territÓrios em disputa: a instalaÇÃo de grandes … · 2012-09-24 · ... redutor das...

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1 TERRITÓRIOS EM DISPUTA: A INSTALAÇÃO DE GRANDES PROJETOS E SUA RELAÇÃO COM A COMUNIDADE LOCAL Leonardo Rauta Martins 1 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFFRJ [email protected] Maria Helena Rauta Ramos 2 Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ [email protected] Resumo O presente texto é fruto das reflexões em torno do deslocamento dos grandes projetos para pequenas e médias cidades na sua relação para com as comunidades locais. Busca-se problematizar os conflitos entre interesses antagônicos (o das empresas e o das comunidades tradicionais) à luz da bibliografia contemporânea e da discussão em torno da relação capital x trabalho, questão de fundo para entender tais movimentos. O texto busca exemplificar várias situações de conflito em torno da apropriação da base de recursos no país, focando numa situação específica objeto de uma pesquisa mais ampla e em curso: “O impacto dos grandes projetos industriais na agricultura familiar e camponesa de Anchieta-ES”. Palavras-chave: Grandes projetos. Identidades locais. Conflito ambiental e relação capital x trabalho. Introdução No exato momento de realização da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável 3 , buscar-se-á a problematização do deslocamento dos grandes empreendimentos (industriais, de infraestrutura ou ligados direta ou indiretamente a estes) de grandes conglomerados urbanos, onde tradicionalmente foram concentrados, para as pequenas e médias cidades e a relação das forças econômicas, sociais e políticas vinculadas a estes, com as forças locais subalternas. Tal descentralização faz parte de uma tendência que tem se manifestado em diversas regiões do país, seja por meio da iniciativa privada, seja pelos investimentos em infraestrutura capitaneados pelo próprio Estado. Neste processo, não é questionada a apropriação privada dos recursos naturais, e os argumentos para instalação desses grandes investimentos se referem às oportunidades de trabalho e à melhoria das condições de vida de população local, onde será instalado o empreendimento. Na verdade processos que não ocorrem. De fato, há um grande deslocamento de trabalhadores para a região, na fase de construção das instalações, contingente que não é absorvido quando a empresa entra em operação; o que propicia o rebaixamento das

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TERRITÓRIOS EM DISPUTA: A INSTALAÇÃO DE GRANDES PROJETOS E SUA RELAÇÃO COM A COMUNIDADE LOCAL

Leonardo Rauta Martins1 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFFRJ

[email protected]

Maria Helena Rauta Ramos2 Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

[email protected]

Resumo O presente texto é fruto das reflexões em torno do deslocamento dos grandes projetos para pequenas e médias cidades na sua relação para com as comunidades locais. Busca-se problematizar os conflitos entre interesses antagônicos (o das empresas e o das comunidades tradicionais) à luz da bibliografia contemporânea e da discussão em torno da relação capital x trabalho, questão de fundo para entender tais movimentos. O texto busca exemplificar várias situações de conflito em torno da apropriação da base de recursos no país, focando numa situação específica objeto de uma pesquisa mais ampla e em curso: “O impacto dos grandes projetos industriais na agricultura familiar e camponesa de Anchieta-ES”. Palavras-chave: Grandes projetos. Identidades locais. Conflito ambiental e relação capital x trabalho. Introdução No exato momento de realização da Conferência das Nações Unidas sobre

Desenvolvimento Sustentável3, buscar-se-á a problematização do deslocamento dos

grandes empreendimentos (industriais, de infraestrutura ou ligados direta ou

indiretamente a estes) de grandes conglomerados urbanos, onde tradicionalmente foram

concentrados, para as pequenas e médias cidades e a relação das forças econômicas,

sociais e políticas vinculadas a estes, com as forças locais subalternas.

Tal descentralização faz parte de uma tendência que tem se manifestado em diversas

regiões do país, seja por meio da iniciativa privada, seja pelos investimentos em

infraestrutura capitaneados pelo próprio Estado. Neste processo, não é questionada a

apropriação privada dos recursos naturais, e os argumentos para instalação desses

grandes investimentos se referem às oportunidades de trabalho e à melhoria das

condições de vida de população local, onde será instalado o empreendimento. Na

verdade processos que não ocorrem. De fato, há um grande deslocamento de

trabalhadores para a região, na fase de construção das instalações, contingente que não é

absorvido quando a empresa entra em operação; o que propicia o rebaixamento das

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condições de vida, por falta de infraestrutura urbana, bem como dos equipamentos e

serviços públicos.

A noção de Desenvolvimento Sustentável é relativamente recente, e remonta a meados

da década de 1960, quando se iniciaram, no âmbito da comunidade internacional, as

preocupações com a preservação do meio ambiente. Na ocasião o termo utilizado era

ecodesenvolvimento4 e as discussões gravitavam em torno da necessidade de se

construir um novo modelo de desenvolvimento, que pudesse romper com o hegemônico

paradigma desenvolvimentista (HESPANHOL, 2007, p. 180), que entendia o

desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico, visão que passou a ser

questionada a partir desses debates, culminando com as conferências da ONU de

Estolcomo na Suécia e as duas edições do Rio de Janeiro no Brasil, para citar os

momentos mais emblemáticos destas discussões.

O desenvolvimento econômico, redutor das desigualdades sociais? O discurso em prol do desenvolvimento econômico nunca deixou de ser atual; e no

Brasil eternizou-se pela célebre frase “crescer o bolo para depois dividir5”, ganhando

ainda mais força no cenário de crise econômica mundial, desencadeada nos Estados

Unidos, na sua atual manifestação, em 2008, e a partir de 2009 se reproduz na Europa,

com consequências distintas para todas as nações. A defesa desta tese, parte do

pressuposto de que o progresso científico e tecnológico é capaz de garantir a

continuidade do progresso material das sociedades humanas indefinidamente

(HESPANHOL, 2007, p. 181 apud SACHS, 2002, p. 51).

Portanto, prevalece a ideia de que é necessário fazer os países crescerem

economicamente, especialmente aqueles classificados como em vias de

desenvolvimento e subdesenvolvidos, apesar do impulso que o debate relacionado às

questões do meio ambiente obteve nas últimas décadas, seja pela multiplicação das

pesquisas cientificas em torno da questão, seja pelo engajamento de parcelas

significativas da sociedade brasileira em debates e das lutas sociais pela preservação do

meio ambiente.

O Brasil ingressou no desenvolvimento capitalista tardiamente e de forma subordinada,

como fornecedor de matérias primas. Nesse sentido, sua história econômica é explicada

através de ciclos, segundo a matéria prima exportada: ciclo do pau-brasil, ciclo da

mineração, ciclo da cana de açúcar, ciclo do café. Dessa última fase, com a crise do

3

café, adentrou na era da indústria, impulsionado especialmente pela Segunda Grande

Guerra, período chamado por Conceição Tavares de “Substituição de importações”.

Uma etapa mais recente, conhecida como dos Grandes Projetos, marcada especialmente

nas décadas de 1970 e 1980, auge do regime militar, internacionalizou a economia do

Brasil, submetendo, quase que de forma definitiva, o país ao império das grandes

empresas multinacionais6, processo complementado no período FHC e mais

recentemente nos dois mandatos do presidente Lula.

O novo boom de desenvolvimento do capital se instaura no país, a partir do segundo

mandato do presidente Lula (PT). Apoiado no argumento de promover o crescimento

econômico do Brasil vem, realizando com o PAC (Programa de Aceleração do

Crescimento), grandes investimentos em infraestrutura por todo país, interligando-o

através de condições gerais da produção (meios de comunicação e transporte) aos

demais países da América Latina. Este programa explicita como objetivo: “promover a

aceleração do crescimento econômico; o aumento do emprego e; a melhoria das

condições de vida da população brasileira” (FERREIRA, 2011, p. 210-11). É sob esta

argumentação (utilizada tanto pelo governo quanto pela iniciativa privada), que

empreendimentos controversos vêm se instalando nas mais diferentes regiões do país.

Tais processos não ocorrem de forma espontânea, pela simples atuação do mercado, ou

decidido em audiências públicas, como querem nos fazer acreditar. As decisões sobre

estes grandes projetos ocorrem em espaços comandados pele grande capital, com

anuência dos Estados nacionais, que assegura as condições de instalação das grandes

empresas de capital internacional. Para atração destes investimentos, se dispõem à

renúncia fiscal e mesmo a criação de todas as instalações de infraestrutura urbanas

necessárias ao funcionamento do empreendimento. O quesito mão-de-obra fica a cargo

da própria imprensa, em geral entusiasta da causa, e que veicula em letras garrafais as

oportunidades de emprego muito antes delas se materializarem, atraindo enormes

contingentes de trabalhadores, na fase de construção, em sua maioria com baixa

qualificação, e que irão compor, segundo a teoria marxiana, a superpopulação relativa

ou o exército industrial de reserva (RAUTA RAMOS, 2011, p. 13).

Para sua implementação, os empreendimentos necessitam da instalação das condições

gerais da produção capitalista, como também da posse e o domínio da terra que, no caso

estudado, podem representar uma importante metamorfose no território objeto da

instalação.

4

Moreira (1995) explica, primeiramente, a forma como se deu o processo de

transformação da terra em mercadoria, nos mostrando por meio da discussão sobre

renda da terra, competição intercapitalista e apropriação do conhecimento sobre a

natureza, o processo de territorialização do grande capital. Partindo da análise sobre a

renda da terra, realizada por autores clássicos como Smith, Ricardo e Marx, afirma que

a renda da natureza só pode ser realmente compreendida quando levamos em

consideração a apropriação do conhecimento sobre a natureza. Na sua interpretação não

é possível entender “fertilidade e localização”, atributos valorativos, como algo natural

da terra, é preciso entendê-la como “naturalidade” de uma sociabilidade capitalista. Ou

seja, é o trabalho social incorporado na terra que torna essa mesma terra uma

mercadoria, portanto, com valor de troca.

Desta forma, o valor de troca da terra depende da forma como a mesma se insere no

processo de mercantilização. Para o autor, os atributos “fertilidade” e “localização”,

como determinações naturais, podem ser totalmente relativizados; pois, a fertilidade é

algo possível de manipulação, com o uso das tecnologias disponíveis; e que a

localização depende de quais mercados estamos falando e de quais empreendimentos

podem ser instalados nessas mesmas terras.

Neste texto, a referência a terra engloba tanto terras produtivas, ligadas a produção

agrícola, quanto as improdutivas conservadas para a especulação. Neste sentido, como

pontua Moreira (1995) a valorização das terras se dá por fatores externos aos gastos de

seu proprietário e ao trabalho aplicado diretamente na terra. Este dispêndio social

(abertura e calçamento de estradas, instalação de rede elétrica, rede de água e de esgoto,

cabos de telefonia e internet) se objetiva nas terras, de propriedade particular,

valorizando-as. O simples fato de ser proprietário de parcelas do solo possibilita, ao

indivíduo ou a empresa capitalista, obter ganhos de forma gratuita, constituindo uma

apropriação privada em relação ao conjunto da sociedade. Com esse capital público

realizado sobre o solo, antecipando e acompanhando os investimentos do capital

privado, atrai um conjunto de empresas para a localidade do grande empreendimento

capitalista. É por esta razão que quando se anuncia estes empreendimentos percebe-se o

aquecimento do mercado de terras, com crescimento da especulação imobiliária.

Apropriar-se da terra, ou obter concessão para explorar o subsolo, torna-se um passo

importante para apropriar-se da renda da natureza, isto porque, a terra (incluindo o

subsolo) constitui uma reserva de possibilidades para ser acessada7 com os recursos

5

fornecidos pelas inovações tecnológicas, lhe implicando um ou outro uso futuro,

especialmente se levarmos em consideração este contexto onde as novas descobertas

tecnológicas, com destaque para aquelas ligadas à biotecnologia e NTICs8 (LOJKINE,

1995), que impactam decisivamente a exploração dos recursos nos territórios.

O investimento de capital em terras, sejam produtivas ou improdutivas, significa a

territorialização do capital, próprio da lógica capitalista. Nesse sentido, como parceiro

privilegiado do grande capital, o Estado concede incentivos fiscais para fomentar o

processo de territorialização do capital, como ocorrido na região amazônica. Moreira

inda nos alerta que as lutas travadas pelos povos da região, em torno da apropriação da

terra e da natureza, não estão descolados do processo de territorialização do capital

nesta região (MOREIRA, 1995, p. 105)

O campo dos conflitos: disputas por legitimação e pela base de recursos nos territórios Nas comunidades tradicionais existe uma série de sujeitos, vivendo a seu modo, fazendo

uso da terra, da natureza e estabelecendo relações de reciprocidade entre si. Os sujeitos

que se localizam neste território9, em geral, tem consciência de si e dos que estão a sua

volta e neste sentido, desenvolvem suas ações no limite desta acomodação de forças e

dos recursos nele existentes. Quando ocorre a introdução de um outsider10 neste espaço,

tem-se início um processo de tensionamento que, geralmente, resvala para uma situação

de conflito. Não é possível dizer que as identidades 11 existentes num território sejam

forjadas numa bolha, voltadas si mesmas. Ao contrário, reconhece-se que cada

identidade é expressão de múltiplas ordens relacionais que se dão em redes sociais,

materiais e afetivas de pertencimento familiar, de classes, regionais, nacionais e

internacionais, em resumo, locais e globais (MOREIRA, 2006, p. 178). Mesmo assim,

temos aí um elemento que causa evidente tensão12 quando identidades sociais -

existentes num determinado território, como os agricultores familiares e os pescadores

artesanais, as comunidades tradicionais (como ribeirinhas, quilombolas e indígenas),

fazendo uso do território e de seus recursos, há gerações -, são confrontadas com um

novo e potente agente econômico que, por sua própria existência, pode alterar todo um

cenário e destruir as identidades sociais pré-estabelecidas.

Conflitos desta natureza podem ser observados de norte a sul do país, tendo como casos

mais emblemáticos e atuais:

6

- a construção da usina de Belo Monte em Altamira no Pará, uma obra de

infraestrutura energética que atinge diretamente territórios indígenas que possuem valor

simbólico e se constitui fonte de recursos naturais;

- a transposição do Rio São Francisco que, na visão dos diferentes movimentos

sociais que atuam na área, tem por função levar água para grandes agricultores da região

(FERREIRA, 2011, p. 212-13);

- os investimentos em infraestrutura viária e portuária, matriz energética,

siderurgia, exploração de hidrocarbonetos que atingem todo o sul do Espírito Santo13;

- a construção de canais de irrigação nas imediações da Chapada do Apodi, na

divisa entre Ceará e Rio Grande do Norte e o reassentamento de centenas de famílias,

com a função clara de beneficiar os grandes proprietários exportadores que tem suas

fazendas localizadas na região. Importante destacar que a Chapada do Apodi é

conhecida pelo alto grau de poluição derivado uso de agrotóxicos, sendo que algumas

comunidades rurais situadas no entorno têm que fazer uso da água por meio de

caminhões-pipa, dado o grau irreversível de contaminação de alguns mananciais14;

- a instalação da Companhia Siderúrgica do Atlântico (ThyssenKrupp CSA) no

Rio de Janeiro seguida por diversos conflitos com a comunidade local, especialmente

com os pescadores no entorno da Baía de Sepetiba15.

Exemplos não faltam, e o que se percebe de comum a todos esses processos é a

existência de uma comunidade local, que sofre importantes impactos com a introdução

de uma força externa (ou seja, uma empresa capitalista internacionalizada), apoiada por

forças políticas locais, processo do qual resulta uma disputa em torno da apropriação e

do uso dos recursos do território. Como para a expansão da monocultura do eucalipto, perdem os quilombolas suas terras e fontes de água; como, para a expansão da soja transgênica, são inviabilizadas as atividades dos pequenos agricultores orgânicos; como, por causa da produção de energia barata para as multinacionais do alumínio, perdem os pescadores e ribeirinhos do Tocantins sua capacidade de pescar; como, para a produção de petroquímicos, perdem os trabalhadores sua saúde pela contaminação por poluentes orgânicos persistentes (ACSERALD, 2010, p. 111).

Os conflitos mais importantes derivam da relação capital/trabalho, mas a noção de

identidades complexas em codeterminação, como exposto em Moreira (2006) pode

contribuir para sua análise. A identidade social é concebida como algo socialmente

construído, por suas relações tanto com o ambiente físico, onde as pessoas estão

7

inseridas (o ecossistema), quanto pela sua relação com o todo que o cerca (sociedade). É

difícil, na análise, separar os fatores internos dos externos, visto que o objeto se

constitui a partir do estabelecimento de uma ordem relacional, local-global. A

complexidade restrita da comunidade16 pode ser representada pela ambiência sócia

ecossistêmica que leva a construção social de um mundo próprio na localidade inserida

numa complexidade ampla: [...] que pode ser revelada na categoria discursiva Nós. A presença discursiva do Nós implica um Outro oculto, subjacente ou imanente. Em uma ordem relacional complexa a categoria discursiva Outro poderia significar, por exemplo, a Sociedade, o Governo, o Ibama, o Incra, a Prefeitura, o Banco, o Mercado, etc. Nesse sentido, o Outro é social e politicamente significante e tende a representar poderes externos, regra geral, hegemônicos e assimétricos em relação aos poderes da comunidade (MOREIRA, 2006, p. 182-83).

A figura do Outro, na perspectiva desse autor, se materializa desde a instalação de

grandes empreendimentos. Este processo é solidificado por discursos hegemônicos,

produzidos a partir de saberes de natureza técnico-científica, considerados imparciais

(portanto, neutros, nada tendo a ver com o conflito antagônico entre capital/trabalho), e

pior, superiores em relação à aqueles elaborados a partir de interesses de grupos locais

opositores à instalação de grandes empresas poluidoras.

Grandes projetos e seus impactos na reprodução social da agricultura familiar e camponesa Dentro do programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento

Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nos

propomos a desenvolver uma pesquisa sobre os possíveis impactos de grandes projetos

industriais no município Anchieta, no sul do estado do Espírito Santo.

O município de Anchieta está localizado na microrregião Metrópole Expandida Sul do

Espírito Santo, mantém-se como um município de pequeno porte populacional, com

23.902 habitantes, sendo 18.161 residentes na área urbana e 5.741 na zona rural,

segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (censo de 2010). Vale

ressaltar que em 1950 o contingente era de 9.539 habitantes, dos quais 86,5% habitavam

a zona rural.

Conforme o Documento de Referência da Agenda 21 (FUTURA, 2005)17o setor

agropecuário de Anchieta caracteriza-se por ser pequeno e diversificado, com baixo

emprego de tecnologias mais avançadas. Predomina a agricultura familiar em 85% das

8

propriedades e o restante é de propriedades médias e grandes, sem constituição de

empresas propriamente ditas.

De acordo com a Agenda XXI do município, alicerçada nos dados disponibilizados pelo

MDA, as propriedades de Anchieta ocupam 39.220,9 hectares ou seja 93,5% do

território. Apesar da predominância da agricultura familiar é preciso destacar que

somente a empresa Samarco Mineração detém 7.846,957 hectares correspondendo a

18,69% do território de Anchieta o que denota um problema de concentração da terra

nas mãos das empresas.

O município de Anchieta passa atualmente por profundas e rápidas transformações, uma

vez que, estão previstas para o município e região vultuosos investimentos nas áreas de

petróleo, siderurgia entre outros. Dados do Instituto Jones do Santos Neves mostram

que a previsão de investimentos até 2014 na área é de aproximadamente 40 bilhões de

reais, sendo 40 % de todo o volume de recursos a serem investidos no Estado do

Espírito Santo até essa data.

O ponto mais delimitado do objeto são os impactos desses grandes projetos, e suas

derivações, na agricultura familiar do município de Anchieta-ES. Tomaremos como

referência a relação cidade x campo, trabalhada por Marx em O Capital (2003). O

estudo se baseará em dados oficiais sobre o projeto de instalação das Usinas de

Pelotização (Relatórios da empresa e os RIMAs, exigência da nova legislação,

elaborados para o processo de licenciamento da Segunda Usina, Terceira Usina e da

Quarta Usina; como também o RIMA da CSU, projeto de siderúrgica com licença

prévia já obtida, a ser instalada próxima à mineradora, atingindo área rural, além de

análise de estudos feitos pelo Instituto Jones do Santos Neves, materiais produzidos

pelas instituições locais e pelo colegiado do território sul - litorâneo e entrevistas e

claro, literatura sobre tema, nas escolhas que começaram a ser delineadas neste

trabalho).

Como já foi apresentado, no momento atual ocorre um boom de “desenvolvimento” no

Espírito Santo, maior do que aquele observado nas décadas dos Grandes Projetos (1970-

1980), desencadeado por importantes investimentos em pesquisa e na exploração de

hidrocarbonetos (petrolífera e gás). A produção de petróleo existe no Norte do Estado

desde as décadas 1970-198018. Hoje sua importância ficou mais elevada dada a

descoberta de jazidas no litoral sul, valorizada por aquelas em águas profundas (pré-sal),

projetando, ainda mais a cidade de Anchieta, que se torna alvo de grandes investimentos.

9

A Petrobrás além das plataformas de exploração de hidrocarbonetos no litoral de

Presidente Kennedy e de Anchieta, tem a Estação de Compressão de Gás em Piúma, e já

em operação a UTG - Unidade de Tratamento de Gás, com um gasoduto unindo esta

unidade produtiva às plataformas de exploração de hidrocarbonetos.

Há em estudo de viabilidade econômica, com pesquisas já no local, a instalação de dois

grandes portos, onde já existe o Porto da indústria de pelotização, ou seja, um de

propriedade da Petrobrás, outro de propriedade da Vale. Como condição geral do

empreendimento siderúrgico, de iniciativa também desta empresa, de capital

multinacional, já foi aprovado pelo IBAMA, a construção da Variante Ferroviária

Litorânea Sul, integrada à Ferrovia Centro-Atlântica, cortando 11 municípios da região

(RAUTA RAMOS, 2009, p. 71-73).

Uma série de empresas convergem seus olhares para Anchieta e municípios vizinhos, na

medida em que são atraídos pelos grandes investimentos e por oportunidades de

negócios que surgirão. O processo de metamorfose atinge toda a Microrregião

Metrópole Expandida Sul do Espírito Santo.

Efeitos sociais importantes ocorreram no campo, especialmente na agricultura familiar,

segmento produtivo representativo na estratificação social do município. Esses

importantes empreendimentos produzem uma alteração na relação campo x cidade,

reduzindo a população rural através de um intenso processo de migração, expandindo o

território urbano e elevando o preço dos imóveis.

O discurso ambiental e as lutas sociais na defesa da preservação dos recursos naturais Quando o debate resvala para a questão ambiental, esta principal gargalo destes grandes

projetos, percebe-se um duplo movimento: [...] a incorporação de preocupações ecológicas pela valorização das capacidades adaptativas da técnica e da eficiência industrial, constitutiva da chamada “modernização ecológica19”, pode ser vista como um modo de reação discursiva que preserva a distribuição de poder sobre os recursos ambientais em disputa. A denúncia da prevalência de “desigualdade ambiental”, por outro lado, exemplificará o modo pelo qual movimentos por justiça ambiental problematizam as políticas de alocação socioespacial dos riscos ambientais, procurando retirar poder dos agentes capazes correntemente de transferir os custos ambientais para grupos de menor renda e menos capazes de se fazer ouvir nas esferas de decisão (ACSERALD, 2004, p. 21).

10

Analisando o papel que o poder público e o discurso científico no campo dos conflitos

ambientais, Acserald (2004), em diálogo com Fabiani (1989), sustenta que o Estado ao

intervir na luta pela apropriação da base material de recursos, concebe a natureza como

algo estatizado e integrado ao capital, acomodando tanto os agentes que resistem a este

processo quanto os excluídos espacialmente. A ciência tem papel preponderante nesta

concepção, pois, é ela que fornece as bases de legitimidade, fazendo com que as lutas

sociais, envolvendo o meio ambiente, sejam despolitizadas em face da cientificização

das políticas ambientais. Assim é que se processa, muitas vezes, a separação entre

natureza a conservar e natureza aberta aos apetites econômicos.

Processos contra-hegemônicos encontram-se em curso por todo o planeta, sendo

possível vislumbrar alguns avanços, apesar das assimetrias entre os discursos

sustentados pelos grandes empreendimentos e os das organizações sociais que

defendem o meio ambiente. A concepção de justiça ambiental nos ajuda a pensar a

construção de discursos e práticas que se opõem a concepção desenvolvimentista que

alicerça estes grandes empreendimentos. A emergência de movimentos ambientalistas

ou mesmo de movimentos sociais já consolidados, que introduzem em sua luta política

a pauta a questão ambiental - articulados a grupos subalternos, que pretendem representar,

como o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e o MST (Movimento dos

Trabalhadores Sem-Terra) -, pode significar o início de uma mudança paradigmática, na

relação entre organizações sociais, grandes empreendimentos e Estado (ACSERALD, 2010,

p. 106).

Ao considerar-se que a injustiça social e a degradação ambiental têm a mesma raiz,

inscritas na relação capital/trabalho, da qual decorre a concentração e a centralização do

capital. É preciso começar a alterar o modo de distribuição – desigual – do poder sobre

os recursos ambientais, com a organização de uma base social que reduza a capacidade

do grande capital de transferir os custos ambientais do desenvolvimento para os mais

despossuídos, assim também como os efeitos da crise mundial para os países mais

empobrecidos. Esta discussão traz uma triste constatação: os mais ricos conseguiriam

escapar aos riscos e os mais pobres circulariam no interior de um circuito de risco

(ASCERALD, 2010, p. 109), por isto, a discussão sobre os conflitos ambientais está

relacionada aos impactos sociais e econômicos que incidem gravemente sobre as

comunidades locais.

11

As estratégias de luta que estão ancoradas na noção de justiça ambiental20 desvelam a

repartição desigual dos riscos ambientais, fazendo com que os mais despossuídos

estejam mais vulneráveis a tais riscos. Para Ascerald: A operação dessa lógica estaria associada ao funcionamento do mercado de terras, cuja “ação de coordenação” faz que práticas danosas se situem em áreas desvalorizadas, assim como à ausência de políticas que limitem a ação desse mercado. Tal segmentação socioterritorial tem se aprofundado com a globalização dos mercados e a abertura comercial – a saber, com a maior liberdade de movimento e deslocalização dos capitais, queda do custo de relocalização e incremento do poder de exercício da chantagem locacional pelos capitais, que podem usar a carência de empregos e de receitas públicas como condição de força para impor práticas poluentes e regressão dos direitos sociais (Acserald, 2010, p. 110).

Os processos aqui retratados são de enorme complexidade e seguem em curso

provocando, tanto nas ciências sociais como nas disciplinas afins, enormes esforços

interpretativos. No campo dos movimentos sociais, onde a luta de fato acontece, uma

série de atores sociais se mobiliza nas comunidades e nestes territórios, que são objeto

destas disputas, construindo diariamente estratégias, promovendo debates e

estabelecendo um contraponto a processos que se apresentam como hegemônicos.

Percebe-se que quanto mais fortes são: as organizações sociais, a politização sobre as

questões ambientais e o controle sobre as políticas, exercida pelos grupos locais, mais

difícil é a apropriação arbitrária da base de recursos territoriais por parte destes grandes

projetos.

Notas 1 Aluno de mestrado do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade-UFRRJ. Email: [email protected] 2 Doutora em Serviço Social, docente aposentada do curso de Serviço Social da UFRJ, pesquisadora independente. Email: [email protected] 3 Rio + 20 realizada na cidade do Rio de Janeiro em junho/2012. 4Termo cunhado na década de 1970 por Maurice Strong na Conferência de Estolcomo na Suécia. Posteriormente, além da preocupação com o meio ambiente foram incorporadas as questões sociais, econômicas, culturais e éticas. Fonte: www.ecodesenvolvimento.org.br. . 5 Frase do Sr. Delfim Netto, Ministro do Planejamento do Governo Figueiredo (1979-1985). 6 É um equívoco associar crescimento econômico a redução das desigualdades sociais, pois, mesmo tendo crescido 7% ao ano nas décadas de 1940-1980, dobrando seu PIB de 10 em 10 anos, o Brasil não conseguiu reduzir as desigualdades sociais como prometido, pois o avanço se deu de maneira socialmente perversa, alimentada por uma profunda desigualdade e pela gestão inflacionária dos conflitos distributivos (SACHS, 2001, p. 75). 7 Ou vendida no mercado internacionalizado. 8 Novas tecnologias de comunicação e informação 9 Pressupõem-se aqui a existência de uma identidade territorial, onde as pessoas que vivem nestes territórios se reconhecem como tal, a partir de suas práticas cotidianas, de seus saberes e de sua relação com o meio.

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10 Na obra de Norbert Elias “Os estabelecidos e os outsiders”, o termo outsider é empregado para designar membros recentes de uma comunidade Inglesa, enquanto os estabelecidos são os moradores mais antigos desta mesma comunidade. Existe uma relação de poder que busca inferiorizar os outsiders em relação aos estabelecidos. Este processo é construído por meio de um conjunto de praticas e discursos que faz com que os inferiorizados se sintam, de fato, inferiores. Nos empreendimentos que examinamos, ocorre o contrário, o outsider, representado pelo empreendimento capitalista, por meio de discursos legitimadores, muitas vezes de cunho científico, desqualifica as práticas e saberes dos “estabelecidos”, especialmente quando estes questionam a lógica de seus projetos, a destruição do meio ambiente e apropriação dos espaços de reprodução da vida social. Aqui ocorre o inverso, a hegemonia é exercida pelo outsider e o estabelecido é que tem que construir estratégias para se contrapor ao poder hegemônico do grande capital. 11 Utilizou-se a noção de Identidade extraída de Moreira, 2006. 12 Colocarmo-nos na visão dos que questionam estes grandes empreendimentos, preocupados coma preservação do meio ambiente, como também da cultura local e o aumento das desigualdades sociais, provocadas pelas metamorfoses sociais, sofridas pelos pequenos espaços quando são submetidos às forças econômicas do grande capital internacionalizado. 13 Ver documento para debate do Instituto Jones dos Santos Neves, responsável pelas pesquisas do Governo do Espírito Santo, intitulado: “Implantação de Projetos de Grande Porte no Espírito Santo: Análise do quadro socioeconômico e territorial na fronteira de expansão Metropolitana Sul Capixaba”-2011e; Rauta Ramos (2009) e (2011); 14 O autor principal deste texto, esteve na Região em fevereiro de 2010, permanecendo quase um mês, acompanhando as mobilizações dos trabalhadores, participando de reuniões com movimentos sociais, CPT, Cáritas, agricultores e com o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Russas-CE. Percebia-se claramente a oposição de interesses: de um lado a agricultura camponesa e familiar e do outro o agronegócio e o DENOCS – Departamento Nacional de Obras Contra a Seca. Devida a pressão popular, o projeto foi suspenso em julho/2011 por ordem do Ministério da Integração Nacional, para sofrer alterações. 15 Ver Zborowski (2008); 16 No texto o autor trabalha a análise sobre comunidades pesqueiras. Queremos aqui produzir certo grau de generalização, entendo que o referencial pode ajudar a explicar cenários em outras comunidades tradicionais. 17 Vale ressaltar que muitas dessas informações a FUTURA usou como fontes o Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (INCAPER), SEBRAE e o IBGE. 18 A exploração em São Mateus no continente e no mar. 19 Designa o processo pelo qual as instituições políticas internalizam preocupações ecológicas no propósito de conciliar o crescimento econômico com a resolução dos problemas ambientais, dando-se ênfase à adaptação tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colaboração e no consenso (ACSERALD, 2010 apud BLOWERS, 1997). 20 Justiça Ambiental enquanto processo de re-significação das questões relacionadas a temática da justiça social. Um processo de re-elaboração que incorpora a temática ambiental ao bojo das questões sociais tradicionais, como por exemplo, o trabalho e a renda (Acserald, 2010, p. 108).

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