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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALFENAS - MG Instituto de Ciências da Natureza Curso de Geografia Bacharelado CAETANO LUCAS BORGES FRANCO TERRITÓRIOS E IDENTIDADES: DINÂMICAS SOCIOESPACIAIS DOS ÍNDIOS XUCURU-KARIRI RESIDENTES EM CALDAS - MG

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALFENAS - MG

Instituto de Ciências da Natureza

Curso de Geografia – Bacharelado

CAETANO LUCAS BORGES FRANCO

TERRITÓRIOS E IDENTIDADES: DINÂMICAS

SOCIOESPACIAIS DOS ÍNDIOS XUCURU-KARIRI

RESIDENTES EM CALDAS - MG

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Alfenas - MG

2013

CAETANO LUCAS BORGES FRANCO

TERRITÓRIOS E IDENTIDADES: DINÂMICAS

SOCIOESPACIAIS DOS ÍNDIOS XUCURU-KARIRI

RESIDENTES EM CALDAS - MG

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentada como parte dos requisitos

para obtenção do título de Bacharel

em Geografia pelo Instituto de

Ciências da Natureza da

Universidade Federal de Alfenas-

MG, sob orientação do Prof. Dr.

Evânio dos Santos Branquinho.

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Alfenas – MG

2013

CAETANO LUCAS BORGES FRANCO

TERRITÓRIOS E IDENTIDADES: DINÂMICAS

SOCIOESPACIAIS DOS ÍNDIOS XUCURU-KARIRI

RESIDENTES EM CALDAS - MG

A banca examinadora abaixo

assinada aprova o Trabalho de

Conclusão de Curso apresentado

como parte dos requisitos para

aprovação na disciplina de Trabalho

de conclusão de curso II e obtenção

do título de bacharel em Geografia

pela Universidade Federal de

Alfenas/MG, sob orientação do Prof.

Dr. Evânio dos Santos Branquinho.

Aprovado em:

Professor:

Instituição: Assinatura: _________________________

Professor:

Instituição: Assinatura: _________________________

Professor:

Instituição: Assinatura: _________________________

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Aos povos indígenas que resistem e reexistem frente ao

cotidiano de vida ditado por políticas governamentais

baseadas em pura tecnicidade e objetividade, políticas

essas que alimentam os fortes interesses econômicos

existentes desde o primeiro contato com o mundo do

índio, promovendo a inexistência de justiça e respeito por

essas populações humanas.

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Agradecimentos

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“A vida é um constante movimento de desterritorialização e

reterritorialização, ou seja, estamos sempre passando de um território para

outro, abandonando territórios, fundando outros.”

Rogério Haesbaert

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Resumo

O grupo Xucuru-Kariri é um povo indígena originário do nordeste brasileiro, que tem

seu território nativo na região de Palmeira dos Índios, no estado de Alagoas. Em

meados da década de 1980, por motivos conflituosos, esse grupo deixa o estado para

começar a vida em Paulo Afonso, no estado da Bahia, lugar que moravam por cerca de

dezoito anos, onde tinham suas terras margeadas pelo Rio São Francisco, local de

grande importância para o grupo. O motivo que fez o grupo deixar a Bahia foi um longo

conflito por questões limítrofes de suas terras. Novamente remanejados, o grupo é

alocado em São Gotardo, estado de Minas Gerais, região sudeste brasileira, onde morou

por três anos dentro do centro urbano municipal, à espera de novas terras. A terra

escolhida foi no sul do estado de Minas Gerais, no município de Caldas, onde reside

desde maio de 2001. O presente trabalho aborda as questões socioespaciais e culturais

do grupo, buscando analisar as dinâmicas e construções territoriais e identitárias frente

aos seus remanejamentos pelo território brasileiro até a atual reserva, levando em

consideração aspectos materiais e simbólicos.

Palavras-chave: Territórios; Identidades; Transformações Culturais; Povos Indígenas.

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Resumem

El grupo Xucuru-Kariri es un pueblo indígena originario del nordeste brasileño, que

tiene su territorio nativo en la región de Palmeira dos Indios, en el estado de Alagoas.

En la década de 1980, por razones conflictivas, este grupo abandona el estado para

comenzar la vida en Paulo Afonso, en el estado de Bahía, lugar que vivieron

aproximadamente dieciocho años, donde tenían sus tierras en el margen del río São

Francisco, local de gran importancia para el grupo. La razón por la cual el grupo ha

dejado el estado de Bahía fue un largo conflicto por cuestiones limítrofes en sus tierras.

Nuevamente trasladados, el grupo se ubicó en San Gotardo, estado de Minas Gerais,

sudeste de Brasil, donde vivió durante tres años en el centro urbano municipal, a la

espera de nuevas tierras. La tierra elegida fue la ciudad de Caldas, en el sur de Minas

Gerais, donde el grupo reside desde mayo de 2001. En este presente trabajo se abordan

las cuestiones socio-espaciales y culturales del grupo, tratando de analizar las dinámicas

y construcciones territoriales y de identidad frente a sus reorganizaciones por el

territorio brasileño hasta la actual reserva, teniendo en cuenta aspectos materiales y

simbólicos.

Palabras clave: Territorios; Identidades; Transformaciones Culturales; Pueblos

Indígenas.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................10

1 OBJETIVOS ..................................................................................................... 14

1.1 Objetivo geral ...................................................................................................... 14

1.2 Objetivos específicos ........................................................................................... 14

2 METODOLOGIA .................................................................................................. 15

3 HISTÓRIAS E CAMINHOS: origem, remanejamentos e o atual lugar de

moradia ........................................................................................................................ 17

3.1 A etnia Xucuru-Kariri ............................................................................................ 17

3.2 Espaços-tempo: o início dos remanejamentos e as diferentes dinâmicas

socioespaciais do grupo .................................................................................................. 18

3.3 Caldas, o novo morar ............................................................................................. 28

3.4 Passados, presente .................................................................................................. 32

4 OS TERRITÓRIOS: diferentes situações, múltiplas possibilidades .................. 33

4.1 Perspectivas teóricas .............................................................................................. 33

4.2 Dinâmicas e processos territoriais: do território tradicional em Palmeira dos Índios a

nova reserva em Caldas ................................................................................................. 41

4.2.1 A desterritorialização .......................................................................................... 41

4.2.2 As territorialidades .............................................................................................. 44

4.2.3 A multiterritorialidade ........................................................................................ 49

4.3 As transformações dos modos de vida: alguns exemplos ..................................... 50

5 IDENTIDADES: elementos culturais e territoriais ............................................ 52

5.1 Algumas considerações teóricas ........................................................................... 52

5.2 As identidade marcadas pelas diferenças, pelos utensílios e pelos saberes étnicos 56

5.3 As identidades territoriais ..................................................................................... 65

CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................67

ALGUMAS FOTOGRAFIAS ................................................................................... 70

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 72

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INTRODUÇÃO

Anteriormente ao descobrimento do Brasil, nessas terras havia números

expressivos de populações indígenas, inseridas em uma cultura nativa que os

comportava nesse espaço de uma maneira singular e diferente dos povos que aqui

chegavam. Nesses espaços não havia fronteiras políticas e inexistia um processo que

estruturasse uma nação. Os povos indígenas nessa época, que eram mais significativos

em números que nos dias atuais, eram envoltos por costumes, tradições, hábitos e

linguagens que os identificavam. Nesses tempos de descobertas, por estar em contato e

vivenciando com os europeus que aqui chegaram, as populações indígenas foram,

durante a história, alterando seus processos culturais.

As relações indígenas com a terra e seus manuseios de artefatos fazem deles

povos que nos deixaram com uma bagagem cultural rica e única, estando presente até os

dias atuais. Como se trata de povos que ainda não tinham estabelecido um modo de

comunicação escrito, as maiores evidências sobre o processo da etnia indígena no Brasil

são por estudos arqueológicos e por relatos observados por outras etnias.

Condicionado pelo espaço e pelas relações existentes, o índio cria uma

identidade com o local, um laço, que é onde começa a construção de seu território,

caracterizando uma identidade territorial. A abrangência sobre todos esses aspectos

culturais e a viveza do índio com o espaço é muito amplo, portanto surgem-se interesses

de trazer toda essa abrangência acerca desses valores para um estudo minucioso de um

grupo étnico. Toda essa cultura dos povos indígenas em questão é representada de

forma subjetiva a partir de suas ações, hábitos, costumes, tradições e manuseios de

artefatos, solidificando assim uma identidade.

Portanto, a construção do território tem seu mecanismo determinado pelas

relações humanas, que juntas ao espaço irão construir uma territorialidade, que é a

representação da rotina vivida de diversas maneiras e que influencia as ações a serem

tomadas. Operacionalizando o conceito de territorialidade, temos que é a “tentativa por

um indivíduo ou um grupo de atingir, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e

relacionamentos, através da delimitação e afirmação do controle sobre uma área

geográfica” (SACK, 1986 apud HAESBAERT, 2002, p.119).

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O grupo indígena nordestino Xucuru-Kariri, oriundo de duas etnias, os

Xucurus e os Cariris, começa sua história enraizada em uma terra marcada por

diferentes condicionantes, ou seja, em outros âmbitos diversos como o cultural, o

político, o social, o econômico e o físico. A história desse povo começa no município de

Palmeira dos Índios, estado do Alagoas. Devido a motivos de posse de terra, saíram

desse município com destino a Paulo Afonso no estado da Bahia, por volta de 1982.

Posteriormente, 18 anos morando nesse município, que viviam às margens do Rio São

Francisco, o grupo novamente se encontra em conflitos por questões de posse de terra e

fazendeiros da região, e muda-se para São Gotardo, em Minas Gerais. Na época todo o

grupo viveu em uma residência alocada no centro urbano, onde teve inúmeros contatos

e dinâmicas diferentes do passado. Acreditamos que nesse momento houve um processo

considerável de transformação ao que se refere às dinâmicas socioespaciais. O grupo

viveu em São Gotardo por três anos, e em maio de 2001 foi instalado na nova reserva

recebida em Caldas, sul do estado de Minas Gerais.

Atualmente contamos com uma quantidade irrisória de população indígena

pelo território brasileiro perante a quantidade que existia num passado anterior ao

processo de colonização. A etnia indígena brasileira não favorece apenas a ideia de um

só povo, mas sim uma pluralidade social diferente entre si e de seus colonizadores.

Diante dessa diversidade de povos, conclui-se ao pensar, junto aos povos indígenas, a

existência também de uma diversidade cultural, com inúmeros processos culturais

(hábitos, tradição, costumes, crenças, linguagem, etc.) recorrentes a determinados

grupos sociais.

O que temos então, por todo o território brasileiro, são povos indígenas com

várias identidades e diferenças, que junto a isso conseguem manter suas culturas, que

por forças políticas e de interesses durante a história, tenderam sempre a uma visão de

segundo plano ou menos importante. Desta forma, Martins (1994, p.9) discorre sobre o

assunto, dizendo que:

[...] é necessário, portanto, esclarecer que manifestações do fenômeno

da etnicidade vêm sendo registrados nos mais variados contextos

histórico-culturais; sobre a etnicidade indígena no Brasil, trata-se de

fenômeno vinculado a influentes políticas indigenistas durante a

história. O termo índio hoje, por exemplo, refere-se a uma definição

dentro de um código jurídico-cultural, estabelecida pela política

indigenista contemporânea, trata-se de uma construção histórico-

cultural. Tendo percorrido toda a história sob atuação de políticas

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indigenistas voltadas para integração, esses povos nativos estiveram

sempre inseridos em contextos de inter-relações e interdependências

com o Estado, a Igreja e frentes de expansão.

Diante desse processo histórico-cultural que a etnia indígena passou,

concluímos que o contato permanente com a nossa sociedade introduziu inúmeros

hábitos e costumes de nossas culturas, adotando, por exemplo, a língua portuguesa e

usos não habituais de suas culturas.

É necessário ressaltar a importância dos índios na construção da nossa história

e para nossa cultura com seus hábitos, costumes, vocabulário, entre outros. Entretanto, o

preconceito da nossa sociedade diante à diferença étnica faz com que esqueçamos que a

herança cultural deixada pelos índios está presente no nosso dia a dia. Desta forma, nos

vemos frente a uma real necessidade de conhecer, valorizar e induzir a um respeito

digno em relação à etnia indígena, da qual muitas heranças culturais foram deixadas.

Portanto, frente a esse histórico cultural em que o grupo Xucuru-Kariri

percorreu e as formas em que foram submetidos junto a um processo civilizatório da

colonização, é justificável um estudo profundo de determinados grupos sociais, visto

que não estão apenas em jogo as políticas em que os índios estão presentes, mas sim um

processo cultural de identidade, que deixado de lado ou tratado de maneira menos

importante coloca em risco sua própria existência. Os remanejamentos do grupo pelo

território brasileiro configuram-se em um processo de desterritorialização e

reterritorialização, e assim, inúmeras materialidades e imaterialidades foram e são lhes

atribuídas ao cotidiano do grupo.

Destarte, o presente trabalho objetivou-se a fazer um estudo abordando cultura

e espaço de um povo indígena analisando as construções territoriais e identitárias do

grupo Xucuru-Kariri frente aos seus remanejamentos pelo seu processo histórico-

cultural. Portanto, busca-se junto ao grupo um melhor entendimento de suas raízes, de

seus processos culturais e sua interação com outros grupos étnicos e o espaço.

No capítulo HISTÓRIA E CAMINHOS: origem, remanejamentos e o atual

lugar de moradia foram tratadas as questões de territorialização indígena de maneira

geral, a fim de construir uma base para discussão sobre esses grupos étnicos. Assim,

fizemos uma retomada geo-histórica do grupo desde seu território tradicional no estado

de Alagoas até a atualidade, no estado de Minas Gerais. Compreendemos esse processo

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como um importante transformador de hábitos e técnicas do grupo. Desta maneira,

descrevemos sobre esse processo e sobre o novo morar na reserva de Caldas.

Acreditamos que a partir desse momento construímos uma importante linha de

pensamento sobre a questão territorial e identitária do grupo, em que os espaços vividos

se fazem de grande importância nessa dinâmica.

O capítulo posterior – OS TERRITÓRIOS: diferentes situações, múltiplas

possibilidades – analisa a questão dos territórios do grupo a fim de compreender o

complexo processo que caracteriza frente a esses remanejamentos. Analisamos o

processo como sendo construtivo e reconstrutivo constantemente, e de que por mais que

os índios deixam de usar um território do passado materialmente, esse se faz presente na

memória dos indivíduos, caracterizando um território simbólico. Assim, esse capítulo

corrobora para o entendimento do processo territorial inserido na história do grupo e na

transformação de seus modos de vida: da desterritorialização às multiterritorialidades.

E por fim, o capítulo IDENTIDADES: elementos culturais e territoriais trata a

questão da identidade cultural e territorial do grupo, mostrando que essas identidades

são dinâmicas e podem ser reconstruídas constantemente. As identidades dos índios

Xucuru-Kariri são totalmente atreladas aos espaços vividos pelo grupo, se configurando

de maneira múltipla como as territorialidades.

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1- OBJETIVOS

1.1 Objetivo geral

O presente trabalho tem como objetivo geral realizar uma análise dos aspectos

que correlacionam cultura e espaço do povo Xucuru-Kariri, diante de uma retomada

geo-histórica da trajetória desse grupo desde sua saída de Palmeira dos Índios, em

Alagoas, passando pelo município de Paulo Afonso no estado da Bahia, seguido por São

Gotardo já em Minas Gerais e agora no município de Caldas, onde mora desde 2001, ao sul

do estado.

No entanto, para chegar a tal objetivo, algumas metas foram traçadas, e

acabaram por se constituir em objetivos específicos, que serão apresentados no próximo

tópico.

1.2 Objetivos específicos

Analisar a construção territorial e as territorialidades do grupo: do processo

de desterritorialização às multiterritorialidades.

Analisar as identidades culturais e territoriais do grupo: o que os identifica e

o que os diferenciam; a própria identidade como índio.

Abordar a percepção dos índios em relação à sociedade atual, levando em

consideração o espaço modernizado, o antes e o agora; Como eles

reproduzem sua espacialidade num novo e estranho espaço.

Abordar as transformações dos modos de vida do grupo.

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2- METODOLOGIA

O presente estudo trata-se de uma pesquisa aplicada, tendo como objetivo gerar

conhecimento para uma aplicação prática que busca elucidar a questão da cultura e o

espaço indígena, levando em consideração as identidades culturais e as construções

territoriais. Assim, o conhecimento adquirido sobre o tema tratado derivou-se de

observações de uma realidade indígena concreta, procurando entender o espaço

geográfico vivido e construído pelo grupo Xucuru-Kariri.

No desenvolvimento do estudo as construções conceituais e teóricas

aconteceram durante toda a execução da pesquisa, havendo trabalho de campo

alternadamente, buscando uma prática que renovasse as teorias pré-estabelecidas. De

início houve um levantamento bibliográfico (livros, teses e artigos) para posteriormente

haver trabalhos de campo, que aconteceram momentos escolhidos e diferentes durante a

pesquisa.

Com o levantamento bibliográfico conseguimos informações para serem

levantadas e analisadas em alguns pontos de interesse para a pesquisa, como a cultura, o

espaço, o tempo, os territórios e as territorialidades. Assim, conseguimos traçar

características gerais sobre a questão do grupo indígena.

Portanto, precisávamos de direcionamento mais claro e mais elucidativo do que

então propomos a estudar, e desta forma, optamos por entrevistas qualitativas que

pudessem nos alicerçar no entendimento das práticas territoriais e identitárias dos índios

Xucuru-Kariri. Assim, nos fundamentamos nas histórias de vida relatadas pelos

entrevistados, constituindo-se em uma prática sem documentações e dados estatísticos

(CATTANEO, 2004).

Sem dúvida, esse caminho foi o mais promissor e enriquecedor para o que nos

propomos a fazer, uma vez que esses elementos foram buscados na antropologia, no

método da observação participante, que permite uma melhor elucidação e visualização

do imaginário social do grupo, em que as subjetividades por eles (os índios) expressadas

proporcionaram um entendimento das identidades e das construções territoriais.

Realizamos os trabalhos de campo na reserva atual dos índios Xucuru-Kariri

no município de Caldas, Minas Gerais. Eles aconteceram como dito anteriormente, em

datas espaçadas e por nós escolhidas. Entretanto, fomos convidados para participar da

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comemoração deles no Dia do Índio, acontecida em 19 de abril de 2012. Essa data, não

menos importante que as outras em que as saídas de campo aconteceram, foi de grande

valia para perceber o convívio e as apropriações praticadas pelo grupo, desde a dança

tradicional (toré), como outras brincadeiras e histórias contadas pelos mais velhos, e

também pela visitação de alunos de escolas do ensino básico e fundamental da região e

por outros pesquisadores. A data tem uma significação para eles: é dia de festa! “É dia

de dançar o toré!” diziam eles. Assim, foi possível ter outro tipo de participação nas

práticas grupais, diferente do dia-a-dia na reserva, e observar esses comportamentos.

Nesse dia, nenhuma entrevista foi realizada, optamos por estar ali com eles e observar

os elementos culturais do grupo em movimento.

As entrevistas foram realizadas de forma aleatória entre os índios. Procuramos

não estabelecer nenhum tipo de hierarquização, entretanto, buscamos sujeitos que de

algum modo participaram mais efetivamente das transformações culturais do grupo.

Assim, conversamos com os mais velhos para que fosse possível colher relatos desde a

saída do grupo de Alagoas em meados dos anos 1980, até nos dias atuais. Mas também

houve entrevistas com índios mais novos. Acreditamos que desta forma conseguiríamos

um escopo maior da subjetividade produzida nos remanejamentos do grupo.

Optamos pelas entrevistas semi-estruturadas, com um roteiro primário com

alguns pontos chaves para o que estávamos procurando. Procuramos um modo em que

não houvesse comprometimentos para nosso trabalho e, que houvesse uma dinâmica

entre nós e os sujeitos estudados. E foi assim que aconteceram nossas conversas.

Destarte, as entrevistas nos proporcionam não só o encontro das identidades

culturais e territoriais do grupo, mas também alguns fatos e momentos marcantes na

história do grupo, como os remanejamentos e as dificuldades ou facilidades de

adaptação em outros espaços vividos, e também, a percepção deles em relação à

dinâmica nesses ambientes.

Teorias se renovaram com a nossa prática. As entrevistas de um modo geral

nos ajudaram muito. Os entrevistados se mostraram atenciosos e receptivos na maioria

deles, alguns mais acanhados, outros mais desinibidos. Alguns mais saudosos dos

tempos e espaços que percorreram e que hoje só existem na memória, e outros

esperançosos pelas causas indígenas. E nesse momento percebemos que nossa pesquisa

ali com eles, já não era só nossa, mas que também foi apropriada por eles como mais

uma documentação de suas histórias e vida.

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3- HISTÓRIA E CAMINHOS: origem, remanejamentos e o atual lugar de

moradia

3.1 A etnia Xucuru-Kariri

Os Xucurus e os Kariris foram os dois grupos étnicos do nordeste que deram

origem a nova etnia Xucuru-Kariri, aproximadamente em 1820. Esses povos se unem,

representando assim uma força maior frente ao modo expansivo e dominador do branco.

Essa formação existente é fruto de migrações entre algumas etnias nessa época. A

mobilidade desses povos pelos lugares representa uma configuração de suas identidades

e territórios, sendo que essa mobilidade (em diferentes situações e lugares) foi presente

na vida do grupo tempos mais tarde. Desta forma, a dinâmica socioespacial se associa

aos etnônimos Xucuru e Kariri, que segundo Martins (1994, p.21):

Um relato do Vigário de Maia Mello, Presbítero secular da Igreja de

São Pedro (Roma) e sócio-correspondente do Instituto Histórico e

Geográfico de Alagoas, tendo sido pároco de Palmeira entre os anos

de 1847 e 1899, dá explicações sobre os etnônimos Xucuru e Kariri,

relacionando-os também a migrações de índios originários de

diferentes localidades: Cita que em 1740 desceram índios da Aldeia de

Simbres do alto Sertão de Pernambuco (local do município de

Pesqueira, onde ainda hoje vivem os Xucuru) e vieram outros d'Aldeia

do Colégio do Rio São Francisco desta Província (hoje, Porto Real do

Colégio, onde localizam-se os Kariri-Xocó), aqueles da Tribo

Chucuru e estes da Tribu Cariry. Esse autor ainda identifica diferentes

localidades em Palmeira dos Índios, nas quais os Chucuru se

aldeiaram à margem do pequeno ribeiro, Cafurna, entre terras da

fazenda Olhos d'água do Accioly e Serra da Palmeira, fizeram o nome

o seu aldeamento e os Cariris, também deram o nome do logar onde se

aldearam, Serra do Cariry, onde fizeram uma pequena Igreja, de palha

de palmeira (apud ANTUNES, 1973, p.45). Essa percepção de que os

índios que atualmente localizam-se em Palmeira dos Índios migraram

de outros lugares, é, portanto, encontrada em várias fontes.

São inexistentes estudos profundos sobre cada etnia antes de sua junção, pois

sendo esses realizados somente décadas mais tarde dessa união, os povos Xucurus e os

Kariris já se encontravam com elementos culturais transformados concomitantemente

com suas ‘andanças’ e relações sociais pelos lugares, como nos mostra Oliveira Júnior

(1997, p.2):

Não há dados que possam esclarecer sobre as transformações

ocorridas na organização social de Xukurus e Kariris após submetidos

a este sistema, ainda no século XVIII. Porém, as inúmeras referências

disponíveis sobre esta questão ao longo do século XIX mostram que

durante todo esse período o plantio de produtos passíveis de

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comercialização, em especial o algodão, e a venda de mão-de-obra

tornaram-se indispensáveis à sobrevivência dos índios, incorporando-

se à sua economia e modo de vida. Revelam ainda a dispersão dos

mesmos pela região, à procura de trabalho remunerado capaz de lhes

fornecer os meios econômicos suficientes para o provimento das

necessidades impostas pela sociedade colonial.

O grupo que antes tinha uma organização social regida por sua cultura e suas

próprias normas, e também com certo nível de hierarquização política em relação ao

representante tribal e o restante indígena do grupo, é inserido em uma junção de novas

formas de organização social pela sociedade capitalista, já que os índios desde então,

tinham suas relações diretamente com o campo, como observa Oliveira Júnior (1997,

p.3):

[...] os Xukuru-Kariri não são apenas um grupo social organizado

segundo os moldes camponeses, mas também um grupo indígena que,

como lembra Amorim (1975, p.15), dispõe de reservas territoriais e

uma certa proteção do Estado que ao menos em tese lhe garante o uso

não contestado de alguma terra.

Desta forma, estão se vinculando também à atividades que através de serviços

básicos prestados se caracterizam em formas assistencialistas, em que:

[...] fica evidente a tensão entre ambas formas de organização, na

medida em que a centralização promovida por esta estrutura

institucional e pelo conjunto de serviços básicos fornecidos e/ou

gestados, direta ou indiretamente, pelo órgão indigenista reduz, em

maior ou menor medida a depender do caso, a autonomia dos grupos

familiares que conformam o povo indígena e colocam em cheque a

própria ética que norteia suas relações sociais (OLIVEIRA JÚNIOR,

op. cit., p.3)

Durante décadas que se seguiram, esse povo esteve cada vez mais se inserindo

em espaços diferentes que os seus produzidos e vividos de maneiras diversas, em uma

passagem de tempos lentos, para tempos cada vez mais rápidos e fluídos. Os espaços

vividos pelos Xucuru-Kariri a partir de então começam a ser cada vez mais

institucionalizados.

3.2 Espaços-tempo: o início dos remanejamentos e as diferentes dinâmicas

socioespaciais do grupo

O século XX para os índios nordestinos representou o início dos movimentos

de territorialização de suas terras. Por volta de 1940, os Xucuru-Kariri reiniciam

processos de lutas por posses de terra, e sobre esse processo Woortman (1983 apud

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PARISI, 2004, p.36) discorre sobre a organização do grupo durante esse momento,

vendo que essa:

[...] baseava-se na autonomia da unidade familiar como pilar de uma

ética camponesa, que, ao ressaltar o trabalho como elemento de

legitimação do acesso a terra, as relações familiares como

constituintes do ‘capital humano’ que possibilita o exercício deste

trabalho e a liberdade decorrente dessa mesma autonomia constrói

uma mundo de relações marcadamente horizontais entre as unidades

familiares que o compõem.

Na década seguinte, esse povo tem seu posto indígena instalado junto à

Fazenda Canto, com o propósito de atender à população indígena que ali tinha suas

terras conquistadas. Desta forma, esse povo se estabelece na zona rural de Palmeira dos

Índios, no estado de Alagoas. Ainda sobre esse momento do grupo e sua relação com a

terra, Oliveira Júnior (1997, p.3) relata que:

Durante o período de meio século que abrange o último e o primeiro

lustros dos séculos XIX e XX a história oral dos Xukuru-Kariri relata

seu paulatino deslocamento das férteis terras planas que constituíam

originalmente cerca de metade de seu patrimônio, (e que contavam

com recursos hídricos escassos na região) em direção à franja de

serras que bordeja a cidade de Palmeira dos Índios, centro original de

sua sesmaria. Empurrados cada vez mais para cima, à medida que os

derradeiros usurpadores apossavam-se também dos melhores trechos

destas últimas terras, os Xukuru-Kariri passaram a dividir este seu

resquício de espaço vital com camponeses pobres oriundos de outras

regiões.

A reserva do grupo em Alagoas apresentava algumas semelhanças físicas com

a área que residem atualmente no sul do estado de Minas Gerais, caracterizada por áreas

de matas, às quais possuem importância de grande relevância para as atividades

tradicionais do grupo, como o Ouricuri, ritual sagrado que acontece em seu interior.

Nas décadas de 1970 e 1980, habitavam na Fazenda Canto cerca de 80 e 100 famílias,

respectivamente.

Palmeira dos Índios (MAPA 1) é a segunda maior cidade do estado e conta

atualmente com população de 70.368 habitantes (IBGE, 2010). A partir de sua

instalação, o grupo enfrentou diversos conflitos por disputas e proteção de terras, já que

ocupava terras menos desejáveis (HOHENTAL apud PARISI, 2004). Segundo Sr. José

Sátiro, cacique do grupo indígena, as terras da Fazenda Canto delimitavam cerca de 370

hectares. Demarcadas por volta de 1952, nessas terras começam a funcionar o Posto

Indígena, que para FUNAI (Fundação Nacional do Índio) representaria como uma

maneira de administrar e minimizar os conflitos inter-étnicos da região.

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Mapa 1 - Localização do município de Palmeira dos Índios/Alagoas.

Fonte: WIKIPÉDIA (2013).

O primeiro momento de fragmentação dessa etnia formada acontece por

conflitos entre famílias dentro da própria Fazenda Canto, além da escassez de trabalho

para a população Xucuru-Kariri, que resultou no êxodo do grupo. Esses fatos fizeram

com que em 1982, o atual cacique Uarkanã de Aruanã ou José Sátiro do Nascimento, na

língua dos não índios, se reunisse com alguns pais de famílias iniciando suas

reivindicações por novas terras em um outro lugar. Desta forma, o cacique teve a partir

de então, a missão de liderar o grupo indígena que evade de sua terra nativa,

representando assim uma figura de importâncias cultural e política para os que

começam ou tentam reconstruir e reproduzir seus territórios em novas terras.

A partir de meados da década de 1980 o grupo liderado por José Sátiro

encontra-se instalado no estado da Bahia, em terras que lhe foi oferecida pela FUNAI.

No que tange a este período não há muitos detalhes estudados sobre o grupo, mas sabe-

se que foi instalado primeiramente em um município conhecido como Ibotirama,

localizado às margens do Rio São Francisco, a cerca de 650 quilômetros de Salvador,

capital do estado. Porém, por insatisfação do grupo, juntamente com conflitos por

disputas de terra entre índios e fazendeiros, novamente o representante Uarkanã de

Aruanã deslocou-se para a capital do país, reivindicando um novo pedaço de terra para

seu povo.

Posteriormente ao atendimento de sua demanda, o grupo é instalado no

município de Paulo Afonso (MAPA 2), ainda no estado da Bahia. Apesar das

dificuldades, porém adaptados, lá moraram por dezoito anos. Residente em uma região

conhecida como Quixaba, o povo Xucuru-Kariri começa sua vida com novas formas de

relações com o ambiente, em um local conhecido como Fazenda Pedrosa. Nessa nova

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moradia ocorrem novas dinâmicas socioespaciais, que proporcionaram aos índios

vivências diferenciadas. Essas vivências serão partes constituintes na construção e

dinâmicas das territorialidades, pois é através dessas que os índios irão dominar e

apropriar os espaços de maneiras diferentes. O começo naquele lugar para muitos

integrantes do grupo foi de grande dificuldade, já que não estavam acostumados com o

calor intenso e as secas tão prolongadas. Nesse momento, o rio passa a ter grande

influência sobre os índios, pois além de um meio de subsistência para o grupo,

representado pela pesca, era fonte de lazer e outras atividades rotineiras da tribo, como

por exemplo, um meio de lavarem suas roupas. Instalados às margens de uma das três

barragens do Rio São Francisco, apesar dos grandes momentos de seca na região, dentro

da Fazenda Pedrosa, sempre corria um ‘fio d’água’ onde os índios podiam pescar e

nadar (PARISI, 2004).

Mapa 2 - Localização do município de Paulo Afonso/Bahia.

Fonte: WIKIPÉDIA (2013).

Com esse primeiro remanejamento do povo Xucuru-Kariri (em termos de

fronteiras geográficas mais nítidas e assim mais distantes de sua terra de origem), novos

espaços de usos e de trocas lhes são inseridos, proporcionando novas relações em sua

vivência. Novamente envolvidos com problemas de lutas por terra com fazendeiros da

região, além dos condicionantes naturais que dificultavam a vida por ali, como os

longos períodos de estiagem, o grupo pede à FUNAI remoção para novas terras, a

procura de um novo abrigo. Após longas negociações, o grupo novamente é remanejado

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para uma área distrital do município de São Gotardo (MAPA 3), estado de Minas

Gerais, conhecida como Guarda dos Ferreiros, onde residiriam por três anos. Durante

esse período algumas dificuldades foram inseridas no cotidiano do grupo, como nos

mostra Parisi (2004, p.41):

Nesse período segundo relatos do cacique Uarcanã, os índios

passaram por muitas dificuldades e enfrentaram diversos problemas

como a fixação urbana, a inexistência de terras próprias para o cultivo,

as dificuldades relativas ao trabalho que os auxiliasse a garantir a

sobrevivência. Ainda assim, algumas famílias do grupo acabaram

fixando residência neste município, em virtude da atividade agrícola

do plantio e colheita de cenoura.

Desta forma, fica claro como o cotidiano de vida do grupo começa a enfrentar

situações até então não vividas. A dinâmica de vida no espaço urbano condiciona novos

valores, ações e perspectivas a esse grupo. Cerca de cinquenta pessoas constituíam o

grupo nesse momento. De começo foram instalados em uma casa pequena, onde

moravam todos juntos, o que acabou acarretando dificuldades de convivência. Pouco

mais tarde a FUNAI concede a eles uma casa um pouco mais ampla, permanecendo o

grupo ainda junto. Além do pouco espaço disponível para moradia, o cacique José

Sátiro, incessantemente, através de reivindicações e do desejo de uma terra para seu

povo consegue da FUNAI o poder de escolha entre três opções de terras para se

instalarem.

Mapa 3 - Localização do município de São Gotardo/ Minas Gerais.

Fonte: WIKIPÉDIA (2013).

Foram oferecidas terras no estado da Bahia e uma ao sul do estado em que já

estavam residindo, e é a partir daí que Caldas se torna o município escolhido pelo grupo

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Xucuru-Kariri, que esperançoso com o novo lugar de morada “alimentavam a esperança

de fugirem da seca e, em terras férteis, poderem novamente, viver tempos de fartura e

prosperidade” (PARISI, 2004, p.45). O grupo deixa São Gotardo para usufruir de suas

terras conquistadas ao sul do estado, sendo que ainda existem índios que ficaram em

Guarda dos Ferreiros, morando em casas de alvenaria e trabalhando (PARISI, 2004).

Em maio de 2001 o grupo Xucurú-Karirí começa a se instalar no município de

Caldas (MAPA 4), onde suas terras foram definidas e fixadas. A cidade é uma das mais

antigas do estado de Minas Gerais completando em março de 2013, 200 anos. Um bom

condicionamento natural proporciona a fortificação de algumas culturas na região. O

município é localizado em altitudes adequadas para produção, por exemplo, do vinho.

Outras atividades fazem parte do contexto econômico do município, como a produção

leiteira e turismo. A região em que o município de Caldas está inserido corresponde a

uma tendência para temperaturas mais brandas que altas, devido à altitude relativamente

elevada, sendo predominante o clima tropical de altitude. A média de altitude do

município é de 1.200 metros, sendo o ponto mais alto do município e da região a Serra

da Pedra Branca, com 1.760 metros de altitude (FOTOGRAFIA 1).

Mapa 4 - Localização do município de Caldas/ Minas Gerais.

Fonte: WIKIPÉDIA (2013).

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Fotografia 1 - Relevo em que se situa a atual reserva. Caetano Lucas Borges Franco, março/2013.

Compreende-se então, no que tange às matas (bioma de Mata Atlântica), que a

nova morada do grupo se assemelha com seu lugar nativo, região da Fazenda Canto em

Alagoas, entretanto com condições climáticas mais extremas. A atual Reserva Xucurú-

Karíri (FOTOGRAFIA 2), que possui cerca de 100 hectares está instalada na área da

Fazenda Agropecuária Boa Vista, distantes oito quilômetros do centro urbano de

Caldas. Localiza-se às margens da Rodovia BR 459, que faz ligação entre as cidades

médias de Poços de Caldas e de Pouso Alegre.

Fotografia 2 - Vista parcial da atual reserva do grupo Xucuru-Kariri em Caldas/MG. Caetano Lucas

Borges Franco, março/2013.

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A nova reserva dos índios se caracteriza em espaços híbridos, onde o cotidiano

da sociedade capitalista já se disseminou de diversas maneiras. As onze famílias

residentes na tribo moram em casas de alvenaria (em sua maioria) e algumas de pau-a-

pique (técnica escolhida para a construção de novas casas) (FOTOGRAFIA 3). Para

atendimento da população indígena Xucuru-Kariri, foi instalado um posto de saúde

(FOTOGRAFIA 4) dentro da própria reserva, com acompanhamento médico e

odontológico. Tomados por um princípio de revitalização de sua cultura, os índios

lutaram por uma escola, Escola Estadual Indígena Xucuru–Kariri Warcanã, de Aruanã

(FOTOGRAFIA 5) dentro da reserva em Caldas, onde buscaram, através de novas

disciplinas escolares (Cultura e Uso do Território), uma maior aproximação dos índios

com a própria história, através de uma educação diferenciada.

Fotografia 3 - Casa construída com técnica taipa ou pau- a- pique. Caetano Lucas Borges Franco,

março/2013.

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Fotografia 4 – Posto de Saúde localizado dentro da reserva em Caldas/MG (prédio no canto esquerdo

inferior). Caetano Lucas Borges Franco, março/2013.

Fotografia 5 - À direta na fotografia a E. E. Indígena Xucurú–Karirí Warcanã, de Aruanã.

Caetano Lucas Borges Franco, março/2013.

De início, as dificuldades foram com o frio da região, embora hoje estejam

mais adaptados. Ressalte-se, porém, que ainda existe a dificuldade do manejo com as

terras para a produção alimentícia. Assim, a questão da alimentação (problemática

desde outros remanejamentos), torna necessária uma mudança nos hábitos, já que não

possuem conhecimentos e técnicas para a efetivação da produção no campo em Caldas,

local que, apesar de conter plantação de hortaliças e produção leiteira, não mais é capaz

de atender às demandas costumeiras dos índios, tais como o peixe, a mandioca e

derivações.

Atualmente a população Xucuru-Kariri no município de Caldas é de 105

índios, sendo 25 deles crianças (entre 0 e 10 anos). Em sua maioria moram na reserva,

porém existem índios morando na cidade, ou porque foram inseridos no mercado

urbano local e/ou por terem constituído famílias ali. Ademais, assim como existem

índios que saíram da tribo para residirem na cidade, existem pessoas da cidade que

passaram a morar na reserva, tendo em vista a constituição de família com os índios.

Nesse tópico descrevemos os remanejamentos e tentamos elucidar os espaços

de vivência do grupo Xucuru-Kariri durante eles (QUADRO 1e MAPA 5). São notórias

as particularidades socioespaciais contidas em cada situação que o grupo esteve, seja

pelas características naturais dos municípios ou pelas características simbólicas. É

importante pensar que em cada situação dessas, materialidades e imaterialidades se

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afirmaram e foram absorvidas no cotidiano do grupo. No próximo tópico iremos

desenvolver melhor essa ideia.

Mapa 5- Percurso do grupo pelo território brasileiro.

Organização: Caetano Lucas Borges Franco.

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Quadro 1 - Remanejamentos do grupo Xucuru-Kariri pelo território brasileiro.

Palmeira dos

Índios/

Alagoas

Paulo Afonso/

Bahia

São Gotardo/

Minas Gerais

Caldas/

Minas Gerais

População atual

(IBGE, 2010)

70.368 108.396 31.819 13.633

Ano de chegada Terra nativa 1982 1998 2001

Tempo de

moradia

Desde o início

da etnia

Aproximadamente 18

anos

Aproximadamente 3

anos

12 anos (Maio

de 2013)

Moradia dos

índios: espaço

rural ou

urbano?

Rural Rural Urbano Rural

Tipos de

moradia dos

indígenas

Técnicas

tradicionais:

taipa/ pau – a -

pique

Técnicas tradicionais:

taipa/ pau - a - pique

Casa de alvenaria Casas de

alvenaria e

taipa/pau – a –

pique

Características

naturais

Clima tropical

úmido

Agreste

alagoano

Áreas de matas

Clima semiárido

Relevo de planaltos e

depressões

Predomínio da

caatinga

Clima tropical de

altitude

Região de morros

Clima tropical

de altitude

Região de

serras e morros

Mata atlântica

Características

socioeconômicas

Modesto

comércio,

agricultura e

pecuária

Um dos maiores PIB

do estado da BA

Setor industrial forte

Psicultura

Agricultura

Pecuária

Comércio

Indústria

Importante

produção de

uvas no estado

Produção

leiteira

Agricultura

Pecuária

Turismo

Observações Até esse

momento as

migrações

ocorridas foram

regionais, no

processo de

construção da

etnia Xucuru-

Kariri

Nesse período o

grupo viveu às

margens do Rio São

Francisco, forte valor

simbólico

O grupo, nesse

período com 40

pessoas, morou todo

em uma casa no

centro urbano

Novamente a

reserva

destinada ao

grupo volta a

se encontrar no

meio rural,

entretanto,

existem

dinâmicas

socioespaciais

urbanas do

grupo

Organização: Caetano Lucas Borges Franco.

3.3 Caldas, o novo morar

A chegada do grupo ao município de Caldas, se deu em maio de 2001, época

de inverno, de baixas temperaturas na região, que faz com que o município seja um dos

mais frios do estado. Situa-se nas ramificações da Serra da Mantiqueira, a cidade possui

diversas cachoeiras, trilhas e é uma estância hidromineral. A população caldense,

segundo dados do IBGE (2010) equivale a 13.633 habitantes. A atual reserva do grupo

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Xucuru-Kariri encontra-se na antiga Fazenda Agropecuária Boa Vista, como já foi

descrito no tópico anterior.

Acreditamos que esse novo local de moradia do grupo é o que mais se difere

dos outros ao que diz respeito aos aspectos naturais, por ser uma região de altas

altitudes e clima frio (FOTOGRAFIA 6). Assim, pensamos como a questão da

paisagem é importante na análise cultural do grupo, ou seja, de como o conteúdo

geográfico desses locais se manifestam nas escolhas e nas mudanças feitas pelos

membros de certa comunidade.

Fotografia 6 – Relevo presente na nova reserva em Caldas. Caetano Lucas Borges Franco,

março/2013.

Para pensar essa questão, de como os índios viram e sentiram a cidade de

Caldas, nos primeiros momentos, usamos de um trecho de entrevista do trabalho de

Silva (2010, p.46-7) sobre o ‘cenário da chegada’, a fala é do cacique José Sátiro do

Nascimento (66 anos) (FOTOGRAFIA 7):

Arrumamos uma roça aqui em Caldas, MG. Chegamos na região do sul de

Minas. Achei muito boas de um lado e ruim do outro. Não temos o costume de

ver gelo e aqui nós estamos vendo. Na nossa chegada um cabra da FUNAI me

disse a verdade. “Você não vai para o sul de Minas, que lá você vai matar os

seus índios. A situação lá é feia.” Eu pensava que era mentira. Tenho um

grande colega que trabalha em Brasília, que é natural de Machado, MG, que

me disse assim: “Cacique estou com oito anos que moro em Brasília”. Isso foi

em 1998 que ele me falou. “Só vou na casa dos meus pais na época da chuva,

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na época da chuva é quente.” Eu até pensei que era brincadeira. Na época da

chuva lá no nosso Nordeste é o frio e quando se diz a época da seca que se diz

o verão aí e quente. Aqui no sul de Minas é muito diferente, na época da chuva

é quente, tudo é o contrário. Para o pessoal mineiro a chuva é o verão e o

verão que é a época da seca é o inverno. Vem frio de arrebentar, mas

felizmente já estamos acostumados aqui. Meus índios, eu não. Não acostumei

ainda não que é difícil acostumar com o frio. Eu já penso, de vez em quando

falo com eles: minha gente vamos até a FUNAI, pedir para o pessoal do

governo arrumar outro canto para nós, que aqui é muito frio e ainda não me

adaptei, Estou aqui há nove anos, no sul de minas, mas o meu povo mais novo

infelizmente não aceitam, já acostumaram e por isso, pela palavra do meu

povo, eu como porta voz digo o seguinte. A minha vontade era sair, mas eles

não querem, vamos assinar ficar. Só vamos sair daqui quando formos fazer a

última viagem. Que essa viagem é a partida final.

Fotografia 7 - Cacique José Sátiro do Nascimento, na reserva em Caldas/MG.

Caetano Lucas Borges Franco, março/2013.

Podemos notar com as primeiras palavras do cacique de como surgiram novas

experiências ao grupo. Primeiramente ele cita o gelo, que não tinham costume de ver e

agora estão vendo. Esse gelo quer dizer a geada, pequenas camadas finas de água sólida

que são produzidas em noites muito frias, e depositadas sobre as gramíneas. É

interessante observar o imaginário construído pelo cacique sobre o frio a partir de

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relatados de outras pessoas. Assim ele vai fazendo as comparações entre Minas Gerais e

o Nordeste, principalmente através das estações do ano e as respectivas dinâmicas

temporais. Dessa forma, notamos como essa questão, mesmo se tratando de um grupo, é

também individual, pela divergência adaptativa dos seres, uma vez que o cacique ainda

não se adaptou com o clima, enquanto a maioria do grupo já se encontrava adaptada em

2010.

O grupo passou por dificuldades adaptativas e habitacionais quando chegou a

Caldas, as casas de alvenaria e o frio reorganizou hábitos dos indígenas. Entretanto, com

o tempo eles foram se adaptando e construindo laços e relações com o novo morar.

Grande parte dos indígenas em nosso trabalho de campo afirmou gostar e estar adaptado

ao novo local, embora os locais que viveram no passado ainda fazem muito sentido na

vida do grupo, tanto pelas questões de funcionalidades espaciais, quanto simbólicas.

São Gotardo a Caldas, e de Caldas agora não tenho vontade de sair não.

Vizinho aqui é o frio, mas o frio não é direto, ele vem e vai simbora, dá para

gente ir levando. (Dona Josefa, 59 anos. Anotação em campo, Caldas /abril

2012).

Fotografia 8 - Área central da reserva Xucuru-Kariri. Caetano Lucas Borges Franco, março/2013.

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Fotografia 9 - Casa de alvenaria na atual reserva. Caetano Lucas Borges Franco, março/2013.

3.4 Passados, presente

Com essa breve introdução sobre a história e os caminhos do grupo Xucuru-

Kariri foi possível construir uma linha sequencial sobre os espaços vividos por ele. Ou

seja, foi possível traçar um processo histórico de importante análise para a pesquisa,

pois é desse momento em que partimos para estudar as dinâmicas socioespaciais do

grupo. A nossa análise sobre o grupo na atualidade é sustentada justamente por essa

construção processual de acontecimentos e espaços vividos que permeia a existência

desses índios, tendo seu início no passado.

Partimos do passado que se caracteriza para esse grupo como a vida em sua

terra nativa, Palmeira dos Índios e região, em que seu modo de vida tradicional

acontecia de maneira integrada ao ambiente, e seguimos para os remanejamentos que

sucederam esse período, começando por Paulo Afonso, já no estado da Bahia. E assim

adiante, São Gotardo e Caldas, ambos em Minas Gerais. Abordaremos dessa forma a

transformação das dinâmicas identitárias e territoriais do grupo ao longo desse período:

do passado ao presente, a fim de sustentar que a cultura que envolve esse grupo é

móvel, está sempre em (re) construção de hábitos e técnicas a partir dos

remanejamentos. Sendo assim, levamos em consideração as diferentes situações

ocorridas com o grupo que (re) organizaram seus modos de vida, que a partir de sua

terra nativa esteve cada vez mais se inserindo na modernidade. Dessa mesma forma,

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podemos compreender as diferentes situações no que tange ao morar do grupo no meio

rural ou no meio urbano, os diferentes recursos e necessidades contidos nessa dinâmica.

As temporalidades também muito influenciam o agir nesses espaços vividos,

por isso podemos pensar territorialidades e temporalidades como sendo indissociáveis.

O ritmo das condutas espaciais de diversas maneiras ativam a percepção e os fenômenos

do grupo. Para Saquet (2011, p.79), as temporalidades significam:

[...] ritmos lentos e mais rápidos, desigualdades econômicas, diferentes

objetivações cotidianas e, ao mesmo tempo, distintas percepções dos

processos e fenômenos, ou seja, leituras que fazemos dos ritmos da natureza

e da sociedade.

Assim, a (re) produção agora se faz em espaços fluídos e híbridos, em

processos confusos ao índio entre dominação e apropriação, sendo compreendido pelas

doações, lutas e demarcações de terras. A partir daí foram expostos à necessidade de

uma inserção ao trabalho nos meios de produção econômica, urbana e rural, para que o

salário mensal representasse sua sobrevivência, uma vez que o cotidiano da sociedade

não índia imbrica-se aos seus, inserindo a esse povo modos, percepções e fenômenos

antes desconhecidos e não vividos, sobre normas e regras que lhes proporcionaram

novas maneiras de construir seus territórios.

4- OS TERRITÓRIOS: diferentes situações, múltiplas possibilidades

4.1 Perspectivas teóricas

Nesse capítulo iremos apresentar as construções teóricas e práticas que

embasaram a pesquisa acerca dos processos territoriais envolvendo os índios Xucuru-

Kariri, para que depois consigamos pensar a questão identitária do grupo para uma

melhor situação de como sua dinâmica, a partir de múltiplas possibilidades, pode

acontecer.

Primeiramente construímo-nos teoricamente para pensar a questão territorial

Xucuru-Kariri levando em consideração o processo histórico-geográfico vivenciado por

eles em seus remanejamentos pelo território brasileiro. As relações dos grupos humanos

com os meios em que vivem centralizam-se aspectos culturais entre sociedade e

ambiente. Desta forma, esses grupos humanos dependem do ambiente para nele e com

ele sobreviver. É do ambiente que são provindas às necessidades de subsistência

humanas, como alimentação, água, abrigo, entre outros. E é nessa relação, apropriando

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do espaço que o homem irá construir seus territórios. As sociedades, por mais simples

que sejam não podem ser pensadas sem seus territórios, seja ele político e/ou cultural.

Em 1880, para elaborar estudos sobre a relação sociedade/meio, Ratzel os

desenvolve na obra Antropogeografia. Assim, ao considerar a cultura como elemento

entre o homem e a natureza, o autor alemão prioriza os objetos materiais, sendo

importante o que os homens construíram e de que maneira construíram. Com a

antropogeografia é possível mapear as áreas descritas onde vivem populações humanas,

procurando estabelecer quais as causas geográficas das partes em que os homens se

espalham pela superfície terrestre e a influência da natureza sobre os grupos humanos.

A cultura na obra de Ratzel aparece com a importância de um lugar vivido

pelos sujeitos, uma vez que os grupos humanos se vinculam a ele, em que esses grupos

aproveitam do meio e das facilidades para fazerem seus deslocamentos. Porém, a

cultura para ele é analisada sobre aspectos materiais, “como um conjunto de artefatos

utilizados pelos homens em sua relação com o espaço. As ideias que a subentendem e a

linguagem que a exprimem não são mais evocadas” (CLAVAL, 1995, p.22).

No decorrer do tempo, devido às transformações que a geografia sofre na

Alemanha, a geografia francesa a partir de Paul Vidal de La Blache ganha uma

dimensão cultural, em que os gêneros de vida e paisagem ganham valores juntamente

com o estudo das influências do meio sobre as sociedades humanas (concepção

proposta por Ratzel). Junto á essa análise, La Blache interessou-se a estudar as técnicas

e utensílios que os homens usam para transformar seus contextos, modelando-os á seus

interesses e necessidades de onde vivem. Assim, quando considera as questões sociais e

psicológicas dos grupos humanos, afirma que esses analisados fora do contexto dos

gêneros de vida, não têm sentidos. Na análise dos gêneros de vida é mostrado como a

elaboração das paisagens por esses grupos irá refletir na organização social do trabalho:

[...] a noção de gênero de vida permite lançar um olhar sintético sobre

as técnicas, os utensílios ou as maneiras de habitar das diferentes

civilizações: ela os organiza na sucessão dos trabalhos e dos dias e

assinala como se relacionam hábitos, maneiras de fazer e paisagens

(CLAVAL, 1995, p.33).

Para que uma paisagem ganhe valores humanístico ou cultural, é preciso que

exista a cultura, que para La Blache é o que se interpõe entre o homem e o meio. Assim,

estimula a geografia a pensar a integração do homem e do meio em contextos diversos e

complexos, em que os indivíduos ou o coletivo constroem nos espaços que viveram ao

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longo de seu processo histórico. Nessa dinâmica, o homem elabora e modela seus

habitats e paisagens.

Vidal de La Blache elabora sua discussão de gêneros de vida sobre os aspectos

“possibilitas” que ele mesmo inaugurou no eixo da discussão geográfica francesa da

época, ou seja, a natureza enquanto possibilidades humanas, em que quando um

indivíduo ou grupo depende de necessidades, ele cria condições de adaptação ao meio

(MAIA, 2001).

Entretanto, segundo Maia (2001) os gêneros de vida, embora tenham sido

utilizados de maneira intensa por La Blache, é a partir de Max Sorre que a noção é mais

bem analisada e elaborada, uma vez que esse autor retoma as concepções propostas pelo

primeiro autor para que se formulasse melhor esse termo utilizado pela Geografia. Na

definição do termo, Max Sorre deixa clara a descrição de combinações técnicas

utilizadas por indivíduos ou grupos combinadas de acordo com as condições naturais e

espirituais, assim “a noção de gênero de vida é extremamente rica, pois abrange a maior

parte, se não a totalidade, das atividades do grupo humano” (SORRE apud MAIA,

2001, p. 76). Para ele não só os gêneros de vidas evoluem, modificam, mas a própria

noção do termo se transforma:

[...] Podemos resumir tudo dizendo que, em lugar de se definir, como

no passado, em relação aos elementos do meio físico e vivo, ela tende

a se definir em relação a um complexo geográfico, econômico e

social. Ela muda de plano à medida que a atividade dos homens muda

de dependência (SORRE, apud MAIA, 2001, p. 77).

A questão do gênero de vida está associada a uma temporalidade e a uma

condição espacial, em que a transformação desta implica em uma transformação

também das técnicas e hábitos de uma condição de vida já existente. Essa questão para

nosso trabalho é de grande importância, pois o grupo Xucuru-Kariri, em sua história é

marcado por transformações em múltiplas escalas de tempo e de espaços vividos, o que

acarreta uma reorganização destes mesmos. Pensamos então, que o gênero de vida

produz e é produto a partir de determinados territórios, ou seja, ele acontece conforme a

dinâmica territorial, pois possui também uma dinâmica social, que para La Blache seria

mais histórica.

O autor Claude Raffestin (1993) trabalha a questão do território não dissociado

e sim condicionado pelas relações existentes nos espaços, relações essas norteadas de

alguma maneira, pelo poder. Nesse processo, portanto, temos a passagem do espaço ao

território:

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É necessário compreender bem que o espaço é anterior ao território. O

território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação

conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa)

em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou

abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator “territorializa”

o espaço (1993, p.143).

Os territórios são posteriores aos espaços, são o que as sociedades produzem

com seus laços, necessidades e afinidades. Assim, é importante pensar a dimensão

cultural, em que os modos de vida e as paisagens ganham valores juntamente com o

estudo das influências do meio sobre as sociedades humanas. Essas relações (homem e

meio) são produzidas de diversas maneiras, sendo a partir delas a construção das

territorialidades, ou seja, a ligação dos indivíduos ou coletivos de transformar o espaço

em território. Nessa linha de pensamento, o território é o espaço em que foi projetado

um trabalho dinâmico, que de alguma maneira se marca pelo poder, “o espaço é a

‘prisão original’, o território é a prisão que os homens constroem para si”

(RAFFESTIN, 1993, p.144).

Assim, quando pensamos em analisar comunidades tradicionais (e não só) é

importante que levemos em consideração as subjetividades que esses grupos constroem

junto ao ambiente em que vivem, para que se possa ter uma melhor compreensão das

dinâmicas socioespaciais. Essas têm uma importante contribuição para uma análise mais

complexa das situações, uma vez que o grupo não é mantido somente pela tradição

étnica existente, mas também por políticas públicas e sociais de extrema objetividade e

tecnicidade. Por isso, além da cultura e do modo de vida do grupo, tem de ser levada

em consideração a identidade territorial e as percepções, ambas criadas pelo grupo nos

espaços de vivência.

Ao considerar uma identidade territorial que representa um grupo humano

frente e no espaço e, que é a partir dela que serão produzidas suas territorialidades,

também conectadas ao poder, em Raffestin (1993, p.158-9), o valor da territorialidade

se faz particular,

[...] pois reflete a multidimensionalidade do ‘vivido’ territorial pelos

membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral. Os homens

‘vivem’, ao mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial

por intermédio de um sistema de relações existenciais e/ou produtivas.

Quer se trate de relações existenciais ou produtivistas, todas as

relações de poder, visto que há interação entre os atores que procuram

modificar tanto as relações com a natureza como as relações sociais.

Os atores, sem se darem conta disso, se automodificam também. O

poder é inevitável e, de modo algum, inocente. Enfim, é impossível

manter uma relação que não seja marcada por ele.

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As relações produzidas no e pelo espaço estão ligadas a um campo de poder,

assim, representar no espaço é produzir uma apropriação. Desta forma quando o espaço

é de alguma maneira projetado, isso se faz através da expressão de uma representação

que revela o território desejado, portanto “a imagem ou modelo, ou seja, toda

construção da realidade, é um instrumento de poder e isso desde as origens do homem”

(RAFFESTIN, 1993, p.145).

O espaço de hoje dito global configura-se a partir da ampliação e

internacionalização das trocas em um processo conhecido por muitos como

globalização, que é uma maneira de “indicar a disseminação em escala planetária de

processos gerais concernentes às relações de trabalho, difusão de informações e

uniformização cultural” (HAESBAERT et. al., 1999, p.40). Desta forma, apropriar e

dominar os espaços serão acontecimentos múltiplos e variados, inseridos nos tempos

rápidos dos fluxos. Henri Lefebvre (apud HAESBAERT 2005, p.6775) discute a

produção do espaço nunca dissociado das relações humanas, configurando assim em um

espaço-processo, socialmente construído. Dessa maneira, as relações estariam marcadas

pelo poder, mas não somente pelo poder político, como também pelo poder

camuflado/oculto em todas as relações. O poder, no sentido mais simbólico, seria o de

natureza própria do uso do espaço, da vivência acontecida nele. E por outro lado, o

poder no sentido mais concreto, estaria ligado ao valor de troca do espaço (propriedade)

e suas funcionalidades. Apropriação e dominação andam juntas e, nesse processo o

primeiro deveria sobressair sobre o segundo, entretanto, frente à lógica capitalista que

rege a sociedade atual, isso acontece ao contrário:

[...] o uso reaparece em acentuado conflito com a troca no espaço, pois

ele implica “apropriação” e não “propriedade”. Ora, a própria

apropriação implica tempo e tempos, um ritmo ou ritmos, símbolos e

uma prática. Tanto mais o espaço é funcionalizado, tanto mais ele é

dominado pelos “agentes” que o manipulam tornando-o unifuncional,

menos ele se presta à apropriação. Por quê? Porque ele se coloca fora

do tempo vivido, aquele dos usuários, tempo diverso e complexo

(LEFEBVRE, 1986, p.411-412 apud HAESBAERT, 2005, p.6775).

Haesbaert (2004) compartilha da opinião de que o território não se restringe a

uma porção do espaço (demarcação) e aos limites físicos (algo concreto), mas um

espaço que é nutrido por especificidades que lhe deram formação e que o constitui a

cada momento. Ou seja, o território tem que ser entendido como um todo, que possui

uma dialética, que é vivo e dinâmico, representando as próprias existências nele

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contidas. Assim, o autor afirma que os territórios são agentes que causam

desterritorialização e reterritorialização, desta forma esse território deve ser percebido e

entendido não meramente como coisa ou objeto, mas como ação e “território reforça sua

dimensão enquanto representação, valor simbólico” (p.50).

Seguindo essa linha, podemos pensar em dois grandes ‘tipos ideais’ para se

investigar o território, um mais próximo às questões simbólicas e outro mais próximo às

funcionalidades, sabendo que estes ditos como ‘tipos ideais’, nunca acontecem em

estado puro no que se referem a não possuir resquícios de uma categoria em outra. Ou

seja, por menos expressiva que seja, todo território ‘funcional’ tem uma carga

simbólica, da mesma forma que todo território ‘simbólico’ possui, por mais reduzida

que seja, certa funcionalidade (HAESBAERT, 2004).

Sobre essa aparente dicotomia em analisar a questão territorial, Haesbaert

(2005, p. 6777-8) salienta para uma importância além dessa:

[...] Mais importante, contudo, do que esta caracterização genérica e

aparentemente dicotômica é fundamental perceber a historicidade do

território, sua variação conforme o contexto histórico e geográfico. Os

objetivos dos processos de territorialização, ou seja, de dominação e

de apropriação do espaço, variam muito ao longo do tempo e dos

espaços. Assim, as sociedades tradicionais conjugavam a construção

material (“funcional”) do território como abrigo e base de “recursos”

com uma profunda identificação que recheava o espaço de referentes

simbólicos fundamentais à manutenção de sua cultura. Já na sociedade

“disciplinar” moderna (até por volta do século XIX) vigorava a

funcionalidade de um “enclausuramento disciplinar” individualizante

através do espaço – não dissociada, é claro, da construção da

identidade (individual, mais do que de grupo). Mais recentemente, nas

sociedades “de controle” ou “pós-modernas” vigora o controle da

mobilidade, dos fluxos (redes) e, consequentemente, das conexões – o

território passa então, gradativamente, de um território mais “zonal”

ou de controle de áreas para um “território-rede” ou de controle de

redes. Aí, o movimento ou a mobilidade passa a ser um elemento

fundamental na construção do território.

Juntamente à Haesbaert (2004) construímos possíveis objetivos que as

territorializações do grupo carregam: o abrigo no sentido físico, fonte de recursos

naturais ou meio de produção; processo de identificação e simbolização de grupos

através de referências espaciais (por exemplo, os limites); processo de disciplinar ou

controlar através do espaço e, construção e controle de conexões e redes, ou seja, fluxos

de pessoas, mercadorias e informações.

Nesse momento traçamos uma linha de pensamento sobre a questão territorial

do grupo Xucuru-Kariri: compreendemos que a história é parte e condicionante da

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dinâmica territorial e, que os remanejamentos presentes nesse processo, desde a tradição

até ao momento conhecido como modernidade representam descontinuidades que

marcam um (re) começo e uma (re) organização de relações socioespaciais, ou seja,

novos caminhos territoriais a serem construídos e vividos pelo grupo.

Ao que se refere à população indígena, alguns assuntos possuem

complexidades mais profundas, uma vez que a subjetividade permeia grande parte das

ações construindo um universo simbólico na existência do território. E é com essas

ações que relacionamos a importância da lógica espacial do grupo na construção e

afirmação de seus territórios. Nessa perspectiva, Gallois (2004) demonstra como a

lógica espacial é de grande importância para delimitação de territórios indígenas, pois

diferencia o sentido de ‘Terra indígena’ (demarcada e elaborada a partir do Estado

Nacional) com o de território de cada etnia (em que a questão simbólica contida e

condicionada no/do espaço tem grande importância na construção territorial pelo

grupo). Assim, descreve como um grupo indígena em contato com outros tipos de

sujeitos o coloca diante de lógicas espaciais diferentes das suas e que passam a ser

expressas também em termos territoriais. E que “as diversas formas de regulamentar a

questão territorial indígena pelos Estados Nacionais não podem ser vistas apenas do

ângulo do reconhecimento do direito à “terra”, mas como tentativa de solução desse

confronto” (2004, p.1).

Gallois (2004) nos chama a atenção para a gravidade do desvirtuamento

contido na construção da imagem indígena pela mídia atual, em que o índio que não

mantém vínculos com as características românticas e os territórios intocados, a grande

parte da população brasileira “diz-se que perderam sua tradição”, por não

corresponderem a essa imagem. Tal gravidade acontece,

[...] especialmente se consideramos que, apesar das diferenças entre o

conceito jurídico de Terra Indígena, tal como está posto na

Constituição, e a compreensão antropológica dos fundamentos da

ocupação e territorialidade indígena, há evidentes intersecções e

possibilidades de articulação. Senão vejamos: o artigo 231 reconhece

aos índios “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente

ocupam”; o texto constitucional também indica que tal ocupação

tradicional deve ser lida através das categorias e práticas locais, ou

seja, levando-se em conta os “usos, costumes e tradições” de cada

grupo. Logo, uma Terra Indígena deve ser definida – identificada,

reconhecida, demarcada e homologada – levando-se em conta quatro

dimensões distintas, mas complementares, que remetem às diferentes

formas de ocupação, ou apropriações indígenas de uma terra: “as

terras ocupadas em caráter permanente, as utilizadas para suas

atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos

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ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua

reprodução física e cultural (GALLOIS, 2004, p.37)”.

Bem, desta forma fica claro como as questões indígenas (território, identidade,

modos de vida, abrigo, entre outras) possuem uma funcionalidade permeada de

elementos simbólicos que são base de suas construções territoriais, portanto, se

caracterizando como um aglomerado de complexidades materiais e contidos nas

dinâmicas territoriais.

O processo histórico-cultural que dá forma à atual estruturação da sociedade

humana, em que mobilidade e fluidez são partes condicionantes das dinâmicas

espaciais, acredita-se em um processo conhecido como desterritorialização, ou seja, o

‘fim dos territórios’. Entretanto, o território está imbricado nesse processo de

desterritorialização, uma vez que frente a atual dinâmica, é possível que se construa

territórios na e pela mobilidade. O termo desterritorialização nunca é dissociado do

termo territorialização, representando assim, o movimento dialético existente nesse

processo (HAESBAERT, 2004). A desterritorialização acontece em algumas

perspectivas: econômica, política, imaterial, cartográfica e cultural. Assim, pensemos a

desterritorialização cartográfica, que constitui primeiramente em “superação do

constrangimento ‘distância’, uma espécie de ‘superação do espaço pelo tempo’”

(VIRILIO, 1997 apud HAESBAERT, 2002, p.130). Percebe-se então uma diminuição

das questões de distanciamento espacial, em favor do tempo e da história. Produto do

hibridismo cultural, a desterritorilização na perspectiva cultural aponta o mundo

culturalmente se desterritorializando, onde não existem mais identidades territoriais

claramente definidas, onde o território fica em segundo plano. Porém, com esse

hibridismo existem formas de criar novas territorialidades. Os territórios que perdem a

função de identificação cultural, também:

[...] perdem o sentido/o valor dos espaços aglutinadores de

identidades, na medida em que as pessoas não mais se identificam

simbólica e afetivamente com os lugares em que vivem, ou se

identificam com vários deles ao mesmo tempo e podem mudar de

referência espacial-identitária com relativa facilidade (HAESBAERT,

2002, p.131).

Desta forma, no processo histórico do grupo de diversas formas os territórios

Xucuru-Kariri foram transformados, tendo a capacidade de sobrepor e incorporar novos

e diversos territórios. Assim, possuem múltiplas maneiras de experimentar e viver novas

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territorialidades. Essa capacidade adquirida pelo homem da atualidade de dinamizar

múltiplos territórios nos remete à multiterritorialidades:

[...] dentro dessas novas articulações espaciais em rede surgem

territórios-rede flexíveis onde o que importa é ter acesso, ou aos meios

que possibilitem a maior mobilidade física dentro da(s) rede(s), ou aos

pontos de conexão que permitam “jogar” com as múltiplas

modalidades de território existentes, criando a partir daí uma nova

(multi) territorialidade (HAESBAERT, 2005, p.6787).

Concluímos o nosso ‘pensar’ sobre os territórios Xucuru-Kariri como

elementos vivos representados pelas mobilidades do grupo, por seus remanejamentos e

por suas técnicas tradicionais (considerando também os elementos culturais) para

ser/estar no mundo desde sua saída de Palmeira dos Índios, em meados dos anos 1980,

até à atualidade, residentes em Caldas. Toda transformação existente a partir das

dinâmicas socioespaciais do grupo no processo histórico configura um movimento

dialético na construção territorial: territorialização, desterritorialização e

reterritorialização. Cada processo desses citados configura uma pluralidade de possíveis

aconteceres ao grupo Xucuru-Kariri, com novos espaços cheios de possibilidades que

podem configurar uma nova territorialidade, assim pensamos a multiplicidade desses

aconteceres durante a vida do grupo, que a cada desterritorialização em seu

remanejamento implicou a criação de novas territorialidades.

4.2 Dinâmicas e processos territoriais: do território tradicional em Palmeira dos

Índios a nova reserva em Caldas

Nesse tópico exploraremos a questão territorial no sentido de processo

construtivo e reconstrutivo, constantemente, ou seja, todo processo de

desterritorialização implica um novo processo de reterritorialização e, assim, um

acumular e sobrepor de territórios.

4.2.1 A desterritorialização

Os índios Xucuru-Kairiri necessitam de seu território, seja pelo aspecto

material ou simbólico. O que melhor identifica um indivíduo ou grupo é seu território,

pois este é o que condiciona as possibilidades existentes na construção da identidade.

No entanto, se pensarmos os territórios do grupo como sendo as fortes ligações

existentes entre ele e a reserva indígena atual ou do passado, o rio, a cidade, a escola, a

roça, entre outros, esses estavam sujeitos às transformações e alterações em suas

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dinâmicas, na maioria das vezes causadas pelos remanejamentos que fizeram pelo

território brasileiro, mas também por outros fatores (desemprego, crise econômica,

período de seca, necessidades sociais e de saúde, etc.).

Quando essas mudanças aconteceram no que une o grupo a determinados

territórios, os índios estiveram inseridos em um processo de desterritorialização que,

pode ser definido como uma quebra de vínculos, num ‘perder’ de territórios. Esse

processo acarreta um enfraquecimento no controle das territorialidades, podendo ser

elas pessoais ou coletivas. Entretanto, esse processo por mais que faça com que haja

diminuição ou anulação de acesso aos territórios, não impossibilita que eles (re) vivam

ou mantenham esse território na memória (universo simbólico), no plano imaterial, no

qual ainda muitos fazem sentido a alguns indivíduos do grupo Xucuru-Kariri,

reconhecendo-se parte daquele território. Essa construção no plano da memória associa-

se diretamente ao viver dos índios pelos territórios (espaço vivido), em que absorveram

percepções e fenômenos diversos, Paul Claval (1995, p.83) nos chama atenção para

isso, dizendo que:

Na medida em que a ação humana não é fundada diretamente sobre o

instinto, mas sobre o instinto contextualizado, normatizado e

canalizado pela cultura, ela supõe memorização de esquemas de

condutas, atitudes, práticas e conhecimentos. As formas que revestem

a memória são múltiplas.

As experiências dão sentido à construção do território da mesma forma que,

quando esse é perdido, essa experiência ainda dá existência a ele, exatamente por essas

múltiplas formas que envolvem a questão da memória, “reconhecer-se supõe uma

apropriação do espaço pelo sentido” (CLAVAL, 1995, p.194).

Dessa forma, usaremos um trecho de entrevista coletado em trabalho de campo

para melhor contextualizar a memória como sustentadora das imaterialidades contidas

no desterritorializado. Nesse momento percebemos como o uso dos recursos naturais

pelo grupo são apropriados e mantidos tornando-se elementos construtores da

identidade e do território Xucuru-Kariri. O trecho citado a seguir é da professora

Jizelma (32 anos) que, em conversa conta-nos sobre as faltas que sentem causadas pelos

remanejamentos:

O que a gente mais sente falta mesmo aqui, que não tem, é o rio... não tem rio,

não tem peixe. Assim... todos os lugares que a gente passou tinha rio e tinha

peixe, e a gente já estava acostumado a pescar, a tomar banho no rio, buscar

água no rio, lavar roupa no rio. Isso mudou muito nossos hábitos, agora você,

agora ninguém mais, por mais que a gente vai pro Norte não quer mais lavar

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roupa no rio, pegar aquela pedra grande e lavar roupa no rio... lava no

tanquinho né, mais fácil.

Podemos perceber como a questão dos elementos naturais se transforma em

uma questão cultural atrelada ao território, pois o rio e o peixe foram apropriados como

parte de seus hábitos em determinados territórios. Entretanto, o não acesso a esses

territórios que proporcionavam que esses recursos naturais se tornassem hábitos, faz

com que haja uma reorganização ou anulação de alguns hábitos do grupo. Isso se

exemplifica na fala da professora indígena Jizelma, uma vez que diz sentir falta do rio e

do peixe e, assim de todas as ações derivadas relativas a eles. Mas também de uma

territorialidade em desuso, um exemplo disso é o lavar roupa no rio, já que se

acostumaram às técnicas de nossa sociedade, que é o uso do tanquinho. É importante

que se observe que essa dinâmica só é existente atualmente devido a um processo de

desterritorialização que lhes aconteceram.

Assim, fica clara nossa posição de que por mais que esse processo aconteça,

elementos simbólicos de territórios passados façam algum sentido nos territórios atuais.

Rogério Haesbaert (1993, p.169) chama atenção para que quando se reportar a

desterritorialização é preciso que fique claro a referência às imbricações das duas

dimensões:

[...] uma política, mais concreta, e outra cultural, de caráter mais

simbólico, ou privilegiando uma delas, mesmo por que muitas vezes

se tratam de processos não - coincidentes. Embora fronteiras de

domínio político possam corroborar e mesmo criar uma identidade

cultural, como foi o caso de muitos Estados nações, nem toda fronteira

de apropriação territorial no sentido cultural coincide com e/ou

proporciona uma fronteira política concreta. Muitos processos de

desterritorialização contemporâneos, como no caso dos refugiados de

Ruanda e dos palestinos, decorrem, pelo menos em parte, dessa

desconexão entre territórios no sentido de domínio político e

territórios no sentido de apropriação simbólico-cultural.

Essa mesma questão - de como os elementos naturais influenciam na nova

territorialidade – observamos outro trecho da entrevista com Jizelma sobre o processo

de reterritorialização no município de Caldas.

Dificuldade a gente teve no começo por causa do frio, por que você vê, a gente

sai lá do norte que as coisas é quente, o clima bem quente.. quando a gente

chegou aqui, chegou bem no frio mesmo, chegamos aqui em maio [...]

Chegamos aqui em pleno frio, quando chegamos pensamos o que tá

acontecendo aqui, tá tudo molhado mesmo? Assim, a gente com aqueles

cobertores bem fininhos do norte, a gente dizia ‘nós vamos morrer todo mundo

aqui congelado’ (risos). Mas aí não, agora já passou muito tempo, a gente já

acostumou um pouco, vamos levando, a gente gosta daqui.

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Notamos como o frio foi uma dificuldade encontrada pelo grupo em se

adaptarem ao novo território, uma vez que nunca passaram por isso e obtinham técnicas

para facilitar a adaptação, como ela mesma diz sobre a possuir apenas “cobertores bem

fininhos do norte”. É perceptível o conflito existente ao que estavam acostumados

(clima quente) e ao que tiveram que se acostumar (clima frio). Percebemos também que

embora essa questão climática apareça como dificuldade pelo grupo no começo, quando

chegaram ao município de Caldas, essa dificuldade parece não ser mais um problema ao

grupo, como no início, visto que chegou ao município em 2001 e essa entrevista foi

feita no ano de 2012.

Os remanejamentos do grupo desde que saíram de Palmeira dos Índios até ao

município de Caldas onde se encontram morando atualmente, foi um processo de

desterritorialização seguido de uma reterritorialização, pois as mudanças encontradas

pelo grupo quando deixaram seu território tradicional implicaram-se em outro para se

reterritorializar no estado da Bahia, por exemplo. E da mesma forma, entretanto com

possibilidades e acontecimentos distintos, aconteceu quando deixaram Paulo Afonso

com destino a São Gotardo e, posteriormente, Caldas. A cada reterritorialização

múltiplas possibilidades e múltiplas territorialidades foram sendo absorvidas pelo grupo

e seus indivíduos em diferentes escalas. E assim acontece sempre quando pensamos o

homem como um ser eminentemente social e sociável, necessitando de se adaptar às

novas circunstâncias, assim, a novos territórios. Assim, “a desterritorialização seria uma

espécie de “mito” (HAESBAERT, 1994, 2001b, 2004), incapaz de reconhecer o caráter

imanente da (multi) territorialização na vida dos indivíduos e dos grupos sociais”

(HAESBAERT, 2005, p.6774).

4.2.2 As territorialidades

Descreveremos agora algumas territorialidades do grupo Xucuru-Kariri

escolhidas por nós e, juntamente a Ayres (2006). Assim acreditamos que haja uma

melhor elucidação de como essa dinâmica é múltipla. Escolhemos territorialidades mais

notórias, sem seguir algum padrão ou escala. Territorialidades existentes como muitas

outras que não são percebidas ou sabidas por nós.

Os elementos culturais, de grande poder simbólico, são partes constituintes da

construção da territorialidade. É a partir deles que existem diferentes maneiras de

apropriar e dominar os espaços, a fim de exercer alguma influência sobre determinada

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porção territorial. Dessa maneira, Robert Sack (1986) define a territorialidade humana

como sendo uma poderosa estratégia geográfica de influenciar ou controlar pessoas,

relações e fenômenos através do controle de área, utilizada em relacionamentos do dia-

a-dia e em organizações mais complexas. O autor salienta que espaço e sociedade estão

inter – relacionados pela territorialidade, é o meio para tal condição. Assim, as funções

que fazem mudar as territorialidades ajudam a entender as relações históricas entre

sociedade, espaço e tempo.

É pela territorialidade que conseguimos compreender o movimento dos

elementos culturais, políticos, de poder contidos em um território e, de como essa

junção se dinamiza. Para Gallois (2004, p.37), o estudo da territorialidade é:

[...] uma abordagem que não só permite recuperar e valorizar a

história da ocupação de uma terra por um grupo indígena, como

também propicia uma melhor compreensão dos elementos culturais

em jogo nas experiências de ocupação e gestão territorial indígenas.

Não dissociamos a questão das temporalidades do processo de construção de

territorialidades. Elas são conjuntas. As temporalidades nos permitem viver

experiências espaciais do passado, assim é também parte constituinte dessas

experiências no presente. Segundo Saquet (2011, p.79-8):

[...] As temporalidades também significam processualidades históricas

que se encontram no presente. Vivemos temporalidades passadas,

presentes/coexistentes e futuras. A temporalidade é, assim, absoluta e

relativa, simultaneamente, a partir do movimento mais amplo do

Universo e dos movimentos da sociedade numa contínua unidade do

próprio movimento com des-continuidades.

Pensamos a territorialidade como um condicionante e produto no viver um

espaço, é a criação, o que permanece e o que transforma ao mesmo tempo. É o que dá

existência ao território junto de uma identidade. A territorialidade é uma condição

inerente aos seres que habitam um território, já que surge da necessidade de se

identificar com o espaço que se habita e da consciência de participação na construção do

território (HAESBAERT, 2004).

A primeira territorialidade que vamos tratar em relação ao grupo Xucuru-Kariri

é a rural. A partir de que foi sendo remanejado, em cada novo território as condições

eram diferentes, sendo que atualmente no município de Caldas o grupo não detém

técnicas tradicionais para plantio e manuseio da terra, isso devido a uma não adaptação

das condições naturais com os tipos de cultura que estavam acostumados. Houve uma

descontinuidade espacial dessa territorialidade quando moraram em São Gotardo. O que

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restou desse trabalho que caracterizamos como roça é plantação de hortaliças e a

produção leiteira que acontece na atual reserva de Caldas, que é organizada e efetuada

pelo vice-cacique Jal e algumas crianças, representando uma parte da subsistência dos

índios. A roça, que representa grande parte dessa territorialidade existiu com maior

frequência no passado. O não uso dessa territorialidade que eram acostumados faz com

que os hábitos alimentares dos indígenas estejam cada vez mais parecidos com os

nossos, uma vez que se tornaram consumidores diretos de supermercados e outros

comércios.

A segunda territorialidade a ser comentada é da relação homem e natureza

buscando proceder a uma aglomeração de valores entre eles, isso nos permite imaginar

como ocorrem nesses territórios diferentes combinações, funcional e simbólico, pois

exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar “funções” quanto para produzir

“significados”. Podemos pensar o território funcional como sendo aquele de proteção ou

abrigo, aquele em que haja uma utilização e controle dos recursos, no caso, por

exemplo, o solo usado na plantação de hortaliças.

O simbólico é o que marca a terceira territorialidade a ser descrita dos Xucuru-

Kariri. Analisamos essa questão junto ao ritual sagrado do grupo, o Ouricuri, que

acontece no interior das matas na reserva. Essa manifestação cultural na atual reserva

acontece em uma descontinuidade espacial, uma vez que não acontece sempre e há um

trajeto até que se chegue ao interior da mata. Além do mais, o tempo é o que marca o

ritual, acontecendo uma vez por ano. Uma observação feita é que o espaço no interior

das matas não é usado apenas durante o acontecimento do ritual, mas quando há

necessidade dos indivíduos ficarem em paz consigo mesmo, segundo eles: Nós temos

outra moradia dentro da mata. E essa moradia que temos dentro da mata é a moradia

que nossos antepassados viveram e hoje a gente vive, e essa o povo não vê. Se eu

pudesse eu morava lá (Dona Josefa, 59 anos. Anotação de campo, Caldas/abril 2012).

A quarta territorialidade é a do vínculo com territórios do passado, tanto em

Palmeira dos Índios, na Fazenda Canto, quanto em Paulo Afonso, na Bahia. É

importante salientar que essa territorialidade é apenas simbólica, ela representa

exatamente o vínculo com o passado, com as recordações dos espaços vividos pelo

grupo, que não há uma continuidade espacial. Essa ligação acontece também pelo fato

de ainda existir índios Xucuru-Kariri morando nestes territórios. Outro modo de ver a

importância desse vínculo com o passado é a reprodução de algumas formas na reserva

atual, exemplos: o quiosque de alvenaria existente na reserva é chamado pelo grupo de

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oca, remetendo às formas de moradia do passado e, o outro, é o fogão que Dona Josefa

tem construído no quintal de casa, direto na terra, pois segundo ela esses aparelhos

tecnológicos (fogão a gás) uma hora ou outra acaba não funcionando, portanto, mesmo

tendo um fogão a gás, não deixou de usar da técnica que há tempos está acostumada e

sabe que não falha.

A quinta territorialidade é a urbana, que muitos outros povos tradicionais

também já adquiriram. Os espaços urbanos em sua maioria são organizados pelos

interesses capitalistas, de alta valorização de imóveis urbanos e sua especulação para tal,

pela segregação de pessoas e recursos pela lógica de muitos planejamentos urbanos, que

remete ao desconhecido, símbolos diferentes dos seus, em um processo fenomenológico

até então nunca percebido e vivido. A dinâmica a partir de então acontece a partir do

tempo da cidade, e não mais o tempo do campo, “das coisas próximas que passam

devagar”. Acreditamos que essa territorialidade, que surge de necessidades como

trabalho, recebimento de aposentadorias e outros serviços bancários, compras mensais

nos supermercados, lazer para alguns, foi a que mais rápido inseriu hábitos e técnicas

bem diferentes às indígenas no passado. A aposentadoria está sendo para alguns índios

uma importante entrada de recurso financeiro para suas necessidades e vontades, e todos

os caminhos para tal acontecem no espaço urbano. Ou seja, auxilia em medicamentos,

alimentação, roupas, lazer, entre outros. A territorialidade urbana se expressa nas

manifestações e reivindicações que os indígenas fazem pelo território brasileiro, como a

Rio + 20, fóruns de assuntos indigenistas, reuniões de negociações com a FUNAI e até

mesmo em visitas a parentes que ficaram em outros territórios. E também para os índios

que atualmente usam do centro urbano para lazer, trabalho e estudo, como as crianças

que estudam na cidade.

Atualmente alguns traços de modos de vida urbanos são característicos do

grupo, a territorialidade urbana no universo das concepções Xucuru-Kariri é a vivência

na modernidade, de que muitos já se acostumaram. Há nesse momento uma

experimentação do mundo moderno, diferente do mundo vivido por eles até então, de

quando tinham pouquíssimas necessidades atreladas aos centros urbanos. A

comunicação com outras instituições para o grupo também acontece nos centros

urbanos, em sua maioria, como os assuntos associados às políticas públicas e

assistencialistas do governo federal.

A sexta territorialidade é a das conexões políticas com o mundo diferente,

propriamente o relacionamento com o não índios. A formação desse território começa

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anteriormente a vida na Fazenda Canto, em Alagoas, durante os movimentos

migratórios. E é nesse movimento que a territorialidade urbana se torna política para

assuntos com órgãos governamentais e processo de conquistas de terras. Tanto que

dentro da organização do grupo existe quem responde e reivindica por esse território

político, de reivindicações, como é o caso do cacique e vice-cacique. Entretanto, a

dinâmica desse território faz com que muitos atributos não indígenas sejam absorvidos e

vivenciados pelo grupo alterando seus modos de vida. Dessa maneira, após um longo

período em que a cultura Xucuru-Kariri estava ‘adormecida’ como dizem eles, uma

escola foi reivindicada, e que teve início seu funcionamento em 2004 buscando uma

educação diferenciada que aproximassem a educação dos aspectos tradicionais do

grupo, inserindo disciplinas como Cultura e Uso do Território. Essa territorialidade faz

com que as lideranças não se mantenham nos moldes tradicionais de pensar pelo grupo,

pois essas atualmente têm que agir muito mais fora do que dentro das reservas

indígenas, na reivindicação de um território mínimo (direto à terra, abrigos e recursos).

Quadro 2 - Síntese das territorialidades do grupo Xucuru-Kariri.

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Territorialidade Dinâmica Características

Rural Maior constância no

passado com roças,

lavoura, plantações.

Atualmente

transformada a partir

das novas

circunstâncias.

No passado

associava-se às

técnicas de cultivos

de grãos, verduras e

legumes,

principalmente da

mandioca.

Atualmente se

caracteriza pela

produção leiteira e

plantação de

hortaliças.

Homem e

natureza

Simbólica e

funcional.

Domínio sobre o

espaço para realizar

“função” ou produzir

significado.

Ritual - Ouricuri Simbólica, elemento

cultural do grupo.

Acontece geralmente

uma vez por ano no

interior da mata,

embora esse espaço

seja usado quando

exista necessidade.

Ritual sagrado para

etnia Xucuru-Kariri.

É permitida somente

a participação dos

índios do grupo.

Vínculo com

territórios do

passado

Com um valor

simbólico acontece

nos vínculos e

recordações com os

espaços vividos pelo

grupo.

Vínculo com

indivíduos do grupo

que ficaram em

territórios passados.

Reprodução de

algumas formas:

quiosque e fogão.

Urbana Acontece de maneira

funcional e simbólica

nas necessidades e

atividades com e nos

centros urbanos.

Trabalho,

pagamentos de

aposentadoria, lazer,

compras, entre

outras.

Conexões políticas

com o mundo

diferente

Basicamente

acontece no contato

com o mundo não

índio, para relações

diversas.

Reivindicações e

necessidades para

viver com o território

e a partir dele.

Organização: Caetano Lucas Borges Franco.

Todas as territorialidades se interligam em algum lugar no tempo e no espaço

da memória do grupo, fazendo com que haja a construção de um laço simbólico –

material pela história de vida do grupo, configurando uma rede. Esses territórios

identificados acontecem em espaços contínuos como zonas, ou descontínuos,

conectados pelas relações e, formatados também em redes. Acumulam e sobrepõem-se.

4.2.3 A Multiterritorialidade

Entendemos por multiterritorialidade o movimento de indivíduos ou grupos por

múltiplos territórios, que se estabelecem por laços simbólicos e materiais com os

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territórios tanto na e pela mobilidade, que pode também ser exercido e/ou acionado sem

a necessidade de se deslocar (MOTA, 2011), como pode ser observado nas diversas

conversas com o grupo Xucuru-Kariri. A partir de Haesbaert (2007, p.19), temos que a

multiterritorialidade:

[...] Aparece como uma alternativa conceitual dentro de um processo

denominado por muitos como “desterritorialização”. Muito mais que

perdendo ou destruindo nossos territórios, ou melhor, nossos

processos de territorialização (para enfatizar a ação, a dinâmica),

estamos na maior parte das vezes vivenciando a intensificação e

complexificação de um processo (re) territorialização muito mais

múltiplo, “multiterritorial”.

Pensando a trajetória do grupo de Alagoas ao sul de Minas Gerais, é tratado

cada município por eles morado como um território que existiu e foi experimentado por

eles. Pensamos também a possibilidade múltipla de existência de outros territórios a

partir desses citados, tanto ao que se refere ao indivíduo ou ao grupo. Haesbaert (2004,

p.344) considera que:

[...] a existência do que estamos denominando multiterritorialidade, pelo

menos no sentido de experimentar vários territórios ao mesmo tempo e de, a

partir daí, formular uma territorialização efetivamente múltipla, não é

exatamente uma novidade, pelo simples fato de que, se o processo de

territorialização parte do nível individual ou de pequenos grupos, toda

relação social implica uma interação territorial, um entrecruzamento de

diferentes territórios. Em certo sentido, teríamos vivido sempre uma

‘multiterritorialidade’.

Concluímos dessa maneira, junto a autora, que a existência de múltiplos

territórios pelo processo histórico do grupo foi fator influenciador na construção de sua

identidade. Todas as relações materiais e imateriais foram incorporadas de algumas

maneiras a nível individual ou do grupo. Ladeira (2008) apud Mota (2010) parte do

multidimensional do território para discutir a identidade Mbya, assinalando que a

constituição identitária dos Mbyas se relaciona com os territórios vividos por eles. Para

ela o território está inter-relacionado a uma visão de mundo, podendo ser também um

modo de vida que se imbrica as construções das identidades e que essas perpassam

pelas e nas relações com os outros. Sendo assim, entende que a formação da identidade

está atrelada ao espaço geográfico, reforçando assim a ideia de Haesbaert (1999) sobre

identidade social, como identidade territorial. No próximo capítulo iremos explorar

melhor a questão das identidades culturais e territoriais dos índios Xucuru-Kariri, a

modo de pensar seus posicionamentos sempre sendo dinâmicos e negociantes.

4.3 As transformações dos modos de vida: alguns exemplos

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Nesse momento, exploraremos como que através do tempo e dos espaços

vividos, a dinâmica dos modos de vida se transforma juntamente com o transformar de

territórios do grupo. Esse transformar de modos de vida que falamos se caracteriza

também pelas técnicas que os índios utilizam para vivenciar esses territórios. Para isso,

utilizamos trechos de algumas conversas que tivemos em trabalho de campo para

melhor ilustrar essas transformações nos hábitos do grupo Xucuru-Kariri. Dona Flora

(83 anos) em conversa nos conta de como a questões alimentícias e climáticas estão

atrelada a esses modos de viver que os territórios possuem, e de que maneira ela lida

com essa situação no presente.

Eu que sou velha já estou acostumada com o frio... foi difícil uns tempinhos, e

depois nos acostumamos, nos acostumamos aqui, com o frio daqui, mas o que

achei ruim aqui foi negócio de comida, misturas, essas coisas assim, pois lá a

gente tinha negócio de galinha a gente comprada na feira, era matada na

hora... e aí quando a gente botava para ajeitar para comer né ficava uma carne

gostosa. E aqui, as carnes daqui, os frangos são sem gosto. [...]Foi o que eu

achei ruim aqui foi isso.Lá tem o peixe salgado, peixe fresco, peixe de todo tipo

que a gente quisesse, e aqui, os peixes daqui é bacalhau que quando a pessoa

compra ele e molha ele faz aquele cheiro de cru da ‘desgrama’, a carne só é

carne de costelas de porco, costelas de vaca, por que aqui não mata boi, só

vaca. Foi isso que eu achei ruim daqui. Eu to acostumada, só com as misturas

daqui que não. Eu como por que sou quase obrigado para não comer feijão

puro, mas as comidas aqui não me agradam não. [...] E Eu no tempo que eu

possuía meu marido lá, as coisas eram outras, tinha muita fruta, as pessoas têm

aquele sítio na serra aonde tem aquele monte de fruta, cheio de manga, sem

precisar comprar, jaca tem demais também,toda fruta que a pessoa quisesse, é

isso que eu sinto muita falta.

Já a Dona Josefa também em conversa compara os tempos do passado com

atualmente no que se refere a objetos e utensílios, mostrando que a técnica usada na

construção desses se diferencia com o passar dos tempos, entretanto possuem as

mesmas funcionalidades.

Não tem nem comparação. [...] Antes era tudo mais natural e nativo. Não

existia tanto contato de gente misturada. Não existia fogão, não existia panela

que nem hoje, colher, garfo, faca, essas coisas, a colher nossa era os cinco

dedos, e as conchas para tirar o feijão era mãe que fazia, não tem os cocos?

Que a gente parte para rapar aquele miolo dele? A gente comia o miolo e

raspava, um coco só dava duas conchas, que era para tirar o feijão. Panela do

próprio barro, prato do próprio barro, cama não existia. Ninguém ficava

comprando essas coisas, cadeiras, era tudo natural. Luz era o candeeiro e o

fogo. O que era uma coisa muito bonita que eu achava, quando era de noite, as

índias velha diziam: Vamos cuidar de comer cedo que mais tarde vamos lá na

casa de compadre fulano. Pra quê? Para contar historias dos antepassados

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deles, fazia um fogo no terreiro deles, e nos vivíamos numa vida muito

tranquila e mistura era do mato, feijão era da terra, da roça, ninguém saia

para rua procurando tempero para colocar nas panelas, era tudo do mato. E

mistura era de caça e peixe. Por isso eu te digo, a vida antigamente era muito

boa. [...] Essa relação com os antepassados, nossos costumes aqui não se

perderam, estamos vivos e fica tentando, passando para os outros, faz reunião,

conversa com eles, para não deixar nosso costume cair. O que é muito diferente

para gente hoje é o costume das roupas e da alimentação.

É perceptível como a dinâmica de vida do grupo se transforma, pois se antes

existiam as rodas de conversas com os mais velhos sobre a cultura Xucuru-Kariri e seus

antepassados, hoje essa comunicação acontece de outra forma. O próprio preparo e

produção das comidas e dos utensílios que usam acontecem de maneira diferente que

em tempos e territórios passados. A inserção de hábitos cotidianos da sociedade não-

índia no cotidiano de vida deles produz materialidades e imaterialidades distintas,

fazendo com que o grupo reorganize seus modos alimentares e de vestimenta. Assim,

mostra que é através dessa percepção absorvida pelos índios que irão reproduzir suas

necessidades e desejos. Esse grupo, que no passado tinha uma dinâmica de vida

próxima às suas raízes e tradições, hoje se vê frente a um mundo que lhes oferece

múltiplas possibilidades de agir e ser em seus territórios. A professora Jizelma nos fala

um pouco sobre essa questão em que o grupo está em constante contato com a

sociedade não-índia, e não tem como destes se desvencilhar. A reserva atual no

município de Caldas é caracterizada de espaços híbridos onde há mistura de objetos

artesanais e antigos, que são próximos da cultura dos índios, mas também de objetos

tecnológicos como televisão, fogão, geladeiras, DVD e outros. Não que isso não deva

existir ou que eles não devam fazer o uso desses objetos, mas são através dessas

dinâmicas que são absorvidos aspectos imateriais de outra realidade, como notamos

novamente nas falas da professora.

O que a gente não deve deixar para trás é a cultura. Mas de resto a gente

leva. Se está inovando tudo, porque que a gente não tem que inovar também?!

Ninguém tá parado lá, o tempo não para, né? Que nem uma vez né, veio um

pessoal aqui e disse: mas vocês têm celular? Tem carro? Mas o que a gente

vai fazer então no mundo sem a gente ter nada, a gente não estamos fechado, a

gente está vivendo junto com todo mundo...

5- IDENTIDADES: elementos culturais e territoriais

5.1 Algumas considerações teóricas

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A história do povo Xucuru-Kariri se fragmenta em diversos espaços e relações,

as quais são condicionadas por dinâmicas (sociais, espaciais, econômicas, culturais e

ambientais) múltiplas e diversas, que fazem com que sua identidade seja negociada e

reconstruída constantemente. Objetivando compreender o modo de construção territorial

do grupo, nos predispusemos a entender os indivíduos, bem como a unidade que juntos

constituem. Nesse momento, a identidade e a diferença nos auxiliam a pensar como se

criam e reproduzem seus territórios, uma vez que os termos se tornam inseparáveis para

suas próprias distinções e significados. Assim, levando em consideração que o cotidiano

é a transformação das circunstâncias, a identidade às vezes se comporta como produto, e

às vezes como produtora de territórios. Ou seja, as identidades acontecem em múltiplas

dimensões, sendo elas histórico-geográficas, cultural, social, territorial, entre outras.

Todas essas identidades se localizam no espaço e no tempo, simbólicos, pois

possuem singularidades como paisagens, relações, tradições, ambientes. Desta forma,

concordamos com Haesbaert (1999), quando argumenta que a identidade social é

também territorial quando o referente simbólico central para a construção desta

identidade acontece a partir do território ou o transpassa. A dinâmica do território e da

identidade acontece em mão dupla, uma vez que a partir do território possa haver uma

modelação na identidade, assim como esta possa modelar o território. A própria reserva

indígena carrega consigo esse processo, uma vez que as identidades culturais dos grupos

sociais dependem desse território para se reafirmar, e vice-versa.

Voltar ao passado e reconstruir a história e a vida do grupo em cada espaço e

tempo, desde sua terra nativa, é importante para compreendermos o processo de

construção de sua identidade, que além de produzida simbólica e socialmente, possui

um caráter biológico. Conhecer e/ou reconstruir o passado são umas das formas de

fortalecer a identidade (WOODWARD, 2000), já que são construídas e mantidas. A

identidade é que marca as dimensões de posicionamento dos sujeitos. Desta forma, não

devemos nos ater a uma análise estável e fixa, mas a uma análise baseada em esferas

fragmentadas e múltiplas, já que é construída a partir de determinadas dimensões

sociais, simbólicas e psicológicas (WOODWARD, 2000), fazendo-se relacional. Desta

forma, a diferença marca a identidade.

A identidade que se cria no e com o espaço e relações nele presentes, produz

uma subjetividade em cada indivíduo, que articulando e atuando nele de forma singular,

o transforma de múltiplas maneiras. Envolta e contida nessas ações está a cultura desse

grupo, produzindo identidades e diferenças particulares, dinamizando os modos de

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reprodução de vida social. Elas serão representadas basicamente nos fatos ativos da

mente, ou seja, dos impulsos e afetuosidades que produzem uma pluralidade de

sentimentos que influenciará nas ações e decisões de cada um. Investir em um estudo de

identidade é importante para entendermos os sujeitos e suas subjetividades, o que

envolve a condicionante dos agentes do espaço, qual seja, a psique humana.

Ao argumentar que “existe uma associação entre a identidade da pessoa e as

coisas que uma pessoa usa”, Woodward (op. cit., p.10) nos leva a pensar a identidade

individual ou de um grupo/comunidade produzindo uma realidade/vida social de acordo

com seus utensílios, e muitas das vezes, esses utensílios são compreendidos por técnicas

próprias, caracterizando-os desta forma, ou seja, “a representação inclui as práticas de

significação e nós como sujeito. Consideramos que o espaço também é umas dessas

coisas que as pessoas usam, e este se associa a identidade de tal. É por meio dos

significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e

aquilo que somos (p. 17)”.

Nessa marcação da identidade pela diferença, são produzidos símbolos

concretos que ajudam a identificar nas relações quem é um determinado tipo de sujeito

(homem, mulher, etc.) ou não, mostrando mais uma vez que a produção da identidade é

tanto simbólica quanto social, e a luta para afirmar uma ou outra identidade ou as

diferenças que cercam a vida cotidiana têm causas e consequências materiais.

A diferença é marcada em relação à identidade através de sistemas

classificatórios que fabricam sistemas simbólicos por meio da exclusão. Esses sistemas

classificatórios que se fazem duais na maioria das vezes (mito e religião, puras e

impuras, etc.) constituem forma de incluir e excluir indivíduos a partir de categorias.

Então identidade e diferença se mostram de maneiras conflituosas participantes no

comportamento e reprodução da vida social, e a singularidade dos casos se afirma já que

a “identidade é marcada pela diferença, mas parece que algumas diferenças – neste caso

de grupos étnicos – são vistas como mais importantes que outras, especialmente em

lugares particulares e em momentos particulares (p.11)”.

Na produção social a identidade parece ser um acontecimento autônomo, que

faz referência a si própria, sendo autocontida e autossuficiente. Neste diapasão, a

diferença é aquilo que o outro é, o que faz da diferença, assim como a identidade, ser

concebida desta forma como auto-referenciada (SILVA, 2000, p.74). Os termos se

ligam no que se refere a tornar-se e não tornar-se, ser ou não ser, portanto, a diferença é

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marcada pela positividade negativa. Identidade – é negatividade – se faz também

daquilo que não é.

Silva (2000) nos alerta que tanto a identidade quanto a diferença são criaturas

de linguagem que se criam social e culturalmente, o que as tornam maleáveis e

marcadas pela indeterminação e instabilidade, uma vez que o caráter da linguagem se

comporta de maneira vacilante. A diferença é marcada pela linguagem. Entender a

produção da identidade e da diferença se torna tarefa complexa frente a um espaço

globalizado e híbrido, em que as relações e os fluxos são cada vez mais intensos e

correntes. Apesar das transformações que percorrem a identidade e a diferença ainda

carregam o poder de definir, como afirma o autor:

[...] elas não só são definidas como também impostas, elas não

convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem

hierarquias; elas são disputadas. A identidade e diferença estão, pois,

em estreita conexão com a relação de poder: o poder de definir a

identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações

mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca,

inocentes (SILVA, 2000, p.81).

Apesar de a identidade possuir uma tendência de se fixar, o processo oscila

entre o que tende a fixar e estabilizar e o que tende a subverter e desestabilizar, o que

torna sua análise complexa. Portanto, é através das representações que irão ganhar

sentido, pois:

[...] é também por meio da representação que a identidade e a

diferença se ligam ao sistema de poder. Quem tem o poder de

representar tem o poder de definir e determinar identidade. É por isso

que a representação ocupa um lugar tão central na teorização

contemporânea sobre a identidade e nos movimentos sociais ligados à

identidade (SILVA, 2000, p. 91).

Portanto, a representação como um processo cultural produzirá questões

individuais cunhadas no aspecto da busca do ser e o que poderemos ser. Inseridos no

processo cultural dos indivíduos e grupos sociais, o costume e a tradição representarão

nas relações, as identidades no âmbito da cultura, uma vez que:

[...] a representação inclui as práticas de significação e nós como

sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações

que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos

(WOODWARD, op. cit., p.17).

Importante se faz a concepção de que as identidades estão sempre se

produzindo e reproduzindo, não se comportando como sistemas fechados e terminados,

o que para Hall (2000) se faz como negociadas, construtivas, não fixas e não imutáveis.

O que nos leva a pensar então em uma constante transformação, constituindo um

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processo de identificação. A situação desse comportamento se complica frente a um

mundo globalizado, constituído de espaços fluídos e trocas simultâneas, onde técnica e

informação são os ditames da atual dinâmica que produz um cotidiano de vida

fragmentada.

Portanto, na construção da identidade a percepção, que é construída através da

semiótica e da fenomenologia, se comporta como fator decisivo e estimulante de

práticas sociais, comportando os indivíduos nos espaços diante do que vivem e

experimentam, dos inúmeros sentimentos e sensações que determinam os processos na

paisagem geográfica, oriundos do cotidiano, ou seja:

[...] os sentimentos humanos se materializam no espaço através de

signos materiais (prédios, jardins, monumentos, pontes, etc.) e

imateriais (frases, palavras, gestos, silêncios e pensamentos). Cada um

destes signos será interpretado de acordo com a bagagem cultural,

social, emocional de cada interprete num determinado tempo e espaço

(ROCHA, 2003, p.78).

A partir da contextualização teórica podemos refletir como os índios Xucuru-

Kariri e suas identidades são importantes e determinantes na maioria das vezes para a

construção territorial, pois é pelo território que existe a relação simbólica entre cultura e

espaço (ROSENDALH, 2003). Nesse momento, nos atemos a uma melhor elucidação

da questão por meio de experiências práticas do grupo e realização de entrevistas em

trabalho de campo. Propomos-nos então a entender como foi construída e como é a

dinâmica dessa identidade frente ao processo histórico por eles vividos nos

remanejamentos, nas relações e na atual reserva.

5.2 As identidades marcadas pelas diferenças, pelos utensílios e pelos saberes

étnicos

Iniciamos aqui, para a discussão da identidade do grupo, com trechos de

entrevistas e falas colhidos pela pesquisadora em educação Beatriz Sales da Silva, que

junto ao grupo, escreveu sua dissertação de mestrado. Quando realizou suas entrevistas

para a tese, Silva (2010) se deparou, em um primeiro momento, com a questão

identitária do grupo, com a fala de Dona Josefa, esposa do cacique José Sátiro, que se

preocupava com a imagem que passaria aos outros através de suas vestimentas: “a

imagem fica gravada na cabeça de quem não conhece o povo Xucuru- Kariri” (p.30).

Nesse momento percebemos que apesar de saber que ser índio para Dona Josefa não se

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reduz somente às suas roupas e utensílios, existe uma preocupação em se apresentarem

vestidos com suas roupas de rituais. Percebemos também que essa preocupação vincula-

se a não querer imagens distorcidas sobre sua identidade indígena, uma vez que ser

índio não é somente viver na mata e/ou não ter relações institucionais. Inerentemente ao

grupo, essas relações e novos modos de vida foram lhes atribuídos. Portanto, a

identidade a ser fixada sobre os indígenas é totalmente a do índio literário, a do índio

genérico, não levando em consideração as diferenças que os marcam de diversas

maneiras.

Assim, para Hall (2004) a identidade só entra em questionamento, quando as

incertezas e dúvidas se sobrepõem a algo tido como fixo, estável e coerente. E é nesse

ponto em que a identidade indígena do grupo aproxima-se da crise, pois eles

atravessaram e atravessam diversas fronteiras em seus remanejamentos, e é nesse

atravessar que fica para trás lugares, relações, tradições e pessoas que lhes

representavam a estabilidade e as apropriações. Portanto, as incertezas e dúvidas sobre a

identidade indígena do grupo são elaboradas como preocupação pelo próprio grupo,

pela imagem que eles passam, e nesse momento utilizamo-nos novamente de um trecho

de entrevista de Silva (2010, p.31-2) com o cacique do grupo, José Sátiro:

Hoje muita gente pensa que porque o índio veste roupa, trabalha com sapato

no pé, bota um celular no bolso, relógio. Não é isso que faz esquecer aquilo que

são. Nós aprendemos com o branco, coisas boas e coisas ruins. As ruins a gente

esquece só lembra das boas. Hoje a gente está no limite, quase que nem o

branco. Como igual ao branco, não é igual ao branco porque não posso

comprar aquilo que o branco come, o rico. Mas o feijão, a carne, o macarrão,

a farinha, isso é básico dos índios. Eu não sei que cabeça tem nossos governos,

acabou com as matas, acabou com os rios, acabou com os peixes, acabou com

as caças. Modificou e fez o índio seguir o caminho dos brancos, mas não fez no

índio mudar os costumes tradicionais, que é a cultura, o ritual, as crenças e

tradições. Isso nunca vai ser mudado por que está no sangue, é nativo.

Enquanto isso eu acho que os culpados de hoje os índios estarem

americanizados foi os padres, que tratou de catequizar. Fazer os índios, a

maioria do nosso povo hoje, tem gente que fez esquecer, costumes, tradições,

mas pelo contrário àquela que zela, que nasceu no sangue, que está no sangue,

ninguém jamais fez esquece aquilo que somos. Que é a nossa tradição, o nosso

ritual, nosso costume tribal. Então isso a gente não quer falar das antigas

datas, vamos falar do presente, porque das antigas datas é sofrer duas vezes.

Eu acabei de dizer que os nossos parentes, nossos irmãos índios no dia vinte e

dois de abril de um mil e quinhentos, eram seis milhões de índios e hoje nos

quatro cantos do Brasil tem quatrocentos e setenta e poucos índios. O restante

foi para a pistola das grandes mineradoras, das grandes hidrelétricas, das

grandes madeireiras. Isso fez o índio se revoltar. No Brasil são três poderes,

existe uma coisa que é engraçada e eu não combino, mas está na lei a gente tem

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que seguir. Quando o índio não sabia plantar, um pé de arroz, um pé de milho,

um pé de feijão, o índio era completamente inocente e vivia até cem anos. Hoje

depois que o índio estudou, se formou e vê o que é bom para o povo e bom para

si, existe uma lei de que o índio é incapaz. Isso aí dói dentro da gente, mas

piamente quem lançou essa lei e faz valer esse poder é mais criança que os

próprios índios.

Primeiramente, podemos trabalhar a ideia de Woodward (2000) da existência

de relação entre identidade e o que a pessoa usa. O cacique faz referência a suas

vestimentas, como sapato, celular e relógio, e em seguida afirma que não é por usar

esses objetos que deixa de ser índio. Percebemos aí que a diferença existente entre os

objetos ditos dos não-índios e índios, é o que também pode afirmar a sua identidade

indígena. Depois ele faz referência às coisas que aprendem com os ‘brancos’, e nesse

momento podemos perceber que ao dizer que as coisas ‘ruins’ eles esquecem, só

aproveitam as coisas boas, mais uma vez a diferença ou o que para ele é julgado como

‘ruim’ também marca sua identidade. Pois a diferença é marcada pela identidade através

desses sistemas classificatórios que se fazem duais, como afirma Woodward (2000). No

decorrer de sua fala, é importante notar como a questão da identidade é produzida

simbólica e socialmente, quando faz referência aos padres, ao tipo de alimentação e aos

governos que lhe ditam como ser, atribuindo aos índios hábitos e condições inexistentes

anteriormente. Salienta-se que tanto a identidade quanto a diferença não se apresentam

somente como múltiplas, mas também de complexas maneiras, pois suas dinâmicas são

e estão associadas aos espaços institucionalizados e das imaterialidades neles contidos.

Nessa mesma perspectiva da identidade se relacionar com as coisas que uma

pessoa usa, abordamos agora de outra fala, coletada em nosso trabalho de campo, para

elucidar o índio e seus adereços. Em conversa com Dona Josefa (46 anos), outra índia,

que não a citada anteriormente, nota-se um trecho importante em relação a esses

utensílios. Ao falar sobre sua etnia e como é ser índio, ela expressa:

Eu como índia sou uma mulher que tenho as coisas dentro de casa, eu

tenho meu cocar, eu tenho minha roupa de dançar, tenho meu sutiã, eu

tenho minha saia, e tenho minha cultura e tenho meu cachimbo. Sei fazer

meu ‘trabalhinho’ de índio que minha avó me deixou desde ‘novinha’.

Nesse trecho podemos notar que apesar de não estar caracterizada como um

índio da visão literária, aí existe uma preocupação em relação a sua imagem, pois ela

possui coisas/utensílios que para ela afirma-se como identitário ao índio, como por

exemplo, o cocar, a saia, a roupa de dança e o cachimbo. Notamos também que o

afirmar ser índio se faz pelo ‘trabalhinho’ que ela diz herdar da avó, mostrando que essa

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identidade se afirma também como pelo costume e pela memória, sendo um

aprendizado construído com os mais velhos, ou seja, produzida simbolicamente.

Reforça-se assim a identidade, conhecendo e reconstruindo o passado, como afirma

Woodward (2000).

Outro trecho a ser trabalhado é da entrevista com o cacique substituto Jal (39

anos), filho do Sr. José Sátiro, que em meio a nossas conversas sobre os costumes e

tradições do grupo, coloca o toré como um importante elemento cultural na afirmação

de sua identidade indígena, e também mostra como os saberes passados dos mais velhos

para os mais novos também reforçam na afirmação dessa identidade:

Índio tem que ter a sua identidade, nós tem a nossa identidade. A gente

não perdemos essa identidade, nós já nascemos com essa identidade,

então essa identidade que nós temos a gente tem que ensinar as crianças,

né, para que ela mais tarde quando sentir que perdeu uma avó, que nem

tem a minha avó aqui por parte de mãe, tem que ser lembrada pelos

netos. E os netos tem que saber que existiu uma velha que nasceu de um

índio e uma índia, e esse neto tem que pegar o ensinamento e não deixar

cair. Aqui tem meu pai que é o cacique que foi de uma época antiga, e

ele tá ficando antigo, por que tem muitos netos e até bisneto, então daqui

mais alguns anos nosso Deus, não vai falar qual a data que vai levar ele

também para que ele seja lembrado, e esses costumes como o toré, que a

gente dança para se alegrar, para tirar a tristeza, né, e fazer com que os

indígenas procure cada vez mais ter essa identidade que os mais velhos

ensinaram. Hoje tem minha mãe que é uma das responsável né, inclusive

ela junta o povo para que mais tarde ela possa ser lembrada, e quando

ela faz isso, ela ta deixando a identidade do nosso povo viva, né, então

nós tem que aproveitar, os novos (nós), para que esses ensinamentos,

para quando Deus levar ela também, a gente saber que a gente somos

Xucuru-Kariri e saber que passou alguém ensinando, quando ensinou a

eles, agora eles já são pais da comunidade Xucuru-Kariri, então eu

tenho que saber que ele deixou o ensinado também.

Portanto, nota-se que a identidade está atrelada para os índios com o ensinar,

com os saberes dos mais velhos, com momentos vividos e experimentados por eles e

repassados aos mais novos como uma garantia de saber o que é ser índio. Mostra-se

assim, da parte dos mais velhos, a preocupação de ser índio nos tempos atuais. E são

nesses saberes dos mais velhos que se encontram laços com espaços e tempos do

passado, em que a memória refaz e reconstrói elementos culturais comuns ao grupo.

Nesta mesma linha em que as representações produzem um significado na afirmação

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identitária do grupo, que expressa o que são, notamos essa importância nas falas do Sr.

José Sátiro, mostrando que a identidade é também produzida simbolicamente:

O toré é um ritual que é símbolo do povo Xucuru, que tem mais de 150 anos

que tem né, esse nome que significa a dança. A dança do povo Xucuru, essa que

nos apresenta. Mas nós temos nosso ponto no mato, que é o nosso ritual que é

onde nós faz nossas orações e convoca os espíritos, não é espírito morto, é

espírito vidente né, é de lá que vem nasce a cura e de lá vê a maldade que

existe lá fora com nosso povo, e descobre também a maldade do branco e do

próprio índio. [...] O toré não é gostar, é uma raiz, é tradição. A gente tem de

berço, do nascimento de nossos pequenos, de nossos antepassados. [...] O índio

é forte, não deixamos cair, e nunca vamos deixar cair nosso ritual, nosso

costume tribal. [...] O índio já se habitua na tradição, por que já vem de Deus,

essa festa, que a gente dança e se diverte, ele acontece quando dá vontade, pra

toré não tem data certa não.

Sabemos que a identidade, além de simbolicamente construída, socialmente se

produz e é remanejada. Nessas negociações acarretadas pelas relações sociais surgem

dificuldades, processos e dinâmicas de vida, que de certa forma, ajudam em um

processo de identificação. Notamos na fala abaixo de Sr. Zito (54 anos), como as

dificuldades enfrentadas em outros espaços e em outros tempos, socialmente negociou e

reproduziu a identidade indígena:

Eu senti muitas diferenças e mudanças na vinda de Alagoas para Caldas. Lá é

mais sacrificoso o tempo pra viver, mais sacrificoso né. Aqui já melhorou um

pouco mais pra mim a vida, não passei mais o que eu passava lá. Passava fome

e discriminação do povo de lá, dos brancos vizinhos, não queriam ver os índios,

ver os índios passando por dentro das terras deles, aqui o povo é mais humilde.

Mas tive dificuldade quando cheguei aqui por causa do frio, eu era acostumado

em terra quente. Hoje sinto falta dos meus amigos, deixei muitos amigos por lá.

A fome, um problema social, representa para ele a lembrança de um tempo de

sacrifício, em um espaço que o ser índio estava entrelaçado com o preconceito e a

discriminação de sujeitos não-índios. A identidade indígena é marcada aí nas dinâmicas

espaciais com os vizinhos brancos, pois o limite da terra representa uma diferença social

existente nesse momento, uma vez que o índio passa a ver pela discriminação as

diferenças entre ele e o vizinho, marcando assim sua identidade.

Quando conquistaram suas terras no município de Caldas, o povo Xucuru-

Kariri, em um movimento pela revitalização de sua cultura, começa a lutar por uma

escola dentro da reseva, para que houvesse uma melhor aproximação entre educação e

no modo de se relacionar. Foram anos até a instalação da escola, juntamente com a

Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais, e enfim, conquistaram o espaço

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para a E.E. Indígena Xucuru-Kariri Warcanã de Aruanã. Além das matérias

convencionais da escola do não índio, a alfabetização se faz juntamente com duas novas

disciplinas escolares, julgadas por eles de grande importância para seu povo e, assim, os

alunos da escola passam a ter as aulas de Cultura e Uso do Território. Importante

lembrar que todas as disciplinas oferecidas na escola são ministradas por indígenas

moradores da reserva.

A introdução da escola já é uma readaptação da cultura deles - uma instituição

externa à sua história, a escola - mas para manter a sua cultura, o que representa uma

contradição dialética entre identidade e diferença.

Nessa nova dinâmica dentro da reserva, a escola se comporta como grande

aliada na revitalização da cultura do povo Xucuru-Kariri e da construção e negociação

da identidade indígena, uma vez que se tem através dela, uma educação diferenciada.

Para melhor dialogar sobre o papel da escola na afirmação da identidade indígena,

trabalharemos trechos de entrevistas feitas com a professora da escola, Jizelma:

Hoje a gente decidiu, fizemos reunião com o cacique, tem que ter aula de cultura, vai

ter, mas vamos falar da nossa cultura. Vamo ensinar pros nossos filhos, pros nossos

alunos de onde a gente veio, de onde somos. Às vezes eles saem pra fora e não sabe

nem contar nada da gente. Tamo em Minas Gerais e o que, a maioria dos meninos que

estão estudando na cidade são a maioria daqui, nasceram aqui, então eles tem que

saber da onde a gente veio, e saber dizer eu sou índio, eu tenho minha cultura, somos

diferentes por causa disso e daquilo, não ter vergonha e nem ter medo, falar, é

importante...cada um tem sua cultura, seu jeito de ser, de falar, de viver.

A fala da professora Jizelma enriquece o diálogo, quando se percebe que a

identidade para eles é a própria cultura, e essa cultura é associada em grande parte pelas

apropriações espaciais e seus costumes tribais. Quando diz ensinar pros nossos filhos,

pros nossos alunos de onde a gente veio, de onde somos, ela remete a sentimentos do

passado, a lugares que moraram antes e que para eles há sentimentos de pertencimento,

pois o ensinar a história para os que em Minas Gerais nasceram é um modo de afirmar

uma identidade territorial construída e mantida de tempos e espaços anteriormente por

eles vividos. Em um segundo momento, percebemos novamente como a identidade é

marcada pela diferença, e como a diferença é marcada pela identidade. Assim, afirma-se

o que Silva (2000) coloca como diferença e identidade auto-referenciada, ou seja, a

diferença ser marcada por aquilo que o outro é. Isso se evidencia quando ela diz que

“então eles têm que saber da onde a gente veio, e saber dizer eu sou índio, eu tenho

minha cultura, somos diferentes por causa disso e daquilo, não ter vergonha e nem ter

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medo, falar, é importante...cada um tem sua cultura, seu jeito de ser, de falar, de

viver”, desta forma, nota-se que os hábitos e o que eles realmente são e sabem que são

diferentes da sociedade hegemônica marcam a sua identidade. Quando ela menciona

que para afirmar ser índio não deva existir nem vergonha e nem medo, é que

conseguimos ver como eles lidam com as questões de afirmação étnica e preconceitos

existentes em práticas do cotidiano. Nesse caso, o se sentir inferior para se afirmar como

índio reforça sua identidade pelas desigualdades étnicas que existem, ou seja, o poder

que tanto a diferença quanto a identidade tem de definir (SILVA, 2000).

Continuando com as falas da professora Jizelma, que muito conversou sobre a

importância da escola dentro da aldeia, conseguimos mais argumentos que possam

fomentar a discussão sobre a identidade. Apesar dos mais velhos saberem da

importância de manter a cultura indígena e lutarem por isso, eles sabem que hoje em dia

seus relacionamentos não são limitados entre eles, até por que há necessidade de

relações fora da reserva, sejam elas por lazer ou por questões de trabalho. Alguns índios

se casaram e moram na cidade, da mesma forma que existem os índios que se casaram e

moram na aldeia. Portanto, eles vivem dinâmicas espaciais e sociais diversas, muitas

delas com indivíduos ou instituições diferentes de sua etnia.

Eu acho muito importante uma escola dentro da aldeia, por que assim, sabe por

que, antes quando os meninos estudavam na rua, que não tinha escola dentro

da aldeia, aí tinha aquele preconceito. Aqui dentro da aldeia os meninos vão do

jeito que quer, se tiver descalço eles vão, se tiver com a roupinha rasgada ou

suja eles vão, às vezes chega atrasado ou chega sem caderno a gente dá ou

arruma uma folha, uma caneta. E já na escola lá fora, não é assim, algumas

escolas exigem os meninos fardados, com o sapato bom. E por isso já

aconteceu vários problemas, uma vez aconteceu de um menino ir de sandália,

chinelo havaiana, os meninos de lá riram dele, não tinha sapato. Muito

meninos de 12 e 13 anos desistiram de estudar lá fora por isso, por causa desse

preconceito deles (não-índios).[...] Eu achei importante a escola aqui dentro

por que eles vão do jeito que eles querem, como se eles tivesse em casa, muito

à vontade.[...] Meu filho foi estudar na cidade, depois de três dias ele não

queria ir mais, por que os meninos de lá riam do sotaque dele, que não é tão

puxado o R como aqui.[...] A escola aqui dentro da aldeia é muito importante

para melhor se relacionar, se fosse possível a gente formar a criança aqui

dentro da aldeia seria melhor, mas a gente tem que ver o outro lado não pode

mais fazer isso, nem os índios que vive na Amazônia não estão preso, hoje a

gente tem que se relacionar com o mundo, com todo mundo, a gente tem que

misturar , querendo ou não temos que misturar, não estamos numa ilha preso,

a gente tá mais evoluído como diz o outro.

Nesse momento está um exemplo de síntese da contradição entre identidade e

diferença. Novamente percebemos como “identidade” e “diferença” se associam o que

talvez na questão indígena seja mais fácil de perceber pelo fato de serem etnias com

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hábitos e costumes distintos. Nota-se como as ações, os saberes e o próprio jeito de falar

identificam e os diferenciam de outros sujeitos. E desta forma, concordamos com

Woodward (2000) quando diz que algumas diferenças são mais importantes que outras,

principalmente em caso de grupos étnicos, “especialmente em lugares particulares e em

momentos particulares” (p.11). A escola tem o papel para eles de educar, mas essa

educação é diferenciada, pois para o índio o aprender e o ter conhecimento não se faz só

de disciplinas e regras como nas escolas dos não índios. Buscar essas dinâmicas

espaciais diferenciadas dentro da escola, nos mostra a importância para eles de se

relacionar entre si de uma maneira mais arraigada às suas origens e etnia, pois é nesse

relacionar que eles estarão fortalecendo seus elementos culturais para relacionamentos

fora da reseva. É como se para relacionar fora da reserva devesse existir uma preparação

cultural como índio, pois assim estariam mais fortes e mais resistentes à cultura alheia.

Mas essa cultura é dinâmica, ela existe no e pelo movimento e trocas. Portanto, essa

identidade se negocia socialmente, os modos de ser têm que lidar com esses limites que

a cultura do próximo impõe, com o preconceito existente. Assim, essas identidades não

se fazem como fixas, elas estão a todo o momento se deparando com situações e

relações que os identificam e os diferenciam. A professora Jizelma mostra entender isso

de uma maneira bem simples quando diz que hoje a gente tem que se relacionar com o

mundo, com todo mundo, a gente tem que misturar, querendo ou não temos que

misturar, não estamos numa ilha preso. Desta forma se percebe como os símbolos da

cultura indígena e as relações sociais constroem a identidade.

Portanto, a identidade se faz no movimento, é mutável e não fixa. O cotidiano

da sociedade capitalista, (por mais que exista resistência por parte de alguns -

geralmente dos mais velhos do grupo), ganha espaço entre os indígenas, e se reproduz

dentro da aldeia. O contato e os relacionamentos com a nossa sociedade e com os

avanços tecnológicos transformam a percepção do índio e os coloca frente às nossas

necessidades de consumo e materialidades.

Os índios vivem suas vidas dentro da reserva, mas têm seus afazeres e suas

necessidades para sobrevivência nos centros urbanos, o que mostra uma constante troca

de informação, comunicação e hábitos alheios. Nesse momento, existem as

contrariedades de ser e usar desses recursos entre os mais velhos e os mais novos, e

desta forma, as identidades se comportam de maneiras diversas. Adquirem-se novas

identidades, sobrepõem-se identidades. O comportamento da identidade dinamiza-se

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através dos tempos e espaços de outrora, a tradição e a modernidade modifica e

reestrutura as diversas identidades vividas e exercidas pelos sujeitos, portanto o

comportamento e as dinâmicas tribais se veem pautadas nas transformações

tecnológicas e nos espaços cada vez mais fluídos. Utilizo aqui, mais uma fala de grande

importância da professora Jizelma para dialogar sobre o comportamento da identidade

através dos tempos:

A nossa cultura tá muito forte, tem o professor como eu falei, o Jânio, ele

ensina a língua, que não tava morta, tava adormecida, tava um pouco

esquecida, tem os meninos que ensina o toré, que é a nossa dança do dia-a-dia

e, tem também o resto da nossa cultura que a gente vai fazer lá na mata, ou

terrero como a gente fala, é um lugar que é secreto, que é só de nós mesmo, só

de nós mesmo, aí pros brancos não, branco, branco não, que ninguém é

branco, para os não-índio tem o toré que a gente pode apresentar para

qualquer pessoa, assim foi uma maneira de fortalecer nossa cultura, a escola

dentro da aldeia, tá fortalecendo mais ainda, a nossa cultura, não deixando que

ela morra ou adormeça.[...] O que a gente nunca deixou de lado foi o toré, que

a gente sempre dançava, fazia o artesanato que ainda faz até hoje.Mas o

negócio da língua que a gente não pode, por que depois dessas tecnologias de

hoje, ninguém mais fica,ninguém faz que nem antigamente, fazer uma fogueira

e todo mundo sentar ao redor da fogueira e contar história, falar a língua... e

os mais velhos falar entre eles. É muito difícil você chegar e pegar aquelas

pessoas e juntar para contar uma história, né. E hoje não, com a escola, de vez

em quando uma pessoa mais velha vai e conta uma história, que nem o Jal

mesmo que vai e pega os meninos e fala a nossa língua. A escola tá trazendo

as riquezas que tavam perdida na nossa cultura, perdida não, esquecida. [...]

Quando eles (os meninos) saem pra estudar na cidade a gente tem essa

preocupação, e a cultura onde é que fica? Por isso que é bom. Mas os meninos,

assim, por mais que eles estejam estudando na cidade, ele não esquece a

cultura dele, né, por que, o que a gente fala pros nossos filhos, pros nossos

alunos é isso, você vai pra fora vai, mas não se esqueça da sua cultura, nunca

esqueça da onde você veio e do que você é.

A professora fala de um costume não exercido ou de grande dificuldade para

que se exerça consistente na reunião dos indígenas para perpetuar ou manter histórias

em comum a eles em tempos atuais, dificuldade essa marcada pela imposição do

cotidiano da sociedade capitalista sobre a rotina de vida em conjunto na aldeia, em que a

tecnologia se mostra como um novo hábito e/ou refúgio aos afazeres dos índios. Desta

forma, o comportamento das identidades se modifica através dos tempos e espaços

vividos, assim, na tradição e na modernidade a identidade se mantêm de formas

diferentes. Giddens (1990, p.37-8 apud HALL, 2006, p.14-5) discute as diferenças do

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processo de identidade entre as sociedades tradicionais e as sociedades modernas,

argumentando que,

[...] nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos

são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações.

A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo

qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do

passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por

práticas sociais recorrentes.

Percebemos assim, que para os índios mais velhos as práticas tribais

aconteciam de uma maneira mais próxima entre os sujeitos e suas raízes, o que se

transforma nesse passar de tempos lentos para tempos rápidos em que a tecnologia dita.

Assim, para Giddens (1990, p.37-8 apud HALL, 2006, p.15) na modernidade “as

práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz das informações

recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando, assim, constitutivamente, seu

caráter”.

5.3 As identidades territoriais

Os aspectos que levam ao estudo do grupo Xucuru-Kariri devem ser

incorporados por uma visão mais subjetiva para que se possa compreender como se

constroem as dinâmicas socioespaciais, contribuindo assim para uma análise mais

complexa das situações, uma vez que o grupo não é mantido somente pela tradição

étnica existente, mas também por políticas públicas e sociais de extrema objetividade e

tecnicidade. Por isso, além da cultura e do modo de vida do grupo, tem de ser levada

em consideração a identidade territorial e a percepção por ele criado nos espaços de

vivência.

E é na identidade territorial que nos apoiamos para entender as construções

territoriais e suas dinâmicas vividas pelo grupo. E ela se faz complexa, constituindo-se

de alguns pressupostos (CATTANEO, 2004). Para HAESBAERT (1999):

[...] toda identidade territorial é uma identidade social definida

fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação

de apropriação que se dá tanto no campo das ideias quanto no da

realidade concreta, o espaço geográfico constituindo assim parte

fundamental do processo de identidade social (p. 172).

Para Haesbaert a identidade territorial é simbólica e concreta ao mesmo tempo,

se comportando como um sentimento de pertencimento ao lugar. E esse mesmo autor

adverte sobre a complexidade existente:

[...] o fato de tratarmos a identidade territorial primordialmente como

identidade social não quer dizer que ignoremos a indissociabilidade

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das dimensões individual, mais subjetiva, e social, mais objetiva, na

construção de identidade.

Assim como a identidade individual, a identidade social é também

uma identidade carregada de subjetividade e objetividade. Na

discussão da identidade territorial isto irá aparecer de forma muito

nítida, pois por mais que se reconstrua simbolicamente um espaço,

sua dimensão mais concentra constitui [grifo do autor], de alguma

forma, um componente estruturador da identidade (Haesbaert, 1999, p.

173, 174).

Nesse contexto, segundo Cattaneo (2004) e Haesbaert (1999) o processo

histórico gravado na memória e no imaginário social do grupo, se faz de grande

importância:

Uma das características mais importantes da identidade territorial,

correspondendo ao mesmo tempo a uma característica geral da

identidade, é que ela recorre a uma dimensão histórica, do imaginário

social, de modo que o espaço que serve de referência “condense” a

memória do grupo [...] (Haesbaert, 1999, p. 180).

Desta forma para ele o território é quem pluraliza e singulariza essa identidade,

quem organiza, produz, é produto e dinamiza essas identidades:

[...] Produto e produtor de identidade, o território não é apenas um

“ter”, mediador de relações de poder (político-econômico), onde o

domínio sobre parcelas concretas do espaço é sua dimensão mais

visível. O território compõe também o “ser” de cada grupo social, por

mais que sua cartografia seja reticulada, sobreposta e/ou descontínua.

Ao mesmo tempo prisão e liberdade, lugar e rede, fronteira e

“coração”, o território de identidade pode ser uma prisão que esconde

e oprime ou uma rede que se abre e conecta e um “coração” que

emana poesia e novos significados (Haesbaert, 1999, p. 186).

Assim, independente de sua tradição, o grupo possui identidade territorial e é

possível identificá-las. Desta forma, para o autor a identidade territorial possui o mesmo

valor de territorialidade e desterritorialização, que é entendida como perda do território

(concreto e simbólico).

Podemos entender que as representações culturais como o toré que é passada

dos mais velhos para os mais novos, como uma tradição, produz um significado de

identidade indígena para o povo Xucuru-Kariri, pois representa a experiência de sua

cultura e aquilo que são. Importante entender que as apropriações e os símbolos criados

espacialmente fazem referências às suas próprias identidades, e que é desta forma,

através das territorialidades, que os indígenas possuirão sua identidade territorial.

Usamos aqui, mais uma vez, um entrevista colhida pela educadora Beatriz Silva (2010,

p. 64) para exemplificar um pouco essa identidade territorial, que o Sr. José Sátiro

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mostra com a importância e as dinâmicas espaciais existentes dentro da aldeia, envolta

por símbolos, valores e apropriações:

É duas coisas que a gente luta para ser diferenciada, educação e saúde, duas

coisas que estão andando de mãos dadas. Educação diferenciada, porque na

cidade tem coisas que se passa que é diferente da nossa aldeia. Na nossa aldeia

existe uma coisa que a gente se orgulha. Não é preconceito. É saber colocar o

povo no seu devido lugar. Na nossa aldeia a gente nas reuniões discute aquilo

que é bom para o nosso povo. Aquilo que é bom para o nosso povo existe uma

diferença grande da cidade. Na cidade existe uma coisa que eu não combino

nunca, com o assunto que funciona sobre droga. Eu tenho lutado muito e venci

e vou vencer porque as diferenças da cidade para a aldeia existem muitas. Esse

é um ponto, o outro é o nome da aldeia Xucuru Kariri. Isso é uma honra, aonde

a gente chega a zelar o nosso nome de Xucuru Kariri. Isso diferencia muito do

homem branco, porque Xucuru é uma etnia. No pano somos iguais, esse pano é

igual ao branco, mas dentro de nós existe uma coisa que o branco não tem e

nem sabe e nunca vai saber nem vai ter que é os nossos costumes tribal, ritual e

tradição e é essa diferença que tem dentro da nossa aldeia para a cidade.

Pensamos então, que o simples fato e viver e dinamizar um espaço já nos

identifica socialmente, tornando-o um espaço vivido. Reconhecemo-nos nesses espaços,

e essa identificação e apropriação também é que os tornam territórios. Esses espaços se

fazem de relações de poder, mas também de ligações afetivas de indivíduos ou grupos

com espaços. Nessas relações são produzidos e apropriados símbolos, imagens e

aspectos culturais que dão sentido e reconhecimento aos territórios.

Na contemporaneidade alguns dilemas discorrem sobre a construção da

identidade, sendo por um lado um processo que passa por constantes (re) construções,

caracterizando desta forma, como aponta Haesbaert: “mais identificações em curso do

que identidades estáveis”, por outro lado identidades que se mantém fechadas e

segregadas a partir de uma ideia conservadora. Também identidades construídas em

diversas escalas (locais, regionais, nacionais, globais) que se configuram em um

hibridismo, de múltiplas maneiras. E por último, em identidades territoriais

fragmentadas, sem bases materiais contínuas, que caminham junto a espaços multi-

identitários, o que configura uma multiterritorialidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No passado, quando os índios moravam em suas terras nativas, suas dinâmicas

socioespaciais já estavam em negociação, em contato com outros grupos e outros

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hábitos, entretanto acontecia numa escala de relações menores tanto cartograficamente

quanto temporalmente, ou seja, a relação homem e natureza configurava um modo de

vida integrado ao ambiente, que existia em um universo simbólico-material mais

enraizado e conjunto dos que os períodos que sucederam. A vida carregava um valor

próximo à totalidade, ao estar e se sentir completo, material e imaterialmente. Isso é

visível através das conversas em que tivemos nos trabalhos de campo com os índios

Xucuru-Kariri, os mais velhos que geralmente são de Palmeira dos Índios carregam um

saudosismo do tempo que viveram lá que está associado à questão material, ao espaço

físico como fonte de recursos, como por exemplo, alimentação e moradia, mas também

a questão simbólica desse tempo, das relações pessoais com o ambiente, com a vida que

tinham,”...de um tempo que não volta mais”(Anotação em campo/abril de 2012,

Caldas).

Entretanto o que percebemos é que esse modo de vida vai se transformando –

adquirindo e perdendo hábitos e técnicas – a partir dos novos territórios compartilhados

com outros modos de vidas e outras instituições (política, cultural, religiosa, científica,

cultural). Vivendo e experimentando as multiterritorialidades ao longo desse processo

histórico, a população indígena transformou-se e adicionou hábitos e técnicas em seu

dia-a-dia. Suas territorialidades se interligam e criam uma rede, sendo vividas de

maneiras diferentes por cada um e em tempos diferentes. Essa rede compreende as

territorialidades (compreendidas por afetos e relações com determinados espaços) dos

índios com os centros urbanos, com as terras que moraram e moram, com o rio que

usavam para lazer e alimentação (que na nova reserva não é presente), a própria

territorialidade dentro do Estado nacional e também as novas dinâmicas espaciais na

atual reserva. Esses são exemplos de como os índios foram (re) construindo seus

territórios, na medida em que eram remanejados, e pela sua vivência grupal do dia-a-

dia. Desta forma, o povo Xucurú-Karirí, ao longo de sua história, incorporou novos

elementos culturais, tanto materiais quanto imateriais. Os primeiros podem ser

representados pelos inúmeros objetos que são agregados ao seu cotidiano, como

aparelhos tecnológicos, vestimentas e alimentação. Sendo essa materialidade

transformadora da percepção dos índios, as imaterialidades, de certa forma, ganham

outros valores, outras dinâmicas sociais e espaciais. Tal população diferenciada, frente

ao processo de globalização e estruturação capitalista da sociedade, não se vê como um

grupo limitado, que se relaciona apenas entre si. Inerentemente aos índios está a

transformação de seus elementos culturais, que muitas vezes os colocam em situações

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de conflitos identitários, pois ao passo que denotam as dificuldades de sua etnia frente à

nossa (seja pelo preconceito enfrentado ou por outros motivos), já não mais desta se

desvencilha, tendo em vista a constante necessidade de empregos e/ou de atividades

urbanas tanto quanto necessárias à sua sobrevivência.

Portanto, no atual período, novamente os índios estão reproduzindo seus

espaços e relações, de uma maneira diferente que as anteriores, por ser um novo espaço

que possibilita uma diversidade de acontecimentos. Os remanejamentos que fazem de

Alagoas ao sul de Minas Gerais apresentam-se como o mais importante fator das

alterações de sua organização social e cultural.

Assim, percebemos que os territórios e os modos de vida se aproximam a ponto

de se tornarem indissociáveis e produtos de um processo histórico de inter-relações do

grupo Xucuru-Kariri que se desenvolveram no cotidiano, acarretando uma atribuição de

singularidades aos lugares. As identidades e diferenças construídas e dinamizadas nesse

processo significam uma autoafirmação, e também o poder de definição pelo diferente.

Destarte, temos territórios como aspectos formadores do grupo, tanto na auto

identificação e autenticidade, mas também como ferramenta política para suas

reivindicações. Portanto, seus territórios são a manutenção de suas autonomias, práticas

aliadas aos modos de vida e, a resistência total desses, frente ao mundo diferente.

Entretanto, para que esse grupo possa dinamizar seus territórios com seus

hábitos e singularidades, a fim de dar continuidade ao que os configuram como um

grupo humano e diferenciado é preciso que haja maiores interesses e políticas de

incentivos por parte do Estado, que ao invés de lhes garantir esse direito, mais se

preocupa com os interesses do capital. É necessário que frente à complexidade de nossa

sociedade, não exista a anulação desses modos e povos.

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ALGUMAS FOTOGRAFIAS

Fotografia 10 – Menino andando de bicicleta, grande diversão para as crianças. Caetano Lucas

Borges Franco, março/2013.

Fotografia 11 – Artesanato feito pelos índios e comercializado em algumas ocasiões.

Caetano Lucas Borges Franco, março/2013.

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Fotografia 12 – Uma parcela do grupo dançando o toré.

Fonte: SILVA (2010)

Fotografia 13 – Casa em condições precárias na nova reserva. Caetano Lucas Borges

Franco, março/2013.

Fotografia 14 – Índios de várias idades jogando futebol. Caetano Lucas Borges Franco,

março/2013.

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