na ilharga 42
do Mangal que
(sic) está instalada uma pequena invasão, onde famílias ocuparam pontes sobre
o rio e construíram palafitas, para moradia sem a mínima estrutura de
42
O regionalismo presente nos discursos da “requalificação” do ambiente sempre é um recurso poderoso. Ora num totemismo
mistificador (convertendo população em “seres ribeirinhos”), ora numa conclamação cívica (no projeto coletivo, “de todos
nós”, em torno da modernização da “orla”), é construída uma engenhosa narrativa da perda e do resgate da identidade local.
Como apontado anteriormente, Bourdieu (1996a) coloca a dimensão política do regionalismo como ferramenta de
mobilização, convencimento e dominação. A propósito, “ilharga” significa lado, flanco, beira, e faz parte de um vocabulário
regionalizado.
145
saneamento, antes mesmo da empreitada governamental [...]
É no Porto do Sal, na Cidade Velha, que está instalada sobre palafitas a favela
Malvina, onde são notórios, a luz do sol ou da lua, o comércio de pasta de
cocaína e possivelmente outras drogas que tanto tem (sic) mudado o curso
normal de vida de jovens do bairro, acelerando o processo de desestruturação
familiar 43
(CHILE, 2006).
As próprias intervenções públicas se valem do mesmo discurso, inclusive colocando a
desobstrução como resultado de uma retomada do caráter público das margens fluviais da cidade.
Se inicialmente as “empresas” são colocadas como irregulares e como ocupantes indevidas do
espaço público, logo em seguida os moradores de ocupações mais pobres são também
enquadrados no projeto de remoção, embora com critérios e justificativa diferentes. A questão da
reapropriação das terras das margens fluviais da cidade parece dizer mais a respeito da
revalorização das águas na cidade do que propriamente a respeito de uma simples questão de
devolução de áreas públicas à população.
Parece-nos claro que o caso em questão é uma forma contemporânea de conflito
ambiental, mas de uma hipotética forma “urbana” de conflito. O território da chamada “orla fluvial”
do município de Belém possui certa diversidade de padrões e de usos do solo (NAEA/UFPA, 2005)
e as intervenções previstas e/ou executadas interferem diretamente nesta diversidade. A partir disto
podemos iniciar um processo de leitura do contexto, sobre a idéia do conflito instalado naquele
território.
Como citado anteriormente, dentre os usos listados nas margens fluviais do município de
Belém estão, por exemplo: estabelecimentos comerciais e de transporte de materiais de
construção; unidades habitacionais de baixo padrão construtivo (em geral pertencentes a
assentamentos informais e de baixa renda); portos privados e pequenas estruturas de embarque,
desembarque e atracação de embarcações; indústrias de transformação (em localizações
relativamente esparsas e em menor número) (NAEA/UFPA, op. cit.) Pode ser notado conflito entre
estes padrões e usos já históricos das margens fluviais da cidade e as concepções das
intervenções contemporâneas e futuras. Isto se acentua quando se constata um aspecto teórico
relevante: a dificuldade de se estabelecer efetivos direitos de propriedade coletiva sobre margens
de cursos d´água, bem como a dificuldade de implantar e administrar a eventual posse coletiva de
recursos naturais (SABATINI, 1997) que, no caso, dependem da interface com a terra.
43
A publicação em questão é financiada pelo Governo do Estado do Pará, sendo um periódico de promoção turística, de
eventos e negócios. A revista é pautada na publicidade e na emissão de discursos do projeto de “revitalização” da economia,
do território, da paisagem e do patrimônio histórico e ambiental do estado.
146
Autoridades e instituições públicas são chamadas ao debate e se manifestam acerca
da problemática e dos contornos das intervenções. Este “debate” também tem como componente
a produção de equipamentos urbanísticos e lugares públicos diversos em resposta a certa
demanda pela desobstrução da “orla” da cidade.
Algumas das intervenções urbanísticas e políticas ambientais e de ordenamento territorial
são descritas e comentadas a seguir. Os casos específicos servem para materializar as categorias
analíticas referentes às formas de desigualdade e conflito sócio-ambiental de cada forma territorial
de aproveitamento da água na cidade de Belém-PA. Dentre os casos há, portanto, parques
culturais e ambientais urbanos, zona portuária revitalizada, discussão sobre modernização
portuária e gestão da água. Quanto às intervenções urbanísticas, especificamente, pode ser dito
que o projeto Portal da Amazônia condensa boa parte dos conflitos (existentes de fato e/ou ainda
em potencial) entre os padrões de ocupação avaliados como inadequados e as novas concepções
para as margens fluviais da cidade. O Portal da Amazônia, intervenção que associa um projeto de
saneamento a outro de remodelação urbanística, seria uma forma recente de concretizar a
expansão da idéia genérica de “resgate” da “orla” fluvial da cidade de Belém-PA. A partir do Portal,
então, outros processos e suas questões poderão ser analisados.
3.7. PORTAL DA AMAZÔNIA
A Prefeitura Municipal de Belém apresentou, em março de 2006, um projeto básico para
uma área pobre da cidade, com extensão divulgada variável entre 6,15 e 6,25 km e atingindo parte
da zona mais adensada do município. Este projeto é chamado Portal da Amazônia (BELÉM, 2006a).
O Portal da Amazônia consiste em um projeto de urbanização, inicialmente a ser financiado pelo
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O Portal, nos termos de um release lançado pela
Prefeitura Municipal de Belém, “[...] prevê reurbanização e saneamento da Bacia da Estrada Nova e
a construção da orla de Belém em toda extensão da Avenida Bernardo Sayão [...]” (BELÉM, op. cit.,
p. 1). A obra de reurbanização estaria associada a um projeto de macrodrenagem da bacia
hidrográfica da Estrada Nova, em uma região ao Sul da porção continental e urbanizada do
município. Esta obra de macrodrenagem acompanha um planejamento de décadas no sentido de
produzir infra-estruturas de saneamento (então básico e, hoje, ambiental) capazes de lidar com as
significativas descargas de águas pluviais e correntes fluviais a jusante, bem como administrar a
sua associação com os vetores, resíduos e dejetos.
147
Com o sítio físico da cidade entrecortado por igarapés, ou canais (ou “rios urbanos”),
a concepção de drenagem mostra-se relevante para o caso da cidade. Projetos de
macrodrenagem, portanto, têm grande alcance social e rendem dividendos eleitorais bastante
evidentes e, no caso específico do Portal da Amazônia, podem ser avaliados como uma extensão
de característica “social” mais evidente do que um projeto de urbanização viária com espaços
públicos associados. De certo modo, ao longo das discussões em audiências públicas do projeto,
a macrodrenagem da bacia da Estrada Nova era freqüentemente acionada como um elemento que
justificaria a necessidade da urbanização da área do Portal. O discurso de que o projeto era amplo
e não se resumia apenas em uma obra civil de caráter paisagístico e imagético, com apelo
turístico, estava presente nas falas de dirigentes municipais como o Prefeito e o então Secretário
de Urbanismo.
No campo do saneamento ambiental, o projeto também pode ser enquadrado nas
concepções contemporâneas à discussão sobre a modernização do atendimento e do próprio setor
no país. Esta discussão é feita principalmente a partir dos modelos tecnológicos e através das
formas de gestão do serviço. No tema da gestão do saneamento, discute-se amplamente a
titularidade das infra-estruturas, sistemas e serviços e os modelos de tarifação e controle social,
por exemplo (BRITTO, 2004), em crítica e revisão de modelos anteriores, tributários do regime
militar de 1964. O município de Belém-PA, na ocasião, apresentava-se como técnica e
gerencialmente capaz de encomendar, supervisionar e mesmo conceber, em linhas gerais, um
projeto de macrodrenagem de bacia hidrográfica urbana populosa com soluções inovadoras. Além
do aspecto técnico, a Prefeitura Municipal de Belém ressaltava suas intenções, no Portal da
Amazônia, em promover controle social, democratização das decisões e acesso à qualidade
ambiental, valores cultivados pelos novos marcos regulatórios do setor (BRITTO, op. cit.); vê-se,
entretanto, que estes elementos estiveram mais presentes na retórica do projeto do que em seu
desenvolvimento.
Especificamente, o Portal da Amazônia, nos seus cerca de seis quilômetros de extensão
viária, possui uma “plataforma urbanizada” de 69 m de caixa, o que totaliza cerca de 43 ha de área
urbanizada no projeto, “[...] incluindo duas pistas, passeio externo, estacionamento em ambas as
pistas, ciclovia, canteiro central (5 m), faixa destina a área de lazer e paisagismo (22 m) [...]”
(BELÉM, 2006b, p. 32). Ainda em termos descritivos, os esquemas gráficos de ilustração de
audiências públicas afirmam que a concepção do Portal inclui equipamentos urbanos, iluminação
pública e “portos com gestão pública” (BELÉM, op. cit., p. 32).
148
No projeto haveria intervenção em cerca de 10 km de canais e galerias de drenagem,
soluções de esgotamento sanitário em rede de 227 km de comprimento, associada a 21.500
ligações de fossas sépticas individuais e coletivas, 27.000 ligações domiciliares à rede de
abastecimento de água e uma intervenção viária de cerca de 55 km de extensão (BELÉM, op. cit.)
Como pode ser notado e conforme referência anterior, o esquema geral da concepção do Portal
vincula um projeto urbanístico a uma intervenção de saneamento ambiental do tipo
macrodrenagem de bacia hidrográfica.
Como medidas e diretrizes do projeto Portal da Amazônia são divulgadas, dentre as
chamadas concepções do projeto (Belém, op. cit.):
Dotar Belém de Orla Urbanizada (sic) com equipamentos urbanos e integração
de estruturas existentes; o sistema viário a ser implantado funcionará [...] como
binário da [...] Avenida Bernardo Sayão, que será revitalizada; melhoria das
condições ambientais da Orla (sic), que atualmente encontra-se bastante
degradada; instalação de comportas nos lançamentos dos canais de drenagem
da bacia hidrográfica — controle das cheias do Rio Guamá (BELÉM, 2006b, p.
30).
A preocupação com a legitimidade social foi evidente durante todo o processo de
divulgação do projeto. Na cidade de Belém-PA, após período das intervenções urbanas em áreas
centrais do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) no Governo do Estado, o debate sobre
a elitização da cidade fora travado e não mais saiu de foco. Deste modo, todas as intervenções
executadas a partir de meados da década de 1990 são, de qualquer modo, acompanhadas de
discussões sobre os efeitos sociais e econômicos, e sobre a extensão de seus benefícios em
termos coletivos. É desta forma que o projeto Portal da Amazônia é divulgado como um conjunto
de intervenções urbanísticas e infra-estruturais cujo direcionamento seria dado por quatro eixos:
recuperação e revitalização ambiental; mobilização social e redução da pobreza; planejamento
urbanístico; fortalecimento institucional (BELÉM, 2006b, p. 22). A partir do conteúdo dos materiais
de divulgação do projeto nota-se que a associação entre a macrodrenagem e a urbanização das
margens fluviais (popularmente denominadas de “orla”) cria motes articulando a função social e de
saúde do saneamento ambiental à possibilidade de soerguimento e dinamização econômicos
dados a partir da intervenção urbanística. Esta é, de certa forma, uma aplicação do conjunto de
medidas já tradicionalmente adotadas pelo planejamento estratégico de cidades acerca da relação
entre urbanismo e desenvolvimento urbano via grandes projetos de intervenção (VAINER, 2000),
com características recorrentes e, com freqüência, tratadas como se fossem modelares.
A bacia hidrográfica da Estrada Nova (ver Ilustração 26), área de intervenção dos dois
149
projetos integrados, tem aproximadamente 937 ha de área (GPHS; COSANPA, 2008), com uma
população de 212 mil pessoas no ano de 2000, estimada em cerca de 264 mil habitantes para o
ano de 2009 (GPHS, 2008). Isto totalizaria, portanto, 281 habitantes por hectare, a maior
densidade média dentre as bacias hidrográficas de toda a Região Metropolitana de Belém. Dos
bairros componentes da bacia há alguns cuja renda média domiciliar aponta para os estratos da
pobreza urbana na cidade (ver Tabela 2). O distrito administrativo44
a que pertence a bacia também
mostra desigualdade de renda domiciliar para a área da Estrada Nova em relação a distritos como
o de Belém (DABEL), onde estão situados bairros mais nobres da cidade (ver Tabela 1).
Ilustração 26 Bacia hidrográfica da Estrada Nova e contorno de bacias vizinhas, da área central (Reduto, Magalhães
Barata, Tamandaré) e da periferia próxima (Tucunduba), Belém-PA. Área de intervenção do proieto Portal da Amazônia.
Fonte: GPHS; COSANPA (2008); CODEM (2000).
44
Os distritos administrativos são recortes territoriais do planejamento urbano local, que possuem tradicionalmente
administradores locais, como se fossem sub-prefeituras. Obviamente este modelo de administração oscila em sua efetividade
de acordo com o perfil da gestão. Atualmente, por exemplo, as administrações distritais encontram-se esvaziadas institucional,
orçamentária e tecnicamente.
150
Distritos administrativos do município de Belém-PA. Renda média domiciliar (2000).
Distritos administrativos
Valor do rendimento nominal médio mensal das pessoas com
rendimento, responsáveis pelos domicílios particulares
permanentes (R$)
Distrito administrativo de Belém (DABEL) 2.476,95
Distrito administrativo do Benguí (DABEN) 562,63
Distrito administrativo do Entroncamento (DAENT) 930,77
Distrito administrativo do Guamá (DAGUA) 565,53
Distrito administrativo de Icoaraci (DAICO) 494,09
Distrito administrativo do Mosqueiro (DAMOS) 457,48
Distrito administrativo do Outeiro (DAOUT) 403,69
Distrito administrativo da Sacramenta (DASAC) 689,19
Tabela 1 Renda média domiciliar dos distritos administrativos do município de Belém comprova a situação de relativa
pobreza do Distrito Administrativo do Guamá (DAGUA), área populosa e entrecortada por canais urbanos, com
numerosos portos privados e informais e uma micro-economia bastante dinâmica em seus bairros. Fonte: Belém
(2006d).
O mesmo processo ocorre em relação aos bairros que compõem a bacia (ver Tabela 2).
No caso da Estrada Nova, os bairros do Guamá (com mais de 100.000 habitantes já em 2000),
Jurunas e Condor são mais representativos em termos populacionais e de usos do solo referentes
à irregularidade urbanística e fundiária aventada como grande motivo da reurbanização do Portal da
Amazônia. A presença da pobreza urbana e de padrões indesejáveis de uso e ocupação do solo
urbano surge nos discursos do projeto como fator de justificativa da intervenção.
Bacia hidrográfica da Estrada Nova, Belém-PA. Renda média domiciliar de
bairros componentes (2000).
Bairro Valor do rendimento nominal médio mensal das pessoas com rendimento,
responsáveis pelos domicílios particulares permanentes (R$).
Batista Campos 2.771,83
Condor 486,13
Cremação 1.134,47
Guamá 555,24
Jurunas 701,99
Nazaré 3.445,50
São Braz 2.290,69
Tabela 2 Renda média domiciliar de bairros componentes da Bacia da Estrada Nova, onde está situado o Portal da
Amazônia, mostra os bairros do Jurunas, do Guamá e da Condor com renda mais baixa do que os demais. Estes
bairros, entretanto, são mais populosos na bacia, em média. Fonte: Belém (2006d).
Curiosamente, restam contradições nos discursos, que vão alinhavando a retórica
corrente da justiça social na cidade juntamente com falas mais próprias da “reabilitação” dos
espaços para as novas formas de acumulação na cidade. Nos termos do representante da
Gerência Regional do Patrimônio da União:
No entanto, precisamos resolver uma questão grave que é a regularização
fundiária. Nosso objetivo é fazer com que toda a população possa usufruir da
beleza de nossa cidade, que hoje está sendo escondida por ocupações
151
irregulares [...] (BELÉM, 2006a).
Uma outra construção da problemática da “orla” fluvial do município é dada pela
Secretaria de Urbanismo: “Muito mais do que a construção de uma orla45
, é um projeto de
recuperação ambiental, importante para aquela área que está degradada social, econômica e
ambientalmente [...]” (BELÉM, 2006a).
Ilustração 27 Imagem de rio urbano/canal da cidade de Belém é apresentada como parte da problemática sanitária
local, ressaltando que trata-se de “canais abertos em áreas de baixadas”, o que aumenta a suscetibilidade do local a
inundações (BELÉM, 2006b, p. 17).
Por outro lado, as benesses sanitárias, paisagísticas e técnicas são ressaltadas como
virtudes do novo projeto de cidade. Diante do interesse na dinamização econômica, “gerando
emprego e renda” (BELÉM, 2006a), há apelos que residem em alguns traços de um projeto de
modernização:
45
Curiosamente, o termo “orla” já remete, nos dias de hoje, a uma espécie de modelo urbanístico sugerido para os espaços
das margens fluviais de Belém. Nestas “orlas” são incluídos equipamentos de amenidades, lazer e consumo, sobretudo. Ver
simulação computacional tridimensional (Ilustração 29).
152
A primeira etapa da construção da orla, que vai do Mangal das Garças46
até
as imediações da Avenida Fernando Guilhon (antiga Conceição), no bairro do
Jurunas47
, deverá iniciar ainda este ano.
Nesse trecho, que mede 2,4 quilômetros, a prefeitura já pode começar as obras,
já que não existe a necessidade de desapropriações.
Nesta fase, serão utilizadas as mais avançadas técnicas de engenharia, como o
aterro hidráulico, a exemplo de obras realizadas em Copacabana e no Aterro do
Flamengo, no Rio de Janeiro (BELÉM, 2006b).
Há vários pontos a comentar nos relatos. Em primeiro lugar, a coexistência do discurso
da regularização fundiária com a concepção da modernização de um urbanismo flexível, pontual,
estetizante e reformador, embora contemporâneo. Enquanto a prática, os modelos institucionais e
os instrumentos jurídicos que respaldam a regularização fundiária são considerados avançados
(CARDOSO, 2003) para lidar com a irregularidade da ocupação da terra, o modelo sugerido parece
na verdade apontar para um processo de racionalização, segundo critérios segmentados e
específicos, e requalificação do espaço das margens da cidade. Em termos mais técnicos,
urbanísticos propriamente, os desenhos e simulações computacionais48
mostram certo
acanhamento do projeto, do desenho urbano de sua concepção. Embora careça de maior
engenhosidade e inventividade projetual, digamos, nota-se que não é disto que se trata,
propriamente; o Portal da Amazônia seria uma resposta política a uma já antiga (de cerca de três
décadas, digamos) demanda fermentada entre os bem-pensantes locais e a elite econômica
regional, no sentido da “desobstrução” da “orla” fluvial da cidade. Em termos eleitorais, é
interessante a associação entre os calendários dos pleitos e os avanços e estagnações da obra
civil; ora acelerada, ora lenta, ou simplesmente paralisada.
O Portal da Amazônia, lançado em edital em 29 de março de 2006, fora apresentado
através de ampla divulgação e cobertura jornalística. A recepção do projeto, à época, dividia os
comentários, como é de praxe neste tipo de intervenção: de um lado aqueles tidos como
progressistas, defensores do projeto de modernização e substituição49
do arcaísmo da economia
informal da beira de rio; do outro, variações de alguma “oposição” às intervenções, embora de
46
“Parque ambiental” executado às margens da Baía do Guajará, às proximidades do Centro Histórico de Belém.
47
Bairro populoso e com significativa população de baixa renda de Belém/PA, situado nas imediações do Centro Histórico e
com limite para a “orla” fluvial da cidade e um de seus principais corredores de tráfego pesado, a Avenida Bernardo Sayão.
48
Informalmente diz-se no meio dos planejadores locais que o Portal é uma “obra sem projeto”, isto é, uma iniciativa de
urbanização e expansão do mercado de terras sem foco no planejamento das ações ou em sua gestão e coordenação. O
interesse principal é o de produzir e qualificar solo, no diferencial locacional das margens do Rio Guamá.
49
Um dos primeiros analistas acadêmicos a considerar sistematicamente o assunto, Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior
chega a associar o conhecido termo da substituição e da invasão-sucessão da Escola de Chicago ao caso da modificação de
padrões e usos do solo nas margens fluviais de Belém (TRINDADE JÚNIOR; SANTOS; RAVENA, 2005).
153
caráter ainda incipiente, posto que a adesão à idéia da “desobstrução” da “orla” parece ter
alcance quase universal na cidade, como acontece usualmente entre os fenômenos sociais tidos
como sensos-comuns. Em termos de seu zoneamento, por exemplo, não havia maiores detalhes
da distribuição de usos do solo, de percentuais de cobertura vegetal ou de portes e modelos
urbanísticos a adotar na urbanização. Tampouco ficava claro o partido urbanístico a adotar; as
simulações computacionais eram plasticamente abertas, sobretudo nos vídeos de divulgação do
projeto, em que uma idéia genérica (que é, essencialmente, no que parece consistir a própria
noção de “orla” em Belém-PA, na acepção corrente) de abertura, de criação de espaços urbanos
públicos, era sobretudo vendida à cidade e a seus habitantes. Quanto ao desenho urbano proposto,
especificamente, parecia tratar-se de uma variação do parque linear urbano, embora com menor
tratamento paisagístico do que se poderia supor em uma intervenção de 6 km de extensão em uma
área densamente urbanizada e precária. Neste sentido, a falta de detalhamento do chamado
“projeto básico” divulgado no edital da licitação da obra seria justificável, senão em termos
administrativos, pelo menos no sentido conceitual; o Portal seria antes um manifesto pela
reurbanização da área e pela criação de condições objetivas para uma intervenção na bacia
hidrográfica e em suas margens de rios.
Ilustração 28 Esquema produzido por ocasião de audiência pública do projeto Portal da Amazônia ilustra o tratamento
urbanístico com cinco módulos vicinais, que dividem a margem do Rio Guamá ao longo da Avenida Bernardo Sayão.
No início do módulo vicinal 1, o parque ambiental Mangal das Garças. No final do módulo vicinal 5, o campus
universitário da UFPA. Fonte: Belém (2006b).
154
Ilustração 29 Simulação computacional, em perspectiva isométrica, de um dos módulos vicinais (tipos 1, 3 e 5) do
projeto Portal da Amazônia. Usos sugeridos e padrões de ocupação não chegam a ser detalhados, mas entende-se
que haja uma aplicação da idéia de parque linear urbano, com configuração convencional de praça. A obra se
assemelha em muito a uma extensa intervenção viária, sobretudo. Fonte: Belém (2006b).
Ilustração 30 Simulação computacional do módulo vicinal (tipos 2 e 4), componente do esquema urbanístico do
projeto Portal da Amazônia, da Prefeitura Municipal de Belém-PA. Fonte: Belém (2006b, p. 38).
Um dos argumentos técnicos a favor, digamos, da intervenção do Portal era a resolução
parcial da falta de corredores eficientes de tráfego na chamada Primeira Légua Patrimonial de
Belém. A conexão viária a ser produzida e a maior fluidez de tráfego que se pretende obter com o
155
aumento da integração espacial favoreceria a aceitação das intervenções pela população. Até
certo ponto esta questão exibe aquele traço da percepção dos trechos da cidade, em que o seu
espaço é percebido sempre em fragmentos, seccionado em temas, funções e territórios, de modo
que a experiência urbana seja, inevitavelmente, seqüencial, não apenas em termos sensoriais mas
também em suas implicações políticas e materiais. O apelo da reorganização viária, em uma
cidade de economia relativamente estagnada mas já de grande porte, logra êxito em conseguir
adesões diversas em torno do projeto estratégico de reconfiguração de funções e do sucesso do
novo mote de soerguimento econômico, portanto.
Ilustração 31 Traçado de corredores viários (em amarelo) e eixo da proposta de via para o Portal da Amazônia (em
vermelho). Delimitação de bacia hidrográfica da Estrada Nova (em magenta); área adensada e pobre deve sofrer
intervenção. Fonte: Belém (2006b).
Por outro lado, a Prefeitura Municipal teria representantes responsáveis por eventuais
indenizações, estimativas e acordos50
. Dentre estes, obviamente, o maior volume de trabalho era
devido às indenizações das casas e pequenos prédios (comerciais, residenciais, de uso misto) da
50
Esta informação foi dada a propósito de uma pergunta a respeito dos procedimentos de negociação com a classe
empresarial local. O projeto Portal da Amazônia parece ter a tendência a substituir e modificar usos e padrões de ocupação do
solo urbano, e isto pode apresentar conflitos com as atividades econômicas já em operação na área do projeto. A informação
foi dada por advogado envolvido em assessoria jurídica de empresas que possuem negócios na área do Portal, no primeiro
semestre do ano de 2009.
156
área51
. Em paralelo, entretanto, havia a necessidade de negociação com o empresariado local,
em que uma parte de sua elite econômica, ligada a exportações de produtos extrativistas, por
exemplo, era parte do processo. Segundo informações da pesquisa, a resolução da questão fora
adotada por uma via inusitada, porém eficiente em termos empresariais e econômicos; a Prefeitura
sugeriria alternativas de sobrevivência no novo mercado a ser criado com a intervenção e o
empreendimento deveria ser comprometido a subsistir nas novas condições, com a vantagem
locacional anterior (o contato com o curso d´água) coexistindo com o novo diferencial (a bacia
urbanizada). O novo regime exigia, portanto, alguma “resiliência”, digamos, do empresariado local,
historicamente ligado a alguns subsídios estatais e a certo grau de informalidade e licenciosidade
do Estado. Neste raciocínio, para materializar a questão usando um exemplo, atuais empresas de
transportes de passageiros e cargas (os “portos” atualmente existentes em grande número e
diversidade de padrões) deveriam, conforme relato de negociações específicas, reorientar seus
empreendimentos em direção ao setor de navegação particular. Estes estabelecimentos deveriam
mudar de perfil, saindo da condição de portos coletivos de passageiros e cargas para a situação
de marinas, ou portos particulares, associando garagens de embarcações com funções de
estaleiro. Como se pode notar, haveria certa elevação do padrão econômico do público a que se
destina aquela economia instalada nas margens do rio, a julgar por esta substituição de usos que,
aliás, já está em curso.
A irregularidade da ocupação da terra (fundiária) e dos modelos de uso e ocupação do
solo urbano (urbanística) sintetiza um traço definidor da urbanização no Brasil (CARDOSO, op. cit.) A
partir desta irregularidade é que se estruturam relações de dominação, segregação e exclusão no
acesso a bens, serviços e vantagens locacionais historicamente produzidos no território. Nas
cidades brasileiras, sobretudo nas regiões metropolitanas, o vínculo histórico entre baixo custo de
reprodução da força de trabalho e padrão desigual de bem-estar social (CARDOSO, op. cit.;
MARICATO, 2000) aponta para um processo de modernização peculiar, com “[...] mínimos sociais
não-universais [...]” (CARDOSO, op. cit., p. 45). reproduzidos nas economias urbanas.
51
A Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) seria responsável pelo gerenciamento do cadastro e definição do perfil das
populações a remanejar. Em geral o procedimento pressupunha entrevista, levantamento e cadastro de unidades, do tipo
residencial, misto, comercial, etc.
157
Ilustração 32 Ortofoto com o traçado viário do primeiro trecho do projeto Portal da Amazônia lançado; sobreposição de formas de urbanização, padrões de ocupação e representações
da "orla" fluvial. Fonte: PMB (2006c).
158
Ilustração 33 Segundo trecho do projeto viário e de urbanização do Portal da Amazônia, entre os bairros da Condor e do Jurunas, demonstra elementos da lógica do traçado da
"plataforma urbanizada". Fonte: Belém (2006c).
159
Ilustração 34 O terceiro trecho do projeto está situado no bairro do Guamá, em trecho onde estão presentes alguns exemplos dos entrepostos chamados localmente de estâncias, nas
margens do Rio Guamá e na vizinhança do campus universitário da UFPA. Fonte: Belém (2006c).
160
Ilustração 35 Imagem que exibe a estrutura concebida de canais, áreas de acumulação e comportas; o projeto Portal da Amazônia se pretende ambientalmente mais compreensivo do
que as intervenções tradicionais do saneamento básico da década de 1980. Fonte: Belém (2006b, p. 25).
161
Outro traço importante no entendimento do projeto Portal da Amazônia é a relativa
flexibilidade de seus argumentos. Como parece haver nos dias de hoje certa incorporação dos
padrões desejáveis dos projetos ambientais, de infra-estrutura, urbanização e de natureza social,
estas “tecnologias” parecem pressupor quantidade limitada de itens básicos. Dentre estes itens há
a atual adoção generalizada da dimensão democrática e da participação social em tais projetos.
Além deste aspecto, os projetos também devem se auto-declarar sustentáveis, isto é,
ambientalmente duráveis no tempo, adotando processos de racionalização e uso socialmente
adequado dos recursos ambientais. Brenner e Theodore (2002) falam das chamadas “boas
práticas” dos projetos urbanos atuais, por exemplo. Nestes projetos, nenhum documento escrito
ou divulgado publicamente, e que pretenda conseguir adesão política a qualquer intervenção
urbanística, pode se declarar antagônico à sustentabilidade, ou se dizer não-democrático. As boas
práticas seriam autorizadas e chanceladas por instituições (BRENNER; THEODORE, 2002) capazes de
emitir discursos tidos como legítimos (BOURDIEU, 1998) naquele campo. É criado, a partir daí, um
conjunto de procedimentos e de formas de ação sobre o mundo com maiores chances de
avaliação favorável, pela possibilidade destas instituições e enunciados serem contemplados nos
projetos de intervenção. Assim, o novo padrão obviamente tem mecanismos de reprodução com
grau razoável de eficiência.
A simpatia generalizada à democracia nos documentos e projetos de ordenamento
territorial parece reagir, atualmente, a certas matrizes autoritárias do planejamento historicamente
constituídas e praticadas, inclusive no Brasil. Modelos recentes acabaram por reconstituir
justificativas em torno da atividade de se planejar ações de caráter público, o que lhes conferiu
novos ares e, principalmente, formas novas de aproximação com a esfera do mercado e as
interfaces com debates correlatos, porém não idênticos, como a dimensão ambiental. Os novos
procedimentos dos projetos urbanos, portanto, e do ordenamento territorial em geral, são
revestidos de mecanismos de produção de legitimidades políticas, de consensos
institucionalizados e de procedimentos de coletivização parcial e inclusão de grupos sociais
distintos em torno de idéias-força capazes de unir posições, inicialmente antagônicas no espaço
social, em direção à convergência de práticas. Estes procedimentos do planejamento participativo,
que podem ter suas origens remontadas tanto às formulações da chamada democracia radical
inglesa quanto à autocrítica feita mundialmente após a revisão política dos anos 1960, logo foram
incorporados também por correntes mais conservadoras, o que afinal é um fato já corriqueiro na
luta política, em qualquer posição ideológica que se adote. Atualmente, entretanto, interessa-nos
162
avaliar a adoção quase orgânica do apêndice participativo aos projetos urbanos; interessa
considerar que tais projetos sequer são considerados completos sem as devidas consultas e
rituais políticos de aprovação institucional. Por um lado, obviamente, isto representa inovação
democrática; por outro, a sofisticação de mecanismos de produção de hegemonias, onde não
interessa saber como se deve receitar o procedimento, e sim como são produzidos os consensos
em torno das idéias divergentes.
Em outro ponto do debate e da aprovação de projetos e financiamentos junto a agências
como o Banco Mundial, por exemplo, está a dimensão ambiental. Nitidamente incorporada a
iniciativas de impacto territorial a partir de finais dos anos 1960, pelo menos, a discussão
ambiental experimentou notável aplicabilidade no planejamento territorial em diversas de suas
escalas e abordagens. O ambiente, metáfora tanto dos meios de produção, do substrato material
da riqueza social, quanto do abrigo permanentemente esotérico e utópico52
de certos discursos da
adesão geral (onde o planejamento participativo talvez encontrasse um ponto de convergência), foi
incorporado ao planejamento territorial inclusive pela via das previsões da escassez dos recursos e
da urgência da racionalização dos meios. Sobre o aspecto central deste trabalho, a relação entre
urbanização e a água, há um grande volume na discussão. A aplicação do debate ambiental às
medidas de preservação, conservação e gestão das águas representa uma das frentes mais
densas da entrada do ambiente no planejamento territorial. A idéia, por exemplo, de que se pode
gerir as águas na cidade representa uma ampliação da noção de ambiente e uma integração com
várias de suas formas de controle. Este controle se institucionalizou, entrou nas políticas de
ordenamento territorial e passou a configurar uma ampla interface que incorpora o monitoramento
ambiental. Como em diversas outras abordagens ambientais, acredita-se hoje ser possível
quantificar, modelar, prever e regular o uso dos recursos ambientais, em uma das várias metáforas
da economia em uso na política ambiental. Assim, a escassez socialmente construída da água,
associada à possibilidade técnica de regulação de seu uso, constrói um panorama onde a
sustentabilidade urbana (da água, inclusive, e sobretudo) é vista, eventualmente, como cerne de
uma suposta questão ambiental da cidade. O ambiente, então, entra como item obrigatório a
constar nas justificativas dos projetos de intervenção, segundo procedimentos crescentemente
codificados e logo tornados padrões de abordagem da realidade. No caso em estudo, houve
incorporação do ambiente de maneira incisiva, citada como imprescindível no planejamento e nas
52
Já bastante desgastado nas recorrentes etimologias que acionam oikos como casa, na raiz da economia e da ecologia.
163
intervenções urbanas da cidade. Em termos gerais e teóricos, isto parece ter relação com os
ajustes produtivos, com reorientações nas formas de uso e ocupação do território em função de
impactos decorrentes do livre mercado e com a capacidade de disseminação de concepções e
práticas de determinados agentes. Um fato objetivo é que a incorporação (e o amadurecimento
institucional) da política ambiental no ordenamento territorial, e no planejamento urbano, é um fato.
Esta forma de incorporação, entretanto, varia, conforme a tipologia sistematizada por Acselrad
(2001) acerca da relação entre sustentabilidade e cidade; ora quantitativa, ora culturalista, ora
funcionalista, ora intimamente relacionada com certa dimensão economicista da realidade.
Voltando aos argumentos do projeto Portal da Amazônia, recuperamos o raciocínio das
audiências públicas visitadas para a pesquisa, cujo material de orientação e divulgação exibe, em
conjunto com as falas, elementos conceituais do projeto. Haveria, de forma inteligente e
experimentada, uma incorporação dos padrões contemporâneos dos projetos urbanos e de suas
“tecnologias sociais” associadas. Deste modo, para a divulgação e a discussão dos eventuais
impactos futuros do Portal, falava-se claramente em delimitação, regulamentação e gestão de
novas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) na Bacia da Estrada Nova. Além das ZEIS, de
resto amplamente justificáveis do ponto de vista técnico na área (mas padecendo do mesmo mal
que qualquer ZEIS costuma ter no Brasil, isto é, a regulamentação e o potencial efetivo de ser posta
em prática, inclusive na sua gestão), falava-se também em minimização de remanejamentos de
moradores; as densidades relativamente mais altas da bacia representavam um entrave técnico e
orçamentário-financeiro óbvio para amplos programas de remoção. Do mesmo modo, a equipe
técnica (plena de habilidade política, decerto, pois composta por dirigentes públicos com
experiência no ramo) divulgava o projeto do Portal com o argumento de que a economia local seria
preservada ao máximo na área, com respeito ao negócio local (BELÉM, 2006c):
Ao longo dos últimos 50 anos houve um crescimento selvagem na ocupação do
solo urbano de Belém, com crescente impermeabilização e ocupação de áreas
de risco (BELÉM, 2006b, p. 7)
[...]
As atividades ribeirinhas serão mantidas através de três Terminais Aquaviários
distribuídos ao longo da Orla do Rio Guamá (BELÉM, 2006b, p. 58).
De modo contraditório, as imagens de divulgação dos esquemas urbanísticos do projeto,
bem como suas plantas, não parecem contemplar propriamente o “negócio local” ou o padrão da
economia instalada na bacia. Por outro lado, referências variadas a conflitos no remanejamento de
moradores demonstram tensões no projeto que são típicas de qualquer outro programa
164
equivalente, embora com algum retardo de tempo quanto ao início das obras.
Audiência Pública sobre Portal da Amazônia
Foi impedida de continuar por causa de embates políticos a audiência pública
realizada, ontem a tarde, 16, pela Câmara Municipal de Belém, no salão da Igreja
de São Judas Tadeu, no bairro da Condor [...]
Em pelo menos dois momentos, as discussões foram interrompidas por
confusões e bate-boca gerados por embates políticos entre dois grupos – o
favorável [...] (N. do autor: ao prefeito municipal de Belém) e o contrário a
administração municipal.
[...]
O líder comunitário, José Maria, então teve o direito à palavra. Confirmou que a
prefeitura realizou várias audiências para esclarecer as comunidades acerca do
Portal da Amazônia, onde as pessoas tiveram respeito e oportunidade para falar
e ouvir. Falou também que a maior preocupação do gestor municipal está
relacionada ao remanejamento das famílias e lembrou que o povo da Estrada
Nova está esperando por essas obras há 50 anos e só [...] (N. do autor: o
prefeito municipal) teve coragem de tocar esse programa. “Agora chegou um
prefeito capaz de fazer isso. Porque os outros não fizeram?”, questionou, ao
mesmo tempo em que era vaiado pelos moradores presentes e aplaudido pelo
grupo que estava defendendo [...](N. do autor: o prefeito municipal). Terminou
dizendo que os moradores estão tranqüilos e a obra vai acontecer.
[...]
Quanto ao projeto da Estrada Nova, (N.do autor: vereador do município de
Belém, de partido aliado ao do prefeito) afirmou que faria grandes correções
acerca desse debate e encaminhou pergunta direta ao morador dos bairros que
devem ser beneficiados diretamente pelo Portal da Amazônia.
“Quando vocês moradores tiveram oportunidade de ter uma obra inédita na área
de vocês e que vai mudar a vida de cada um? Essa obra – concebida totalmente
na administração de (N. do autor: o prefeito municipal) – era para ser louvada e
não repudiada”.
Completou ainda [...] (N. do autor: vereador citado) que ninguém sequer tinha
mexido nessa bacia da Estrada Nova, uma das maiores de Belém e ratificou a
participação popular nas discussões em torno do projeto, mencionando as
diversas palestras promovidas sobre o tema em vários locais e entidades [...]
Mas, outro pronunciamento que voltou a esquentar os ânimos e fez com que a
sessão fosse encerrada foi de um morador e da esposa, despejados da casa
onde residiam, na Estrada Nova. O terreno, disse ele, exibindo os documentos,
foi repassado pela União à Prefeitura, que lhe deu 15 dias para que se
manifestasse sobre o pedido de retirada, pois o projeto passaria pela área onde
está construída sua casa. O morador relatou que em quatro dias o batalhão de
choque chegou e fez o despejo na marra, do casal e dos filhos. Ele pediu muito
cuidado aos moradores para que não viesse a ocorrer com outras famílias o que
aconteceu com a dele. “Só peço agora que sejamos indenizados justamente, a
minha casa foi avaliada em 50 mil reais e até hoje não recebi um tostão”. Sobre
essa denúncia, a assessoria da prefeitura, esclareceu que a terra pertencia a
União, sob a gerência regional do patrimônio da União, que teria sido o
responsável pela retirada do morador. A Prefeitura, segundo a assessoria,
apenas deu apoio técnico, cedendo caçamba e homens da guarda municipal. O
atual coordenador do projeto da Estrada Nova, [...], disse que o remanejamento
dos moradores vai acompanhar as orientações do Bird, banco financiador da
165
obra (BELÉM, 2007, p. 1. Grifos do autor.).
Nos vídeos de divulgação e nas perspectivas do Portal, como dito, o “negócio local” não
se encontra propriamente preservado, à exceção de alguns postos de gasolina, pela avaliação
possível de se fazer a partir de esquemas pouco específicos e não detalhados, da fase inicial do
projeto. Junto à Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) de Belém houve a informação de que
os projetos de remanejamento estavam sendo elaborados caso a caso, diante da avaliação das
demandas e do quantitativo de moradores necessário, o que não havia sido dimensionado de
forma realista na etapa das audiências públicas. Este ponto, inclusive, representara uma das
maiores polêmicas na divulgação de dados dos impactos do Portal, pois houve divulgação de
remanejamento de apenas 115 famílias, além de 1.800 lotes (ver Ilustração 36) genericamente
destinados a “reassentamento” (BELÉM, 2006b, p. 52), nas proximidades. Considerando
aproximadamente 30% da área da bacia em terreno alagável, e uma população de cerca de 200 mil
pessoas, entende-se que este quantitativo pode ser deficiente.
Ilustração 36 Esquema de remanejamento da época de audiência pública sobre o projeto Portal da Amazônia na
Universidade Federal do Pará. Planejamento não cumprido das remoções, e andamento da obra fora do cronograma
divulgado, porém já em situação de conflito social. Fonte: Belém (2006b, p. 48).
Remanejamento até março de 2007
Remanejamento até maio de 2007
Remanejamento até julho de 2007
Remanejamento até outubro de 2007
166
Ilustração 37 Esquema de remanejamento do Portal da Amazônia, da SEHAB, em blocos verticais de apartamentos.
Foto: Cláudia Ribeiro (nov. 2008).
Este novo projeto — ilustrado por peças publicitárias, esboços da concepção urbanística
e materiais similares — aponta para a construção de facilidades e de um espaço urbano dotado de
atratividades diante do setor turístico. Além disso, mostra a tendência rumo à elitização da
ocupação das margens fluviais de Belém, em paralelo a uma caracterização depreciativa,
valorativa, da pobreza urbana e da situação de carência em que boa parte da ocupação espontânea
e irregular está inserida. Em outros termos, a “orla” precisa ser “retomada” jurídica e
territorialmente pela “cidade”, que pretende, de forma coesa, a implantação de um projeto “[...]
que é um sonho antigo da população de Belém e que vai dar uma nova cara à cidade [...]” (O
LIBERAL, 29 dez. 2006), segundo depoimentos de dirigentes da administração pública municipal. A
contradição entre os discursos e as concepções dos projetos físicos persiste, por exemplo, na fala
da representação do setor de turismo local: “[...] com a obra, a orla vai voltar ao domínio público,
mas o projeto também é muito importante para resgatar a dignidade da população daquela área,
que está abandonada há várias décadas” (O LIBERAL, 12 abr. 2006).
167
Ilustração 38 Proposta de condomínio horizontal na área de "orla" fluvial de Belém/PA. Contradição evidente entre a
"justiça social" dos discursos e o projeto físico hegemônico. Fonte: Movimento Orla Livre (2005).
As simulações computacionais feitas por publicitários ligados à discussão espontânea
sobre a “requalificação” da “orla” de Belém representam uma síntese expressiva deste projeto de
desobstrução e reconfiguração (ver Ilustração 38; Ilustração 39). Em uma série de imagens de
intervenções urbanísticas ou paisagens urbanas já devidamente modificadas por estas
intervenções (com assentamentos mais “adequados” ao novo padrão), o material mostra uma
parcela da cidade indo ao encontro das aspirações da elite local. Estas aspirações incluem
marinas, mobiliário urbano “temático”, o trabalho imagético em torno do signo do Muiraquitã,
estilizado, para a composição do pavimento no passeio, um museu (equipamento urbano
indefectível em intervenções de “revitalização”, “requalificação” ou “reabilitação”, seja qual for o
modelo) e até mesmo a epítome do efeito de transformação urbana por excelência: a alteração do
uso residencial. Em determinada imagem surge, portanto, um condomínio horizontal em área que
parece estar situada às margens do Rio Guamá, onde hoje já reside quantidade razoável de
pessoas, diga-se.
Nas simulações citadas um recurso interessante é o da coexistência dos elementos
regionais com aqueles próprios do padrão da revitalização de áreas consideradas degradadas.
168
Embora haja uma tendência inicial de remoção de usos e padrões, um discurso contextual
permeia o exercício de imaginação e modelagem digital, de modo que é produzido um duplo efeito:
não se adere à já desgastada postura do bulldozer urbano, que faz tabula rasa do território de
intervenção, mas é produzida uma intervenção incorporando referências (visuais, estéticas,
icônicas, na verdade) regionais, apólogas do lugar e reverentes à situação sócio-cultural local. Isto
produz diálogo entre o usuário, consumidor visual das imagens, e produz afinidades entre padrões
estéticos e possibilidades de decodificação de seu conteúdo. O entendimento e a “empatia” entre
os códigos das imagens representam tanto as aspirações de reconfiguração urbana da elite local
quanto à expectativa quase generalizada de soerguimento econômico da cidade. Deste modo, as
modelagens digitais de uma beira de rio urbana têm este mecanismo, ao mesmo tempo empático,
demagógico, facilmente decodificável e familiar aos olhos dos locais; é modificação da cidade,
mas com repertório visual regionalizado, o que lhe confere certa legitimidade e um verniz mais
palatável. Faltam apenas, na representação da nova “orla” periférica remodelada, as torres de
edifícios residenciais, aventadas amiúde por alguns representantes da elite econômica local como
símbolos desejáveis de modernidade em Belém-PA.
Ilustração 39 Proposta livre para imediações do Centro Histórico de Belém e “orla” da cidade. Nota-se uma marina,
píeres, estaleiros e espaços públicos onde hoje, provavelmente, estão as estâncias, os portos informais e o comércio
de bairro. Fonte: Movimento Orla Livre (2005).
169
Ilustração 40 Modelagem computacional exibe museu aquático algo semelhante à famosa Ópera de Sydney, além do
passeio com motivos regionais estilizados. Fonte: Movimento Orla Livre (2005).
Curiosamente, a possibilidade de remoção, aventada com muita freqüência, recebe
abordagens variadas ao longo das falas dos interlocutores do amplo projeto de “requalificação”
das margens fluviais de Belém. Diante da impossibilidade de coexistência dos moradores com o
projeto urbano de atratividade turística, delineia-se uma óbvia contradição; e a população terá sua
“dignidade” resgatada (BELÉM, 2006a). Sobre este tópico, vale a pena comentar a estratégia de
intervenção: o projeto geométrico prevê a urbanização de terras hoje alagáveis, sobretudo no início
da nova via na “orla” fluvial. O citado trecho de 2,4 Km corresponde a uma região de pequenos e
médios empreendimentos comerciais, de serviços e de ocupação irregular. Analisando o traçado
geométrico do sistema viário (ver Ilustração 32; Ilustração 33; Ilustração 34; Ilustração 35), nota-
se a via projetada à frente da ocupação atual; é razoável deduzir que os usos existentes devam ser
eliminados progressivamente, para dar lugar ao novo projeto — pelo qual toda a “cidade” anseia
(BELÉM, 2006b). No citado trecho inicial do projeto há maior incidência de entrepostos de carga e
passageiros, em geral dependentes de estruturas físicas de conexão com o Rio Guamá. Com a
obstrução destas estruturas (trapiches, diques flutuantes, rampas, etc.), e conseqüentemente a
supressão de suas possibilidades de conexão e extensão portuária entre o terreno e o curso
d´água, elimina-se a funcionalidade dos empreendimentos atuais instalados no local. O discurso
170
oficial, entretanto, sustenta que o “negócio” (isto é, as atividades econômicas) local será
mantido no projeto (BELÉM, 2006a; 2006b; 2006c) e que haverá diálogo com todos os moradores
e manutenção dos residentes (idem, ibidem), o que soa paradoxal.
Assim como nos produtos da indústria cultural (HORKHEIMER; ADORNO, 1985), os
“produtos” do planejamento territorial, com óbvias repercussões sociais e políticas, são
aprimorados ao longo do tempo, e suas estratégias assimilam inovações no gosto e também
efeitos da crítica (idem, op. cit.) Isto se nota na evolução das concepções de projetos de
urbanização das agências multilaterais, por exemplo, onde idéias como a “participação popular”, o
“controle social”, a “inclusão”, a “sustentabilidade” ou a “revitalização” são acionadas na medida
do surgimento dos problemas e da crítica ao conservadorismo das políticas. O projeto Portal da
Amazônia, tendo financiamento parcial do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
enquadra-se neste caso, portanto. A retórica de um ex-secretário da gestão municipal —
engenheiro sanitarista de festejada reputação no setor, e então coordenador do projeto — era
justamente no sentido da democratização da intervenção territorial. A habilidade política de
condução do processo também reside na flexibilidade para lidar com os argumentos e termos
“certos” do debate, dependendo da arena de discussão (BOURDIEU, 1996a); a Universidade, o
Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia ou a Associação de Bairro. Na prática,
então, em audiências públicas visitadas e registradas (no CREA e na UFPA), houve reafirmação
constante do caráter democrático do Portal da Amazônia, com o “compromisso” assumido diante
das comunidades (acadêmica e “tecnológica”): não eliminar a economia local, não promover
políticas maciças de remanejamento, impedir a especulação imobiliária, remanejar um mínimo,
mas em qualidade ambiental digna, preservar a “característica local” das áreas atingidas — no
plano cultural, diga-se (BELÉM, 2006b; 2006c). Resta, portanto, a citada contradição entre o padrão
urbanístico existente e aquele sugerido pelo “desejo de litoral” das elites (CORBIN, 1989) locais,
atendido nos esboços divulgados do Projeto Técnico Básico.
Há, nas cidades brasileiras, um processo de reprodução da desigualdade e da assimetria
no padrão de acesso aos recursos, benesses e bens coletivos. Esta reprodução encontra, por
muito tempo, certa permissividade dos agentes produtores do espaço urbano, como o Estado e
parte do capital imobiliário (CARDOSO, 2003). Isto ocorre a partir de uma articulação entre produção
de novas áreas, expansão urbana, baixo custo de reprodução da força de trabalho, desigualdade de
acesso a bens e serviços e um perverso laissez-faire relativo à provisão de habitação e infra-
estrutura (CARDOSO, op. cit.)
171
No caso em questão, a informalidade e a irregularidade do acesso, da posse, da
propriedade e dos padrões de assentamento também são históricas. Em Belém/PA a ocupação das
margens fluviais é composta por agentes diversos, incluindo estratos da economia que subsistiam
em paralelo a atividades mais modernizadas que, no entanto, nem sempre entravam em conflito
“sócio-ambiental” (SABATINI, 1997) com a ocupação irregular das margens do rio e da baía na
cidade. O próprio conflito, aliás, também é historicamente construído, embora possa ser
subsumido a partir das relações de classe.
Em Belém-PA a estruturação urbanística, em freqüente relação com a rede hidrográfica
regional, e a sua articulação à rede urbana demonstram possibilidades da relação entre cidade e
água. Na cidade há razoável diversidade de usos do solo e de padrões de assentamento nas
margens fluviais, mas podem ser identificadas algumas regularidades. Há maiores incidências do
setor terciário quanto às atividades econômicas de beira de rio no centro da cidade; mais ao Sul
costumam predominar atividades de transporte e comércio, variando entre empreendimentos de
maior porte e pequenos negócios informais, além de uma área mais extrema, com terras de
propriedade pública e condições ambientais mais preservadas; nas margens do lado Oeste, em
geral, além da presença do terciário (em entrepostos comerciais e de transporte e pequenos portos
de passageiros), ocorre maior incidência da indústria de maior porte, até um distrito de interesse
turístico do município; no lado Norte das margens da cidade há alguma continuidade em relação à
porção Oeste, com o acréscimo de áreas rurais e ribeirinhas e a existência de pequenas estruturas
portuárias (TRINDADE JR.; SANTOS; RAVENA, 2005).
172
Ilustração 41 "Plataforma urbanizada" do Portal da Amazônia; alteração radical de usos e padrões do território. Fonte:
Belém (2006c).
No entanto, a coexistência destes usos, se obviamente não podia ser “harmônica”, não
chegara a configurar propriamente um conflito declarado, sobretudo na esfera pública, como na
relação com os órgãos do Estado ou através da imprensa. Embora houvesse experiências
históricas de remoção de atividades e populações ao longo dos séculos na cidade, sobretudo
quando da construção do porto (PENTEADO, 1973), parece existir um contexto de certa forma
inédito; o surgimento da idéia de “obstrução”, ligada à mudança do padrão econômico regional e à
crise do esgotamento da economia desenvolvimentista dos anos 1970. A partir de novos marcos
da acumulação e também a partir da falência do modelo desenvolvimentista no Brasil (e,
obviamente, na Amazônia) é que estas disputas passam a ser de fato travadas, no caso de Belém.
Em suma, o que antes era permitido de forma “licenciosa”, digamos, hoje se tornou obstáculo,
impedimento; atraso e irregularidade da modernização e do crescimento econômico. A curiosa
contradição da coexistência de empresas às proximidades de populosos assentamentos precários,
na faixa das margens fluviais de Belém, indica o potencial do conflito em torno das margens da
cidade e, sobretudo, em torno do projeto de modernização, “revitalização”, “requalificação” e do
aproveitamento econômico existente, além da questão habitacional.
173
Maricato (2000) assinala que há certo “padrão” nos assentamentos informais e
irregulares da pobreza urbana no Brasil. Este padrão, por assim dizer, pode ser associado, dentre
outros aspectos, à localização em áreas consideradas “de risco” geotécnico e/ou hidrológico, às
áreas de proteção/preservação/conservação ambiental e às terras públicas em geral. Este
elemento, objeto de constatação empírica totalmente calcada numa leitura da economia política
sobre a cidade, nos permite avançar sobre nossa questão particular, e está textualmente presente
inclusive nos materiais de divulgação do projeto Portal da Amazônia (BELÉM, 2006b, 2006c).
Em Belém-PA o padrão, em certos aspectos, se confirma. A questão é como áreas
habitadas por estratos da pobreza urbana passam a ser visadas pelo capital imobiliário, priorizadas
como novas fronteiras da urbanização, como focos de processos da modernização urbanística
contemporânea. Sobretudo, interessa a tendência à reapropriação de diferenciais notáveis de
determinados espaços da cidade, como fica claro na construção da própria idéia de “orla” fluvial
na cidade. Em última instância, constata-se um embate entre formas distintas de apropriação dos
recursos naturais (no caso, a água e a acessibilidade da rede hidrográfica, além da vegetação e de
aspectos propriamente paisagísticos) e de visões da cidade. O que era espaço “residual” de
habitação, espaço de exploração comercial e de transportes e conexões para determinados grupos
pode se revelar potencial de acumulação e novas possibilidades em marcos contemporâneos para
outros. A partir disto, pensar a possibilidade do “tripé” de Campbell (1996) — crescimento
econômico, justiça social, preservação ambiental, todos como elementos de uma múltipla
“sustentabilidade” urbana — torna-se muito mais complexo. Este tripé seria uma possível
aplicação da idéia — assumidamente genérica e algo inespecífica, segundo o próprio autor — de
sustentabilidade ambiental ao planejamento urbano. Seria, portanto, uma questão de fazer as
formações territoriais urbanas e seus grupos sociais e econômicos crescerem, serem
ambientalmente adequados (onde residem imprecisão e várias dúvidas teóricas) e socialmente
justos.
Isto é pertinente ao caso porque as próprias concepções da economia, da ecologia
urbana e da justiça social na cidade adquirem contornos diferenciados, e conflituosos, entre os
grupos e seus espaços. Desta forma, segundo uma correlação de forças expressa nos conflitos e
tensões na cidade (sobretudo a respeito do solo urbano), a tendência hegemônica aponta para a
efetiva “requalificação” das margens fluviais da cidade de Belém-PA e de seus espaços. Isto é,
também aponta para definições do “tripé” que devem estar mais próximas da idéia de atratividade
de investimentos, da idéia de que se pode “devolver” tais espaços “de orla” “para a cidade” e,
174
enfim, de que esta seja uma medida de “resgate” do contato com o elemento natural definido
como emblemático da “identidade cultural” do lugar. Em última instância, são todas construções
intimamente vinculadas a projetos políticos que, por conseguinte, são também ambientais (HARVEY,
1996b). Seria mais uma chave de análise da realidade onde a dimensão ambiental torna-se
imperiosa, por caminhos diversos.
A introdução das ciências ambientais (ou de conhecimentos técnico-científicos
correlatos) no planejamento urbano provoca reflexões e evidencia contradições. Se a
sustentabilidade das cidades poderia ser vista como processo de busca de
preservação/conservação de recursos ambientais, crescimento econômico e justiça social
(CAMPBELL, 1996), o discurso ambientalista constrói o ambiente, com freqüência, como um
contexto que paira sobre a sociedade, de forma indiscriminada. Este ambiente, política e
hegemonicamente construído como uno e coeso (ACSELRAD, 2004b), apresenta contradições no
plano da apropriação material de seus itens (ou recursos) e na legitimidade de ações de
intervenção. Muitas ações consideradas “sustentáveis” no campo do planejamento urbano
representam, não raro, reconfigurações territoriais e relocalizações de atividades econômicas que
reproduzem formas diversas de desigualdade no acesso, no uso e na apropriação do ambiente e
de seus itens, como a água. A sustentabilidade, aplicada ao planejamento urbano, seja pela ótica
da conservação e gestão de matéria e energia, pela tentativa de preservação do patrimônio cultural
ou pelo exercício participativo da política urbana (ACSELRAD, 2001), tem resultado em soluções
concentradoras de benefícios no território. Do mesmo modo, padrões de assentamento e
territorialização de atividades econômicas e arranjos espaciais diversos na cidade são submetidos
à apreciação de uma série de exigências já codificadas (BRENNER; THEODORE, 2002), e que
estabelecem a legitimidade do que pode ser incluído nas práticas aceitáveis ou desejáveis no
campo da cidade. O ambiente urbano, entretanto, não é objeto de distribuição eqüitativa entre os
impactos e os desdobramentos territoriais e, por conseguinte, sócio-econômicos (decorrentes dos
arranjos, dos padrões de assentamento e acesso a técnicas) ou políticos (na capacidade de
decisão e na influência sobre os perfis de investimento e prioridade) das medidas de intervenção
territorial. Assim, intervenções tecnicamente consideradas sustentáveis podem fazer parte da
reprodução da assimetria na apropriação do ambiente urbano. Este mesmo ambiente, então, não
seria uno e coeso (ACSELRAD, 2004b), mas heterogêneo, com localizações produzidas
historicamente.
Ainda na dimensão ambiental, o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) (BELÉM; SEURB,
175
2006) da intervenção do Portal da Amazônia esclarece vários pontos. Uma descrição sucinta
do projeto sintetiza seu conteúdo:
A Orla da Estrada Nova é parte do projeto Portal da Amazônia, que consiste no
saneamento da Bacia da Estrada Nova através da implantação de um projeto de
macrodrenagem que deve beneficiar cerca de 10 bairros de Belém através da
melhoria das condições de saneamento básico e da eliminação de enchentes. A
Orla da Estrada Nova pretende abrir janelas para que a população local recupere
o contato e o acesso ao Rio Guamá, de maneira ordenada, promovendo a
revitalização de uma área atualmente ocupada por palafitas e atividades
industriais e portuárias (BELÉM; SEURB, 2006, p. 1).
O RIMA da intervenção do Portal e da própria bacia da Estrada Nova tem conteúdo
tecnicamente adequado, dentro do padrão e dos itens corriqueiros de estudos desta natureza;
divide a realidade local em meios (uma curiosa terminologia do século XIX) físico, antrópico e
biótico (BELÉM; SEURB, 2006). Neste aspecto, o Relatório destina às pessoas (o meio antrópico)
as diretrizes de reassentamento da população que habita as palafitas da Estrada Nova e
requalificação urbanística da Área Diretamente Afetada (BELÉM; SEURB, 2006). Dentre os impactos
potenciais à população, entende-se que haja receio dos impactados quanto aos efeitos do projeto,
sobretudo na desarticulação das relações econômicas e sociais estabelecidas no local (BELÉM;
SEURB, op. cit.) Além deste aspecto, o Relatório indica a possibilidade de “transtornos
temporários” (BELÉM; SEURB, op. cit., p. 39) decorrentes do reassentamento; as “dificuldades de
reinserção social” da população atingida (Idem, ibidem, p. 39); a extensão dos impactos às áreas
lindeiras ao projeto; os riscos e incômodos associados ao trânsito e as “alterações na paisagem”
(BELÉM; SEURB, op. cit., p. 39). Em termos econômicos, concebe-se a possibilidade de “[...]
interferência com atividades de comércio e serviços dependentes do rio e da atividade portuária
[...]” (BELÉM; SEURB, 2006, p. 39). O Relatório identifica em seu levantamento de campo poucas
resistências ao projeto, mas reconhece haver uma preocupação generalizada quanto à manutenção
do custo de permanência e reprodução social na área, após a intervenção (Idem, op. cit.)
A população da chamada área diretamente atingida é caracterizada como “consolidada”
em tipologias de ocupação mais adensadas, inclusive em termos domiciliares (Idem, op. cit.) As
relações familiares variadas também são objeto de registro, como aquelas de natureza
homossexual, de casais separados porém residentes no mesmo domicílio, da coabitação de
famílias diferentes, e toda ordem de “heterodoxia” avaliada pela equipe. O referido estudo
considera que as alterações na estrutura urbana, decorrentes do projeto, devem incluir a criação
de um novo “pólo de lazer e atração turística”, além de modificações nos padrões de uso e
176
ocupação do solo e a ocupação de “vazios” urbanos por unidades habitacionais populares
(Idem, op. cit., p. 69). No geral existe uma avaliação que combina impactos positivos (aumento da
cobertura dos serviços de saneamento, da disponibilidade de equipamentos urbanos) àqueles
previsivelmente tidos como negativos em projetos de urbanização, como a citada desarticulação
das estratégias de sobrevivência dos residentes (Idem, op. cit.)
Por fim, resta o ponto referente às tecnologias de saneamento da macrodrenagem da
bacia hidrográfica que é objeto de intervenção do projeto. Inicialmente o projeto Portal da
Amazônia fora divulgado como experiência que adotaria algumas alterações recentes, sobretudo na
forma de tratamento de canais urbanos (ver Ilustração 43; Ilustração 44). Neste caso, a tecnologia
de revestimento de canais, especificamente, era o ponto mais trabalhado. Além deste aspecto
técnico, haveria certa variedade das formas, geometrias, revestimentos, tecnologias e tratamentos
para constituir o sistema de drenagem da bacia, de modo a conciliar os canais/rios urbanos às
redes de microdrenagem existentes ou em fase de projeto. Segundo certa revisão do padrão de
projeto e execução de infra-estruturas de saneamento ambiental urbano, sobretudo a partir da
reavaliação do “padrão” PLANASA53
(BUENO, 2005) e de seu paradigma excessivamente tecnicista,
mecânico e talvez também unicamente “hidrodinâmico”54
, procedeu-se, no Brasil e em vários
outros países, a um amadurecimento de outras formas de intervenção. Estas intervenções são
mais claramente identificáveis em projetos paisagísticos e, principalmente, na drenagem urbana
(BUENO, op. cit.) Sobre o “padrão PLANASA”, inclusive, há uma avaliação local (feita por técnicos
da área do planejamento urbano e dos transportes hidroviários) de que a centralização e a falta de
adequação dos projetos e das soluções de infra-estrutura agravaram o problema no país; segundo
esta apreciação, é como se fossem projetadas estas estruturas sempre a partir da perspectiva do
53
O Plano Nacional de Saneamento (PLANASA) fora iniciativa da época da ditadura militar de 1964, instalado a partir de 1969
mas com atuação predominante na década de 1970. O Plano era uma espécie de articulação entre o braço técnico de
projetistas, um padrão de execução de grandes obras de saneamento básico e uma extensão financeira, no caso um Sistema
Financeiro de Saneamento (SFS) com participação do Banco Nacional da Habitação (BNH) e as facilidades de crédito da
época (MELO, 1989). Tecnicamente o PLANASA é identificado, entre outros pontos, com um nível de projeto centralizado no
Sudeste brasileiro e que adotava soluções que os paisagistas atuais qualificam como “mineralizadas” (MELLO, 2004; 2005) e
os urbanistas como excessivamente racionalistas (BUENO, 2005), “engenheirescas”, em um termo livre, nosso. O ponto central
que Laura Machado de Mello Bueno (2005) ataca é o da concepção antiga de drenagem urbana que expulsa as águas da malha
urbana, elevando os picos de cheia a jusante e provocando violentas descargas em cotas mais baixas, em geral coincidentes
com ocupações precárias e altas densidades, o que tende a agravar enchentes e a problemática subseqüente.
54
Isto é evidente sobre um possível comentário acerca do “padrão PLANASA”, pois há certa desconexão, já histórica, entre
projeto urbanístico e projeto de redes de infra-estrutura de saneamento; obviamente as redes tendem a acompanhar a
geometria do parcelamento e do sistema viário, mas os locais infiltráveis, os traçados e as áreas destinadas à ocupação
residencial ou a equipamentos urbanos nem sempre são observadas por estas engenharias urbanas de forma apropriada.
177
problema de Campinas-SP, por exemplo55
. Britto (2004), por exemplo, acrescenta a discussão
sobre a gestão e a titularidade dos serviços de saneamento, atualmente; no caso do Portal da
Amazônia, a Prefeitura Municipal de Belém se coloca como agente e como sujeito da concepção,
da execução, do gerenciamento das infra-estruturas e serviços de saneamento na bacia. Esta
elevação do município à categoria de agente participante da discussão sobre o saneamento é
recente, e no caso a disputa política da Prefeitura é colocada como sendo parte de um projeto de
municipalização do saneamento em Belém/PA.
Os cursos d´água que atravessam a bacia da Estrada Nova remetem, ao mesmo tempo,
a duas questões sobre as formas recentes do saneamento ambiental urbano: as novas tecnologias
ambientais de tratamento de canais e a mudança de função na abordagem destes cursos d´água
na cidade. Embora a concepção geral permaneça de certo modo, com um desenho de
macrodrenagem ligado a outro, de microdrenagem, e com estruturas de deposição em cotas mais
baixas, há nítida mudança de certos aspectos de projeto. Como citado por Bueno (2005), a
retenção das águas na cidade passa a ser considerada; o fluxo, o tempo e o caminhamento destas
águas, portanto, muda (ver Ilustração 35).
A diretriz de projeto citada representa uma avaliação contemporânea do padrão de
escoamento em casos de bacia hidrográfica urbana. Pelo elevado grau de acentuação das
descargas hidráulicas em superfícies impermeabilizadas a tendência das novas tecnologias seria a
de tentar evitar a elevação excessiva do escoamento superficial (runoff) das águas na cidade
(ARAÚJO; ALMEIDA; GUERRA, 2008). Com a tendência do solo urbano, pela forma de ocupação e
variedade de uso do solo, de impermeabilizar consideravelmente as superfícies, alguns aspectos
destas novas tecnologias foram modificados. As alterações de relevo nas áreas urbanizadas
tendem, por exemplo, a suprimir depressões em fundos de vale, que representavam áreas de
retenção de águas; com o relativo aplainamento do sítio, a intensidade do escoamento superficial
aumentaria (ARAÚJO; ALMEIDA; GUERRA, op. cit.) Atualmente, portanto, as tecnologias incorporam o
aumento de áreas permeáveis, a mescla entre pavimentos rígidos e de maior estanqueidade com
aqueles mais porosos e desenhos capazes de equilibrar a necessidade de escoamento e evitar a
sobrecarga das redes às necessidades funcionais.
Outro aspecto relevante neste tópico é o da “reconversão” de rios urbanos. Desde a
década de 1990 parece ter havido a volta de uma antiga discussão no campo do urbanismo e das
55
Depoimento dado a outra pesquisa do autor, em tema semelhante, a propósito da discussão da eventual reversão do “padrão
PLANASA” rumo à recuperação parcial da navegabilidade de canais/rios urbanos.
178
engenharias envolvidas com a cidade, acerca do tema de suas águas. Enquanto tecnologias de
saneamento da virada do século XIX para o século XX apresentavam ainda característica “híbrida”
entre certa abordagem “compreensiva” (infiltrar, vegetar, manter a sinuosidade original) e outra,
“racionalista” (impermeabilizar, revestir, retificar), em meados da década de 1960 parece ter
finalmente predominado a segunda, pelo menos na maior parte das nações capitalistas. No Brasil
este processo não foi diferente, como citado, mas houve também discussões e projetos
apresentados no sentido contrário, basta que se consulte o exemplo de Santos (ANDRADE, 1992) ou
mesmo a localmente famosa proposta de “veneziamento” de Gronsfeld (ver Ilustração 8; Ilustração
9), rapidamente comentada neste trabalho. A postura recente de se “destampar” rios, isto é, de se
reverter os procedimentos de retificação e, sobretudo, canalização de cursos d´água urbanos nos
coloca pontos fundamentais para estudo.
Este processo de “reconversão” nos impõe uma necessidade de reconhecimento de
termos: trata-se, ao mesmo tempo, de falar dos “canais” de drenagem, e dos recentemente
reabilitados “rios urbanos”. No caso de Belém-PA esta dupla denominação começa a surgir, ainda
que de forma incipiente. A abordagem técnica, de escoamento, de caráter eminentemente
funcional, passa a conviver com a consideração acerca de outras formas de tratamento, sobretudo
de natureza paisagística. A incorporação daquelas tecnologias ambientais urbanas supostamente
mais “compreensivas” em termos ambientais é contemporânea deste processo. Os canais
tornados rios urbanos são objeto de revegetação, recomposição parcial da organicidade de seus
traçados e recebem tratamento paisagístico e novos usos do solo, típicos de projetos de
revitalização de caráter cultural (com cafés, galerias e centros culturais, por exemplo).
Tecnicamente, há argumentos para os dois primeiros procedimentos citados. A vegetação urbana
teria um papel importante na recuperação ambiental, uma vez que produz maior estabilidade
mecânica do solo, representa a possibilidade de percolação das águas, reduzindo a carga nas
redes de infra-estrutura, e permitindo a redução da temperatura da área urbana, numa espécie de
microclima local (MASCARÓ, 2008; ARAÚJO; ALMEIDA; GUERRA, 2008). O traçado sinuoso de canais
(tornados “rios” urbanos), que costuma ser a sua configuração natural, reduziria a energia cinética
das massas de água, imporia menores vazões pela redução de velocidade de escoamento e
representaria menores chances de carreamento de material e, portanto, assoreamento de cursos
d´água e margens (Bueno, 2005; ARAÚJO; ALMEIDA; GUERRA, op. cit.)
Por outro lado, o que parece estar se convertendo em um novo “modelo” de intervenção
nas águas urbanas (o próprio termo é, também, recente) é também parte de um novo modelo de
179
reconfiguração urbana em sentido mais amplo. A intervenção paisagística e saneadora em
margens de canais (ainda predominantemente sanitários, pelo menos em discurso) ou rios
urbanos (já com a proeminência “urbanística” a seu favor) no sentido da “ reconversão” parece
apontar que os usos ditos “pesados” da cidade, nas proximidades da água, começam a ser
substituídos. Do mesmo modo como tem ocorrido com as áreas históricas centrais, as margens
das “águas urbanas” (rios ou canais) sofrem intervenção técnica, administrativa e sócio-
econômica. Estas intervenções parecem substituir as antigas atribuições da água na cidade, como
locais do dejeto e do resíduo56
, em direção a uma “água urbana” que é item de uma paisagem
simultaneamente cultural e econômica, de consumo visual (ZUKIN, 2000), de fato. Saem, portanto,
os efluentes massivamente destinados a estes cursos d´água, pelo menos nos trechos em que
são visitados, pois deles já saíram os respectivos usos poluentes, e entra a intervenção capaz de
garantir novos ativos, de acordo com certos usos e padrões das economias urbanas recentes.
Decorre daí, portanto, o reforço na classificação dos “sujos” e “limpos” nas águas da cidade,
quanto até então praticamente toda ela era local de despejo, inclusive no caso em questão.
Para finalizar, é possível citar que, na rede de canais de drenagem de Belém-PA, há certa
diversidade tipológica, e que esta diversidade decorre de critérios técnicos, sobretudo. Nesta
diversidade podem ser encontradas, portanto, diversas formas de tratamento dos taludes,
tecnologias de revestimento, de controle de enchentes (embora predominem as comportas como
solução) e de extensão. Canais de drenagem (ou rios urbanos, o que neste ponto do trabalho já
deve ficar claro que depende unicamente da forma de tratamento e do propósito a que se destina o
curso d´água) situados em bairros mais diferenciados do ponto de vista sócio-econômico na
cidade são, portanto, discutidos como solução urbanística. Embora os Planos Diretores Urbanos
de Belém-PA (de 1993 e de 2008) tabulem sistematicamente as faixas de domínio dos canais
urbanos, não se trata mais apenas de estruturas de saneamento, mas de uma complexa
composição entre drenagem, diferenciais locacionais e valorização imobiliária, onde entram novos
fatores a partir de novos itens componentes de rendas diferenciais; no caso, a água da cidade. Por
isso, portanto, existem as diretrizes de reabilitação desta figura múltipla e nem sempre objetiva, da
orla de Belém-PA.
56
Conforme historiado por Corbin (1989) acerca do litoral europeu, por exemplo, dentre inúmeros outros casos.
180
Ilustração 42 Avenida Visconde de Souza Franco, circa 1975. A via possui um canal/rio urbano e divide os bairros de
classe média do Reduto e do Umarizal, em Belém-PA, terminando na zona portuária da cidade (ao fundo, na imagem,
com os guindastes do porto à beira da Baía do Guajará). Padrão de intervenção em canais de drenagem do tipo
tradicional, atualmente em processo de discussão. Fonte: Skyscraper city (2008).
181
Ilustração 43 Proposta esquemática de tanque de acumulação (conhecido como “piscinão”), do projeto Portal da
Amazônia, técnica que representa inovação em projetos de drenagem urbana, evitando a acentuação do pico de cheia
a jusante, e considerando a retenção temporária das águas (BUENO, 2005) em áreas de baixa declividade e ocupação
relativa no entorno. Fonte: Belém (2006b).
182
Ilustração 44 Esquemas de seções-tipo de canais (ou "rios") urbanos da proposta inicial do projeto Portal da Amazônia mostram a variedade de tecnologias e formas de tratamento
destes cursos d´água proposta no início dos trabalhos de divulgação do projeto. Hoje pode ser dito que a maior parte destas tecnologias foi revista em função de padrões mais
convencionais. Fonte: Belém (2006b, p. 28).
Proposta de Canalização (Avenida Sanitária) Proposta de Canalização (CANRA - Canal Revestido Aberto)
Proposta de Canalização (CANRA - Canal Revestido Aberto)
Proposta Naturalística (Canal em Leito Natural)
183
No entanto, estas formas de intervenção territorial têm sido baseadas em matrizes
racionalistas, a processos formalizados, impessoais (ou seja, padronizados) e universais de
engenharia e urbanismo. Isto se deve, entretanto, muito mais a um processo de racionalização do
mundo e formalização da política do que propriamente a um canal unívoco de resolução de
problemas técnicos. Em suma, a qualificação “ambiental” da problemática territorial em questão é
parte de uma construção social, da inclusão da dimensão material do espaço como recurso, sendo
parte de possibilidades de subsistência para uns, geração de riqueza para outros e assim por
diante. Por outro lado, o surgimento de uma engenharia com declaradas preocupações ambientais
recoloca a dimensão destes recursos inclusive no plano da técnica. A dimensão da água como
recurso convive, portanto, com sua apropriação como paisagem — de consumo visual (Zukin,
2000) — e como veículo — numa abordagem mais técnica.
184
3.8. MANGAL DAS GARÇAS
Ilustração 45 O parque ambiental Mangal das Garças. Vista do mirante, da cobertura de um de seus restaurantes, com
a Igreja da Sé ao fundo. Fonte: Pará (2005a).
É possível dizer que as intervenções territoriais nas margens fluviais de Belém-PA
sofreram transformações de sentido ao longo do tempo. Em movimento de avanço em direção à
periferia próxima de Belém, o parque ambiental — ou, segundo os promotores, “naturalístico”
(PARÁ, 2005a) — Mangal das Garças se anuncia como uma “[...] poética síntese do ambiente
amazônico no coração urbano e um exemplo de como se relacionar conscientemente com a
natureza” (PARÁ, 2005a). Intervenção do governo estadual de gestão anterior à atual, assim como
a Estação das Docas e o Feliz Lusitânia, o parque Mangal das Garças57
relaciona o par cultura-
natureza nas intervenções de margens fluviais (ou “orla”) de Belém de maneira fluida, digamos.
O aspecto ambiental destas novas intervenções territoriais em Belém e seu entorno
guarda várias formas. Em Belém, o Mangal das Garças é um espaço que pretende reconstituir a
fauna e a flora de parte dos ecossistemas amazônicos (PARÁ, 2005a), à beira do Rio Guamá.
57
O parque tem área de 4 Ha e foi construído a um custo de R$ 15 milhões (VAINER; BIENENSTEIN; SÁNCHEZ, 2005), com
aquisição de terreno pertencente à Marinha do Brasil, situado na vizinhança do 4º Comando do Distrito Naval da região. Foi
inaugurado em janeiro de 2005. Assim como a Estação das Docas, o complexo Feliz Lusitânia e outros conjuntos da mesma
gestão estadual, são administrados por organização social sem fins lucrativos, segundo o modelo das parcerias público-
privadas — embora dependam essencialmente de recursos públicos.
185
Possui uma série de estruturas de visitação, passagem, e viveiros, onde borboletas, pássaros,
beija-flores, orquídeas e demais espécimes da região são expostos ao visitante:
Considerando-se as condições paisagísticas da área, a intenção foi a criação de
um “Parque Naturalístico”, cujo tema é a representação das diferentes macro
regiões florísticas do Estado do Pará, isto é, as Matas de Terra Firme, as Matas
de Várzea e os Campos.
Entre lagos, vegetação típica, equipamentos de cultura e lazer, juntamente com a
inusitada paisagem do aningal existente, o Mangal das Garças representa uma
síntese do ambiente amazônico, bem no coração da cidade. Uma obra
emblemática onde a natureza é preservada e o homem aprende a conviver, sem
destruir, com a sua circunstância ambiental (PARÁ, 2005a. Grifos do autor).
O tema da água permanece bastante em voga na cidade desde finais dos anos 1980, na
medida em que se discute e concorda cada vez mais com um projeto relativamente vago de
“devolução” do acesso à sua orla fluvial. “Desobstruir”, então, passou a ser uma concepção
praticamente consensual, numa articulação entre “requalificação” e “revitalização” do território e
“resgate” do contato com a natureza. Há no parque, inclusive, um Memorial Amazônico da
Navegação, com acervo que remete às antigas embarcações dos ribeirinhos, às escunas e
corvetas antigas da Marinha do Brasil e ao imaginário em torno do rio que há na Amazônia. Nos
termos do Mangal das Garças, a intenção de “devolução” ambientalmente responsável consiste,
em última análise, numa decisão de projeto arquitetônico, urbanístico e paisagístico:
[...] o projeto harmoniza os acessos com as vias existentes e terrenos do
entorno, aproveitando-se a presença da água para a implementação de um
grande lago como o seu ponto principal, além do rio, circundado,
equilibradamente, por caminhos e passeios pavimentados, que interligam o
estacionamento, áreas de estar e os equipamentos de lazer e serviços. O
destaque às peculiaridades da paisagem amazônida levará o visitante à
descoberta de perspectivas exóticas, que integram ambientes das matas de
várzea do estuário, de terra firme e campos com o aningal (PARÁ, 2006).
186
Ilustração 46 O prédio do restaurante, onde também estão o trapiche e o Memorial Amazônico da Navegação, no
parque Mangal das Garças; usos da revitalização urbana, mas associados a conteúdo regional e com pretensões
ecológicas. Foto do autor (set. 2009).
Na dimensão patrimonial da idéia de melhoria da “qualidade de vida” na cidade
(ACSELRAD, 1999) há inclusive uma declarada intenção de remeter ao passado da cidade de Belém,
com a construção de um mirante sobre estrutura metálica, onde está instalado um farol — o “Farol
de Belém [...] que encontra-se inscrito nas cartas náuticas brasileiras” (PARÁ, 2005a). Na cidade
havia, no passado, uma série de caixas d´água metálicas (ver Ilustração 49), remanescentes das
concessionárias privadas de abastecimento, de capital inglês (XIMENES, 2003). O passadismo pós-
moderno, da reciclagem dos signos da cidade remodelados para o presente (HARVEY, 2000), está
portanto contemplado; a alegação da História confere, provavelmente, mais “dignidade” ao projeto.
187
Ilustração 47 Vista do Mangal das Garças, a partir da torre do mirante. Foto do autor (jan. 2007).
Ilustração 48 Vista do Mangal das Garças, com ocupações vizinhas e as obras vizinhas do Portal da Amazônia;
sobreposição de usos e conflito. Foto do autor (jan. 2007).
188
O discurso ambiental, em todo caso, está presente. Um de seus aspectos interessantes é
a sinalização da possibilidade de (re)criar o ambiente amazônico, no interior da intervenção
territorial, de cerca de 4 Ha. O processo de educação ambiental do cidadão, o reconhecimento da
própria natureza do entorno e a capacidade de consumir visualmente a imagem amazônica estão
vinculados, ao que parece, à experiência da visitação informada ao parque. Obviamente, trata-se de
uma intervenção urbanística e, como tal, a parcela de artificialidade não poderia deixar de ser
praticamente total no espaço. No entanto, longe de qualquer purismo e de uma forma simplória do
par cultura/natureza, é curioso observar como a produção do lugar e a produção da natureza
ordenada logram papel de destaque no urbanismo contemporâneo e na requalificação dos espaços
urbanos em sua relação com a própria “natureza” — entendida como idéia também, em suas
variadas acepções e representações possíveis.
189
Ilustração 49 O Farol de Belém: inscrito nas cartas náuticas brasileiras, é ao mesmo tempo mirante do parque Mangal
das Garças e ícone nostálgico, remetendo a antigas estruturas da cidade. Foto do autor (set. 2009).
190
Ilustração 50 O galpão do Armazém do Tempo funciona como café e loja no parque Mangal das Garças. Foto do autor
(set. 2009).
No Mangal, a idéia de uma síntese dos ambientes amazônicos remete, historicamente,
aos famosos parques ingleses do século XIX, notórios pela tentativa de reprodução da dinâmica
“natural” em espaços projetados, paisagisticamente concebidos para parecerem “espontâneos” e
“originais”, sem intervenção humana (SCHAMA, 1996). A natureza compacta, artificial, porque
histórica, faz parte de operações contemporâneas de instauração de porções do ambiente no
território da cidade. Do mesmo modo, podem se inscrever nestes exemplos as operações de
recuperação de rios e de matas urbanos. O “resgate” da natureza na cidade traz os discursos da
191
melhoria da qualidade físico-ambiental do espaço urbano, mas cria também novos regimes e
novas fronteiras de permanência, de permissão, de possibilidades de apropriação e consumo das
localizações na cidade. O restaurante do Mangal das Garças, por exemplo, fora construído em
grande parte com madeira apreendida, oriunda de doações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) (PARÁ, 2005a). O Armazém do Tempo (ver
Ilustração 50), espécie de estufa ou gazebo instalado no parque, é caracterizado como
[...] um antigo galpão de ferro, usado como oficina mecânica no reparo de
embarcações, [...] restaurado para abrigar um ambiente alternativo. Nele, os
visitantes podem comprar plantas, artesanato, livros e CDs de artistas paraenses
ou saborear um café (PARÁ, 2005a).
Ilustração 51 Imagem da torre do mirante do Mangal das Garças; proximidade com a intervenção viária do Portal da
Amazônia e vista do aningal. Foto do autor (set. 2009).
Em visita ao parque ambiental, ainda no período de sua construção, responsáveis pela
obra informaram que a execução do parque exigia o aterramento e a eliminação de cerca de 80%
da planície de inundação vegetada do terreno. Na verdade, pouco importa que boa parte da área do
192
parque ambiental seja fruto de aterro recente, justamente na área do aningal58
propalado como
vegetação sobre planície de inundação típica da região de várzea. Também não se constitui em
fato tão relevante o sistema de águas correntes e pequenos lagos artificiais que compõe o caráter
naturalístico da paisagem do parque. O que nos parece mais representativo deste espaço59
— das
intenções declaradas de “requalificação” das margens fluviais, do centro e dos patrimônios
ambientais e construídos em geral da cidade — é a criação do espaço da natureza idealizada. Este
espaço passa a receber o sentido da “Arcádia” (SCHAMA, 1996), da idéia de parque onde o
recôndito da natureza idealizada e perdida pode ser recolocado (SCHAMA, op. cit.),
contraditoriamente, em bases postas pela própria técnica da drenagem, do paisagismo, do
urbanismo. Típica da modernidade, da idealização, estilização e fruição estética (freqüentemente
burguesa) da natureza, a Arcádia portanto encerra um espaço onde aquele contato perdido pode
ser reencontrado, com os elementos naturais essenciais reunidos (idem, op. cit.) Uma “recriação”
de arquétipos da natureza, relativamente idealizados e estilizados, portanto.60
O traçado urbanístico do Mangal combina soluções geometrizadas a partidos de
inspirações mais orgânicas. Como em projetos paisagísticos típicos desta natureza, as referências
visuais são fundamentais; o Mangal sinaliza com o apelo do padrão da revitalização ao mesmo
tempo em que se articula com os itens regionalistas. Seu paisagismo, se não é exatamente
apropriado à região em termos bioclimáticos (pela pouco densa cobertura vegetal e de resto baixo
porte das espécies vegetais nele instaladas), é totalmente ligado às diretrizes recentes de defesa da
aplicação de espécies endógenas em urbanização e estratégias de recuperação ambiental. O
movimento de reapropriação das margens da cidade, e de extensão do projeto da orla,
representado pelo Mangal das Garças, tem no parque um exemplo interessante de articulação entre
a dimensão ambiental (ou alguns de seus aspectos) e o discurso urbanístico recente de um dado
“ambiente urbano”. Que também deve ser retomado, diga-se.
O Mangal das Garças representaria, em uma série histórica das intervenções do PSDB em
Belém-PA, nas suas margens fluviais, a inflexão do mote das urbanizações em direção a seu
58
A aninga é uma vegetação típica de áreas alagáveis da região, em geral lodosas. A espécie vegetal atinge cerca de 2 metros
de altura, às margens dos cursos d´água.
59
E de sua expressividade como intervenção territorial vinculada às intenções dominantes.
60
Thomas (1988), também, coloca a idealização da natureza presente nos parques ingleses, a partir de referência histórica a
construções repletas de engenhocas espetaculares simulando o primitivo e o divino, místico, no interior de cavernas e demais
espaços “campestres” ou atraentemente “incultos”.
193
caráter francamente ambiental. Os espaços produzidos nesta gestão sofreram críticas severas na
imprensa, na academia e mesmo no próprio setor público por seu caráter elitista. Esta
característica foi atribuída a intervenções como a revitalização de zona portuária da Estação das
Docas; a partir daí, a Secretaria Executiva de Cultura (SECULT) começara a produzir espaços onde
alguma concessão ao público era feita de modo mais evidente, e onde o propósito de acesso
franco e mais democrático deveria ser praticado. A própria localização do Mangal, em área ao
mesmo tempo disponível (antiga área militar negociada com o Governo do Estado) e próxima ao
centro (na fronteira dos bairros da Cidade Velha e Jurunas, portanto entre o Centro Histórico e a
periferia próxima), atesta certo movimento de expansão do projeto. De certo modo, podemos falar
em articulação com a orla, naquela acepção mais ampla; algo não propriamente objetivo que
representaria um movimento de reapropriação dos espaços de margens fluviais da cidade,
sobretudo por suas camadas mais influentes economicamente.
Ilustração 52 Exemplo de desenho de caminhamentos e traçados do partido urbanístico e paisagístico do parque
Mangal das Garças (viveiro de pássaros à direita, na base da foto); o orgânico dialoga com a vegetação regional, e
remete tanto à familiaridade do espectador com o local quanto ao discurso ambiental nas intervenções urbanas. Foto
do autor (set. 2009).
194
Uma das contradições mais interessantes a respeito deste coletivo, múltiplo e intrigante
senso comum — o de “revitalizar” as margens fluviais da cidade e restabelecer o contato com a
natureza — é a série de impactos que ele tem provocado. Em termos urbanísticos, é curiosa a
tendência do mercado imobiliário em captar o potencial de localização das margens fluviais
(XIMENES, 2004). Também é representativa a tendência histórica ao enobrecimento (MOTTA, 2000)
(que a literatura também trata como gentrification) dos espaços do centro histórico da cidade
(XIMENES, op. cit.), cuja qualidade patrimonial o coloca, portanto, como mais um espaço da
qualidade de vida (ACSELRAD, 1999), nos termos das matrizes da sua modalidade de
sustentabilidade urbana. A óbvia instauração de um padrão progressivamente desigual de
localização e de apropriação dos recursos nos remete a uma idéia de segregação, de
estabelecimento de novas fronteiras no espaço urbano, valorizado cultural e economicamente em
certos espaços. As ações e a justificativa do novo padrão de intervenção (desobstruir, requalificar,
retomar o contato com a natureza, etc.) teriam seu argumento na idéia de um ciclo: aumento de
receita pública, aumento de investimentos sociais, melhoria da “qualidade de vida”. Em síntese, a
tendência e a semelhança com outros casos nos remetem mais à idéia de “[...] sustentabilidade do
dinheiro do que do meio ambiente” (SACHS, 1997, p. 18). A idéia de “desenvolvimento” nos
marcos da economia de mercado (SACHS, 1997) permanece, agora acentuada a partir do
convencimento coletivo de que um novo padrão de “requalificação” e “sustentabilidade” dos
espaços deva ser instalado.
3.9. ECONOMIA DA CULTURA E “ORLA”
Como apontado em outros trechos deste trabalho, há uma série de intervenções
urbanísticas que tiveram lugar em Belém-PA em espaços de beira-rio. Muitas delas eram de
natureza cultural, ou associadas à política cultural regional e local, e a estratégias de
desenvolvimento econômico, sobretudo ligadas ao fomento ao turismo, embora com estratégias
diferenciadas, variáveis. Em outro momento, e em outro trabalho, foram abordadas algumas destas
intervenções em Belém-PA que se dirigiam à “orla” fluvial da cidade, de modo a fazer parte de um
amplo projeto de revitalização de sua área central e de desobstrução e devolução, termos da
época, das margens de seu rio e sua baía (PONTE, 2004). Não é, portanto, apropriado resgatar este
debate, e de fato ele teria menos aplicabilidade para a temática deste trabalho. Tais intervenções,
195
concebidas e executadas entre os anos 1990 e 2000, faziam parte de um processo de disputa
política entre as administrações públicas municipal e estadual e, também, divulgavam concepções
relativamente distintas de projeto urbanístico. A dimensão “relativa” da diferença de concepção
urbanística era dada por um elemento unificador, presente em todas estas intervenções; o fato de
se pensar as margens fluviais da cidade, sobretudo aquelas próximas ao centro, como passíveis
de reabilitação através da implantação de equipamentos urbanos de amenidades, lazer e consumo,
com contemplação paisagística da “orla” da cidade (PONTE, op. cit.) Embora houvesse
intervenções de pretensões declaradamente mais democráticas, efetivamente apólogas do lugar
público (ARANTES, 1993) como estratégia de intervenção urbanística contemporânea, a matriz
nuclear, digamos, era praticamente a mesma. Uma questão que diferenciava intervenções
municipais de estaduais era, por assim dizer, o projeto de desenvolvimento econômico a elas
associado. Havia um grupo de equipamentos urbanos explicitamente vinculados a uma política de
dinamização do turismo, através da promoção de espaços liminares (ZUKIN, 2001), separando
poder econômico e a dinâmica marginalizada da cidade. Por outro lado, intervenções que se
pretendiam opositoras a estas, embora também tivessem a economia turística como referência,
foram articuladas a programas federais de geração de trabalho e renda, e a ações específicas na
área da chamada economia solidária em geral (PONTE, 2004). Esta é, de fato, uma diferença de
concepção relevante.
Tais intervenções são, basicamente, as da Estação das Docas (na zona portuária), do
complexo Feliz Lusitânia (no centro tombado da cidade), ambas do Governo do Estado do Pará. A
Prefeitura Municipal de Belém responde pelo complexo Ver-O-Rio (na zona portuária, em local de
atividades de fluxo de carga), pela Praça do Pescador (curiosamente vizinha à Estação das Docas
e dela separada por um gradil metálico cronicamente “polêmico”) e por outras “orlas” fluviais de
intervenção pontual, das quais a de maior representatividade social e urbanística é a da Orla de
Icoaraci (distrito do município de Belém-PA).
Em termos urbanísticos, e no sentido projetual do termo, as intervenções de beira de rio
em Belém-PA, à época, se propunham opostas também no plano técnico e imagético. Enquanto as
intervenções vinculadas à concepção do planejamento estratégico de cidades, de atratividade
econômica e apelo ao consumo, tinham partido nitidamente mais refinado e arrojado, aquelas de
propósitos socialmente mais inclusivos eram elogiosas ao regionalismo como repertório visual, e a
196
soluções duráveis de baixo custo. As diferentes concepções do que deveria ser a “orla” (no caso,
um equivalente de beira de rio do parque linear urbano, associado a atividades de comércio e
serviços) eram evidentes, mas o uso do solo era “coincidente”.
A intervenção territorial de maior visibilidade da chamada “orla” de Belém-PA é o
complexo turístico e gastronômico da Estação das Docas. A Estação atende aos requisitos do
modelo “clássico” do waterfront. O espaço foi projetado na zona portuária da cidade, tombada no
nível estadual por órgão da cultura e patrimônio histórico, e está instalado nos três primeiros
galpões do pátio de operações do Porto de Belém; houve o acréscimo de um quarto galpão,
convertido em estação de passageiros. O complexo foi inaugurado em maio de 2000. Sua
estrutura atual tem 500 metros de extensão sobre o antigo cais acostável do porto, e cerca de 3,2
hectares de área construída e urbanizada (PARÁ 2000, 2008)61
. A Estação faz parte de uma série de
“empreendimentos” (PARÁ 2000, 2008) turísticos do Governo do Estado, pensada a partir de um
documento de Governo, um Plano de Desenvolvimento Turístico. O complexo teria como
propósitos a “[...] produção de cultura, lazer, turismo e serviços [...]” (PARÁ 2000, 2008) e
incrementar o turismo, movimentar a economia e valorizar a cultura do Estado [...]” (PARÁ 2000,
2008). A Estação apresenta itens já comuns a waterfronts em geral: a gestão por parcerias
público-privado; administração (ou gestão) privada através de Organização Social que coordena o
empreendimento; mistura de lógica empresarial moderna, mas subsidiada, com traços étnicos
locais (gastronomia, artesanato, música popular) (HARVEY, 1996a; 2000) e algum arrojo projetual.
A divulgação da Estação das Docas qualifica o ambiente:
Num dos mais nobres pontos em que Belém abre suas janelas para o rio, um
belo cais nos convida a embarcar no rumo da arte e do lazer. Na orla entre a
modernidade e a cultura ribeirinha, a Estação das Docas prova que a inovação
arquitetônica e a recuperação do patrimônio histórico podem viajar juntas e em
perfeita harmonia (PARÁ 2000, 2008).
A Estação das Docas, em seu partido, remete ao Porto de Belém, às visualidades das
embarcações da região e, ao mesmo tempo, ao padrão médio de consumo e gosto do mercado
turístico nacional. O Porto de Belém, do princípio do século vinte e desativado nos três galpões
onde funciona o atual complexo turístico, não está mais ali; por outro lado, podem ser visitadas as
61
Segundo dados da Secretaria de Cultura do Estado, a Estação das Docas teria custo total de R$ 25 milhões, entre R$ 19
milhões (76%, portanto) do Governo do Estado do Pará e R$ 6 milhões oriundos dos concessionários/comerciantes e de
empresas privadas em apoio ao projeto, via editais públicos da área de fomento à cultura (PARÁ; SECULT, 2001).
197
gruas da antiga estrutura portuária, pode ser observada a arquitetura metálica pré-fabricada, além
do horizonte do rio Guamá e um acervo arqueológico e histórico, oriundo inclusive das escavações
da obra e da consolidação do Forte de São Pedro Nolasco, obra do século XVII situada no interior
do complexo. Há, ainda, imagens de transeuntes da virada do século XIX para o século XX
impressas em pequenos totens, formando uma ambiência nostálgica e passadista.
Ilustração 53 A Estação das Docas, nas margens da Baía do Guajará, em Belém-PA: waterfront e apelo da "orla" na
cidade. Foto do autor, dez. 2003.
No conjunto da Estação das Docas há recursos de exploração visual da transparência e
da opacidade, nos painéis metálicos cegos da vedação dos antigos galpões portuários ou nos
envidraçados, para dar visibilidade em direção ao rio. Do lado oposto dos galpões foram
projetados painéis espelhados, refletindo a antiga Alfândega e um casario, local de prostituição,
bares mal-afamados, casas de diversão clandestinas, mas também novos centros culturais e a
sede regional do Banco Central e da Advocacia Geral da União (AGU). No espaço o uso de
instalações e materiais contemporâneos permite que coexistam estratégias da arquitetura
contemporânea com referências à conservação de monumentos históricos, um recurso comum
198
em projetos de revitalização que, em termos técnicos, não costuma ter compromisso com
preceitos da restauração arquitetônica (CHOAY, 2001). O complexo, como é de praxe, utiliza-se de
materiais e especificações de certa assepsia, e padrão confortável, capitalizando sobre as cascas
do antigo, e remetendo à atividade do antigo Porto, à configuração de suas estruturas, com os
equipamentos do porto compondo a atual paisagem cenográfica do espaço. Esta estratégia, da
conservação relativa do antigo associada ao apelo e aos padrões estéticos do novo, permite o
consumo (visual, simbólico, material) do espaço ao mesmo tempo em que o legitima com itens
diferenciados, como os produtos de referências étnicas ou a gastronomia. Isto está de acordo com
o padrão dos espaços culturais do gênero, em vários outros lugares do mundo. A cultura do
gourmet (ZUKIN, 1991), por exemplo, é comentada amplamente como item a constar em tais
espaços, pelo apelo de consumo de vários outros sub-setores associados, e pela clara vinculação
com as novas elites urbanas. A Estação das Docas tem usos baseados em ambiências do tipo que
seria, no jargão estratégico, o “diferencial competitivo” do histórico, do antigo, do consumo de
cultura e de algum exotismo, enquanto produto (ZUKIN, 2000).
Um dos pontos relevantes do exemplo da Estação das Docas é que o espaço relaciona-se
diretamente com o discurso, ações e políticas da “desobstrução” da “orla” em Belém-PA. Isto se
relaciona também com a água na cidade e suas representações, suas formas de apropriação
territorial e econômica, e práticas materiais (HARVEY, 1996b). É uma espécie de exercício de
legitimidade, implantando novos usos e padrões tidos como desejáveis para o espaço da “orla”, e
a estes usos contrapondo as soluções, assentamentos e técnicas tradicionais, estigmatizados. O
perfil geral da Estação das Docas, portanto, é o do atendimento ao apelo da “abertura” das
margens fluviais da cidade de Belém-PA. Isto atende a certos requisitos das elites locais na fruição
da paisagem do rio da cidade, tornada liminar (ZUKIN, 1991; 2000), separando a variedade (e a
pobreza) do Ver-O-Peso, ao lado, e a cultura do gourmet (ZUKIN, 2000) regionalizada, dentro do
complexo.
Como citado, havia disputa política nos anos que se deram após as sucessivas
implantações destes espaços na cidade de Belém-PA. Foi construído, também, um antagonismo
entre intervenções do Governo do Estado do Pará e aquelas da Prefeitura Municipal de Belém,
ainda que alguns de seus propósitos finais fossem tão semelhantes. Abordando o suposto
antagonismo entre administrações públicas, a intervenção que poderíamos citar como
199
contraponto, teoricamente, seria a urbanização de beira de rio do Projeto Ver-O-Rio, da Prefeitura
Municipal de Belém. O Ver-O-Rio foi projetado e executado pela administração municipal com
franco discurso de contraposição às intervenções caracterizadas como elitistas do Governo do
Estado do Pará. Tipologicamente, o projeto seria de uma praça, recortada por um pequeno curso
d´água artificial, ligado a uma pequena lagoa que funciona como um tanque de acumulação, cujo
nível de água é regulado pelo regime de marés, onde funciona um marégrafo. Sua implantação à
beira da Baía do Guajará, entretanto, e vizinha aos galpões do Porto de Belém (portanto, a cerca de
1 km de distância da Estação das Docas), acrescenta a dimensão de “abertura” da “orla”
necessária ao entendimento da intervenção. O Ver-O-Rio, inaugurado em outubro de 1999, tem
400 m de extensão nas margens da baía (BELÉM, 2001), 0,5 hectare de área, e é assim
caracterizado por seus idealizadores:
O Ver-o-Rio tem como objetivo atender a um anseio da população de ter uma
orla, ainda que pouco extensa, mas que permita o contato com o rio.
O projeto atinge o público de todas as idades, tendo como atividade
predominante o lazer contemplativo ao longo da orla, com bancos situados de
frente para o rio, onde o paraense poderá saborear um tacacá ou uma água de
côco, apreciando o pôr-do-sol (sic) (BELÉM, 2001, p. 1).
Ilustração 54 Muro de contenção do projeto Ver-O-Rio, quiosques e passeio ao fundo; "orla" mais democrática através
do projeto, segundo os autores da intervenção. Foto do autor, dez. 2003.
200
O Projeto Ver-O-Rio usa referências visuais da cultura indígena, e apresenta
regionalismos diversos em suas arquiteturas e em alguns de seus elementos urbanísticos: “[...]
‘play-ground’, com equipamentos que imitam os brinquedos de miriti, um artesanato regional que
só é encontrado na época do Círio.” (BELÉM, op. cit., p. 1); “[...] dobrar a esquina e caminhar [...]
sobre um tapete de pedra em desenho marajoara ao longo da orla, escutando o quebrar das ondas
e em seguida saborear um café da manhã com “[...] tapioquinha, pupunha, mingau de milho, bolo
de macaxeira e suco de frutas regionais.” (Idem, op. cit., p. 3). O projeto também é associado a
referências históricas, ligadas a seu local de implantação e ao ideário das “janelas para o rio” ou
da “orla” da cidade:
Outros motivos nos levaram a escolher este local para dar início a obra: o fato de
existir ali uma ponta avançada, onde funcionava um marégrafo, que será
transformado em mirante, de onde podemos ter uma visão privilegiada da orla de
nossa cidade, com um certo ângulo de amplitude que nos permite observar
desde a ponta do Forte do Castelo, onde iniciou a nossa cidade, até a Pratinha,
área próxima ao distrito de Icoaraci. Deste ponto estratégico, poderemos assistir
praticamente a todo o trajeto da romaria do Círio fluvial.
Nesta área existe ainda, uma rampa construída pela saudosa companhia de
aviação PANAIR do Brasil, que será usada para acesso de lanchas, caiaques e
“jet-ski”, como opção de esportes náuticos, que são bastante praticados nas
cidades que tem (sic) contato com a água, pois temos a pretensão de que com a
implantação do Ver-o-Rio a população crie maior identidade com a água, tanto
através do lazer contemplativo como do lazer ativo, com a prática desse tipo de
esporte (BELÉM, 2001, p. 2).
Um dos argumentos do partido urbanístico do projeto Ver-O-Rio seria o do seu caráter
pretensamente mais justo, socialmente, em relação às intervenções politicamente rivais, e por sua
implantação aberta, sem grades ou outros mecanismos de controle (vigilância ostensiva, câmeras,
regras de comportamento do usuário). Uma praça aberta, às margens da baía, seria, portanto,
mais “democrática”, sob esta ótica. Como apontado anteriormente, o uso único pensado para
estes locais prevalece. O rio, na concepção atual, voltada para as aspirações da classe média
local, seria destinado às amenidades, ao lazer, ao consumo; visual, econômico (ZUKIN, 2000).
Neste sentido, pouco resta de diferenciação entre os fundamentos das intervenções, à exceção do
desenho urbano dos projetos. Vainer, Bienenstein e Sánchez (2005) argumentam, por outro lado,
que a pequena diferenciação entre as intervenções de beira-rio neste período na cidade de Belém
guarda relação com uma espécie de “[...] ´turistificação’ quase compulsória do espaço urbano”
(VAINER; BIENENSTEIN; SÁNCHEZ, 2005, p. 56). Entrevistas feitas com usuários apontavam, entretanto,
201
algum caráter mais aberto e plural na freqüência do projeto Ver-o-Rio (VAINER; BIENENSTEIN;
SÁNCHEZ, 2005).
Ilustração 55 Imagem digital simulando o projeto Ver-O-Rio, nas imediações da zona portuária de Belém (com
edifício-memorial não construído, à direita): intervenção com discurso regionalista e Fonte: Belém (2003).
Em termos sociológicos o fundamento do regionalismo pode ser o da produção de
identidade entre grupos (BOURDIEU, 1996). Além deste aspecto, o projeto Ver-O-Rio, no contexto
histórico em que se insere, seria uma iniciativa de produção do lugar, isto é, uma seqüência de
gestos urbanísticos e políticos para a nova ocupação da faixa de margem de rio na cidade. A
intervenção teria, segundo esta concepção, a propriedade de reocupar o espaço público.
O esvaziamento do espaço público, assim, é trabalhado com intervenções totalmente
apólogas do lugar (ARANTES, 1993); recriações do lugar para produzir movimento de público e
dinamizar o espaço urbano. As posturas das administrações públicas, por outro lado, têm
convergido excessivamente, onde pouco se nota diferenciação em projetos. David Harvey (1996a)
inclusive especulou acerca da relação entre a reestruturação produtiva capitalista e a convergência
ideológica entre governos aparentemente divergentes politicamente; o caso parece merecer alguma
202
analogia62
.
3.10. SANGRIA DESATADA
Os equipamentos locais de cultura, e da economia da cultura (JAMESON, 2001), mesmo
após anos passados de sua inauguração, despertam discussões e, em decorrência, produção
cultural a seu respeito. Fora as pautas de seus museus, teatros, espaços públicos, cinemas e salas
de espetáculos, exposições e eventos, os parques e espaços de cultura de que tratamos neste
trabalho (somados a outros, não citados) compõem um objeto crítico da política cultural regional.
Isto pode denotar alguma capacidade analítica e ressonância das experiências novas da classe
artística na região, mas também representa influências da política cultural no debate político mais
amplo e, indiretamente, na discussão sobre o planejamento territorial.
Diante do caráter de intervenção dos novos equipamentos culturais instalados na cidade
de Belém-PA, a recepção e a movimentação em torno são variadas. Embora o público em geral
represente adesão à série de novos usos a que se destina parte do patrimônio cultural edificado da
cidade, há alguma receptividade crítica, em paralelo. Pesquisas com usuários, por exemplo,
apontaram como restrição ao acesso o caráter segregador, a impossibilidade de consumo e a
ambiência mais elitizada de equipamentos como a zona portuária revitalizada da Estação das
Docas (VAINER; BIENENSTEIN; SÁNCHEZ, 2005).
62
Uma nota a acrescentar a esses comentários ficaria por conta do projeto social associado ao Ver-O-Rio. O espaço recebeu
prestadores de serviços egressos de um fundo de microcrédito local, avaliado positivamente por instituições brasileiras de
renome (FERNANDES, 2002), e que se coloca como diferencial em relação aos demais projetos deste corte; haveria uma
dimensão de inclusão social, de certa forma, não necessariamente presente nos demais waterfronts ou parques urbanos à beira
da água, na cidade.
203
Ilustração 56 Imagem da intervenção urbana Sangria Desatada (2009); outros significados dos espaços culturais
recentes da cidade. Fonte: rede aparelho (2009).
Ilustração 57 Fachada do antigo Hospital Militar da cidade, a Casa das Onze Janelas, com intervenção Sangria
Desatada. Fonte: rede aparelho (2009).
Artistas e performers locais resolveram produzir, em caráter de intervenção artística na
cidade, uma obra que intitularam Sangria Desatada. O projeto era simples: boa parte dos
204
equipamentos culturais reformados pelo PSDB durante as décadas de 1990 e 2000 era relacionada
às Forças Armadas ou à Polícia Militar do Estado do Pará. Além disso, uma parcela expressiva
destes equipamentos era utilizada, no período da ditadura militar de 1964, como aparelho de
tortura do regime. Os artistas — divulgando sutilmente a relação do então secretário executivo de
cultura do Estado do Pará com a delação no período do regime militar — resolveram produzir uma
seqüência de imagens digitais de rápidas intervenções, em geral nas fachadas dos equipamentos
culturais ou institucionais reformados nas últimas décadas, onde houve recolhimento de presos
políticos ou registros de tortura por parte da ditadura.
Ilustração 58 No complexo Feliz Lusitânia, o Pìer das Onze Janelas, espaço cultural, e a corveta, objeto das
manifestações artísticas do grupo rede aparelho. Foto do autor (set. 2009).
A seqüência de imagens, publicada na internet, se não tem tão virtuosas qualidades
plásticas, é um interessante exercício de provocação política e, indiretamente, uma experiência
estética inteligente. Os artistas, usando um pó que se assemelha ao local coloral (feito de urucu),
pulverizam o produto no passeio em frente aos equipamentos, e os fotografam, sugerindo rastros
de sangue em suas fachadas. Trata-se de quartéis ainda em ativa ou com mudança de uso (como
no caso do Instituto de Artes do Pará, IAP), um antigo claustro religioso convertido em presídio e,
depois, em museu; um hospital militar do século XVIII que abrigou um depósito e almoxarifado do
205
Exército Brasileiro, com corveta da Marinha do Brasil onde eram feitos interrogatórios de presos
políticos do regime, entre outros locais.
O exercício artístico, portanto, não apenas assinala o caráter não-consensual das
intervenções do plano da política cultural revitalizante na cidade (onde parte razoável está situada
no centro histórico e/ou em margens de rio), mas também lhes acrescenta novo conteúdo e nova
reflexão. A título de exercício memorial, qualifica as atividades e usos anteriores de tais espaços
para confrontá-los aos atuais, articulando à sua historicidade uma dimensão da cidade como
transformação e reposição de signos, onde o poder e a repressão puderam dar lugar ao júbilo do
expectador médio, visitante, destes equipamentos. Os autores também publicaram um manifesto:
Demarcação [mapeamento] dos locais usados pela ditadura militar para a
prática da tortura em Belém do Grão-Pará. Ação da rede [aparelho]-: +
Corredor Polonês Atelier Cultural + quem se juntar a nós. A partir do dia 31 de
março e a qualquer momento, e continua… São lugares comuns do cotidiano da
cidade, alguns transcodificados em espaços de arte e de beleza, entretanto de
suas paredes ainda ecoam gritos de torturados… A cada nova informação,
demarcamos o lugar com uma mancha vermelha, mancha de alerta e de
memória… Este trabalho faz parte da mobilização artística 48h Ditadura Nunca
Mais (rede aparelho, 2009. Gritos do autor).
3.11. PORTO DE BELÉM
Os cursos d´água (e os usos) na cidade de Belém-PA e entorno, por outro lado, também
têm caráter técnico e portuário. A caracterização prévia pontuou, rapidamente, a presença do Porto
de Belém como elemento representativo de seu contexto. Tal representatividade decorre do
interesse na intervenção na orla fluvial de Belém, o que coloca o porto em destaque na discussão.
Além disso, a atividade do porto vem sendo discutida pelas instituições responsáveis nos termos
da chamada modernização portuária, o que abre essencialmente duas frentes de discussão.
206
Ilustração 59 O Porto de Belém, em operação de carga. Fonte: CDP (2005).
Em primeiro lugar, o teor desta modernização. Por modernização portuária devemos
entender os marcos regulatórios, o modelo tecnológico e de eficiência que remontam à lei federal
no
8.630/1993, a chamada Lei da Modernização Portuária (BRASIL, 1993). Sucintamente, podemos
dizer que são estabelecidas diretrizes de eficiência, viabilidade financeira, privatização e concessão
das instalações portuárias no país. O modelo tecnológico associado corresponde a uma nova
estrutura física dos portos no mundo: equipamentos e área de pátio disponíveis para operação
com contêineres de grande porte; calados profundos; retroárea63
considerável para estocagem e
operação em geral (BAUDOUIN, 1999).
Por outro lado, os portos modernizados exigem, com freqüência, programas detidos de
monitoramento ambiental e intervenções geotécnicas variadas, incluindo dragagens regulares,
como é o caso do Porto de Belém. Em relação ao Estado do Pará, a discussão travada por
instituições de licenciamento ambiental, ensino e pesquisa aponta para a adoção da gestão
ambiental como procedimento de resolução dos impactos ambientais (PARÁ, 2005b) — e
representa uma espécie de revisão do pressuposto anterior da implantação da infra-estrutura.
Em segundo lugar, a discussão gira em torno de projetos políticos e dos impactos
(eventualmente qualificados como “positivos” ou “negativos”) da modernização portuária e da
63
A “retro-área” (ou o chamado “retro-porto”, conceito assemelhado) equivale a um pátio ou sítio adequados à estocagem, ao
transporte, empilhamento e operação com contêineres, que se constituem hoje nos receptáculos mais modernos das cargas
portuárias mais rentáveis, como máquinas e equipamentos, por exemplo.
207
migração de algumas atividades do Porto de Belém. O que se pretende remover é, basicamente,
algumas modalidades de transporte de cargas. Caso a modernização portuária fosse levada a cabo
nos termos atualmente debatidos, as cargas em contêineres seriam operadas em um terminal
portuário já qualificado como “Super Porto”, o chamado Terminal Marítimo Offshore do Espadarte,
na Zona do Salgado, região litorânea do Estado do Pará (CDP, 2005). Destinado principalmente à
exportação do minério de ferro e derivados de Carajás-PA (CDP, op. cit.), o porto seria um
exemplar de terminal marítimo operando segundo o padrão da modernização, como um hub port
(BAUDOUIN, op. cit.) A atual viabilidade de execução desta estrutura, muito próxima da tecnologia,
da forma de assentamento territorial e da operação técnica de um porto moderno (um hub port,
terminal logístico de uma cadeia extensa e complexa, multi-modal e ligada a diversos setores da
cadeia produtiva regional), é pouca, entretanto. O terminal do Espadarte é ainda tratado como um
ensaio e como um esboço de projeto para o futuro, embora eventualmente seja aventado como
algo a se considerar e a executar a médio prazo. Na prática, a avaliação desta estrutura apelidada
no meio técnico local como “superporto” (CDP, op. cit.) oscila de acordo com o ambiente político
e, sobretudo, orçamentário nacional.
Várias propostas de relocalização das atividades portuárias de Belém foram elaboradas
ao longo dos últimos 10 anos. Essencialmente ao sabor da conjuntura política, além da proposta
do Terminal do Espadarte, houve discussão em torno da remoção de atividades de transporte de
cargas para o Porto de Vila do Conde (CAP, 2001), no município vizinho de Barcarena-PA. Esta
operação seria deslocada para as proximidades do complexo Albrás-Alunorte, indústria de alumínio
administrada por joint-venture da qual a Companhia Vale do Rio Doce participa, através de
subsidiária.
A idéia central destes vários planos é, entretanto, preservar os aspectos da modernização
portuária (CAP, 2005). A modernização portuária, representando um conjunto de iniciativas de
caráter administrativo e técnico, tem óbvias repercussões no plano físico-territorial. Além disso, o
porto “modernizado” também reconfigura significativamente a região. Isto implicaria em,
necessariamente, ganhos de eficiência para a otimização da acumulação, da economia regional. A
estratégia da eficiência, portanto, objetiva tornar viáveis os territórios que se disponham a implantar
a reconfiguração necessária à “urbanização do neoliberalismo” (BRENNER; THEODORE, 2002). O
processo de relativa liberalização das políticas urbanas indica as cidades como pontos importantes
208
do processo de incorporação das relações capitalistas contemporâneas. No entanto, este processo
tem basicamente duas frentes de operação: os mega-projetos e a difusão das “melhores práticas”
(BRENNER; THEODORE, 2002). Em ambas estão presentes as idéias da eficiência, da rentabilidade
dos investimentos e da difusão dos padrões de reconfiguração e gestão territorial. O padrão
contemporâneo de reconfiguração territorial e política, portanto, pode ser lido através destas
frentes. Isto está presente no caso deste trabalho, seja através do processo de modernização de
portos, das técnicas do gerenciamento ambiental, da revitalização mediante parcerias público-
privado ou através do modelo de projeto urbano com vistas a dotar o território de competitividade e
atratividade para os capitais. Conferir “eficiência” econômica ao território é, portanto, uma
premissa deste modelo de planejamento. O raciocínio, calcado da idéia de eficiência, adota uma
visão “técnico-material” das cidades (ACSELRAD, 1999) e pretende-se capaz de atingir níveis de
sustentabilidade a partir de metas de desenvolvimento (SACHS, 1997).
Ilustração 60 Porto de Belém; vista do cais acostável, galpão 4. Foto do autor, jan. 2007.
Estes pontos, em conjunto, evidenciam uma tendência do controle difuso, da apropriação
e da regulação do acesso ao território e a suas possibilidades. Os fenômenos concretos
correspondem a uma abordagem acerca da percepção contemporânea do ambiente na cidade e,
ainda, acerca das formas atuais de intervenção sobre o ambiente e de sua apropriação.
209
Obviamente, as formas de apropriação assinalam padrões diferenciados, desiguais. Isto é próprio
da dinâmica de estruturação territorial do capitalismo, na ativação de novas possibilidades e na
produção contínua de novas obsolescências (SMITH, 1988).
Ilustração 61 O porto de Belém, visto a partir da Baía do Guajará. Fonte: CDP (2005).
Há hoje um urbanismo que faz parte de estratégias de desenvolvimento econômico,
articuladas à produção de uma imagem positiva da cidade e a avaliações sobre sua “eficiência”.
Este urbanismo, e as demais formas de planejamento que lhe são correlatas, pretendem intervir na
funcionalidade das estruturas e fluxos da cidade, nos serviços e na qualidade do ambiente urbano.
As intervenções territoriais feitas nesta concepção pretendem articular, também, diversos níveis de
“sustentabilidade” (ACSELRAD, 2001) à cidade. Estas “sustentabilidades” seriam desejáveis para o
crescimento do produto, para a manutenção da qualidade paisagística, urbanística e ambiental de
bairros e vizinhanças, para produzir ganhos de produtividade e eficiência na cidade ou
simplesmente para dotá-la de equipamentos e serviços que lhe garantam o necessário diferencial
competitivo num circuito mais amplo. Nestas variadas perspectivas de “sustentabilidade“ o novo
urbanismo adota inclusive um discurso, uma prática e uma técnica devidamente “ecologizadas”
para lidar com o território. Este conjunto se manifesta nas políticas e nos projetos urbanos, como
na incorporação da dimensão patrimonial e cultural às iniciativas do planejamento ou na aplicação
de técnicas ambientalmente menos “agressivas” aos processos físico-químicos e ecológicos no
ambiente urbano em geral (ACSELRAD, op. cit.) Esta dimensão da adaptação das técnicas está
210
presente, no caso de Belém-PA, pelo menos nas intervenções novas do saneamento ambiental e
nos programas de gestão da água e do ambiente em geral, como no caso do monitoramento das
zonas portuárias estaduais. Como tem sido de praxe na aplicação técnica da gestão ambiental, tais
programas de gestão, monitoramento, sistemas de informação e processos técnicos de
intervenção credenciam projetos e políticas junto a um suposto padrão legítimo, durável ou
sustentável de processamento da paisagem. Esta seria, portanto, a base das certificações,
buscadas inclusive pelo próprio Porto de Belém para melhor inserção no processo de
modernização das zonas portuárias nacionais.
As intervenções territoriais nas margens do rio e da baía que circundam Belém são
exemplares neste sentido. Concebidas como partes de projetos de soerguimento econômico e
“devolução” do acesso do habitante da cidade às benesses da contemplação das águas da região,
tais intervenções mostram-se representativas da forma atual de produzir o espaço urbano — com
base nas referências do chamado Planejamento Estratégico de Cidades. Por outro lado, são
expressões de uma abordagem do urbanismo e do planejamento urbano contemporâneos. Esta
abordagem, em parte, é pautada na ênfase da dimensão ambiental e em sua repercussão e
disseminação “positiva” em demais aspectos da cidade.
Há uma abordagem atual no urbanismo e no planejamento urbano que advoga um
tratamento diferenciado, “compreensivo” e menos “agressivo” ao ambiente. Esta “escola” de
planejamento territorial influenciou políticas urbanas que hoje se vinculam a discursos
ambientalistas e estimulam o uso de técnicas tidas como ecologicamente mais adequadas64
. Da
mesma forma como foi produzida uma associação do urbanismo contemporâneo com a produção
de imagens positivas da cidade para os projetos de desenvolvimento econômico, a dimensão
ambiental é também incorporada ao amplo projeto de recolocação das cidades como agentes. A
paisagem natural das cidades passa a ser compreendida, interpretada e operada como fator
importante na produção contemporânea do lugar. O ambiente entra como diferencial do preço da
terra, mas também enquanto cenário, local da fruição e do consumo visuais. Isto se torna
particularmente claro no caso das antigas zonas portuárias, tecnologicamente obsoletas para os
64
Mello (2005), por exemplo, localiza a partir da obra de Ian McHarg e seu Design with nature o surgimento de um urbanismo,
de um paisagismo e de uma engenharia mais preocupados com a dimensão ecológica. A partir desta nova compreensão,
verdadeiramente paradigmática, é que podemos entender a abordagem contemporânea da chamada “engenharia ambiental”,
com seu tratamento contextualizado às espécies nativas, a materiais biodegradáveis, à “revitalização” de caminhos de água,
etc.
211
padrões atuais e portanto qualificadas como “decaídas”. Nestas áreas, com o esvaziamento das
funcionalidades dos antigos portos, resta a capitalização sobre as visualidades do patrimônio
construído e da paisagem natural. A “natureza” é convertida em “paisagem”. A dimensão
enquadrada do ambiente que excluiria o humano (DESCOLA, 1997) é enquadrada justamente porque
nisto implicam operações políticas de escolha, de supressão e de destaque de certos itens; é,
portanto, uma imagem a ser construída e praticada como administração (CAUQUELIN, 2007). Na
verdade, a paisagem e o ambiente tornam-se elementos de geração de “atratividades” para as
formas atuais de determinados setores da economia, considerados estratégicos para as cidades; o
turismo, os serviços de assessoria em geral, as finanças, as comunicações, a publicidade e o
transporte65
. De certa forma diferente da idéia economicista do “recurso natural” (LEFF, 2003;
2006), esta operação de conversão trabalha com o ambiente de maneira estetizada, imagética e,
por vezes, passadista. A dimensão “patrimonial” (ACSELRAD, 2001) da política urbana se sobressai
e estrutura uma abordagem da natureza que não passa necessariamente pelo plano instrumental,
“utilitário” e pragmático, mas por um pragmatismo de variados outros matizes. Na verdade,
estrutura-se uma estética da paisagem associada a discursos sobre a beleza das antigas
operações portuárias, sobre o encanto da passagem das antigas embarcações e sua relação com
um perfil identitário inventado a partir de referências eleitas como “próprias” da região.
Um outro lado da revitalização das zonas portuárias tecnologicamente obsoletas é a
modernização portuária. Há portos, hoje, que se tornaram objeto de reestruturação em vários
sentidos. Suas infra-estruturas foram substituídas e/ou atualizadas para padrões considerados
mais avançados e economicamente competitivos hoje. Estes padrões pressupõem, em linhas
gerais, o aumento da capacidade de operação, áreas de atracação e canais navegáveis de calado66
maior, gruas e guindastes maiores, mais modernos e mais rápidos, significativas áreas de pátio
65
Em Sassen (1998) há a indicação de setores da economia que passam atualmente por grandes transformações e aumento
da rentabilidade e da dinâmica das transações, além do crescimento da escala dos negócios. Em suma, interessa o
apontamento do terciário como uma espécie de motor de parte importante que emprega as chamadas novas elites.
66
Tecnicamente, distância vertical entre a linha d´água e a quilha de uma embarcação; espécie de medida indireta de
densidade e profundidade das águas para efeito de cálculo de sua navegabilidade. Mais especificamente, é a profundidade
entre a linha d água e a quilha da embarcação, que orienta quais navios podem operar no porto. Para a discussão sobre a
modernização portuária ver Cocco; Silva (1999).
212
para disposição, armazenamento e estocagem de carga conteinerizada67
e programas sistemáticos
de gestão ambiental.
A modernização portuária seria um duplo processo de mudança, tecnológica e territorial,
mas também de gestão e planejamento operacional. Desta forma, os portos modernizados, cujo
exemplo clássico são os chamados hub ports, devem ser tecnologicamente avançados e
gerencialmente eficientes. Obviamente as duas dimensões implicam em notáveis impactos sócio-
econômicos, territoriais e ambientais às cidades portuárias e seus entornos, no mínimo. Segundo
Smith (1988), na dimensão espacial do capitalismo, as novas possibilidades ativadas no território
implicam, dialeticamente, na criação sistemática de obsolescências noutras localizações. É disto
que se trata o par hub port/waterfront, na verdade. Em outras palavras, seriam lados
temporalmente diferentes da zona portuária; um ligado à nova economia da informação e a um
volume e estrutura de fluxos maior, mais integrada e diferenciada; e um outro, tributário do modelo
econômico de exportação pós-imperialista de finais do século XIX e início do XX, ainda intimamente
atrelado aos capitais comerciais e a complexas cadeias econômicas de industrialização e
beneficiamento de matérias-primas.
Em termos deste trabalho, o caso da modernização portuária em Belém remete a uma
investigação sobre aspectos tecnológicos e institucionais da reestruturação portuária na
atualidade. É evidente, neste caso, a transformação do território às proximidades da água, no caso
dos portos. A modernização portuária é um exemplo das dinâmicas de alteração das
espacialidades sob a influência do capitalismo. Isto se reflete na diminuição da intensidade de uso
de alguns lugares; no eventual esvaziamento funcional/econômico e, por outro lado, na
incorporação de novas localizações na territorialização do sistema econômico capitalista. O
conjunto de equipamentos, o arranjo da materialidade do porto e os sentidos e funcionalidades a
ele atribuídos acabam sendo interessantes evidências do aspecto racionalizante e totalizador da
territorialização própria do capitalismo. Neste processo, o sentido da racionalidade atinge tal grau
da abstração e auto-justificação que torna legítimas as premissas pré-concebidas da precisão
científica e da razão iluminista (MATOS, 1990), apesar de e contra as dimensões da vida, da
concretude e da pluralidade das formas de produzir a existência. Isto é próprio do processo de
67
Desde os anos 1960, as “caixas” metálicas padronizadas dos contêineres se consolidaram como padrão moderno de
acondicionamento de cargas para transporte marítimo (DOUMENGE, 1967), inclusive integradas a outros modais de transporte,
como o trem. O neologismo “conteinerizada” é corrente no setor devido a este fato.
213
abstração no capitalismo, e mesmo da naturalização de sua própria lógica, tornada não-histórica,
narrada como se sempre tivesse estado ali (MARX, 2007). Surgem, portanto, os discursos técnicos
acerca da necessidade da reestruturação territorial, que redundam, por exemplo, na modernização
dos portos seculares.
Os fenômenos concretos, referências históricas e materiais, apontam para a
convergência de intervenções territoriais na relação entre o processo de urbanização e a
presença/proximidade da água. As intervenções territoriais citadas, já executadas ou em projeto e
discussão, sintetizam a maneira como a água se apresenta como dado substantivo da paisagem e,
especificamente, da cidade — neste caso, inclusive enquanto insumo da produção, item de
consumo e recurso (SWYNGEDOUW, 2001). Este caráter substantivo da água, no caso, é um ponto
central entre os fenômenos concretos aqui relatados e seus efeitos e desdobramentos já em curso
na região da cidade de Belém-PA.
De maneira variada e difusa, mas teoricamente válida, pode-se afirmar, portanto, que
existam hoje iniciativas que confirmam a apropriação desigual do acesso à “natureza” na cidade.
Isto pode ser dito sobre qualquer dado a ser recortado no “ambiente” urbano; a vegetação, o solo,
o ar. Posto que o ambiente (urbano, inclusive) não se mostra homogêneo a todos, as parcelas de
território efetivamente usadas por alguns serão, também, desiguais, como o são as próprias
localizações na cidade. Um aspecto interessante, entretanto, e que guarda alguma particularidade,
é a centralidade da água nesta discussão de um suposto “ambiente urbano”. Por outro lado, é
possível, a partir do recorte do estudo da água na cidade, inferir algumas formas diferenciadas de
uso, de apropriação e de produção do espaço que denotam sentidos e práticas também diferentes.
Dentre as várias formas de uso e apropriação territorializadas da água, o porto, o parque
e, portanto, o entreposto costumam ser notáveis e históricas. A forma contemporânea que tais
usos tomam é relevante, contemporaneamente. A questão sugerida por esta realidade, hoje, é que
há iniciativas, processos, práticas e políticas de agenciamento, controle, monitoramento,
apropriação e conversão da água e de seu território correlato. Sem entender por “água” a
substância, elemento natural apenas, mas entendendo-a enquanto elemento constituinte do
território, condicionante de algumas relações.
A partir das formas de conexão entre territórios à água, para transportes e fluxos de
mercadorias, cargas e artefatos, estruturou-se o problema dos portos antigos e de sua
214
modernização. A partir da tecnologia de operação desses portos foi instaurado um padrão que
influencia decisivamente o processo de territorialização do capital e que produz “obsolescências” e
resíduos do desenvolvimento noutros espaços. Este movimento duplo, de acionamento de espaços
e criação de obsolescências de outros, é o que nos parece estruturar o porto e o waterfront (e
demais parques culturais nas antigas zonas portuárias “decaídas”); o passado, visualmente e
economicamente, é apropriado a partir do setor dinâmico da economia atual e da modernização
das mesmas estruturas em outras bases criando novas formas de conduzir fluxos e gerar divisas,
por exemplo.
O porto moderno é uma estrutura técnica, predominantemente. Obviamente tem função
econômica clara, mas sua operação atende de maneira razoavelmente rigorosa a determinados
critérios locacionais e físico-ambientais, como o calado, a navegabilidade e o relevo, que não são
alteráveis senão com algum custo. A discussão sobre a modernização de determinada zona
portuária parece, sempre, ser atravessada por um recorrente debate: a tensão entre a estrutura
portuária secular, de uma forma de circulação de mercadorias anterior à atual, e as demandas
atuais pela sua transformação, migração ou extinção. Esta tensão produz resultados interessantes
para o estudo da cidade, e para a sua dimensão ambiental. O porto é uma das estruturas urbanas
que exibe de forma clara a dimensão técnica das chamadas “águas urbanas”. Esta “água técnica”
de que se vale o porto é um dado curioso, pois aborda aquele mesmo item da paisagem68
de modo
a tratá-lo como veículo, enquanto seu uso do solo vizinho (a Estação das Docas, no caso de
Belém-PA, por exemplo) o aborda como paisagem de consumo visual (ZUKIN, 2000).
Por outro lado, o porto modernizado também evidencia a tensão entre processos de
racionalização e transformação urbana e as formas anteriores existentes no território. O processo
de modernização portuária não apenas confronta os velhos portos e os qualifica como tecnológica
e administrativamente obsoletos, portanto economicamente inviáveis. A modernização atual de
portos, na cidade, aponta também para o aprofundamento claro da instalação de padrões mais
diferenciados sobre o uso das águas, das formas consideradas legítimas e apropriadas de seu
aproveitamento. Há, neste caso, uma situação de aproximação entre o cercamento das terras onde
o mercado não havia amadurecido e controlado objetivamente a posse e a aplicação concreta da
68
Nas acepções relatadas por Baker (2003) e Cauquelin (2007), a paisagem pode ser entendida ao mesmo tempo como a
reunião de coletividades sobre a terra, a instauração política sobre o espaço e a visão perspectiva do terreno.
215
alteração do uso portuário na cidade de Belém-PA. Assim, recentes intervenções de órgãos
públicos regionais atendem aos ditames da disciplina, do ordenamento territorial do uso da orla
marítima brasileira, representadas pela adesão da cidade de Belém-PA ao Projeto Orla do Ministério
do Meio Ambiente (MMA), por exemplo.
O Porto de Belém, atravessado por estas discussões, mostra uma seqüência de
propostas de modificação, de relocalização de usos e instalação de novas possibilidades, mas
essencialmente se revela uma estrutura em conflito. Este conflito, como citado anteriormente, é
comum a outras cidades portuárias. Uma questão relevante deste caso é a tensão (que extrapola a
escala urbana) sobre o uso a ser destinado às águas da cidade, a seus fatores locacionais e
diferenciações potenciais de aproveitamento. Uma tendência, a partir do caso em estudo, parece
ser a de consolidação de padrões economicamente mais elevados, mais formalizados, controlados
institucionalmente e centralizados administrativamente, de exploração portuária. Haveria, em
paralelo, a tentativa de inscrição da cidade em um circuito de mercadorias, bens e serviços com a
nova estrutura portuária — seja ela adaptada dentro do possível, ainda no centro da cidade, ou
construída em uma nova localização mais distante, de grande porte. Persiste, entretanto, o conflito;
se a tal “água urbana” é ao mesmo tempo mais de um sentido e mais de uma prática, como
coexistem tais usos e tais formas diferentes de abordagem do elemento?
Nesta interação de usos e padrões é necessário considerar a relação entre a dimensão
técnica destes corpos d´água na cidade e a chamada economia da cultura (JAMESON, 2001). O
gosto contemporâneo de classes de renda mais alta e padrão de consumo diferenciado cria
também demanda por novos espaços, sobretudo aqueles ligados à citada economia da cultura e
às novas formas de consumo visual (ZUKIN, 2000) da paisagem e da natureza — entendida como a
dimensão do não-humano nesta mesma paisagem. Esta “natureza”, reconfigurada e dotada de
novo sentido, adquire então o papel do diferencial dos espaços, de um novo “resgate” estruturado
a partir de sociabilidades mediadas pelo consumo, pela idéia de comunhão harmônica com o
natural (MELLO, 2005), ou de uma cidade mais limpa e agradável, como é freqüentemente discutido
no caso europeu (EMELIANOFF, 2003). Por outro lado, conforme Descola (1998) cita, as passagens
entre os domínios da natureza e da cultura, e a própria idéia de natureza, são plásticas, e podem
depender de atribuições de sentido e de procedimentos culturalmente instituídos.
A respeito da água (ou do litoral), desde que as operações científicas da cartografia e da
216
navegação permitiram o esquadrinhamento do mar (DELEUZE; GUATTARI, 1997), vê-se na
modernidade a estruturação crescente de uma política de controle, monitoramento e apropriação
da água, de seu caráter “liso”, indefinido e não-controlável espacialmente e politicamente. Este
“controle”, entretanto, ocorre de forma difusa, e parece estar articulado à dimensão dos efeitos
destas e de outras intervenções que guardam relação com a produção do território e a presença da
água como condicionante. Haveria, neste caso, certo grau de convergência entre os efeitos destes
projetos (parques, espaços públicos, museus), intervenções (estruturas técnicas, portuárias, infra-
estruturais) ou políticas (gestão ambiental e de recursos hídricos). No caso dos portos, haveria
uma evidente tendência à racionalização, portanto, e à criação de algum tipo de clivagem, de
divisão no acesso aos diferenciais representados pelas margens fluviais da cidade.
Um exemplo corrente desta dimensão política pode ser o da acentuação da economia
ambiental, no enquadramento do “ambiente” no que ele tinha ainda de “bem” imperfeito, no jargão
dos manuais da economia tradicional. Isto tem relação, por exemplo, com a reconfiguração do
porto moderno, a mudança da paisagem cultural e “natural” dos parques da economia da cultura,
o desaparecimento das formas múltiplas e tidas como “caóticas” de apropriação plural e variada
das zonas de interface território-água e as políticas de “gestão de recursos hídricos” atuais. Tais
iniciativas (ao mesmo tempo técnicas e políticas, sócio-econômicas e ambientais) expressam a
problemática: o fato de que se estrutura, hoje, uma política de controle, apropriação e
esquadrinhamento do território às proximidades da água, com todas as suas idiossincrasias. Isto
cria um novo aspecto do padrão de assimetria da apropriação do território no capitalismo, presente
nos exemplos estudados e relatados.
3.12. BACIAS HIDROGRÁFICAS: ORDENAMENTO TERRITORIAL E GESTÃO
Um aspecto institucional e político, com claro fundamento técnico, é o surgimento da
chamada gestão de recursos hídricos no cenário da política ambiental e, por conseguinte, do
ordenamento territorial no Brasil. A gestão das águas no país vem influenciada por uma
multiplicidade de instrumentos, embora tenha uma base nitidamente inspirada no modelo francês
de gestão por bacia hidrográfica, como é sabido. É necessário entender as especificidades do
Brasil, suas diferenças regionais (que não são apenas fisiográficas) e, portanto, discutir possíveis
aplicações destes instrumentos e princípios da política de gestão dos recursos da água. A
217
aplicabilidade e a transposição deste conhecimento, destas técnicas e destas políticas não
acontecem sem conflito atualmente. No Estado do Pará, por exemplo, nota-se um contexto
surpreendentemente variado; apesar de estar situado na Amazônia brasileira, o território do Pará
não apresenta distribuição igualmente abundante de água (SEMA, 2009), e no caso da região de
Belém-PA, embora este elemento esteja disponível, o uso urbano demanda, imediatamente, formas
diversas de tratamento.
A política ambiental no Estado do Pará tem apresentado um perfil assemelhado a
iniciativas de outras regiões, no aspecto da chamada gestão de recursos hídricos. Embora seja
possível admitir que o modelo francês de gestão por bacia hidrográfica se revele, de fato, um
paradigma de ordenamento territorial e de intervenção, é necessário investigar aspectos internos à
elaboração e aplicação da política ambiental no setor, para o caso em estudo.
Em período anterior, o órgão estadual responsável pela política ambiental — a Secretaria
Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente (SECTAM) — elaborou documento referente à
Conferência Estadual de Meio Ambiente (PARÁ, 2005b), em sessão preparatória para a Conferência
Nacional, a ser realizada junto ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) do Governo Federal
brasileiro. O documento da conferência estadual é colocado como síntese das diretrizes da política
ambiental no estado, sobretudo nos seguintes temas:
Recursos hídricos;
Biodiversidade e espaços territoriais protegidos;
Agricultura, pecuária, recursos pesqueiros e florestais;
Infra-estrutura: transporte e energia;
Meio ambiente urbano;
Mudanças climáticas;
Gestão ambiental integrada: experiências, entraves e possibilidades;
Educação ambiental na conferência estadual do meio ambiente – Pará;
Políticas de desenvolvimento científico e tecnológico no Pará: impactos,
impasses e possibilidades de gestão;
Recursos minerais e garimpagem;
Sistema nacional de meio ambiente (PARÁ, 2005b, p. 2).
Da mesma forma, a política de gestão de recursos hídricos segue, em linhas gerais, os
pressupostos colocados pelo Ministério do Meio Ambiente na Política Nacional de Recursos
Hídricos (MMA, 2006): divisão por bacia hidrográfica, para planejamento, modelagem,
caracterização de usos da água, dimensionamento hidrológico da bacia e gestão da política;
conferências setoriais de planejamento participativo; sistema de monitoramento e
218
acompanhamento; criação de fundos para manutenção de sistemas hídricos, com ou sem previsão
de cobrança de outorga pelo uso da água; definição de instrumentos de gestão territorial (outorga,
acordos de pesca, termos de ajustamento de conduta, zoneamento ambiental, etc.) aplicados às
bacias; definição de recortes territoriais de intervenção, dentre outros.
A área de estudo deste trabalho, no plano nacional, pode ser enquadrada em duas regiões
de bacias hidrográficas da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH): as Regiões
Hidrográficas Amazônica e do Tocantins-Araguaia (MMA, 2004), (ver Ilustração 62) . Assim como
na formulação sobre a tripla “problemática” da sustentabilidade urbana de Campbell (1996), o
Ministério do Meio Ambiente coloca a duração dos recursos hídricos como uma combinação
articulada de três “vetores da sustentabilidade” (MMA, 2006, v. 3, p. 17. Grifo nosso.): “ecológico
(visão integrada ou holística); ético (eqüidade social e arranjos institucionais); econômico
(distribuição de custos e benefícios)”. A “resultante” do sistema vetorial seria dada por “DS = E³”
(idem, op. cit., p. 17.)69
A equação, contudo teria desdobramentos mais complexos do que o
terceiro grau que a expressão matemática mostra.
Podem ser identificados problemas de natureza sócio-ambiental no relatório da
conferência; um exemplo é a observação de que não se trabalha no plano estritamente físico,
como ocorre eventualmente no setor. No plano estadual, a citada conferência de meio ambiente
argumenta que existe um padrão de impacto ambiental destinado recorrentemente aos pobres no
território:
A degradação ambiental afeta a sociedade de forma diferenciada, atingindo com
maior rigor as populações mais pobres das periferias dos centros urbanos e as
comunidades rurais de baixa renda. O desenvolvimento sustentável não se
construirá sobre essas bases. É preciso mudar paradigmas e fortalecer
iniciativas que se baseiam [...] nos princípios estabelecidos nas Metas do
Milênio e na Agenda 21. A importância desses assuntos, que não são
exclusividade do Brasil, expressa-se em diversos eventos internacionais
relacionados aos recursos hídricos (PARÁ, 2005b, p. 4).
Por outro lado, parecem persistir as contradições entre determinados elementos do
discurso da política ambiental, como a desigualdade, o acesso aos “recursos”, a participação
popular, a democratização das decisões políticas, a transparência na gestão, a inteligibilidade do
conteúdo técnico e os instrumentos corretos de aplicação. Embora haja, por exemplo, o
69
O volume 3 do Plano Nacional de Recursos Hídricos é destinado às diretrizes de intervenção.
219
reconhecimento do padrão capitalista de concentração do acesso aos benefícios do território e, de
forma análoga, da distribuição desigual do impacto negativo e da degradação dos ecossistemas, o
instrumental acionado é, em síntese, aquele mesmo que produz a concentração e a desigualdade.
Obviamente há nuances na questão. No entanto, parecem persistir, no campo da técnica e da
aplicação dos conceitos, noções muito próximas da raiz do ordenamento territorial, “tradicional” ou
“clássico”, seja na divisão euclidiana das zonas como áreas planas sobre as quais são associados
atributos qualitativos e quantitativos (manchas), ou através da definição de prioridades no território
via cartografia, corredores, vetores (e, portanto, linhas). Fora de qualquer “crítica” pura ao
instrumento técnico, a questão a se discutir é a dos efeitos sociais e econômicos de tais medidas;
há diversas evidências históricas de concentração de benefícios e desigualdade de acesso,
inclusive em áreas receptoras destas políticas de ordenamento territorial.
Ilustração 62 Divisão regional das bacias hidrográficas brasileiras. A área de estudo aparece em amarelo (Amazônica)
e em marrom (Tocantins-Araguaia). Fonte: MMA (2004, p. 16).
Atualmente o Estado do Pará apresenta a revisão de sua política ambiental; do mesmo
modo, entretanto, estão situados os principais marcos conceituais e técnicos da questão ambiental
no Estado, ainda em processo de discussão e busca de parâmetros de desempenho e definições
técnicas. A influência do modelo proposto pelo Plano Nacional de Recursos Hídricos é um fato, e,
de certo modo, as diretrizes contidas naquele documento são aceitas hoje pelo setor como
220
politicamente inovadoras, tecnicamente avançadas e como efetivas formas de ordenar o uso do
recurso hídrico. No contexto em análise, os órgãos estaduais incumbidos da gestão ambiental se
empenham em produzir novos formatos de planejamento e gestão. Por razões inclusive
institucionais, estes formatos contam com sistemas de monitoramento à distância, e com o uso de
tecnologias de geoprocessamento através da aplicação de um possível sistema online de
monitoramento ambiental, onde o processo de licenciamento pode ser iniciado e onde as
informações ambientais do Estado do Pará poderiam ser acessadas. O modelo atual de eficiência e
transparência na gestão pública é aplicado, através de mecanismos formais e impessoais de
acesso à informação (e, portanto, por mecanismos de abstração dos agentes sociais, vendo a
questão por outro ângulo). O sistema de monitoramento e gestão ambiental (SEMA, 2008) atual
prevê a disponibilidade de dados e, sobretudo, o trabalho a partir dos municípios e da informação
atualizada e filtrada, conforme o perfil setorial da política. Assim, são monitorados, inicialmente,
dados referentes às queimadas, ao uso da água, ao volume da produção de diversos itens, ao
volume do produto do setor terciário, à localização e porte de grandes projetos (mineração,
energia, exploração de madeira, etc.), ao cadastro ambiental e territorial rural e à presença dos
gradientes das áreas de preservação (SEMA, 2008).
Ilustração 63 Mapa da região hidrográfica Tocantins-Araguaia. A ANA (2009): potencial para agricultura irrigada,
urbanização alta, carência de esgotamento sanitário e necessidade de adequação de usos. Fonte: ANA (2009).
221
Ilustração 64 Mapa da região hidrográfica do Amazonas, a "maior do mundo em disponibilidade de água" (ANA, 2009.
Grande extensão territorial, concentração do recurso hídrico, baixas densidades demográficas, grande biodiversidade e
necessidade de estudo da sub-bacia do Rio Xingu, por ocasião da hidrelétrica de Belo Monte (PA), são apontadas.
Fonte: ANA (2009).
As Áreas de Proteção Permanente (APPs), figuras previstas no Código Florestal brasileiro
como áreas non-aedificandi, são listadas como elementos a considerar no zoneamento ambiental
sobre o território. Basicamente são estabelecidas as possibilidades de instalação das APPs, e
definidos níveis de conservação ambiental existentes. Daí surge o conceito de Área Degradada
(AD). Uma área de preservação, portanto, pode apresentar característica de degradação, sendo
considerada APPD. Segundo o documento (que se baseia, como dito, no Código Florestal e na
interpretação dada acerca de sua aplicabilidade ao meio urbano e rural), as APPs (que pressupõem
algum veto à ocupação territorial, visando a preservação do ambiente) surgem a partir de “[...]
rios, lagoas, nascentes, restrição de declividade, escarpa70
e espelho d´água [...]” (SEMA, 2008,
p. 38).
Uma questão válida, e ainda polêmica, é a discussão em torno da outorga de uso.
Institucionalmente chamada de Outorga de direito de uso de recursos hídricos (SEMA, 2009), o
70
Condicionante pouco presente na área em estudo. As escarpas são tidas como áreas de preservação e fragilidade ambiental
inclusive na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, a Lei Federal 6.766, de 1979.
222
instrumento teria como objetivo “[...] assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da
água e o efetivo exercício dos direitos de acesso aos recursos hídricos” (SEMA, 2009). Isto
aconteceria em casos de “[...] uso de determinada vazão ou volume de água, ou para realizar
interferência hidráulica como poços e barramentos.” (SEMA, op. cit.) Fracalanza (2005), entre
outros analistas, coloca a questão como inserção do ambiente na esfera de mercado. A produção
de uma equivalência econômica para a água, como “item” do ambiente, seria uma extensão da
lógica do comportamento da economia segundo a interpretação neoclássica, e representaria sua
tendência à regulação por estes mecanismos de troca e do livre mercado (ROMEIRO, 2003). O
próprio órgão ambiental sustenta a proposta da cobrança por alguns usos da água, afirmando que
a cobrança generalizada do instrumento “[...] protege o usuário contra o uso predador de outros
usuários que não possuem outorga” (SEMA, 2009). A regulação dos custos e das valorações
econômicas, assim, poderia ser feita a partir da correta estimativa da contabilidade ambiental.
Nesta concepção, havendo um sistema de preços e de informações apropriado, haveria
teoricamente condições de criar um contexto favorável à gestão do ambiente.
A política ambiental aplicada aos chamados “recursos hídricos” urbanos concebe a
questão a partir dos traços da formulação hegemônica da gestão ambiental. Neste sentido,
persistem inclusive os conflitos nacionais entre planejamento urbano e recursos hídricos. Uma
política ambiental urbana, segundo os preceitos do setor de meio ambiente do Estado do Pará
deve, por exemplo, lidar com a questão da educação ambiental e monitorar eficientemente a
geração de resíduos e a degradação dos corpos hídricos. A questão é colocada nos seguintes
termos:
[...] A ausência de políticas que abranjam as áreas metropolitanas torna mais
difícil equacionar os graves problemas de controle de enchentes, poluição,
destinação final de resíduos, proteção dos mananciais e ocupação de áreas de
risco. Por outro lado, os planos diretores, quando existem, só dialogam com a
cidade formal. Dessa forma, reproduzem e ampliam a informalidade [...] (PARÁ,
2005b, p. 34).
[...]
Drenagem urbana - As enchentes e os alagamentos tornam-se cada vez mais
freqüentes nas cidades médias e grandes. Isso se deve à deposição indevida de
resíduos nas margens dos cursos d´água, por falta de educação ambiental, cuja
proteção está prevista no Código Florestal (PARÁ, op. cit., p. 35. Grifo dos
autores).
[...]
A cidade na agenda global - Cada vez mais, as cidades promovem diversos
espaços de integração internacional. Além disso, a gestão urbana tem enorme
223
impacto nas questões ambientais globais, como o efeito estufa e o consumo
energético. Assim, o cumprimento dos compromissos internacionais inclui a
gestão ambiental urbana (PARÁ, op. cit., p. 36. Grifo dos autores).
[...]
Políticas - A construção da Agenda 21 Local, por meio da parceria entre governo
e sociedade em conselhos gestores, constitui instrumento para definir um plano
estratégico e participativo de ações em âmbitos econômico, social e ambiental.
O planejamento deve incluir a vocação produtiva da cidade em harmonia com o
entorno rural, com sua identidade cultural e ambiental, visando a ampliação de
emprego e de renda.
[...]
O zoneamento ecológico-econômico é fundamental para o desenvolvimento rural
e urbano e deve se integrar com outros instrumentos de gestão, como os
preconizados pela política de recursos hídricos, que tem a bacia hidrográfica
como unidade de planejamento.
[...]
Indicadores de sustentabilidade: acesso a moradia adequada; grau de poluição
hídrica; acesso a coleta e tratamento de resíduos sólidos e líquidos; metros
quadrados de áreas verdes por habitante; percentagem de empregos gerados
pela interface urbano-rural, como turismo rural, e ecoturismo; número de viagens
entre área urbana e rural (Idem, op. cit., p. 37. Grifo dos autores).
[...]
Prevenção, monitoramento e redução de riscos de acidentes e emergências
ambientais relacionadas a enchentes e desmoronamentos em áreas de riscos.
[...]
Articulação entre gestores urbanos, órgãos ambientais para evitar o avanço das
cidades sobre áreas de relevante biodiversidade, como mangues.
(Idem, ibidem, p. 39).
Desta forma é que se torna possível conceber a articulação de iniciativas diferentes no
campo da urbanização e de seu planejamento, mas com repercussões significativas na interface
do território urbanizado com a presença da água. A política ambiental estadual, em sua
conferência, fala em aspectos quantitativos, relacionando diretamente os impactos ambientais
negativos à questão demográfica nas cidades e à sua expansão territorial na dinâmica de
incorporação de terras rurais às urbanas:
[...] Outro aspecto relevante é o da qualidade da água dos mananciais,
diretamente relacionada às formas de uso e ocupação dos solos, tanto no meio
rural quanto no urbano. O crescimento das cidades tem provocado a
impermeabilização dos solos, a conseqüente redução da infiltração da água das
chuvas e a produção de mais resíduos sólidos (lixo) e esgoto a cada ano.
(PARÁ, 2005b, p. 4).
Apesar do reconhecimento do caráter socialmente desigual da degradação ambiental,
224
esta política setorial, no Estado do Pará71
estabelece diretrizes razoavelmente similares aos padrões
hoje vigentes no setor. A idéia de “regulação” dos benefícios e malefícios do uso e da apropriação
do ambiente e a possibilidade de uma correta (e até certo ponto, economicamente racional)
“gestão” de seus “recursos” (ROMEIRO, 2004) e bases ambientais é o que norteia a política, nestes
termos. Acredita-se, contemporaneamente, na gestão do ambiente como ferramenta técnica e
política de construção da paisagem como quadro (CAUQUELIN, 2007), como síntese, e como
contexto da base física, sócio-política e, portanto, territorial da vida, da reprodução social. Assim
como acontece com a gestão racional moderna dos recursos, feita pela Ciência Econômica, a
gestão do ambiente (ou, em termos mais totais, da paisagem) cabe ao paisagista, ao ecólogo e ao
urbanista, em sua função eminentemente administrativa (CAUQUELIN, op. cit.) de fazer o
ordenamento territorial, colocando cada elemento em seu lugar.
É a fluidez das relações de poder, misturadas à função ordenadora do Estado e
materializadas na paisagem ambiental (entendida e tornada território, isto é, com as sociedades
dentro) o que leva à possibilidade de uma “gestão da água”. O contexto histórico não é, portanto,
apenas o da incorporação do ambiente como fator de produção, como item passível de avaliação e
contabilização econômica, como item que sofre a economização do mundo (LEFF, 2003; 2006).
Este aspecto ocorre com a água; tornada “recurso hídrico”, a água passa por um processo
semântico, material, simbólico, cultural e econômico (isto é, social e histórico) de conversão da
paisagem em mercadoria. Tornada recurso, portanto, ela se aproxima do equivalente universal,
medida essencial na economia capitalista (FRACALANZA, 2005). No contexto do estuário guajarino (e
em parte razoável de seu entorno), como de resto na economia capitalista, a conversão em
mercadoria é uma tendência. No entanto, no caso em estudo este processo parece ser parte de
uma série de iniciativas que, não estando propriamente articuladas, são coesas quanto ao
processo de modernização. Haveria, entre seus efeitos, certo grau de convergência.
O território urbanizado às proximidades e sob a influência dos cursos d´água, na região
em estudo, apresenta uma série de iniciativas que apontam para formas difusas e variadas de
controle, de regulação do uso e da apropriação de seus diferenciais ambientais. A “água” do
71
Apesar da mudança recente de orientação política no governo estadual, diversos elementos sugerem certa continuidade das
ações públicas no setor, com aumento da abrangência da gestão ambiental em direção ao interior do estado e, sobretudo, na
relação com o setor produtivo. É desta forma que se torna possível, e metodologicamente viável, considerar como fonte de
pesquisa válida o conjunto de diretrizes e demandas coletadas em audiências públicas da Conferência Estadual de Meio
Ambiente da gestão passada do mandato estadual.
225
estuário guajarino, portanto, de forma assemelhada a processos atualmente em curso noutros
lugares, constitui historicamente um território crescentemente submetido a uma política de
controle, embora difuso e ainda em formação. Esta política, no entanto, se apresenta de formas
variadas e abertas: na regulação dos usos e formas de ocupação do solo; na definição de
prioridades e novas formas de capitalização sobre o consumo visual da paisagem (ZUKIN, 2000);
na modernização de estruturas técnicas dependentes da localização próxima à água; na articulação
entre espaços utilizados (economicamente produtivos ou não) e na anuência do Estado quanto ao
uso e a escala — como na gestão de recursos hídricos. Em princípio desarticuladas, tais
iniciativas apontam, no mesmo tempo histórico e sob as mesmas condições materiais e
institucionais, para um processo de modernização, abstração, racionalização e sobretudo
constituição de desigualdades territoriais e, portanto, ambientais.
226
4. INTERVENÇÕES TERRITORIAIS E POLÍTICA DA ÁGUA
No caso em estudo nota-se a dimensão substantiva da água na cidade de Belém-PA a
partir das intervenções territoriais e políticas de caráter ambiental, territorial ou sócio-econômico.
Esta dimensão tem relevância pela própria estruturação da cidade, e de resto pela urbanização
secular na região Amazônica como um todo. A pretensão deste estudo, neste momento, é a de
estabelecer uma discussão entre quatro das diversas formas de usar as águas no território
urbanizado para entender quais seriam os possíveis contornos de uma problemática
contemporânea de ordenamento territorial entre cidade e água. Estas formas não esgotam as
possibilidades desta relação; apenas permitem leituras válidas.
Cada uma das quatro formas de intervenção territorial citadas permite a discussão da
relação entre cidade e água de uma maneira distinta. Nestas formas de intervenção, as abordagens
e os modos de uso e apropriação do ambiente na cidade são diferenciados, não apenas pela
diversidade de atividades desempenhadas nas margens dos cursos d´água urbanos, mas também
pelas formas diversas pelas quais são produzidas possibilidades de entrada e acesso, e de veto, a
este elemento do ambiente. O parque urbano do tipo waterfront, as aplicações da engenharia e do
paisagismo ambientais, a modernização portuária e a gestão de recursos hídricos, em termos
conceituais, implicam em efeitos diferenciados, mas que tendem a certo grau de convergência no
sentido de enfeixar e sintetizar uma ampla e difusa política de controle do ambiente na cidade.
O território urbanizado às proximidades da água72
pode ser abordado de diversas formas;
pela particularidade de suas práticas, pelas representações e culturas associadas aos grupos que o
usam ou nele habitam, pela materialidade de sua ocupação. O que parece residir em todos estes
casos, entretanto, é o aspecto contemporâneo de racionalização e reprodução da assimetria em
sua apropriação. O aspecto da racionalização nas medidas de intervenção e na aplicação das
técnicas, embora tenha uma associação histórica com as resoluções de problemas empíricos,
“mecânicos”, também tem relação com processos de abstração de questões concretas, de
projetos de artefatos idealizados (ROSSI, 2001) e, portanto, desconectados de questões de outros
campos que não aqueles estritamente relacionados à formulação inicial de um problema “técnico”.
72
Ou, em outras palavras, o que estamos denominando aqui de zona de interface.
227
Por outro lado, parece existir um elemento comum àquele conjunto de quatro fenômenos
que denominamos intervenções territoriais. Este elemento comum agrega características destas
quatro formas de intervenção territorial, relacionando-as à reprodução e à criação da desigualdade
no acesso ao ambiente, e à água no território. Desta forma, embora haja abordagens diferentes da
água na cidade para cada tipo de intervenção territorial, parece haver uma dimensão coincidente,
de encontro dos efeitos destas formas sobre as modalidades contemporâneas de acesso às
possibilidades da interface entre o território urbano e as águas. Este encontro dos efeitos é avaliado
como uma espécie de convergência. A idéia de uma convergência de efeitos estaria ligada às
várias formas de desigualdade social e espacial decorrentes destas práticas e políticas
contemporâneas, e correspondentes a territórios relacionados à água em suas atividades. As
intervenções e políticas praticadas nestes locais, expostos aos condicionantes de suas
especificidades, parecem induzir a um conjunto de ações que limitam as possibilidades de uso e
apropriação do ambiente na cidade (e, de resto, nos territórios em geral). A idéia de limitação não é
nenhuma novidade no campo do ordenamento territorial, já que este se baseia fundamentalmente
em vetos e seletividades sobre escala, padrões e usos do solo. O que parece relativamente novo,
em determinados aspectos, é o fato de iniciativas em princípio conceitualmente diferentes
representarem aproximações em torno destes vetos e seletividades; embora versando sobre temas
diferentes e atuando sobre partes dos mesmos territórios, estas iniciativas, ou intervenções
territoriais e políticas, têm se mostrado capazes de desenhar um cenário de novos problemas no
campo do desenvolvimento, em sentido amplo.
Há, decerto, uma prática antiga na ciência e na aplicação do Direito, por exemplo, sobre
as zonas costeiras nacionais e sobre os acordos internacionais de uso destes. Há a codificação,
milenar, de técnicas de aproveitamento da linha costeira, das margens de rios e lagos, há diversas
formas de assentamento tradicionais que se criaram e aperfeiçoaram, em situações econômicas e
sítios físicos diversos, para o uso da beira da água como possibilidade de fixação e de expansão
espacial, de territorialização. Ademais, conflitos (potenciais e factuais) em torno das possibilidades
de uso e de acesso à água hoje são discutidos de forma generalizada inclusive no Brasil (RIBEIRO,
2003), e mobilizam a política ambiental a tratá-los, quase sempre, em uma perspectiva que
extrapola a do domínio técnico da hidrologia ou da drenagem urbana, por exemplo. A “água”,
sobretudo no que diz respeito à interface com o território ocupado, tornou-se tema multidisciplinar,
228
inclusive pelo seu uso variado. Com atribuições e usos diversos, e abordagens idem, a “água”
pode ser construída, conceitualmente, como condicionante de aspectos territoriais através de
várias iniciativas ao mesmo tempo, e com efeitos diversos, embora convergentes. O conflito
generalizado em torno deste condicionante, de certo modo, reforça os indícios de que haja algum
conjunto de interesses e expectativas em torno das possibilidades da água sobre o território.
4.1. “ÁGUAS URBANAS”
Como forma de abordar o fenômeno adota-se a identificação de quatro tipos
contemporâneos de intervenções territoriais: o parque urbano de lazer e consumo do waterfront; o
porto modernizado; a engenharia ambiental; a gestão de recursos hídricos. Estes temas foram
acionados ao longo do trabalho para caracterizar os fenômenos de referência da elaboração
conceitual. O termo intervenções territoriais, na falta de denominação mais apropriada, pretende
apenas sintetizar os fenômenos, mais genericamente. Trata-se de citar, indiretamente, os esforços
em torno da criação de um desenho espacial característico de exigências atuais no uso das
cidades, ou em torno da produção de condições sócio-econômicas, institucionais, legais e
administrativas de operação das novas possibilidades sócio-econômicas de aproveitamento destes
espaços diferenciados da interface entre o território e os cursos d´água em geral. Embora estes
quatro tipos de intervenções territoriais não esgotem os usos e padrões de aproveitamento
territorial da água na cidade, o que seria virtualmente impossível, há neles possibilidades de
avaliação do problema, pois cobrem um espectro razoável de situações para análise. Estes usos,
adicionalmente, podem articular as esferas da engenharia, da indústria cultural, dos transportes e
das políticas ambientais. Neste sentido, pensar diferentes ações em curso em espaços urbanos
próximos ou sob a influência de usos relacionados à água é útil para raciocinar em que medida há,
de fato, implicações de uma atual “questão da água” na cidade. Esta questão da água, neste
trabalho, poderia ser abordada a partir daqueles quatro tipos de intervenções, como possibilidades
de leitura do fenômeno.
Os parques urbanos, por exemplo, que são ora mais diretamente relacionados aos
contornos atuais da política cultural nas cidades, ora ligados ao mote da política ambiental,
costumam explorar a dimensão da água na cidade enquanto paisagem. Esta aplicação do termo
paisagem, no caso, estaria inicialmente mais próxima da formulação de Sharon Zukin (2000) sobre
229
os espaços liminares e sobre as paisagens do poder, no sentido da segregação sócio-econômica e
cultural, e da separação entre usos “nobres” da cidade e aqueles associados a algum tipo de
marginalidade e periferização. As cidades atuais, sobretudo as de grande porte, teriam uma
tendência a criar ritualmente estes espaços, e a reproduzi-los na dinâmica de ativação de novas
frentes de exploração econômica e de transformação dos lugares. São, portanto, paisagens do
poder porque sintetizam certa imobilização de capitais e de intenções para produzir os efeitos da
nova economia, das divisões (de classe, de certo modo) em torno do consumo diferenciado, da
possibilidade de acesso aos novos serviços (ZUKIN, 1991; 2000). A água, nestes locais, é uma
espécie de item cenográfico; no ocaso tecnológico e de gestão das antigas zonas portuárias
seculares são criados parques urbanos cujo apelo estético e funcional é o de acionar a imagem do
porto que não está mais ali. O porto, convertido no produto contemporâneo do waterfront, parque
urbano portuário de amenidades, lazer e consumo (HARVEY, 2000), aborda as chamadas “águas
urbanas” convertendo-as em paisagem como um enquadramento das atividades novas instaladas
no local, com o acúmulo histórico das estruturas materiais que nele repousam.
O outro lado dos parques urbanos do tipo waterfront está no porto modernizado. Neste
caso a abordagem das chamadas “águas urbanas” é dada pela dimensão da água de caráter
“técnico”. Esta água “técnica” está relacionada à sua dimensão na cidade enquanto veículo, meio
dos fluxos de transportes e também como receptáculo, como sumidouro e local de destinação do
rejeito, do resíduo, para posterior escoamento. Neste aspecto, portanto, há certa aproximação
entre a abordagem da água na engenharia ambiental (ou no saneamento, em sentido aberto) com a
abordagem própria do porto. A dimensão das chamadas “águas urbanas” a ser ressaltada quanto
ao porto modernizado, portanto, é a da água enquanto veículo. Neste sentido, a dimensão da
racionalização é mais evidente e é importante para o caso. O porto, em sua versão atual, demanda
estruturas físicas e um modelo de gestão específicos (BAUDOUIN, 1999), e condiciona novas
relações inter-regionais (BAUDOUIN, 2003) colaborando na formação de outros arranjos espaciais
da economia entre cidades e seus entornos. As águas na cidade, portanto, têm um aspecto
particular na questão do porto, nesta aplicação específica da água como veículo, como meio e
como forma de deslocamento ou de escoamento de rejeitos. Adicionalmente, já que há atividades
urbanas que são, por definição, formas de produção e de consumo ao mesmo tempo (CASTELLS,
2000), esta “água urbana” é, também, fator de produção. Neste caso, a vinculação entre a
230
economia no território e esta dimensão ambiental oferece elementos para o entendimento de
alguns aspectos dos conflitos pela água e seus espaços correlatos. Por outro lado, esta dimensão
ambiental também assinala que o condicionante territorial que os cursos d´água representariam
estaria exposto a processos de racionalização do tempo, dos arranjos espaciais e das
rentabilidades, tal como ocorre com outros elementos que concorrem para o processo produtivo.
Isto encerra o raciocínio; a água na cidade, vista a partir do porto modernizado, é uma água
“técnica”, veículo, meio e fator de produção, e sofre processos de disputa e um tipo de
racionalização sobretudo do arranjo espacial e da escala dos fluxos; regionais, nacionais,
transnacionais.
Ainda em um campo dito “técnico”, isto é, das aplicações de noções tidas como
científicas para fins de resolução de problemas empíricos e para a produção de artefatos com
resultados específicos (ROSSI, 2001), as contribuições novas da engenharia para o saneamento e a
recuperação ambiental urbanos são relevantes. Chama-se, neste trabalho, este campo disciplinar e
suas técnicas aplicadas de engenharia ambiental, embora seja claro que esta não sintetize
totalmente as contribuições vindas de interfaces com o urbanismo, com o paisagismo, com a
economia ou com a biologia, por exemplo, ou mesmo em relação a especialidades como a famosa
engenharia de águas francesa. Esta engenharia de parâmetros revisitados e suas aplicações têm
apresentado a capacidade de abordar as “águas urbanas” também enquanto veículo, mas
combinando esta abordagem com outros sentidos possíveis na cidade.
Ocorre uma revisão de parâmetros, portanto; estudos passam a demonstrar que certo
mecanicismo das soluções de saneamento é passível de relativização. O escoamento das águas
(sujas, limpas, navegáveis ou não) passa, neste campo disciplinar, a ser considerado de outras
formas, como em um movimento de retomada de algumas antigas lógicas da engenharia e da
“pré-engenharia” européia e asiática, por exemplo. Especificamente, o que aqui chamamos de
engenharia ambiental pode ser o agente de descanalização de rios urbanos. Este aspecto revela-se
curioso inclusive em termos semânticos; o que sofre intervenção sob os novos preceitos da
engenharia ambiental é, hoje, parte das “águas urbanas” enquanto veículo, mas também como
paisagem. Trata-se (ou fala-se) de rios urbanos73
para, por exemplo, retomar os fluxos de
73
No Brasil, inclusive, tanto em meios técnicos na administração pública quanto nas Universidades e eventos científicos
ligados à área.
231
transportes na recuperação da navegabilidade dos antigos canais de drenagem; sua característica
técnica anterior é parcialmente posta em segundo plano, ao menos retoricamente, e é ressaltada
sua dimensão paisagística. Em relação ao canal, forma anterior, o rio urbano é visto como
paisagem e fluxo de transportes; do outro lado, o canal é “transporte dos fluxos”.
A aplicabilidade das três formas anteriores de intervenção territorial pode ser relacionada
com uma a outra forma de intervenção, mais ampla, mais difusa e generalizada em atividades
ligadas a espaços próximos à água em geral. A gestão de recursos hídricos, por adotar como
princípio a regulação das formas de uso, acesso e aproveitamento das águas no território, assume
esta característica. A gestão de recursos hídricos, no âmbito estadual, se declara articulada à
política federal (MMA, 2006) e se propõe a mediar conflitos de uso da água no Estado, bem como
resolvê-los, em última instância (SEMA, 2009). Além destes aspectos, a idéia de uma gestão das
águas no território não apenas instaura nele formas de regulação do uso, da ocupação e do
aproveitamento dos espaços e de suas águas, mas também uma forma generalizada de
monitoramento, e alguns padrões, relativamente definidos, de desempenho. Neste sentido, a
gestão das águas se coloca como atividade política de grande relevância e representatividade, e
com pretensões significativas de ordenamento territorial, no sentido direto e indireto. Ao propor
uma gestão (noção empresarial, tributária da crítica aos processos burocráticos de planejamento e
previsão/controle de eventos) de elementos enquadrados como recursos (noção econômica, cuja
abordagem denota a preocupação com os processos produtivos e com as viabilidades das
atividades e usos da água) ambientais, hídricos, esta política se coloca como administradora da
paisagem dos territórios fronteiriços às águas. Esta postura, que é de método, de técnica e
também de concepção (visual e política, inclusive), ajudou historicamente a construir uma noção
de paisagem enquanto ambiente, “natureza” (CAUQUELIN, 2007) que engloba as dimensões da vida
social e dos itens inanimados. Obviamente, a gestão de recursos hídricos também incorpora
aquele princípio típico das políticas “clássicas” de ordenamento territorial: a prevalência do
interesse coletivo, o sentido do compartilhamento do território e de suas possibilidades e
benesses, a idéia de uma instância geral que regule as relações sociais sobre o espaço. Gerir as
águas, entretanto, pode ser interpretado como atividade tributária da concepção da natureza
ecônoma, e da escolha por itens da paisagem (CAUQUELIN, op. cit.) Neste sentido, a abordagem das
águas (agora em maior escala, regional, por exemplo) como recurso não poderia ser mais
232
apropriada, e isto pressupõe, como em qualquer desmembramento de processos produtivos, a
formação de um mercado, de uma estrutura de insumos, de um sistema de preços e, portanto, de
princípios de reciprocidade e equivalência. Nesta dinâmica, itens, formas, arranjos, usos,
atividades e formas de apropriação do recurso que se revelem desarticuladas de aspectos dos
padrões atuais da política de gestão de recursos hídricos tendem a ser, progressivamente,
segmentados em sua aplicação, ou eliminados das categorias ditas legítimas junto às
normatividades do planejamento ambiental.
4.2. CIDADE E ÁGUA: INTERVENÇÕES, CONFLITOS
Sem recorrer a qualquer imagem idílica e passadista da “Natureza” em suas variadas
formas, é razoável apontar que o mercado de terras e a modernização do uso do território tenham
acarretado modificações ao caso do estuário guajarino, especificamente no entorno de Belém-PA.
A instalação e a consolidação de um mercado de terras mais dinâmico, crescentemente
formalizado, de estratos de demanda diferenciados (por valor e por uso) têm criado condições para
a transformação das características das suas margens fluviais. Isto também pode ser analisado de
forma inversa. A instalação mais clara de um mercado formal de terras com certa densidade de
transações e pressão fundiária não é apenas vista como condição para mudanças no território,
mas como um dado, sinal da alteração das maneiras de ver, representar, conjecturar e intervir
sobre o ambiente e suas relações sociais. É um sinal de um dos aspectos do processo de
modernização, em que os itens e as coisas passam a se relacionar por meio da troca econômica.
Estas atribuições de sentido e ações sobre o ambiente consistem, em linhas mais gerais,
em procedimentos sobre as visualidades, imagens e seus impactos e sobre as práticas materiais
(HARVEY, 1996b) instaladas no espaço. De forma análoga, a materialização de formas
contemporâneas do domínio da técnica74
e da apropriação da paisagem promove uma alteração na
atribuição de sentidos ao ambiente e também nas formas de territorialização. Estas formas, que
não são identificáveis apenas como “estruturas” materiais, são esquematicamente representadas
pelas iniciativas, ações e agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, 1997a) apontados previamente.
74
Como as construções, equipamentos e veículos, por exemplo, no caso das instalações portuárias, parques urbanos e demais
atividades relativas ao caso.
233
Colocam-se, portanto, não apenas como estruturas materiais que denotam novos usos (ou formas
recentes de antigos usos), mas como evidência patente, concreta de uma apropriação alterada do
ambiente — de seus diferenciais, suas temporalidades e acúmulos históricos de trabalho e
representações, suas benesses.
Mais concretamente, é possível dizer que as “estruturas” materiais contemporâneas da
área de estudo são, ao mesmo tempo, evidências desta política de controle da água e condições
para que ela possa se desenvolver. Este ponto não tem qualquer pretensão, obviamente, de
estabelecer primazia entre a dimensão material ou imaterial do território, ou ainda sobre a
materialidade do território versus sentidos da cultura. Esta não é propriamente uma questão75
,
interessa a maneira como são materializados, fisicamente, os sentidos deste ambiente e como são
mobilizados os tais agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, op. cit.) para reproduzir a assimetria do
acesso ao território relacionado à água. Exemplificando: o impasse tecnológico e administrativo
(ou de “gestão”) (BAUDOUIN, 1999) acerca dos antigos portos centrais e da criação de novos
portos “viáveis” é um caso em que a técnica e a materialidade do território evidenciam esta dupla
possibilidade de análise e constatação. No entanto, não é coerente dizer que haja retroporto,
equipamentos de maior porte, aumento de escala, consórcios, emprego de tecnologias de
telecomunicações, gestão ambiental e cais de maior calado apenas porque as novas exigências do
setor demandam, previamente, o novo modelo. Seria como conceber mudanças sociais
externamente a determinados processos concretos e econômicos, materiais; transformação social
e posteriores intervenções territoriais. Por outro lado, esta materialidade expressa a mudança de
abordagem sobre o ambiente, denota novas condições de uso e apropriação e permite outras
possibilidades; não havendo, entretanto, qualquer obrigatoriedade de “sucessão temporal” entre
estruturas materiais e sentidos do ambiente.
Assim, as estruturas materializadas e os sentidos construídos configuram a síntese do
caráter desigual na apropriação do território à água. Embora seja possível conceber a questão,
como sempre, em termos de categorias fundamentais (a relação desigual com a terra no
capitalismo, a tendência à concentração, etc.), é imprescindível a localização de fenômenos
específicos, embora não-“restritivos”, para delinear os contornos da problemática. A relação entre
75
Já que não há elemento antecedente ou determinante, no caso; respeita-se as condições concretas da materialidade, em
última instância, mas não um predomínio direto do ambiente sobre as intenções e narrativas acerca dele. Se há materialidade
histórica há também sentido da ação.
234
concepção do ambiente e intervenção territorial nas proximidades da água evidencia uma particular
forma de abordar a natureza no território (sobretudo na cidade, mas não exclusivamente) e novos
padrões de territorialidade e assentamento. E é esta relação que, contemporaneamente, reproduz a
desigualdade, a assimetria no uso e na apropriação do território às proximidades dos cursos
d´água.
Neste sentido, portanto, não há qualquer prevalência de um “nível” sobre o outro. Não
havendo, portanto, qualquer predominância da materialidade territorial sobre os sentidos do
ambiente (ou entre práticas e idéias, por correlação), pode-se ilustrar a natureza das relações entre
eles, no objeto em estudo. Um papel fundamental, no caso, é dado às retóricas, aos discursos e à
sua relação íntima com as estruturas materiais no território cidade/água. A caracterização das
“necessidades” sociais pelas quais se deve modernizar um porto ou reabilitar uma antiga estrutura
construída de zona portuária central ilustra bem este argumento. O significativo investimento
(social, político, cultural e econômico) implicado em uma complexa operação de grande alcance
sócio-econômico e territorial, como a construção de um porto modernizado ou a reabilitação de
antiga zona portuária central, depende de maneira crucial do poder de convencimento dos
discursos, da narrativa das retóricas e, essencialmente, do esvaziamento, da diluição, de seu
sentido econômico. Retirar do econômico (BOURDIEU, 1996b), no caso, move o sentido da
intervenção e a torna tanto mais palatável quanto mais abstratos forem seus propósitos. Há,
portanto, um papel político na operação do discurso, da retórica e da construção de narrativas
sobre o sentido das ações. Além disto, há a “elevação” das motivações76
; a própria ação do
Estado (agente fundamental nas infra-estruturas que chamamos aqui de “intervenções territoriais”)
implica em uma recusa da economia, de certa forma (BOURDIEU, op. cit.)
Este componente de negação do econômico, quando socializado, é um pressuposto
básico da reprodução da desigualdade (BOURDIEU, op. cit.) A socialização destas práticas em torno
de uma economia de bens simbólicos (Idem, op. cit.) reproduz as posições no espaço social. Esta
economia, ainda, garante a legitimidade de determinadas ações, que recebem o caráter abstrato
76
Bourdieu (1996b) usa os casos da Igreja, da educação e do Estado, dentre outros. As ações religiosas, por exemplo, não
devem exibir sua dimensão material, econômica, de certa forma vil e utilitária — trata-se de “[...] calculistas e interessadas
práticas que se definem contra o cálculo e o interesse” (BOURDIEU, op. cit., p. 199). Seus motivos são mais abstratos,
elevados, transcendentes. As ações religiosas, intrinsecamente econômicas na “empresa religiosa” (Bourdieu, 1996b, p. 192),
baseiam-se estruturalmente em uma negação do econômico, em uma complexa relação de negação, prática efetiva e
dissimulação.
235
devido; tornam-se assim ações marcadas pelo interesse público, pela universalidade própria do
Estado moderno (idem, ibidem).
A relação íntima entre retóricas, discursos, sentidos do ambiente, práticas materiais
(HARVEY, 1996b) e intervenções territoriais está presente no caso em estudo. A mobilização
coletiva em torno de uma suposta identidade cultural (e territorial) relacionada à água como
elemento da paisagem de Belém-PA e entorno comprova a afirmação. A estruturação urbanística (e
econômica) da cidade de Belém-PA sempre esteve ligada ao fator locacional da proximidade da
rede hidrográfica regional; este, inclusive, fora um dos elementos determinantes para a sua
fundação (CRUZ, 1973; SANTOS, 2001). A atual vinculação entre este fator locacional, os
argumentos a favor da alteração da paisagem urbana e a necessária legitimidade política para
executá-los demonstra a capacidade de mobilização coletiva em torno desta economia simbólica,
aplicada à zona de interface, no caso.
A enumeração de intervenções territoriais contemporâneas, portanto, serve para ilustrar a
maneira pela qual são reproduzidas as desigualdades sócio-territoriais na atualidade, lidas no
espaço que chamamos aqui de zona de interface cidade-água. Esta realidade, bastante atual, deve
reforçar as categorias trabalhadas na seqüência histórica inicial da pesquisa. Desta forma, torna-se
possível ligar as duas partes em torno de um raciocínio comum: quais seriam alguns contornos
possíveis da lógica territorial nas proximidades e sob a influência da disponibilidade da água; como
esta lógica se encontra hoje, diante de fenômenos modificados pelas recentes alterações no
capitalismo e na organização da produção no espaço.
A idéia de interface aplicada a estes espaços de beira rio da Região Norte não é
propriamente nova. Outros autores já haviam aplicado noções semelhantes ao mesmo caso,
inclusive à cidade de Belém-PA (TRINDADE JÚNIOR; SANTOS; RAVENA, 2005). A questão é a de
raciocinar sobre as atividades, os usos e os arranjos espaciais praticados nestes territórios. Em
termos conceituais, podemos falar nesta idéia de interface a partir de uma fronteira, de um limite,
de uma linha divisória. Assim, a própria interface, enquanto fronteira, sequer existiria e seria
impossível de se conjecturar caso não existissem suas duas pontas como regiões definidoras
(STANFORD, 2008): o território ocupado e os cursos d´água adjacentes. Estas fronteiras, da
interface, nem sempre são claramente legíveis, e obviamente existem em grande parte em função
de convenções criadas a seu respeito, ou do que se diz a respeito delas (Idem, op. cit.) Sob outra
236
perspectiva, a idéia de interface, caso esteja ligada à idéia de fronteira, limiar, é dependente das
suas duas (ou mais) pontas; assim, esta interface só pode ser entendida na interação entre as
partes que a delimitam, e há entre elas, portanto, limites compartilhados (Idem, ibidem).
O que chamamos neste trabalho, portanto, de zona de interface poderia ser ilustrado
analogamente a outras figuras dos estudos urbanos e regionais. Moraes (1999), por exemplo,
pergunta qual o alcance da zona costeira de um determinado país, pensando no caso brasileiro. A
aplicação da idéia de alcance, tributária das teorias da localização geográficas clássicas (CLARK,
1991), serviria para identificar a extensão da influência dos cursos d´água em atividades no
território, como a navegação, os portos, os mercados e entrepostos, o uso das praias, a pesca, o
próprio condicionamento de aspectos da economia regional. A extensão e o desenho da zona
costeira, deste modo, dependeriam essencialmente de algum recorte ecológico e físico-ambiental,
mas também da possibilidade de mapeamento da “influência” dos condicionantes da água sobre a
ocupação humana. Neste sentido, quanto maior for a possibilidade de penetração no hinterland,
nas terras emersas continente adentro, das atividades diretamente relacionadas ao litoral, maior
portanto será o alcance da zona costeira (MORAES, 1999).
Neste mesmo sentido, a idéia também clássica da seção de vale do escocês Patrick
Geddes (1994), dispondo atividades econômicas em paralelo a aspectos sintéticos do sítio físico
(vegetação, relevo, clima, fauna), tem traços de certo modo semelhantes. A seção de vale (ver
Ilustração 65) era um recurso analítico, em geral associado a uma visão do território ocupado
pelas sociedades em paralelo à avaliação por bacia hidrográfica (GEDDES, 1994; HALL, 1995). A
análise do território feita por bacia hidrográfica permitiria a Geddes, em sua concepção, relacionar
a ocupação, os usos, os cursos de drenagem e a diversidade de formas de uso e apropriação do
território a partir de um recorte teoricamente fisiográfico que, historicamente, exibiria amostra
razoável dos processos de interesse para seu entendimento. Não interessaria centralmente a
situação daquele terreno quanto a uma abordagem das bacias de drenagem, mas o complexo de
atividades e formas de ocupação ali instalado.
Para analisar aspectos do uso e da ocupação do território nas proximidades e sob a
influência dos condicionantes dos cursos d´água, portanto, pode ser útil falar em interface entre a
ocupação das terras emersas e as águas ali disponíveis. Estas duas pontas da fronteira, ou da
interface, permitiriam inferir que haja padrões de interação nos dois sentidos. Haveria formas
237
passíveis de dedução e análise, por exemplo, no sentido terra-água: a construção de estruturas
portuárias e sua operação, a instalação de espaços públicos de contemplação, os usos técnicos
das margens, como a drenagem, o escoamento em geral, em barragens diversas e outros. Do
mesmo modo, há formas no sentido inverso, o que poderia ser ilustrado pela atividade de
navegação, por exemplo, mas também pelos usos instalados a partir do regime de marés, valendo-
se do fluxo e da variação de nível da lâmina d´água no terreno. Isto pode englobar diversas
atividades, diretamente produtivas ou não (a agricultura, mas também a operação de infra-
estruturas de saneamento, por exemplo). Como se pode notar, a idéia de interface seria útil para
analisar o conjunto de práticas e de sentidos dados predominantemente de um dos lados do par; o
outro lado, embora não seja um mero condicionante, é usualmente visto como articulado a formas
presentes nas terras emersas, sobretudo.
Ilustração 65 O diagrama clássico de Geddes sobre a seção de vale (relacionando atividades ao ambiente e à bacia
hidrográfica) oferece um curioso exemplo de ecletismo entre determinismo e possibilismo geográfico. Fonte: Geddes
(1994).
No caso em estudo, haveria lógicas e práticas materializadas no que chamamos aqui de
zona de interface. Esta formação territorial, no caso da pesquisa, diz respeito, sobretudo, aos
espaços qualificados como “ribeirinhos” na região. O território “ribeirinho” seria uma expressão de
vários processos de fixação no espaço, de produção de artefatos e práticas, e de orientações na
transformação da paisagem. Neste território estão inscritas as habitações rurais e urbanas às
margens dos cursos d´água, por exemplo (LOUREIRO, 2004), a economia da pesca e do transporte,
238
as complexas redes comerciais dos entrepostos urbanos situados nas calhas dos rios da Região
Norte (BENCHIMOL, 1995), bem como em seu litoral. Nestes espaços são instalados usos que, em
conjunto, articulam práticas territoriais que são evidências de estratégias de aproveitamento e
potencialização dos diferenciais do território às proximidades e sob alguma influência da água
enquanto condicionante. É desta forma que a construção de estruturas físicas nas cidades, a
ligação destas com as embarcações, o aproveitamento das margens para a criação de zonas
urbanas de entreposto comercial de notável centralidade estruturam, em um mesmo local, um
espaço diferenciado — embora em geral rudimentar para os padrões de urbanização
contemporâneos, no caso das chamadas “cidades ribeirinhas” da Região Norte do Brasil. Este
território guarda, na lógica interna de suas estruturas espaciais, elementos fundamentais da
constituição da zona de interface. Por outro lado, frente às dinâmicas de modernização vigentes,
os espaços ditos “ribeirinhos” apresentam tensões e conflitos próprios do movimento de
territorialização do capital, com reestruturação econômica e concentração de terras e capitais.
Em segundo lugar, há um conjunto de intervenções (e políticas) que exibem mais
claramente a face atualizada de elementos da territorialidade dos espaços historicamente ocupados
às margens da água e, ao mesmo tempo, a problemática que o território urbano próximo à água
apresenta, contemporaneamente. Como já foi mencionado no corpo deste trabalho, estes fatores
(territorialidade contemporânea da zona de interface e sua problemática) são sintetizados em
quatro fenômenos contemporâneos, todos localizados em territórios urbanizados nas proximidades
de cursos d´água em geral, que se identificam com as formas de intervenção territorial atuais em
estudo, conforme citado anteriormente: parques urbanos de beira de água (waterfronts) ligados à
chamada “economia da cultura” (JAMESON, 1996; 2001); parques ambientais e demais espaços
urbanos, criados a partir de inovações técnicas no campo da engenharia e do urbanismo; processo
de dupla alteração nas estruturas portuárias contemporâneas, chamado de modernização
portuária77
, transformação nos modelos de gestão e no padrão tecnológico e de apropriação
territorial dos portos considerados “competitivos” atualmente; “gestão” das águas, no que se
convencionou chamar de gestão de recursos hídricos, com políticas de administração em regime
77
O que no Brasil tem como marcos legais e institucionais os grupos de trabalho do Programa de Revitalização de Áreas
Portuárias (REVAP) do Ministério dos Transportes, levado a cabo pelas diversas autoridades portuárias do país (Companhias
Docas, etc.) e também a Lei de Modernização Portuária (BRASIL, 1993) (ou “Lei dos Portos”, Lei nº. 8.630, de 25 de fevereiro
de 1993).
239
de parcerias e com um modelo institucional que se pratica, em geral, voltado para a bacia
hidrográfica como unidade de planejamento, gestão e decisão política.
Embora aparentemente tenham apenas a proximidade da água como fator comum (à
exceção da óbvia relação entre waterfront e porto modernizado), estes fenômenos estão bastante
articulados. Na verdade, em suas diversas vertentes, mostram efeitos concretos da concentração
dos benefícios, diferenciais e especificidades da localização às margens de cursos d´água. Por
outro lado, efeitos factuais e mesmo potenciais de suas intervenções criam uma espécie
relativamente coesa e coincidente de “periferia” do ambiente urbano; usos, formas de apropriação
e padrões de ocupação territorial que são residuais ao padrão da política da água tendem a ocupar
lugares menos nobres da interface.
Por outro lado, ocorreram, nas últimas décadas, algumas mudanças no padrão de
urbanização capitalista contemporâneo com impacto em espaços de interesse a este trabalho.
Estas mudanças teriam representatividade tanto no capitalismo avançado quanto nos países em
desenvolvimento. Dentre estas mudanças, no que impacta mais diretamente sobre o caso em
estudo, podemos citar a relativa dispersão territorial da atividade industrial, a reocupação de áreas
urbanas centrais e a produção de novos espaços de “natureza” no interior da cidade — através da
implantação de infra-estruturas, aptas a operar um urbanismo mais “compreensivo” diante das
dinâmicas ambientais urbanas. É desta forma que porções de “natureza” no interior das cidades
são pretensamente reapropriadas. A partir de avanços da engenharia (sanitária, ambiental, entre
outras), são produzidos espaços e infra-estruturas capazes de lidar com o ciclo hidrológico ou a
criação de micro-climas urbanos. Mais comuns do que tais exemplos, entretanto, são os espaços
públicos de caráter “ambiental”; ambientes onde a paisagem se pretende um simulacro idílico da
natureza em miniatura (SCHAMA, 1996). Na aplicação feita neste trabalho, identifica-se este fato na
recuperação ambiental de espaços urbanos a partir de novas demandas das elites locais.
A modificação do perfil das economias nacionais e da economia urbana — com relativa
ascensão da representatividade do terciário entre os setores (SASSEN, 1998) —, acompanhada da
modificação do padrão operacional dos portos modernos, ocasionou uma dupla transformação
nos territórios urbanos portuários. Esta transformação se dá na produção da “obsolescência” das
antigas estruturas portuárias centrais, ou na criação dos portos modernos. Tais estruturas podem
ser tornadas pólos urbanísticos de consumo visual dentro da categoria do patrimônio cultural e
240
paisagístico, ao mesmo tempo em que são criadas outras estruturas de grande porte e notável
impacto ambiental, grandes consumidoras de energia e recursos públicos, nas imediações da
cidade; os portos modernizados ou hub ports.
Por fim, em uma abordagem mais difusa no território — e mais dependente de um
suporte institucional — encontra-se o conjunto de iniciativas ligadas às chamadas políticas de
gestão de recursos hídricos. Os próprios termos da política são sínteses de suas categorias
fundamentais. Estas categorias dizem respeito a um momento histórico em que a água migra, de
forma hegemônica, da noção de substância78
para outras noções como fator, veículo, via ou, ainda
recurso. Por outro lado, não apenas certa mudança de sentido da água no ambiente sofre
transformações, como a própria abordagem deste. Estas transformações permitem conceber
como, em determinado momento, chegam a ser pensadas políticas, ações públicas do Estado, que
visam o ordenamento de certas atividades no território e que pensam este ordenamento como
mediação entre os usos da água, os agentes sociais envolvidos, a idéia de finitude e a sua
conversão (simbólica, ideológica e material, concreta) em recurso. Ao mesmo tempo em que o
ambiente, apropriado técnica e burocraticamente, torna-se objeto de uma postura administrativa
contemporânea (a “gestão”) (CAUQUELIN, 2007), a questão é também enquadrada como ajuste de
quantidades, fluxos e demandas, inclusive no território.
Pensa-se, portanto, em administrar com a nova lógica de “eficiência” os estoques
materiais do ambiente79
e o ordenamento dos usos e padrões de ocupação do território, em um
novo tipo de esquadrinhamento (DELEUZE; GUATTARI, 1997a), de instalação relativamente diluída do
poder na dimensão espacial, de mapeamento e captura da fluidez do espaço que existia na
dimensão relativamente menos controlada do ambiente ainda não codificado sob tais bases.
78
A noção de substância, tomada historicamente, tem mudado. Podemos dizer que se trata de uma noção moderna, e que ela
pressupõe, na maioria das formulações conceituais, a existência de parcelas menores diante de agregações que formariam as
“substâncias” propriamente ditas. Não há, portanto, na idéia de substância, qualquer possibilidade de pensarmos em um
conceito ou figura “primários”, essenciais, fundamentais, primeiros. A própria noção de substância é, também, uma
construção histórica, em que os compostos químicos (“elementos”, sejam eles químicos ou quase místicos, como a água, a
terra, o fogo, o ar) formariam cadeias maiores — estas sim as tais “substâncias” (ROSSI, 2001). Desta forma, ao pensar a água
como substância, estamos necessariamente abordando o composto que foi a representação da própria fluidez da matéria no
Universo (ROSSI, op. cit.), um dos elementos fundamentais de uma espécie de essencialismo da matéria, onde os compostos
quase tinham “humores” próprios e, por fim, faziam parte de uma “teoria” ou “narrativa” de explicação da própria constituição
material do ambiente. Portanto a própria idéia de substância, sendo moderna, é ao mesmo tempo instrumental, aplicada, e
formada por idéias menos racionalizadas do que se poderia supor.
79
De certo modo, coadunando um dos sentidos da sustentabilidade urbana apontados como técnico-materiais (ACSELRAD,
2001), próprios do discurso contemporâneo da eficiência, aplicado às administrações urbanas.
241
Historicamente, a formação deste tipo de espaço tem estruturas fundamentais que
tornam possível algum entendimento de sua lógica interna. Por outro lado, estas “lógicas” (não-
absolutas, obviamente) são atravessadas por dinâmicas de modernização, ora em curso na região.
A modernização se reflete, hoje, em intervenções que concentram diferenciais locacionais nos
territórios nas proximidades da água. Desta forma, aquela “lógica”, historicamente constatável nos
assentamentos, pode ser lida novamente nas estruturas urbanas contemporâneas; é justamente
esta possibilidade de apropriar, concentrar e tornar desiguais as formas de acesso ao território
próximo à água o que qualifica o problema.
A desigualdade estruturada no território urbano próximo à água pode ser notada, por
exemplo, nas formas de apropriação do ambiente, da paisagem e de seu consumo visual; na
prioridade das intervenções técnicas; nas estruturas de conexão, continuidade e avanço sobre a
água e na legitimidade política dada aos agentes para ordenar o espaço. Isto acaba reafirmando a
importância desta localização específica, e reeditando não só aqueles elementos fundamentais dos
territórios nas proximidades da água (conexão, extensão, observação, apropriação), mas também
as formas de conflito decorrentes do uso e da apropriação capitalista do solo urbano. Assim, a
problemática se estende às formas materiais e a seus arranjos no território, o que representaria a
dimensão morfológica, espacial (em termos abstratos) e, em síntese, territorial do fenômeno
(integrando a compreensão espacial às dinâmicas sócio-econômicas e às escalas políticas). Mas
a questão também se estende aos antagonismos e embates entre mecanismos de controle do
acesso a terra (pela via do mercado ou nas institucionalidades) e aplicações das prioridades nas
políticas de ordenamento territorial e gestão da água.
A questão da paisagem, neste ponto, é importante, por razões metodológicas. Há uma
dimensão política na própria idéia de paisagem, embora o termo, de uso corrente, em geral sugira
alguma noção de “natureza” e de visão estática do ambiente. Há intenção e gesto de
enquadramento na idéia de paisagem; uma janela de visualização, representação e de corte do
mundo (CAUQUELIN, 2007). Em outras palavras, “[...] um conjunto de valores ordenados em uma
visão, ou seja: uma paisagem” (CAUQUELIN, op. cit., p. 16. Grifo da autora). Em certa perspectiva,
trata-se de uma idéia (ou, tendencialmente, de um conceito) sintética; a paisagem condensa a
dimensão ambiental, em termos abertos, do espaço, juntamente com as suas dinâmicas de
apropriação e de alteração — no mínimo aquelas visualizáveis e desejáveis.
242
A paisagem, segundo Cauquelin (2007), tem em seu sentido uma duplicidade: a
coexistência das idéias de natureza e a de cultura, a de “paisagem-símbolo” e a de “primeiro Éden”
(idem, op. cit., p. 30). Este sentido múltiplo tem seus riscos, já que há uma tendência à
naturalização da paisagem; a entendê-la como algo dado. Por outro lado, o que se reconhece no
enquadramento da paisagem é, necessariamente, filtrado pela experiência, pelas referências e
pelos sentidos dados por estas (idem, ibidem). Neste aspecto, portanto, a paisagem exibe seu
aspecto político, sobretudo quando da entrada das técnicas, procedimentos e disciplinas que se
pretendem instrumentos de gestão: a Economia, a Administração, o Paisagismo, o Urbanismo
(CAUQUELIN, op. cit.) “Ordenar” o arranjo espacial dos usos e de suas escalas (o que no caso
francês é secular), a partir da pretensão de interesse público do Estado, é uma atividade que
pressupõe a eleição de padrões, modelos, concepções.
“Paisagem”, originalmente, teria entrado na discussão espacial através da Geografia,
como disciplina científica (BAKER, 2003). O termo teria uma espécie de “bifurcação” etimológica.
Pelo lado anglo-saxão, a idéia de paisagem veio do landschaft de Carl Sauer ou, ainda, da
landscape dos ingleses, em uma clara analogia entre ambiente, região, espaço e a própria
paisagem. Numa ponta, uma espécie de coletivo da terra, de comunidade da terra; noutra, uma
visão desta, em perspectiva, uma panorâmica. Neste sentido, haveria até mesmo alguma
indefinição quanto à diferenciação entre tais conceitos, eventualmente considerados semelhantes
(BAKER, op. cit.) A landscape (“visão da terra”, literalmente) inglesa evidenciaria a noção de
ambiente presente no espaço, e por conseguinte, pelo menos em termos iniciais, a mistura de
sentidos entre o espaço como substrato material da ocupação humana e o ambiente como
“natureza”, externa ao homem. A Geografia Humana da virada do século XIX para o século XX
traria, neste caso, a contribuição mais propriamente “social” à questão, a partir de Paul Vidal de la
Blache. A separação entre a paysage (com sua dimensão política embutida; pays seria literalmente
o “país”, jurisdição territorial e delimitação estatal) e o milieu das populações colocaria os termos
em locais separados (BAKER, op. cit.) O debate atual estaria nos seguintes termos:
Por ora gostaria de simplesmente enfatizar que uso o termo “paisagem” para me
referir essencialmente à forma, à estrutura, à aparência, à manifestação visível
das relações entre povos e o espaço/terra que ocupam; o seu milieu (tanto
humano quanto físico), seu funcionamento e seus processos, desvinculados de
sua visibilidade e expressão material. A fusão entre “paisagem” e “ambiente”
dentro da história ambiental atual é confusa, limitando a habilidade de se
incrementar o conhecimento e explorar os dois conceitos (BAKER, 2003, p. 78).
243
Longe de ser um conceito de ampla capacidade “operacional” na pesquisa, falar em
paisagem é útil porque (na imbricação entre a materialidade do território e seus sentidos e esforços
de mobilização) torna viável a síntese destas noções e dos elementos presentes na dimensão
ambiental do território. Em outro sentido, a idéia (ou uma das possíveis idéias) de paisagem remete
a decisões de clara natureza política. A transformação da paisagem adquire, portanto, sentido
político, na medida em que se revela um processo de definição de prioridade, expressão das
relações de força historicamente formadas e, por fim, das heranças materiais inscritas no território
— espaço político construído historicamente, constrangimento e possibilidade (LIPIETZ, 1992).
Ademais, o uso corrente do conceito no debate ambiental aplicado ao planejamento urbano induz
ao enfrentamento da mesma questão, em termos semelhantes. Atualmente a discussão em torno
das chamadas “águas urbanas” versa acerca do conceito, ou da noção relativamente vaga, de
paisagem, e entabular outra discussão no mesmo campo torna esta aproximação, no mínimo,
necessária.
A transformação da paisagem (e a análise desta transformação) é útil para pensar a
modernização na Região Amazônica. A maneira pela qual ocorrem os assentamentos ditos
“ribeirinhos” na região aponta para aspectos do conflito entre as formas contemporâneas da
territorialidade nestes espaços condicionados pela água e a formação territorial regional. A lógica
de estruturação territorial dos espaços da habitação e da produção nas margens dos rios da região
mostra elementos desta realidade. Há, nestes espaços (casas, roças, trapiches, diques, barrancas
de rio, jiraus80
, vilas e cidades inteiras), diversos artefatos construídos e práticas tradicionais que
apontam para a importância histórica da localização próxima à água para seus habitantes. Na
verdade existem elementos fundamentais, constituídos historicamente, que sintetizam a lógica de
territorialização nas proximidades da água, nestes espaços, e esta lógica pode ser lida, novamente,
nas intervenções territoriais contemporâneas. Neste sentido, haveria certa continuidade das lógicas
de formação territorial tradicionais, em direção à constituição de cidades ribeirinhas na Amazônia,
ou pelo menos assim seria no caso das cidades seculares às margens de rios e lagos da região
(que são maioria, aliás). Além desta continuidade de algumas lógicas territoriais (que se
80
Espécie de plataforma suspensa, em geral executada em madeira, sobre a qual pode-se plantar, habitar, desempenhar
tarefas domésticas, guardar o gado ou armazenar objetos. Constitui uma das formas tradicionais de se produzir o território, a
articulação entre a terra e a água e solucionar o problema da necessidade de se ligar ao curso d´água ao mesmo tempo em
que se mantém a relação com a terra firme.
244
reproduzem de forma semelhante noutros locais, como na associação entre mercado, porto e
comércio urbano, por exemplo), há confronto com processos típicos da economia e da
espacialidade capitalista. Neste confronto há modificações em fenômenos produtivos, no arranjo
espacial das atividades, no padrão e nas formas de assentamento. Assim, a partir de certos tipos
de modernização nestes territórios condicionados por cursos d´água — como a formalização de
um mercado de terras, a instalação de equipamentos técnicos de circulação e fluxos econômicos
ou de infra-estruturas urbanas modernas —, surgem modificações na região e nas formas de uso
e apropriação destes citados diferenciais das terras.
O conflito, no âmbito do território e das formas sócio-econômicas de reprodução social
(que estão contempladas na dimensão territorial), não é propriamente entre as formas “antigas” e
as “novas” de territorialidade nas proximidades da água. O conflito se dá, sobretudo, na interação
entre práticas e concepções anteriormente vigentes e as novas condições do desenvolvimento
econômico na região. Isto ocorre na forma como os agentes se posicionam nas disputas por
investimentos, e na adesão às novas formulações do ordenamento territorial, que incluem
mecanismos de reconversão do caráter de diversos espaços e monitoramento/controle de outros.
As diversas formas de intervenção territorial nos espaços às proximidades da água confirmam a
especificidade desta localização e evidenciam a sua concentração, formando uma política de
controle difuso. Conforme a construção do poder político e da eminente função política do
discurso, entende-se que haja, na sociedade, formulações que são instrumentos e efetivações da
reprodução de variadas formas de desigualdade social (FOUCAULT, 2009), constituídas por
enunciados e visões de mundo já definidas em normatividades diversas, diluídas em várias ações
do discurso e, por conseguinte, da orientação de outras ações.
Este processo de transformação, de certa forma já conflituoso, é estudado neste trabalho
a partir daquelas quatro formas de intervenção territorial: os parques urbanos da economia da
cultura; os portos modernizados; a engenharia ambiental; a gestão de recursos hídricos. Algumas
avaliações de natureza técnica e conceitual podem ser feitas a respeito destas quatro formas, de
modo a extrair delas elementos que constituam uma questão de ordenamento territorial e de
245
desdobramento dos efeitos desta convergência rumo a uma política da água81
.
4.3. WATERFRONT E PARQUES URBANOS
Sobre o processo de valorização (dupla; simbólica e material, fundiária) de áreas de
interesse ambiental são representativos os parques urbanos da economia da cultura. Esta idéia, na
verdade, sintetiza vários fenômenos que estão ligados ao consumo da imagem, das visualidades,
dos signos e relacionados aos modos de vida das camadas urbanas médias. De fato, a economia
da cultura é evidência da imbricação entre a materialidade territorial e o caráter especulativo do
mercado, inclusive do mercado de terras e da agregação de valor econômico dada às mercadorias
em decorrência de suas características formais (JAMESON, 2001). A estes dois fatores devem ser
acrescidos os movimentos da economia de bens simbólicos (BOURDIEU, 1996a), não menos
influentes. Desta forma, a cidade contemporânea seria repleta de novas estruturas físicas que
lidam com esta dupla dimensão do mercado. Como assinalado anteriormente, não há qualquer
seqüência ou ordem de acontecimento que regule os eventos, posto que são, ao mesmo tempo,
materiais e simbólicos na produção da cidade.
No ponto que interessa diretamente a este trabalho, os espaços às margens dos cursos
d´água materializam estas estruturas, sobretudo, a partir de espaços de caráter público82
. Estes
espaços são, em geral, áreas de convivência, parques lineares ou antigas estruturas portuárias
reconfiguradas. A dimensão das visualidades (termo caro ao desenho urbano) e o caráter
paisagístico, aqui, é que confere os diferenciais de valor a tais espaços. Capitalizando83
sobre as
antigas cascas arquitetônicas de espaços funcionalmente esvaziados pela dinâmica econômica, a
economia da cultura é uma evidência do reposicionamento de atividades do capitalismo
81
Que poderia ser referente a outras dimensões do “ambiente” no espaço urbano, ou em outros espaços ocupados, como
ocorre com a vegetação, com o solo, com as formações montanhosas ou com a fauna. Há, de fato, imaginários e construções
sociais e históricas diversas que atestam as formulações pelas quais estes itens componentes da “natureza” são considerados
necessários à “preservação” ou úteis às sociedades humanas (SCHAMA, 1996; THOMAS, 1988).
82
Em que pese o forte questionamento acerca do nível de acesso ao público que é dado pelo seu uso concreto, efetivo.
83
Apropriamos o termo economia da cultura da discussão que Fredric Jameson (1996; 2001) faz em seus textos. A idéia
consiste, basicamente, em uma dinamização do setor de políticas culturais rumo a um tipo de “profissionalização” e a um
excepcional aumento de escala das transações, onde os papéis da imagem e da interdependência de atividades no campo das
artes e da cultura são significativos. Assim, o gosto pelo antigo revisitado, as opções de consumo diferenciado, as
sociabilidades típicas de certos grupos de profissionais liberais e os setores da economia mobilizados em função de tais
preferências assumem um papel importante nas políticas urbanas e na transformação física das cidades, incluindo os centros
urbanos.
246
contemporâneo na cidade. Há alguns anos as atividades de transporte, logística e produção
industrial baseadas em grandes plantas marcaram, por exemplo, as imediações de zonas
portuárias centrais em cidades litorâneas ocidentais, em geral (DOUMENGE, 1967; MORAES, 1999).
Hoje nota-se uma “reconversão” desta dinâmica econômica rumo a usos do terciário, relacionados
à imagem dos centros urbanos e à sutil conexão entre consumo da imaterialidade e requalificação
da estrutura física (JAMESON, 2001). O “tijolo” do peso econômico e da reconfiguração territorial
não se sustenta, portanto, senão acompanhado do “balão” da especulação imobiliária, da
produção de imagens sobre a cidade (JAMESON, op. cit.)
Por outro lado, a dimensão patrimonial (no sentido cultural do termo) associada às
antigas zonas portuárias remete justamente a esta sutileza da operação. No caso do esvaziamento
funcional das antigas cascas portuárias, as classes médias urbanas consomem especificamente
sua imagem (ZUKIN, 1991, 2000), a reminiscência (que não precisa ser pessoal, obviamente) da
atividade; a memória do porto onde ele não mais está. Tecnicamente, no entanto, não há qualquer
compromisso ou rigor metodológico nas intervenções físicas; não se restaura plenamente um
edifício de waterfront; moderniza-se, com direito a todo o apelo do inorgânico possível. Esta
conjunção entre conservação e modernização (CHOAY, 2001), contraditória, porém de inegável
mote “utilitário” (e palatável para o consumidor médio, ávido por novidade e não por lições
museológicas complexas), é que fornece o grau de homogeneização necessária para que o
“produto” atinja o padrão desejável. A zona portuária requalificada (ou revitalizada, ou ainda
reabilitada) é, assim, algo entre a experiência da simulação do passado, vivido em termos
superficiais e solváveis, e a composição de uma percepção festiva de cidade (HARVEY, 2000),
atraente ao investimento, que faz frente à dinâmica territorial de destruição/criação do capitalismo
(SMITH, 1988).
Quando Harvey (1996a, 2000) comenta o fenômeno do parque urbano à beira da água
dos anos 1960, o faz com olhos curiosos acerca da novidade em termos de política urbana e de
intervenção territorial. O waterfront se configura, praticamente, como um tipo no urbanismo
contemporâneo. Em termos físicos, trata-se do complexo de estruturas das zonas portuárias
(galpões, cais, pátio de operações, armazéns, equipamentos, vias, torres) remodelado para
receber usos turísticos e tratamento paisagístico. Freqüentemente são acionados o repertório
visual e o tratamento arquitetural típicos de exemplares feitos sob a encomenda de governos da
247
tradição dita pós-moderna. O tratamento, tecnicamente virtuoso, do desenho urbano
contemporâneo84
se esmera na produção, projeto, criação estilística e compositiva deliberada do
lugar, da propriedade histórica em camadas, da apropriação e uso (isto é, acesso coletivo e
concreto, material e simbólico, além de utilitário) do espaço urbano. O notável tratamento
arquitetural do waterfront e dos demais parques urbanos litorâneos ou à beira d´água pode ser
sintetizado nos seguintes termos:
Este impulso em direção a uma nova forma de segregação parece ubíquo [...]
Aqui está a renovação urbana em um viés sinistro, uma arquitetura da decepção
que, em sua familiaridade sorridente, se distancia crescentemente das realidades
mais fundamentais. A arquitetura desta cidade é quase que puramente semiótica,
fazendo o jogo do enxerto da significação, do edifício de parque temático. Seja
representando uma historicidade genérica ou uma modernidade genérica, este
desenho urbano é baseado nos mesmos cálculos da propaganda, na idéia de
pura imaginabilidade, ignorando as necessidades reais e as tradições dos
habitantes [...] (SORKIN, 1992, p. XIV-XV. Tradução nossa).
A relativa sofisticação e o apelo do histórico (embora se trate de um tipo particular de
História, recriada segundo uma narrativa simplificada) sintetizam um modelo efetivo de projeto,
ligado a um amplo programa de crescimento econômico e refuncionalização das cidades
litorâneas. São comuns, também, os discursos saudosistas acerca da antiga dinâmica da zona
portuária, bem como dos centros urbanos antigos que tradicionalmente abrigam os portos
seculares.
A construção da imagem de um passado relativamente idealizado e cultural e
economicamente mais próspero, portanto, tem imediata identificação com este discurso
passadista, em que o final do século XIX e o começo do século XX são revisitados como
“elegantes”, “refinados”, próprios de uma sociedade mais “gentil”. Curiosamente, os períodos
coincidem justamente com o ciclo de exploração das infra-estruturas de transporte,
telecomunicações e energia por concessionários ou empresários estrangeiros (no Brasil,
inclusive). Este também é o período em que os portos centrais que hoje conhecemos surgiram,
praticamente no mundo todo (DOUMENGE, 1967). Com eles surge um padrão tecnológico e a
consolidação de um modelo administrativo que durou boa parte do século XX — embora tenha
apresentado alterações a partir dos anos 1960. No entanto, a partir das modificações introduzidas
84
O “contemporâneo” aqui é quase óbvio; é justamente no final da década de 1950 que surge esta sub-disciplina dentro do
urbanismo, a partir de autores como o professor do MIT americano Kevin Lynch e o escocês Gordon Cullen.
248
com as telecomunicações, o fortalecimento das transações internacionais e do capital financeiro, a
atividade portuária se modifica substancialmente. Desta forma, diante da característica de
desenvolvimento desigual do capitalismo, é possível ler a reconfiguração dos portos centrais como
intimamente ligada a esta modificação85
.
Há uma relação dialética entre os dois fenômenos. A decadência das zonas portuárias
centrais é, essencialmente, um processo decorrente da própria modernização portuária. Assim, o
setor passa por um processo contraditório de destruição e desmantelamento e produz ociosidade
dentro de suas próprias atividades. A partir disto é que surgem as políticas e projetos técnicos de
reconfiguração das estruturas portuárias mais antigas. O waterfront consolida-se como modelo de
intervenção em contextos típicos de estagnação econômica, revalorização fundiária e simbólica do
território às proximidades da água e como parte do reposicionamento de atividades econômicas na
cidade, em novos setores dinâmicos da economia:
As novas estratégias de competitividade dentro do fenômeno da globalização
apoderam-se das áreas portuárias e waterfronts como os locais perfeitos para
espetáculos mediáticos (sic) ou eventos ocasionais, que também lucram com a
sua centralidade e acessibilidade. As cidades, por sua vez, incorporam essas
possibilidades como justificativa para as grandes reconversões e para alavancar
o seu planejamento estratégico, como através de exposições mundiais,
olimpíadas, feiras internacionais [...] (DEL RIO, 2001, p. 4).
Os parques urbanos do tipo waterfront guardam semelhanças com os padrões da
arquitetura comercial moderna. Deste modo, as vitrines, as superfícies metálicas e a assepsia
estética parecem ser tão recorrentes que se aproximam da configuração de uma espécie de
modelo. As transparências e os reflexos, freqüentes nestes espaços inclusive pela forma de
intervenção diante da pré-fabricação dos galpões antigos, sugerem alguma atmosfera de
refinamento e afabilidade às atividades ali desempenhadas. O porto que não está mais no local se
pode notar por referências visuais, pelo caráter museal “facilitado” das exposições, pela presença
de elementos remanescentes da operação técnica do equipamento portuário. Além destes
aspectos, Sharon Zukin (1991) destaca um par: a associação entre variadas e sintéticas
construções da “identidade étnica local” e a gastronomia. Se as zonas portuárias, oriundas da pré-
85
Na formulação de Smith (1988), baseada em teóricos marxistas, é justamente o desdobramento do caráter desigual-
combinado que ajuda a explicar a espacialidade capitalista, na reinvenção de estruturas materiais produtivas, nas formas de
apropriação da Natureza e em sua relação com a acumulação. Sem identificar regiões decadentes e prósperas como pólos, é
possível ler no território dinâmicas de esvaziamento, dominação e investimento articuladas, embora não necessariamente
“funcionais” para o sistema.
249
fabricação da virada do século XIX ao XX, são padronizadas na sua constituição original e no
posterior modelo de intervenção modernizadora, estes traços culturais não deixam de ser
diferenciais, dentro da concepção do planejamento estratégico de cidades.
Em outra abordagem, podemos falar do waterfront e demais parques urbanos próximos
às zonas portuárias como espaço público. A criação do espaço público, nestes casos, é fenômeno
de interesse, pois agrega freqüentadores a partir de interesses compartilhados; no caso, o
consumo visual (ZUKIN, 2000), genericamente falando. Não se trata, portanto, do espaço de
encontro e de troca, mas da promoção da afinidade dos consumidores, e da oferta de espaços
adequados à instalação dos novos prestadores de serviços urbanos. A dimensão pública destes
espaços, entretanto, é sempre ressaltada, e configurada como uma virtude destes parques.
Discute-se, eventualmente, seu caráter segregador, em função do perfil de consumo que os
espaços condicionam, sobretudo em países em desenvolvimento. Questiona-se, do mesmo modo,
a justificativa social para a concentração de investimentos públicos na reconfiguração destas
zonas portuárias. Em geral, a partir das concepções da parceria público-privada e da disputa pela
atratividade dos lugares (HARVEY, 1996a), a justificativa viria pelos chamados efeitos
multiplicadores da intervenção. Neste sentido, o porto revitalizado teria a capacidade de replicar
seus efeitos pelo entorno, bem como de criar uma ambiência de prosperidade e qualificação de
serviços. De certo modo, é como se aspectos da teoria dos pólos da economia regional (PERROUX,
1967) fossem reeditados dentro da nova economia. A partir da análise ligeira dos efeitos da política
de pólos econômicos como estratégia de concentração e posterior disseminação dos benefícios
do capital, considerando setores como a indústria e os serviços especializados a ela associados,
nota-se contradições no processo, sobretudo no aspecto da capacidade de distribuição do produto
no território regional (BENKO, 2002)86
. A atualização “prática” de certas concepções de pólos
econômicos regionais, mesmo para o caso europeu, já mostra contradições e tendências à
desigualdade na apropriação dos benefícios do investimento, tanto em termos sócio-econômicos
quanto territoriais/regionais.
Colocada como ferramenta magistral do planejamento urbano contemporâneo, a prática
do planejamento estratégico ocupa o contexto de reestruturação produtiva de forma francamente
86
Não é discutida a questão em termos de um setor da economia apenas. A analogia com a indústria de alta tecnologia ou os
serviços a ela associados permite, ao menos, entender a lógica e a carência de base empírica e de experiência nas afirmativas
da concentração de investimentos implicar, necessariamente, em dispersão de benefícios, por exemplo.
250
hegemônica (ASHWORTH; VOOGD, 1990). Os preceitos do planejamento estratégico, no caso,
orientam as decisões da política rumo a alocações de recursos e projetos de cunho liberalizante
(VAINER, 2000). Tais políticas são, sempre, favoráveis às dinâmicas especulativas de uso e
ocupação do solo, bem como de aumento da atratividade econômica e da lógica competitiva diante
de outros núcleos urbanos. Um papel especial é destinado ao centro da cidade, enquanto local
dotado de diferenciais excepcionais e de instalação dos requisitos da competitividade urbana
(PORTER, 1995). Assim, a instrumentalização da segregação e da concentração de investimentos é
executada através de processos de racionalização de decisões e esvaziamento político (VAINER,
2000) de demandas sociais fragmentadas e diretamente apropriadas pelas elites locais. Além
disso, têm sido comuns a ênfase no controle, a temeridade da segurança, a separação de grupos
sociais e a segregação deliberada pelo desenho urbano em projetos para a metrópole
contemporânea (SORKIN, 1992).
Em termos mais sintéticos: a intervenção territorial a que as zonas portuárias centrais são
submetidas, tornando-as waterfronts, tem o efeito de recolocar as atividades econômicas na
cidade. Divergindo do discurso recorrente das gestões locais, podemos falar em um amplo
processo de reconfiguração das economias urbanas, rumo aos setores tornados recentemente
mais dinâmicos. Esta reconfiguração coloca na ponta da economia — com subsídios estatais,
apoio técnico e divulgação idem — o terciário avançado (SASSEN, 1998), avaliado como mais
dinâmico e rentável na cidade capitalista contemporânea. Saem as “pesadas” estruturas do porto,
seus armazéns de estocagem e indústrias; entram usos articulados à economia da cultura, ao
turismo de massa, à publicidade, às assessorias jurídicas, contábeis e financeiras, à produção de
mídias diversas. Nestes termos, trata-se antes de uma série de operações de “ajuste” das
economias urbanas, de reposicionamento das formas de acumulação na cidade e, portanto, de
afirmação de novos blocos de elites locais. Antes de ser um pretenso projeto de soerguimento
econômico e bem-estar, o modelo de intervenção do waterfront vem atuar sobre as ociosidades
destrutivas e ritualmente produzidas no interior do modo de produção vigente, a partir da
territorialidade urbana. Em termos das formas de abordagem do território urbano nas proximidades
da água, o waterfront, e seus correlatos, são um caso de tratamento da água na cidade enquanto
paisagem, na escolha do enquadramento, pelas opções dos itens a constar (CAUQUELIN, 2007), e
pelas implicações sócio-econômicas e políticas destas opções.
251
4.4. MODERNIZAÇÃO PORTUÁRIA
Os portos são estruturas urbanas importantes para o entendimento da economia das
cidades contemporâneas; permanecem sendo, como apontado anteriormente, relevantes modais
na logística das exportações mundiais (SASSEN, 1998). Os portos também representam fatores de
um particular processo de modernização, incluindo também certas formas de uso e apropriação do
ambiente; em nosso caso, do território às proximidades, condicionado, sob a influência de cursos
d´água. Na História mais recente, do século XX, a tecnologia e a funções portuárias estiveram,
basicamente, ligadas ao fluxo de cargas, ao papel de ponto de escala e apoio em rotas marítimas
longas, a atividades de coleta e distribuição relativas ao hinterland ou a complexos produtivos de
beneficiamento e escoamento; os chamados portos-relés (DOUMENGE, 1967). Doumenge (op. cit.),
aliás, pontua que a dinamização do setor portuário no mundo impacta mais significativamente nas
zonas portuárias de caráter monofuncional. Isto se dá pela maior exposição às mudanças no setor
e no comércio mundial, sujeitando os portos a perdas de importância mais sérias e objetivas,
decorrentes de tais mudanças.
Como evidência do impacto que as transformações no setor portuário acarretam é que
surge a noção de “esvaziamento funcional” dos portos centrais. Este processo, no entanto, não é
apenas funcional; diz respeito ao modelo de planejamento e de gestão das estruturas portuárias, o
que tem óbvias conseqüências no território e na economia. Os portos centrais, assim, são
qualificados como decadentes, obsoletos, ociosos ou subutilizados.
A crise do setor portuário, porém, não é algo tão objetivo. Tampouco se apresenta como
um problema consensual; se fosse, não resultaria em tamanho conflito. Representa um movimento
rápido, uma dinâmica de transformação territorial, estrutural no capitalismo (SMITH, 1988). Assim,
os portos são tornados obsoletos porque o padrão de tráfego de cargas (principal função destas
estruturas, no modelo atual) muda, e porque, sobretudo, muda a relação das economias com a
própria atividade de exportação e geração de ativos. A logística assume um caráter diferenciado na
economia mais contemporânea pela relativização do tempo e do espaço (HARVEY, 2000), ou
melhor, pela mudança de seus impedimentos, tornados menos restritivos do que outrora. Sassen
(1998), por exemplo, localiza a economia mundial a partir dos anos 1980 como um panorama de
crescente predominância do capital financeiro e de seus fluxos e investimentos, com rebatimento
espacial na concentração de centros de decisão, comando e controle. Neste sentido, é também
252
afirmada a participação das economias de exportação e do chamado terciário avançado, com bens
e serviços de apoio a esta nova dinâmica. Tais setores, o terciário e o financeiro, lograram
inclusive obter rentabilidades comparativamente maiores àquelas dos setores produtivos (SASSEN,
op. cit.) “clássicos” da economia, como a agricultura e a indústria. Há uma permanência das
estruturas portuárias como pontas de escoamento, seleção e processamento (na escala regional)
do setor produtivo de países avançados (idem, op. cit.) A exportação mundial se dá
majoritariamente pelos portos (MORAES, 1999; SASSEN, op. cit.), e a maior parte das plantas
industriais mundiais está situada em faixas litorâneas, áreas sob a influência da dinâmica territorial
e econômica do mar (MORAES, op. cit.), onde a propósito estariam cerca de dois terços da
população mundial, com a inclusão de territórios estuarinos e ribeirinhos87
(idem, op. cit.) Este
padrão se estende aos chamados países em desenvolvimento; difundido, no mínimo, pelos
critérios de competitividade.
De forma análoga, nota-se atualmente uma concentração de prestadores de serviços
logísticos na operação das principais rotas portuárias do mundo (BAUDOUIN, 2003). Tais
operadores, que dominam os fluxos de cargas “conteinerizadas” no mundo, são inclusive agentes
de grande influência na criação de um novo painel dos fluxos portuários. Neste novo contexto
surgem estruturas portuárias sem tradição anterior no comércio mundial, atreladas a estes agentes
hegemônicos — os “integradores”, no jargão do setor (BAUDOUIN, op. cit.) Esta concentração do
aspecto operacional dos portos, aliada à mudança de perfil, nos permite enriquecer o contexto de
modernização portuária em maiores detalhes. Há um novo perfil de tais estruturas se tornando
dominante, em paralelo à relativa perda de importância dos complexos produtivos indústria-porto
(idem, op. cit.) Na verdade parece existir uma crescente integração dos fluxos de mercadorias pela
via portuária, e esta integração evidencia a formação de uma rede de circulação (idem, ibidem),
distribuição e de transações comerciais que se torna mais eficiente, reduzindo as “fricções” do
deslocamento.
87
De fato, e é até um clichê a exibição da famosa foto do mundo à noite (ver Ilustração 66), com suas luzes marcando as
regiões mais populosas e, portanto, urbanizadas do planeta. Em todo caso, dado o corte da pesquisa, faz-se necessária a
exibição do material, no mínimo para engrossar as fileiras do uso da imagem em questão.
253
Ilustração 66 A célebre imagem da NASA, agência espacial norte-americana, atesta a concentração territorial nas
proximidades do mar, nas costas litorâneas dos continentes, através do mapeamento das luzes das cidades. Fonte:
NASA (2000).
A concentração das atividades de ponta nos principais portos é também acompanhada da
crescente implantação de novos padrões tecnológicos e administrativos. Estes padrões se
estendem, progressivamente, às zonas portuárias tradicionais, mas também às mais recentes. A
questão é a formação de um quadro verdadeiramente integrado, mundial, no setor. Assim, os
requisitos de “competitividade” e inovação se tornaram atributos capazes de excluir uma zona
portuária da movimentação mais representativa e interessante, isto é, de maior volume, maior
rentabilidade e apuro técnico.
A varredura que os portos centrais sofreram a partir das ações de modernização é
significativa, provocando alterações para o acompanhamento do novo modelo, mas também
ocasionando processos de decadência e redução de movimentação. Isto é curioso, uma vez que a
própria concepção do porto central (hoje “obsoleta”) já representava um avanço; em geral
dispensava os sítios abrigados das correntes marítimas, lidando com as contenções dos diques e
a profundidade das águas de forma mais adaptável e flexível (DOUMENGE, 1967). A mudança no
padrão tecnológico e de gestão das zonas portuárias impactou na exigência de transformação dos
sítios portuários mundiais, rapidamente submetidos a uma nova lógica de competitividade,
254
viabilidade técnica e econômica. Isto ocorreu a partir da introdução maciça do contêiner como
invólucro de cargas, sobretudo nos anos 1960 (DOUMENGE, op. cit.) Desta forma, os portos centrais
(oriundos de outra temporalidade, não apenas dependente do desempenho tecnológico, mas
também das dinâmicas econômicas) tornam-se inadequados às demandas contemporâneas.
Exige-se de um porto moderno adequação a novas rentabilidades, às reduções de tempo de
deslocamento, a maior profundidade de águas e capacidade de operação, rotatividade e volume de
tráfego e carga (BAUDOUIN, 1999). Freqüentemente, portanto, novas estruturas portuárias são
criadas a pelo menos algumas dezenas de quilômetros de distância dos antigos portos centrais,
em águas mais profundas e sítios físicos menos ocupados, mais extensos e liberados (DOUMENGE,
op. cit.)
O novo padrão, associado às respectivas tecnologias e equipamentos, é atualmente
chamado de hub port (BAUDOUIN, 1999). Sua configuração também representa uma concepção de
logística que freqüentemente ignora dinâmicas sócio-econômicas e territoriais vigentes em seu
entorno, estabelecendo uma relação essencialmente instrumental, racionalizada e pragmática com
o território e, conseqüentemente, suas populações. A importância da instalação destas infra-
estruturas e equipamentos, portanto, residiria na qualificação do território e suas economias, na
habilitação para entrada no circuito mais amplo de fluxos de mercadorias, bens e serviços
(BAUDOUIN, op. cit.) — uma vez que os portos modernizados contêm uma série de mecanismos de
coordenação totalmente articulados à produção industrial, à montagem de produtos ou à
distribuição aos mercados consumidores. Em suma, trata-se da instalação de critérios de nítido
rebatimento territorial, baseados na modernização e em relativa liberalização de relações — uma
vez que alguns dos subsídios antigos são mantidos ou, às vezes, reinventados. Desta forma, a
difusão de modelos e a criação de condições cada vez mais “mundializadas” de “competitividade”
e “atratividade” (BRENNER; THEODORE, 2002) criam, de fato, um ambiente de políticas urbanas e
intervenções territoriais tendencialmente convergentes (HARVEY, 1996a). As zonas portuárias
modernizadas, portanto, são aquelas que seguem o novo modelo. A modernização portuária seria
um processo de reconfiguração territorial ligado ao reforço dos corredores logísticos segundo uma
concepção mundializada. Ao mesmo tempo, evidencia certa desconexão com fenômenos e
estruturas materiais concretas instaladas nos territórios e imediações das zonas portuárias. A
lógica, essencialmente, é a do atendimento aos fluxos e demandas da economia mundializada; da
255
extrapolação de escalas territoriais e projetos sociais de desenvolvimento de economias regionais
e locais.
Não necessariamente concernente ao impacto que a transformação do setor acarreta aos
antigos portos centrais, o processo de modernização portuária se coloca como vetor de um
desenvolvimento econômico e territorial do capitalismo, sobretudo. Exigências de eficiência
(BRENNER; THEODORE, 2002) e modernização são postas no território, portanto, decorrentes das
práticas e necessidades de agentes capazes de reconfigurá-lo, ao menos a partir de suas
estruturas de fluxos e conexões. O porto modernizado é uma estrutura de passagem, de fluxo, e de
um processo de acumulação que se dá, com freqüência, em trânsito, e espacialmente baseado em
outras localizações. O porto modernizado, assim, passaria ao largo da “região”, da dinâmica
sócio-territorial mais concreta, em termos de sua apropriação extensiva e internalização de
inovações e rentabilidades, de certa forma. Sua lógica, portanto, é outra.
Paul Virilio (1993) situava a estrutura aeroportuária como “última porta do Estado” (p. 8),
local onde mecanismos de controle, policiamento, racionalização e transporte eram hoje
indissociáveis. Localizava, também, as antigas estruturas (como o porto) como elementos
reguladores mais antigos das trocas. Em todo caso, é possível afirmar uma recolocação do porto
modernizado como estrutura de controle. Os portos modernizados dinâmicos são os locais da
concentração do fluxo de mercadorias e bens e, portanto, de um tipo de acumulação decorrente da
atividade de exportação e do comércio internacional. Isto inclui a concentração dos prestadores de
serviços associados ao porto — atualmente menos numerosos, mais próximos de situações
monopolistas e de um padrão tecnológico e administrativo homogêneo e mundializado (BAUDOUIN,
2003). Concentram-se também, obviamente, os ganhos, isto é, a rentabilidade e a capacidade de
desenvolvimento a partir da operação das zonas portuárias e de seu caráter de plataforma de
projeção de fluxos materiais contemporâneos. Por outro lado, persistem as dinâmicas locais de
impactos ambientais (as tais “externalidades negativas” destas estruturas, “internalizadas” e
materializadas no sítio portuário) do porto modernizado, bem como suas novas exigências
territoriais e de gestão. Ao correlacionar este contexto com a clara assimetria entre os produtos
internos das regiões e países, suas rentabilidades e graus de especialização da produção, nota-se
uma evidência da “hierarquia” entre portos, entre canais de entrada e saída e, portanto, entre graus
256
variados de capacidade de desenvolvimento regional, em escala mais ampla88
.
Além disso, o contexto da modernização portuária, efetivamente mundializado atualmente,
revela aspectos da contemporânea transformação da experiência e da instrumentalização do
espaço e do tempo. São notórios os cálculos da logística moderna e sua capacidade de aferir
quase que relativisticamente os fluxos de carga, por exemplo. Da mesma forma, as
telecomunicações configuram uma realidade em que a projeção, a virtualidade e sobretudo os
métodos indiretos de registro e apreensão da realidade é que dominam (VIRILIO, 1993). Parte da
“eficiência” contemporânea da modernização portuária é dada pela modificação na administração
(tornada “gestão”) dos portos; pela sua nova capacidade de organizar, programar e gerenciar
fluxos, burocracias, pesos e medidas, tarifas e também por lidar com a operação portuária face à
estrutura física específica de cada porto; seu sítio, a profundidade de suas águas, a extensão do
cais, o eventual número de píeres, etc. (BAUDOUIN, 2003).
Assim, o porto é, ao mesmo tempo, uma estrutura de racionalização do território próximo
à água e uma evidência do caráter relativo que as temporalidades e espacialidades adquiriram,
hoje. Representa uma das formas de controle do acesso, do uso e da apropriação da faixa de terra
em contato e sob a influência da água, a partir da operação de suas estruturas técnicas e de sua
forma de gerenciamento. Isto repercute em graus representativos na territorialização do
capitalismo: nas formas do comércio mundial, da exportação e das telecomunicações, além de
reafirmar aspectos geopolíticos e sócio-econômicos da estratificação dos territórios
contemporâneos e de suas atuais relações de poder. Os portos modernizados conduzem, em rede,
uma série de fluxos — materiais e imateriais, segundo Baudouin (2003) — que se territorializam
segundo uma lógica de concentração de poder econômico e político, difundindo padrões e
impactando nas atividades e formas de uso e apropriação do ambiente — no caso, dos territórios
próximos à água.
A figura territorial que lemos aqui como intervenção, associada ao porto, é uma estrutura
urbana de grande importância para a o estudo das relações entre cidade e seus cursos d´água. O
88
Indiretamente este aspecto é discutido em Baudouin (2003) e mesmo, em outros termos, em Doumenge (1967). Há nos
portos cargas mais “nobres”, estruturas portuárias mais eficientes e fluxos preferenciais. Da mesma forma, há sítios portuários
de configurações variadas e formas de apropriação diversas do grau de eficiência destas estruturas portuárias. No entanto,
localmente, persistem alguns passivos ambientais (devido a atividades de manutenção) e a concentração dos diferenciais do
território, por agentes do setor, economias nacionais ou ainda pela apropriação externa das redes portuárias, ligadas entre si,
que atendem ao eficiente padrão de concentração de controle do fluxo.
257
porto é, eminentemente, uma estrutura urbana de conexão; seu espaço freqüentemente também
avança sobre a plataforma marítima, reproduzindo antigos efeitos de extensão sobre as águas,
como na produção de aterros e acrescidos em geral. Sendo uma forma de intervenção territorial de
transportes, e intimamente relacionada aos fluxos, o porto tem representatividade para que se
pense a idéia de zona de interface entre cidade e água. O porto pode ser entendido, nesta
discussão, como uma fronteira em que a abordagem da água na cidade é técnica. Esta água
“técnica” dos portos é tratada, neste aspecto, como veículo; é um meio e uma forma relativamente
racionalizada de escoamento, de operação de fluxos. Os portos, assim, representam a dimensão
da água enquanto veículo. Embora o porto não esteja ali destituído de sua dimensão paisagística (a
ser apropriada em caso de projetos culturais futuros, por exemplo) ou ambiental (já que os
programas de gestão ambiental são exigência), a forma de apropriação da água é
predominantemente instrumental, associando fator de produção e movimento, em detrimento de
abordagens que privilegiam as propriedades físico-químicas, por exemplo, ou as possibilidades
imagéticas.
4.5. URBANISMO ECOLÓGICO E ENGENHARIA AMBIENTAL
A reorientação de técnicas de urbanização e infra-estrutura baseadas no baixo impacto
ambiental, na degradabilidade de materiais e na observância da dinâmica ecológica local é o que
caracteriza o urbanismo ecológico e a engenharia ambiental. Além disso, existe a busca de certa
“sustentabilidade” através do desempenho do espaço construído. Esta sustentabilidade, como é
próprio do termo e das várias noções que carrega (ACSELRAD, 2001), é múltipla e freqüentemente
assistemática. Pode trafegar entre o aproveitamento paisagístico e as visualidades do espaço
urbano às proximidades dos cursos d´água, bem como dizer respeito às infra-estruturas e à água
como recurso natural ou insumo produtivo. O desenvolvimento de técnicas de baixo impacto
pretende dar, à Engenharia e ao Urbanismo, instrumental para intervenções físico-ambientais nos
marcos de algumas dessas acepções da sustentabilidade — isto é, a aspectos respeitosos a
determinados princípios de caráter ambiental da reconfiguração territorial. É assim que,
emblematicamente, rios outrora canalizados — pelo padrão racionalista, qualificado como
“mineralista” (MELLO, 2004) vigente até pelo menos os anos 1970 — são hoje “destampados”,
258
desobstruídos, recolocados na paisagem urbana — em termos correntes, “devolvidos” às
respectivas cidades. Da mesma forma, sistemas de saneamento ambiental89
contemporâneos
devem trabalhar a redução do desperdício, a noção de “escassez” dos “recursos hídricos” e a
desigualdade no acesso à água de qualidade (UNESCO, 2003), considerados problemas
especialmente graves nos países pobres.
Muda, já na concepção, o padrão de escoamento das chamadas “águas urbanas”,
sobretudo em projetos de associação entre drenagem urbana, paisagismo e recuperação de
fundos de vale, ou similares. A mudança de concepção das infra-estruturas de saneamento básico,
ou ambiental, assinala a incorporação de um entendimento ampliado da questão ambiental na
cidade, mas também implica na revisão de alguns antigos pressupostos das ditas engenharias
urbanas. Embora esta mudança de padrão diga respeito, principalmente, aos projetos diretamente
relacionados à drenagem urbana, há articulação freqüente com o paisagismo urbano e demais
tecnologias de recuperação ambiental. A engenharia decorrente de uma abordagem informada pela
ecologia, por exemplo, acaba construindo um sub-campo disciplinar que revisita antigas soluções
tradicionais e as adequa a técnicas controladas e de uso corrente.
Sobre o aspecto da drenagem, isto é, do escoamento, do direcionamento e da destinação
final das águas na cidade, a questão da mudança de concepção é, portanto, mais notória. A idéia
de que se pode reter as águas da cidade, se não é nova, é reeditada em novos marcos. Os padrões
técnicos até então vigentes, orientados por macro-concepções de racionalização, modelagem e
geometrização nas soluções, recomendavam alguma “aversão” a estas águas. A tendência geral
era, portanto, a de expulsão, de aceleração e acentuação da vazão até a foz dos cursos d´água
(BUENO, 2005). Para isto usava-se a impermeabilização e a retificação geométrica do traçado dos
cursos d´água. Estes cursos d´água se mostravam como, predominantemente, estruturas de
caráter técnico; eram canais de drenagem de um sistema de macrodrenagem urbana. Seus
taludes, em geral especificados no Brasil em concreto armado impermeabilizado, eram destinados
a comportar determinados volumes de águas que ainda não eram, nos anos 1970, por exemplo, as
mesmas “águas urbanas” de que se fala nos dias atuais. Os traçados retificados eram,
obviamente, resultado de um programa e de um projeto de racionalização da geometria da cidade e
do próprio bairro, atendendo também à diretriz de aceleração da vazão. Araujo, Almeida e Guerra
89
Campo disciplinar onde a incorporação do termo “ambiental”, recém-adquirido, é elucidativa.
259
(2008), em estudo de natureza técnica e conceitual relativamente aplicado ao caso brasileiro,
pontuam (baseados em outros autores) que a ocupação urbana de bacias hidrográficas, com o rio
principal formador da bacia inserido na malha, costuma acarretar algumas das seguintes
conseqüências:
Elevação do chamado pico de descarga, relação entre vazão e impacto físico da
enxurrada, em geral em tempos de chuva e marés de cotas elevadas;
Aumento do escoamento superficial de águas, em comparação com o período pré-
impermeabilização do solo;
Redução de tempo de deslocamento das águas até os canais de drenagem, acentuado
com a impermeabilização do solo urbano;
Aumento da freqüência e intensidade de alagamentos;
Redução de fluxo em cursos d´água na estação seca devido à baixa infiltração do solo;
Aumento do escoamento superficial geral (runoffs), como resultado final da
impermeabilização do solo, redução de fricção e desníveis, redução de percolação e
infiltração de solo urbanizado e geometrização de traçado de cursos d´água urbanos.
Estes fatores, embora pareçam excessivamente técnicos, acabaram fundamentando uma
outra compreensão da dinâmica hidrológica na cidade, o que é acompanhada de modificações em
outros campos do próprio saneamento (os resíduos sólidos, a água, o esgoto, por exemplo) e do
urbanismo (os propósitos finais do paisagismo urbano, o desenho das parcelas, os índices
urbanísticos gerais). Tais pontos, embora aqui constem resumidos, demarcam uma linha
conceitual divisória na compreensão do ambiente urbano.
Um marco fundamental a ser citado é a contribuição do escocês Ian L. McHarg (1971).
Associada principalmente ao paisagismo, a revisão “ecológica” que o autor opera sobre o desenho
urbano e sobre o que viria a ser chamado depois de desenho da paisagem é emblemática. Nesta
formulação o autor associa elementos aplicados da ecologia a técnicas e avaliações tradicionais
no campo da arquitetura e demais soluções construtivas tradicionais, vernaculares. Deste modo,
torna-se possível avaliar, por exemplo, quais os padrões de edificação e assentamento
ambientalmente mais adequados e de menor impacto em áreas litorâneas, ou como tratar aspectos
do parcelamento do solo a partir da análise da bacia hidrográfica (MCHARG, 1971). As técnicas
recuperadas, aplicadas e sugeridas por McHarg (op. cit.) estendem-se a outros campos do
260
ambiente urbano e regional, como a vegetação, as rochas e a qualidade do solo ou do ar. No
aspecto da relação entre as águas e o território ocupado, entretanto, a contribuição do autor é
particularmente relevante (além do tema da vegetação, obviamente), e resgata antigas estratégias
de contenção de margens exibidas a potenciais de erosão ou outros impactos. A construção
conceitual de McHarg (1971) também aponta as estratégias de atenuação do impacto das
correntes de água na cidade, pensando em casos de sinuosidade do traçado dos cursos d´água,
por exemplo. Além destes aspectos, o autor ponta as características ambientais necessárias ao
entendimento geral do regime hidrológico no interior de bacias hidrográficas de escala urbana, bem
como da edificação em áreas litorâneas, de duna (MCHARG, 1971). Nestes tópicos pode ser
entendida a contribuição do autor para as “engenharias ambientais” em geral, como assinalado por
Mello (2004), por exemplo, e, portanto, para as novas soluções técnicas atualizadas a partir da
mudança de paradigma destas engenharias, pelo menos em parte. A alteração da abordagem
acerca do tratamento de certas dinâmicas ambientais na cidade, e especificamente no campo da
engenharia (no caso, das soluções aplicadas aos artefatos e sistemas de infra-estrutura), assinala
o marco conceitual e histórico pelo qual são operadas mudanças no tratamento de cursos d´água
urbanos.
Esta mudança de abordagem ocorre de formas variadas. Um primeiro ponto a ser
ressaltado novamente é o da revisão do padrão de projeto para os sistemas de drenagem urbana.
A estes sistemas “revisitados” (posto que são, ao mesmo tempo, modernizados e tributários de
antigas e tradicionais soluções), são correspondentes principalmente as intervenções em cursos
d´água urbanos, os chamados rios urbanos. Estes rios correspondem, de certo modo, aos antigos
canais de drenagem. Mudando a acepção do termo, denotamos a mudança, também, da forma de
tratamento do elemento ambiental. Sua função, portanto, muda; um rio urbano tem, teoricamente,
mais apelo paisagístico, maior diversidade de usos no entorno e uma outra função ambiental na
cidade. Os canais de drenagem, anteriores, tinham função eminentemente técnica, e suas águas
“técnicas” diziam respeito à lógica tradicional da expulsão, do escoamento imediato, das águas —
em um momento histórico em que estas não haviam recebido a adjetivação de “urbanas”,
portanto.
Entre o rio urbano e o canal de drenagem há diferenças de configuração. Pensando na
revisão do padrão de drenagem, e em conformidade com os exemplos já descritos neste trabalho,
261
há certa reversão dos revestimentos e da impermeabilização quase generalizada dos taludes
destes cursos d´água, que eram próprios dos canais. Seus leitos, revistos, são pensados para a
absorção parcial das águas pluviais na cidade, entendendo as redes técnicas de infra-estrutura
como passíveis de saturação; o rio urbano, portanto, faria parte de uma cidade que não mais
racionaliza e direciona suas águas pela antiga forma projetada, mas a partir de uma nova
inteligência que a conduz conforme a lógica que a hidrologia renovada preconiza. Esta mudança de
“filosofia”, ambientalmente mais compreensiva, se estende aos demais sistemas correlatos e aos
espaços próximos, como as áreas públicas de entorno dos rios/canais, ou os parcelamentos
urbanos vizinhos. Esta é uma contribuição óbvia da mudança de concepção que podemos, por
exemplo, remontar a McHarg (1971) e suas soluções ecológicas baseadas nas estratégias
“compreensivas” de desenho da paisagem.
Enquanto os antigos canais de drenagem são impermeabilizados e de geometria
retificada, os atuais rios urbanos são pensados para a infiltração parcial das águas no solo, e para
um escoamento das águas feito em traçado sinuoso. A ocupação do entorno dos antigos canais,
freqüentemente, é própria dos chamados “usos pesados” ou “sujos”. Após as intervenções
ambientalmente compreensivas, estes cursos d´água, além de mudarem de denominação
tornando-se rios urbanos, recebem usos de amenidades e consumo urbano diferenciado, além de
parques urbanos do tipo linear. Obviamente a função de drenagem é preservada, mas é também
conciliada com a mudança de uso destes cursos d´água, com novas potencialidades e atributos
que lhes são postos a partir das transformações sócio-econômicas e territoriais recentes.
A classificação de usos e de padrões de uso — isto é, de níveis, variáveis em escala,
volume de investimento, capacidade produtiva e/ou impacto ambiental — estabelece,
indiretamente, alguns juízos. A política estadual de gestão de recursos hídricos, em
correspondência com a política nacional, assume esta classificação; sua atribuição é de regular
qualquer interferência no regime hídrico de uma bacia hidrográfica, ou que extrapole o limite estrito
desta bacia (SEMA, 2009). São, assim, listados usos do solo, atividades produtivas e escalas de
aproveitamento da água no território; isto configuraria volume de dados razoáveis para avaliação
do problema e, portanto, para sua gestão. Algumas categorias são submetidas a maior conjunto de
restrições.
Com os cursos d´água urbanos ocorre processo semelhante. Embora seja razoável dizer,
262
tomando por um exemplo, que uma atividade industrial geradora de efluentes com potencial tóxico
não possa ser equiparada ao uso residencial de pequeno porte, trata-se de problema diferente,
específico. Os cursos d´água urbanos, sobretudo no par em transformação canal/rio, assumem a
classificação entre usos “leves” e “pesados”, ou “sujos” e “limpos”, de modo que determinadas
atividades e suas escalas são objeto de maior veto do que outras. Como no exemplo ilustrado
anteriormente, não se trata de forjar equivalência entre fatos distintos. A questão seria a do
deslocamento, da mudança de sentido das propriedades e atributos do ambiente no território — no
caso, na cidade. Os usos e escalas que outrora foram produtivos na cidade, e em sua porção
central, como certos tipos de indústria, de manufatura, de entreposto, passam a ser qualificados
nas categorias menos nobres da classificação da engenharia ou de sua correspondente política
ambiental. Em certa medida, o inverso é verdadeiro; usos ligados ao chamado terciário avançado
(SASSEN, 1998) ou ao comércio urbano distinto (cafés, galerias, similares) ganham preponderância
na implantação. Os entornos destes locais, assim, tendem a um nível evidente de reconfiguração;
sua nova atribuição de usos ambientalmente adequados operaria uma transformação que,
associada à intenção de melhoria sócio-ambiental, traz a marca das novas soluções hegemônicas
para as tecnologias ambientais urbanas. Enquanto a indústria de transformação poluente e demais
usos “pesados” estavam situados e dependentes, no sentido espacial, da malha urbana e da
proximidade com seus cursos d´água, havia tendência à aglomeração destas atividades menos
nobres em torno dos canais. Em um momento posterior, com outras exigências técnicas,
funcionais e gerenciais de certas atividades produtivas urbanas, a migração espacial dos
chamados usos “pesados” dá lugar a outros usos, “leves” e contemporaneamente tratados como
mais desejáveis na localização urbana, sobretudo na proximidade de áreas densas ou centrais.
Esta não é uma questão de determinismo ou mecanicismo, vinculando economia urbana e
transformações territoriais, mas apenas de dedução; há correspondência entre processos. Isto,
entretanto, não coloca os termos em uma seqüência, ordenados; não há anterioridade do fator
econômico-espacial, por exemplo, sobre a mudança territorial concreta. Há, por outro lado, uma
dinâmica própria da espacialidade capitalista, na criação de pólos e multiplicidade de usos e
conjunturas, onde certas localizações são ativadas e outras entram em dinâmicas de
obsolescência, por assim dizer (SMITH, 1988). Nesta mudança de abordagem das chamadas
“águas urbanas” (onde o termo marca o surgimento da noção), mudam os usos urbanos
263
instalados ao longo dos cursos d´água.
Ilustração 67 Imagem da Praça Cheonggye, em Seul, Coréia do Sul. Ponto inicial do córrego Cheonggyecheon,
restaurado, notório projeto de desenvolvimento urbano com descanalização e re-exposição da superfície da lâmina
d´água. Fonte: Seul (2009).
Um exemplo que serve de referência conceitual e fundamento, por seu nível de realização,
é o da Coréia do Sul. No país houve a descanalização do córrego Cheonggyecheon (ver Ilustração
67), um curso d´água que atravessa a capital do país, Seul, e tem cerca de onze quilômetros de
extensão (SEUL, 2009). A intervenção era ambiciosa, pois converteu seis quilômetros do córrego
em um parque linear de oito quilômetros de extensão total, com 800 metros de largura média e
400 hectares de área cruzando a cidade. O antigo córrego Cheonggyecheon, um pequeno e
emblemático rio sazonal da cidade, fora canalizado e impermeabilizado por uma intervenção viária
de grande porte, com a construção de alças viárias em seis níveis, com quilômetros de extensão
(Idem, op. cit.) A intervenção durou dois anos, entre 2003 e 2005 (Idem, op. cit.) A substituição de
usos, de padrões, e os discursos sobre seus resultados são evidentes: material de divulgação e
avaliação do Governo Metropolitano de Seul cita a recuperação do “coração da cidade” na
264
intervenção (SEUL, 2009). É citada declaração de técnico da área de planejamento urbano da
cidade, sobre o tráfego — afinal, as vias expressas foram removidas do local, parcialmente
compensadas com redução de velocidade e aumento de volume de tráfego em túneis lindeiros,
subterrâneos: diz-se que os mais relevantes itens na cidade seriam, segundo pesquisa, o ambiente
e sua água (SEUL, op. cit.) Assim, a vida teoricamente “mais lenta” da cidade após a
descanalização do rio teria sido compensada pelo ganho paisagístico, a recuperação da memória
topológica de quando havia um rio de registro secular cortando a cidade, a redução das
temperaturas médias no centro urbano no verão, bem como pela aceleração das correntes de ar no
local (Idem, op. cit.)
Ilustração 68 Imagem de queda d´água no córrego Cheonggyecheon, Seul, Coréia do Sul. O espetáculo urbano das
revitalizações é relacionado à recuperação ambiental. Fonte: Seul (2009).
Ilustração 69 Uma das pontes do córrego Cheonggyecheon, em Seul, Coréia do Sul. Fonte: Seul (2009).
265
Ilustração 70 Duas pontes em construção, sobre o córrego Cheonggyecheon, em Seul, em 2004, à época das obras.
Notar o leito ainda ensecado. Fonte: Seul (2009).
Para a prevenção de enchentes (como se disse, o aspecto técnico da drenagem não é
excluído dos projetos), escavou-se o leito ensecado em cerca de 2,0 a 2,5 metros de
profundidade, em média, e injetou-se predominantemente águas subterrâneas para que a
profundidade da lâmina d´água tivesse, pelo menos, 30 centímetros; daí a denominação córrego.
A intervenção exige, diariamente, a circulação de 93,7 milhões de litros de água, o que expõe de
certo modo a natureza “parcialmente” ambiental do empreendimento, e limitações de projetos
desta concepção. Este fator é absolutamente comum em projetos desta ordem, sempre
acompanhados de artefatos e soluções técnicas de emulação dos processos físico-ambientais,
como historicamente foi registrado na Europa moderna, há séculos (THOMAS, 1988).
Outra questão a pontuar teria uma característica de fundo. Na engenharia ambiental, no
que tange à abordagem das águas na cidade, há uma inflexão paradigmática. Esta inflexão diz
respeito a certa “ambientalização” generalizada das técnicas de intervenção sobre o território, no
caso, a engenharia em geral. No conjunto das intervenções territoriais do urbanismo e do
paisagismo contemporâneos, sobretudo em projetos de desenvolvimento econômico, a dimensão
ambiental entra como diferencial. Nas concepções empresariais da criação de formas variadas do
“produto” cidade (ASHWORTH; VOOGD, 1990), a imagem de uma cidade verde (CAMPBELL, 1996)
266
equivale a um selo, a uma construção onde o apelo de itens genéricos como “qualidade de vida”,
“sustentabilidade” ou “transportes limpos” são relevantes. Devemos lembrar que, no mercado de
cidades reconfiguradas para fins de inserção em padrões da nova economia mundial, ocorre
crescente familiarização e uma aproximação entre as características dos centros urbanos. Assim,
a dimensão “verde” funcionaria, até certo ponto, como especificidade, como um dos recursos de
diferenciação possível entre cidades que se parecem progressivamente, por buscarem
essencialmente as mesmas características, paradoxalmente tidas como diferenciais.
A idéia de uma “cidade sustentável” é, portanto, contemporânea, e tenta produzir, ainda
que de várias maneiras, aplicações de diversas das noções existentes de “sustentabilidade” ao
espaço e sobretudo ao planejamento urbano (EMELIANOFF, 2003). Formas diversas de regulação do
espaço público, de criação e produção de novos espaços ligados aos elementos usuais do
ambiente urbano (a vegetação, as águas, o solo, as pedras) são acionadas para a criação de
versões da cidade ecologicamente equilibrada, ou racional do ponto de vista econômico e social,
ou ainda culturalmente apropriada à diversidade e às formas de baixo impacto atualmente viáveis
de se praticar. As Agendas 21 passaram a ser replicadas e adaptadas a diversas cidades européias
nos anos 1990 e 2000, por exemplo, e representaram, ao mesmo tempo, projetos de
reconfiguração territorial e extensões das propostas de aumento da visibilidade comercial e
econômica de seus núcleos urbanos.
De certo modo, de todo grande projeto de intervenção territorial, atualmente, é exigido o
cumprimento de alguma dimensão ligada à “ecologia” ou a abordagens ambientais diversas e,
portanto, à extensão de posturas conseqüentes diante da dimensão ambiental que é posta na
cidade. Assim, as diversas propostas de cidades sustentáveis européias, por exemplo, podem
conciliar bairros com intervenções de natureza histórico-cultural, reciclando o parque imobiliário
existente, ou implantar formas de reciclagem e reuso de resíduos, ou ainda estabelecer sistemas
de infra-estrutura de menor consumo energético e redução da taxa de motorização dos modais de
transportes (EMELIANOFF, 2003). Em todos estes casos a aplicação de noções ambientais flutua do
mesmo como oscilam as próprias concepções de sustentabilidade vigentes, disputando espaço
num debate técnico e político sobre a legitimidade (ACSELRAD, 2001) dos vários projetos de cidade
em questão.
É deste modo que a produção de edifícios, hoje, sobretudo em casos de grandes
267
equipamentos culturais e/ou institucionais, quase sempre apresenta alguma referência explícita à
aplicação dos saberes ambientais em seu projeto ou execução. Do mesmo modo ocorre com as
intervenções urbanísticas; pensadas para instalar principalmente os novos usos da economia
urbana e as suas novas amenidades, tais espaços exibem conjunto significativo de exemplos da
aplicação do reuso de água, do reaproveitamento de materiais, da redução dos impactos da
intervenção. Em termos urbanísticos, ao tomar como referência os casos de cidades européias
com pretensões ambientais, teríamos as seguintes características gerais:
Intervenção paisagística e infiltração das águas pluviais no solo;
Manutenção ou recriação do curso sinuoso dos rios urbanos;
Agrupamento de edificações em esquemas projetados, em escalas aproximadas à
capacidade do pedestre para efeito de deslocamento a pé até os principais modais de
transporte;
Preocupação com a redução do consumo de energia e materiais em geral (EMELIANOFF,
2003).
Tais técnicas e suas correspondentes inovações são, sem dúvida, marcos importantes
para o planejamento físico-territorial. Por outro lado, suas aplicações têm demonstrado aspectos
de uma separação do ambiente em termos qualitativos, uma espécie de clivagem do território, de
suas benesses e possibilidades de uso e apropriação. O novo urbanismo90
produz lugares. A
engenharia ambiental racionaliza fluxos e a “produção” do espaço construído, declarando seus
princípios, sobretudo, em função do ordenamento espacial e da duração dos recursos na cidade;
uma espécie de corolário de uma das “sustentabilidades”91
, portanto.
A idéia de um “retorno” ou “resgate” de porções de natureza na cidade é comum aos
dois campos disciplinares. A diferença, além dos produtos executados, está na abordagem; um
trata do ordenamento territorial na escala da cidade, inclusive paisagisticamente. O outro trabalha
com sistemas técnicos e persegue, em geral, eventuais ganhos de eficiência decorrentes da
intervenção.
90
New urbanism é o rótulo atribuído a alguns urbanistas contemporâneos, em geral norte-americanos, apólogos da
“projetação” do lugar, da escala humana do espaço construído, do “retorno” à intimidade da pequena cidade, do contato com
a Natureza. Em geral trabalham estruturas como malls, galerias comerciais, condomínios sustentáveis horizontais de alto
padrão, villas simulando ambientes mediterrâneos (DAVIS, 2001) e similares.
91
A partir do que Acselrad (1999; 2001) chama de representação técnico-material das cidades, em termos da “racionalidade
energética” e do “equilíbrio metabólico”.
268
A “ambientalização” do urbanismo corresponde a uma incorporação de dimensões
econômicas, no sentido instrumental e quantitativo do termo, à prática do desenho da cidade. Por
outro lado, corresponde também à tentativa de conciliar a espacialidade urbana às exigências
contemporâneas condicionantes da reconfiguração do território; a reestruturação produtiva e a
mudança de fluxos, produção, circulação e consumo. Nestes marcos, a idéia de “sustentabilidade”
tem força notável, num esforço técnico, conceitual e político de conciliação e de manutenção das
formas de acumulação atuais com melhores performances da materialidade territorial. Daí a
discussão (e o forte questionamento) em torno da possibilidade de produção de uma cidade ao
mesmo tempo ambientalmente “equilibrada”, racional e compacta em seu arranjo espacial e
também sócio-economicamente justa (CAMPBELL, 1996). O Urbanismo, campo disciplinar
necessariamente híbrido e não propriamente científico (CHOAY, 1997), seria um fator importante
para a solução técnica deste problema; para o enfrentamento da produção de novas materialidades
e na formação de novos sentidos do ambiente.
Sobre o tema específico deste trabalho, a possibilidade de apropriação dos diferenciais
do território próximo à água revela-se um fator importante. Isto ocorre tanto em termos simbólicos
(no aproveitamento das visualidades e na recente valorização da “frente de água” entre certos
grupos urbanos) e fundiários (na dimensão da disputa decorrente da valorização econômica do
solo) quanto funcionais, pela reconfiguração acarretada aos espaços de margens de cursos
d´água em cidades, sob novos padrões de territorialização. Para o caso coreano, por exemplo, um
dado notável é a afirmação de técnicos envolvidos em projetos de descanalização de rios,
atestando que este procedimento de engenharia teve uma preponderante função simbólica em Seul
(SEUL, 2009). Há, portanto, evidente interesse em produção de materialidades que tornem certos
processos econômicos mais viáveis, mas também mais fluidos no sentido da acomodação de
seus aspectos decorrentes, como os públicos a atrair e a demanda por consumo.
Os sistemas técnicos “ambientalizados” na cidade representariam este esforço no
aspecto mais claramente material — embora sem esquecer, em momento algum, a dimensão
poderosa das representações, inclusive quanto à capacidade de mobilização e convencimento
políticos. A engenharia ambiental, que na França tem um de seus maiores expoentes (MELLO,
2004), por exemplo, utiliza a madeira, evita a retificação geométrica dos rios urbanos e procura
elaborar modelos compreensivos de drenagem nas intervenções, entre outras práticas. Além disso,
269
esta abordagem se pretende menos impactante do ponto de vista ambiental.
A noção de redução de impactos ambientais, portanto, se traduz em:
Diminuição do emprego de materiais minerais (portanto não-renováveis e, em geral,
poluentes);
Aumento de superfícies permeáveis do solo (o que reduziria a probabilidade de
enchentes na cidade como um todo);
Uso de vegetação como contenção de encostas e fator de recuperação ecológica e,
ainda, pela economia relativa de energia nos processos de execução (MELLO, 2005).
A cidade, então, pode ser vista como um “sistema”, onde o saldo dos fluxos de matéria e
energia e a sua taxa de rendimento, associada à sua eficiência e minimização de perdas, dariam os
primeiros indicadores confiáveis de “sustentabilidade”. Em outras palavras, é vista na perspectiva
de uma racionalidade instrumental tipicamente moderna, em que o parâmetro desejável da duração
da cidade e dos recursos é dado pela metáfora da cidade-sistema enquanto objeto de equilíbrio ou
de dimensões técnico-materiais (ACSELRAD, 1999; 2001). Em termos da localização e da
destinação de tais intervenções, nota-se uma associação aos projetos de “requalificação”
urbanística, comuns atualmente. O território urbanizado “requalificado”, então, sofre alterações de
modo a contemplar o perfil dos novos usos da atratividade na cidade; a engenharia ambiental, além
de garantir o funcionamento das estruturas da acumulação na cidade, colabora na sua
reconfiguração territorial e paisagística.
Atualmente, há um consistente desenvolvimento de tecnologias para sistemas de
drenagem urbana e sofisticação de modelos de previsão do comportamento hidrológico, para
aplicação em bacias hidrográficas, por exemplo. Por outro lado, os resultados urbanísticos (ou
territoriais, ampliando a escala e enriquecendo a abordagem) de tais intervenções, em geral, estão
articulados a projetos mais amplos de “recuperação” ambiental e urbanística, de reconfiguração de
usos, padrões e formas de apropriação do ambiente na cidade. Estes padrões, com freqüência,
revelam-se desiguais, social e ambientalmente; destinam-se àquele repertório de intervenções
próprio da “retomada” ou do “resgate” das eventuais porções de natureza na cidade, na região,
nas escalas territoriais em geral. Estas intervenções, também, criam seletivas e diferenciadas
formas de acesso e de veto ao ambiente na cidade, e ao ambiente qualificado da cidade. Nestas
formas de diferenciação e veto, a dimensão da água na cidade é, para efeito de avaliação da
270
engenharia ambiental, a do veículo, embora ainda associada à água enquanto paisagem.
4.6. GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS
De todas as formas de intervenção territorial descritas, a chamada política de gestão de
recursos hídricos é, sem dúvida, a mais difusa e, talvez, a mais generalizada. Aqui a água é
tomada, por vezes, quase de forma “essencialista”, quando sua apropriação material não o é, na
verdade.
O que se chama, hoje, de gestão de recursos hídricos tem de ser localizado, antes, dentro
de alguns dos seus fundamentos segundo parte da literatura técnica. Trata-se de uma série de
iniciativas de cunho político e institucional, orientadas pelo conhecimento das ciências
econômicas. Seu arcabouço, porém, lida com a dimensão territorial (isto é, com as espacialidades
e materialidades, com o ambiente e as formas do espaço construído, incluindo nelas a produção e
a transformação dadas pelas dinâmicas sócio-econômicas e culturais). Parte da chamada política
de gestão de recursos hídricos absorve conhecimentos da hidrologia, da limnologia, da
oceanografia, das chamadas Ciências Naturais, enfim. Nesta interface, a abordagem geográfica
contribui com uma leitura do espaço, ora descritiva, ora mais fisiográfica do que propriamente
humana, em geral. É nesta perspectiva que se estruturam, basicamente, as mais expressivas (isto
é, aplicadas, concretamente) vertentes praticadas hoje no campo.
Em quase todas as abordagens acerca da água surge uma seqüência de analogias e
metáforas econômicas. A água, portanto, é analisada enquanto recurso, em termos de uma
situação contemporânea de uso irracional, predatório, que teria resultado em sua escassez e,
conseqüentemente, em um reconhecimento tido como necessário de seu valor, inclusive para
efeito de preservação e manutenção para o futuro.
Para ilustrar esta caracterização é possível começar com a notória série de percentuais
que constroem um cenário tão apocalíptico quanto convincente do ponto de vista da lógica formal;
uma espécie de funil (literalmente) numérico e volumétrico do precioso líquido:
Estima-se que o volume total de água na Terra seja da ordem de 523 milhões de
km³, dos quais 97,2 % estão nos oceanos e mares interiores, 2,2% nos gelos
polares e nas geleiras montanhosas e 0,6% em rios, lagos e lençóis
subterrâneos [...] (BERBERT, 2003, p. 87).
De toda a água do globo terrestre, 97% é salgada e apenas 3% é doce, sendo
271
que 2% encontra-se no subsolo e apenas 1% na superfície, e ainda parcialmente
congelada. Daí presumem-se as dificuldades de muitas populações em relação a
seu abastecimento. (KAHTOUNI, 2004, p. XV).
Embora a água seja a substância de maior ocorrência na Terra, apenas 2,53% do
total é doce, sendo o restante água salgada. Algo em torno de dois terços desta
quantidade de água doce encontram-se bloqueados em geleiras ou em calotas
polares perenes. A água doce atualmente disponível se distribui regionalmente
[…] (UNESCO, 2003, p. 8. Tradução nossa).
De acordo com a lógica da economia clássica, a escassez da água então contribuiria para
a formação de seu valor. Objetivamente, para o aumento de seu valor. Em suas correntes mais
crentes na capacidade resolutiva do mercado, a economia dos recursos naturais associaria a idéia
de escassez do recurso natural à elevação de valor econômico (ROMEIRO, 2004), portanto. Esta
vertente, chamada economia ambiental, conceberia os instrumentos de planejamento e de políticas
territoriais e ambientais, sobretudo, como estratégias de internalização de efeitos negativos
decorrentes da materialidade do desenvolvimento; das chamadas externalidades negativas
(ROMEIRO, op. cit.) No entanto, a lógica estritamente baseada nas “leis” elementares de oferta e
procura apresenta nuances. A água seria tanto mais cara quanto mais escassa. Também, sendo
esta concepção de certa forma hegemônica, a água seria tanto mais valorosa quanto maior fosse o
“benefício” às pessoas (UNESCO, 2003), o que trata de aspectos não-econômicos do recurso.
A escassez da água, por exemplo, é em parte uma construção social. A caracterização de
seu contexto adquire contornos “alarmantes” quando relatórios de agências internacionais
começaram a quantificar os estoques disponíveis do recurso, em uma lógica de fluxos e
armazenamento tipicamente contábil, e voltada para a resolução e o apontamento de soluções
mais pragmáticas, exeqüíveis. Um dos argumentos mais recorrentes neste sentido é o da
distribuição regional desigual do recurso água:
Os recursos hídricos são renováveis (à exceção de alguns tipos de águas
subterrâneas), mas com grandes diferenças de disponibilidade em diversas
partes do mundo e variações amplas das precipitações sazonais e anuais em
muitos lugares (UNESCO, 2003, p. 8. Tradução nossa).
O panorama global da disponibilidade de água versus a população evidencia as
disparidades continentais [...]
O percentual utilizado de água está aumentando. Associando isto às variações
espaciais e temporais na disponibilidade de água, a conseqüência é que a água
para os nossos usos está se tornando escassa e levando a uma crise [...]
(UNESCO, 2003, p. 9. Tradução nossa).
Há inclusive alguns argumentos sobre quais medidas tomar acerca da desigualdade na
272
distribuição da água superficial no planeta. Posto que a água para consumo humano
freqüentemente é um produto, isto é, deve receber algum tratamento, a maior facilidade para
obtenção do recurso é um dado importante, que denota uma expressiva redução do custo de
produção (UNESCO, 2003). A água, não sendo aqui nem uma substância, propriamente, e nem um
dado meramente fisiográfico, deve-se lembrar, entra no processo de reprodução social como
insumo, como elemento de disputa no território e no âmbito do mercado, ainda que indiretamente.
A questão, portanto, se apresenta como um problema de gestão, de administração da
escassez e dos conflitos decorrentes do compartilhamento territorial da água factualmente
disponível. Uma das atuais ferramentas mais correntes para o tratamento da questão é a
intervenção através do conjunto de ações das políticas de gestão de recursos hídricos. Sobre o
termo, e sobre as concepções que lhe são subjacentes, cabem duas notas.
A introdução do que Lojkine (1981) chama de “elemento gestão” nas políticas urbanas
tornou-se a tônica das administrações estatais, sobretudo no marco da crise do fordismo, no
Primeiro Mundo. A este “elemento” caberia, em determinado momento, o papel de promotor da
coalizão urbana, de algum apaziguamento de conflitos e de sua administração em uma escala
localizada e ao mesmo tempo consistente, em que a tensão entre o problema e seus atingidos
seria facilmente perceptível. Em termos mais contemporâneos, então, a gestão (urbana, no caso)
passou a designar o caráter dos ganhos de eficiência decorrentes de mudanças de concepção,
ação e planejamento das administrações públicas, extrapolando a escala territorial “local”, seja ela
o que for — a jurisdição do município, do condado, da província, do distrito, etc. Muda a lógica da
condução dos negócios públicos; de um sistema relativamente articulado, burocrática e
tecnicamente considerado forte, responsável por serviços e ações imbuídas do “espírito público”92
para seqüências de ações setoriais com tendências à transversalidade, à atuação pontual e por
projetos, monitoradas por indicadores e metas de eficiência (BOURDIN, 2001). O papel, então, da
condução dos assuntos públicos, caberia a ações chamadas contemporaneamente de gestão. Por
“gestão” deve-se entender um conjunto de ações (e não necessariamente de políticas) de governo
e de articulações entre agentes públicos e privados, e entre aqueles situados entre estes dois pólos
(BOURDIN, 2001; HARVEY, 1996a). Na acepção de gestão como processo de condução dos
92
Embora não seja apropriado fazer exatamente uma apologia da administração pública na vigência do Estado de Bem-Estar
Social dos países avançados. A questão é, especificamente, a da mudança de abordagem, que tem relação com alterações
históricas, sobretudo do contexto econômico dos Estados-Nação.
273
negócios públicos não estariam, portanto, exclusivamente presentes as dimensões das políticas
urbanas, ou sociais, ou mesmo das políticas públicas em geral. Estaria no papel da gestão
justamente a capacidade de produzir coalizões (HARVEY, op. cit.) e assim alcançar metas de
desenvolvimento, sobretudo no campo econômico. Estes processos de gestão teriam sido
demandados tanto pela crise sócio-econômica do capitalismo contemporâneo (idem, op. cit.)
quanto pelo constrangimento (mais “político” e conceitual) do embate entre grupos sociais,
demandas por serviços e pelo conflito social em geral, colocado inclusive no aspecto territorial.
Por outro lado, nos marcos teóricos da economia política clássica, se o valor econômico
atribuído à água é tanto maior quanto mais “escassa” ela é, o próprio valor é objeto de uma
operação de construção social. Há divergências e sutilezas na construção da idéia absoluta de
escassez da água no mundo, inclusive entre documentos das agências internacionais:
A escassez de água é um conceito relativo e pode ocorrer em qualquer padrão
de oferta ou de demanda. A escassez pode ser um construto social (um produto
da afluência, de expectativas ou de comportamento habitual) ou pode ser a
conseqüência da mudança de padrões devido à mudança climática. A escassez
da água tem causas diversas, a maioria das quais pode ser remediada ou
atenuada (FAO, 2006, p. 2. Tradução nossa).
[...] mas pressões nos cursos d´água interiores têm crescido com o aumento
populacional e o desenvolvimento econômico. Desafios críticos se avizinham no
trato com progressivos racionamentos de água e sua poluição. Na metade deste
século, na pior das hipóteses, 7 bilhões de pessoas no mundo enfrentarão
escassez de água, enquanto nas perspectivas mais otimistas serão 2 bilhões,
em 48 países (UNESCO, 2003, p. 10. Tradução nossa).
Em um raciocínio análogo, algumas destas correntes (que influenciam a formulação de
políticas de governo, inclusive) propugnam a tese de que o problema do “acesso à água” é,
essencialmente, um problema de gestão (UNESCO, 2003). Esta afirmativa tem origem em diversos
fenômenos concretos da atualidade, necessariamente articulados e que podem ser citados como
forma de construir um raciocínio razoavelmente analítico sobre o tema.
Em uma das abordagens correntes, o problema do acesso à água (e, dentro dele, o do
acesso à água potável, por exemplo) é visto como uma questão a ser enfrentada através de pactos
e acordos. Pode-se caracterizar o contexto, desta forma, devido à existência de diversos cursos
d´água que atravessam fronteiras políticas de diferentes países e regiões. Isto condicionaria
comunidades, assentamentos e, portanto, territórios de constituições significativamente diferentes
a compartilhar a água, em quaisquer das suas formas de uso e apropriação. A possibilidade efetiva
274
de apropriar, por exemplo, o recurso hídrico pode depender inclusive da qualidade da água
recebida por usuários a jusante, quando já houve uso a montante através de outras comunidades,
compartilhando a mesma rede hidrográfica. A água, desta forma, torna-se item de disputa, de
responsabilização mútua pela precariedade do acesso e mote de conflitos ambientais e territoriais
(RIBEIRO, 2003; UNEP FI; SIWI, 2005; MILLER, 2003). O tema, nestas bases, chega de fato a ser
tratado como questão de segurança nacional (RIBEIRO, 2003) ou mesmo como fator que contribui
para situações de potencial guerra civil (UNESCO, 2003). Trata-se, portanto, de contexto em que o
compartilhamento da água e de seus diferenciais e necessidades associadas ocorre de forma
competitiva, fragmentada e relativamente regionalizada. Assim, a eventual poluição ou degradação
ocasionada por atividades econômicas em um curso d´água pode impactar em localizações de
países vizinhos, despejando resíduos da produção em território alheio (RIBEIRO, op. cit.; UNESCO,
op. cit.). Da mesma forma, relações de poder concretamente estabelecidas sobre os recursos
naturais do território e sobre os deslocamentos populacionais influenciam nas situações de
“escassez” e de veto no acesso à água e suas imediações.
Por outro lado, os documentos de organismos internacionais como as Nações Unidas e
seus órgãos subordinados, falam em “uso incorreto” da água, além de mencionarem decorrentes
incorreções de planejamento e gestão dos chamados recursos hídricos; uma espécie de variante
da “má gestão”. Em uma lógica que prima por algum grau de competitividade, eficiência, redução
de “desperdícios” e racionalização dos processos (dentro dos marcos hegemônicos do que é
eleito prioritário, entretanto), são ressaltadas as dimensões administrativas e as providências de
ordem prática, em detrimento do caráter político de tais decisões, dos níveis de compartilhamento
de poder e da possibilidade de questionamento dos modelos vigentes de uso e apropriação do
território. A problemática, portanto, passa a ser mais de gestão do que de política, pelo menos no
discurso, isto é, teria na “eficiência” a explicação de suas mazelas e a eventual solução do
processo. A construção do problema a partir de critérios aparentemente funcionais e pragmáticos
esvazia aspectos da discussão em torno das relações de poder envolvidas no ambiente. Embora
se fale em diversidade de sentidos da água para as coletividades regionais, a conexão entre esta
variação dos sentidos e o caráter instrumental da racionalidade de mercado nem sempre é
ajustável:
Muito progresso foi feito na última década no entendimento de que a água não
tem apenas valor econômico, mas também valores sociais, religiosos, culturais e
275
ambientais; e de que tais valores freqüentemente são interdependentes. O
conceito de eqüidade no uso e gestão da água encontra-se consolidado, bem
como a aceitação da maximização de seu valor entre os usuários, ao mesmo
tempo em que é promovido acesso eqüitativo e oferta adequada (UNESCO,
2003, p. 27. Tradução nossa.)
A relação entre maximização do valor da água e eqüidade na distribuição efetiva revela-se
potencialmente contraditória. O valor, neste caso, está no campo econômico, pautado pelos
equivalentes universais; e a eqüidade versa, neste caso, sobre o acesso, isto é, sobre a posse e
uso efetivos do serviço ou bem. No entanto, esta formulação é parte constituinte e praticamente
indissociável na abordagem atualmente hegemônica dos chamados recursos hídricos. Podemos
então qualificar a atribuição de valor econômico à água como uma forma de integração deste
elemento da paisagem, da “natureza” e do território, às dinâmicas de mercado. Sobre a liberdade
dentro da esfera do mercado, Marx (1968), por exemplo, cita que até certo ponto há liberdade para
as formas de inserção; a força de trabalho, por exemplo, é livre para ser vendida no mercado. De
modo análogo, o princípio de uso múltiplo da gestão de recursos hídricos, ao ser cruzado com as
restrições de uso e de padrão de aproveitamento da água, coloca uma tendência ao
enquadramento nas formas estabelecidas e planejadas da gestão da água.
A aplicação de instrumentos econômicos à administração, planejamento e às políticas93
da água pretende, em geral, minimizar falhas (ROMEIRO, 2004) do processo de uso e apropriação
do ambiente, bem como viabilizar o processo produtivo no tempo e, obviamente, no espaço — ou
melhor, nos territórios, com as devidas escalas de poder incluídas, bem como suas respectivas
comunidades. Em termos mais ortodoxos, a incorporação da dinâmica ambiental (em nosso caso,
da territorialização às proximidades da água) à lógica de mercado seria responsável por correções
advindas da eventual irracionalidade na apropriação do ambiente, resultando em processos de
pagamento, custos por degradação ou por uso do recurso. No entanto, se os agentes econômicos
do modo de produção capitalista atuam de forma essencialmente competitiva, fragmentada
(embora orientados por sentidos comuns, até certo ponto), relativamente atomizada, resta a
questão sobre como podem convergir para dinâmicas de revisão dos pressupostos da produção,
da apropriação de recursos ou do ambiente. Parece, portanto, uma premissa contraditória. A
93
Embora a ausência de citação do caráter político de tais decisões evidencie mais os aspectos técnicos e de “eficiência” nos
marcos de uma economia de mercado. A dimensão coletiva das ações e de seus impactos diferenciados é, portanto, vista em
segundo plano, em detrimento dos critérios justificados pela durabilidade dos recursos.
276
incorporação do ambiente a padrões mais liberalizantes pressupõe ao mesmo tempo uma
incorporação das chamadas “externalidades negativas” (ACSELRAD, 1999; ROMEIRO, op. cit.) e uso
de concepções de crescimento e desenvolvimento econômico marcadas pela totalidade do
mecanismo das trocas, o que passa a se estender portanto àqueles bens considerados
“imperfeitos” pela vulgarização da economia clássica; o ar, a água, etc. O que faltaria a estes
“bens”, portanto, estaria próximo de ocorrer através da política ambiental.
A limitação crescente dos fenômenos e objetos à racionalidade econômica — sinalizada
pelo processo de incorporação da água (ou dos demais recursos naturais) — indica que “o
ambiente é reapropriado pela economia, fragmentando e recodificando a natureza como elementos
do sistema: do capital globalizado e da ecologia generalizada” (LEFF, 2006, p. 142). Não apenas a
potencialidade da troca se generaliza, mas também a de suas lógicas, de seus sentidos relacionais
no mundo e de suas formas concretas e materiais de uso e apropriação. É assim que as “[...]
estratégias [...] do discurso do desenvolvimento sustentado constituem o mecanismo extra-
econômico por excelência da pós-modernidade para manter o domínio sobre o homem e a
natureza” (LEFF, op. cit., p. 142). É o processo de extensão desta lógica que Leff (2003) chama de
economização do mundo; uma generalização das referências materiais e simbólicas que cercam o
ambiente e a produção, estabelecendo relações de poder entre regiões e políticas da verdade
científica acerca das variadas formas de abordagem sobre o ambiente.
O caso europeu, a respeito das políticas da água, é representativo. Dentre as experiências
européias, a francesa é provavelmente a de maior divulgação no Brasil e se tornou uma espécie de
referência no tema. Sua abordagem sobre as águas, inclusive em sua dimensão territorial,
pressupõe pactos sobre os usos do recurso e sobre as atividades a desempenhar nas
proximidades dos cursos d´água (BARRAQUE, 1992). Além disso, a gestão da água no continente
europeu e, particularmente, na França, costuma lidar com um conjunto recorrente de iniciativas,
projetos e políticas de cunho técnico, o que teria estruturado uma espécie de “indústria da água”
(BARRAQUE, op. cit.), a saber:
Sistemas e políticas de captação, tratamento e distribuição de água;
Sistemas e políticas de saneamento, sobretudo drenagem, e depuração;
Gestão de rios e corpos hídricos em geral, e de lençóis subterrâneos; controle de
enchentes e de poluição; uso da bacia hidrográfica como unidade territorial de
277
planejamento.
Pensar as infra-estruturas, a decisão de políticas e o recorte territorial relacionado à bacia
hidrográfica é um método associado, tradicionalmente, à idéia de um “modelo francês” de gestão
da água (BARRAQUE, op. cit.) Como acontece em qualquer delimitação de escala no planejamento,
esta também guarda, nos critérios de definição, suas arbitrariedades e condicionamentos
históricos. Embora seja comentada como “recorte natural” para a delimitação e o tratamento das
águas, a bacia hidrográfica se converteu, ao longo do tempo, quase numa figura mítica quando se
trata do assunto. Por um lado, é bastante óbvio que a lei da gravidade e a geomorfologia façam de
uma bacia (recortada em qualquer escala) uma “unidade fisiográfica” de planejamento para a
definição de direções de escoamento, eventuais retenções, acúmulos e da hidrodinâmica em geral.
No entanto, o trabalho político sobre a dimensão física da bacia é uma outra dimensão relevante.
O recorte da bacia hidrográfica é usado para praticamente todas as políticas e ações
relacionadas à chamada gestão da água. É utilizado, inclusive, como uma espécie de “jurisdição
fisiográfica” para as decisões em torno de conflitos de uso e apropriação do recurso. Embora a
delimitação pareça sempre lógica e clara (pois inclui na discussão a população diretamente afetada
e, portanto, interessada), e isto de fato ocorra, a bacia hidrográfica também é o local da
materialização do conflito entre as formas necessariamente coletivas (e sociais) de apropriação da
água e o padrão desigual crescentemente formado a partir de suas políticas de gestão. Uma bacia,
em seu uso, tende a afetar as demais, a jusante; isto tem impactos e processos que não
costumam ser resolvidos usualmente com consórcios de bacias (isto é, com comitês entre estas
unidades territoriais) ou audiências públicas. Pressupõem, em última instância, uma revisão e um
enfrentamento do próprio modelo de administração das águas, de seus usos e da detenção da
prioridade de acesso por grupos sociais — isto é, uma análise sobre as “variações de escassez”,
onde o recurso é menos escasso para alguns.
O modelo de gestão por bacias hidrográficas, inclusive por suas influências, é concebido
e desenvolvido, sobretudo, para casos mais próximos às situações do capitalismo avançado, ou a
territórios economicamente mais dinâmicos. No caso de áreas agropastoris com apoio
tecnológico, próximas a núcleos urbanos densos, a estratégia de gestão da água pode ser descrita,
em termos gerais, como de múltiplos pactos e de tentativa de instalação de um padrão eficiente de
uso do solo. Isto inclui padrões de ocupação do solo e codificação acerca da destinação dos
278
rejeitos, do estabelecimento de faixas de domínio de rios, usos, sistemas de monitoramento e
acompanhamento de qualidade ambiental e certo padrão compacto de aproveitamento do território.
Obviamente, o grau desta “compacidade” é dado por critérios assemelhados àqueles da
determinação das chamadas tecnologias limpas, dos “usos sustentáveis” e das “boas práticas”,
em geral legitimados por algumas das correntes do pensamento científico atual, em que o conflito
não deixa de existir. As chamadas boas práticas, como foi apontado anteriormente, constituem um
dos meios através dos quais se difunde o ordenamento territorial em modelos diversos locais do
mundo (BRENNER; THEODORE, 2002). No entanto, como Leff (2003) afirma, são componentes do
debate em torno das justificativas sobre o uso do ambiente; têm, portanto, evidente dimensão
política.
Além destes pontos, o aspecto da economização (LEFF, op. cit.) é manifesto na discussão
em torno do caráter público da água e na instrumentalização das ações, sobretudo quanto aos
mecanismos de cobrança e ao chamado princípio do poluidor-pagador. Na França, a idéia de
pagamento pelo uso e pelos impactos causados aos corpos hídricos é institucionalizada
(BARRAQUE, 1992), conseqüência da aplicação de recomendações internacionais de comércio e
transações de bens econômicos. O princípio desta concepção seria o de incorporar o ambiente à
dinâmica de valoração, controle, planejamento e troca da economia, e de corrigir “distorções” de
mercado (BARRAQUE, op. cit.)
A aparente insistência na dimensão econômica da água tem demonstrações concretas.
As ações técnicas e de planejamento governamental, em todo o mundo, atestam a rentabilidade da
exploração da água, seja em sistemas de saneamento, irrigação ou mesmo em esquemas de
ordenamento territorial que visam compartilhar o acesso. Na Europa, a disputa entre concessões,
regiões de atendimento e prestação do serviço acontece entre países (BARRAQUE, op. cit.)
Curiosamente, o modelo anterior de financiamento, expansão, manutenção e gestão destes
sistemas de infra-estrutura e de ordenamento territorial entrara em crise quando da reestruturação
das economias capitalistas no mundo todo. Subsídios foram cortados, avaliações econômico-
financeiras tornaram-se mais rigorosas, com previsões de riscos maiores e baseadas em
avaliações impregnadas pelo caráter deficitário destes sistemas, no contexto da crise. No entanto,
não apenas a reestruturação econômica mudou a relação da “indústria da água” (idem, op. cit.)
com sua atividade-fim; os próprios meios mudaram de abordagem. Assim, a lógica de prestação
279
de um serviço comunitário e coletivizado cede mais espaço às avaliações formalizadas do
planejamento empresarial do modelo, o que passa a chancelar seu grau de viabilidade. É neste
momento histórico que o déficit torna-se, efetivamente, uma questão.
Obviamente, na realidade européia, por exemplo, esta “liberalização” não é homogênea,
dependendo inclusive das respectivas estruturas institucionais dos países e de seus modelos de
Estado (idem, ibidem). E é curioso perceber que a disputa pelos recursos hídricos alheios passa a
ser uma possibilidade concreta de lucros para companhias estrangeiras, apesar da crise do padrão
de financiamento do setor. Este fato, visto no contexto histórico e político, marca razoavelmente a
mudança de lógica da gestão da água — isto é, da administração com base competitiva e
racionalidade empresarial, própria do que Harvey (1996a) chamou de “empresariamento”, para a
condução dos assuntos coletivos urbanos.
No entanto, não é correto generalizar e afirmar que haja uma total “neoliberalização” de
políticas, ações de planejamento e ordenamento territorial relacionadas à água. Na verdade,
diretrizes recentes de agências internacionais e organismos multilaterais como o Banco Mundial e
a UNESCO atestam que o critério de privatização precisa ser entendido em sua especificidade e
viabilidade, quanto à eficiência e à rentabilidade dos sistemas e do serviço (UNESCO, 2003). A
partir de intervenções feitas na África, por exemplo, textos do Banco Mundial recomendam a
revisão da diretriz generalizada de privatização e o reforço da necessidade de instalação de infra-
estrutura assumida pelo Poder Público, estatal. Há inclusive recomendações de dirigentes de
organismos ligados à prestação de serviços de água junto ao Banco Mundial comentando esta
postura recente:
É necessário esclarecer os pontos sobre os temores da privatização da água, e
tratar do que alguns chamam de globalização da indústria da água. O termo
“globalização” não faz qualquer sentido se aplicado aos serviços de água. Uma
companhia [...] certamente é uma companhia internacional, mas provê serviços
exatamente no local, onde os recursos são gerenciados e não podem ser
removidos dali. Trabalha-se sob contrato com as autoridades locais, usando
infra-estruturas fixas.
[...]
Em qualquer situação o setor público é que deve ter a propriedade dos recursos
hídricos. Portanto, a transferência da infra-estrutura da água do setor público
para o privado é desnecessária na maior parte dos países em desenvolvimento.
Um modelo muito bom seria o de uma parceria público-privado na qual a
operação dos ativos é confiada a um operador privado a partir de termos em
contrato. Ficaria a cargo do operador a manutenção e incremento da infra-
estrutura.
280
(MESTRALLET, 2002, p. 6. Grifos do autor.)
As infra-estruturas, sobretudo energia e transportes, são de amortização lenta (LOJKINE,
1981), considerando seus relevantes custos de implantação. Por outro lado, tais infra-estruturas e
seus serviços correlatos são considerados atividades essenciais para o desenvolvimento
econômico, mesmo por analistas mais conservadores94
. Esta seria a razão de se preservar seu
caráter público e estatal. Segundo este raciocínio, portanto, as infra-estruturas relacionadas à água,
bem como as formas decorrentes de sua territorialização, são marcadas tanto pela manutenção do
caráter “público” do recurso hídrico quanto pela necessidade de investimento público (no caso,
coletivo) nas formas territoriais a ser exploradas por agentes privados.
Dentre as formas territoriais usuais associadas à água e às infra-estruturas de energia e
transportes estariam os portos, as hidrovias (com as correspondentes infra-estruturas de sistemas
de comportas e criação de canais artificiais) e as barragens e reservatórios criados para usinas
hidrelétricas, entre outros. Além destes, e em relação mais direta com atividades econômicas e o
espaço urbano, há os sistemas de captação, tratamento e distribuição de água, drenagem e
esgotamento sanitário. Pode ser observado, portanto, um retorno à idéia do caráter público de tais
infra-estruturas associadas à água. No entanto, a natureza da retomada da idéia de “público” deve
ser analisada em pormenores.
Nestes marcos conceituais, a reafirmação do caráter público da água no ambiente e no
território assinala, portanto, uma defesa da titularidade estatal do recurso. A água, “livre” na
natureza, seria aquela substância tipicamente enquadrada dentre os chamados bens imperfeitos
pelos manuais da economia ortodoxa. Por outro lado, a afirmação da “água pública” sustenta a
necessidade de uma apropriação privada das infra-estruturas técnicas, dos sistemas, da gestão e
da prestação de serviços relacionados. Esta dupla operação conceitual (mas também técnica,
administrativa e essencialmente política) implica numa caracterização da água como recurso e
como substância, alternando seu caráter conforme a tendência do discurso.
A partir de aspectos da abordagem tida como hegemônica na “questão da água”
94
Um teórico como François Perroux (1967), por exemplo, indica que os setores de energia e de transportes constituem uma
base da economia nacional, equivalente a “indústrias-chave” do desenvolvimento. Nestas condições, o Estado seria o agente
capaz de iniciar o processo, a partir do seu caráter coletivo de apropriação das benesses da infra-estrutura. Em que pese a
discussão que pode ser travada a partir do tema, é relevante assinalar a lógica presente nesta ideologia e nos chamados
marcos regulatórios em torno da infra-estrutura e da prestação de serviços urbanos e de ordenamento territorial, onde
convivem medidas de liberalização em paralelo a subsídios recriados.
281
podemos inferir que haja natureza cambiante no sentido do termo e na construção de sentidos do
ambiente. A água é tratada como substância na medida em que são ressaltados seus atributos
simbólicos, culturalmente importantes, ou seu papel metabólico, fisiológico, ligado à sobrevivência
orgânica. Destituída de dimensão econômica e política, estritamente falando, é relatada como dado
da paisagem ou de composição físico-química, sendo “comum” a todos. Por outro lado, recebe
parte de sua dimensão econômica quando seu valor é posto no raciocínio, associado à demanda
generalizada e inexorável, e quando valores de uso e valores de troca são amalgamados em torno
de outra denominação: recurso hídrico.
David Harvey (1996b) comentou o processo de construção da idéia de recurso no
ambiente. A idéia, amadurecida a partir da economia política do século dezoito, estabelece que o
recurso tenha seu valor construído também pela idéia (relacional, aliás) de escassez, e pelo seu
caráter de item demandado em um universo de coisas. Como é próprio desta corrente teórica, são
diferenciados os itens da necessidade daqueles do desejo, e é reforçada a capacidade do mercado
de regular as trocas, os estoques de bens escassos disponíveis e de, portanto, atingir algum tipo
de equilíbrio econômico (HARVEY, op. cit.)
No aspecto ambiental, por sua vez, um elemento da “paisagem” qualquer (a vegetação, o
solo, a água) pode ser representado como um tipo de insumo, e desta forma receber valor
econômico; não exatamente por suas propriedades intrínsecas, mas pela utilidade desempenhada
(CGER, 1997) em um processo produtivo ou serviço. A avaliação econômica e, portanto, a
valoração (MORAES, 1999) ajudariam na incorporação de um empreendimento ao mercado, mas
também em sua análise de desempenho. Uma das iniciativas pioneiras neste campo ocorre nos
Estados Unidos, com a visitação de parques de interesse ambiental; são aperfeiçoados
mecanismos de avaliação dos custos de deslocamento, uso e mesmo da contemplação da
paisagem destes locais (CGER, 1997). Por outro lado, dada a estrutural instabilidade dos preços
nos mercados em geral, e a correspondente variação nas atribuições de valor, é sempre parcial e
limitada a precisão de qualquer mecanismo de avaliação monetarizada sobre itens da “natureza”
(HARVEY, 1996b). Ainda assim, fala-se em termos “monetários” porque, finalmente, é do que se
trata; do estabelecimento de equivalentes universais, conforme a formulação de Marx (1968), que
fluidificam a troca e a tornam possível, extensivamente, em um sistema de relações como o
mercado. Os mecanismos de avaliação dependerão invariavelmente de critérios; serão arbitrários,
282
portanto (HARVEY, op. cit.)
Por outro lado, há correntes teóricas, militantes e mesmo algum senso comum que
compartilham algo próximo de uma percepção da existência de valores intrínsecos ao ambiente
(HARVEY, 1996b). Desta forma, seria possível formular uma teoria do valor da natureza a partir de
atributos relativamente externos ao social, e ao humano. Isto tem colaborado, historicamente, com
a naturalização de um suposto “valor” da “natureza” (HARVEY, op. cit.) A “natureza”95
então seria
valorosa “em si”.
O fenômeno é particularmente evidente no que tange ao processo de construção do
conhecimento e, por extensão, dos conceitos científicos e noções do senso comum sobre a
realidade. São numerosas as metáforas acerca da interação sociedade/natureza. Dentre estas
metáforas — baseadas na transposição natural-social e na naturalização da sociedade capitalista e
da sua ética e lógica burguesas — é possível localizar claramente a lógica da competição, da
eliminação, da eficiência e da racionalidade instrumental como valores “inerentes” ao ambiente e,
portanto, a tudo. Harvey (1996b) inclusive coloca a deep ecology como profundamente enraizada
na idéia de uma imbricação e uma imersão do “social” no “natural”, e portanto, na possibilidade de
atribuição de algum valor intrínseco à natureza. As metáforas, entretanto, atribuem valor a uma
natureza cuja percepção é sempre historicamente condicionada e, portanto, jamais externa,
tampouco neutra em relação a seu objeto.
Mesmo assim é que, existindo “abelhas operárias” (HARVEY, 1996b), também podem
existir rios “lentos” ou “ligeiros”, e pode ser construída a idéia de uma tendência natural à
apropriação desigual, privada, das benesses do território. Isto ocorre até mesmo em termos
simbólicos, o que não é menos poderoso materialmente; Bachelard (1997), ao falar das
corredeiras e da espuma das águas da região da Champanha, na França, evidencia um caráter que
não só remete à memória, mas à síntese do que se pode construir e pensar delas; águas ligeiras,
limpas, frescas, sadias. Águas a visitar, a observar, a contemplar e, talvez, a consumir
visualmente. Entender a naturalização dos atributos socialmente qualificadores do ambiente,
portanto, torna possível o conhecimento das idéias que reforçam a reprodução das assimetrias no
uso e na apropriação do território. O ambiente e sua discussão se revelam, contemporaneamente,
95
Aproximadamente, o que Descola (1997) qualifica como o não-humano e, de certa forma, o que é externo ao humano,
estabelecendo com este uma relação de atribuições de sentidos e explicações em torno de modelos cosmológicos e de
sentidos do ambiente.
283
como elementos inegavelmente políticos e onipresentes; a todo projeto sócio-político corresponde
uma concepção ambiental (HARVEY, op. cit.) A discussão acerca do território, e da abordagem do
ambiente, pode a qualquer momento revelar sua freqüente inclinação a “[...] conter, moldar,
mistificar [...]” (idem, op. cit., p. 174) as relações e, portanto reproduzir aspectos da desigualdade.
Embora não haja qualquer relação mecânica entre um fenômeno e outro — política e desigualdade
ambiental —, há a tendência à abstração da realidade na política do capitalismo. Como tal, há
tendência a considerar os processos concretos como racionalizáveis e, a partir de uma lógica
abstrata e auto-justificável (a técnica, a ciência, a planificação estatal e o “bem comum”),
identificar as medidas de intervenção no mundo como legítimas. Considera-se o mundo como
apreensível via indivíduos isolados ou por uma construção da sociedade baseada em concepções
hegemônicas (MARX, 2007) e freqüentemente reprodutoras da assimetria na apropriação do
ambiente. A política ambiental e, sobretudo, a ciência, no caso, des-sensibilizada diante da
realidade (MATOS, 1990), operam no sentido da consideração dos interesses de cada indivíduo ou
agente (por exemplo, o produtor, dono de terras, na bacia hidrográfica, em relação ao ambiente) ou
na conjectura de um comportamento seu, em sociedade (o caso de uma suposta tendência natural
a maximizar seus ganhos e apropriar o ambiente, tornando-o recurso). Determinados agentes,
como o Estado, algumas formas da ciência, sobretudo a aplicada, e as técnicas, assim como as
variadas políticas ambientais, trazem em si este potencial de controle, ainda que variado e difuso.
A política ambiental e as suas correspondentes intervenções territoriais contemporâneas,
no caso do território urbano em sua relação com a água, constroem uma particular explicação do
ambiente. É neste ponto do raciocínio que ocorre a conversão (material, simbólica, efetiva) e o
intercâmbio entre a substância, o fator e o recurso. O território próximo à água, recortado a partir
de seus condicionantes ambientais, é um espaço onde estas três figuras podem ocorrer: a idéia de
comunalidade a partir da naturalização do elemento no ambiente; a racionalização deste elemento,
incorporado a uma dimensão instrumental e a práticas de apropriação desigual; a conversão a
partir da entrada da valoração econômica e de sua abstração subseqüente.
Neste aspecto particular é que a visão “transcendente” (HARDT; NEGRI, 2004) das políticas
que extrapolam as fronteiras nacionais (e refletem correlações de poder internacionais) evidenciam
as recomendações acerca da apropriação desigual do ambiente. Certos cortes das políticas
ambientais e das intervenções territoriais associadas têm apresentado recorrência dos padrões
284
recomendados pelas formulações “modelares” ou pelo aperfeiçoamento das citadas “melhores
práticas” disseminadas inclusive pelas instituições internacionais (BRENNER; THEODORE, 2002), no
mundo todo. Além do fato de ser possível ler o desenvolvimento econômico e espacial do
capitalismo como estruturalmente desigual (SMITH, 1988), pode-se avançar na leitura a partir da
forma pela qual se produzem modelos de gestão da natureza e infra-estruturas no território.
Contemporaneamente, o financiamento de intervenções territoriais e de infra-estruturas
segue justamente a lógica da gestão. A partir de um modelo discutido como interessante para a
viabilização financeira de empreendimentos infra-estruturais, Einchengreen96
(1994) teoriza sobre a
instalação de infra-estruturas básicas — ou indústrias de base, como diria Perroux (1967) —
argumentando que sua concretização depende de arranjos. Em contextos particularmente
desfavoráveis como o do Terceiro Mundo, onde a infra-estrutura é tanto mais necessária quanto
mais difícil é implantá-la (EICHENGREEN, op. cit.), a rede de intervenções territoriais seria factível
quando:
Liberalizam-se os mercados;
Desenvolvem-se as finanças internas, em ambientes confiáveis, estáveis e formais;
As instituições e mecanismos administrativos asseguram a confiabilidade e
transparência aos investidores;
Os investidores assim sentem-se seguros para atuar, eventualmente subsidiados pelos
governos.
Estas diretrizes, formuladas para a área de Economia do Desenvolvimento do Banco
Mundial, versam basicamente sobre a forma pela qual seria possível, ainda, financiar e implantar
infra-estruturas de porte em países em desenvolvimento. Embora ligeiramente crítica (no texto em
questão) à situação de dependência do endividamento externo (EICHENGREEN, op. cit.), a formulação
se coloca como modelo de intervenção. Sua recomendação ajusta-se às diretrizes aplicadas no
financiamento de infra-estruturas e na construção e indução de políticas de cunho ambiental, por
exemplo, no caso de agências multilaterais.
O raciocínio da escassez, que associa a valoração da água à sua disponibilidade irregular,
reflete aspectos da formação de valor na economia tradicional. Em outras palavras, transpõe para
96
O material citado costuma ser referido como uma espécie de documento básico para a inflexão das posturas de
financiamento infra-estrutural do Banco Mundial após a célebre crise de insolvência dos países em desenvolvimento, na
década de 1980.
285
o território a série de princípios mais fundamentais da teoria econômica clássica sobre a oferta, a
demanda e a variação de preços. Nestas concepções, para as mercadorias em geral, e no
processo geral de formação de preços, há uma relação inversa entre oferta e valor (HICKS, 1987). É
possível, entretanto, considerar as variações das rendas dos agentes (e suas correspondentes
capacidades de pagamento); isto torna mais complexo o caso, e estabeleceria, segundo a mesma
visão, conjuntos de mercadorias a apropriar no mercado, e relações entre elas (HICKS, op. cit.)
Haveria alguma relação entre preferências, demandas e estas flutuações de valor econômico e
renda (idem, op. cit.), onde alguns itens à disposição são apropriados e valorados de forma
diferenciada, em dado momento. Por outro lado, a água não parece ser tão elástica em termos de
opção marginal; qual a alternativa que não usá-la, em certos processos?
Entretanto, isto coloca um outro problema: o consumo do território às proximidades da
água, em termos da apropriação do solo, via mercado. Apesar da hegemonia do modelo de
incorporação da água como mais eficiente pelas formas competitivas e eliminatórias da troca, o
reconhecimento de alguma assimetria na distribuição da renda entre os agentes em disputa
colocaria, imediatamente, a problemática da desigualdade no acesso. Se for possível estender a
lógica a uma abordagem mais distante da modelagem baseada na economia de mercado, e
assumindo que haja forte relação entre a disponibilidade e proximidade da água e o caráter do uso
e apropriação do território, pode-se deduzir que, em um mercado de terras, os diferenciais
locacionais dos territórios próximos à água sejam apropriados preferencialmente pelos mais ricos.
Isto seria uma espécie de corolário do que Harvey (1980) colocara para o mercado de terras
urbano, aonde os agentes detentores de maior capacidade de pagamento chegam “antes” ao
mercado e, portanto, apropriam as melhores terras, ou pelo menos criam uma temporalidade de
apropriação onde o caráter especulativo do solo no capitalismo reforça a desigualdade entre as
localizações.
Finalmente, o problema da “escassez”, portanto, é também um problema de construção
do ambiente, não exclusiva do plano simbólico, mas da capacidade de mobilização dos agentes
em torno dos sentidos do ambiente e dos projetos políticos — que seriam, também, ambientais
(HARVEY, 1996b). A escassez é socialmente construída (SWYNGEDOUW, 2004). É, também, o
argumento quase lógico do aumento do valor de troca atribuído à água e, por conseguinte, aos
seus diferenciais territoriais; quanto mais escasso, mais caro é o bem, na lógica da economia
286
clássica. Embora este seja um raciocínio adotado até mesmo por setores que pretendem entabular
a discussão da conservação ambiental, torna-se um reforço da “ideologia ambiental”
(SWYNGEDOUW, 2004, p. 40) da escassez e, portanto, da assimetria na apropriação. Se o ambiente
não é igual para todos, revela-se mais escasso para alguns. Em termos políticos, um
desdobramento recorrente do “discurso da escassez” (SWYNGEDOUW, op. cit.) é o conjunto de
providências a tomar para lidar com a distribuição desigual da água no planeta. A lógica sistêmica,
planetária, assume a escala da discussão, e como tal integra as dinâmicas como um todo
integrado. Assim, além do já comentado “funil da água”, sobre os seus percentuais disponíveis no
mundo, existe uma série de recomendações acerca da necessidade de reapropriação do estoque
de água doce superficial disponível, em geral, por parte de Estados-Nação mais ricos97
. A
desigualdade territorial “natural” da distribuição assimétrica da água, convenientemente
desnaturalizada, torna-se elemento de mobilização:
[…] a água não é igualmente distribuída pelo mundo, e há grandes variações
quanto a sua abundância. Regiões montanhosas, por exemplo, produzem 80 por
cento dos recursos hídricos globais, tendo menos de 10 por cento da população
global [...] Esta distribuição desigual acarreta a necessidade de acordos e
mecanismos de transferência em larga escala. Inicialmente as transferências de
água em larga escala ocorriam dentro das fronteiras nacionais. Acordos eram
comuns entre países que dividiam a mesma bacia hidrográfica, como os Estados
Unidos e o México [...] Recentemente, […] como as demandas por água
cresceram, iniciativas de transferência do recurso são feitas em nível
internacional. Empreendedores criaram um vasto leque de mercados de troca e
intercâmbio de água. Desta forma, a água doce tornou-se um item nas
negociações e disputas comerciais entre países. A falta de precedentes legais na
gestão do comércio colocou a água na linha de frente das preocupações e das
tensões internacionais.
[…] historicamente, é comum para as regiões experimentar vulnerabilidade
diante da disponibilidade de água. Disputas em torno de recursos hídricos
compartilhados podem levar à violência e podem conduzir a tensões em nível
local, nacional e até internacional […] Países podem se dispor à guerra para a
defesa de seus interesses. Há um sério risco de a água tornar-se casus belli em
algumas regiões áridas do mundo [...] Espera-se um acirramento dos conflitos
na medida em que as populações se expandem, economias crescem, e se
intensifica a competição por estoques de água limitados. A competição e os
conflitos pela água não são novos, no entanto não há precedentes históricos
para o atual descompasso entre demanda e oferta (MEDALYE; HUBBART, 2007.
Tradução nossa; grifos dos autores).
97
A guerra (ou seu temor) e a necessidade biológica da água são acionadas no debate, na legitimação de políticas e na
relações internacionais. Com freqüência, é também mobilizado o paradigma de vinculação do crescimento demográfico à
escassez de recursos disponíveis, conforme Acselrad (2001) identifica no discurso ambiental hegemônico.
287
A coesão entre tais processos — de racionalização, modernização e reprodução, em
linhas gerais — articula o que chamamos aqui de política de controle da água. Esta política, no
sentido lato e aberto, mas não menos influente e impactante, está materializada no território que
caracterizamos ligeiramente como zona de interface, às proximidades da água — entendida como
fator de estruturação territorial, condicionante de relações, possibilidades e constrangimentos. As
próprias intervenções territoriais, aplicações da técnica e do processo de abstração do ambiente,
revelam-se cambiantes em seus desdobramentos; engenharias ora capazes de inovações e
incorporações dos homens aos processos e soluções (ROSSI, 2001), ora reveladas como
ferramentas de veto e exclusão.
Desta forma, uma política de controle da água (aberta, difusa) é o que parece, até aqui,
criar os contornos atuais de uma problemática de uso e apropriação de seu território de influência.
E parece, inclusive, ser um fator determinante na concentração de possibilidades, benesses e
fatores do território (e do ambiente), embora revestida de mecanismos de preservação,
conservação e democratização.
A água, vista num dado ambiente urbano, seria assim abordada enquanto recurso;
enquanto ativo que traz em si, ainda, potenciais de ganho. A água, neste caso, pode ser entendida
também como fator de produção, ou como meio. A gestão de recursos hídricos, ao planejar
espacialmente, racionalizar processos, englobar usos e padrões e pretender regulá-los, cria um
contexto de controle difuso sobre as várias formas de se usar e apropriar a água, no caso, na
cidade. Abordada inicialmente como substância, o que não traz em si tanta dimensão “natural”
quanto o termo pode supor, a “água urbana” pode se desdobrar em abstração econômica, em
racionalidade técnica, em valor potencial paisagístico.
288
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cidade na Amazônia brasileira, se tomada a partir de seus exemplos seculares e
ribeirinhos, mostra algumas particularidades de formação histórica e em suas soluções espaciais.
Ao criar relação e estruturas territoriais com os cursos d´água que a cercam, estas cidades
exprimem formas de adaptação e transformação do ambiente, além de uma tradição e de uma
tecnologia de instalação, desenvolvimento e assentamento. Isto pode ser ilustrado pela formulação
de Eidorfe Moreira (1976), por exemplo, acerca do aproveitamento e das utilidades dos igapós
amazônicos. Esta forma de assentamento territorial, e idiossincraticamente urbano, que tem
paralelos ligeiros em assentamentos humanos em outras localidades com hidrografia similar (no
Sudeste Asiático, por exemplo), apresenta algumas estratégias simples de constituição
morfológica.
Aspectos de cidades tradicionais ribeirinhas também localizam as estruturas urbanas
mais representativas do ponto de vista espacial e sócio-econômico em situações privilegiadas, em
proximidade com os rios e lagos da região. Estas localizações costumam se reforçar mutuamente,
onde os mercados, os portos e os espaços públicos (praças, terreiros, barracões), por exemplo,
têm atividades em diferentes horários do dia, e fluxos que se intercambiam. Ademais, tais
estruturas mostram um conjunto limitado de atividades cuja operação tem relação com os rios: a
conexão, a extensão, a observação e a contemplação, o deslocamento e a apropriação, das
margens e/ou das águas propriamente. Assim é, por exemplo, a lógica dos trapiches, diques e
píeres; ou os dos terrenos acrescidos produzidos com resíduos da produção econômica (agrícola,
manufatureira, industrial) ou das edificações, bem como dos pátios extensos sobre estacas dos
portos nas margens de cursos d´água; dos mirantes da navegação ou dos espaços públicos com
atribuições religiosas ou festivas; dos terminais de transporte de cargas e passageiros, próximos
dos locais da troca econômica entre as embarcações e o chamado hinterland (MOREIRA, 1989); e
assim também costuma ser a lógica do uso das margens, para a cultura de animais, para a pesca,
para outras formas de aproveitamento econômico (agricultura, por exemplo) e para a captação.
As formas de uso e apropriação das margens de cursos d´água na região foram
transformadas com a consolidação de um padrão de urbanização mais evidente e com as
decorrentes mudanças em processos territoriais, econômicos e sócio-ambientais. Deste modo,
289
mudaram as formas, mas não necessariamente os componentes mais estruturais de algumas das
abordagens citadas sobre o aproveitamento das margens de cursos d´água na região. Novas infra-
estruturas, ou equipamentos urbanos, ou ainda políticas de Estado, se colocam na realidade como
agentes de intervenção, de produção do espaço humano.
O tema da água neste trabalho não pretende estabelecer com este elemento uma relação
fetichizada. Ao contrário; ao abordar aspectos de uma possível questão da água no espaço urbano,
tenta-se elaborar os contornos de uma problemática da relação entre fenômenos, e não da
importância isolada do elemento água, tomado em si como ente autônomo. Para fins de discussão
de conflitos, de produção das verdades sociais e para pensar problemas de desigualdade e poder,
de certo modo, é mais apropriado pensar a relação entre os fenômenos do que tomá-los
individualmente (FOUCAULT, 2004). Assim, a água pode ser considerada como condicionante de
estruturação territorial, junto a outros. Deste modo, não se pode, para este efeito, tomar a água
como elemento relevante, do ponto de vista territorial ou sócio-econômico, de modo isolado; as
contradições que ela exibe, enquanto condicionante no território, devem ser ressaltadas. A
contradição, e os processos de conflito dentro do processo produtivo, e dentro da reprodução
social, fariam parte da própria fetichização; das coisas parecendo ser oriundas da relação entre
coisas, e não oriundas de relações sociais, de processos de conflito social, histórico, econômico,
entre indivíduos, grupos e classes (MARX, 1968).
Esta relação entre sentidos é importante sob várias óticas. Entendendo que os itens do
ambiente configuram elementos de formação das cosmologias e dos sentidos das intervenções
sobre ele (DESCOLA, 1998), a água teria sua relevância demonstrada, por exemplo, pela presença
que adquire junto às narrativas das sociedades, sobre seus mitos, sobre suas estruturas
representacionais. A água, neste caso, é construída como elemento de uma série de relações
sociais emblemáticas. Nas histórias narradas no texto sobre a água, dentre outros elementos da
natureza, Simon Schama (1996) aponta como cursos d´água, historicamente, eram vinculados a
uniões entre nações, ou como elementos de disputa em conquistas territoriais, ou ainda como
signos emblemáticos de coletividades inteiras, povoando as construções sobre suas identidades,
seus mitos originários, as razões da sua existência. O autor, ainda, ao falar de Londres, a concebe
a partir de suas próprias memórias infantis, ao construir os odores, os sabores, as cores, os
ruídos e sons e recuperar alguns fragmentos de narrativas de outros para entender, a partir do
290
Tâmisa, do estuário ou da costa marítima, onde estavam o poder, a zona nobre, a escuridão, a
diversão e a sujeira de seu lugar (SCHAMA, op. cit.) A água, ou os cursos d´água, são também
parte de construções culturais sobre definições de limites, de fronteiras políticas e de símbolos
nacionais; Febvre (2000) fala do Rio Reno como divisor de fronteira entre França e Alemanha. O rio
não só era “disputado” em suas formas de uso e apropriação, mas era símbolo, de forma
diferente, dos dois países, e construído historicamente, em termos de suas paisagens, como ponto
relevante de suas respectivas economias, de suas respectivas soberanias territoriais e, de certo
modo, de sua respectiva autonomia e superioridade enquanto nações européias, diante da outra
(FEBVRE, op. cit.) O componente ideológico, presente na captura das narrativas da época (em
discursos políticos ou na imprensa) e na “contaminação” desta ideologia pelo próprio autor, fazem
parte da pertinência da relação entre o curso d´água e suas respectivas sociedades de interface.
A água, então, não deve ser tratada apenas como elemento e item natural da paisagem.
Aliás, a água, como visto, é “natural”, mas tem aspectos socialmente construídos, tanto em suas
representações quanto nas suas formas de uso e de apropriação material e econômica. Neste
sentido, há relações de exploração, de apropriação do valor gerado por outros, de segregação, de
veto no acesso e de reprodução de desigualdades sociais associadas justamente aos diferenciais
advindos da proximidade da água com os territórios que, no caso, são pensados aqui a partir da
cidade. Deste modo, inclusive pela recorrência de formas variadas e uso e apropriação deste
elemento nos assentamentos humanos, a água se mostra como poderoso condicionante das
maneiras pelas quais as sociedades constituem seus territórios, em geral.
Como dito, esta é uma questão histórica. O processo ancestral de urbanização e de
formação histórica de assentamentos humanos, como a aldeia, também se revela próximo de
cursos d´água, sobretudo de rios. São as chamadas cidades da planície (MUMFORD, 1998). Em
torno destes assentamentos, já na Antigüidade, havia uma série de saberes criados a propósito do
estudo dos fluidos e de sua circulação, e as analogias com a água sempre foram importantes para
a construção deste conhecimento. Neste sentido, “ciências”, filosofias e saberes em geral,
incluindo as artes, atribuíram certo caráter mítico e metafórico ao falar da água; a analogia citada,
por exemplo, relacionava a lógica da circulação sangüínea do corpo humano com as redes
hidrográficas, os rios em uma bacia, de modo que se entendesse a concentração de fluidos, as
diferenças de vazão, e as zonas de maior representatividade quanto aos fluxos (SCHAMA, 1996). A
291
água, como elemento fundamental constituinte do ambiente do homem (SCHAMA, 1996), agrega
tanto formas de interpretá-lo quanto possibilidades de re-elaboração do pensamento a partir de
suas referências. Como tal, está presente, atualmente, em formulações curiosas sobre os seus
sentidos, inclusive no plano da política ambiental, o que é uma ação moderna.
A ocupação territorial em situação de proximidade com cursos d´água tem, portanto,
representatividade histórica: apresenta densidades relativamente mais altas e diversidade funcional,
com registros de notável intensidade de fluxo de produtos e altos índices de processamento da
paisagem. Além disso, implicou, historicamente, em esforços técnicos de drenagem e irrigação, o
que teve desdobramentos econômicos significativos, inclusive na produção de lógicas territoriais
de conexão e de extensão.
A respeito da relação entre cidade, processo de urbanização e as águas que
eventualmente têm contato com seu espaço, contemporaneamente esta “relevância” da água
também é destacada, mas sobretudo com um tom de resgate da natureza na cidade. Esta ideologia
do “resgate” da natureza pode remontar aos Estados Unidos da América no século XIX (SCHAMA,
1996) ou mesmo à Europa de finais do século XVIII (THOMAS, 1988). A concepção de que se pode
recriar o ambiente dentro do espaço urbano, ou de que se deve intervir na natureza para nela
potencializar aspectos favoráveis à coexistência com a ocupação humana é recente. Naturalizar as
dinâmicas físico-ambientais urbanas e culturalizar processos até então ditos naturais tem sido uma
postura contemporânea diante do ambiente urbano, aliás. Descola (1997; 1998) a aponta entre
comunidades indígenas, mas sugere, teoricamente, a possibilidade de entendimento da operação
como algo passível de generalização. Ao construir o ambiente urbano como uma totalidade (que
imbrica artefatos, produzidos, e natureza, relativamente dada e externa ao homem),
contemporaneamente também se atribui características da natureza às sociedades e, em paralelo,
comportamentos explicados como humanos, sociais, com psicologias próprias inclusive, que
seriam próprios a elementos do ambiente, como animais ou plantas ou, ainda, o mar, os ventos
(DESCOLA, 1996; 1997). É assim que, por exemplo, a cidade pode desejar respirar, por sua porta de
entrada ou por sua pele; ou o rio pode, em situação extremada de catástrofe sócio-ambiental,
desejar se vingar das pessoas, dos habitantes da cidade, sobre seu mais emblemático lugar —
situado, obviamente, à beira deste mesmo rio.
Os usos da água na cidade são variados e também apresentam transformações
292
históricas. Embora as águas tenham tido propriedades de purificação e fertilidade (SCHAMA, 1996),
os aglomerados urbanos também as usam como depósito de rejeitos, em acepções e atividades
tidas como menos nobres. Por outro lado, é no espaço do litoral que ocorre a invenção do lazer e
dos aspectos lúdicos da praia (CORBIN, 1989), um uso das margens de cursos d´água que implica
em significativas transformações históricas. Estas transformações são refletidas também em
modificações de uso do solo, e de padrões de ocupação territorial. Novos usos e padrões, como
os balneários e estâncias turísticas, não apenas reconfiguram os espaços específicos que
ocupam, mas têm impacto na escala regional. A modificação que operam trabalha no sentido da
criação de novas legitimidades para estes territórios. A invenção da praia, historicamente, se
consolida ao mesmo tempo em que se institucionalizam as primeiras políticas ambientais de que
se tem notícia no Ocidente. Curiosamente, alguns discursos contemporâneos, ligados ao
urbanismo ou ao ambientalismo (ou a associações possíveis entre os dois campos), lamentam os
usos e abordagens históricas da água, numa espécie de revisitação de suas propriedades técnicas,
culturais e econômicas, transplantando as lógicas anteriores para um juízo da experiência histórica
atual. Neste sentido, são criadas qualificações e hierarquias dos usos e padrões tidos como
“limpos” ou “sujos”, ou como “leves” e “pesados”, o que cria uma nova normatividade sobre os
usos nas proximidades da água. Começa a existir um discurso e uma prática política de
diferenciação e de criação de vetos nestes territórios, e as elites econômicas os concebem como
se a lógica da valorização da paisagem sempre tivesse que se fazer presente ali, mesmo quando
esta lógica não encontrava ressonância. Pauta-se o passado pelas dinâmicas capitalistas do
presente, neste caso.
Haveria também uma relação de cidades cuja estruturação urbanística e econômica se
relaciona com o desenvolvimento de uma zona portuária e de produção associada a ela. Estes
entrepostos são tomados como evidências de alguns elementos modernos do desenvolvimento
econômico urbano (JACOBS, 1970). Haveria, nestes casos, tendência à aglomeração e
diversificação de atividades relacionadas ao aproveitamento de cursos d´água (JACOBS, op. cit.),
mas também à chegada de dinâmicas territoriais propriamente capitalistas na cidade, a deduzir dos
fenômenos que a autora aponta. A proximidade com a água, no território urbanizado, pode
representar também diferenciais locacionais, tornando-o igualmente idiossincrático como a
geografia afirma ser, por exemplo, a zona costeira em geral (MORAES, 1999).
293
Em meio a tais exemplos e representações, é possível deduzir que haja alguma relevância
nos territórios ocupados nas proximidades, e sob influência, dos cursos d´água em geral. Esta
influência, nos marcos históricos do capitalismo, redundou em alguns tipos de conflito, e de
disputas portanto, onde o mercado de terras tem centralidade. A valorização excepcional da terra
nas proximidades do litoral (MORAES, 1999) é um elemento de explicação desta disputa; haveria, na
verdade, tentativas de apropriação dos diferenciais locacionais dos territórios próximos à água.
Processos de modernização, de formalização e racionalização tendem, portanto, a acentuar este
tipo de conflito. Estes processos teriam, em parte significativa dos casos, forte relação com o
mercado de terras capitalista, e com seletividades oriundas das dificuldades de acesso, de
potencialidades de uso e de formas de apropriação material da água e de seus diferenciais
locacionais. Este conflito, sob outro ponto de vista, pode ser associado à marginalização relativa
da pobreza litorânea, ou da pobreza residente nas margens de cursos d´água em geral. Esta
pobreza, cujo exemplo notório na historiografia seria a vila de pescadores e coletores (CORBIN,
1989), sofre um estigma que, automaticamente, é associado às atividades de reconfiguração das
terras litorâneas. Deste modo, um dos maiores e mais recorrentes argumentos para o processo de
modernização do litoral é a remoção dos assentamentos tradicionais estigmatizados, e por
conseguinte, a implantação dos novos usos e padrões de aproveitamento de seus diferenciais
locacionais. Esta modificação de usos e de padrões representaria um processo muito freqüente de
transformação das áreas litorâneas, e assinala uma evidência material dos impactos territoriais da
invenção da praia, do litoral, como espaço de preferência de elites econômicas urbanas modernas
(CORBIN, 1989).
O mesmo processo, em termos amplos, poderia ser identificado na implantação da
estrutura racionalizada do porto moderno ou na aplicação das técnicas da gestão de recursos
hídricos sobre o território. A chegada de padrões e de atividades, ou mediações institucionais e
jurídicas, tipicamente capitalistas e modernas, costuma acarretar transformações objetivas nos
espaços próximos aos cursos d´água. Embora algumas lógicas de aproveitamento da água na
cidade continuem valendo, fundamentalmente, mesmo na transição entre formas tradicionais e
modernas, as transformações materiais e as novas desigualdades que surgem criam outros
modos de uso e apropriação.
O porto moderno preserva o caráter técnico e de entreposto, de estrutura produtiva e de
294
conexão, extensão e deslocamento, de sua interface com a água na cidade. A modificação reside
na forma de territorialização do porto modernizado e em sua localização espacial. Mudam os
critérios locacionais da estrutura portuária modernizada, o que coloca estes novos portos em
pontos menos urbanizados da região, submetidos a programas de gestão ambiental e
racionalização de tráfego diferenciados e recentes. A localização residual do antigo porto,
provavelmente oriundo da economia de exportação e da expansão de capitais da virada dos
séculos XIX e XX, entra em imediato conflito com este processo. Daí é que surge a discussão
sobre a “obsolescência” das antigas estruturas portuárias urbanas centrais; algo que se disse, em
outros tempos e circunstâncias históricas, sobre os “portos” informais não-aparelhados e
desprovidos de racionalidade técnica segundo os mesmos moldes da virada do século. O novo
sítio portuário, então (embora preserve as lógicas territoriais básicas de estruturas anteriores), se
apropria destes diferenciais locacionais de outras formas e noutras bases, com menor contato
com as dinâmicas urbanas internas, maior articulação a rotas da logística integrada regional
(BAUDOUIN, 1999), e mais submetido aos ditames da gestão do ambiente e da eficiência econômica
do que à política urbana ou às influências políticas das disputas pelos diferenciais da cidade e da
urbanização.
A gestão da água, representada por uma operação tipicamente moderna de
administração, composição e economia da paisagem, da construção de uma natureza ecônoma
(CAUQUELIN, 2007), que não é estritamente cultural (pois nada o é), também mantém suas lógicas.
Apropriava-se água, nos assentamentos urbanos, de diversos modos; a água tem, historicamente,
diversas acepções e sentidos, desde aqueles mais nobres e sagrados — a bênção, a união entre
pessoas distintas, entre nações (SCHAMA, 1996) — até, claro, aqueles do resíduo, do receptáculo
da sujeira e do obscuro (CORBIN, 1989). Um problema contemporâneo se mostra, portanto, quando
surge no âmbito do Estado capitalista a noção de preservação e conservação ambiental,
estabelecendo hierarquias, interpretações científicas dos itens do ambiente e conformando-os em
políticas. Tais políticas, aplicadas ao caso da água, pretendem regular as formas de sua
apropriação, o que encontra nas formas territoriais da cidade um território fértil em casos a
trabalhar. Deste modo, determinadas atividades, e sobretudo padrões de atividades, são
enquadrados em categorias menos nobres do uso da água. Dentro desta classificação oficial, e
dos diagnósticos ambientais nela implicados, são formados alguns tipos de vetos, juízos,
295
valorações e restrições sobre as formas de apropriação da água no território. De forma
generalizada, e difusa, a política ambiental, através da gestão de recursos hídricos, procura regular
o modo, o formato, a escala e o padrão de acesso à água.
Estas formas territoriais, contudo, representam uma parte da questão, recortada neste
trabalho como uma relação entre cidade e água. Alguns fenômenos específicos exemplificam,
ilustram e tentam dar maior concretude à discussão. O trabalho é, especificamente, sobre o caso
de Belém-PA, em sua estruturação urbanística e em alguns de seus conflitos atuais que podem ser
lidos na relação entre a cidade e cursos d´água de seu território. A urbanização em Belém-PA tem
relação histórica com apropriação das águas, e isto reforça a pertinência da discussão a partir do
seu caso. Como núcleo urbano do Norte do Brasil, Belém-PA também faz parte de um conjunto de
cidades implantadas em beiras de rio; no caso, o grupo de cidades implantadas para defesa da
costa no período colonial (SANTOS, 2001). Esta situação é uma referência de estruturação urbana
particular da Região Norte, tanto pelo aspecto das cidades seculares quanto pela localização nas
margens de cursos d´água, e mostra soluções tradicionais de territorialização, de certo modo
válidas para o entendimento da formação da cidade às proximidades das águas e para a discussão
de alguns aspectos de seus conflitos atuais. Estes conflitos, no caso da apropriação de terras e
dos diferenciais dos territórios próximos à água podem também ser entendidos pela desaparição
da terra livre (Marx, 1986) e seus equivalentes na região, bem como pela consolidação de um
mercado do solo urbano mais especulativo, valorizado e concentrado, no caso específico da
cidade de Belém-PA. Este último ponto pode ser lido em dados sobre a estratificação social e a
localização de populações na cidade, bem como a partir dos lançamentos recentes do mercado
imobiliário, em empreendimentos residenciais de médio e alto padrão.
Para esta discussão, em termos gerais e incorporando diversas abordagens sobre a água
na cidade, são tratadas quatro formas territoriais desta relação, a partir da empiria da cidade de
Belém-PA e região: os parques da economia da cultura (JAMESON, 2001); a modernização
portuária; a engenharia ambiental; a gestão de recursos hídricos. A cada forma territorial abordada
corresponderia pelo menos uma abordagem e tipo de uso específicos da água na cidade:
observação; conexão/extensão; deslocamento; apropriação. Tais abordagens e usos não se situam
de forma estanque no interior de suas formas territoriais respectivas, mas transitam entre elas,
relacionando-as ou denotando novas formas de conflito sócio-ambiental. É desta forma que
296
funções e modos de aproveitamento desta interface entre cidade e água podem ser acrescentadas
a intervenções territoriais que não necessariamente os incorporavam. Um caso ilustrativo deste
fenômeno é o da conversão dos canais (outrora rios, ou, no caso de Belém, igarapés) de
drenagem em rios urbanos. Nesta conversão é preservada a função técnica da água como
deslocamento, mas é também incorporada sua noção de contemplação; este “acréscimo” sugere
não apenas alteração de uso, mas de tratamento, de função, e de tipo de acesso. De fato, a partir
desta alteração são reconfigurados usos no entorno da intervenção, e são modificados os atributos
daquela água na cidade. Circulações entre estes atributos, portanto, ocorrem em todas as
intervenções territoriais, concretas que são, da interface entre cidade e água.
As transformações nas formas territoriais de constituição da interface entre cidade e água
são importantes para o caso de Belém-PA. Há na Região Norte universo de certo modo pré-
capitalista, de fronteira econômica, e que se vê gradativamente confrontado com dinâmicas de
modernização; isto pode ser visto a partir de fenômenos próprios da chegada de determinadas
relações capitalistas na cidade e na região. Há transformação das lógicas daquelas formas
territoriais entre cidade e água, e no processo de urbanização de maior porte tais formas se
modificam com aprofundamento dos vetos e restrições aos potenciais destes territórios.
Especificamente, a cidade de Belém-PA é um caso de interesse para o estudo da relação
entre cidade e água também pelo caráter histórico de sua estruturação urbana diante de seus
igarapés, do Rio Guamá e da Baía do Guajará, seus principais cursos d´água. A cidade apresenta
alguns temas a partir dos quais se pode pensar esta relação. Um deles é o do Alagadiço do Piri,
um pântano que representou a primeira grande intervenção urbanística da cidade, quando recebeu
obra de ensecamento, e que ainda hoje suscita debates sobre a opção de drenar o canal ou mantê-
lo “veneziado”, segundo a proposta do Major Gronsfeld. O porto da cidade, com sua racionalização
e concentração da atividade de circulação de mercadorias e pessoas, também é um exemplo de
interesse, pela modificação no padrão de acesso ao rio que acarretou e pela relação da estrutura
formal, tecnologicamente consagrada, e os diversos portos informais existentes na cidade. Como
apontado em termos generalizados, é muito curioso que nos tempos atuais justamente as
estruturas portuárias da virada dos séculos XIX e XX sejam tidas como “obsoletas” e esvaziadas,
quando estas mesmas estruturas reconfiguraram e removeram espacialmente antigos “portos”
informais, quando de sua instalação.
297
Em Belém-PA, por outro lado, a relação entre cidade e água apresenta várias áreas
periféricas, precárias e com densidades relativamente altas, onde a população reside em situação
de proximidade em relação aos antigos igarapés urbanos, que a engenharia local chama de canais.
As bacias hidrográficas de Belém-PA com ocupação de mais alta densidade são aquelas onde
reside uma parte significativa de sua pobreza urbana. Estes são locais de projetos de intervenção e
de uma qualificação pejorativa quase permanente, associada à idéia de remanejamento e impacto
ambiental negativo. Atividades econômicas destes locais, em meio a uma discussão generalizada
sobre “reapropriação” das margens fluviais da cidade, são também qualificadas como obstruções
ao novo projeto de “revitalização” destas margens, localmente chamadas de orla de Belém.
A respeito da própria idéia de uma “orla” da cidade de Belém-PA cabem alguns
comentários. A orla parece uma idéia um tanto amorfa, mas eventualmente toma formas com grau
razoável de objetividade, dependendo da circunstância. Pode ser dito que, no linguajar local e na
discussão pública a respeito da forma hegemônica de tratamento urbanístico das margens fluviais
da cidade, a “orla” seria um equivalente do parque linear urbano, mesclado a uma intervenção
viária, e associado a serviços de amenidades, lazer e consumo. De certo modo, é como se a “orla”
desejada pelas elites econômicas locais fosse uma versão estendida do waterfront; entretanto, pela
dinâmica que parece instalada na cidade, haveria também clara associação com novos
empreendimentos imobiliários de classe média e alta e com a incorporação da periferia próxima ao
estoque valorizado de terras centrais e urbanizadas da cidade.
Dentro da “ideologia” da orla fluvial da cidade (onde o termo não guarda tanta relação
com a acepção técnica de borda de água em relação às terras emersas) a figura do ribeirinho e do
“modo de vida” ribeirinho é representativa. O ribeirinho, enquanto mote, tem plasticidade notável:
circula na legislação urbanística municipal, em discursos elogiosos nas artes plásticas locais,
funciona como idéia contra e a favor de intervenções urbanísticas. Como síntese, o ribeirinho e sua
figura promovem adesão, por permitirem a produção de uma unificação identitária entre os
habitantes da cidade. O ribeirinho também permite uma reflexão sobre mecanismos discursivos e
ações políticas de produção de hegemonia; ele mobiliza e trafega entre natureza e cultura com
fluidez.
Mas ao ribeirinho, como estigma, estão associadas as baixadas, seu espaço de moradia
correspondente. As baixadas são, portanto, o problema sanitário urbano codificado mais antigo da
298
cidade, e uma questão crônica a resolver, ainda nos dias de hoje. Neste sentido, os agentes
tomam suas posições e se antagonizam, ou mistificam suas divergências, quando necessário, no
embate político e técnico da intervenção na cidade. Dentro de antagonismos de posições no
espaço social, alguns conflitos nem sempre devem aparecer (BOURDIEU, 1996b); isto pode ser visto
quando se trata de disputas pela apropriação desigual dos diferenciais de acesso ao ambiente, e a
territórios com qualificações específicas na cidade. Neste movimento são produzidas intervenções
territoriais na cidade, a respeito da uma possível e ampla questão da água.
Estes projetos e políticas de intervenção na cidade e na região incorporam a discussão
sobre a urbanização de áreas alagáveis e sobre as inovações no campo do saneamento. A revisão
do padrão de projeto e operação destas infra-estruturas é acompanhada dos discursos sobre a
remoção e sobre a reconfiguração dos potenciais econômicos dos territórios próximos à água.
Surge, portanto, um padrão renovado no conjunto das chamadas tecnologias ambientais urbanas,
e este padrão tem repercussão, também, na ocupação do território e no acesso ao ambiente
urbano.
A combinação de intervenção urbanística e tecnologias ambientais também pode ser
vista, embora sob outro aspecto, na abordagem sobre o parque naturalístico Mangal das Garças,
intervenção situada no limite do Centro Histórico de Belém-PA com a periferia próxima da cidade, e
vizinho à intervenção de urbanização de “orla” do projeto Portal da Amazônia. O parque é um dos
casos onde a intervenção procura recriar o lugar e o ambiente na cidade. O Mangal das Garças,
por outro lado, assinala uma inflexão dos equipamentos urbanos culturais em direção ao mote
ambiental, a uma noção de “resgate” do ambiente na cidade, encapsulando ecossistemas
amazônicos em alguns hectares de visitação e contemplação de natureza controlada. Neste
sentido, o parque guarda grandes semelhanças com os espaços da Arcádia citada por Simon
Schama (1996) como produtos do paisagismo e das então chamadas “artes urbanas” do século
XIX, em que se procurava reproduzir a natureza em espaços destinados à visitação e à fruição
estética da burguesia da época.
Por outro lado, o Mangal das Garças pode ser visto no contexto de Belém-PA como uma
variação, e uma extensão, de intervenções de natureza cultural nas margens fluviais da cidade. Em
Belém-PA, desde o começo dos anos 2000, algumas intervenções urbanísticas e arquiteturais têm
tido lugar, sobretudo ligadas a um discurso de “resgate” da visão da “orla” fluvial da cidade. Neste
299
caso, foram executadas intervenções com concepções diferenciadas, em disputa política entre
Governo do Estado do Pará e Prefeitura Municipal de Belém, com suas respectivas intervenções.
Os equipamentos culturais das margens fluviais da cidade exibem a tensão dos antagonismos
políticos de seus realizadores, e um discurso comum de “desobstrução” das margens da cidade.
Apesar de parecerem urbanisticamente diversos, a destinação dos espaços do que se
convencionou chamar de “orla” na cidade é quase monolítica. Parece ser concebido um “uso
único”, uma destinação já pronta para o caso: a “orla” da cidade se destina à implantação de usos
de amenidades, lazer e consumo. O caso dos equipamentos culturais do centro da cidade e de
suas margens de rios é inteiramente permeado por esses aspectos, portanto, mesmo com
eventuais diferenças de concepção. Concebidos como uma espécie de “resposta” às demandas
recentes pela apropriação dos diferenciais das margens do rio e da baía na cidade de Belém-PA,
tais equipamentos representaram uma disputa política pelo modelo de intervenção no que se
chamava, desde pelo menos as décadas de 1990 e 2000, de “orla” de Belém. Estas intervenções
também reconfiguraram, de certo modo, a paisagem urbana das margens fluviais da cidade, ao
criar novas referências de lazer, de espaço público, de consumo e de atratividade cultural e
econômica, em escalas variáveis. Um elemento curioso que persiste é que, apesar de se
pretenderem antagônicas, umas vinculadas ao planejamento estratégico de cidades e outras a um
discurso regionalista e socialmente inclusivo, as intervenções parecem ter o mesmo propósito
essencial: a suposta “devolução” da “orla” ao habitante da cidade. Neste sentido, compartilham a
mesma avaliação do caráter inapropriado de boa parte dos usos atuais das margens de rio da
cidade. Estas mesmas intervenções têm provocado debates curiosos na classe política, na
intelectualidade e na classe artística local, em manifestações que as colocam como elementos
não-consensuais na realidade da cidade e pautam a discussão sobre a viabilidade social destas
intervenções, e sua repercussão.
Em termos de uma água mais “técnica” está o caso da zona portuária da cidade. O Porto
de Belém passa, como vários portos urbanos seculares e centrais, pela discussão da
modernização portuária (BRASIL, 1993) do Brasil. Este processo de modernização de portos
pressupõe alterações no padrão territorial e na administração das zonas portuárias, e cria formas
novas de impacto ambiental, com redefinições nas escalas urbana e regional. A clara repercussão
econômica dos portos tem participação, também, na modificação das formas de apropriação do
300
território próximo à água. No processo de modernização, algumas estruturas e formas anteriores,
freqüentemente de menor porte e mais precárias (ou mesmo irregulares), da operação portuária,
tendem a ocupar terrenos e localizações menos nobres, e o próprio fluxo portuário mais
concentrado tende a migrar. Isto cria outros tipos de assimetria nesta dimensão da água como
possibilidade de conexão, extensão e deslocamento territorial.
Outro caso da problemática entre cidade e água seria o da gestão de recursos hídricos. A
gestão das águas no território, inclusive no urbano, se apresenta como um padrão razoavelmente
homogêneo em alguns aspectos na política ambiental, mesmo em países diferentes.
Essencialmente calcada no monitoramento, na gestão por bacia hidrográfica e num sistema de
referências econômicas e físico-territoriais, a gestão das águas apresenta operações técnicas de
crescente racionalização dos processos de apropriação da água e sua conversão em recurso
(termo econômico) ambiental. Esta abordagem e esta acepção da água representam formas de
veto no acesso, mas também representam a incorporação da água, neste sentido, como um ativo,
e como um item do ambiente crescentemente incorporado à dimensão do mercado, das trocas
econômicas. A gestão dos recursos hídricos, que pretende em algumas de suas vertentes regular o
uso pela via das equivalências, ao hierarquizar e mapear os usos e formas de apropriação da água,
representa um agente político de emissão e execução de um discurso normativo, de controle,
ainda que difuso, e de valoração e emissão de juízos sobre a legitimidade e a adequação do
acesso à substância, ora veículo, mas definitivamente convertida em recurso.
As formas territoriais abordadas têm suas lógicas próprias, exibem usos e atributos
sociais e territoriais específicos das águas diante do espaço ocupado e utilizado pelas sociedades.
Embora estas formas sejam diferentes, seus efeitos gerais e alguns de seus propósitos parecem
apontar para certo grau de convergência. Deste modo, apesar dos waterfronts, do porto
modernizado, da engenharia ambiental e da gestão de recursos hídricos serem fenômenos
essencialmente diferentes, não é apenas a presença da água como elemento da paisagem o que
os une. Aspectos de concentração de benesses, de formas de veto e controle difuso, regulação do
acesso ao ambiente parecem estar desenhados a partir de fatos aparentemente tão dissociados
quanto a revitalização de um equipamento urbano histórico e pré-fabricado, portuário, e uma infra-
estrutura projetada de espaço público associada a um canal de drenagem urbano. Nestes
fenômenos, e noutros exemplos, estariam presentes a dimensão substantiva dos cursos d´água
301
no território urbano e, ainda, a dimensão da convergência; todos representam um tipo de uso da
água no território que, contemporaneamente, se coloca atravessado diante de normatividades e
políticas de concentração dos notáveis diferenciais das margens dos cursos d´água, aqui tratados
no caso dos espaços urbanos. A convergência dos efeitos destas intervenções territoriais migra
em direção à consolidação de uma ampla política da água, onde o estabelecimento de formas de
regulação, veto e controle se reproduz através daquelas quatro intervenções.
Os parques urbanos do tipo waterfront abordam a água na cidade enquanto paisagem,
com as devidas seletividades quanto aos itens que nela podem constar, e com formas de
valorização econômica decorrentes destes diferenciais do território próximo à água.
Os portos modernizados, entretanto, abordam a água na cidade a partir de uma acepção
mais “técnica”. Esta água “técnica” é configurada enquanto veículo, como meio de escoamento,
de transportes, como forma de viabilizar fluxos. Neste sentido há aproximação deste caráter com a
dimensão do saneamento ambiental e do que se chama neste trabalho de engenharia ambiental.
Há uma clara abordagem da água na cidade enquanto fator de produção nas estruturas associadas
ao porto, ele próprio uma estrutura urbana de claro perfil econômico.
A engenharia ambiental, por sua vez, se aborda a água na cidade como veículo e como
meio, também parte de uma acepção da água na cidade enquanto substância, o que permeia as
formas ligadas mais diretamente à sua aplicação técnica. A engenharia ambiental, do mesmo
modo, associa outras abordagens do fenômeno na cidade ao conciliar atributos técnicos da água
enquanto veículo a reconfigurações urbanísticas da água como paisagem. Na discussão sobre o
se chama hoje de “águas urbanas”, por exemplo, existe uma espécie de tônica da intervenção
territorial; a descanalização de rios. Esta tecnologia, de certo modo, agrega tanto a dimensão da
água como veículo (preservando a função de canal de drenagem) quanto a da água como
paisagem (na implantação de variações do chamado parque linear urbano nas margens dos rios
urbanos, que são os mesmos cursos d´água anteriormente denominados canais).
A modalidade de intervenção territorial que se apresenta como mais ampla, com
repercussão em todas as demais, é a gestão de recursos hídricos. A gestão das águas tem uma
série de metodologias e pressupostos técnicos e políticos em sua atuação; classifica, hierarquiza e
estabelece normatividades sobre o planejamento territorial e sobre os usos dos itens do ambiente.
Sobre uma possível “questão da água”, a gestão de recursos hídricos estabelece classificações
302
entre usos “pesados” e “leves” e “sujos” ou “limpos”, de modo que haja o estabelecimento de
critérios de autorização e licenciamento de atividades e obras nas bacias hidrográficas. O próprio
recorte espacial da bacia se revela, no caso em estudo, um tema interessante, pela desconexão
inicial entre o reconhecimento fisiográfico da bacia hidrográfica como unidade de planejamento e
pela identificação de outros recortes, aparentados porém não idênticos, dos rios locais e de seus
tributários, obviamente percebidos como “complexos” hidrográficos inclusive pelos habitantes
locais, mas não necessariamente na extensão da bacia hidrográfica. A aparente desconexão entre
o critério técnico mais abstrato, a mancha da bacia, e a apreensão local, empírica, a linha do rio,
parece criar uma dificuldade adicional de implantação do modelo de planejamento e gestão do
ambiente e parece também sugerir necessidade de aproximação de abordagens em direção à
concretude dos fenômenos.
Assim, a dimensão da água na cidade pode incorporar diferentes sentidos, diferentes
práticas materiais (HARVEY, 1996b) na cidade. Esta multiplicidade de abordagens não apenas
denota diferentes modos de compreensão e uso; também evidencia seu caráter político.
Inicialmente a água (“urbana”, no caso) é tomada por substância, onde há decisões revestidas de
natureza técnico-científica, tidas como não-históricas. A este procedimento inicial de
racionalização e abstração segue-se outro, de conversão da água, “técnica”, em veículo, com
variações rumo a uma dimensão econômica (da água como fator de produção, por exemplo) ou
funcional (da água enquanto meio). Esta abordagem parece entrar em conflito, ou divergir
frontalmente, daquelas formas de tratamento das “águas urbanas” que fazem destes elementos
diferenciais paisagísticos; a água enquanto paisagem, entretanto, é ao mesmo tempo de natureza
plástica e ativo econômico, e potencial causador de elevações objetivas de rendas fundiárias.
Finalmente, a articulação geral destas abordagens da água na cidade pode ser feita pela
incorporação de todas as suas dimensões em torno da chamada gestão de recursos hídricos. Ao
implantar procedimentos de cunho político evidente, sob respaldo sólido de caráter técnico-
científico e alguma influência da militância ambientalista recente, a gestão das águas estabelece
um regime diferenciado sobre o ambiente. A conversão da água “substância” em recurso
demonstra a extensão desta medida, e o seu potencial de generalização e enorme difusão
territorial.
No contexto atual do município de Belém-PA, portanto, é que se insere a discussão deste
303
trabalho. Há, como dito, formas de territorialização, na cidade e em sua região, que remetem ao
conjunto de elementos citados quanto às possibilidades de abordagem e uso das águas. Embora
as estruturas urbanas tenham se alterado com aspectos da modernização, aqui entendida como
indissociável da consolidação de fatores da economia capitalista, aqueles elementos e
características básicas se mantêm, atualmente. Deste modo, portos, terrenos acrescidos e píeres,
espaços públicos e demais estruturas e usos das águas da cidade evidenciam, ainda que não de
forma direta, a permanência daquelas atividades entre a cidade e as águas. Nas cidades atuais, de
maior porte, tais usos persistem, embora modificados em relação àquelas formas anteriores. Os
casos concretos citados como referências em Belém-PA e em sua região representam, em certa
medida, exemplos destas transformações, embora preservando elementos da lógica constituinte
das formas de usar a interface entre o território produzido historicamente e a água como fator
locacional substantivo.
Tais iniciativas concretas (intervenções territoriais ou políticas de ordenamento do
território em curso ou em projeto) representam exemplos e aplicações das atividades citadas
nestes locais. São formas de uso e de abordagem das águas em contextos urbanos. Neste sentido,
alguns efeitos das medidas (técnicas, políticas, sócio-econômicas) apontam para formas novas,
contemporâneas, de aproveitamento da cidade em relação à água. Deste modo, apesar de
alteradas as formas, são mantidas, em aspectos estruturais, as abordagens e usos do território
urbanizado nas proximidades de cursos d´água.
Uma questão que persiste é justamente a dos efeitos da mudança contemporânea do
tratamento e da abordagem das águas na cidade. A cada intervenção territorial corresponde um
tipo de uso da interface cidade-água, mas também um tipo de desdobramento pelo seu uso.
No caso dos parques urbanos da chamada economia da cultura (JAMESON, 2000) como a
Estação das Docas, o complexo Feliz Lusitânia e o complexo Ver-O-Rio, a abordagem e o
tratamento da água na cidade parecem ser o de, predominantemente, estabelecer nos locais de
intervenção algumas formas de consumo visual (ZUKIN, 2000). Estes espaços, em geral,
representam antigas estruturas urbanas reconfiguradas para usos atuais das amenidades na
cidade, do lazer, do consumo; para uma nova economia urbana que faz das cidades plataformas
de serviços (SASSEN, 1998). Pela clivagem de classe e de perfil sócio-econômico que é
estabelecida nestes espaços, em geral, podemos inferir que a dimensão da água na cidade como
304
item da paisagem a sofrer observação e contemplação apresenta formas relativamente novas de
divisão, de delimitação do espaço social (BOURDIEU, 1996b). Assim, a dimensão da água na cidade
como item de observação e contemplação, de consumo visual (ZUKIN, 2000), é construída
atualmente a partir da preferência dada, nos projetos de intervenção urbana, às demandas
solváveis, recomendadas pelo Planejamento Estratégico de Cidades (VAINER, 2000).
No caso da modernização portuária (PORTO, 1999), o Porto de Belém — e o conjunto de
equipamentos portuários gerenciado pela CDP98
na região de entorno — parece exibir o tipo de
veto no acesso à água no território quanto ao porte, ao padrão e à possibilidade de conexão e
extensão deste território. Assim, as operações específicas, e monopólicas, que costumam ser
desempenhadas neste tipo de equipamento e com estrutura técnica, começam a ser
crescentemente reguladas, não apenas pelo padrão técnico e pelo controle dos fluxos de uma
jurisdição territorial e administrativa, mas por efetivos mecanismos econômicos espacializados em
um mercado de trocas segmentado e submetido a condições particulares e quase incontornáveis.
Assim funciona o atual fluxo e a competição entre zonas portuárias mundiais, e esta dinâmica cria
uma série de condições, sobretudo de natureza técnico-funcional e administrativa, de gestão, que
representam objetivamente o nível de viabilidade de uma estrutura portuária atual.
A possibilidade de conexão e extensão com o território situado nas proximidades das
águas navegáveis não é, portanto, apenas uma questão de contato e de uso de equipamentos e
espaços tecnicamente apropriados às embarcações e suas atividades. Isto representa antes a
faculdade de se estabelecer a operação dos portos contemporâneos e, portanto, de operar os
principais fluxos do comércio internacional atual. A questão independe, obviamente, da
(pouquíssima, diga-se) representatividade do Porto de Belém para a economia brasileira ou mesmo
latino-americana nos dias de hoje.
Além destes aspectos, o porto também representa, na cidade e em uma de suas várias
possibilidades de se caracterizar um “ambiente”, um exemplo de tratamento eminentemente
técnico das chamadas “águas urbanas”; a água “técnica” dos portos é, neste caso, sobretudo um
veículo, e esta característica a coloca com um grau de racionalização, objetividade, formalização e,
portanto, uma necessidade de controle e monitoramento inegáveis. É deste modo que, além de
98
CDP é a sigla de Companhia Docas do Pará, anteriormente ligada ao Ministério dos Transportes e hoje à Secretaria Especial
de Portos da Presidência da República.
305
representarem uma modalidade excepcional de avaliação das conexões e extensões entre o
território e suas águas, no caso da cidade, os portos são também exemplos de aplicação das
técnicas de transformação do terreno em efetivos equipamentos de produção. Assim, podemos
também falar em procedimentos de monitoramento e seletividade no acesso a estas águas em sua
abordagem e dimensão técnica.
No caso da engenharia ambiental a aplicação de projetos de tecnologias ambientalmente
mais “compreensivas”, associada, sobretudo, ao caso da macrodrenagem da Bacia Hidrográfica
da Estrada Nova, e ao caso do parque ambiental Mangal das Garças, remete ao processamento da
natureza na cidade. Esta espécie de “resgate” do ambiente urbano tem características
diversificadas, não se constituindo em movimento homogêneo, nem nos fenômenos constituintes
e nem nas abordagens diversas do que se revela possível enquadrar como “natureza” dentro do
ambiente urbano. Se houve um tempo histórico em que as águas no espaço produzido pelas
sociedades humanas modernas foram eventualmente indesejáveis (CORBIN, 1989) e expelidas com
freqüência, um dos preceitos destas novas tecnologias é justamente o de permitir alguma
restauração de dinâmicas hidrológicas naturais (BUENO, 2005; MELLO, 2005); percolação, vazão
sem pressão adicional excessiva, trajetos das águas que permitam dissipação de energia, retenção
temporária das águas em horas de pico de cheia, taludes de rios/canais de drenagem com pouca
inclinação, de modo a constituir planícies de inundação mais seguras e mecanicamente estáveis.
Esta água na cidade é, assim como a do porto, veículo, por sua função sanitária, de
escoamento de rejeitos. Por outro lado, esta abordagem das chamadas “águas urbanas” a
converte, progressivamente, em paisagem, e em item de contemplação, já que o tratamento
(paisagístico, sobretudo) destes cursos d´água e entornos costuma configurar locais típicos das
ditas “revitalizações” urbanas. Sendo substância, está é uma água de abordagens múltiplas na
cidade.
Com certas mudanças nas bases produtivas urbanas, e com a migração espacial de
alguns usos do solo enquadrados como “pesados” (como alguns tipos de indústria), é razoável
inferir que tenha mudado a abordagem acerca das propriedades e usos do ambiente urbano.
Assim, enquanto alguns cursos d´água podem ser tratados como locais de despejo e de
escoamento, após as intervenções ambientalmente compreensivas de hoje nota-se outra série de
propriedades e usos possíveis dos espaços próximos e sob a influência dos cursos d´água
306
urbanos. Enquanto os usos “pesados” dominavam os centros das cidades, e principalmente suas
áreas consolidadas e adensadas, em seus cursos d´água o caráter técnico se sobressaía em
relação aos demais atributos. No momento em que os novos usos se instalam e aquelas atividades
migram, aquela porção do ambiente urbano torna-se pronta para receber outros usos, e
tratamento, enquadrados como mais “leves” e apropriados para as frentes da nova economia
urbana — incluindo as amenidades, o lazer cultural e o consumo próprios dos equipamentos da
economia da cultura (JAMESON, 2001) recente. Embora persistam as águas “técnicas”, elas
coexistem com as abordagens da água urbana como item de contemplação e consumo visual
(ZUKIN, 2000) de uma paisagem economicamente segmentada.
Estes procedimentos de intervenção em saneamento, hoje, criaram uma série de medidas
que vêm sendo disseminadas em realidades urbanas absolutamente diferentes. Estas medidas,
dentre outros tópicos, podem ser sintetizadas nas numerosas e recentes experiências com a
descanalização, o “destampamento” de cursos d´água urbanos, procedimento que se tornou
comum em cidades de maior porte. Este procedimento é, portanto, uma síntese da reconfiguração
urbana dos cursos d´água cuja atribuição era, outrora, estritamente técnica, e hoje se revela
também como agente da transformação do espaço urbano em direção aos usos do novo terciário
e das economias urbanas baseadas na revitalização em geral. A partir deste movimento de
transformação, ocorrem mudanças de uso e de possibilidades de apropriação nestes territórios;
obviamente, padrões de assentamento e atividades correlatas àquelas tidas como desejáveis têm
apresentado maior capacidade de instalação; usos “pesados” ou caracterizados como “sujos”
são, portanto, qualificados como inadequados a tais espaços. Este aspecto, de fato, parece
transcender qualquer avaliação puramente técnica do tema.
Quanto aos usos “sujos” ou “pesados”, outrora muito relevantes na economia urbana,
pode ser dito que há transferência de localização. Tais usos passariam, tendencialmente, a
constituir uma espécie de periferia do ambiente urbano. Como tal, seriam deslocados para espaços
relativamente residuais diante do mercado de terras das cidades. Esta periferia ambiental urbana,
que já se pode notar em cidades de grande porte atuais, consolida formas atualizadas da
segmentação dos acessos ao ambiente na cidade. Para as áreas que recebem tratamento nos
moldes da gestão e do planejamento ambiental contemporâneos, entretanto, a característica e o
modo de acesso e apropriação do ambiente urbano tende a ser diferenciado e, sobretudo,
307
articulado aos novos usos tidos como ambientalmente aceitáveis na cidade. Este processo denota
claramente a tendência, nas sociedades capitalistas, de criação de estratos e segmentos,
segregados, no acesso a recursos coletivamente produzidos. As formas de classificação social
dos fenômenos, neste caso, estabelecem a legitimidade do que pode ser praticado, e do que é
considerado tolerável na cidade (ou em outros territórios, em escala ampliada) enquanto potencial
de reprodução social.
O desempenho dos usos e atividades no território próximo à água, diante destas
classificações, é o que permite que alguns destes usos e atividades tenham maior legitimidade e,
portanto, sejam considerados desejáveis no contexto do planejamento e da gestão ambiental
contemporâneos. A aparente polarização entre usos e padrões “sujos”, “limpos”, “pesados” ou
“leves” nos permite pensar nestes como fenômenos sociais, e enquanto posições no espaço
social; cada categoria é, em geral, representada por um grupo de agentes, lidos pelos demais e
posicionado de acordo com suas respectivas visões de mundo e lógicas operativas (BOURDIEU,
1996b). A normatividade desta política do ambiente, com seus critérios, sugere um conjunto de
fatores que estabeleçam performances, desempenhos e perfis tidos como desejáveis. No caso do
território da cidade, estes critérios se assemelham a discursos (FOUCAULT, 2009), no sentido de
enunciados que estabelecem hierarquias e categorias sobre os eventos e os fenômenos. Neste
sentido, haveria maior legitimidade naqueles usos e padrões que se coadunam com certos
princípios do que se chama hoje de gestão ambiental. Sob outra perspectiva, a gestão de recursos
hídricos, apesar dos ideais de democratização do acesso à água em suas várias formas, e da
defesa dos usos múltiplos (MMA, 2004; 2006), produziria a divisão entre atividades. Deste modo,
a própria lógica de divisão do mundo (BOURDIEU, 1996b) produz o veto no acesso ao recurso.
No caso específico da gestão de recursos hídricos, portanto, a questão é ao mesmo
tempo mais difusa e, justamente por isso, mais abrangente. O amadurecimento e a consolidação
institucional e legal de uma política ambiental especificamente ocupada do
gerenciamento/administração/condução política das águas no território é algo bastante digno de
nota, sem dúvida. A gestão de recursos hídricos teria uma característica interessante para se
estudar a cidade em sua relação territorial com os cursos d´água; uma idéia generalizada, porém
objetiva, de monitoramento, de mapeamento e, sobretudo, de controle; mas isto é posto em prática
de uma forma difusa, inespecífica quanto a localizações espaciais ou grupos sociais. Há atividades
308
que são, invariavelmente, objeto de acompanhamento mais detido da gestão das águas, como
alguns tipos de indústria, ou estruturas de engenharia de grande porte como barragens, comportas,
vertedouros, eclusas, ou ainda as diversas formas de captação, superficial ou subterrânea. O caso
em estudo particular, o da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) do Governo do Estado
do Pará, busca estes princípios em sua política de gestão de recursos hídricos, inclusive (SEMA,
2009). Em todo caso, a gestão das águas se coloca como atividade dispersa e generalizada
territorialmente que, de posse de um cadastro (SEMA, op. cit.) e de um conjunto de regras
codificadas e amparadas por diretrizes de natureza técnico-científica, versa sobre as práticas e
abordagens consideradas como legítimas para a apropriação daquela substância.
Como dito, a política de gestão de recursos hídricos no caso em estudo é quase
exclusivamente referente ao exemplo da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) do
Governo do Estado do Pará. No nível estadual esta política dividiu o Pará em sete regiões
hidrográficas99
(SECTAM, 2005), cujo critério relaciona número de municípios componentes de
uma bacia hidrográfica, distribuição da ocupação territorial na bacia e distribuição de atividades
econômicas na bacia (SECTAM, op. cit.) Esta “regionalização” segue características técnicas do
modelo francês de gestão territorial por bacia hidrográfica (BARRAQUE, 1992). Características sócio-
econômicas são cruzadas com dados de natureza físico-ambiental; usos e atividades econômicas
são avaliados por seu porte e arranjo territorial.
A lógica da organização territorial da gestão das águas por bacia hidrográfica encontra-se
no centro da política. Este recorte espacial é antigo; podemos remontá-lo a certo tipo secular de
ordenamento territorial europeu (sobretudo francês), e aos primórdios do urbanismo e do
planejamento regional, como no caso da “polística” de Patrick Geddes (GEDDES, 1994); pessoas,
sociedades, atividades econômicas, substrato ambiental, e um todo imaginado em operação e
interação entre tais partes. Há, entretanto, um conflito entre a gestão territorial por bacias, de resto
tecnicamente adequada, e a própria lógica de assentamento e constituição territorial dos agentes
na região. Em termos descritivos, um primeiro conflito ocorre na própria “geografia” do arranjo;
enquanto luta-se pelo reconhecimento da bacia hidrográfica como unidade política e ambiental,
99
Em reestruturação administrativa do ano de 2007, o Governo do Estado do Pará extinguiu a SECTAM (antiga Secretaria
Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente) e desmembrou suas funções entre duas novas Secretarias de Estado;
SEDECT (Secretaria de Estado de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia) e SEMA (Secretaria de Estado de Meio Ambiente),
esta última responsável direta pela política ambiental do Pará.
309
com um comitê próprio e questões atinentes a seus fluxos e dinâmicas, na região a questão é
abordada no sentido mais linear do vínculo com o rio. Enquanto a política de gestão de recursos
hídricos raciocina a “mancha” da bacia, na região estrutura-se a partir da “linha” do curso d´água,
o que aliás denota uma curiosa espécie de “naturalidade” no linguajar local (BENCHIMOL, 1995). O
reconhecimento da bacia hidrográfica como unidade territorial politicamente legítima é, ainda, algo
que depende de processo histórico, pois não se coaduna propriamente com a forma de
territorialização e reconhecimento das populações urbanas e rurais/ribeirinhas da região. Embora
haja óbvia relação entre as contribuições dos cursos d´água, a topografia do sítio e a delimitação
das bacias, a “instância” política não se identifica, propriamente, com este recorte. Esta é,
inclusive, uma discussão interessante, que se contrapõe às regionalizações clássicas que, por
exemplo, estabelecem algum grau de identidade entre regiões “naturais” e “históricas”, por
exemplo (GEORGE, 1970).
A gestão de recursos hídricos também estabelece a aplicação da lógica de certas
orientações da economia política, em geral mais ortodoxas, à política ambiental e ao ordenamento
territorial. A economia de inclinações neoclássicas estabelece um paralelo estreito com a
dimensão (socialmente construída) da escassez da água e de sua abordagem como recurso finito
(ROMEIRO, 2004; SWYNGEDOUW, 2004). O “funil” da água, narrativa já clássica que introduz
praticamente qualquer texto que se pretenda didático ou informativo sobre o tema, ajuda a
comprovar este aspecto. Há uma dimensão socialmente construída da água como recurso
ambiental escasso e há constatações científicas sobre a assimetria na distribuição espacial, na
disponibilidade e no seu acesso. Esta dimensão da escassez e da assimetria é discutida
amplamente hoje. No caso específico deste estudo, a escassez é novamente levantada, dentro do
espírito corrente da discussão sobre a gestão das águas. Há, em paralelo, uma dúvida; como
gerenciar a abundância com perda de qualidade, que parece ser o caso mais apropriado ao se
discutir o tema da gestão de recursos hídricos na Amazônia, especificamente (SEMA, 2007)? A
questão, portanto, não é apenas de valoração econômica e princípios de pagamento e
compensação, via outorga ou outros mecanismos, mas consiste também em pensar estas
“equivalências” e suas viabilidades.
Em suma, o debate sobre a gestão das águas estabelece que haja um padrão de acesso
ao recurso; ao concebê-lo como uma espécie de “ativo ambiental”, estabelece um horizonte de
310
investimentos e perdas e um sistema de preços. Além destes aspectos, na gestão de recursos
hídricos é disposto um conjunto de usos e atividades considerados razoavelmente legítimos no
acesso à água, dentro do cumprimento de algumas exigências. Neste princípio, é estabelecido
aquele regime de coerção de que nos falaria, por exemplo, Michel Foucault (2009); nas sociedades
ocidentais há a criação ritual de formas de controle difuso e de consolidação de idéias e de
práticas “legítimas”, e isto está presente no discurso, como ação, como intervenção. Em nome do
já citado princípio básico da política nacional, o do uso múltiplo da água (MMA, 2004; 2006),
estão diretrizes de estreitamento e alguma redução desta multiplicidade, portanto. Isto é
contraditório, mas também constituinte da forma de se intervir na vida social, em nossos moldes
vigentes; o veto e as construções sobre o legítimo e a aceitação são estabelecidos ritualmente,
inclusive pelos discursos (científicos, culturais, técnicos, do senso comum, da produção
econômica) (FOUCAULT, op. cit.) Desta forma, determinados padrões, usos e atividades e
localizações passam a ser avaliados como indesejáveis, e regulados por uma política ambiental
específica que preconiza a aplicação da esfera econômica ao ambiente e o monitoramento técnico
de sua apropriação. Esta é, de certo modo, uma analogia da operação de esquadrinhamento e de
mapeamento de que falam Deleuze e Guattari (1997b) sobre o mar e sobre as técnicas da
cartografia, bem como sobre certa racionalidade moderna de eliminação dos espaços lisos.
Os quatro tipos de intervenções territoriais, de formas diferentes, estabelecem
abordagens diversas sobre a água na cidade, ou sobre este item do ambiente no território urbano.
Neste sentido torna-se possível falar que o ambiente urbano, além de ser múltiplo, posto que
representado por uma série de itens diferenciados entre si, sofre disputa e é objeto de
segmentações de natureza sócio-espacial. A água na cidade passa por processo semelhante.
Nas atuais intervenções de engenharia, sobretudo naquelas que têm propósitos de
recuperação ambiental, relação com a drenagem urbana ou com o paisagismo, é que se podem
notar as características mais evidentes desta diversidade de sentidos. A água na cidade, a partir da
leitura daqueles quatro tipos de intervenções territoriais, pode ser lida como passível de diferentes
abordagens. O território idiossincrático da interface (MORAES, 1999) com as águas exibe, ao
mesmo tempo, um ambiente onde a água, substância, elemento “natural”, é ao mesmo tempo:
paisagem de consumo visual, formando um quadro de seletividades do que deve constar no
território; veículo, para fins instrumentais diversos, sejam eles do transporte, das infra-estruturas
311
técnicas, do insumo produtivo ou de fatores de produção; recurso, de natureza essencialmente
econômica, onde a entrada na esfera de circulação do mercado garantiria a distribuição adequada
entre os usuários. Ao contrário, pois, do que a política ambiental contemporânea se propõe a
executar, a convergência das políticas da água, ao formar em torno dela novos sentidos no
ambiente e no território, cria, portanto, estruturas de segregação de acesso, de aprofundamento
das desigualdades; cria um esquadrinhamento (DELEUZE; GUATTARI, 1997b) tipicamente moderno,
uma difusa e aberta política de controle da água no território da cidade (PONTE, 2009). Esta política
é daquela mesma natureza do veto, da ordem instaurada por procedimentos discursivos e
operativos na lógica social do poder e do impedimento. Assim, a água, porção do ambiente que
pode ser recortada no território da cidade, é objeto de políticas que declaram como princípio a
democratização e a garantia de acesso, mas que convergem para efeitos de controle, de criação
de um ambiente de restrições e de não-democratização do acesso, pelo seu caráter normativo e
segregador. Curiosamente, as intervenções territoriais (dentre as quais listamos apenas quatro
tipos) parecem não contemplar estratégias de trabalho junto à reprodução destas desigualdades,
criando-as e mantendo-as. Ignora-se, assim, o processo histórico de formação territorial que cria
os tais diferenciais dos espaços humanos produzidos sob o “alcance” de cursos d´água. As
intervenções territoriais da cidade próxima à água não parecem contemplar a multiplicidade de
padrões e usos, as possibilidades lisas de deslocamento e mobilidade ou suas variadas formas de
uso e apropriação. Estes fatores, por outro lado, parecem representar estratégias relevantes de
uma possível política ambiental e territorial de democratização ou de compartilhamento e
cooperação no acesso (sentido aberto) a itens do ambiente.
A água na cidade é um espaço de disputa e de seletividade sobre quem tem direito e
legitimidade no acesso ao ambiente urbano, recriado e reconfigurado para acesso a alguns. A água
na cidade, pela convergência das políticas de gestão do ambiente ou da paisagem, ou por efeito
das intervenções territoriais que dela dão conta, torna-se objeto de controle difuso por uma forma
ampliada de política e planejamento ambiental. Esta forma de poder, materializada por ações de
Estado e outras ações em torno dele, com traços efetivos que exercem função hegemônica e, por
conseguinte, mantêm a estabilidade entre vários interesses da sociedade (GRAMSCI, 1992), é então
caracterizada como uma política da água.
312
6. REFERÊNCIAS
ACSELRAD, Henri. Sustentabilidad y ciudad. Eure. Revista latinoamericana de estudios urbano
regionales, Santiago, v. 25, n. 74, p. 36-59, mai. 1999.
_____________. Sentidos da sustentabilidade urbana. In: ___________. (org.) A duração das
cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 27-55.
(Coleção Espaços do Desenvolvimento).
_____________. Desregulamentação, contradições espaciais e sustentabilidade urbana. Revista
paranaense de desenvolvimento, Curitiba, n. 107, p. 25-38, jul./dez. 2004.
_____________. Justiça Ambiental: ação coletiva e estratégias argumentativas. In: ACSELRAD,
Henri; PÁDUA, José Augusto; HERCULANO, Selene (orgs.) Justiça ambiental e cidadania. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 2004b. p. 26-39.
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; SPRANDEL, Márcia Anita. Palafitas do Jenipapo na ilha de Marajó:
a construção da terra, o uso comum das águas e o conflito. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, ano
XVI, n. 2, 2002, p. 9-55.
ANA (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS). Regiões hidrográficas. Brasília, 2009. Disponível em:
<http://www2.ana.gov.br/Paginas/portais/bacias/>. Acesso em: 16 mar. 2010.
ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. De Viena a Santos: Camillo Sitte e Saturnino de Brito. In:
SITTE, Camillo. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo: Ática,
1992. p. 206-233. (Temas, 26).
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Uma estratégia fatal. A cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES,
Otília Beatriz Fiori; VAINER, Carlos Bernardo; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único:
desmanchando consensos. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. p. 11-74 (Coleção Zero à Esquerda).
ARAUJO, Frederico Guilherme Bandeira de. “Identidade” e “Território” enquanto simulacros
discursivos. In: ________; HAESBAERTH, Rogério (orgs.) Identidades e territórios: questões e
olhares contemporâneos. Rio de Janeiro: Access, 2007. p.13-32.
ARAUJO, Gustavo Henrique de Sousa; ALMEIDA, Josimar Ribeiro de; GUERRA, Antonio José Teixeira.
Gestão ambiental de áreas degradadas. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
ARGAN, Giulio Carlo. O espaço visual da cidade. In: _________. História da arte como História da
cidade. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (Coleção a). p. 225-241.
ASHWORTH, Gregory J.; VOOGD, Henk. Selling the city: marketing approaches in public sector urban
planning. Londres: Belhaven Press, 1990.
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo:
Martins Fontes, 1997. (Coleção Tópicos.)
BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio corográfico sobre a província do Pará. Brasília: Senado
Federal; Conselho Editorial, 2004. (Edições do Senado Federal, v. 30).
BARRAQUE, Bernard. A gestão da água em alguns países europeus. Espaço & Debates, São Paulo,
313
n. 35, p. 35-45, 1992.
BAKER, Alan R. H. Geography and history. Bridging the divide. Cambridge: Cambridge University
Press, 2003. (Cambridge studies in historical geography, 36).
BAUDOUIN, Thierry. A cidade portuária na mundialização. In: SILVA, Gerardo; COCCO, Giuseppe (orgs.)
Cidades e portos: os espaços da globalização. Rio de Janeiro: DP & A, 1999. p. 27-38. (Coleção
Espaços do Desenvolvimento).
_____________. Territórios produtivos, empresas multinacionais e Estados na logística mundial.
In: MONIÉ, Frédéric; SILVA, Gerardo (orgs.) A mobilização produtiva dos territórios: instituições e
logística do desenvolvimento local. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 25-42. (Coleção Espaços do
Desenvolvimento).
BELÉM, Prefeitura Municipal. Secretaria Municipal de Assuntos Jurídicos. Decretos e Leis
Municipais. Lei ordinária n.º 7603, de 13 de janeiro de 1993. Dispõe sobre o Plano Diretor do
Município de Belém e dá outras providências. 1993. 66 f. Disponível em: <
http://www.belem.pa.gov.br/semaj/app/Sistema/view_lei.php?id_lei=2346> . Acesso em: 24 jun.
2009.
_____________________. ; Secretaria Municipal de Assuntos Jurídicos. Decretos e Leis
Municipais. Lei ordinária nº 7.709, de 18 de maio de 1994. Dispõe sobre a preservação e proteção
do Patrimônio Histórico, Artístico, Ambiental, Cultural do Município de Belém e dá outras
providências. 1994. Disponível em:
<http://www.belem.pa.gov.br/semaj/app/Sistema/view_lei.php?id_lei=1407>. Acesso em: 15
set. 2008.
_____________________. PRO-Belém. Plano de reestruturação da orla de Belém. 102 f. Belém:
Prefeitura Municipal; Secretaria de Urbanismo, 2000. CD-ROM.
_____________________. Projeto Ver-O-Rio. Memorial descritivo (1ª etapa). 3 f. Belém:
Prefeitura Municipal; Gabinete do Prefeito; Assessoria de Projetos Especiais, 1 out. 2001. CD-ROM.
_____________________.Versão oficial Portal da Amazônia. Belém: Secretaria Municipal de
Urbanismo; Secretaria Municipal de Saneamento; Gabinete do Prefeito Municipal, 29 mar. 2006a. 5
f. Disponível em: <www.belem.pa.gov.br> . Acesso em: 10 nov. 2006.
_____________________. Portal da Amazônia. Urbanização da bacia da Estrada Nova e orla do
Rio Guamá. Belém: Prefeitura Municipal; Secretaria Municipal de Urbanismo, dez. 2006b. 67 f.
Roteiro de apresentação e discussão de audiência pública na Universidade Federal do Pará.
[Textos, imagens, gráficos eletrônicos.] 1 CD-ROM.
_____________________. Portal da Amazônia. Urbanização da bacia da Estrada Nova e orla do
Rio Guamá. Belém: Prefeitura Municipal; Secretaria Municipal de Urbanismo, mai. 2006c. 67 f.
Roteiro de apresentação e discussão de audiência pública no Conselho Regional de Engenharia,
Arquitetura e Agronomia do Pará. [Textos, imagens, vídeo, gráficos, mapas, projetos técnicos
eletrônicos.] 1 CD-ROM.
_____________________. Anuário estatístico do município de Belém 2006. 520 f. Belém:
PMB/SEGEP, 2006d. CD-ROM.
314
_____________________. Audiência pública sobre Portal da Amazônia. Portal da Câmara
Municipal de Belém (CMB). Belém: CMB; Assessoria de Comunicação Social, 2007. 2 f.
Disponível em: <http://www.cmb.pa.gov.br/eportal>. Acesso em: 30 jul. 2007.
_____________________. Lei nº 8.655, de 30 de julho de 2008. Dispõe sobre o Plano Diretor do
Município de Belém, e dá outras providências. 2008. 122 f. Disponível em:
<http://servicos.belem.pa.gov.br/pdf/segep/Plano_diretor/Lei_8655_2008/LEI%20N8655-08%20-
%20PLANO%20DIRETOR%20BEL%c9M.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2008.
_____________________; SEURB (SECRETARIA MUNICIPAL DE URBANISMO). Orla da Estrada Nova.
Relatório de impacto ambiental - RIMA. 121 f. Belém: Prefeitura Municipal; SEURB, JGS Consultoria
e participações LTDA., jun. 2006. CD-ROM. [Relatório técnico; primeiro volume do EIA-RIMA da
Bacia da Estrada Nova.]
BENCHIMOL, Samuel. O homem e o rio na Amazônia: uma abordagem eco-sociológica. In: COSTA,
José Marcelino Monteiro da (org.) Amazônia: desenvolvimento econômico, desenvolvimento
sustentável e sustentabilidade de recursos naturais. Belém: UFPA/NUMA, 1995. p. 191-204. (Série
Universidade e Meio Ambiente, n. 8).
BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
BENKO, Georges. Economia, espaço e globalização: na aurora do século XXI. 2. ed. São Paulo:
HUCITEC; Annablume, 2002.
BERBERT, Carlos Oití. O desafio das águas. In: MARTINS, Rodrigo Constante; VALENCIO, Norma
Felicidade Lopes da Silva (orgs.) Uso e gestão dos recursos hídricos no Brasil: desafios teóricos
e político-institucionais. São Carlos: RiMA, 2003. v. 2. p. 81-97.
BEST PRICE ART. Fountain of the Four Rivers. Nova Iorque, 2009. Disponível em:
<http://www.bestpriceart.com/vault/wgart_-art-b-bernini-gianlore-sculptur-1650-4_rivers.jpg>.
Acesso em: 16 mar. 2010. [Imagem digital, 1.022 x 790 pixels, cor.]
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP,
1996a. (Coleção Clássicos, n. 4).
___________. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996b.
___________. O poder simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro: 1998.
___________; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Oficio de sociólogo.
Metodologia da pesquisa na sociologia. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
BOURDIN, Alain. A questão local. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. (Coleção Espaços do
Desenvolvimento).
BRASIL, Presidência da República; Subchefia para assuntos jurídicos. Lei n.º 8.630, de 25 de
fevereiro de 1993. Dispõe sobre o regime jurídico da exploração dos portos organizados e das
instalações portuárias e dá outras providências. (LEI DOS PORTOS). Brasília, 25 fev. 1993. 17 f.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/Leis/L8630.htm>. Acesso em: 10 jan. 2010.
BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Lisboa:
Livraria Martins Fontes Editora, 1983. 2 v., v. 1.
315
BRENNER, Neil; THEODORE; Nik. Cities and the geographies of "actually existing neoliberalism".
Antipode. A radical journal of Geography, Londres, n. 34, v. 3, p. 349–379, jun. 2002.
BRITTO, Ana Lúcia. Gestão de Serviços de Saneamento em Áreas Metropolitanas: as alternativas
existentes diante da necessidade de universalização dos serviços e preservação da qualidade
ambiental. In: Anais. II Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Ambiente e Sociedade (ANPPAS). Indaiatuba-SP, 24 a 26 de maio de 2004 — São Paulo-SP:
ANPPAS, 2004. Disponível em:
<http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT11/ana_britto.pdf>. Acesso em: 10
mar. 2010.
BUENO, Laura Machado de Mello. O tratamento especial de fundos de vale em projetos de
urbanização de assentamentos precários como estratégia de recuperação das águas urbanas. In:
Anais: I Seminário Nacional sobre Regeneração Ambiental de Cidades: Águas Urbanas, Rio de
Janeiro, 5 a 8 de dezembro de 2005; [organizado por] Vera Regina Tângari, Mônica Bahia Schlee,
Rubens de Andrade. – Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, 2005.1 CD-ROM.
CAMPBELL, Scott. Green cities, growing cities, just cities? Urban planning and the contradictions of
sustainable development. Journal of the American Planning Association, Chicago/IL, v. 62, n. 3,
p. 296-312, verão 1996.
CARDOSO, Adauto Lucio. Irregularidade urbanística: questionando algumas hipóteses. Cadernos
IPPUR, Rio de Janeiro, ano XVII, n. 1, p. 35-50, jan./jul. 2003.
CARDOSO, Ana Cláudia Duarte; LIMA, José Júlio Ferreira. Tipologias e padrões de ocupação urbana
na Amazônia Oriental : para quê e para quem? In: CARDOSO, Ana Cláudia Duarte (org.) O rural e o
urbano na Amazônia: diferentes olhares em perspectivas. Belém: EDUFPA, 2006. p. 55-93.
CARDOSO, Ana Cláudia Duarte; LIMA, José Júlio Ferreira; GUIMARÃES, Gisele Joicy da Silva. Alterações
no espaço urbano de Cametá e os impactos a jusante da UHE Tucuruí. In: CASTRO, Edna (org.)
Cidades na floresta. São Paulo: Annablume, 2008. p. 309-328.
CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. (Coleção Pensamento
Crítico, n. 48).
CASTRO, Edna; SANTOS, Maria Antonieta. Belém de água e de portos: ação do Estado e
modernização na superfície. In: CASTRO, Edna (org.) Belém de águas e ilhas. Belém: CEJUP, 2006.
p. 25-43.
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007. (Coleção Todas as Artes.)
CDP (COMPANHIA DOCAS DO PARÁ). Porto de Belém. Belém, 2005. Disponível em: <
http://www.cdp.com.br/porto.php?nIdPorto=5>. Acesso em: 20 jan. 2007.
CHÃO E TETO Imobiliária. Portal Chão e Teto. Belém, 2007. Disponível em:
<http://www.chaoeteto.com.br/ImoveisConstrutoras.asp#> . Acesso em: 13 dez. 2009.
CHILE, Walter. Por que amar a Cidade Velha? Pará +. Belém, v. 47, p. 10-13, jan. 2006.
CHOAY, Françoise. O urbanismo. Utopias e realidades - uma antologia. 3. ed. São Paulo:
316
Perspectiva, 1997. (Coleção Estudos, n. 67).
_________. A alegoria do patrimônio. São Paulo: UNESP; Estação Liberdade, 2001.
CGER (Commission on Geosciences, Environment, and Resources/Committee on Valuing Ground
Water; Water Science and Technology Board; Commission on Geosciences, Environment, and
Resources; National Research Council). Valuing ground water: economic concepts and
approaches. Washington, DC: National Academy Press, 1997.
CLARK, David. Introdução à geografia urbana. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.
COCCO, Giuseppe; SILVA, Gerardo. (orgs.) Cidades e portos: os espaços da globalização. Rio de
Janeiro: Editora DP&A, 1999. (Coleção Espaços do Desenvolvimento).
CODEM (Companhia de desenvolvimento da área metropolitana de Belém/Prefeitura Municipal de
Belém). Cadastro Técnico Multifinalitário. Belém: CODEM/PMB, 2000. 3 CD-ROMs. [Mapas
temáticos, ortofotos.]
COHAB-PA (COMPANHIA DE HABITAÇÃO DO ESTADO DO PARÁ); SEDURB (SECRETARIA EXECUTIVA DE
DESENVOLVIMENTO URBANO E REGIONAL); JICA (JAPAN INTERNATIONAL COOPERATION AGENCY). Plano diretor
de transporte urbano da Região Metropolitana de Belém (PDTU). Relatório final. Belém: COHAB-
PA; SEDURB, mar. 2001. CD-ROM.
COIMBRA, Oswaldo. Engenharia militar européia na Amazônia do século XVIII: as três décadas de
Landi no Gram-Pará (uma pesquisa jornalística). Belém: Prefeitura Municipal de Belém, 2003.
COLLIN, Michèle. Mobilizações produtivas na cidade portuária. In: MONIÉ, Frédéric; SILVA, Gerardo
(orgs.) A mobilização produtiva dos territórios: instituições e logística do desenvolvimento local.
Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 43-55. (Coleção Espaços do Desenvolvimento).
CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
CORRÊA, Roberto Lobato. A periodização da rede urbana da Amazônia. Revista Brasileira de
Geografia, Rio de Janeiro, v. 4, n. 3, p. 39-68, jul./set. 1987.
COSANPA (Companhia de Saneamento do Pará). História do Saneamento no Pará. Belém, 2009.
Disponível em: <http://www.cosanpa.pa.gov.br/historico.asp>. Acesso em: 20 mar. 2010.
COSTA, Iraci del Nero da. Pesos e medidas no período colonial brasileiro: denominações e relações.
Boletim de História Demográfica, São Paulo, FEA-USP, n. 1, v. 1, 1994. Disponível em:
<http://historia_demografica.tripod.com/iddcosta/pdfs-ira/co11.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2009.
CRUZ, Ernesto. História de Belém. Belém: Editora da UFPA, 1973. 2 v.
DAVIS, Mike. Ecologia do medo. Los Angeles e a fabricação de um desastre. São Paulo: Record,
2001.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: _______. Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. v. 1. Rio de Janeiro: ed. 34, 1995. p. 11-38.
_________________. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: _________________.
Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v. 5. São Paulo: ed. 34. 1997a. p. 11-110.
317
_________________. O liso e o estriado. In: ___________. Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. v. 5. São Paulo: ed. 34, 1997b. p. 179-214.
DEL RIO, Vicente. Voltando às origens. A revitalização de áreas portuárias nos centros urbanos.
Arquitextos. (Online), São Paulo, n. 15, ago. 2001. Disponível em:
<http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp091.asp>. Acesso em: 3 out. 2007.
DESCOLA, Philippe. Constructing natures: symbolic ecology and social practice. In: DESCOLA,
Philippe; PÁLSSON, Gisli (orgs.) Nature and society. Anthropological perspectives. Londres:
Routledge, 1996. p. 82-101.
___________. Ecologia e cosmologia. In: CASTRO, Edna; PINTON, Florence (orgs.) Faces do trópico
úmido: conceitos e novas questões sobre desenvolvimento e meio ambiente. Belém: CEJUP;
UFPA-NAEA, 1997. p. 143-161.
___________. Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana, Rio de
Janeiro, v. 4, n. 1, abr. 1998, p. 23-45. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
93131998000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 4 Nov. 2009.
DIÁRIO DO PARÁ. Carpe Diem já é um sucesso. Diário do Pará, Belém, 19 mai. 2008. Caderno
Mercado Imobiliário. Disponível em: <www.diariodopara.com.br>. Acesso em: 10 jun. 2009.
DIEGUES, Antonio Carlos. Ilhas e mares: simbolismo e imaginário. São Paulo: HUCITEC, 1998.
DOUMENGE, François. Geografia dos mares. São Paulo: Difel, 1967. (Coleção Terras e Povos, n. 3).
EICHENGREEN, Barry. Financing infrastructure in developing countries. Lessons from the railway age.
Policy Research Working Paper Series, Washington/DC, n. 1379, p. 1-48, nov. 1994. [Texto de
apoio do Relatório Mundial sobre Desenvolvimento de 1994.] Disponível em: <
http://ideas.repec.org/p/wbk/wbrwps/1379.html>. Acesso em: 10 nov. 2007.
EMELIANOFF, Cyria. A noção de cidade sustentável no contexto europeu: alguns elementos de
enquadramento. Estudos e debates, Rio de Janeiro, n. 42, mar. 2003.
FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations). Coping with water scarcity. A
strategic issue and priority for system-wide action. 12 f. Roma: FAO; Genebra: UN-Water; ago.
2006. Disponível em: <ftp://ftp.fao.org/agl/aglw/docs/waterscarcity.pdf> . Acesso em: 30 out.
2007.
FEBVRE, Lucien. O Reno: história, mitos e realidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
FERNANDES, Antônio Sérgio Araújo. Fundo municipal de geração de emprego e renda Ver-O-Sol. In:
BARBOSA, Hélio Batista; SPINK, Peter (orgs.) 20 Experiências de Gestão Pública e Cidadania – Ciclo
de Premiação 2001. São Paulo: Programa Gestão Pública e Cidadania: Fundação Getúlio
Vargas/SP, 2002. p. 3-13. Disponível em: <
http://www.eaesp.fgvsp.br/subportais/ceapg/Acervo%20Virtual/Cadernos/Experi%C3%AAncias/200
1/10%20-%20ver-o-sol.pdf>. Acesso em: 09 set. 2009.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 20. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.
_________. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
318
dezembro de 1970. 18. ed. São Paulo: Loyola, 2009. (Leituras Filosóficas.)
FRACALANZA, Ana Paula. Água: de elemento natural a mercadoria. Sociedade & Natureza,
Uberlândia, n. 17, v. 33, p. 21-36, dez. 2005.
FURTADO, Lourdes Gonçalves. Sem barco, como pescar? In: XIMENES, Tereza et. al. Embarcações,
homens e rios na Amazônia. Belém: UFPA, 1992. p. 31-52.
GEDDES, Patrick. Cidades em evolução. Campinas/SP: Papirus, 1994. (Ofício de Arte e Forma).
GEORGE, Pierre. A ação do homem. São Paulo: Difel, 1970. (Coleção Terras e Povos, n. 6).
GONÇALVES, Maria Flora; BRANDÃO, Carlos Antônio; GALVÃO, Antônio Carlos Filgueira (orgs.) Regiões
e cidades, cidades nas regiões: o desafio urbano-regional. São Paulo: Ed. Unesp; ANPUR, 2003.
GPA (Global Programme of Action for the Protection of the Marine Environment from Land-based
Activities/United Nations Environment Programme/UNESCO). Why have a Global Programme of
Action? Amsterdã: GPA/UNESCO, 4 mar. 2007a. Disponível em: <
http://www.gpa.unep.org/content.html?id=180&ln=6> . Acesso em: 23 dez. 2007.
_____________. Ports and Harbours. In: ______. Physical Alterations and Destruction of
Habitats (PADH). Amsterdã: GPA/UNESCO, 2007b. Disponível em:
<http://padh.gpa.unep.org/page.cfm?theme=4> . Acesso em: 23 dez. 2007.
GPHS (GRUPO DE PESQUISA HIDRÁULICA E SANEAMENTO, INSTITUTO DE TECNOLOGIA, UNIVERSIDADE FEDERAL
DO PARÁ); COSANPA (COMPANHIA DE SANEAMENTO DO PARÁ). Bacias hidrográficas urbanas da Região
Metropolitana de Belém (RMB). Belém, 11 jan. 2008. CD-R0M. [Cartografia digital, formato
shapefile.]
GPHS (GRUPO DE PESQUISA HIDRÁULICA E SANEAMENTO, INSTITUTO DE TECNOLOGIA, UNIVERSIDADE FEDERAL
DO PARÁ). Estudo de alternativas de concepção do sistema de esgotamento sanitário das bacias
hidrográficas urbanas da região metropolitana de Belém. Relatório final: projeção demográfica
para municípios, áreas de planejamento e bacias hidrográficas. 44 f. Belém: GPHS/ITEC/UFPA;
COSANPA, jan. 2008. CD-ROM. [Relatório de pesquisa.]
GRAMSCI, Antonio. Politics and constitutional law. In: ________; HOARE, Quintin; SMITH, Geoffrey
Nowell (ed.) Selections from the Prison Notebooks of Antonio Gramsci. Nova Iorque: International
publishers; Londres: Lawrence and Wishart, 1992. p. 247-253.
GRONSFELD, Gaspar João Geraldo. Planta da cidade do Pará. 1771. 1 planta. In: Belém do Pará.
Belém: Alunorte, [199-]. p. 60. Disponível em:
<http://www.forumlandi.com.br/bibliotecaArq/planta60.jpg>. Acesso em: 19 abr. 2009.
_________. Planta da cidade do Pará. 1780. 1 planta. Original manuscrito do Arquivo Histórico do
Exército, Rio de Janeiro. In: Belém do Pará. Belém: Alunorte, [199-]. p. 59. Disponível em:
<http://www.forumlandi.com.br/bibliotecaArq/planta59.jpg>. Acesso em: 19 abr. 2009.
HALL, Peter. Cidades do amanhã. Uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no
século XX. São Paulo: Perspectiva, 1995. (Coleção Estudos, 123).
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
319
HARVEY, David. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980.
____________ . Los límites del capitalismo y la teoría marxista. México: Fondo de Cultura
Económica, 1990.
____________ . Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração
urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates, São Paulo, n. 39, p. 48-64, 1996a.
____________ . Justice, nature and the geography of difference. Londres: Blackwell, 1996b.
____________ . Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 9.
ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
HICKS, John Richard. Valor e capital: estudo sobre alguns princípios fundamentais da teoria
econômica. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os economistas).
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das
massas. In: __________. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro:
Zahar, 1985. p. 113-156.
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo demográfico 2000. Rio de Janeiro:
IBGE, 2000. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/default_censo_2000.shtm>. Acesso em: 10
fev. 2010.
_____. Censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em:
<http://censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso em: 01 abr. 2010.
IDESP (Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social do Pará). Belém: estudo ambiental do
estuário guajarino. Belém: IDESP-PA, 1990. (Série Relatórios de Pesquisa, 17).
JACOBS, Jane. The economy of cities. Nova Iorque: Vintage Books, 1970. (Economics &
Sociology.)
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.
(Temas; v. 41. Série Cultura e Sociedade.)
___________. O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária. In:
___________. A cultura do dinheiro. Ensaios sobre a globalização. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
2001. p. 173-206. (Coleção Zero à Esquerda.)
JORGE, Vitor Oliveira. Vitrinas muito iluminadas: interpelações de um arqueólogo à realidade que o
rodeia. Configurações. Porto, n. 0, 2005. Disponível em: <
http://configuracoes.planetaclix.pt/VitrinasIndex.htm#0>. Acesso em: 5 abr. 2008.
JORNAL PESSOAL. Beco do Carmo. Belém, 15 jul. 2008. Caderno Urbanismo. Disponível em:
<http://www.lucioflaviopinto.com.br/?p=183> . Acesso em: 21 set. 2009.
KAHTOUNI, Saide. Cidade das águas. São Carlos: RiMa, 2004.
LEFF, Enrique. A geopolítica da biodiversidade e o desenvolvimento sustentável: economização do
mundo, racionalidade ambiental e reapropriação social da natureza. In: MARTINS, Rodrigo Constante;
VALENCIO, Norma Felicidade Lopes da Silva (orgs.) Uso e gestão dos recursos hídricos no Brasil:
320
desafios teóricos e político-institucionais. São Carlos: RiMA, 2003. v. 2. p. 1-20.
________________. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: ________. História e Memória. 3. ed. Campinas:
Ed. Unicamp, 1994. p. 535-553.
LIMA, José Júlio Ferreira; CARDOSO, Ana Cláudia Duarte. Tipologias e padrões de ocupação na
Amazônia Oriental. In: CARDOSO, Ana Cláudia Duarte (org.) O urbano e rural na Amazônia. Belém:
Editora da UFPA, 2006. p. 55-93.
LIPIETZ, Alain. A regulationist approach to the future of urban ecology. Capitalism, Nature and
Socialism: a journal of socialist ecology, Nova Iorque, v. 3, n. 3, p. 101-110, set. 1992.
LOJKINE, Jean. O Estado capitalista e a questão urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Amazônia: Estado, homem, natureza. 2. ed. Belém: CEJUP, 2004.
(Coleção Amazoniana, v. 1).
MANGAL DAS GARÇAS. Mangal das Garças. 1 f. Belém: Mangal das Garças, 2006. Disponível em:
<http://www.mangal.com.br/pagina.php?cat=156>. Acesso em: 07 dez. 2009.
MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias. Planejamento urbano no Brasil.
In: ARANTES, Otília; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. A cidade do pensamento único:
desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 121-192. (Coleção Zero à Esquerda).
MARINHA DO BRASIL. Mar territorial. Rio de Janeiro; Brasília: Senado Federal/Serviço Gráfico, 1971.
2 v.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. O processo de produção capitalista. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. Livro 1, v. 1. (Coleção Perspectivas do Homem).
________. O método da economia política. In: _______; ENGELS, Friedrich. Marx; Engels: história;
[organizado por] Florestan Fernandes. São Paulo: Ática, 1983. p. 409-417. (Grandes Cientistas
Sociais, v. 36).
________. Formações econômicas pré-capitalistas. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
(Coleção Pensamento Crítico, v. 5).
________. A ideologia alemã: crítica da novíssima filosofia alemã em seus representantes
Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007.
MASCARÓ, Juan Luís (org.) Infra-estrutura da paisagem. Porto Alegre: Masquatro, 2008.
MATOS, Olgária. A melancolia de Ulisses: A dialética do Iluminismo e o canto das sereias. In:
_________. (org.) Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 190-210.
MCHARG, Ian L. Design with nature. Nova Iorque: Doubleday/National History Press, 1971.
MEDALYE, Jacqueline; HUBBART Jason A. Water resources. In: CLEVELAND, Cutler J. (ed.)
Encyclopedia of Earth. Washington/DC: Environmental Information Coalition; National Council for
Science and the Environment, 20 mai. 2007. Disponível
321
em:<http://www.eoearth.org/article/Water_resources> . Acesso em: 18 dez. 2007.
MELLO, Sandra Soares de. Espaços de beira-rio. Articulação entre os enfoques ambiental e
urbanístico. Portal DIMPU (Dimensões morfológicas do processo de urbanização). Brasília: 6
dez. 2004. Disponível em: <http://www.unb.br/fau/dimpu/portugues/mello2004beirario.pdf>.
Acesso em: 7 ago. 2007.
___________________. Gestão ambiental urbana dos espaços de margens de cursos d’água. In:
Anais: I Seminário Nacional sobre Regeneração Ambiental de Cidades: Águas Urbanas, Rio de
Janeiro, 5 a 8 de dezembro de 2005; [organizado por] Vera Regina Tângari, Mônica Bahia Schlee,
Rubens de Andrade. – Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, 2005.1 CD-ROM.
MELO, Marcus André Barreto Campelo. O padrão brasileiro de intervenção pública no saneamento
básico. Revista Brasileira de Administração Pública. Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 84-102,
jan.1989.
MESTRALLET, Gérard. Bridging the water divide. Development outreach. Putting knowledge to work
for development. Special report: sustaining the Earth. Washington/DC, 2002. Disponível em:
<http://www1.worldbank.org/devoutreach/fall02/article.asp?id=179>. Acesso em: 23 set. 2005.
MILLER, James E. Review of water resources and desalination technologies. 54 f.
Albuquerque/Novo México: Sandia National Laboratories; Oak Ridge/Tennessee: US Department of
Energy, OSTI, mar. 2003. Disponível em:
<www.sandia.gov/water/docs/MillerSAND2003_0800.pdf>. Acesso em: 31 out. 2007.
MMA (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE); Secretaria de Recursos Hídricos. Resumo do processo de
elaboração do Plano Nacional de Recursos Hídricos. Brasília: MMA, out. 2004. 23 f. Disponível
em: <www.mma.gov.br>. Acesso em: 18 set. 2007.
___________. Plano nacional de recursos hídricos. Brasília: MMA, 2006. 4 v. Disponível em:
<www.mma.gov.br>. Acesso em: 18 set. 2007.
MORAES, Antonio Carlos Robert. Contribuições para a gestão da zona costeira do Brasil:
elementos para uma geografia do litoral brasileiro. São Paulo: HUCITEC; EDUSP, 1999.
MORAIS, Stela Pojuci de. A urbanização de Belém no período colonial. 4 f. Portal História Social da
Amazônia, Universidade da Amazônia, Belém-PA, s/d. [Texto de apoio ao curso de graduação em
Comunicação Social da Universidade da Amazônia/Unama]. Disponível em: <
http://arquivos.unama.br/nead/graduacao/cesa/com_social/hab_pp/4semestre/
historia_social_amazonia/html/unidade1/unidade_1page_4.html>. Acesso em: 6 jul. 2009.
MOREIRA, Eidorfe. Os igapós e seu aproveitamento. Belém: NAEA/UFPA, 1976. (Cadernos NAEA,
2).
________. Belém e sua expressão geográfica. In: ________. Obras reunidas de Eidorfe Moreira.
Belém: CEJUP, 1989. v. 1. p. 273-441.
MOVIMENTO ORLA LIVRE. Movimento Orla Livre. Pela libertação das bordas d’água do rio Guamá e da
baía do Guajará para o usufruto do legítimo dono: a população de Belém. Belém, 2005. Disponível
322
em: <http://www.orlalivre.org/home>. Acesso em: 10 out. 2009. [Portal digital.]
___________. Movimento Orla Livre. O acesso à orla da cidade é um direito de todos. 1 f. Belém:
Movimento Orla Livre, 2006. [Folheto.]
___________. Princípios para orla: identidade. Lista eletrônica moderada por Movimento Orla
Livre. Mensagem recebida da lista eletrônica orla_livre, administrada por Movimento Orla Livre.
Texto eletrônico. Recebida por <[email protected]> em 19 out. 2006b.
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. 4. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998. (Ensino Superior.)
NAEA (Núcleo de Altos Estudos Amazônicos)/UFPA. Relatório do projeto MEGAM — estudo das
mudanças socioambientais no estuário amazônico. Belém: NAEA/UFPA, 2005 [Relatório técnico,
organizado por Edna Maria Ramos de Castro].
NASA (National Aeronautics and Space Administration). Earth´s city lights. Visible Earth. A catalog
of NASA images and animations of our home planet. Washington/DC, 23 out. 2000. Disponível em:
<http://veimages.gsfc.nasa.gov/1438/land_ocean_ice_lights_2048.tif> . Acesso em: 4 out. 2007.
[Imagem digital].
O LIBERAL. Livro reconstitui 30 anos da vida de Landi no Pará. Belém, 2003. Caderno Cartaz.
Disponível em:
<http://www.ufpa.br/imprensa/clipping/clipping/clipping%2010%2011%202003.htm#Livro%20rec
onstitui
%2030%20anos%20da%20vida%20de%20Landi%20no%20Par%C3%A1>. Acesso em: 6 jul.
2009.
________. União desobstrui a orla. Atualidades. Belém, 12 abr. 2006. Disponível em:
<http://www.oliberal.com.br/oliberal/interna/default.asp?modulo=247&codigo=41138> . Acesso
em: 12 abr. 2006.
________. Luiz Otávio Mota: uma nova cara para Belém. Belém, 29 dez. 2006. Caderno Balaio
Virtual. Disponível em:
<www.orm.com.br/balaiovirtual/artigos/default.asp?modulo=72&codigo=168993>. Acesso em:
06 jan. 2007.
________. Belém, a Veneza do esgoto a céu aberto. Belém, 06 jul. 2009. Caderno Atualidades.
Disponível em: <http://www.orm.com.br/plantao/noticia/default.asp?id_noticia=423269>.
Acesso em: 07 jul. 2009.
OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES; IPPUR/UFRJ-FASE. Como anda: Belém. 41 f. Rio de Janeiro:
IPPURUFRJ/FASE, 2005. [Relatório de pesquisa. Equipe de elaboração: José Júlio Ferreira Lima,
Ana Cláudia Duarte Cardoso e Fernando Mesquita.] Disponível em:
<www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/como_anda/como_anda_RM_belem.pdf>. Acesso em:
10 out. 2007.
OBSERVATÓRIO das Metrópoles; FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional).
Projeto Análise das Regiões Metropolitanas do Brasil. Relatório da atividade 4. Como andam as
metrópoles brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Salvador
323
Recife, Fortaleza, Goiânia, Belém, Natal, Maringá. 47 f. Rio de Janeiro, dez. 2005. Disponível em:
<http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/como_anda/como_anda_brasil.pdf>. Acesso em:
26 out. 2009.
PANERAI, Philipe. Análise urbana. Brasília: Ed. UnB, 2006. (Coleção arquitetura e urbanismo).
PARÁ, Governo do Estado. Plano de Desenvolvimento Turístico do Estado do Pará. Belém:
PARATUR/THR Consultoria em Hotelaria, Turismo e Recreação, 2001. Disponível em:
<www.paratur.pa.gov.br>. Acesso em: 17 set. 2002.
_________; SECULT (Secretaria Executiva de Cultura). De cara para o rio, a Estação das Docas é
atração para turistas e população local. Belém, 29 mar. 2001. Disponível em:
<www.pa.gov.br/turismo>. Acesso em: 18 set. 2002.
__________. Mangal das Garças. Belém: Secretaria Executiva de Cultura, 2005a. [Textos,
imagens eletrônicos.] Disponível em: < http://www.prodepa.psi.br/mangal/home.htm>. Acesso
em: 09 fev. 2006.
__________. Conferência estadual do meio ambiente. Propostas do Estado do Pará. Documento
síntese do Estado do Pará da II CEMA encaminhado à II Conferência Nacional de Meio Ambiente – II
CNMA. 57 f. Belém: Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente (SECTAM) /
Governo do Estado do Pará, nov. 2005b. Disponível em: <www.sectam.pa.gov.br>. Acesso em:
01 fev 2006.
PARÁ 2000, Organização Social. Estação das Docas. Portal Estação das Docas. Belém: Pará 2000,
2008. 2 f. Disponível em: <http://www.estacaodasdocas.com.br/estacao.html>. Acesso em: 07
dez. 2009.
PENTEADO, Antonio Rocha. Belém do Pará (Estudo de geografia urbana). Belém: Ed. UFPA, 1968. 2
v. (Coleção Amazônica, Série José Veríssimo).
________. O sistema portuário de Belém. Belém: Ed. UFPA, 1973 (Coleção Amazônica, Série
José Veríssimo).
PERROUX, François. A economia do século XX. Lisboa: Herder, 1967.
PONTE, Manfredo Ximenes. Rede intra-urbana de água e esgotamento sanitário na cidade de
Belém: aspectos históricos, políticos e econômicos da estruturação sanitária. 118 f. Rio de
Janeiro, 2003. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) — Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2003.
PONTE, Juliano Pamplona Ximenes. A orla de Belém: intervenções e apropriação. 212 f. Rio de
Janeiro, 2004. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) — Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2004.
__________. Belém-PA: cidade, água e convergência no ordenamento territorial. In: Anais: XIII
Encontro Nacional da ANPUR (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Planejamento Urbano e Regional), Florianópolis/SC, maio de 2009. Florianópolis/SC: Universidade
Federal de Santa Catarina, 2009. CD-ROM.
324
PORTER, Michael. The competitive advantage of the inner city. Harvard Business Review,
Cambrigde, v. 73, n. 3, p. 55-71, mai./jun. 1995.
PORTO, Marcos Maia. Desenho institucional e modelos de gestão portuária: o caso brasileiro. In:
SILVA, Gerardo; COCCO, Giuseppe (orgs.) Cidades e portos: os espaços da globalização. Rio de
Janeiro: DP&A, 1999. P. 217-242. (Coleção Espaços do Desenvolvimento).
REDE APARELHO. Sangria desatada. Belém, 2009. Disponível em:
<http://www.overmundo.com.br/banco/sangria-desatada-1#-banco-31536>. Acesso em: 4 ago.
2009.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
(Debates, 18).
RIBEIRO, Wagner Costa. Água doce: conflitos e segurança ambiental. In: MARTINS, Rodrigo
Constante; VALENCIO, Norma Felicidade Lopes da Silva (orgs.) Uso e gestão dos recursos hídricos
no Brasil: desafios teóricos e político-institucionais. São Carlos: RiMA, 2003, v. 2. p. 71-77.
RODRIGUES, Carmen Izabel. Vem do bairro do Jurunas: sociabilidade e construção de identidades
em espaço urbano. Belém: Ed. NAEA, 2008.
ROMEIRO, Ademar Ribeiro. O papel dos indicadores de sustentabilidade e da contabilidade ambiental.
In: _____________. (org.) Avaliação e contabilização de impactos ambientais. Campinas:
Editora da Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2004. p. 10-29.
ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru/SP: EDUSC, 2001. (Coleção
História).
RUSSELL-WOOD, A. John R. Dissemination of flora and fauna In: _________. The Portuguese
empire, 1415-1808: a world on the move. Boston/Londres: Johns Hopkins University Press, 1998.
p.148-182.
SABATINI, Francisco. Conflictos ambientales em America Latina: ¿distribuición de externalidades o
definición de derechos de propiedad? In: __________; SEPÚLVEDA, Claudia (eds.) Conflictos
ambientales: entre la globalización y la sociedad civil. Santiago: CIPMA, 1997. p. 49-74.
SAHLINS, Marshall. A primeira sociedade da afluência. In: CARVALHO, Edgar Assis de (org.)
Antropologia econômica. São Paulo: Ed. Ciências Humanas, 1978. p. 7-44.
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1993.
SANTOS, Paulo Ferreira. Formação de cidades no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2001.
SASSEN, Saskia. As cidades na economia mundial. São Paulo: Studio Nobel, 1998. (Coleção
Megalópolis).
SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SECTAM (Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente). As regiões hidrográficas
e os municípios do Estado do Pará. 12 f. Belém: SECTAM, 2005. (Série Relatórios Técnicos, n. 6).
Disponível em: <http://www.sema.pa.gov.br/p30graus/SERIE%20N06.pdf>. Acesso em: 02 mar.
325
2010.
SEMA (SECRETARIA DE ESTADO DE MEIO AMBIENTE/GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ). Sistemas de controle e
monitoramento ambiental. 40 f. Belém: SEMA, NTI (Núcleo de Tecnologias da Informação), 20 fev.
2008. [Apresentação eletrônica]. Disponível em:
<http://www.sema.pa.gov.br/download/Sistemas%20de%20Controle%20e%20Monitoramento%20
Ambiental.pdf> . Acesso em: 5 abr. 2008.
_______. Minuta da ata da 1ª reunião ordinária do Conselho Estadual de Recursos Hídricos do
Estado do Pará (CERH), realizada no dia 26 de março de 2007. Belém: SEMA/Diretoria de Recursos
Hídricos, mar. 2007. 7 f. Disponível em: <
http://www.sema.pa.gov.br/cerh/ATA%201%20REUNIAO_26_03_2007.pdf>. Acesso em: 01 mar.
2010.
__________. Portal da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA). Recursos hídricos. Belém,
2009. Disponível em: <http://www.sema.pa.gov.br/index.php>. Acesso em: 25 fev. 2010.
SEUL, Governo Metropolitano. Hi Seoul, soul of Asia. Seul/Coréia do Sul, 2009. Disponível em:
<http://english.seoul.go.kr/>. Acesso em: 13 mar. 2010. [Portal digital.]
SIGIEP (Sistema de Informações Georreferenciais do Estado do Pará). SIGIEP. Belém: Secretaria
Especial de Infra-Estrutura, 2007. CD-ROM.
SILVA, Marcos Alexandre Pimentel da; BARBOSA, Estêvão José da Silva; TRINDADE JÚNIOR, Saint-Clair
Cordeiro da. Uso do solo na orla fluvial de Belém: realidades e contradições. In: TRINDADE JÚNIOR,
Saint-Clair Cordeiro da; SILVA, Marcos Alexandre Pimentel da (orgs.) Belém: a cidade e o rio na
Amazônia. Belém: EDUFPA, 2005. p. 63-90.
SIMMEL, Georg. A filosofia da paisagem. Política e trabalho, João Pessoa-PB, n. 12, p. 15-24, set.
1996. (Tradução de Simone Carneiro Maldonado.)
SITTE, Camillo. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo: Ática,
1992. (Temas, 26).
SKYSCRAPER CITY. Antes e depois. Avenida Doca de Souza Franco, 38 anos atrás. Jelsoft Enterprises
Ltd., 2010. Disponível em: <http://img5.imageshack.us/my.php?image=5146161.jpg>. Acesso
em: 20 fev. 2010. [Portal digital.]
SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual. Natureza, capital e a produção de espaço. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1988.
SOARES, Issac. Decorado. O Liberal, ano LXIII, n. 32.503. Belém, 10 jun. 2009. Coluna Isaac
Soares. Disponível em:
<http://www.orm.com.br/oliberal/interna/default.asp?modulo=398&cod...>. Acesso em: 10 jun.
2009.
SORKIN, Michael. Introduction: variations on a theme park. In: __________ (ed.) Variations on a
theme park: the new American city and the end of public space. Nova Iorque: Hill and Wang; The
Noonday Press, 1992. p. XI-XV.
SPIRN, Anne Whiston. The granite garden. Urban nature and human design. La Verne/TN (EUA):
326
Basic Books, 1984.
STANFORD Encyclopedia of Philosophy. Boundary. 15 f. Stanford/CA, mar. 2009. Disponível em:
http://plato.stanford.edu/entries/boundary/. Acesso: 3 jan. 2010.
STERNBERG, Hilgard O´Reilly. A água e o homem na várzea do Careiro. 2. ed. Belém: Museu
Paraense Emílio Goeldi, 1998. (Coleção Friedrich Katzer).
SUDAM; DNOS; PARÁ, Governo do Estado. Monografia das baixadas de Belém: subsídios para
um projeto de recuperação. 2. ed. Belém: SUDAM, 1976. 2 v.
SWYNGEDOUW, Erik. A cidade como um híbrido: natureza, sociedade e “urbanização-cyborg”. In:
ACSELRAD, Henri (org.) A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio
de Janeiro: DP&A, 2001. p. 83-104. (Coleção Espaços do Desenvolvimento).
________. Privatizando o H20. Transformando águas locais em dinheiro global. Revista Brasileira
de Estudos Urbanos e Regionais, v. 6, n.1, p. 33-54, mai. 2004.
THOMAS, Keith. O Homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos
animais, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
TRINDADE JR., Saint-Clair Cordeiro da; SANTOS, Emmanoel Raimundo Costa dos; RAVENA, Nírvea. A
cidade e o rio: espaço e tempo na orla fluvial de Belém. In: TRINDADE JR., Saint-Clair Cordeiro da;
SILVA, Marcos Alexandre Pimentel da (orgs.) Belém: a cidade e o rio na Amazônia. Belém: EDUFPA,
2005. p. 12-43.
UNEP FI (United Nations Environment Programme Finance Initiative); SIWI (Stockholm International
Water Institute). Challenges of water scarcity. A business case for financial institutions. 36 f.
Genebra: UNEP FI, 2005. (Water issues). Disponível em:
<http://www.unepfi.org/fileadmin/documents/challenges_water_scarcity_2005.pdf>. Acesso em:
31 out. 2007.
UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization). Water for people, water
for life. UN World water development report (WWDR). Executive summary. Paris: UNESCO
Publishing; Berghahn Books, mar. 2003. 36 f. Disponível em: <www.unesco.org/water/wwap> .
Acesso em: 28 out. 2005.
VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria; notas sobre a estratégia discursiva do planejamento
estratégico urbano. In: ARANTES, Otília Beatriz Fiori; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos Bernardo. A
cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. p. 75-103.
(Coleção Zero à Esquerda).
____________.; BIENENSTEIN, Glauco; SÁNCHEZ, Fernanda. Reabilitação do complexo do mercado
Ver-o-Peso. Projetos de Desenvolvimento Urbano em disputa na cidade de Belém: relatório final.
60 f. Rio de Janeiro: IPPUR-UFRJ; Lincoln Institute of Land Policy, mar. 2005. CD-ROM. [Relatório
de pesquisa.]
VALENCIO, Norma Felicidade Lopes da Silva; SIENA, Mariana; PAVAN, Beatriz Janine Cardoso; ZAGO,
Juliana Roversi; BARBOSA, Aline Ramos. Implicações éticas e sociopolíticas das práticas de Defesa
Civil diante das chuvas. Reflexões sobre grupos vulneráveis e cidadania participativa. São Paulo
em perspectiva, v. 20, n. 1, p. 96-108, jan./mar. 2006.
327
VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro: ed. 34, 1993. (Coleção TRANS).
WEBER, Max. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB,
1991. 2 v.
_________. A ética protestante o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2002.
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
XIMENES, Tereza. O barco na vida do ribeirinho. In: _______. et. al. Embarcações, homens e rios
na Amazônia. Belém: UFPA, 1992. p. 53-72.
ZUKIN, Sharon. Landscapes of power: from Detroit to Disney World. Berkeley: University of
California Press, 1991.
_________. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. In: ARANTES, Antonio A.
(org.) O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 80-103.