tese canguilhem e corpo e saude

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FUNDAO OSWALDO CRUZ ESCOLA NACIONAL DE SADE PBLICA CENTRO DE ESTUDOS EM SADE DO TRABALHADOR E ECOLOGIA HUMANA

Cada Caps um Caps: a importncia dos saberes investidos na atividade para o desenvolvimento do trabalho em sade mental

Tatiana Ramminger

Orientadora: Jussara Cruz de Brito

Tese de Doutorado Rio de Janeiro Setembro de 2009.

FUNDAO OSWALDO CRUZ ESCOLA NACIONAL DE SADE PBLICA CENTRO DE ESTUDOS EM SADE DO TRABALHADOR E ECOLOGIA HUMANA

Cada Caps um Caps: a importncia dos saberes investidos na atividade para o desenvolvimento do trabalho em sade mentalTatiana Ramminger

Tese apresentada ao Centro de Estudos da Sade do Trabalhador e Ecologia Humana, da Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca, Rio de Janeiro, como requisito parcial para obteno do Grau de Doutora, em setembro de 2009.

Orientadora: Dr Jussara Brito

Examinadores: Dr. Milton Athayde Dr Heliana Conde Dr Cludia Osrio Dr. Paulo Amarante

AGRADECIMENTOS Este trabalho, mais que uma tese, o encerramento de um ciclo de vida e trabalho. H muitos a quem agradecer neste percurso. Comeo pelos meus pais, fundamentais e complementares em suas diferenas. A eles devo o gosto pela liberdade e pelo aprender. Meu agradecimento especial ao meu pai, Erich, que acolheu e sustentou em todos os sentidos minha vinda para o Rio de Janeiro; e minha me, Ignez Maria que, superando a ausncia e a saudade, cuidou de mim e viabilizou minha sada de Porto Alegre. s minhas filhas Marina e Amanda que cresceram nestes quatro anos na ponte erea Porto Alegre-Rio de Janeiro. Suportaram minhas ausncias (mesmo quando eu estava em casa!) e me ensinam dia-a-dia o que realmente importa. minha querida v Ignez Gay Serpa, matriarca de uma famlia especial. Ao meu tio dionisaco Beto Daiello, pela beleza de sua experincia de vida e trabalho. Aos meus irmos, Cristiano e Ulisses, pelo nosso essencial reencontro. Adriana Kelly dos Santos, pelo presente de sua amizade. Foi a primeira pessoa que conheci ao chegar Fiocruz e com ela formei minha famlia em terras estrangeiras. Ao redigir este agradecimento em frente sua estante de livros e adega mineira, tenho a dimenso do que nos une! A Valterson Faria dos Santos, pelo sol que trouxe minha vida. Jussara Cruz de Brito, querida orientadora que me acolheu desde o incio do doutorado, mesmo quando ainda no era sua orientanda. Por trs de sua simplicidade e timidez, encontrei a generosidade e rigor dos verdadeiros mestres, ou melhor, mestras. Em meio ao incentivo produtividade, ainda h aqueles que resistem em ensinar. Aos mestres com quem tive o prazer de conviver e aprender: Lgia Ferreira, Carmem Oliveira, Maria da Graa Jacques, Henrique Nardi, Jaqueline Tittoni, Jussara Brito, Milton Athayde, Roberto Machado e Heliana Conde. Comunidade (bem) Ampliada de Pesquisa sobre o trabalho sob o ponto de vista da atividade, pelos belos encontros de estudo, reflexes e samba: Cludia Osrio, Helder Muniz, Denise Alvarez, Marcelo Figueiredo, Mary Yale, Maristela Frana, Milton Athayde, Elisa Borges, Adilson Bastos, Wladimir de Souza, Irapoan Nogueira, Ana Cludia Barbosa da Silva, Neide Ruffeil, Francinaldo Pinto, Jussara Brito, Marcello Rezende, Letcia Masson, Suyanna Barker, Ktia Santorum, Ktia Souza, Simone Oliveira, Rafael Gomes e Luciana Gomes. minha primeira orientadora, Karen Giffin, pela generosidade em me permitir escolher.

Caroline Brasil e Martinho Silva, pelo pacincia da leitura de um trabalho inconcluso e preciosas sugestes para ajudar a conclui-lo. A Ulisses Ramminger, meu competente tradutor oficial de abstracts. s meninas super poderosas do CRH-TCE, mais que colegas de trabalho, amigas que levo comigo: Martha Marques, Adriana Serafim, Ana Cristina Lessa e Carina. Ao Conselheiro do TCE-RS, Dr. Sandro Pires, que sustentou minha licena para a realizao do Doutorado e Mrcia Ferreira, Diretora Administrativa, pela compreenso e sensibilidade. Ao querido casal Martinho Silva & Moema Schmidt, pelo acaso transformado em parceria de vida e trabalho. Com as boas vindas Catarina! minha famlia extendida: Ana Paula Veneo, Caroline Brasil, Lair Mnica e Lus Carlos Cadron Lino, pelo apoio e amizade em todos os momentos. Sandra, Lcia Helena e Ded, por cuidarem das minhas filhas e de mim. Ao Roberto Juruna, pelas preciosas caronas. Aos queridos companheiros do Frum Gacho de Sade Mental, pela vida partilhada (quanta saudade!): Paulo Michelon, Susana, Maria Tereza, Ivarlete Frana, Sandra Fagundes, Ftima Fischer, Mriam Dias, Rgis Cruz, Simone Frichembruder, Analice Palombini, Rebeca Litvin, Maria Cristina Carvalho da Silva, Cristiane Knijnik, Alexandra Ximendes, Loiva Santos, Krol Cabral, Mrcio Belloc. Aos meus companheiros de PluralPsi, atual gesto do Conselho Regional de Psicologia (CRP07), pela compreenso e apoio. Flvia Mendes de Oliveira, pela confiana e empatia mtuos. Prefeitura Municipal de Barra do Pira, que viabilizou minha permanncia no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que me permitiu contribuir com a rede de sade mental da cidade onde cresci. A Irapoan Nogueira, pela disponibilidade em se deslocar e pelas valiosas contribuies no percurso da pesquisa. Comunidade Ampliada de Pesquisa que sustentou a realizao desta tese: Jussara, Irapoan, Flvia, Georgina, Maria Eugnia, Maria Fernanda, Marlia, Mase, Neila, Simone e Margareth. Como mencionei na Qualificao, gostaria que a burocracia acadmica permitisse que o nome de cada um deles integrasse a autoria deste trabalho. Aos meus colegas gestores do NGE-HSE por nosso, mesmo que ainda breve, promissor encontro. Por fim, um agradecimento muito especial a todos os trabalhadores dos Caps Nossa Casa (Barra do Pira-RJ) e Casa Verde (Mesquita-RJ), pela generosidade em partilhar comigo seus saberes.

PARA MARINA & AMANDA PORTO AMADO

EXISTE A TRAJETRIA E A TRAJETRIA SOMOS NS MESMOS EM MATRIA DE SE VIVER NUNCA SE PODE CHEGAR ANTES... (CLARICE LISPECTOR)

RESUMO Cada Caps um Caps: a importncia dos saberes investidos na atividade para o desenvolvimento do trabalho em sade mental. psychosocial attention centers Esta tese tem como principal objetivo incorporar as experincias de trabalho dos profissionais dos Centros de Ateno Psicossocial (Caps) aos estudos acadmicos, no apenas para formaliz-las, mas para auxiliar em seu desenvolvimento e na consequente ampliao da capacidade de defesa da sade dos trabalhadores de sade mental. Para tanto, vale-se das contribuies da clnica do trabalho francesa, especialmente a ergologia e a clnica da atividade, para colocar em dilogo o plo dos saberes formalizados (das disciplinas) e o plo dos saberes investidos na atividade (da experincia). No plo dos saberes formalizados, relaciona diferentes concepes de sade e trabalho, e apresenta as contribuies do ponto de vista da atividade para analisar o trabalho em sade, o patrimnio de estudos sobre a relao entre sade e trabalho em sade mental e, finalmente, o processo de criao dos Caps, suas principais propostas e algumas consideraes sobre os desafios da atividade de trabalho nestes servios. No plo dos saberes investidos na atividade, a partir da constituio de uma Comunidade Ampliada de Pesquisa com pesquisadores acadmicos e profissionais de um Caps, analisa a atividade de trabalho nos Caps sob o ponto de vista da atividade, considerando a importncia do fortalecimento de um patrimnio compartilhado sobre o trabalho em sade mental para servios produtores de sade para usurios, familiares e trabalhadores. Palavras-chave: trabalho em sade, reforma psiquitrica, ergologia, clnica da atividade, sade mental, sade do trabalhador.

ABSTRACT

"Each Caps is a Caps": the importance of the knowledges invested in the activity for the development of the work in mental health. This thesis has like principal objective incorporate the experiences of work of the professionals of the Psychosocial Attention Centers (Caps) to the academic studies, not only to formalize them, but to help in his development and in the consequent enlargement of the capacity of defense of the health of the mental health workers. To do so, this thesis uses the contributions of the french clinic of the work, specially the ergology and the clinic of the activity, to put in dialog the pole of the knowledges when they were formalized (of the disciplines) and the pole of the knowledges invested in the activity (of the experience). In the pole of to the formalized knowledges, it makes the relation between the different conceptions of health and work, and presents the contributions of the point of view of the activity to analyse the work in health, the inheritance of studies on the relation between health and work in mental health and, finally, the process of creation of the Caps, its principal proposals and some considerations on the challenges of the activity of work in these services. In the pole of the knowledges invested in the activity, from the constitution of an Enlarged Community of Research with academic and professional researchers of a Caps, it analyses the activity of work in the Caps from the point of view of the activity, considering the importance of the strengthening of an inheritance shared on the work in mental health for producing services of health for users, relatives and workers.

key words: work in health, psychiatric reform, ergology, clinical of the activity, mental health, worker health

SUMRIOSECAO I: INCIO DE CONVERSA 11

INTRODUO E JUSTIFICATIVA

12

UMA ESCOLHA METODOLGICA: DISPOSITIVO DINMICO DE TRS PLOS COMO PESQUISAR? O QUE PESQUISAR?

18 18 31

SECAO II: SABERES FORMALIZADOS

35

QUE SADE? SADE COLETIVA: UMA RUPTURA? GEORGES CANGUILHEM: A SADE COMO VERDADE DO CORPO ENTRE A NORMATIVIDADE E A NORMALIDADE: DILOGO ENTRE CANGUILHEM E FOUCAULT PROBLEMATIZANDO AS PRTICAS DE SADE: ALGUMAS CONTRIBUIES DE CANGUILHEM E FOUCAULT

36 37 44 51 57

QUE TRABALHO? CONSIDERAES DA SOCIOLOGIA: AS METAMORFOSES DO TRABALHO FILOSOFIA: O TRABALHO COMO OBJETO OU MATRIA ESTRANGEIRA?

64 65 74

O TRABALHO EM SADE SOB O PONTO DE VISTA DA ATIVIDADE

83

SADE E TRABALHO EM SADE MENTAL ESTRESSE, CARGA E SOBRECARGA NO TRABALHO EM SADE MENTAL SOFRIMENTO E PRAZER NO TRABALHO EM SADE MENTAL

99 101 104

SUBJETIVIDADE, DISCURSOS, PRTICAS E VIVNCIAS DOS TRABALHADORES DE SADE MENTAL

106

OS CENTROS DE ATENCAO PSICOSSOCIAL:

TEXTO, CONTEXTO E FORA DO TEXTO

112 113 122 129

OS CAPS E A REFORMA PSIQUITRICA BRASILEIRA: O CONTEXTO AFINAL O QUE SO OS CAPS? O TEXTO OS CAPS E O TRABALHO EM SADE MENTAL: O FORA DO TEXTO

SECAO III: SABERES INVESTIDOS NA ATIVIDADE

143

PRIMEIRO MOVIMENTO NOSSA CASA: ENTRE O RIO E O TREM O INUSITADO DA VIDA E OS IMPREVISTOS DA PESQUISA

144 144 146

SEGUNDO MOVIMENTO OBSERVAES PRELIMINARES SOBRE A ATIVIDADE DE TRABALHO NOS CAPS CONSTITUINDO A COMUNIDADE AMPLIADA DE PESQUISA COMO VOC COMEOU A TRABALHAR NO CAPS?

151 151 166 167

TERCEIRO MOVIMENTO O QUE VOC FAZ NO CAPS?

175 175

TECENDO CONSIDERAES

205

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

212

SECAO I: INCIO DE CONVERSA

INTRODUO E JUSTIFICATIVAA VIDA A ARTE DO E NCONTRO VINCIUS DE MORAES

Certamente as questes (curiosidades) que me motivaram a iniciar o percurso do doutorado, no so as mesmas que me levam a termin-lo. Agora percebo que trata-se de um esforo de fechamento de um ciclo de vida e trabalho iniciado h exatos dez anos. Esta trajetria feita de Encontros, especialmente de Bons Encontros aqueles que nos potencializam e fortalecem no melhor sentido espinosiano. Recm sada da graduao, fui convidada a integrar a equipe da coordenao da poltica de ateno integral sade mental do primeiro governo gacho que assumiu, de forma explcita, um compromisso financeiro, poltico e institucional com a reverso do modelo de tratamento hospitalocntrico em sade mental. O primeiro ano de trabalho foi de aprendizado intenso e de uma profunda decepo com minha formao acadmica, onde eu nunca ouvira o conceito de sade pblica ou coletiva, tampouco conhecera o processo da Reforma Sanitria e as diretrizes do SUS Sistema nico de Sade. A oportunidade de integrar esta gesto foi daqueles Acontecimentos, que rompem e fundam outros mundos possveis. difcil dizer sobre o que aprendi. Vivenciei a mxima modos de trabalhar, modos de subjetivar e tornei-me

outra a partir desta experincia. Esta outra pde usufruir do conhecimento,experincia e generosidade de uma equipe madura que a acolheu e nutriu. Com este coletivo pde exercitar-se em uma atividade de gesto para a consolidao e ampliao da rede de servios substitutivos ao hospital psiquitrico, que incluiu desde formao e capacitao para os trabalhadores, at negociao com os gestores municipais, passando pela regulao e financiamento das aes em sade. Deste Encontro nasceram outros tantos, dos quais destaco especialmente dois: o encontro com o Frum Gacho de Sade Mental que me permitiu ter como parceiros de luta (bio)poltica aqueles que, como profissionais de sade, pretendemos cuidar e tratar; e o encontro com os trabalhadores do Hospital Psiquitrico So Pedro aqueles que, como gestores poca,

Introduo e Justificativa

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pretendamos gerir. Da mesma forma que a experincia profissional colocou em xeque a formao universitria, com as experincias de vida e trabalho reunidas nestes coletivos, as certezas deram lugar s perguntas. Em que medida o fechamento dos manicmios garante o fim das prticas manicomiais? Em que medida a institucionalizao da reforma psiquitrica como poltica pblica reduz sua potncia como movimento instituinte, transformando-a em mais um, entre tantos outros, discursos hegemnicos e impermeveis? Se a reforma psiquitrica vai muito alm de mudanas no mbito assistencial, jurdico, pedaggico ou ideolgico, h que se abrir espao para o questionamento dos diferentes discursos, racionalidades, prticas ou verdades sobre a loucura e, igualmente, para a anlise de como nos relacionamos com o erro, a diferena, o desvio e a linha imaginria e histrica que separa o normal do patolgico. Da mesma forma, o objetivo do trabalho em sade mental transformou-se. Atravessou os muros segregadores dos hospitais psiquitricos e ganhou as ruas. O trabalhador de sade mental no mais restringe suas atividades de trabalho internao e ao asilo, podendo integrar, por exemplo, as equipes de referncia matricial em sade mental, ou de um Centro de Ateno Psicossocial (Caps) ou ainda de um Servio Residencial Teraputico (SRT). Mas ser que esta mudana garante, por si s, a transformao dos modos de trabalhar? Sero as condies e possibilidades de trabalho nos Caps, melhores ou mais dignas, do que aquelas do hospital psiquitrico? Como o trabalho est organizado? Como gerido? Como so as relaes entre os trabalhadores e destes com os usurios e gestores? H espao para compartilhamento de experincias? E para o cuidado de quem cuida? O que mudou? O que permaneceu? Ser possvel sustentar uma rede de sade mental robusta como a que se pretende, sem o protagonismo e valorizao dos trabalhadores? As perguntas cresceram e com elas a busca por outros Encontros. Desta vez com aqueles que poderiam me auxiliar na formalizao e desenvolvimento destas impresses e experincias to intensas, mas ainda dispersas e disformes. Na especializao em Sade e Trabalho (Ufrgs) conheci

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a poltica de Sade do Trabalhador e seu projeto de defender mudanas em processos de trabalho potencialmente produtores de adoecimento, valorizando o saber e a experincia do trabalhador. Neste primeiro momento, minha pesquisa voltou-se para os trabalhadores do hospital psiquitrico e os afastamentos do trabalho decorrentes de diagnstico psiquitrico (Ramminger, 2002). J no mestrado em psicologia social e institucional, tambm na Ufrgs, o objetivo foi fazer a aproximao entre estes dois campos que, embora nascentes no bojo do mesmo movimento (a Reforma Sanitria), parecem ainda ter dificuldades em dialogar: a Sade Mental e a Sade do Trabalhador. Minha questo girou em torno do espao reservado para a problematizao do trabalho nas instituies que passam por transformaes ou se criam a partir da Reforma Psiquitrica. Procurei, ainda, conhecer as polticas e aes de ateno sade do trabalhador de sade mental, percebendo que a Sade do Trabalhador, enquanto rede enunciativa e poltica pblica, tem priorizado o setor privado e a relao Capital/Trabalho, com raras intervenes no setor pblico (Ramminger, 2006). Os servidores pblicos contam com os Departamentos de Percia Mdica campo ainda hegemnico da Medicina do Trabalho - assim como no costumam acessar os Centros de Referncia em Sade do Trabalhador, preferindo buscar atendimento na rede privada de sade, via convnio, onde igualmente o adoecimento desvinculado das atividades de trabalho. Assim, constatamos a extrema vulnerabilidade das aes voltadas ateno da sade do servidor pblico que, definitivamente, no integram uma poltica pblica, estando merc das diferentes prioridades eleitas pelos governos. O servidor pblico, como trabalhador, parece no merecer investimento, apenas controle, em consonncia com um longo histrico de desvalorizao do setor pblico. Esta carncia de polticas pblicas de ateno sade do servidor pblico, bem como a constante desvalorizao de sua funo, sem dvida, refletem-se nos servios de sade mental. O acolhimento das questes relacionadas sade no trabalho acaba dependendo, exclusivamente, do

Introduo e Justificativa

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funcionamento e das diretrizes particulares de cada servio. Da mesma forma, inegvel a precariedade dos investimentos e de aes intersetoriais, que tanto impem limites para a prtica, como responsabilizam individual e excessivamente o trabalhador pelo bom funcionamento dos servios. No posso deixar de mencionar, ainda, neste percurso do mestrado, o Encontro com o careca. Michel Foucault nos apresentado por sua Histria da Loucura ou Vigiar e Punir, mas ao ter oportunidade de estudar o conjunto de sua obra, percebemos o quanto nos fora e ensina a pensar. Seja desnaturalizando verdades absolutas, seja atentando para os perigos de cada poca, seja nos incitando a produzir modos mais belos e ticos de viver e trabalhar... Por outro lado, a pesquisa do mestrado que, inicialmente, pretendia ser uma pesquisa-interveno, limitou-se a apenas um encontro com os trabalhadores de um Caps. A brevidade do mestrado, assim como questes polticas (troca do governo municipal), sem dvida dificultaram minha insero nos servios de sade mental. No entanto, no pude deixar de questionar-me sobre os objetivos e mtodos das pesquisas que pretendem compreender a complexa relao entre sade e trabalho. Como nos aponta Brito (2004:106), as pesquisas acadmicas tendem a privilegiar o trabalho abstrato em sua forma desvitalizada e genrica, mesmo quando so feitas observaes de campo. Isto me levou a perceber a carncia de mtodos adequados, que consigam privilegiar a experincia daqueles que vivem as situaes de trabalho, na produo cientfica sobre o tema. No nos iludamos, porm, que apenas a falta de uma metodologia mais precisa que impede a real valorizao do saber do trabalhador, pois a compreenso de sua importncia, nem sempre suficiente para eliminar um obstculo epistemolgico que se aprende e imprende ao longo da formao como universitrio: a pretenso e a arrogncia, esta forma de ignorncia impermevel. (Brito & Athayde, 2003:84). neste sentido, que Schwartz (2000) vai apontar a necessidade de uma humildade epistemolgica, para potencializar o encontro entre o plo dos saberes organizados (das disciplinas) e o plo dos saberes investidos na

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atividade (da experincia). Uma troca que exige certa humildade dos universitrios para retornar a palavra atividade, e de outra parte, uma aceitao da disciplina do conceito e de sua aprendizagem pelos protagonistas das atividades (Schwartz, 2000). Isto porque o maior desafio talvez no seja apenas incorporar as experincias dos trabalhadores aos estudos acadmicos, mas auxiliar no desenvolvimento destas experincias, ou seja, torn-las mais fortes e potentes, visando ampliao da capacidade de defesa da sade dos trabalhadores (Brito & Athayde, 2003). Antecipamos que, cumprido ou no, este foi o principal objetivo deste trabalho. Foi com estas reflexes que cheguei at o doutorado, onde fui levada a mais um Encontro: com o patrimnio da clnica do trabalho francesa, especialmente a Ergologia e a Clnica da Atividade, que me mostraram um caminho possvel para o partilhamento dos saberes investidos na atividade, fundamental para o desenvolvimento das prticas anti-manicomiais. Destes Encontros nasce esta Tese. Ela est dividida em trs Sees, em um encontro de saberes sobre o trabalho em sade mental no Caps. A primeira Seo, inicia nossa conversa com esta introduo e a apresentao dos objetivos da pesquisa e da escolha metodolgica, que justificam as outras duas Sees. Na Seo II (Saberes Formalizados), apresentamos os pressupostos que nos serviro de linha-guia pelos labirintos do trabalho vivo: um conceito de sade que no se restringe nem a um inalcanvel equilbrio, nem a um indeterminado bem estar e, tampouco, s injustas diferenas sociais, em um entendimento de que a sade implica no somente uma seguridade e tolerncia s infidelidades do meio, mas tambm a possibilidade de ampli-las (Canguilhem, 2006). (captulo 1); um conceito de trabalho que no considera apenas seu carter abstrato, como mero produtor de valor e alienao, mas, sobretudo, o trabalho vivo em ato, aquele que chama gesto permanente de saberes e valores, caracterizando-se como uma atividade humana e complexa, que no pode ser definida

Introduo e Justificativa

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antecipadamente ou separada das outras dimenses da vida (captulo 2); as contribuies do ponto de vista da atividade para analisar o trabalho em sade (captulo 3); o patrimnio de estudos brasileiros sobre a relao entre sade e trabalho em sade mental (captulo 4); o surgimento dos Centros de Ateno Psicossocial (Caps), suas principais propostas e algumas consideraes sobre os desafios da atividade de trabalho nestes servios (captulo 5). Na Seo III, tentamos nos aproximar dos saberes investidos na atividade, com a constituio de uma Comunidade Ampliada de Pesquisa, colocando em dilogo conhecimento e experincia, em trs movimentos. O primeiro movimento dedicado apresentao do servio em que foi realizada a pesquisa e descrio de suas principais etapas. O segundo movimento apresenta as observaes preliminares sobre a atividade de trabalho, a constituio da Comunidade Ampliada de Pesquisa e a reflexo das trabalhadoras sobre o incio do seu trabalho nos Caps. Finalmente, o terceiro movimento traz a descrio e algumas consideraes a respeito da atividade de trabalho no Caps, considerando a importncia do fortalecimento de um patrimnio compartilhado sobre o trabalho em sade mental para servios produtores de sade para usurios, familiares e trabalhadores.

UMA ESCOLHA METODOLGICA: DISPOSITIVO DINMICO DE TRS PLOSNeste captulo, nos perguntamos sobre os modos de pesquisar que podem auxiliar na ampliao do dilogo entre pesquisadores e trabalhadores, visando no s a compreenso, mas a transformao das situaes de trabalho. Nesse sentido, buscaremos apresentar diferentes modos de pesquisa que valorizam o saber e a experincia dos trabalhadores nos estudos sobre o trabalho, justificando, ao final, nossa escolha metodolgica.

Como pesquisar?A primeira experincia que destacaremos a enquete operria, de K. Marx. Conforme nos coloca Botechia (2006), baseada nas consideraes de Thiollent (1982), em um primeiro momento a gesto governamental, visando investigar a classe operria, criou as enquetes operrias. Posteriormente, eles comearam a ser utilizadas pelos chamados grupos socialistas, com o objetivo de autoconhecimento da classe operria, desvinculando-se tanto da academia como do governo. Foi assim que, em 1880, a pedido da Revue Socialist, Marx formulou um questionrio, com cem perguntas, direcionado a operrios do campo e da cidade, com o objetivo no apenas de levantar dados e caractersticas de sua situao de trabalho, mas sobretudo de provocar a conscincia crtica do trabalhador a respeito de sua condio de explorado. O questionrio era dividido em quatro partes. A primeira destinava-se a uma descrio da fbrica em que os operrios trabalhavam; a segunda referiase s formas de domnio e explorao; e a terceira privilegiava a discusso salarial. Com esta seqncia, Marx pretendia dar subsdios suficientes aos trabalhadores para perceberem, com clareza, as formas de explorao a que estavam submetidos. Finalmente, a ltima parte do questionrio, era um convite reflexo sobre como os operrios poderiam lutar contra esta explorao.

Escolha Metodolgica: Dispositivo Dinmico de Trs Plos

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Marx opunha-se, assim, idia de que o trabalhador desconhece ou passivo frente realidade que vive, acreditando que apenas eles podem descrever, com todo conhecimento de causa, os males que suportam, e de que s eles, e no os salvadores providenciais, podem energicamente remediar as misrias sociais que sofrem (Marx apud Botechia, 2006). A Enquete Operria, portanto, mais que um mtodo de pesquisa das condies de trabalho, era uma tentativa de estabelecer uma relao complementar entre a tomada de conscincia e a luta de classes (Botechia, 2006). As prximas contribuies que destacaremos, so aquelas ligadas s experincias da Ergonomia da Atividade. Ergonomia foi a denominao da primeira associao inglesa que reunia profissionais de diversas disciplinas, sobretudo a psicologia, medicina e engenharia, para analisar algumas situaes de trabalho. Filha da guerra, a ergonomia, como tantas outras inovaes produzidas a partir deste acontecimento, foi transferida para o mundo industrial, onde se percebiam problemas de natureza similar (Teiger, 1998). A anlise ergonmica, como nos explica Montmollin (1998), tem dois grandes modelos tericos: o clssico, identificado com as experincias americanas e britnicas, centrado no componente humano do sistema homemmquina; e o que se desenvolveu nos pases francfonos, que privilegia a anlise do sistema tarefa-sujeito, sendo a atividade a expresso dessa interao dinmica (Leplat & Hoc, 1998). O objetivo do primeiro adaptar os dispositivos tecnolgicos s caractersticas e limites dos seres humanos, e para tanto prioriza mtodos cientficos baseados na generalizao e quantificao sem, necessariamente, ter que recorrer a uma observao ou discusso do trabalho com os operadores1. J o segundo, traz como principal contribuio a diferenciao entre trabalho prescrito (tarefa) e trabalho real (atividade), sendo imprescindvel a anlise da situao de trabalho.

1 Para o ergonomista, um operador no o mesmo que um operrio: operador aquele que opera, realiza uma tarefa, abarcando qualquer espectro laboral (Teiger, 1998).

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Para Montmollin (1998) so ergonomias complementares, mas no sem ambiguidades. A ergonomia dos componentes humanos seria uma ergonomia dos primeiros auxlios que considera caractersticas dos postos de trabalho, independente daqueles que os ocupam (iluminao, calor, umidade, rudos, assentos, etc.). A Ergonomia da Atividade parece ter mais relevncia, na medida em que estas bases indispensveis estejam asseguradas, permitindo ao trabalhador interessar-se por sua atividade real, temporal, complexa, rara, aparentemente inventiva, e s vezes imperfeita. Ao demonstrar que a situao real de trabalho jamais apenas o cumprimento de regras prestabelecidas, conforme acreditava a gesto taylorista, por exemplo, a ergonomia apontou que em qualquer atividade, mesmo aquela considerada mais simples, mecnica ou manual, sempre h uma operao inteligente e uma intensa atividade mental. A Anlise Ergonmica do Trabalho (AET), cuja regra de ofcio compreender para transformar, inicia pela anlise da demanda, interrogando os problemas apresentados e definindo os objetos da ao ergonmica. O objetivo dar visibilidade s dificuldades e estratgias desenvolvidas para gerir a distncia entre trabalho prescrito e real, constituindo o chamado ponto de vista da atividade. Como afirma Teiger (1998), a atividade de trabalho no um objeto dado para o investigador, mas um objeto a ser construdo e reconstrudo com os trabalhadores. A atividade tambm no pode ser reconhecida diretamente, apenas apreendida na confrontao entre dois tipos de dados empricos: observaes e medidas de comportamento, e entrevistas (individuais e coletivas) para a discusso dos fenmenos observados, bem como para a expresso do conhecimento dos operadores sobre a situao de trabalho. Isto porque a atividade no apenas aquilo que pode ser observado e quantificado, sendo essencial a verbalizao do operador.(...) a verdadeira ruptura com a Ergonomia britnica e americana acontece quando a palavra passa a ser considerada como um comportamento carregado de sentido. Nesta direo, a Anlise Ergonmica do Trabalho

Escolha Metodolgica: Dispositivo Dinmico de Trs Plos

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deve levar em conta a observao dos comportamentos motores e tambm das trocas verbais estabelecidas em uma situao de trabalho (Botechia, 2006:73).

O ltimo passo da AET a formulao do diagnstico, considerando a anlise da demanda, as observaes sistematizadas da atividade e a confrontao com os trabalhadores, buscando a elaborao conjunta de alternativas para a transformao dos problemas identificados na situao de trabalho analisada. A diferena fundamental dessa abordagem, em relao a outros modos de analisar o trabalho, a exigncia da presena do pesquisador no local de trabalho, o privilgio do ponto de vista da atividade e a confrontao das observaes dos pesquisadores com as vivncias dos trabalhadores, possibilitando tanto o diagnstico (compreenso), como o desenvolvimento (transformao) dos modos de trabalhar. Junto com a Ergonomia, a Psicopatologia do Trabalho formou a tradio da clnica do trabalho francesa. Inaugurada nos anos 1950-60, por pesquisadores como Le Guillant, P. Saivadon e A Fernandez Zila, a Psicopatologia do Trabalho concentrou sua ateno nos modos de adoecimento psquico relacionados ao trabalho, em um entendimento de que a organizao de trabalho taylorista nociva sade mental dos trabalhadores. J nos anos 1970, a segunda gerao da Psicopatologia do Trabalho (C. Dejours e colaboradores), incluindo as contribuies da psicanlise, prope que os trabalhadores no so passivos frente aos constrangimentos organizacionais, desenvolvendo estratgias defensivas individuais e coletivas para se proteger destes constrangimentos. O foco, portanto, passa a ser o sofrimento e as defesas contra o sofrimento no trabalho, e no a doena mental. Aos poucos, Dejours inverte a pergunta da Psicopatologia do Trabalho, questionando-se no mais sobre como as organizaes enlouquecem os trabalhadores, mas justamente sobre como os trabalhadores, mesmo quando sujeitos s mais diversas presses no trabalho, conseguem evitar a doena e a loucura.

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Simultaneamente, era a normalidade que surgia como enigma central da investigao e da anlise. Normalidade que ocorre, de sada, como equilbrio instvel, fundamentalmente precrio, entre o sofrimento e as defesas contra o sofrimento (...). Ao operar esta passagem da patologia normalidade, sou levado a propor uma nova nomenclatura para designar essas pesquisas: psicodinmica do trabalho (Dejours, 2004:512).

Dejours (2004) salienta que o desenvolvimento de seus estudos foi possvel graas a um duplo dilogo: com a psicanlise e com a ergonomia. A partir da diferena apontada pela ergonomia, entre trabalho prescrito e trabalho real, Dejours interessou-se pelos processos subjetivos que tornam possvel a gesto do trabalho, propondo a definio de que trabalho a atividade manifestada por homens e mulheres para realizar o que ainda no est prescrito pela organizao do trabalho (Dejours, 2004:65). Dar conta disto que no est prescrito, exige inventividade, criatividade e formas de inteligncia especficas, as quais Dejours denomina engenhosidade ou inteligncia da prtica. Toda atividade de trabalho inclui, portanto, uma forte mobilizao subjetiva que, se por um lado espontnea, por outro, no deixa de ser extremamente frgil, dependendo da dinmica entre contribuio e retribuio. O trabalhador espera reconhecimento simblico da sua contribuio, sem a qual tende a desmobilizar-se, com profundas conseqncias para sua sade mental:Assim, a psicodinmica do trabalho completa a anlise dinmica do sofrimento e das estratgias defensivas mediante a anlise dinmica do sofrimento e sua transformao em prazer pelo reconhecimento. O trabalho oferece amlgama ao conjunto sofrimento e reconhecimento. Se falta reconhecimento, os indivduos engajam-se em estratgias defensivas para evitar a doena mental, com srias conseqncias para a organizao do trabalho, que corre o risco de paralisia (Dejours, 2004:77).

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Sendo assim, se a grande contribuio da Ergonomia da Atividade foi demonstrar a defasagem entre trabalho prescrito e trabalho real, a Psicodinmica do Trabalho sublinhou a inteligncia que colocada em ao, para dar conta desta defasagem (Borges, 2006). No entanto, Dejours (2004b) tambm tece crticas ergonomia, na medida em que acredita que esta disciplina entende a atividade como igual ao trabalho, enquanto para ele o trabalho est alm da atividade. Seu objetivo no desvendar a realidade do trabalho humano, em suas dimenses fsicas e cognitivas, mas a vivncia subjetiva. Priorizar a vivncia subjetiva, no entanto, no quer dizer adotar abordagens individualizantes na anlise do trabalho. Dejours (2004) esclarece que em sua metodologia de pesquisa no h questionrios ou entrevistas individuais, assim como no h um nico pesquisador2. Pesquisadores e trabalhadores esto organizados em coletivos. Da mesma forma, o interesse da pesquisa no est na observao ou levantamento de dados, mas no comentrio dos trabalhadores. No existem fatos em si, j que aquilo que vivido subjetivamente no trabalho, assim como o sofrimento, no podem ser analisados de fora, exigindo um trabalho reflexivo de perlaborao coletiva. Por isso a importncia da palavra, como meio de fazer chegar inteligibilidade aquilo que ainda no consciente. Para Dejours (2004), poder falar com algum, a forma mais potente de pensar a experincia vivida subjetivamente e, no caso do grupo, um meio de elaborao coletiva das experincias e ainda um operador de construo do prprio coletivo. de fundamental importncia, ainda, que a pesquisa parta de uma demanda formulada pelos trabalhadores. A partir desta demanda, iniciam-se as diferentes fases da pesquisa: pr-enquete3 (preparao da pesquisa),

2 Uma importante limitao, a nosso ver, das pesquisas brasileiras que utilizam o referencial dejouriano em suas anlises no seguir a contento os pressupostos tericos e metodolgicos propostos pelo autor. 3 Athayde (comunicao oral) chama ateno para o fato de que as tradues brasileiras tendem a traduzir enqute por pesquisa, quando em francs, o termo enqute deriva do

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enquete (analisar as relaes entre a organizao do trabalho e o sofrimento psquico, a partir do comentrio dos trabalhadores, anlise e interpretao da demanda); e validao e refutao (por parte do coletivo dos trabalhadores) (Dejours, 2004b). Passemos agora da Frana Itlia, no contexto da emergncia e afirmao do movimento sindical como principal protagonista na transformao social, entre as dcadas de 1960 e 1970. Com a contribuio significativa de Ivar Oddone e Alessandra construiu-se uma proposta de anlise-interveno ancorada em um modelo operrio de conhecimento e em outra psicologia do trabalho, centrados na valorizao da experincia dos trabalhadores. Comentando um livro de Oddone e colaboradores, ainda no publicado no Brasil (Experincia operria, conscincia de classe e psicologia do trabalho), Clot (1999) afirma que o que chamou ateno dos pesquisadores italianos foi o fato de que, geralmente, os operrios referiam-se ao seu trabalho como algo que os estimulava e desafiava. Assim, mais do que destacar a alienao, constrangimentos, impossibilidades ou limitaes dos trabalhadores, o grupo de Oddone preocupou-se em compreender as perspectivas que os trabalhadores criavam para si, procurando subsidiar os coletivos de trabalho em suas tentativas de manter e, principalmente, alargar seu campo de ao. Eles consideraram duas vias para reduzir a nocividade do ambiente de trabalho: a modificao do papel do especialista em sade da empresa e/ou novos critrios de definio dos ndices de nocividade e de formas de participao operria (Clot, 1999; Oddone, 1986). Se antes estes critrios eram cientficos e desenvolvidos por tcnicos estrangeiros ao trabalho, Oddone introduziu a percepo subjetiva do trabalhador em relao aos riscos de seu prprio trabalho, rompendo tanto com a concepo marxista de

verbo inquirir ir busca de algo (demanda).

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alienao como com a psicologia do trabalho taylorista. A primeira por entender que a conscientizao do trabalhador vem de fora; a segunda por negar que os trabalhadores tenham quaisquer capacidades de aprendizagem.Para I. Oddone trata-se de travar um duplo combate, ideolgico, no campo da poltica, e disciplinar, no campo cientfico, pois ele desejava renovar a psicologia do trabalho no sentido de uma psicologia concreta, fundada sobre a noo de experincia (Vicenti, 1999:4).

Para fazer da experincia, um conceito chave, Oddone seguiu uma abordagem terica e outra experimental. Do lado terico privilegiou os estudos da psicologia histrico-cultural sovitica (Bassine e Leontiev), concomitante construo com os trabalhadores de um mtodo que lhes permitissem a tomada de conscincia de suas experincias, visando uma maior autonomia no trabalho. (Vicenti, 1999). Um dos mtodos desenvolvidos por Oddone e colaboradores, conhecido como modelo operrio de conhecimento, tem como base trs pressupostos: o grupo operrio homogneo, a validao consensual e a no delegao. O grupo operrio homogneo o grupo que vive submetido mesma nocividade e que acumulou um saber epidemiolgico leigo sobre seu ambiente de trabalho. A validao consensual o julgamento coletivo pelo qual o grupo valida a experincia de cada trabalhador em relao s condies de trabalho, sendo que o conjunto de julgamentos subjetivos e qualitativos dos trabalhadores transformado em critrio de avaliao quantitativa e cientfica. O conceito de no delegao exprime a recusa de delegar aos especialistas o julgamento sobre a nocividade das condies de trabalho do grupo e a fixao dos padres e limites de nocividade (Oddone et. al., 1986; Vicenti, 1999). O objetivo metodolgico fundamental desta proposta introduzir a percepo subjetiva do trabalhador como critrio de avaliao da nocividade, sem delegar estes critrios exclusivamente a especialistas (Brito & Athayde, 2003). No livro em que apresenta esta metodologia, editado por trs sindicatos italianos, amplamente difundido no Brasil, Oddone et.al. (1986) classifica os fatores de nocividade em quatro grupos. O Grupo 1 integra os

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riscos fsicos, que esto presentes onde o homem vive, seja sua casa ou trabalho (luz, rudo, temperatura). O Grupo 2 engloba os riscos qumicos, presentes apenas na fbrica (poeira, gs, vapores). J o Grupo 3 est relacionado fadiga, aos esforos muscular e fsico, enquanto o Grupo 4 diz respeito aos fatores estressantes ou psicossociais, associados ao trabalho. Considerando estes quatro grupos, a pesquisa, protagonizada pelos trabalhadores, passa por trs etapas: observao espontnea do ambiente de trabalho; quantificao dos riscos (mapa de risco); e pauta de reivindicaes. Para Oddone, estava claro que os trabalhadores desenvolvem um saber a partir da experincia de trabalho sem, muitas vezes, sequer perceber, valorizar, potencializar ou conseguir transmitir esta experincia. Assim, procurou inventar mtodos que pudessem auxiliar tanto na formalizao, como na transmisso da chamada experincia operria (Vasconcelos & Lacomblez, 2004). neste sentido que introduz a idia de uma comunidade cientfica ampliada, onde o objetivo colocar em dilogo os saberes da experincia dos trabalhadores e os saberes cientficos. Outra contribuio importante do grupo de Oddone, diz respeito aos mtodos indiretos de investigao. Impedidos de entrar na fbrica, em uma interveno conduzida nos anos 1970, junto aos trabalhadores da Fiat, os pesquisadores criaram o dispositivo de instruo ao ssia:(...) o exerccio de instruo ao ssia implica um trabalho de grupo no curso do qual um sujeito voluntrio recebe a seguinte tarefa: Suponha que eu seja seu ssia e que amanh eu deva substituir voc em seu trabalho. Que instrues voc deveria me transmitir para que ningum perceba a substituio? (Clot, 2006:144).

A funo do ssia, nesta tcnica o de resistir atividade, ou seja, colocar-se enquanto leigo, questionando e colocando em foco o como fazer, para alm das prescries. Com isso, o trabalhador convidado a pensar sobre aquilo que executado de maneira automtica e habitual, que parece simples

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mas, que ao ser detalhado, permite vislumbrar o quanto de indito, criativo e especfico h em cada atividade de trabalho. Alm disso, ao tentar colocar em palavras sua experincia, o trabalhador pode se dar conta de saberes insuspeitados, alargando seu poder de ao sobre o trabalho (Clot, 1999). Cabe ressaltar a forte influncia deste modelo na constituio do campo da Sade do Trabalhador no Brasil, sobretudo em relao ao mapa de risco, que alcanou tamanha popularidade no meio acadmico e sindical que hoje est includo na legislao regulamentadora da sade no trabalho 4. Por outro lado, algumas experincias no frutificaram ou so pouco conhecidas, como a comunidade cientfica ampliada ou o mtodo de instruo ao ssia (Brito, 2004). Ao contrrio, na Frana, Y. Schwartz e D. Faita trabalharam com a concepo da Comunidade Cientfica Ampliada durante a dcada de 1980, at perceberem algumas limitaes deste termo e, a partir disso, construrem outra proposta (Schwartz, 2000). Primeiro, ampliando a idia de trabalho operrio para a concepo mais geral da atividade humana. Segundo, apontando a contradio conceitual da comunidade cientfica ampliada que, ao querer incluir os trabalhadores na produo de saberes sobre o trabalho, permaneceu vinculando o conhecimento cincia (inclusive em sua insgnia). Finalmente, para Oddone, quem podia fazer a costura entre os saberes cientficos e os saberes da experincia, seria um terceiro plo, representado pela conscincia de classe (o sindicato). Isto, para Schwartz (2000), tambm um importante limitante, pois os parceiros no so mais somente militantes operrios como no incio, so tambm desempregados, agentes de servios, funcionrios especializados, consultores e profissionais de diversos ramos. A partir destas consideraes, Schwartz (2000) prope o Dispositivo Dinmico de Trs Plos. Um espao de encontro, que coloca (ou dispara) um

4 Normas Regulamentadoras de Segurana e Medicina do Trabalho.

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movimento, sempre dinmico (posto que no esttico ou estvel, tampouco visa ao equilbrio), entre os saberes disciplinares e da experincia (plos 1 e 2), costurados por um terceiro plo fundamental: as exigncias ticas e epistemolgicas - uma certa humildade necessria, tanto por parte dos pesquisadores, como dos trabalhadores, para aprender uns com os outros. Apresentando, didaticamente estes trs plos, poderamos assim defini-los: 1) Plo dos saberes organizados e disponveis: o plo dos saberes das disciplinas: psicologia, economia, ergonomia, sociologia, filosofia, direito, medicina, entre outras, que contribuem com conceitos para a anlise da atividade. 2) Plo dos saberes investidos na atividade: so os saberes da experincia, daquilo que gerado na atividade, que inclui as foras de convocao (dos saberes disciplinares) e as foras de validao (testar os saberes das disciplinas mediante as situaes da atividade, que podem ou no valid-los). 3) Plo das exigncias ticas e epistemolgicas seria a abertura e a disponibilidade, tanto tica como epistemolgica, de cada participante do processo, para realizar esta troca. O Dispositivo Dinmico de Trs Plos permite o vaivm entre o conhecimento e a experincia, ou entre a generalizao e a singularizao. Parte-se da experincia singular dos profissionais para, ao longo do tempo, extrair os saberes gerais formalizados nas disciplinas, em um entendimento de que todo conhecimento tem vocao para ser generalizado (Durrive, 2001:55). Ao mesmo tempo, um modelo s vlido quando encarnado, aplicado no aqui e agora, de acordo com a especificidade de cada situao de trabalho. A experincia ou atividade de trabalho, assim, singulariza e atualiza o modelo.Falamos de dispositivo dinmico de trs plos, quando um movimento articulado, uma espiral que leva de uma experincia com um nvel de antecipao cada vez melhor a um conhecimento cada vez mais ligado realidade (Durrive, 2001:59).

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No entanto, o risco quando nos propomos a este tipo de dilogo cair em um confronto do tipo teoria X prtica, em uma tendncia de que os saberes da atividade sejam engolidos pelos saberes constitudos, mais valorizados e disponveis. Assim, a primeira exigncia a humildade diante dessa complexidade. Em seguida, necessrio rigor para poder dar corpo (e voz) s experincias de trabalho. Isto porque a finalidade deste dilogo no apenas constatar a complexidade e singularidade que cada um vivencia em sua situao de trabalho, mas tambm realizar um esforo de verbalizao e possvel generalizao da experincia. As exigncias ticas e epistemolgicas, imprescindveis para este dilogo, portanto, dizem respeito humildade, diante da complexidade das experincias; e ao rigor, diante da exigncia de verbalizar o trabalho (Durrive, 2001). Considerando estas contribuies de Oddone e Schwartz, somadas ao patrimnio da Educao Popular de Paulo Freire, pesquisadores brasileiros sugerem a terminologia Comunidade Ampliada de Pesquisa5 CAP, pensada enquanto uma rede de encontros de saberes, reunindo pesquisadores e trabalhadores, em uma co-anlise sobre os processos de trabalho, subjetivao e sade (Botechia, 2006; Brito & Athayde, 2003). No entanto, estes regimes de produo de saber, ao colocarem em destaque a experincia operria, o saber do trabalhador, as foras de convocao e validao, a experincia, ou seja qual for a nomenclatura preferida, esbarram na dificuldade de poder dizer o prprio trabalho. Enquanto o trabalho prescrito est em relao direta com o linguageiro (manuais, normas, regras escritas e faladas), a atividade de trabalho integra a trama complexa do real, mais da ordem do vivvel, do que do dizvel.

5 Aqui o campo ampliado o da pesquisa, e no o do cientfico, como em Oddone.

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assim que Y. Clot (2006) e D. Faita, 2005 propem mtodos6 que permitem avanar na compreenso da complexidade do encontro entre atividade e discurso, priorizando tcnicas de observao/registro da atividade linguageira7 no curso da atividade de trabalho, sendo que as falas e comentrios produzidos (ou provocados) so seu principal material de anlise 8 (Borges, 2006:151). Ao ser reconhecida e formalizada pela linguagem, a experincia pode ser compartilhada, transmitida, e ser a base para produo de novas experincias. O objetivo desses mtodos, portanto, no apenas o (re)conhecimento, mas o desenvolvimento da experincia. neste sentido, que a proposta da Clnica da Atividade auxiliar os coletivos de trabalho a ampliar seu campo de ao, apostando no desenvolvimento (no sentido vigotskiano) da atividade, em um entendimento de que no deve apegar-se, simplesmente, a experincias j feitas, mas transform-las em um meio de produzir outras experincias (Clot, 1999). Aqui encontramos a principal diferena, apontada por Clot (2001) entre a Psicodinmica do Trabalho e a Clnica da Atividade. Ambas trazem a subjetividade para o mbito da anlise do trabalho e tm a Psicopatologia do Trabalho como patrimnio comum, revisitada pela psicanlise, no caso da Psicodinmica. No entanto, Clot (2006) no relaciona diretamente subjetividade e sofrimento, acreditando que este ltimo, sob o ponto de vista da atividade, uma atividade contrariada e at reprimida ou, em outros termos, um desenvolvimento impedido. Trata-se de uma amputao do poder de agir, que no permite que os sujeitos transformem o vivido em recurso para a vivncia de uma nova experincia. O desenvolvimento, suas

6 Os mtodos utilizados por estes autores so uma adaptao do mtodo de instruo ao ssia, de Oddone; e a autoconfrontao cruzada, que aqui no detalharemos. Para aprofundamento destas metodologias, remetemos aos trabalhos de Clot (2006) e Santorum (2006). 7 Para Faita (2005), a prpria produo discursiva dos trabalhadores atividade (atividade na atividade).

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histrias e os empecilhos a ele: assim que acabamos de definir o objeto da anlise das atividades de trabalho (Clot, 2006:13). Clot (2007) faz uma simplificao didtica, identificando a tradio da Psicopatologia do Trabalho com a escuta, a palavra e o dilogo. Ao contrrio, a Ergonomia privilegiaria a observao da atividade. Temos a duas diferenas: de um lado, a palavra; de outro, a observao em situao; de um lado, a subjetividade; do outro, a atividade. Partindo desta dupla herana, ele diz que a Clnica da Atividade a tentativa de transformar a observao em dilogo, ou seja, de fazer da palavra uma ferramenta de observao. Para ele, a observao no produz conhecimento apenas para o observador, mas tambm para o observado, que tambm se observa enquanto os outros o observam, estabelecendo um dilogo interior consigo mesmo, tentando corresponder quilo que o outro (observador) quer ver. Para ele, os mtodos dialgicos da Anlise do Trabalho so uma tentativa de dar um destino a este dilogo interior que se estabelece durante a observao. assim que a Clnica da Atividade faz a relao entre atividade e subjetividade, compreendendo que no so antagnicas. Para ele, a subjetividade uma atividade sobre a atividade.

O que pesquisar?Finalmente, podemos apresentar de forma sucinta, nossos objetivos e metodologia. Objetivo Geral: Analisar coletivamente a atividade dos trabalhadores dos Caps. Objetivos Especficos:

8 Neste sentido, Frana (2007) sugere o termo Comunidade Dialgica de Pesquisa.

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- Conhecer as normas e procedimentos formais que orientam o trabalho nos Caps; - Analisar, junto com os trabalhadores, as variabilidades, a gesto de normas e valores, e a ao normativa presentes na atividade de trabalho dos Caps; - Compreender as articulaes possveis entre sade e trabalho nos Caps; Inserindo-nos no patrimnio coletivo aqui apresentado, nossa inteno foi propor a constituio de uma Comunidade Ampliada de Pesquisa, onde o principal dispositivo para colocar em dilogo conhecimento e experincia, ou os saberes disciplinares e os saberes investidos na atividade, foi uma adaptao dos Encontros sobre o Trabalho (Durrive, 2001). A Comunidade Cientfica Ampliada foi composta por trs pesquisadores acadmicos a doutoranda, sua orientadora e um bolsista de pesquisa9 e pelos trabalhadores do servio escolhido para a pesquisa (melhor detalhado no primeiro movimento da Seo III). Durrive (2001) apresenta a dinmica dos Encontros em trs principais fases. O primeiro momento aquele em que as pessoas so apresentadas a um novo grupo que tem como objetivo a co-produo de saberes e um novo conceito a atividade. Durrive (2001) destaca que o papel do animador neste grupo, nada tem a ver com o de professor, sendo que ele pode at trazer esclarecimentos tericos ou intervir pontualmente, mas sem perder de vista que seu papel fundamental favorecer a dinmica gerada pelo terceiro plo, ou seja, suas regras de ofcio so a humildade e o rigor. A segunda fase aquela que Durrive (2001) denomina exercitar-se na construo de um ponto de vista argumentado, ou seja, estimular que cada participante, a partir das discusses no grupo, possa construir seu prprio

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ponto de vista sobre a atividade de trabalho. Inicialmente, a tendncia confundir tarefa e atividade, descrevendo seu trabalho, a partir dos procedimentos esperados, normas, regras, ideais... medida que cada um pode perguntar-se sobre sua atividade, revelando o trabalhar de outra forma, por trs do trabalhar em conformidade, temos a tentativa da construo, mesmo que provisria, do ponto de vista sobre a atividade. A maior dificuldade, neste momento, poder constituir um ponto de vista ao mesmo tempo autntico e comunicvel, ou seja, ultrapassado o sentimento de no ter nada a dizer, preciso vencer o de no conseguir dizer (Durrive, 2001:66). Finalmente, na terceira fase, estimulado um confronto entre os diferentes saberes, incentivando os trabalhadores a dar forma a seus pontos de vista. A sugesto de Durrive (2001) que esta formalizao no passe apenas pela fala, mas que inclua a escrita. Consideramos que este poderia ser um dispositivo interessante, mas em nossa pesquisa confirmamos uma dificuldade recorrente dos profissionais da ponta em registrarem suas experincias de trabalho. Soma-se a isso, uma mudana em nosso planejamento da pesquisa, onde optamos em privilegiar nos Encontros, o relato detalhado das atividades dos profissionais (segunda fase), o que no permitiu nos determos com mais tempo nesta terceira fase. Utilizamos, ainda, o dirio de campo (Lourau, 1993) que como um registro pessoal, nos ajudou a detalhar, sistematizar e organizar os encontros e, principalmente, abrigar os desencontros, as dvidas e divagaes... Foi uma forma de registrar no apenas o realizado, mas tambm as atividades impedidas no decorrer da pesquisa, o texto, o contexto e o fora do texto. Consideramos, assim, que a pesquisa co-produo de saberes, formao e interveno, e no h como ser de outro modo. O objetivo analisar as experincias em curso nos Caps, no entendimento de que

9 Tatiana, Jussara e Irapoan.

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compreender e desenvolver estas experincias potencializar a capacidade de ao normativa e consequentemente de sade dos trabalhadores. No primeiro captulo da Seo III apresentamos o servio em que foi realizada a pesquisa, bem como suas principais etapas, permeada por uma breve anlise de implicao da pesquisadora.

SECAO II: SABERES FORMALIZADOS

Q U E S A D E ? 10A GENTE NO QUER S COMIDA, A GENTE QUER A VIDA COMO A VIDA QUER OS TITS

Defendemos esta tese em uma Escola de Sade Pblica, sobre a relao entre sade do trabalhador e trabalho em sade. No esforo da sntese, destacam-se duas palavras: sade e trabalho. Os dois primeiros captulos desta Seo so um convite ao leitor para nos acompanhar na trajetria de transformao destas palavras em conceitos-ferramenta. Este percurso, embora longo, confuso e tortuoso, comumente reduzido a alguns poucos pargrafos, onde se pretende resumir as bases conceituais que orientam o trabalho acadmico. Com isso, ganha-se em objetividade e agilidade, mas perde-se o caminho: as sutilezas, as continuidades e descontinuidades, as contradies e tambm as paixes em torno da escolha

deste e no daquele conceito, justamente para que possam ser ferramentas eno meras palavras de ordem repetidas ad infinitum. Longe de uma discusso hermtica e terica, o que pretendemos simplesmente partilhar, valorizando, j de incio, a reflexo, a leitura, o dilogo, a troca. Sendo assim, abrimos esta Seo sobre os saberes formalizados, com a discusso em torno dos conceitos-prticas relacionados sade, mais especificamente sade das populaes. Na primeira parte, destacamos o nascimento da Sade Pblica, bem como a problematizao deste modelo pela Sade Coletiva. Em seguida, apresentamos duas importantes contribuies para essa desconstruo: as consideraes em torno do normal e do patolgico, realizadas por G. Canguilhem e os estudos de M. Foucault sobre a disciplinarizao da sociedade moderna. Ao final, relacionamos diferentes

10 Este captulo originou o artigo Entre a normatividade e a normalidade: contribuies de G. Canguilhem e M. Foucault para as prticas de sade, publicado na Revista Mnemosine, Rio de Janeiro, v.4, n.2, p.68-97, 2008.

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concepes de sade, no intuito de refletirmos sobre como a Sade Coletiva pode constituir prticas que sejam normativas e no apenas normalizadoras.

Sade Coletiva: uma ruptura?Apesar da idia naturalizada de que a Sade Pblica e a Sade Coletiva so sinnimos, posto que ambas remetem impossibilidade de se pensar em uma sade individual sem considerar as condies sanitrias do espao social, temos boas razes para acreditar que essas expresses no se superpem, pois dizem respeito a diferentes modalidades de discurso, com fundamentos epistemolgicos diversos e com origens histricas particulares (Birman, 2005:11) O movimento de luta pela reforma sanitria no Brasil caracterizou-se, sobretudo, por uma crtica s prticas consagradas da Sade Pblica e pela reivindicao de outro conceito de sade que, para alm do biolgico, inclusse a dimenso social na anlise do processo sade-doena. No entanto, para compreender o que esse movimento vislumbrava transformar, comecemos delimitando o campo aqui designado como Sade Pblica. A Sade Pblica nasce junto com o Estado Moderno, como parte de uma nova racionalidade governamental. Ao contrrio das formas de governo do Feudalismo e do Absolutismo, o Estado na modernidade no uma casa, nem uma igreja, nem um imprio (Foucault, 2007:20), mas uma realidade especfica e autnoma, independente da obedincia que deva a outros sistemas, como a natureza ou Deus. Da mesma forma, o governante no algum diferente dos demais (como o senhor feudal ou o rei), sendo a lei dos homens e no mais a lei divina que regula essa nova ordem. A poltica externa, antes baseada na defesa e ampliao ilimitada do territrio, agora se vale de todo um aparato diplomtico que respeita a pluralidade dos Estados, margem de qualquer tentativa de unificao do tipo imperial. Ao contrrio, a poltica interna no tem limites quando se trata do controle da populao, por ora valorizada como principal fonte de riqueza (Foucault, 2006a). Segundo

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essa razo do Estado a limitao das relaes internacionais tem por correlato o ilimitado exerccio do Estado de polcia (Foucault, 2007:23). Temos, assim, algumas condies de possibilidade para a emergncia da polcia mdica, ou da medicina social ou, finalmente, da sade pblica, que consolidou a medicina como discurso cientfico e verdadeiro sobre a sade das populaes. Rosen (1986) afirma que na Antiguidade a relao entre as condies de sade e os fatores sociais no foi priorizada. Ao contrrio, na Renascena, essa relao toma importncia, marcando o incio, tanto para Rosen (1986), como para Foucault (1999c), da medicina social, que tomou rumos diferentes, conforme o pas11. O contexto scio-poltico-econmico que afirmou a necessidade do estudo das relaes entre o estado de sade de uma populao e suas condies de vida, foi o mercantilismo12 e cameralismo13, cujo fim supremo era colocar a vida social e econmica a servio dos poderes polticos do Estado. Para Foucault (1999c), na Frana e na Inglaterra o principal objetivo foi o controle em relao natalidade e morbi-mortalidade, somado preocupao em aumentar a populao, sem nenhuma interveno inicial efetiva ou

11 Nunca fcil escolher um jeito de contar uma histria, ou parte dela, ou eleger interpretaes. Segundo Hochmann et alli (2004), a produo histrica sobre a sade pblica na Amrica Latina um mosaico de estudos, mas que pode ser organizado, em trs estilos narrativos, que buscam romper com a tradicional histria da medicina: uma histria biomdica que procura compreender a relao entre a doena e o social; uma histria da sade pblica que focaliza o Estado e as relaes entre as instituies de sade e estruturas econmicas, sociais e polticas, com forte perspectiva estruturalista, com ou sem vis marxista (Rosen, por exemplo); e, finalmente, uma histria sociocultural da doena, e das relaes entre medicina, conhecimento e poder, muito influenciadas pelo marco interpretativo de Foucault. 12 A poltica mercantilista consiste essencialmente em aumentar a quantidade de populao ativa, a produo de cada indivduo, estabelecendo fluxos comerciais que possibilitem a entrada no Estado da maior quantidade possvel de moeda, permitindo o pagamento dos exrcitos e tudo que assegure a fora real de um Estado em relao aos outros (aumentar a riqueza e os poderes nacionais) (Foucault, 1999c). 13 O termo cameralismo tem duas conotaes. De um lado, designa as idias que aparecem para explicar, justificar e orientar as tendncias e prticas centralizadoras em poltica administrativa e econmica de uma monarquia absolutista. De outro lado, refere-se s vrias tentativas, do mesmo perodo, para efetuar, em termos da emergente cincia poltica e social, uma estimativa sistemtica do funcionamento dos vrios servios administrativos, como uma base para o treinamento de funcionrios pblicos (Rosen, 1986:33).

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organizada para elevar o seu nvel de sade. na Alemanha que se desenvolver, pela primeira vez, uma prtica mdica centrada na melhoria da sade da populao.Dentro do esquema cameralista, um conceito-chave em relao aos problemas de sade e doena a idia de police, derivada da palavra grega politeia. Caracteristicamente, a teoria e prtica da administrao pblica veio a ser conhecida como Polizeiwissenschaft ( science of police), e o ramo que trata com a administrao da sade recebeu o nome de

Medizinalpolizei (medical police). (Rosen, 1986:33)

Com o tempo, a idia de polcia transformou-se cada vez mais em uma teoria e prtica da administrao pblica que ganhou fora, sobretudo, na Alemanha. Ao final do sculo XVIII, os estados alemes, tanto no sistema de pensamento, como no comportamento administrativo, j haviam incorporado como norma que ao Estado Absoluto cabiam todas as atividades para o bemestar da populao. W.T. Rau, o primeiro a utilizar o termo polcia mdica, considerava que o mdico no deve se ocupar apenas do doente, mas tambm supervisionar a sade da populao. Por isso era importante regulamentar a polcia mdica, com a funo de regulamentar a educao mdica, supervisionar as farmcias e hospitais, prevenir epidemias, combater o charlatanismo e esclarecer o pblico (Rosen, 1986:37). Assim:Com a organizao de um saber mdico estatal, a normalizao da profisso mdica, a subordinao dos mdicos a uma administrao central e, finalmente, a integrao de vrios mdicos em uma organizao mdica estatal, tem-se uma srie de fenmenos inteiramente novos que caracterizam o que pode ser chamada a medicina de Estado (Foucault, 1999c:84).

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Para Rosen (1986), essa foi uma tentativa pioneira de considerar as questes de sade da vida comunitria, estimulando estudos futuros da relao entre as questes sociais, a sade e a doena. A Frana teve papel fundamental nessa teorizao, cunhando o termo medicina social 14, que no parece ter por suporte a estrutura do Estado, como na Alemanha, mas um fenmeno inteiramente diferente: a urbanizao (Foucault, 1999c:85). A necessidade de constituir a cidade como unidade, responde a interesses polticos e econmicos, na medida em que a cidade se torna um lugar importante para o mercado e para a produo, ao mesmo tempo em que o aparecimento de uma classe operria pobre (o proletariado) aumenta a tenso poltica entre os diferentes grupos que integram a cidade. a necessidade de controlar esta concentrao de uma grande populao em um s lugar, que leva escolha de um modelo de interveno, que Foucault (1999c) denomina o modelo da peste. Ele considera a existncia de dois grandes modelos de organizao mdica na histria europia: o modelo suscitado pela lepra e o modelo suscitado pela peste. No primeiro, o doente excludo fisicamente, mandado para fora da cidade, em uma tentativa de purificao do espao urbano. No segundo, as pessoas permanecem em suas casas, mas so meticulosamente observadas e vigiadas, em um esquadrinhamento e controle permanente dos indivduos, em um modelo mais prximo revista militar do que purificao religiosa. Enquanto a lepra pede distncia, a peste implica uma espcie de aproximao cada vez mais sutil do poder aos indivduos, correspondendo a uma inveno das tecnologias positivas de poder (Foucault, 2002:58-9).

14 Conceito introduzido por J. Gurin, em 1848: Tnhamos tido j ocasio de indicar as numerosas relaes que existem entre a medicina e os assuntos pblicos... Apesar destas abordagens parciais e no coordenadas que tnhamos tentado incluir sob rubricas tais como polcia mdica, sade pblica e medicina legal, com o tempo estas partes separadas vieram a se juntar em um todo organizado e atingir seu mais alto potencial sob a designao de medicina social, que melhor expressa seus propsitos (Gurin apud Rosen, 1986:49).

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Para Foucault (1999c) a medicina social francesa do sculo XIX nada mais que uma variao sofisticada deste modelo da peste. E suas preocupaes, que tambm chegaram ao Brasil republicano, dizem respeito, sobretudo, s noes de salubridade e insalubridade, que esto relacionadas s condies do meio em que se vive e o quanto este meio afeta a sade. Por isso a importncia das obras de saneamento, a abertura de avenidas largas, a condenao de zonas de amontoamento. A medicina urbana no verdadeiramente uma medicina dos homens, corpos e organismos, mas uma medicina das coisas: ar, gua, decomposies, fermentos; uma medicina das condies de vida e do meio de existncia (Foucault, 1999c:92). Finalmente, na Inglaterra, o conceito de polcia mdica ou da medicina social, do modo como se desenvolveu na Alemanha ou na Frana, dificilmente poderia florescer, j que o liberalismo econmico era a doutrina prevalecente. Essa filosofia, ao pensar a harmonia perfeita entre o homem e a natureza, raramente considerava os aspectos sociais em suas anlises. No entanto, as conseqncias da Revoluo Industrial e da situao de vida precria dos trabalhadores, com excessiva mortalidade e morbidade, no tinham como passar despercebidas (Rosen, 1986). Foucault (1999c) chama ateno para o fato de que na Inglaterra, pas em que o desenvolvimento industrial e do proletariado foi o mais rpido e importante, que temos uma nova forma de medicina social e, no por acaso, aquela que prevaleceu na atualidade. Um cordo sanitrio autoritrio separa ricos e pobres nas cidades, onde a interveno mdica tanto uma maneira de auxiliar nas necessidades de sade dos pobres, quanto um controle que assegura a proteo das classes mais abastadas de possveis doenas e epidemias. Diferente da medicina urbana francesa ou da medicina de estado alem aparece, na Inglaterra, uma medicina que essencialmente um controle da sade e do corpo das classes mais pobres para torn-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas s classes ricas (Foucault, 1999c:97). Essa frmula foi a que teve futuro, ligando assistncia mdica ao pobre, controle da sade da

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fora de trabalho e esquadrinhamento geral da sade pblica (idem), com igualmente trs sistemas mdicos superpostos: uma medicina assistencial para os pobres e trabalhadores; uma medicina administrativa encarregada de problemas mais gerais e, finalmente, uma medicina privada que beneficia quem pode pagar. Mesmo que articulados de maneira diferente, tratava-se (e tratase!) de fazer funcionar esses trs sistemas. No Brasil, por exemplo (e em vrios pases da Amrica Latina, com poucas variaes), o atendimento em sade de responsabilidade do Estado, esteve ligado carteira de trabalho (INAMPS), enquanto a sade pblica responsabilizava-se pelas grandes campanhas de vacinao, ao mesmo tempo em que o Estado financiava o setor privado da sade com suspeitos convnios. At mesmo o SUS Sistema nico de Sade que se props a romper com esse modelo, preconizando o atendimento universal e integral, co-existe com os planos privados de sade, de certa forma, tambm financiados pelo Estado15. Cabe destacar que esse tipo de interveno da sade pblica - mais do que um cuidado, um controle mdico da populao sempre suscitou resistncias. No Brasil, por exemplo, esse modelo, implantado com mais fora a partir da Primeira Repblica, com Oswaldo Cruz, resultou em importantes revoltas populares, como a revolta da vacina16. Como nos alerta Birman (2005), em nome da cincia, tivemos a marginalizao de diferentes segmentos sociais, com a consolidao de prticas asspticas que, ao silenciarem

15 Exemplos desse financiamento indireto: procedimentos mais complexos e caros que no so cobertos pelos planos de sade privados e acabam sendo realizados pelo SUS; despesas mdicas que podem ser deduzidas do Imposto de Renda; hospitais filantrpicos que recebem financiamento pblico e no pagam impostos como os privados, mas escolhem clientela e procedimentos, chegando a manter estabelecimentos separados: um privado e outro para o SUS. 16 Reao da populao Lei da Vacina Obrigatria, promulgada em 31 de outubro de 1904 que permitia que brigadas sanitrias, acompanhadas de policiais, entrassem nas casas e aplicassem a vacina contra a varola, mesmo que contra a vontade, em todos daquela residncia. Foram duas semanas de intenso conflito nas ruas cariocas, at o governo declarar estado de stio e suspender a obrigatoriedade da vacina. No entanto, o movimento foi contido logo em seguida e a vacinao macia e obrigatria da populao (pobre) teve prosseguimento.

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consideraes de ordem simblica e histrica na leitura das condies de vida e sade das populaes, fazem crer que no existe uma escolha poltica, ideolgica e tica nas prticas sanitrias. Foi justamente tentando romper com esse discurso naturalista e pretensamente neutro da Sade Pblica, que o movimento da reforma sanitria brasileiro e latino-americano, props outro campo que se ocupasse da sade no mais da massa informe da populao, mas dos sujeitos que compem um coletivo - a Sade Coletiva. Essa passagem do pblico para o coletivo descentra o lugar do Estado como espao hegemnico para a regulao da vida e da morte na sociedade, sendo que este no mais o plo nico na gesto do poder e dos valores, reconhecendo-se o poder instituinte da vida social, nos seus vrios planos e instituies (Birman, 2005:14). Desde a dcada de 1920, as cincias humanas introduzem no territrio da sade, a problematizao de categorias como normal, anormal e patolgico, demonstrando o quanto esses conceitos esto encharcados de valores morais. Comea a ganhar fora o entendimento de que a sade marcada num corpo que simblico, onde est inscrita uma regulao cultural sobre o prazer e a dor, bem como ideais estticos e religiosos (Birman, 2005:13). Assim, o campo terico da Sade Coletiva pretende ser uma ruptura com a concepo de Sade Pblica, ao negar o monoplio dos discursos biolgicos e incluir as dimenses simblica, tica e poltica na discusso sobre as condies de sade da populao, sendo a transdisciplinaridade sua marca constituinte. neste processo de mudana do paradigma sanitrio brasileiro que vimos nascer, ainda, dois campos que aqui nos interessam particularmente: a Sade Mental e a Sade do Trabalhador. Se antes tnhamos a Psiquiatria, a Medicina do Trabalho e a Sade Pblica como discursos hegemnicos nas diferentes polticas de sade do Estado; hoje a Sade Mental, a Sade do Trabalhador e a Sade Coletiva que consolidam-se como a base terica (e prtica?) do Sistema nico de Sade SUS. No entanto, nos perguntamos, junto com Campos (2000a:220): a sade coletiva teria criado um novo paradigma, negando e superando o da

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medicina e o da antiga sade pblica?, e da mesma forma: a sade do trabalhador (ou sade mental) consegue romper com a medicina do trabalho (ou psiquiatria) e instituir outras prticas de ateno e cuidado ao trabalhador (ou usurio)? Sem querer responder de forma absoluta a estas perguntas, pensamos ser interessante colocar em dilogo as consideraes em torno do normal e do patolgico, realizadas por G. Canguilhem e os estudos de M. Foucault sobre a disciplinarizao da sociedade moderna. Sendo assim, na sequncia apresentamos as principais idias desses autores em torno desses temas, buscando melhor compreender os conceitos de normatizao e normalizao (muitas vezes utilizados como sinnimos e superficialmente discutidos) e como estes podem nos auxiliar na construo de outras prticas de sade.

Georges Canguilhem: a sade como verdade do corpoGeorges Canguilhem (1904-1995) insere-se na tradio da

epistemologia francesa, que props um contraponto filosofia da cincia, criticando seu objetivo de determinar o conjunto de regras e tcnicas que deve nortear as pesquisas com pretenso cientfica. Seu argumento que a filosofia no deveria se preocupar com o mtodo cientfico, mas sim com a reflexo sobre as condies de possibilidade histricas para a produo de conhecimento (Machado, 1981). Por isso seria importante que o filsofo no se limitasse ao estudo de uma cincia enquanto objeto simplesmente, mas que se aproximasse dos problemas humanos concretos, com a aprendizagem de uma matria exterior filosofia uma matria estrangeira como foi, no caso de Canguilhem, o estudo da medicina (Schwartz, 2003): "A filosofia uma reflexo para a qual qualquer matria estranha serve, ou diramos mesmo para a qual s serve a matria que lhe for estranha" (Canguilhem, 2006:6). E ainda:"No necessariamente para conhecer melhor as doenas mentais que um professor de filosofia pode se interessar pela medicina. No , tambm, necessariamente para praticar uma disciplina cientfica. Espervamos da medicina justamente uma

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introduo a problemas humanos concretos" (idem).

Sua obra mais conhecida - O normal e o patolgico - baseada em sua tese de doutoramento em medicina, concluda em 194317. A tese divide-se em duas partes, cada uma iniciada com uma pergunta, que o autor utiliza como fio condutor um fio de Ariadne que nos guia pelos labirintos do pensamento do filsofo. Por isso no nos perdemos em meio erudio de Canguilhem, ao contrrio, ele nos convida a acompanh-lo na desconstruo de conceitos essenciais da medicina, mostrando como muitos deles esto encharcados de valores morais. O primeiro fio que ele nos lana o seguinte: Seria o patolgico apenas uma modificao quantitativa do estado normal? Essa concepo, explica ele, considerando o patolgico uma mera variao quantitativa do normal, como que uma lente de aumento do normal, esteve no centro do nascimento da medicina moderna. Ele escolhe analisar as obras de um filsofo Augusto Comte e um cientista Claude Bernard porque esses autores desempenharam, semi-voluntariamente, o papel de porta-bandeira dessa forma de pensamento (Canguilhem, 2006:15). Enquanto Comte definia o patolgico como simples prolongamento mais ou menos extenso dos limites de variao, quer superiores, quer inferiores, prprios de cada fenmeno do organismo normal (Comte apud Canguilhem, 2006:23); Bernard concluiu que a sade e a doena no so dois modos que diferem essencialmente, sendo que entre as duas h apenas diferenas de grau: a exagerao, a desproporo, a desarmonia dos

17 Roudinesco (2007:44) chama ateno para o fato de que a principal obra de Canguilhem teve quatro edies sucessivas: 1943, 1950 (aumentada com um prefcio), 1966 (com uma advertncia e um novo captulo, que introduzia importantes modificaes obra) e 1972 (um adendo com retificaes e notas complementares). Em outras palavras, durante trinta anos, nunca parou de modificar sua obra inaugural, como se, a cada novo acontecimento, buscasse torn-la conforme essa tica da inverso de norma que tanto marcara seu nascimento.

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fenmenos normais constituem o estado doentio (Bernard apud Canguilhem, 2006:38). Esse modo de compreender a relao entre sade e doena, embora tenha sido hegemnico no sculo XIX, permanece atual. comum, por exemplo, referir-se a idosos com algum grau de demncia ou a deficientes mentais adultos, como se fossem crianas: Ele tem 25 anos, mas igual a uma criana!; ou vov agora como um beb! A forma de tratamento tambm inclui palavras no diminutivo, outra entonao de voz e negociaes semelhantes quelas que so utilizadas com crianas. Laudos mdicos valem-se de expresses como idade mental de 12 anos para descrever um adulto com deficincia. Da mesma forma, a loucura tambm costuma ser percebida como uma variao de grau do estado normal, desta vez no como uma diminuio, mas como uma exagerao de modos de pensar e sentir normais. No entanto, como coloca Canguilhem (2006:53), temerrio deduzir que a vida sempre idntica a si mesma na sade e na doena, pois a doena no apenas uma soma de sintomas, mas um outro modo de ser da totalidade do organismo. Uma criana de 12 anos, em fase de crescimento, totalmente diferente de um adulto com idade mental de 12 anos. Ambos podem ter um desenvolvimento mental semelhante, mas as situaes e expectativas que vivenciam so totalmente distintas e, enquanto a criana est em constante mudana, o doente tende a manter de modo obsessivo e s vezes exaustivo, as nicas normas de vida dentro das quais ele se sente relativamente normal (Canguilhem, 2006:141). Por outro lado, esse outro modo de ser patolgico no porque o mdico o diz, mas porque o prprio sujeito que sofre, percebe que vive um tipo de vida diferente do normal, algo que o incomoda e sentido como uma espcie de mal. Sendo assim, um fato s pode ser considerado patolgico em relao totalidade do organismo e levando em conta a experincia daquele que se sente doente, sendo que o estado patolgico no um simples prolongamento, quantitativamente variado, do estado fisiolgico, mas totalmente diferente (Canguilhem, 2006:56).

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Em que pesem as diferenas entre os dois autores analisados por Canguilhem Comte e Bernard - ambos tm em comum, alm da concepo do patolgico como variao quantitativa do estado normal, a idia positivista fundamental de que o saber (ou a cincia) vem antes do agir (ou da tcnica), ou seja, a idia de que uma tcnica deve ser normalmente a aplicao de uma cincia (Canguilhem, 2006:64). Canguilhem, ao contrrio, vai defender no s uma concepo qualitativa de sade e doena, mas tambm que a medicina mais uma tcnica (a clnica) do que uma cincia (fisiologia)18. a clnica que deve informar os estudos tericos, e no o contrrio. E para auxili-lo nessa desconstruo, Canguilhem inclui nesse debate entre cientistas, um tcnico: o mdico Ren Leriche. Canguilhem considera que o maior valor da teoria de Leriche, independente de contradies ou crticas que se possam apontar, o fato de ser a teoria de uma tcnica, uma teoria para a qual a tcnica existe, no como uma serva dcil aplicando ordens intangveis, mas como conselheira e incentivadora, chamando a ateno para os problemas concretos (...) (Canguilhem, 2006:66). Diz Leriche (apud Canguilhem, 2006:57): A sade a vida no silncio dos rgos e, inversamente, a doena aquilo que perturba os homens no exerccio normal de sua vida e em suas ocupaes e, sobretudo, aquilo que os faz sofrer. Canguilhem concorda com Leriche, relacionando a sade

inconscincia do prprio corpo, e a conscincia sensao dos limites, das ameaas, dos obstculos sade (Canguilhem, 2006:57). Em escritos mais recentes19, Canguilhem reitera esse entendimento, comentando que vrios autores tambm estabeleceram essa ligao entre a sade, o silncio e a

18 Embora a fisiologia seja um fundamento cientfico da disciplina mdica, apenas a clnica suscetvel de pr a fisiologia em contato com os indivduos concretos (Roudinesco, 2007:37). 19 Trata-se do artigo Do social ao vital, que integra a terceira parte da edio de 1966 de O Normal e o Patolgico (Canguilhem, 2006), bem como do artigo A sade: conceito vulgar e questo filosfica, originalmente publicado em 1990 (Canguilhem, 2005).

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inconscincia: o j citado Leriche (dcada 1930); Valry (dcada 1940), Michaux (dcada 1960) e, antes deles, Descartes (1649) o conhecimento da verdade como a sade da alma: quando a possumos, no pensamos mais nela; e Kant (1798) podemos nos sentir bem de sade, mas nunca podemos saber se estamos bem de sade (apud Canguilhem, 2005:37; 2006:205). Sendo assim, analisando a maneira com que importantes filsofos pensaram a questo da sade, Canguilhem (2005) conclui que no se pode saber, mas apenas sentir o que sade. Na medida em que est fora do campo do saber, relacionada experincia, a sade no pode ser um conceito cientfico, e por isso um conceito vulgar, o que no quer dizer trivial, mas simplesmente comum, ao alcance de todos (Canguilhem, 2005:37). Concordando com Nietzsche, Canguilhem considera que a verdade no pode referir-se apenas a um valor lgico, fruto do juzo. A verdade habita a experincia, sendo a sade a verdade do corpo. H mais razo em teu corpo do que em tua melhor sabedoria (Nietzsche apud Canguilhem, 2005:39). Guardemos essa idia de que a sade refere-se experincia de um corpo singular, e retomemos a leitura da mais importante obra de Canguilhem. A segunda parte de seu livro, inicia com a seguinte pergunta: Existem cincias do normal e do patolgico?. Para respond-la, o filsofo empreende uma anlise semntica do termo normal, demonstrando que ele pode ser utilizado tanto para designar aquilo que encontrado mais frequentemente (fato), como aquilo que se deve ser (valor). Essas duas designaes, apesar de to diferentes, confundem-se e misturam-se, levando a que um carter comum adquira um valor de tipo ideal (Canguilhem, 2006:85). No caso da medicina, por exemplo, o que considerado normal aquilo que tem maior freqncia estatstica, ou seja, um estado habitual dos rgos confundido com seu estado ideal. A cincia esfora-se em medir e quantificar modos de funcionamento do organismo, sendo que aqueles mais freqentes ou mais prximos da mdia so considerados normais. No entanto, para Canguilhem, essa equao est

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invertida, pois se determinados comportamentos so mais observados que outros, porque funcionaram melhor em determinado modo de vida. Assim, no a medicina, com suas freqncias estatsticas, que julga o que o normal; mas a vida em si mesma, em sua capacidade de instituir normas, de ser normativa. Ou seja: um trao humano no seria normal por ser freqente, mas seria freqente por ser normal, isto , normativo num determinado gnero de vida (Canguilhem, 2006:116). O normal no como mdia estatstica, generalizada por uma cincia; mas como normatividade, ancorada na experincia singular esta uma idia central na obra de Canguilhem e, por isso, importante destacar o que ele entende por normatividade. Literalmente:(...) a vida no indiferente s condies nas quais ela possvel, que a vida polaridade e, por isso mesmo, posio inconsciente de valor, em resumo, que a vida , de fato, uma atividade normativa. Em filosofia, entende-se por normativo qualquer julgamento que aprecie ou qualifique um fato em relao a uma norma, mas essa forma de julgamento est subordinada, no fundo, quele que institui as normas. No pleno sentido da palavra, normativo o que institui as normas. E nesse sentido que nos propomos a falar sobre uma normatividade biolgica (Canguilhem, 2006:86).

Como esclarece Masson (2004), Canguilhem define como polaridade dinmica da vida a necessidade permanente, para qualquer ser vivente, de fazer escolhas, o que inclui um julgamento de valor, considerando determinados modos de funcionamento como positivos e outros como negativos: viver , mesmo para uma ameba, preferir e excluir (Canguilhem, 2006:95). Nessa concepo, viver um debate entre diferentes normas, em um processo dinmico e nunca previsvel, onde a vida no apenas submisso ao meio, mas tambm instituio de seu prprio meio, estabelecendo valores, no apenas no meio, mas tambm no prprio organismo. (Canguilhem, 2006:175).

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Seguindo essa lgica, Canguilhem vai discutir a confuso entre os termos anomalia e anormal, sendo o primeiro um termo descritivo aquilo que desigual e o segundo um termo valorativo aquilo que no segue a norma. A anomalia est relacionada a um desvio estatstico, algo inslito e no habitual, mas no necessariamente patolgico. A diversidade no doena (...). Patolgico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e impotncia, sentimento de vida contrariada (Canguilhem, 2006:96). A anomalia s ser patolgica se for sentida como um obstculo ou perturbao vida, ou seja, o que determina o patolgico no o desvio estatstico, mas o desvio normativo. A doena no est relacionada com o fato de ser diferente (anomalia) ou de uma ausncia de normas, mas com a incapacidade ou dificuldade de instituir normas que expandam a vida. E conclui:No existe fato que seja normal ou patolgico em si. A anomalia e a mutao no so, em si mesmas, patolgicas. Elas exprimem outras normas de vida possveis. Se essas normas forem inferiores - quanto estabilidade, fecundidade e variabilidade da vida - s normas especficas anteriores, sero chamadas patolgicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes no mesmo meio ou superiores em outro meio sero chamadas normais. Sua normalidade advir de sua normatividade. O patolgico no a ausncia de norma biolgica, uma norma diferente, mas comparativamente repelida pela vida (Canguilhem, 2006:103).

Para Canguilhem, essa norma repelida e considerada inferior por no tolerar desvio, ser incapaz de se transformar frente dinmica da vida, pois o normal viver num meio em que flutuaes e novos acontecimentos so possveis (Canguilhem, 2006:136). Aquilo que normal, por ser normativo em determinada situao, pode se tornar patolgico, em outro contexto, se no puder se alterar. Sendo assim, o doente no anormal por uma ausncia de norma, mas por uma incapacidade de ser normativo (Canguilhem, 2006:138), ou seja, pela dificuldade em criar outras normas que dem conta de novos acontecimentos, insistindo em conservar uma norma que j no funciona mais.

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Agora podemos tentar ensaiar uma definio de sade e doena, seguindo o que prope Canguilhem, colocando suas reflexes em dilogo com outros conceitos e autores.

Entre a Normatividade e a Normalidade: dilogo entre Canguilhem e FoucaultValendo-se das contribuies de Goldstein20, Canguilhem alerta que a doena no pode ser colocada apenas no lugar da negatividade, como aquilo que nada cria e transforma. A doena, embora seja uma reduo do potencial criativo, no deixa de ser uma vida nova, caracterizada por novas constantes fisiolgicas (Canguilhem, 2006:141), sendo assim, ela tambm no pode ser deduzida do normal, como um resduo do normal ou aquilo que sobreviveu destruio. Ao contrrio, em um primeiro momento, a doena aparece como uma necessidade de criao de outras normas frente s variabilidades da vida, mas esta necessidade experimentada de forma negativa (Serpa Jr, 2001). A doena , assim, uma experincia de inovao positiva do ser vivo, e no apenas um fato diminutivo ou multiplicativo, no uma variao da dimenso da sade, mas uma nova dimenso da vida (Canguilhem, 2006:138). A cura, para Canguilhem, acontece quando se consegue restabelecer a normatividade, ou seja, criar para si novas normas, por vezes superiores s antigas, no sentido de que tenham maior plasticidade frente imprevisibilidade da vida. No entanto, no se pode confundir restaurao da normatividade, com um retorno ao que se era antes, a vida no conhece a reversibilidade, mas admite reparaes que so inovaes fisiolgicas (Canguilhem, 2006:147).

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