territórios da clinica
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Territórios da clínica: Redução de Danos e os novos percursos éticos para
a clínica das drogas
Capítulo de livro – Conexões: Saúde Coletiva e Políticas da Subjetividade.
(Orgs.): Sérgio Resende Carvalho; Sabrina Ferigato e Maria Elisabeth de Barros.
Ed. Hucitec. 2009 - pp.141-156.
Silvia Tedesco1
Tadeu de Paula Souza2
Este trabalho pretende realizar um breve mapeamento do processo de
reformulação proposto à clínica das condutas aditivas no Brasil. Trata-se da
implementação de políticas públicas dirigidas à migração da Redução de Danos
(RD), estratégia de prevenção as DST/AIDS, para o campo de tratamento das
drogas. Como é assinalado no projeto do Ministério da Saúde:
A ação de Redução de danos, mesmo dando prioridade à prevenção e ao diagnóstico de HIV, [...] deram visibilidade aos usuários de drogas no SUS. Hoje se configura, diante do atual cenário, a necessidade de sua expansão de forma a contemplar os estilos de vida dos diferentes usuários de álcool e outras drogas, lidando com situações complexas e configurando-se num campo de ações transversais e multisetoriais, que misture enfoques e abordagens variadas, ou seja, que resgate sua dimensão de promoção à saúde.” (Brasil, 2003,p.32)
Observamos na citação acima a indicação para expansão da RD a fim de
promover mudanças na abordagem clínica dirigida ao usuário de drogas em
geral. O Ministério da Saúde, no início de 2003, definiu como uma de suas
metas a construção da Política de Atenção Integral de Álcool e Outras Drogas
(BRASIL, 2003). Decidia-se assim por uma guinada no modo como o tema das
drogas era abordado e que o problema das drogas devia ser tratado por uma
política pública de saúde. O nome da política proposta indicava uma decisão de
1 Professora Doutora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense 2 Mestre em Psicologia pela Pós-Graduação Estudos da Subjetividade do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense
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tratar o problema comprometendo-se com a atenção integral e com a amplitude
do tema das drogas no contemporâneo, escapando da oposição entre lícito e
ilícito, permitido e proibido. Com isto quis-se afirmar a inseparabilidade entre
prevenção, promoção, tratamento, reabilitação e produção de saúde. Para
enfrentar tal tarefa constituiu-se um grupo de trabalho de composição multi-
setorial no Ministério da Saúde que indicava a opção de tomar o tema das
drogas em sua complexidade, interesse social e transversalidade. No
documento produzido por este grupi de trabalho, afirmava-se a aposta na
abordagem ao problema do uso abusivo de álcool e outras drogas a partir da
Redução de Danos (RD), entendida como método clínico-político e paradigma
norteador desta política de saúde pública (Souza e Passos, 2009). A relevância
desta iniciativa reside na aposta de que a RD poderia produzir um desvio do
olhar moralizante, frequentemente presente nos discursos e práticas clínicas
dirigidas aos usuários de drogas. Detalhemos um pouco melhor esta colocação.
Entretanto, antes deste cenário macropolítico estávamos de frente a
duas modalidades de práticas de saúde com diferentes encaminhamentos. As
estratégias de Redução de Danos implementadas pela política de AIDS visavam
intervir sobre a incidência do HIV/AIDS, sem ter por preocupação direta o
tratamento do uso indevido de drogas. Já o tratamento para o uso das drogas,
tal como é entendido tradicionalmente, teria por objetivo principal intervir no uso
da droga, reduzindo-o ou eliminando-o, dentro de uma perspectiva moralizante
da abstinência. Trata-se de duas posturas distintas sobre a abordagem da droga
e de seu usuário. Na perspectiva da RD, a droga faz parte do contexto geral
sobre o qual a prática de saúde incide. Na outra, no tratamento das drogas, é
exatamente a droga e seu uso indevido, a principal questão. Ambas dirigem-se
aos usuários de drogas, porém existem diferenças que devem ser demarcadas.
Consequentemente, a ingênua importação direta e simples da RD para o
domínio do tratamento do uso indevido de drogas seria insuficiente e inoperante
e, portanto, perigosa, podendo invalidar uma iniciativa de peso (Tedesco &
Mattos, 2005).
É justamente aí, na diferença de focos e objetivos, que a política de
transposição precisa incidir. A RD vem convocar a clínica das drogas a rever seu
posicionamento, a repensar sua prática. Neste sentido, a RD não deve funcionar
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como um código fechado, a ser obedecido em sua íntegra, mas como outro
olhar sobre a problemática das drogas, que vem oxigenar as práticas clínicas.
Ótica que nos oferece novos matizes do problema em questão. Em suma, não
se trata de fidelidade a um modelo fixo e absoluto, mas sim da abertura à
pluralização de pontos de vista. O ganho maior está em entender o processo de
transposição como uma experiência de contágio, de sensibilização por outros
olhares sobre a droga e, principalmente, sobre o usuário, sujeito de nossa
prática.
Em linhas gerais, a questão que se coloca à clínica e que neste texto
tentaremos refletir seria: se a clínica visa intervir na relação entre usuário e
droga e a RD propõe práticas onde a droga está fora do foco principal, como
praticar essa nova clínica das drogas, como deslocar o foco da droga, sem que
isto não implique perda do objeto clínico por excelência.
É este o sentido que é preciso imprimir ao movimento de migração da
RD para o campo da clínica: como um desafio que nos convoca a um só tempo
à reflexão cuidadosa e ao exercício constante de criação em nossa prática
clínica a fim de maximizar os efeitos potencializadores deste contato entre esses
dois universos distintos de práticas.
Cabe fazer notar que este processo ainda se encontra em curso, de
modo que nosso trabalho consiste no acompanhamento de um processo vivo,
ou seja, analisamos o processo no momento mesmo em que se realiza. De um
lado, a desvantagem do ineditismo constante, do impacto de lidar com o
desconhecido, e de outro a vantagem de conviver mais intimamente com a
implantação da proposta, ainda em vias de realização, e de poder elaborar
intervenções reguladoras do processo em andamento.
Assim, acreditamos ampliar o espaço de discussão, convidando a
comunidade científica e clínica à reflexão sobre as implicações do projeto.
Caberá aqui avaliação dos avanços que este movimento representa para a
clínica das drogas tanto quanto o reconhecimento dos desafios a que somos
convocados e que nos lembram do compromisso ético de manter em constante
análise nossas práticas acadêmico-profissionais. Vejamos alguns efeitos desta
parceria.
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A perspectiva da RD anuncia uma importante mudança de direção para
clínica das drogas, até então, absorvida pela Política anti-drogas em vigor no
Brasil. Para melhor entender a oxigenação operada pela Redução de Danos
faremos um breve exposição das características da clínica operada pela Política
anti-drogas.
A Política anti-drogas e a Clínica
A implementação da política anti-drogas pelo Estado brasileiro foi
intensificada a partir de 1980 quando instituiu-se o Sistema Nacional de
Prevenção, Fiscalização e Repressão de Entorpecentes, cuja instância
administrativa e executiva era o Conselho Nacional de Entorpecentes (COFEN),
órgão do Ministério da Justiça. Essa estrutura passou a ser reproduzida nas
esferas estaduais e municipais: Conselho Estadual de Entorpecentes (CONEN)
e Conselho Municipal de Entorpecentes (COMEN).
Longe da gestão do Ministério da Saúde, esta política é absorvida pela
Secretaria de Segurança. Nesta trajetória podemos perceber que o problema da
droga permanece refratário à alçada da saúde. É dentro dessa lógica que, em
1998, instituiu-se a “Secretaria Nacional Antidrogas, que, na sua origem,
subordinava-se a Casa Militar da Presidência da República, transformada em
1999, sem perder seu caráter militarista, em Gabinete de Segurança
Institucional do Presidente da República.” (Karam, 2003, p.79). A prioridade
recai sobre a segurança nacional, com todas as ações de controle e defesa aí
envolvidas. A reboque da segurança comparece a clínica, refém desta estranha
aliança comprometedora de sua ética.
Se não cessamos de afirmar que a clínica e a política são duas
instâncias que se distinguem, porém não se separam, devemos sempre nos
perguntar que política estamos afirmando quando adotamos um determinado
modelo de clínica. E, logo de início, observamos que esta abordagem clínica
carrega fortes pressupostos morais implícitos. A criminalização tácita do usuário
é marcante e vai revelar-se como obstáculo a sua eficácia. O consumo zero é
eleito como princípio norteador, de modo que a abstinência comparece como
única direção de tratamento, objetivo que precisa ser atingido prontamente.
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Para algumas linhas terapêuticas, a instalação do estado de abstinência
chega a ser condição necessária e exigida para início e manutenção do
tratamento. Se a abstinência precisa estar presente desde o início, então
conclui-se que o tratamento volta-se exclusivamente à intensificação das
condutas de escape à reincidência. A imposição de meta a priori e única para o
tratamento é inconciliável com a ética clínica onde o contrato e direção da cura
precisa ser pactuada com o usuário ao longo de todo tratamento. Na proposta
de redução de danos, a abstinência como meta não é excluída, existe como
possibilidade e, principalmente, sua legitimidade não é pressuposta, mas a ser
construída como efeito do trabalho conjunto entre terapeuta e usuário.
O investimento principal da política dirigida à abstinência, explicita a
imposição de novo produto de idealização a ser consumido: a sociedade limpa
de drogas, sociedade sem drogas. O foco do tratamento, portanto, é a droga,
entendida como substância ativa, perigosa e provocadora de todos os males,
subentendendo-se que o cidadão moralmente bem constituído resiste
completamente ao seu uso. Neste quadro, o usuário que busca atendimento
clínico, é incluído na categoria de cidadão inferior, deficiente em sua formação
por não resistir ao apelo da droga e, consequentemente, infrator da regra maior
da sociedade – o combate e eliminação do grande mal - as drogas. No caso, a
criminalização daquele que busca o tratamento é inevitável. Com ela e o
conseqüente preconceito emergem excessivas dificuldades para o usuário.
Observam-se muitos pontos de estrangulamento na rede de relações
estabelecida no seu território existencial. Na família, na escola, no trabalho,
inclusive entre os funcionários dos serviços tais como clínicas, hospitais gerais,
etc, surgem atitudes de hostilidade3 . Um dos efeitos principais é o baixo índice
tanto de busca espontânea dos serviços pelos usuários quanto sua adesão aos
mesmos. Os efeitos são drásticos. A procura pelo tratamento, quando se realiza,
se dá quando o processo já avançou em demasia, apresentando ‘cronificação’
significativa. E ainda observamos que o usuário, frequentemente, chega ao
serviço pelas mãos de terceiros (familiares, escola, ou outras instituições do
estado). A partir daí, o caráter espontâneo da busca de atendimento
3 Em pesquisa anterior tais atitudes de hostilidade são analisadas. Pra melhor detalhamento do tema cf. Kastrup , V., Tedesco, S, Passos, E. (2008)
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desaparece. Dada a alta gravidade dos casos e seu caráter compulsório, as
chances de sucesso no atendimento reduzem-se excessivamente (Tedesco &
Mattos, 2005).
Notemos que a presença de meta a priori de abstinência e o seu caráter
compulsório faz esta clínica excluir a participação ativa do usuário no processo.
Ou seja, este não é ouvido e, portanto, sai de cena a sua relação com a droga, a
singularidade da função que esta exerce no universo de sentidos do usuário. As
particularidades da experiência do drogar-se, determinantes da manutenção do
cliente como refém da substância, são desprezadas. Uma vez ignorados pela
técnica, não há como intervir sobre os fatores de alimentação do uso
inadequado ou abusivo. Elimina-se, assim, no mesmo ato, qualquer
possibilidade de intervenção clínica sobre o processo existencial responsável
pela produção da conduta de adição. Tal quadro pressupõe ser insolúvel o
problema com a droga. O única estratégia possível acaba por limitar-se à
criação ou intensificação de força psíquica e/ou moral de rechaço ao “mal
hábito”, força de oposição ao forte e danoso elo entre usuário e droga. O
tratamento revela-se como um treinamento para fortalecimento de atitudes de
esquiva ao apelo recorrente da substância.
Após instalada, a atitude de controle precisa manter-se atuante, como
um estado de vigilância a si constante, caso contrário, a força de atração
reassumiria o controle. Exclui-se a experiência da droga e, com ela, vai no rastro
a subjetividade do usuário. Este é agora expulso do próprio processo de
tratamento. Em resumo, as conseqüências desta lógica anti-drogas é a
imposição, para a clínica, de orientações que desrespeitam seus princípios
éticos, limitando-a a resultados ínfimos.
Interferências entre Redução de Danos e a Clínica das drogas
As estratégias de RD, criado para prevenção oficial dirigida a DST/AIDS,
elege como direção principal a redução de danos no uso de drogas. Proposta
iniciada em países europeus, uma vez instalada no Brasil, ao contrário de outros
atendimentos dirigidos aos consumidores de drogas, conseguiu obter ampla
disseminação e adesão na comunidade e assim reduzir a taxa de incidência de
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DST e HIV positivo entre usuários de drogas injetáveis de 25% para 13%
(www.unodc.org/br - 07/05/2009)
Ao adotar a RD como estratégia para prevenção das DST/AIDS dois
aspectos importantes para a clínica das drogas comparecem de forma muito
evidente. O primeiro é que muitos usuários de drogas não querem parar de usar
drogas, embora queiram ou aceitem outra forma de cuidado que não seja
impositivo e prescritivo. O segundo é que dificilmente esta população é
acessada pelos serviços de saúde. Ou seja, a RD aponta tanto para uma nova
modalidade de demanda, diferente da demanda por abstinência, quanto para
ofertas de cuidado para usuários de drogas que se distanciam da realidade dos
usuários de drogas, ou seja, aponta a inadequação entre demanda e oferta.
Supõe-se um paciente ideal para as ofertas de clínica restritas aos espaços
físicos das instituições de saúde.
A migração da RD para o campo do tratamento das drogas sugere outra
direção para a clínica, libera-a do engessamento forçado pela proposta anti-
drogas e aponta para o alargamento de sua margem de manobras necessárias
à atenção dirigida às especificidades de cada caso. Os territórios acessados
pelas estratégias de Redução de Danos possibilitam um questionamento sobre
as práticas de tratamento ofertadas para esta população, uma argüição da
própria clínica.
Ao acessar territórios como boca-de-fumo, centros da cidade, zona de
prostituição, palafitas, etc, a RD apresenta um novo campo problemático de
intervenção clínica. Não mais as drogas em si, mas os agenciamentos que no
território se efetuam com as drogas são tomados como plano de novas
produções de subjetividade. Empreender novos agenciamentos desejantes a
partir dos elementos ofertados nos diferentes territórios existenciais nos aponta
para uma clínica que abre outras possibilidades de intervenção alternativas às
posturas moralizantes e asilares, ofertadas como soluções para os problemas
gerados pelo uso indevido de drogas.
Ao desfocar o olhar centrado na substância, a RD traz à cena o território
existencial dos usuários e abre a possibilidade de substituir os protocolos de
tratamento pela experimentação, base essencial do exercício clínico. O território,
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com os movimentos de subjetivação que ali se efetuam nos parece um plano de
produção de intercessões entre o campo da RD e o campo da clínica das
drogas. Tirar as drogas do foco da intervenção e focalizar no processo de
produção de uma subjetividade-drogadita, se apresenta como uma orientação
que amplia as possibilidades da clínica sem perder de foco o objetivo de
transformar investimentos mortíferos que se imprimem em maus encontros com
as drogas.
A construção de uma política pública de saúde para usuários de drogas
deve conter ofertas que acolham a diversidade de demandas que envolve o
universo do uso de drogas. As ações de prevenção as DST/AIDS, através do
PRD, conseguiram dar visibilidade à pluralidade dos modos de relação com
droga, dos modos de lidar com elas e, conseqüentemente, das demandas
clínicas em relação a elas. Existem diversas possibilidades de uso de drogas,
exigindo a criação de diferentes estratégias de produção de saúde que
respeitem e acolham a singularidade de cada sujeito. O percentual de pessoas
que fazem um uso de drogas danoso à saúde é muito pequeno se comparado
ao total de pessoas que fazem uso de drogas. Aproximadamente 5% da
população brasileira já usou drogas ilícitas pelo menos uma vez na vida e
somente 0,6 % desenvolveu algum tipo de dependência (www.unodc.org/br
07/05/2209). No universo da população de usuários de drogas existem, portanto,
pessoas que precisam de tratamento, pessoas que não precisam de tratamento,
pessoas que querem parar de usar drogas, pessoas que querem fazer um uso
moderado, pessoas que não querem parar de usar drogas e, e, e... A construção
de uma política de saúde universal, equânime e integral passa necessariamente
pela abertura e ampliação das ofertas dentro de uma perspectiva ampliada de
construção de vínculos cooperativos. Vemos que restringir a oferta em saúde
dentro de padrões morais e jurídicos é uma forma de restringir de forma
estratégica a universalidade e equidade do acesso.
A proximidade do território existencial do sujeito presente na prática do
PRD, encontra na clínica terreno fértil. No trabalho de prevenção do PRD – a
distribuição de seringas, dos kits para cocaína e crack, a orientação e medidas
de higiene nas aplicações de silicone entre os travestis - se faz junto ao usuário
em seu território, ali onde o uso da droga está instalado, sendo este um
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reconhecido facilitador da adesão. Na clínica o investimento é maciço na
proximidade com o usuário. A atenção voltada à experiência do sujeito e o
trânsito mais livre nas relações estabelecidas entre o terapeuta e paciente
consistem em ferramentas privilegiadas pela clínica.
E ainda, se na prevenção a RD elege como meta ou medida de sucesso
qualquer passo que ofereça menor risco ou dano ao organismo, a clínica permite
ampliar este preceito e repensar a redução de danos agora dirigida a
preservação do funcionamento não APENAS do organismo, mas da
subjetividade/usuário. Uma vez ultrapassando a moral médica, o desafio da
clínica das drogas será o de escapar a leis e preceitos gerais para realizar-se.
Nesta outra ótica, observamos que tratamento não tomará como foco
diretamente a droga. O olhar mais abrangente buscará detectar os danos
promovidos no território/usuário, no conjunto de relações que alimentam a rede
existencial (Tedesco, 2003). Somos levados a perceber que a subjetividade em
jogo não se sobrepõe ao conceito de sujeito, definido pelo intimismo de uma
vida interior, limitado à realidade mental fechada sobre si mesmo. O processo da
subjetividade existe para além do quê denominamos sujeito (Schérer, 2000). No
lugar da pessoa, figura fechada sobre um si mesmo, tem-se um território, uma
paisagem, enfim toda uma vida afirmada nas conexões aí realizadas, sejam
conexões mais institucionalmente formalizadas como as familiares, os elos
produzidos na escola, no trabalho, sejam as menos claramente definidas como
amizades, paixões, sensibilidades (Deleuze & Guattari, 1995).
Cabe à clínica orientada pela RD mapear essa paisagem constituidora
da subjetividade. Ao invés de uma busca por uma causa interior do uso de
drogas, de desejos pecaminosos, a RD aponta para estratégias clínicas que
cartografam causas imanentes ao próprio território existencial, e busca novas
conexões nesta geografia subjetiva, uma clínica peripatética (Lancetti, 2006). Na
prática cotidiana da clínica, observa-se que a relação com a droga, quando
predomina, transforma-se em um obstáculo para construção de outros elos. A
subjetividade parece sufocar pelo movimento reiterado restrito ao elo
usuário/droga. Neste caso, o estreitamento empobrecedor do território é tomado,
então, como prejuízo ou dano maior, exigente de atenção. É certamente sobre o
território empobrecido que a intervenção clínica inscreve-se, para fazer o usuário
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retomar o movimento de ampliação de suas relações, de suas experiências. O
trabalho cartográfico da clínica vai deixar ver pontos de estrangulamento, as
dificuldades no jogo ininterrupto estabelecido entre produção/desconstrução
destes vínculos territoriais. Ou seja, por um lado se considera como danos os
prejuízos que a presença da droga provoca na paisagem subjetiva e por outro
lado, os vetores de existencialização territoriais que reduzem a experiência com
as drogas a uma subjetividade drogadita. (Tedesco, 2005)
Explorar a dinâmica de usuários de drogas, em alguns casos implica
traçar mapas, deslocamentos e trajetos que passam por pontos de referência
que são, a um só tempo geográficos, sociais e psíquicos. Um jovem de classe
média que sai de seu apartamento, anda pelas ruas da cidade, sobe uma favela,
passa pelos traficantes e chega até a boca de fumo para comprar um papelote
de cocaína, em meio a barracos e munição pesada compõe um trajeto
composto por mapas extensivos e intensivos: do asfalto ao morro, afetos de
medo, ruas, desafios, fissuras que não se resumem a droga em si. Tomar a
droga como causa desta trajetória é reduzir o foco, na tentativa de tornar o
objeto-movimento em objeto-droga.
A experiência de desfocalização introduzida pela RD, permite que
tomemos as drogas não mais como força causadora, mas como meio sobre o
qual se estabelece conexões no próprio território, experiência-droga como
conectora ou desconectora de zonas. A princípio não é possível prever se um
agenciamento subjetividade-droga será criativo, paralizante ou mortífero. É
necessário cartografar os deslocamentos, acompanhar os movimentos. O risco
encontra-se ali quando a experiência-droga deixa de ser um meio de passagem,
um conector de zonas e se torna uma finalidade. Uma trajetória em que os
investimentos desejantes fazem coincidir causa com finalidade, causa-droga-
finalidade, compõe um mapa existencial em que a vida encontra-se em risco.
A droga compõe com um cenário complexo de trajetos e afetos, mapas
extensivos e intensivos. (Deleuze, 1997). Trajetos paradoxais de um desejo que
se tornou insaciável, um movimento que não cessa e ao mesmo tempo paralisa
os próprios movimentos da vida. (Sissa, 1999) O repertório se torna
demasiadamente repetitivo e reduzido. Um mapa composto por linhas de fissura.
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É necessário não só acompanhar, mas intervir no mapa-subjetividade. Ofertar e
produzir novos agenciamentos, traçar linhas de fuga do/no território.
Retornando a comparação com a clínica antidrogas, notamos que a
meta voltada à eliminação compulsória da droga é abandonada. Na parceria
com o usuário, a clínica volta-se a detecção dos danos produzidos no território
existencial para construir a estratégia gradual para redução destes e, assim,
reabilitar a rede territorial e suas conexões (Tedesco & Mattos, 2005).
Deste modo, elimina-se o risco da exclusão do sujeito tal como ocorre
na política anti-drogas que acabamos de expor. Como conseqüência outras
posturas clínicas advém. No Projeto do Ministério da Saúde lemos:
Vemos aqui que a redução de danos, oferece-se como um método (no sentido de methodo, caminho) e, portanto, não excludente de outros. Mas, vemos também, que o método está vinculado à direção do tratamento e, aqui, tratar significa aumentar o grau de liberdade, de co-responsabilidade daquele que está se tratando (Brasil, Ministério da Saúde, 2003,p.10)
Às decisões a priori e unilaterais inspiradas no programa anti-drogas se
fazem substituir por metas e manobras elaboradas na relação clínica entre
terapeuta e usuário, tendo como referência maior a escuta sensível às
demandas deste último. Caem por terra também as generalizações excessivas.
Seguindo esta mesma orientação, vemos que a clínica privilegia as
peculiaridades de cada caso, trabalha a experiência da droga, afirmando a
singularidade dos encaminhamentos (Guattari & Rolnik, 1986).
“Se a Redução de Danos pode transformar-se numa clínica, é porque
pode transformar-se num desvio que consiste em criar uma experimentação da
vida ali onde o empreendimento é mortífero.” (Lancetti, 2006, p. 82). Mais uma
vez fazemos notar que o PRD não toma por mortífero o uso de drogas em si,
mas os agenciamentos que intervêm os diversos territórios:
Os crackeiros, ao fumarem maconha, não somente substituem uma prática que produz asma brônquica, infecção respiratória e acidentes vasculares cerebrais, mas ligam os sujeitos a outros com outros parâmetros de cooperação, de solidariedade e de convivência (LANCETTI, 2006, p. 83).
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A clínica da RD promove agenciamentos coletivos que invertem o
sentido negativo de contágio como índice de morte, para um sentido positivo de
contágio como produção de vida, vida contagiante:
O conceito de ampliação da vida é uma ponta de lança para desbravar um campo extremamente complexo. Ele é vital para a sustentação da posição de terapeutas de casos-limite ou de casos quase intratáveis. Ele é vital para elaboração de territórios existenciais inéditos, capazes de tolerância, ancorados na construção do comum e é vital também porque nos permite fugir da posição de derrota e de impotência a que nos condenam as campanhas antidrogas e a ideologia da abstinência. (LANCETTI, 2006, p. 85)
É nesse limite, entre a vida e a morte que encontramos um paradoxo
inerente ao próprio método do PRD: reduzir é ampliar; ampliam-se as conexões
e o grau de comunicação intra e entre territoriais. A territorialização amplia as
conexões, criando redes de vida, e, com isso, um aumento da potência do viver.
Usuários de drogas que vivem marginalizados passam a cooperar
biopoliticamente à medida que são inseridos em redes afetivas. Este aumento
de potência ocorre por conexões que ampliam os territórios cooperativos numa
produção de território comum. (Negri e Hardt, 2005) .
Nota-se que a proposta distancia-se de visão generalizante, eleitora de
padrões a serem cumpridos por todos. Não se afirma uma realidade universal,
não se impõe uma natureza geral e uniforme para a subjetividade. Abandona-se
a afirmação de regras absolutas, inquestionáveis, cuja transgressão é entendida
como recaída, ou fracasso do tratamento. Conseqüentemente, reduz-se o risco
das atuações implicitamente punitivas ou corretivas dirigidas a condutas não-
consagradas pela maioria, a fim de permitir à clínica afirmar sua atitude distante
de posturas judicativas.
Sobre a RD e a rede de atenção a usuário de álcool e outras drogas
Apesar da RD operar questionamentos importantes para que pensemos
uma nova clínica das drogas, ainda permanece uma distância concreta entre as
ofertas das estratégias de Redução de Danos e os dispositivos da rede de
saúde do SUS. Enquanto as ações de RD se ampliaram a partir de
investimentos do Programa Nacional de DST/AIDS, através do Projeto Drogas,
no ano de 1994, através dos Programas de Redução de Danos (PRDs)
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(Marques e Doneda, 1998), somente em 2005 o tema das drogas passa a
ocupar um lugar mais significativo nas agendas da política de saúde mental no
Brasil. As ações mais significativas de Saúde Mental para atenção de usuários
de drogas vieram a ser implementadas praticamente dez anos após o Projeto
Drogas, a partir dos Caps-ad.
A diversificação das ofertas em saúde para usuários de drogas sofreu
significativo impulso quando, a partir de 2005, as ações de RD deixam de ser
uma estratégia exclusiva dos Programas de DST/AIDS e se torna uma
estratégia norteadora da política de Saúde Mental, através da portaria 1.059 de
julho de 2005 - destina incentivo financeiro para o fomento de ações de redução
de danos em Centros de Atenção Psicossocial para o Álcool e outras Drogas -
CAPSad.
A RD se tornou uma estratégia ampliada de clínica que tem ofertamentos
concretos de acolhimento e cuidado para pessoas que usam drogas, dentro de
arranjos de co-gestão do cuidado, tendo como um dos principais desafios à
construção de redes de produção de saúde que incluam outros serviços de
atenção do próprio Sistema Único de Saúde, como as emergências
hospitalares, internações breves, Postos de Saúde, Estratégias de Saúde da
Família, Caps-ad.
No âmbito político-institucional a RD vem enfrentando uma grande
instabilidade no processo de institucionalização enquanto uma estratégia do
SUS. Criada pelo Programa Nacional de DST/AIDS a RD vem enfrentando
dificuldade no seu processo de descentralização. No âmbito clínico e subjetivo a
RD ainda enfrenta muita resistência dos próprios profissionais dos serviços do
SUS, que possuem uma imagem estereotipada dos usuários de drogas, o que
pode ser um possível indicador da manutenção da abstinência como paradigma
clínico de muitos serviços do SUS.
As ações desenvolvidas pelos PRDs possuem limites que precisam ser
superados ampliando e qualificando as ofertas, o que implica na construção de
pactos de gestão entre diferentes serviços da rede de saúde.
A institucionalização da Redução de Danos vem ocorrendo através de
diversos serviços de saúde. Com a criação dos Centros de Atenção
Psicossocial - Álcool e outras Drogas – Caps-AD, este processo de
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institucionalização ganhou uma relevância dentro das ações de Saúde Mental,
tendo como marcos legais as seguintes portarias:
- Portaria 1.028 de julho de 2005 – regulariza as ações de RD pelo Ministério
da Saúde. O caráter democrático desta portaria se opõe claramente às
propostas de tratamento que se pautavam exclusivamente no paradigma
proibicionista e da abstinência.
- Portaria 1.059 de julho de 2005 - destina incentivo financeiro para o fomento
de ações de redução de danos em Centros de Atenção Psicossocial para o
Álcool e outras Drogas – CAPS- ad - e dá outras providências.
Apesar da RD comparecer como uma importante diretriz clínica e política dos
Caps -ad, na experiência concreta ainda restam muitas lacunas sobre o modo
como esta diretriz tem sido exercida no cotidiano destes serviços. Por ser um
movimento recente, o processo de institucionalização da RD no campo da
Saúde Mental precisa ser analisado para que se potencialize a construção de
uma rede territorial de atenção aos usuários de álcool e outras drogas.
Por outro lado, o fortalecimento da Atenção Básica como instância
ordenadora da rede de atenção em saúde, exige que as equipes de Saúde da
Família estejam preparadas para lidar com a especificidade da atenção aos
usuários de drogas. (Cruz e Ferreira, 2007). Este desafio encontra-se
justamente na possibilidade de construção de redes de cooperação em que as
diferentes equipes possam se apoiar definindo estratégias e projetos
terapêuticos que contemplem a singularidade de casa sujeito. Nesse sentido
cabe analisar tanto a abordagem das equipes da Estratégia de Saúde da
Família quanto o apoio matricial das equipes do Caps-ad e dos Programas de
Redução de Danos a estas equipes.
A construção de rede de atenção para os usuários de drogas implica
numa complexa trama tecida entre diferentes serviços e estratégias de saúde.
Por isso a análise e compreensão do modo como estes serviços estão
interagindo (Caps-ad, Estratégia de Saúde a Família e Programa de Redução
de Danos), seus processos de gestão e atenção, para a constituição de uma
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rede de atenção aos usuários de drogas são fundamentais para a ampliação e
qualificação do acesso e do atendimento a esta população.
Considerações Finais
Inspirados pelas aberturas propostas pelas estratégias de Redução de
Danos, fomos levados, neste texto, a repensar a clínica das drogas como
exigência para que esta última possa retomar seus encaminhamentos éticos, se
desviando das posturas moralizantes, e fomente a adoção de políticas públicas
de tratamento, de modo a incluir estratégias de tratamento mais ousadas e que
assegurem a pluralidade de modos de vida. Visa-se criar políticas fundadas em
discussões coletivas, sem exclusão do paciente, e apoiadas no respeito à
multiplicidade de pontos de vista. No lugar de preceitos universais pensar em
táticas locais, em vez de padronizações normalizadoras afirmar respostas
singularizantes e fazer com que a transmissão de conhecimentos fixos dê
espaço à experimentação (Rolnik, 1996). Foi esta vontade que nos convocou a
propor esta reflexão, na certeza de impregnar muitos interessados em renovar
uma prática clínica já há muito desgastada.
Muitas outras mudanças na clínica das drogas serão observadas a partir
da eleição desta nova ótica. Aqui tratamos de algumas delas certos de não
esgotar a discussão, mas, ao contrário, deflagrar seu início. Sabemos que, se
muitas vantagens foram apontadas, também precisamos estar alertas para os
muitos perigos que esta migração pode acarretar. Nosso objetivo é deflagrar um
movimento de problematização constante que não tome as dificuldades
encontradas no percurso como impasses intransponíveis e desanimadores e sim
como desafios a serem superados não só ao nível das discussões acadêmico-
científicas, mas também e, principalmente, no cotidiano de nossas práticas.
Enfim, afirmar a clínica como clínica de si mesmo, ou seja, clínica da clínica, ato
ininterrupto de traçar o mapa territorial de seus impasses e desafios.
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