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TERRITÓRIOS EM DISPUTA: A INSTALAÇÃO DE GRANDES PROJETOS E SUA RELAÇÃO COM A COMUNIDADE LOCAL
Leonardo Rauta Martins1 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFFRJ
Maria Helena Rauta Ramos2 Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Resumo O presente texto é fruto das reflexões em torno do deslocamento dos grandes projetos para pequenas e médias cidades na sua relação para com as comunidades locais. Busca-se problematizar os conflitos entre interesses antagônicos (o das empresas e o das comunidades tradicionais) à luz da bibliografia contemporânea e da discussão em torno da relação capital x trabalho, questão de fundo para entender tais movimentos. O texto busca exemplificar várias situações de conflito em torno da apropriação da base de recursos no país, focando numa situação específica objeto de uma pesquisa mais ampla e em curso: “O impacto dos grandes projetos industriais na agricultura familiar e camponesa de Anchieta-ES”. Palavras-chave: Grandes projetos. Identidades locais. Conflito ambiental e relação capital x trabalho. Introdução No exato momento de realização da Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável3, buscar-se-á a problematização do deslocamento dos
grandes empreendimentos (industriais, de infraestrutura ou ligados direta ou
indiretamente a estes) de grandes conglomerados urbanos, onde tradicionalmente foram
concentrados, para as pequenas e médias cidades e a relação das forças econômicas,
sociais e políticas vinculadas a estes, com as forças locais subalternas.
Tal descentralização faz parte de uma tendência que tem se manifestado em diversas
regiões do país, seja por meio da iniciativa privada, seja pelos investimentos em
infraestrutura capitaneados pelo próprio Estado. Neste processo, não é questionada a
apropriação privada dos recursos naturais, e os argumentos para instalação desses
grandes investimentos se referem às oportunidades de trabalho e à melhoria das
condições de vida de população local, onde será instalado o empreendimento. Na
verdade processos que não ocorrem. De fato, há um grande deslocamento de
trabalhadores para a região, na fase de construção das instalações, contingente que não é
absorvido quando a empresa entra em operação; o que propicia o rebaixamento das
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condições de vida, por falta de infraestrutura urbana, bem como dos equipamentos e
serviços públicos.
A noção de Desenvolvimento Sustentável é relativamente recente, e remonta a meados
da década de 1960, quando se iniciaram, no âmbito da comunidade internacional, as
preocupações com a preservação do meio ambiente. Na ocasião o termo utilizado era
ecodesenvolvimento4 e as discussões gravitavam em torno da necessidade de se
construir um novo modelo de desenvolvimento, que pudesse romper com o hegemônico
paradigma desenvolvimentista (HESPANHOL, 2007, p. 180), que entendia o
desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico, visão que passou a ser
questionada a partir desses debates, culminando com as conferências da ONU de
Estolcomo na Suécia e as duas edições do Rio de Janeiro no Brasil, para citar os
momentos mais emblemáticos destas discussões.
O desenvolvimento econômico, redutor das desigualdades sociais? O discurso em prol do desenvolvimento econômico nunca deixou de ser atual; e no
Brasil eternizou-se pela célebre frase “crescer o bolo para depois dividir5”, ganhando
ainda mais força no cenário de crise econômica mundial, desencadeada nos Estados
Unidos, na sua atual manifestação, em 2008, e a partir de 2009 se reproduz na Europa,
com consequências distintas para todas as nações. A defesa desta tese, parte do
pressuposto de que o progresso científico e tecnológico é capaz de garantir a
continuidade do progresso material das sociedades humanas indefinidamente
(HESPANHOL, 2007, p. 181 apud SACHS, 2002, p. 51).
Portanto, prevalece a ideia de que é necessário fazer os países crescerem
economicamente, especialmente aqueles classificados como em vias de
desenvolvimento e subdesenvolvidos, apesar do impulso que o debate relacionado às
questões do meio ambiente obteve nas últimas décadas, seja pela multiplicação das
pesquisas cientificas em torno da questão, seja pelo engajamento de parcelas
significativas da sociedade brasileira em debates e das lutas sociais pela preservação do
meio ambiente.
O Brasil ingressou no desenvolvimento capitalista tardiamente e de forma subordinada,
como fornecedor de matérias primas. Nesse sentido, sua história econômica é explicada
através de ciclos, segundo a matéria prima exportada: ciclo do pau-brasil, ciclo da
mineração, ciclo da cana de açúcar, ciclo do café. Dessa última fase, com a crise do
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café, adentrou na era da indústria, impulsionado especialmente pela Segunda Grande
Guerra, período chamado por Conceição Tavares de “Substituição de importações”.
Uma etapa mais recente, conhecida como dos Grandes Projetos, marcada especialmente
nas décadas de 1970 e 1980, auge do regime militar, internacionalizou a economia do
Brasil, submetendo, quase que de forma definitiva, o país ao império das grandes
empresas multinacionais6, processo complementado no período FHC e mais
recentemente nos dois mandatos do presidente Lula.
O novo boom de desenvolvimento do capital se instaura no país, a partir do segundo
mandato do presidente Lula (PT). Apoiado no argumento de promover o crescimento
econômico do Brasil vem, realizando com o PAC (Programa de Aceleração do
Crescimento), grandes investimentos em infraestrutura por todo país, interligando-o
através de condições gerais da produção (meios de comunicação e transporte) aos
demais países da América Latina. Este programa explicita como objetivo: “promover a
aceleração do crescimento econômico; o aumento do emprego e; a melhoria das
condições de vida da população brasileira” (FERREIRA, 2011, p. 210-11). É sob esta
argumentação (utilizada tanto pelo governo quanto pela iniciativa privada), que
empreendimentos controversos vêm se instalando nas mais diferentes regiões do país.
Tais processos não ocorrem de forma espontânea, pela simples atuação do mercado, ou
decidido em audiências públicas, como querem nos fazer acreditar. As decisões sobre
estes grandes projetos ocorrem em espaços comandados pele grande capital, com
anuência dos Estados nacionais, que assegura as condições de instalação das grandes
empresas de capital internacional. Para atração destes investimentos, se dispõem à
renúncia fiscal e mesmo a criação de todas as instalações de infraestrutura urbanas
necessárias ao funcionamento do empreendimento. O quesito mão-de-obra fica a cargo
da própria imprensa, em geral entusiasta da causa, e que veicula em letras garrafais as
oportunidades de emprego muito antes delas se materializarem, atraindo enormes
contingentes de trabalhadores, na fase de construção, em sua maioria com baixa
qualificação, e que irão compor, segundo a teoria marxiana, a superpopulação relativa
ou o exército industrial de reserva (RAUTA RAMOS, 2011, p. 13).
Para sua implementação, os empreendimentos necessitam da instalação das condições
gerais da produção capitalista, como também da posse e o domínio da terra que, no caso
estudado, podem representar uma importante metamorfose no território objeto da
instalação.
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Moreira (1995) explica, primeiramente, a forma como se deu o processo de
transformação da terra em mercadoria, nos mostrando por meio da discussão sobre
renda da terra, competição intercapitalista e apropriação do conhecimento sobre a
natureza, o processo de territorialização do grande capital. Partindo da análise sobre a
renda da terra, realizada por autores clássicos como Smith, Ricardo e Marx, afirma que
a renda da natureza só pode ser realmente compreendida quando levamos em
consideração a apropriação do conhecimento sobre a natureza. Na sua interpretação não
é possível entender “fertilidade e localização”, atributos valorativos, como algo natural
da terra, é preciso entendê-la como “naturalidade” de uma sociabilidade capitalista. Ou
seja, é o trabalho social incorporado na terra que torna essa mesma terra uma
mercadoria, portanto, com valor de troca.
Desta forma, o valor de troca da terra depende da forma como a mesma se insere no
processo de mercantilização. Para o autor, os atributos “fertilidade” e “localização”,
como determinações naturais, podem ser totalmente relativizados; pois, a fertilidade é
algo possível de manipulação, com o uso das tecnologias disponíveis; e que a
localização depende de quais mercados estamos falando e de quais empreendimentos
podem ser instalados nessas mesmas terras.
Neste texto, a referência a terra engloba tanto terras produtivas, ligadas a produção
agrícola, quanto as improdutivas conservadas para a especulação. Neste sentido, como
pontua Moreira (1995) a valorização das terras se dá por fatores externos aos gastos de
seu proprietário e ao trabalho aplicado diretamente na terra. Este dispêndio social
(abertura e calçamento de estradas, instalação de rede elétrica, rede de água e de esgoto,
cabos de telefonia e internet) se objetiva nas terras, de propriedade particular,
valorizando-as. O simples fato de ser proprietário de parcelas do solo possibilita, ao
indivíduo ou a empresa capitalista, obter ganhos de forma gratuita, constituindo uma
apropriação privada em relação ao conjunto da sociedade. Com esse capital público
realizado sobre o solo, antecipando e acompanhando os investimentos do capital
privado, atrai um conjunto de empresas para a localidade do grande empreendimento
capitalista. É por esta razão que quando se anuncia estes empreendimentos percebe-se o
aquecimento do mercado de terras, com crescimento da especulação imobiliária.
Apropriar-se da terra, ou obter concessão para explorar o subsolo, torna-se um passo
importante para apropriar-se da renda da natureza, isto porque, a terra (incluindo o
subsolo) constitui uma reserva de possibilidades para ser acessada7 com os recursos
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fornecidos pelas inovações tecnológicas, lhe implicando um ou outro uso futuro,
especialmente se levarmos em consideração este contexto onde as novas descobertas
tecnológicas, com destaque para aquelas ligadas à biotecnologia e NTICs8 (LOJKINE,
1995), que impactam decisivamente a exploração dos recursos nos territórios.
O investimento de capital em terras, sejam produtivas ou improdutivas, significa a
territorialização do capital, próprio da lógica capitalista. Nesse sentido, como parceiro
privilegiado do grande capital, o Estado concede incentivos fiscais para fomentar o
processo de territorialização do capital, como ocorrido na região amazônica. Moreira
inda nos alerta que as lutas travadas pelos povos da região, em torno da apropriação da
terra e da natureza, não estão descolados do processo de territorialização do capital
nesta região (MOREIRA, 1995, p. 105)
O campo dos conflitos: disputas por legitimação e pela base de recursos nos territórios Nas comunidades tradicionais existe uma série de sujeitos, vivendo a seu modo, fazendo
uso da terra, da natureza e estabelecendo relações de reciprocidade entre si. Os sujeitos
que se localizam neste território9, em geral, tem consciência de si e dos que estão a sua
volta e neste sentido, desenvolvem suas ações no limite desta acomodação de forças e
dos recursos nele existentes. Quando ocorre a introdução de um outsider10 neste espaço,
tem-se início um processo de tensionamento que, geralmente, resvala para uma situação
de conflito. Não é possível dizer que as identidades 11 existentes num território sejam
forjadas numa bolha, voltadas si mesmas. Ao contrário, reconhece-se que cada
identidade é expressão de múltiplas ordens relacionais que se dão em redes sociais,
materiais e afetivas de pertencimento familiar, de classes, regionais, nacionais e
internacionais, em resumo, locais e globais (MOREIRA, 2006, p. 178). Mesmo assim,
temos aí um elemento que causa evidente tensão12 quando identidades sociais -
existentes num determinado território, como os agricultores familiares e os pescadores
artesanais, as comunidades tradicionais (como ribeirinhas, quilombolas e indígenas),
fazendo uso do território e de seus recursos, há gerações -, são confrontadas com um
novo e potente agente econômico que, por sua própria existência, pode alterar todo um
cenário e destruir as identidades sociais pré-estabelecidas.
Conflitos desta natureza podem ser observados de norte a sul do país, tendo como casos
mais emblemáticos e atuais:
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- a construção da usina de Belo Monte em Altamira no Pará, uma obra de
infraestrutura energética que atinge diretamente territórios indígenas que possuem valor
simbólico e se constitui fonte de recursos naturais;
- a transposição do Rio São Francisco que, na visão dos diferentes movimentos
sociais que atuam na área, tem por função levar água para grandes agricultores da região
(FERREIRA, 2011, p. 212-13);
- os investimentos em infraestrutura viária e portuária, matriz energética,
siderurgia, exploração de hidrocarbonetos que atingem todo o sul do Espírito Santo13;
- a construção de canais de irrigação nas imediações da Chapada do Apodi, na
divisa entre Ceará e Rio Grande do Norte e o reassentamento de centenas de famílias,
com a função clara de beneficiar os grandes proprietários exportadores que tem suas
fazendas localizadas na região. Importante destacar que a Chapada do Apodi é
conhecida pelo alto grau de poluição derivado uso de agrotóxicos, sendo que algumas
comunidades rurais situadas no entorno têm que fazer uso da água por meio de
caminhões-pipa, dado o grau irreversível de contaminação de alguns mananciais14;
- a instalação da Companhia Siderúrgica do Atlântico (ThyssenKrupp CSA) no
Rio de Janeiro seguida por diversos conflitos com a comunidade local, especialmente
com os pescadores no entorno da Baía de Sepetiba15.
Exemplos não faltam, e o que se percebe de comum a todos esses processos é a
existência de uma comunidade local, que sofre importantes impactos com a introdução
de uma força externa (ou seja, uma empresa capitalista internacionalizada), apoiada por
forças políticas locais, processo do qual resulta uma disputa em torno da apropriação e
do uso dos recursos do território. Como para a expansão da monocultura do eucalipto, perdem os quilombolas suas terras e fontes de água; como, para a expansão da soja transgênica, são inviabilizadas as atividades dos pequenos agricultores orgânicos; como, por causa da produção de energia barata para as multinacionais do alumínio, perdem os pescadores e ribeirinhos do Tocantins sua capacidade de pescar; como, para a produção de petroquímicos, perdem os trabalhadores sua saúde pela contaminação por poluentes orgânicos persistentes (ACSERALD, 2010, p. 111).
Os conflitos mais importantes derivam da relação capital/trabalho, mas a noção de
identidades complexas em codeterminação, como exposto em Moreira (2006) pode
contribuir para sua análise. A identidade social é concebida como algo socialmente
construído, por suas relações tanto com o ambiente físico, onde as pessoas estão
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inseridas (o ecossistema), quanto pela sua relação com o todo que o cerca (sociedade). É
difícil, na análise, separar os fatores internos dos externos, visto que o objeto se
constitui a partir do estabelecimento de uma ordem relacional, local-global. A
complexidade restrita da comunidade16 pode ser representada pela ambiência sócia
ecossistêmica que leva a construção social de um mundo próprio na localidade inserida
numa complexidade ampla: [...] que pode ser revelada na categoria discursiva Nós. A presença discursiva do Nós implica um Outro oculto, subjacente ou imanente. Em uma ordem relacional complexa a categoria discursiva Outro poderia significar, por exemplo, a Sociedade, o Governo, o Ibama, o Incra, a Prefeitura, o Banco, o Mercado, etc. Nesse sentido, o Outro é social e politicamente significante e tende a representar poderes externos, regra geral, hegemônicos e assimétricos em relação aos poderes da comunidade (MOREIRA, 2006, p. 182-83).
A figura do Outro, na perspectiva desse autor, se materializa desde a instalação de
grandes empreendimentos. Este processo é solidificado por discursos hegemônicos,
produzidos a partir de saberes de natureza técnico-científica, considerados imparciais
(portanto, neutros, nada tendo a ver com o conflito antagônico entre capital/trabalho), e
pior, superiores em relação à aqueles elaborados a partir de interesses de grupos locais
opositores à instalação de grandes empresas poluidoras.
Grandes projetos e seus impactos na reprodução social da agricultura familiar e camponesa Dentro do programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento
Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nos
propomos a desenvolver uma pesquisa sobre os possíveis impactos de grandes projetos
industriais no município Anchieta, no sul do estado do Espírito Santo.
O município de Anchieta está localizado na microrregião Metrópole Expandida Sul do
Espírito Santo, mantém-se como um município de pequeno porte populacional, com
23.902 habitantes, sendo 18.161 residentes na área urbana e 5.741 na zona rural,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (censo de 2010). Vale
ressaltar que em 1950 o contingente era de 9.539 habitantes, dos quais 86,5% habitavam
a zona rural.
Conforme o Documento de Referência da Agenda 21 (FUTURA, 2005)17o setor
agropecuário de Anchieta caracteriza-se por ser pequeno e diversificado, com baixo
emprego de tecnologias mais avançadas. Predomina a agricultura familiar em 85% das
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propriedades e o restante é de propriedades médias e grandes, sem constituição de
empresas propriamente ditas.
De acordo com a Agenda XXI do município, alicerçada nos dados disponibilizados pelo
MDA, as propriedades de Anchieta ocupam 39.220,9 hectares ou seja 93,5% do
território. Apesar da predominância da agricultura familiar é preciso destacar que
somente a empresa Samarco Mineração detém 7.846,957 hectares correspondendo a
18,69% do território de Anchieta o que denota um problema de concentração da terra
nas mãos das empresas.
O município de Anchieta passa atualmente por profundas e rápidas transformações, uma
vez que, estão previstas para o município e região vultuosos investimentos nas áreas de
petróleo, siderurgia entre outros. Dados do Instituto Jones do Santos Neves mostram
que a previsão de investimentos até 2014 na área é de aproximadamente 40 bilhões de
reais, sendo 40 % de todo o volume de recursos a serem investidos no Estado do
Espírito Santo até essa data.
O ponto mais delimitado do objeto são os impactos desses grandes projetos, e suas
derivações, na agricultura familiar do município de Anchieta-ES. Tomaremos como
referência a relação cidade x campo, trabalhada por Marx em O Capital (2003). O
estudo se baseará em dados oficiais sobre o projeto de instalação das Usinas de
Pelotização (Relatórios da empresa e os RIMAs, exigência da nova legislação,
elaborados para o processo de licenciamento da Segunda Usina, Terceira Usina e da
Quarta Usina; como também o RIMA da CSU, projeto de siderúrgica com licença
prévia já obtida, a ser instalada próxima à mineradora, atingindo área rural, além de
análise de estudos feitos pelo Instituto Jones do Santos Neves, materiais produzidos
pelas instituições locais e pelo colegiado do território sul - litorâneo e entrevistas e
claro, literatura sobre tema, nas escolhas que começaram a ser delineadas neste
trabalho).
Como já foi apresentado, no momento atual ocorre um boom de “desenvolvimento” no
Espírito Santo, maior do que aquele observado nas décadas dos Grandes Projetos (1970-
1980), desencadeado por importantes investimentos em pesquisa e na exploração de
hidrocarbonetos (petrolífera e gás). A produção de petróleo existe no Norte do Estado
desde as décadas 1970-198018. Hoje sua importância ficou mais elevada dada a
descoberta de jazidas no litoral sul, valorizada por aquelas em águas profundas (pré-sal),
projetando, ainda mais a cidade de Anchieta, que se torna alvo de grandes investimentos.
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A Petrobrás além das plataformas de exploração de hidrocarbonetos no litoral de
Presidente Kennedy e de Anchieta, tem a Estação de Compressão de Gás em Piúma, e já
em operação a UTG - Unidade de Tratamento de Gás, com um gasoduto unindo esta
unidade produtiva às plataformas de exploração de hidrocarbonetos.
Há em estudo de viabilidade econômica, com pesquisas já no local, a instalação de dois
grandes portos, onde já existe o Porto da indústria de pelotização, ou seja, um de
propriedade da Petrobrás, outro de propriedade da Vale. Como condição geral do
empreendimento siderúrgico, de iniciativa também desta empresa, de capital
multinacional, já foi aprovado pelo IBAMA, a construção da Variante Ferroviária
Litorânea Sul, integrada à Ferrovia Centro-Atlântica, cortando 11 municípios da região
(RAUTA RAMOS, 2009, p. 71-73).
Uma série de empresas convergem seus olhares para Anchieta e municípios vizinhos, na
medida em que são atraídos pelos grandes investimentos e por oportunidades de
negócios que surgirão. O processo de metamorfose atinge toda a Microrregião
Metrópole Expandida Sul do Espírito Santo.
Efeitos sociais importantes ocorreram no campo, especialmente na agricultura familiar,
segmento produtivo representativo na estratificação social do município. Esses
importantes empreendimentos produzem uma alteração na relação campo x cidade,
reduzindo a população rural através de um intenso processo de migração, expandindo o
território urbano e elevando o preço dos imóveis.
O discurso ambiental e as lutas sociais na defesa da preservação dos recursos naturais Quando o debate resvala para a questão ambiental, esta principal gargalo destes grandes
projetos, percebe-se um duplo movimento: [...] a incorporação de preocupações ecológicas pela valorização das capacidades adaptativas da técnica e da eficiência industrial, constitutiva da chamada “modernização ecológica19”, pode ser vista como um modo de reação discursiva que preserva a distribuição de poder sobre os recursos ambientais em disputa. A denúncia da prevalência de “desigualdade ambiental”, por outro lado, exemplificará o modo pelo qual movimentos por justiça ambiental problematizam as políticas de alocação socioespacial dos riscos ambientais, procurando retirar poder dos agentes capazes correntemente de transferir os custos ambientais para grupos de menor renda e menos capazes de se fazer ouvir nas esferas de decisão (ACSERALD, 2004, p. 21).
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Analisando o papel que o poder público e o discurso científico no campo dos conflitos
ambientais, Acserald (2004), em diálogo com Fabiani (1989), sustenta que o Estado ao
intervir na luta pela apropriação da base material de recursos, concebe a natureza como
algo estatizado e integrado ao capital, acomodando tanto os agentes que resistem a este
processo quanto os excluídos espacialmente. A ciência tem papel preponderante nesta
concepção, pois, é ela que fornece as bases de legitimidade, fazendo com que as lutas
sociais, envolvendo o meio ambiente, sejam despolitizadas em face da cientificização
das políticas ambientais. Assim é que se processa, muitas vezes, a separação entre
natureza a conservar e natureza aberta aos apetites econômicos.
Processos contra-hegemônicos encontram-se em curso por todo o planeta, sendo
possível vislumbrar alguns avanços, apesar das assimetrias entre os discursos
sustentados pelos grandes empreendimentos e os das organizações sociais que
defendem o meio ambiente. A concepção de justiça ambiental nos ajuda a pensar a
construção de discursos e práticas que se opõem a concepção desenvolvimentista que
alicerça estes grandes empreendimentos. A emergência de movimentos ambientalistas
ou mesmo de movimentos sociais já consolidados, que introduzem em sua luta política
a pauta a questão ambiental - articulados a grupos subalternos, que pretendem representar,
como o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e o MST (Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra) -, pode significar o início de uma mudança paradigmática, na
relação entre organizações sociais, grandes empreendimentos e Estado (ACSERALD, 2010,
p. 106).
Ao considerar-se que a injustiça social e a degradação ambiental têm a mesma raiz,
inscritas na relação capital/trabalho, da qual decorre a concentração e a centralização do
capital. É preciso começar a alterar o modo de distribuição – desigual – do poder sobre
os recursos ambientais, com a organização de uma base social que reduza a capacidade
do grande capital de transferir os custos ambientais do desenvolvimento para os mais
despossuídos, assim também como os efeitos da crise mundial para os países mais
empobrecidos. Esta discussão traz uma triste constatação: os mais ricos conseguiriam
escapar aos riscos e os mais pobres circulariam no interior de um circuito de risco
(ASCERALD, 2010, p. 109), por isto, a discussão sobre os conflitos ambientais está
relacionada aos impactos sociais e econômicos que incidem gravemente sobre as
comunidades locais.
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As estratégias de luta que estão ancoradas na noção de justiça ambiental20 desvelam a
repartição desigual dos riscos ambientais, fazendo com que os mais despossuídos
estejam mais vulneráveis a tais riscos. Para Ascerald: A operação dessa lógica estaria associada ao funcionamento do mercado de terras, cuja “ação de coordenação” faz que práticas danosas se situem em áreas desvalorizadas, assim como à ausência de políticas que limitem a ação desse mercado. Tal segmentação socioterritorial tem se aprofundado com a globalização dos mercados e a abertura comercial – a saber, com a maior liberdade de movimento e deslocalização dos capitais, queda do custo de relocalização e incremento do poder de exercício da chantagem locacional pelos capitais, que podem usar a carência de empregos e de receitas públicas como condição de força para impor práticas poluentes e regressão dos direitos sociais (Acserald, 2010, p. 110).
Os processos aqui retratados são de enorme complexidade e seguem em curso
provocando, tanto nas ciências sociais como nas disciplinas afins, enormes esforços
interpretativos. No campo dos movimentos sociais, onde a luta de fato acontece, uma
série de atores sociais se mobiliza nas comunidades e nestes territórios, que são objeto
destas disputas, construindo diariamente estratégias, promovendo debates e
estabelecendo um contraponto a processos que se apresentam como hegemônicos.
Percebe-se que quanto mais fortes são: as organizações sociais, a politização sobre as
questões ambientais e o controle sobre as políticas, exercida pelos grupos locais, mais
difícil é a apropriação arbitrária da base de recursos territoriais por parte destes grandes
projetos.
Notas 1 Aluno de mestrado do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade-UFRRJ. Email: [email protected] 2 Doutora em Serviço Social, docente aposentada do curso de Serviço Social da UFRJ, pesquisadora independente. Email: [email protected] 3 Rio + 20 realizada na cidade do Rio de Janeiro em junho/2012. 4Termo cunhado na década de 1970 por Maurice Strong na Conferência de Estolcomo na Suécia. Posteriormente, além da preocupação com o meio ambiente foram incorporadas as questões sociais, econômicas, culturais e éticas. Fonte: www.ecodesenvolvimento.org.br. . 5 Frase do Sr. Delfim Netto, Ministro do Planejamento do Governo Figueiredo (1979-1985). 6 É um equívoco associar crescimento econômico a redução das desigualdades sociais, pois, mesmo tendo crescido 7% ao ano nas décadas de 1940-1980, dobrando seu PIB de 10 em 10 anos, o Brasil não conseguiu reduzir as desigualdades sociais como prometido, pois o avanço se deu de maneira socialmente perversa, alimentada por uma profunda desigualdade e pela gestão inflacionária dos conflitos distributivos (SACHS, 2001, p. 75). 7 Ou vendida no mercado internacionalizado. 8 Novas tecnologias de comunicação e informação 9 Pressupõem-se aqui a existência de uma identidade territorial, onde as pessoas que vivem nestes territórios se reconhecem como tal, a partir de suas práticas cotidianas, de seus saberes e de sua relação com o meio.
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10 Na obra de Norbert Elias “Os estabelecidos e os outsiders”, o termo outsider é empregado para designar membros recentes de uma comunidade Inglesa, enquanto os estabelecidos são os moradores mais antigos desta mesma comunidade. Existe uma relação de poder que busca inferiorizar os outsiders em relação aos estabelecidos. Este processo é construído por meio de um conjunto de praticas e discursos que faz com que os inferiorizados se sintam, de fato, inferiores. Nos empreendimentos que examinamos, ocorre o contrário, o outsider, representado pelo empreendimento capitalista, por meio de discursos legitimadores, muitas vezes de cunho científico, desqualifica as práticas e saberes dos “estabelecidos”, especialmente quando estes questionam a lógica de seus projetos, a destruição do meio ambiente e apropriação dos espaços de reprodução da vida social. Aqui ocorre o inverso, a hegemonia é exercida pelo outsider e o estabelecido é que tem que construir estratégias para se contrapor ao poder hegemônico do grande capital. 11 Utilizou-se a noção de Identidade extraída de Moreira, 2006. 12 Colocarmo-nos na visão dos que questionam estes grandes empreendimentos, preocupados coma preservação do meio ambiente, como também da cultura local e o aumento das desigualdades sociais, provocadas pelas metamorfoses sociais, sofridas pelos pequenos espaços quando são submetidos às forças econômicas do grande capital internacionalizado. 13 Ver documento para debate do Instituto Jones dos Santos Neves, responsável pelas pesquisas do Governo do Espírito Santo, intitulado: “Implantação de Projetos de Grande Porte no Espírito Santo: Análise do quadro socioeconômico e territorial na fronteira de expansão Metropolitana Sul Capixaba”-2011e; Rauta Ramos (2009) e (2011); 14 O autor principal deste texto, esteve na Região em fevereiro de 2010, permanecendo quase um mês, acompanhando as mobilizações dos trabalhadores, participando de reuniões com movimentos sociais, CPT, Cáritas, agricultores e com o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Russas-CE. Percebia-se claramente a oposição de interesses: de um lado a agricultura camponesa e familiar e do outro o agronegócio e o DENOCS – Departamento Nacional de Obras Contra a Seca. Devida a pressão popular, o projeto foi suspenso em julho/2011 por ordem do Ministério da Integração Nacional, para sofrer alterações. 15 Ver Zborowski (2008); 16 No texto o autor trabalha a análise sobre comunidades pesqueiras. Queremos aqui produzir certo grau de generalização, entendo que o referencial pode ajudar a explicar cenários em outras comunidades tradicionais. 17 Vale ressaltar que muitas dessas informações a FUTURA usou como fontes o Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (INCAPER), SEBRAE e o IBGE. 18 A exploração em São Mateus no continente e no mar. 19 Designa o processo pelo qual as instituições políticas internalizam preocupações ecológicas no propósito de conciliar o crescimento econômico com a resolução dos problemas ambientais, dando-se ênfase à adaptação tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colaboração e no consenso (ACSERALD, 2010 apud BLOWERS, 1997). 20 Justiça Ambiental enquanto processo de re-significação das questões relacionadas a temática da justiça social. Um processo de re-elaboração que incorpora a temática ambiental ao bojo das questões sociais tradicionais, como por exemplo, o trabalho e a renda (Acserald, 2010, p. 108).
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