terra negra - fnac-static.com · a história do holocausto tem de ser contemporânea,...

22
TERRA NEGRA

Upload: others

Post on 05-Aug-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TERRA NEGRA

Page 2: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TIMOTHY SNYDER

TERRA NEGRAO Holocausto como História e Aviso

Tradução dePEDRO CARVALHO E GUERRA

E

RITA CARVALHO E GUERRA

Page 3: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

Para K. e T.

Page 4: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

Im Kampf zwischen Dir und der Welt,sekundiere der Welt.

Na luta entre ti e o mundo,escolhe o lado do mundo.

— FRANZ KAFKA, 1917

Ten jest z ojczyzny mojej.Jest człowiekiem.

Ele é da minha terra natal.Um ser humano.

— ANTONI SłONIMSKI, 1943

Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abendswir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachtswie trinken und trinken

O leite negro da aurorabebemos ao fim do diaà tarde, de manhã, à noitebebemos e bebemos

— PAUL CELAN, 1944

Todo o homem tem um nomeque lhe foi dado pelas estrelasque lhe foi dado pelos vizinhos.

ZELDA MISHKOVSKY, 1974

Page 5: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

11

PRÓLOGO

No elegante sexto distrito de Viena, a história do Holocaustoencontra-se embutida no pavimento. Em frente aos edifícios ondeos judeus viveram e trabalharam, aninhados nos passeios que os ju-deus esfregaram outrora com as próprias mãos, encontram-se pe-quenos quadrados comemorativos em latão com nomes, datas dedeportação e locais de falecimento.

Na mente de um adulto, palavras e números ligam presente epassado.

O ponto de vista de uma criança é diferente. Uma criança par-te das coisas.

Um rapazinho que vive no sexto distrito de Viena observa, diaa dia, enquanto uma equipa de trabalhadores avança, edifício a edifí-cio, subindo pelo outro lado da rua. Vê-os a cavar o passeio, comose estivessem a reparar um cano ou a instalar um qualquer cabo.Certa manhã, enquanto espera pelo autocarro que o levará ao jar-dim-escola, vê um homem, agora diretamente do outro lado da rua,a assentar, com a ajuda de uma pá, o asfalto fumegante. As placascomemorativas são objetos misteriosos em mãos enluvadas, refle-tindo levemente a pálida luz do sol.

«Was machen sie da, Papa?» «Que estão eles a fazer, papá?» O paido rapazinho mantém-se em silêncio. Olha para o fundo da rua,

Page 6: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TIMOTHY SNYDER

12

procurando o autocarro. Hesita, começa a responder: «Sie bauen...»«Estão a construir...» Para. Não é fácil. Depois chega o autocarro,bloqueando-lhe a vista e abrindo-se, com a chiadeira de óleo e gásde uma porta automática, para um dia normal.

Em março de 1938, por toda a Viena, os judeus limpavam apalavra «Áustria» do pavimento, apagando um país que ia deixandode existir à medida que os exércitos de Hitler chegavam. Hoje emdia, nas ruas, os nomes desses mesmos judeus censuram uma Áus-tria restaurada que, como a própria Europa, continua insegura emrelação ao seu passado.

Porque foram perseguidos os judeus de Viena ao mesmo tem-po que a Áustria era apagada do mapa? Porque foram, depois, en-viados para a morte na Bielorrússia, a mil quilómetros de distância,quando havia um ódio evidente pelos judeus na própria Áustria?Como pôde um povo estabelecido numa cidade (num país, numcontinente) ver a sua história chegar, subitamente, a um fim violen-to? Por que razão estranhos matam estranhos? Por que razão vizi-nhos matam vizinhos?

Em Viena, tal como nas grandes cidades da Europa Central eOcidental, os judeus eram uma parte preeminente da vida urbana.Nas terras a norte, sul e leste de Viena, os judeus tinham vivido emgrande número, de forma contínua, há mais de cinco séculos. E derepente, em menos de cinco anos, mais de cinco milhões deles fo-ram assassinados.

As nossas intuições falham-nos. Associamos, acertadamente, oHolocausto à ideologia nazi, mas esquecemo-nos de que muitos dosassassinos não eram nazis, nem mesmo alemães. Pensamos primei-ramente em judeus alemães, embora quase todos os judeus mortos

Page 7: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TERRA NEGRA

13

no Holocausto vivessem fora da Alemanha. Pensamos nos camposde concentração, embora relativamente poucos dos judeus assassi-nados tivessem visto algum. Culpamos o Estado, embora os massa-cres só tenham sido possíveis nos locais onde as instituições gover-namentais tinham sido destruídas. Culpamos a ciência e, ao fazê-lo,sancionamos um elemento importante da visão do mundo de Hitler.Culpamos as nações, cedendo assim às simplificações usadas pelospróprios nazis.

Recordamos as vítimas, mas temos propensão para confundircomemoração com compreensão. O memorial no sexto distrito deViena chama-se «Lembrar para o Futuro». Deveremos sentir-nosconfiantes, agora que o Holocausto ficou para trás, de que nosaguarda um futuro reconhecível? Partilhamos um mundo com osperpetradores esquecidos, bem como com as vítimas recordadas.O nosso mundo está a mudar, reavivando medos familiares no tem-po de Hitler e aos quais Hitler respondeu. A história do Holocaustonão está terminada. O seu precedente é eterno, e as suas lições ain-da não foram aprendidas.

Um relato instrutivo do assassínio em massa dos judeus da Eu-ropa tem de ser planetário, pois o pensamento de Hitler era ecológi-co, tratando os judeus como uma ferida da natureza. Tal históriatem de ser colonial, pois Hitler desejava desencadear guerras de ex-termínio nas terras vizinhas, onde residiam os judeus. Tem de serinternacional, pois os alemães, e não só, mataram os judeus nãoapenas na Alemanha, mas também noutros países. Tem de ser cro-nológica, porque a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, ape-nas uma parte da história, foi seguida pela conquista da Áustria, daChecoslováquia e da Polónia, avanços que reformularam a SoluçãoFinal. Tem de ser política, num sentido especial, já que a destruiçãoalemã dos Estados vizinhos criou zonas onde, especialmente naUnião Soviética ocupada, poderiam inventar-se técnicas de aniquila-ção. Tem de ser multifocal, oferecendo perspetivas para lá das dos

Page 8: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TIMOTHY SNYDER

14

próprios nazis, usando fontes de todos os grupos, de judeus e não ju-deus, por toda a zona dos massacres. Não se trata de uma questãode justiça, mas de compreensão. Tal cômputo também tem de serhumano, registando as tentativas de sobrevivência, bem como astentativas de homicídio; descrevendo os judeus que procuravam vi-ver, assim como os poucos não judeus que os procuravam ajudar;aceitando a complexidade, inata e irredutível, dos indivíduos e dosencontros.

A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas. A visão do mundo de Hitler não gerou, porsi só, o Holocausto, mas a sua coerência secreta gerou um novo ti-po de política destrutiva e um novo conhecimento da capacidadepara o homicídio em massa. A combinação exata de ideologia e cir-cunstâncias do ano de 1941 não voltará a surgir, mas poderá surgiroutra semelhante. Parte do esforço para compreender o passado é,como tal, um esforço necessário para nos compreendermos a nósmesmos. O Holocausto não é apenas história, mas também aviso.

Page 9: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

15

INTRODUÇÃO:

O MUNDO DE HITLER

Nada se pode saber acerca do futuro, pensava Hitler, com ex-ceção dos limites do nosso planeta: «a área da superfície de um es-paço medido com exatidão». A ecologia não era mais do que escas-sez e a existência significava luta pela terra. A imutável estrutura davida consistia na divisão dos animais em espécies, condenados auma «reclusão interior» e a uma interminável luta até à morte. As ra-ças humanas, acreditava Hitler, eram como as espécies. As raças su-periores continuavam a evoluir a partir das inferiores, o que signifi-cava que a reprodução inter-racial era possível mas pecaminosa. Asraças deviam comportar-se como as espécies, o igual reproduzindo--se com o igual e procurando matar o estranho. Isto, para Hitler, eraa lei, a lei de uma luta racial, tão certa como a lei da gravidade. A lutajamais poderia terminar e não tinha resultado certo. Uma raça podiatriunfar e florescer, mas também podia ser obrigada a passar fome ea desaparecer.

No mundo de Hitler, a lei da selva era a única lei. As pessoasdeveriam suprimir qualquer inclinação para a misericórdia e mos-trar-se tão rapaces quanto possível. Assim, Hitler quebrou as tradi-ções do pensamento político que apresentavam os seres humanoscomo distintos da natureza, na sua capacidade para criar novas for-mas de associação. Com base em tal presunção, os pensadores polí-ticos tentaram descrever, não apenas as formas de sociedade possí-veis, mas também as mais justas. Para Hitler, contudo, a naturezaera a verdade singular, brutal e esmagadora, e qualquer tentativa de

Page 10: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TIMOTHY SNYDER

16

pensar de outra forma não passava de uma ilusão. Carl Schmitt, umpreeminente jurista nazi, explicava que a política nascia não da his-tória ou de conceitos, mas do nosso sentido de inimizade. Os nos-sos inimigos raciais eram escolhidos pela natureza e a nossa funçãoera lutar, matar e morrer.

«A natureza não conhece», escreveu Hitler, «fronteiras políti-cas. Põe as formas de vida neste globo e, depois, liberta-as para umjogo de poder.» Como a política era natureza, e a natureza era umaluta, tornava-se impossível qualquer pensamento político. Esta con-clusão correspondia a uma articulação extrema de um lugar-comumdo século XIX, segundo o qual as atividades humanas podiam sercompreendidas por meio da biologia. Nos anos 80 e 90 do século XIX,pensadores sérios e popularizadores, influenciados pela ideia de se-leção natural de Charles Darwin, propuseram que as antigas interro-gações do pensamento político pudessem ser resolvidas medianteeste avanço na zoologia. Quando Hitler era jovem, uma interpreta-ção de Darwin, na qual a concorrência era identificada como umbem social, influenciava todas as importantes formas de política. Pa-ra Herbert Spencer, o defensor britânico do capitalismo, um merca-do era como uma ecosfera onde sobreviviam os melhores e os maisfortes, e a utilidade decorrente da competição livre justificava osseus males imediatos. Os adversários do capitalismo, os socialistasda Segunda Internacional, também abraçaram as analogias biológi-cas. Passaram a ver a luta de classes como «científica» e o homemcomo um animal entre muitos, em vez de um ser particularmentecriativo com uma essência especificamente humana. Karl Kautsky,o principal teórico marxista da altura, insistia, com pedantismo, queas pessoas eram animais.

No entanto, estes liberais e socialistas estavam limitados, querdisso se apercebessem ou não, por ligações aos costumes e insti-tuições; hábitos mentais que se desenvolviam da experiência socialimpediam-nos de alcançar as conclusões mais radicais. Estavam eti-camente comprometidos com bens como o crescimento económico

Page 11: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TERRA NEGRA

17

ou a justiça social, e consideravam apelativo ou conveniente imagi-nar que a competição natural forneceria esses bens. Hitler chamouao seu livro Mein Kampf, A Minha Luta. Desde logo nessas palavras,e ao longo de dois extensos volumes e de duas décadas de vida polí-tica, foi infinitamente narcisista, implacavelmente consistente e exu-berantemente niilista, quando outros não o foram. O infindávelconflito entre raças não era um elemento da vida, mas sim a sua es-sência. Afirmá-lo não era criar uma teoria, mas observar o mundotal como este se apresentava. A luta era a vida, não um meio paraatingir um qualquer outro fim. Não era justificada pela prosperidade(capitalismo) nem pela justiça (socialismo) que supostamente gera-va. A ideia não era de maneira nenhuma que o fim desejável justifi-cava os meios sangrentos. Não havia nenhum fim, apenas tacanhezde espírito. A raça era real, ao passo que os indivíduos e as classescorrespondiam a construções fugazes e erróneas. A luta não erauma metáfora nem uma analogia, mas sim uma verdade tangível eabsoluta. Os fracos deveriam ser dominados pelos fortes, pois «omundo não foi feito para os povos cobardes». E nada mais existiaque se pudesse conhecer e em que se pudesse acreditar.

§

A visão do mundo de Hitler rejeitava as tradições religiosas eseculares e, no entanto, dependia de ambas. Embora não fosse umpensador original, oferecia uma certa resolução para uma crise depensamento e de fé. Como muitos antes dele, procurou uni-los aosdois. O que pretendia criar, contudo, não era uma síntese elevadaque salvaria a alma e a mente, mas uma colisão sedutora que as des-truiria a ambas. A luta racial de Hitler era, supostamente, sancionadapela ciência, mas ele chamava ao seu objeto «o pão nosso de cadadia». Com estas palavras, invocava um dos mais conhecidos textoscristãos, ao mesmo tempo que alterava profundamente o seu signi-ficado. «O pão nosso de cada dia», começa o pai-nosso, «nos dai

Page 12: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TIMOTHY SNYDER

18

hoje.» No universo que a oração cristã descreve, existe uma metafí-sica, uma ordem para lá deste planeta, noções de bem que avançamde uma esfera para outra. Aqueles que recitam a oração do pai-nossopedem a Deus: «perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoa-mos a quem nos ofendeu. Não nos deixeis cair em tentação, mas li-vrai-nos do Mal». Na «luta pelas riquezas da natureza» de Hitler, erapecado não tomar para si tudo o que se podia tomar, e um crimepermitir que outros sobrevivessem. A misericórdia violava a ordemdas coisas, pois permitia que os fracos se multiplicassem. O que osseres humanos deviam, de facto, fazer, segundo Hitler, era rejeitaros Dez Mandamentos bíblicos. «Se há algum mandamento divinoque seria capaz de aceitar», escreveu, «seria este: “Preservareis a es-pécie.”»

Hitler explorava imagens e tropos que eram familiares aos cris-tãos: Deus, orações, pecado original, mandamentos, profetas, povoescolhido, messias — até a familiar estrutura tripartida do tempocristão: primeiro o Paraíso, depois o êxodo e, por fim, a redenção.Vivemos na imundice e temos de nos esforçar por purificar as nos-sas próprias pessoas e o mundo, para podermos regressar ao Paraí-so. Ver o Paraíso como um confronto das espécies, e não como aconcórdia da Criação, correspondia a unir a nostalgia cristã ao apa-rente realismo da biologia. A guerra de todos contra todos não erauma falta de objetivo aterrorizante, mas antes o único objetivo quese podia ter no universo. A recompensa da natureza era para o Ho-mem, tal como no Génesis, mas apenas para os homens que se-guiam a lei da natureza e lutavam por ela. Tal como no Génesis,também em A Minha Luta a natureza surgia como um recurso parao Homem: mas não para todos os homens, apenas para os perten-centes às raças triunfantes. O Éden não era um jardim, mas umatrincheira.

O conhecimento do corpo não era o problema, como no Gé-nesis, mas a solução. Os triunfantes deviam copular: a seguir ao ho-micídio, pensava Hitler, o dever humano era o sexo e a reprodução.

Page 13: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TERRA NEGRA

19

Neste esquema, o pecado original que conduziu à queda do homempertence à mente e à alma, não ao corpo. Para Hitler, a nossa infelizfraqueza consiste em podermos pensar, em apercebermo-nos deque as outras raças podem fazer o mesmo e, como tal, em reconhe-cê-las como seres humanos iguais. Os humanos deixaram o paraísosangrento de Hitler, mas não devido ao conhecimento carnal. Oshumanos deixaram o paraíso devido ao conhecimento do bem e domal.

Quando ocorre a queda do Paraíso e os seres humanos são se-parados da natureza, uma personagem que não é nem humana nemnatural, como a serpente do Génesis, assume a culpa. Se os sereshumanos não passavam, de facto, de mais um elemento da nature-za, e a ciência reconhecia que a natureza era uma guerra sangrenta, aespécie fora, decerto, corrompida por algo exterior à natureza. ParaHitler, o portador do conhecimento do bem e do mal para a terra, odestruidor do Éden, era o judeu. Fora o judeu quem dissera aos hu-manos que estes se encontravam acima de qualquer outro animal, eque tinham a capacidade de decidir por si mesmos o seu futuro. Fo-ra o judeu quem introduzira a distinção entre política e natureza, en-tre humanidade e luta. O destino de Hitler, tal como ele o entendia,consistia em redimir o pecado original da espiritualidade judaica erestaurar o paraíso de sangue. Como o Homo sapiens só pode sobre-viver por meio da chacina racial sem constrangimentos, um triunfojudeu da razão sobre o impulso significaria o fim da espécie. Aquilode que uma raça necessitava, de acordo com Hitler, era de uma «vi-são do mundo» que lhe permitisse triunfar, o que se traduzia, em úl-tima análise, pela fé na sua própria missão acéfala.

A maneira como Hitler apresentava a ameaça judaica era reve-ladora da sua amálgama particular de ideias religiosas e zoológicas.Se os judeus triunfassem, escreveu Hitler, «a sua coroa de vitória se-ria a coroa fúnebre da espécie humana». Por um lado, a imagem deHitler de um universo sem seres humanos acatava o veredicto da

Page 14: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TIMOTHY SNYDER

20

ciência de um planeta antigo no qual a humanidade havia evoluído.Na sequência da vitória judaica, escreveu, «a Terra voltará a percor-rer o universo sem nenhuns seres humanos, como acontecia há mi-lhões de anos». Ao mesmo tempo, como deixava claro no mesmís-simo trecho de A Minha Luta, esta antiga terra de raças e extermínioera a Criação de Deus. «Como tal, acredito estar a agir de acordocom os desejos do Criador. Na medida em que reprimo o judeu,realizo o trabalho do Senhor.»

§

Hitler via a espécie como dividida em raças, mas negava que osjudeus fossem uma delas. Os judeus não eram uma raça inferiornem uma raça superior, mas sim uma não raça ou uma contrarraça.As raças seguem a natureza e lutam por terra e comida, ao passoque os judeus seguiam a lógica alienígena da «antinatureza». Resis-tiam aos imperativos básicos da natureza, recusando satisfazer-secom a conquista de determinado habitat, e persuadiam os outros acomportarem-se de modo semelhante. Insistiram no domínio abso-luto da totalidade do planeta e dos seus povos e, nesse sentido, in-ventaram ideias gerais que afastavam as raças da luta natural. O pla-neta não tinha para oferecer senão sangue e terra e, no entanto,estranhamente, os judeus tinham gerado conceitos que permitiamque o mundo fosse visto não tanto como uma armadilha ecológica emais como uma ordem humana. Ideias de reciprocidade política,práticas em que os humanos reconheciam outros humanos comotal, provinham dos judeus.

A crítica básica de Hitler não era a crítica comum de que os se-res humanos eram bons e tinham sido corrompidos por uma civili-zação excessivamente judaica. Era, antes, que os seres humanos sãoanimais e qualquer exercício de deliberação ética era, em si mesmo,um sinal da corrupção judaica. Heinrich Himmler, o mais importan-te adjunto de Hitler, não seguiu cada reviravolta do pensamento de

Page 15: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TERRA NEGRA

21

Hitler, mas compreendeu as conclusões: a ética, como tal, era o erro;a única moralidade era a fidelidade à raça. A participação no homicí-dio em massa, defendia Himmler, era um ato bom, pois trazia à raçauma harmonia interna, bem como a união com a natureza. A difi-culdade de ver, por exemplo, milhares de cadáveres de judeus mar-cava a transcendência da moralidade convencional. O esforço tem-porário do homicídio era um sacrifício que valia a pena realizar emprol do futuro da raça.

Qualquer atitude não racista era judaica, pensava Hitler, e qual-quer ideia universal era um mecanismo de domínio judaico. Tanto ocapitalismo como o comunismo eram judaicos. A sua aparente acei-tação da luta não era mais do que uma maneira de disfarçar o desejojudaico de domínio. Qualquer ideia abstrata de Estado era igual-mente judaica. «O Estado como fim em si mesmo», escreveu Hitler,«não existe.» O «mais elevado objetivo dos seres humanos», clarifi-cou, não era «a preservação de um determinado Estado ou governo,mas a preservação da espécie». As fronteiras dos Estados existentesseriam arrastadas pelas forças da natureza no curso da luta racial:«Não nos podemos deixar afastar das fronteiras do Direito Eternopela existência de fronteiras políticas.»

Se os Estados não eram impressionantes feitos humanos, masfrágeis barreiras que deviam ser ultrapassadas pela natureza, seguia--se que a lei é particular e não geral, um artefacto de superioridaderacial e não um caminho para a igualdade. Hans Frank, advogadopessoal de Hitler e, durante a Segunda Guerra Mundial, governador--geral da Polónia ocupada, defendia que a lei assentava «nos ele-mentos sobreviventes do nosso povo alemão». As tradições legaisbaseadas em algo mais do que a raça são «pálidas abstrações». A leinão tinha outro propósito além da codificação das intuições mo-mentâneas de um Führer sobre o bem da sua raça. O conceito ale-mão de um Rechtsstaat, um Estado que atua sob o governo da lei,não tem substância. Como explicou Carl Schmitt, a lei servia a raça

Page 16: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TIMOTHY SNYDER

22

e o Estado servia a raça e, como tal, a raça era o único conceito per-tinente. A ideia de um Estado preso por padrões legais externos eraum embuste concebido para suprimir os fortes.

Porque penetravam mentes não judaicas, as ideias universaisenfraqueciam as comunidades raciais para proveito dos judeus.O conteúdo das diversas ideias políticas era irrelevante, pois nãopassavam de armadilhas para os tolos. Não havia judeus liberais ejudeus nacionalistas; judeus messiânicos e judeus bolcheviques:«O bolchevismo é o filho ilegítimo do cristianismo. São ambos in-venções do judeu.» Hitler via Jesus como um inimigo dos judeus cu-jos ensinamentos tinham sido pervertidos por São Paulo, dando ori-gem a mais um falso universalismo judaico, o da misericórdia pelosfracos. De São Paulo a Leon Trotsky, defendia Hitler, não haviamais do que judeus que tinham adotado diversos disfarces para se-duzir os mais ingénuos. As ideias não tinham origens históricas nemligação alguma à sucessão de acontecimentos ou à criatividade dosindivíduos. Eram tão-só criações táticas dos judeus e, nesse sentido,eram todas iguais.

De facto, para Hitler não havia história humana como tal. «To-dos os acontecimentos históricos mundiais», alegava, «não são maisdo que o impulso de autopreservação das raças, para o melhor oupara o pior.» O que havia a registar do passado era a infindável ten-tativa dos judeus para alterar a estrutura da natureza. Algo que semanteria enquanto os judeus habitassem o planeta. «É a judiaria»,escreveu Hitler, «que destrói constantemente esta ordem.» Os fortesdeviam matar à fome os fracos, mas os judeus conseguiam alterar aordem das coisas, de tal modo que os fracos matavam à fome osfortes. Tal não correspondia a uma injustiça no sentido normal dotermo, mas a uma violação da lógica de ser. Num universo defor-mado pelas ideias judaicas, a luta podia conduzir a desfechos im-pensáveis: não à sobrevivência do mais forte, mas sim à fome domais apto.

Page 17: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TERRA NEGRA

23

Daqui resultava que, enquanto existissem judeus, os alemãesseriam sempre vítimas. Sendo a raça superior, os alemães mereciammais e tinham mais a perder. O poder não natural dos judeus «as-sassina o futuro».

§

Embora Hitler se tivesse esforçado por definir um mundo semhistória, as suas ideias foram sendo alteradas pelas suas próprias ex-periências. A Primeira Guerra Mundial, a mais sangrenta da história,travada num continente que se acreditava civilizado, desfez a con-fiança disseminada entre muitos europeus de que os conflitos erampositivos. Alguns europeus, contudo, da extrema-direita à extrema--esquerda, retiraram a lição oposta. Para eles, o derramamento desangue não tinha sido suficientemente alargado e o sacrifício revela-ra-se incompleto. Para os bolcheviques do Império Russo, os mar-xistas, disciplinados e voluntaristas, a guerra e as energias revolucio-nárias que suscitara criavam uma oportunidade para dar início àreconstrução socialista do mundo. Para Hitler, como para muitosoutros alemães, a guerra terminara antes de ter sido verdadeiramen-te decidida, os elementos de raça superior tinham sido retirados docampo de batalha antes de terem conquistado o que lhes era devido.Claro que a sensação de que a Alemanha deveria ter ganho era ge-neralizada, e não vigorava apenas entre os militaristas ou os extre-mistas. Thomas Mann, o maior dos escritores alemães e, mais tarde,adversário de Hitler, falava acerca dos «direitos [da Alemanha] aodomínio, à participação na administração do planeta». Edith Stein,uma filósofa alemã brilhante, que desenvolveu uma teoria da empa-tia, considerou «fora de questão que venhamos agora a ser derrota-dos». Depois de Hitler ter chegado ao poder, Edith Stein foi perse-guida no seu convento e assassinada como judia.

Para Hitler, a conclusão da Primeira Guerra Mundial demonstra-va a ruína do planeta. O seu resultado, tal como Hitler o compreendia,ia além do nacionalismo ingénuo de muitos dos seus conterrâneos

Page 18: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TIMOTHY SNYDER

24

alemães e a sua resposta à derrota só superficialmente se assemelha-va ao ressentimento alemão generalizado quanto aos territórios per-didos. Para Hitler, a derrota alemã demonstrava que havia algo decorrupto na estrutura do mundo; era a prova de que os judeus ti-nham dominado os métodos da natureza. Se alguns milhares de ju-deus alemães tivessem sido gaseados no início da guerra, defendia, aAlemanha teria ganhado. Hitler acreditava que era típico dos judeussujeitar as suas vítimas à fome e via o bloqueio naval britânico àAlemanha durante (e depois) da Primeira Guerra Mundial comouma aplicação deste método. Tratava-se de um exemplo de umacondição permanente e era a prova de que haveria mais sofrimentono futuro. Enquanto fossem os judeus a forçar os alemães a passarfome, em vez de serem os alemães a fazer passar fome quem querque quisessem, o mundo permaneceria em desequilíbrio.

Da derrota de 1918, Hitler retirou as suas próprias conclusõesacerca de qualquer conflito futuro. Os alemães triunfariam sempre,desde que os judeus não estivessem envolvidos. Contudo, porqueos judeus dominavam todo o planeta e penetravam nas mentes dosalemães com as suas ideias, a luta pelo poder alemão tinha de assu-mir duas formas. Uma simples guerra de conquista, por muito de-vastadoramente triunfante, jamais seria suficiente. Além de obriga-rem as raças inferiores a passar fome e de lhes retirarem as terras, osalemães necessitavam de alcançar a derrota simultânea dos judeus,cujo poder global e universalismo insidioso corroeria qualquer cam-panha racial saudável. Assim, os alemães tinham os direitos dos for-tes contra os fracos, e os direitos dos fracos contra os fortes. Comofortes precisavam de dominar as raças mais fracas que encontravam;como mais fracos, tinham de libertar todas as raças do domínio ju-daico. Deste modo, Hitler unia duas grandes forças motivadoras dapolítica mundial do seu século: o colonialismo e o anticolonialismo.

Hitler via tanto a luta pela terra como a luta contra os judeusem termos drásticos, de extermínio, e no entanto via-os de forma

Page 19: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TERRA NEGRA

25

diferente. A luta pelo território, contra as raças inferiores, era umaquestão de domínio de partes da superfície terrestre. A luta contraos judeus era ecológica, já não dizia respeito a um inimigo racial oua um território específico, mas às próprias condições da vida naTerra. Os judeus eram «uma pestilência, uma pestilência espiritual,pior do que a peste negra». Dado que lutavam com ideias, o seu po-der estava disseminado por todo o lado e qualquer um poderia serseu agente, consciente ou inconscientemente. A única maneira deeliminar tal praga era erradicá-la pela raiz. «Se a natureza concebeu ojudeu para ser a causa material do declínio e da queda de todas asnações», escreveu Hitler, «também forneceu a essas nações a possi-bilidade de uma reação saudável.» A eliminação tinha de ser absolu-ta: se restasse na Europa uma só família judaica, esta poderia infetartodo o continente.

A queda do homem podia ser contrariada; o planeta podia sercurado. «Um povo que se livra dos seus judeus», afirmou Hitler, «re-gressa espontaneamente à ordem natural.»

§

Os pontos de vista de Hitler acerca da vida humana e da or-dem natural eram redundantes. Todas as questões acerca da políticaeram respondidas como se fossem questões acerca da natureza; to-das as questões acerca da natureza eram respondidas ligando-se àpolítica. O círculo foi esboçado pelo próprio Hitler. Se a política e anatureza não eram fontes de conhecimento e de perspetiva, mas es-tereótipos vazios que existiam apenas em relação um ao outro, en-tão todo o poder ficava nas mãos daquele que fazia circular os cli-chés. A razão era substituída por referências; a argumentação, porencantamentos. A «luta», como o título do livro dava a entender, era«minha»: de Hitler. A ideia totalitária da vida como luta instilavatodo o poder para interpretar um qualquer acontecimento na mentedo seu autor.

Page 20: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TIMOTHY SNYDER

26

Equiparar a natureza e a política abolia não só o pensamentopolítico, mas também o pensamento científico. Para Hitler, a ciênciaera uma revelação absoluta da lei da luta racial, um evangelho per-feito do derramamento de sangue, não um processo de hipóteses eexperiências. Oferecia um vocabulário acerca da luta zoológica, nãouma fonte de conceitos e procedimentos que permitissem um en-tendimento ainda mais extenso. Dava uma resposta, mas não apre-sentava as perguntas. A função do homem era submeter-se a estecredo em vez de impor, obstinadamente, o capcioso pensamento ju-daico sobre a natureza. Como a visão do mundo de Hitler exigiauma única verdade circular que tudo abarcava, tornava-se vulnerávelao mais simples dos pluralismos: por exemplo, que os seres huma-nos poderiam alterar o seu meio ambiente de maneiras que, por suavez, poderiam alterar a sociedade. Se a ciência pudesse mudar oecossistema de tal modo que o comportamento humano fosse, porsua vez, alterado, então todas as suas afirmações eram infundadas.O círculo lógico de Hitler, no qual a sociedade era natureza porquea natureza era sociedade, na qual o homem era um animal porque osanimais eram homens, seria quebrado.

Hitler aceitava que os cientistas e especialistas tinham utilidadedentro da comunidade racial: produzir armas, melhorar as comuni-cações, avançar no plano da higiene. Raças mais fortes deveriam terarmas melhores, rádios melhores e condições de saúde melhores,para melhor dominar as mais fracas. Era algo que entendia comoum cumprimento da ordem da natureza para que lutassem, não umaviolação das suas leis. Os avanços técnicos eram prova da superiori-dade racial, não prova de um avanço do conhecimento científicoem geral. «Tudo aquilo que, hoje, admiramos nesta terra», escreveuHitler, «a erudição e a arte, a tecnologia e as invenções, não são maisdo que o produto criativo de algumas poucas pessoas e, talvez, ori-ginalmente de uma única raça.» Nenhuma raça, por muito avançadaque fosse, podia alterar a estrutura básica da natureza por meio de

Page 21: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TERRA NEGRA

27

uma qualquer inovação. A natureza tinha apenas duas variantes:o paraíso no qual as raças mais elevadas chacinavam as inferiores, eo mundo caído no qual os judeus sobrenaturais negavam às raçassuperiores o prémio que lhes era devido e as faziam passar fomesempre que possível.

Hitler entendia que a ciência agrícola representava uma ameaçaespecífica à lógica do seu sistema. Se os humanos pudessem interfe-rir na natureza para criar mais alimentos, sem tirarem mais terras,todo o seu sistema se desmoronaria. Como tal, negou a importânciado que sucedia perante os seus olhos, a ciência do que, mais tarde,se chamaria «Revolução Verde»: a hibridação dos cereais, a distri-buição de fertilizantes e pesticidas químicos, a expansão da irriga-ção. Mesmo «na melhor das hipóteses», insistia, a fome deve ser su-perior aos melhoramentos das colheitas. Havia um «limite» paratodos os melhoramentos científicos. De facto, todos os «métodoscientíficos de gestão da terra» já haviam sido tentados e tinham fa-lhado. Não existia melhoramento concebível, nem agora nem de fu-turo, que permitisse aos alemães serem alimentados «da sua própriaterra e território». A comida só podia ser salvaguardada pela con-quista de território fértil, não por via de uma ciência que tornaria oterritório alemão mais fértil. Os judeus encorajavam, deliberada-mente, a crença contrária, para diminuir o apetite alemão pela con-quista e preparar o povo alemão para a destruição. «É sempre o ju-deu», escreveu Hitler a este respeito, «quem procura e consegueimplementar maneiras de pensar tão letais.»

Hitler tinha de defender o seu sistema da descoberta humana,que representava para ele um problema tão grande quanto a solida-riedade humana. A ciência não podia salvar a espécie porque, emúltima análise, todas as ideias eram raciais, nada mais do que deri-vativos estéticos da luta. A noção contrária, que as ideias poderiamrefletir, de facto, a natureza ou mudá-la, era uma «mentira judaica» eum «embuste judaico». Hitler afirmava que «o homem nunca con-quistou a natureza, seja por que maneira for». A ciência universal,

Page 22: TERRA NEGRA - fnac-static.com · A história do Holocausto tem de ser contemporânea, permi-tindo-nos experimentar o que resta da era de Hitler nas nossas men-tes e nas nossas vidas

TIMOTHY SNYDER

28

como a política universal, tem de ser entendida não como uma pro-messa humana, mas como uma ameaça judaica.

O problema do mundo, tal como Hitler o via, residia no factode os judeus separarem, falsamente, a ciência da política e realiza-rem falsas promessas acerca do progresso e da humanidade. A solu-ção que Hitler propunha consistia em expô-los à brutal realidade deque a natureza e a sociedade eram uma e a mesma coisa. Deviam serseparados dos outros povos e obrigados a habitar um territórioinóspito. Os judeus eram poderosos porque a sua «não natureza»atraía outros até si. Eram fracos porque eram incapazes de enfrentara brutal realidade. Realojados num qualquer local exótico, seriam in-capazes de manipular os outros com os seus conceitos sobrenatu-rais, e sucumbiriam à lei da selva. A primeira obsessão de Hitler foium cenário natural extremo, «um Estado anárquico numa ilha», parao que se pensou inicialmente em Madagáscar. Mais tarde, os seuspensamentos viraram-se para os desertos da Sibéria. Era «indiferen-te», disse, que os judeus fossem enviados para um ou para o outro.

Em agosto de 1941, cerca de um mês depois de ter tecido estecomentário, os seus homens começaram a fuzilar judeus às dezenasde milhares, no meio da Europa, num cenário que eles próprios ti-nham tornado anárquico, sobre fossos cavados nas terras negras daUcrânia.